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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIAS DE SANGUE E ESTRELAS / Laini Taylor
DIAS DE SANGUE E ESTRELAS / Laini Taylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A GAROTA DA PONTE

Praga, início de maio. O cinza do céu pesava nos telhados de contos de fadas, e o mundo todo assistia. Até satélites tinham sido direcionados para a ponte Carlos, para o caso de os... visitantes... voltarem. Coisas estranhas já haviam acontecido naquela cidade antes, mas não tão estranhas assim. Pelo menos não desde que existiam as câmeras de vídeo para provar o ocorrido. Ou para explorá-lo.

— Por favor, me diga que você quer fazer xixi.

— O quê? Não! Não, não quero. Nem adianta pedir.

— Ah, qual é. Eu mesma faria se pudesse, mas sendo menina não dá.

— Eu sei. Tão injusta, essa vida. Mesmo assim não vou fazer xixi no ex-namorado da Karou por você.

— O quê? Eu não ia pedir isso. — Em seu tom mais razoável, Zuzana explicou: — Só queria que você fizesse xixi em um balão para eu atirar nele.

— Ah. — Mik fingiu pensar no assunto por cerca de um segundo e meio. — Não.

Ela bufou.

— Que seja. Mas ele bem que merecia.

O alvo estava a três metros deles, dando depoimento a uma equipe de reportagem internacional. Não era a primeira vez, nem mesmo a décima. Zuzana tinha perdido a conta. O que tornava essa entrevista ainda mais irritante era o fato de estar sendo gravada bem em frente ao apartamento de Karou, que já tinha recebido atenção suficiente de vários órgãos de segurança pública sem que o endereço fosse devassado no noticiário.

Kaz dedicava-se a construir sua fama como ex-namorado da “garota da ponte”, como Karou vinha sendo chamada após o confronto que atraíra olhares de todo o mundo para Praga.

— Anjos — sussurrou a repórter, uma bela jovem que era um misto de modelo de revista e assassina, ao típico estilo das repórteres. — Você sabia?

Kaz riu. Zuzana, que já imaginava a reação dele, deu uma risada fingida também.

— O quê, que anjos existem mesmo? Ou que minha namorada não gosta deles?

— Ex-namorada — murmurou Zuzana acidamente.

— As duas coisas, acho — disse a repórter, rindo.

— Não, nenhuma das duas — admitiu Kaz. — Mas Karou era toda cheia de mistérios.

— O quê, por exemplo?

— Bom, ela era muito fechada, muito mesmo. Eu não sei nem de que país Karou era, ou o sobrenome dela... se é que ela tem sobrenome.

— E isso não o incomodava?

— Que nada, era maneiro. Uma garota bonita e misteriosa? Ela carregava uma faca na bota, sabia falar várias línguas e estava sempre desenhando monstros no...

— Conte como ela atirou você pela janela! — gritou Zuzana.

Kaz tentou ignorá-la, mas a repórter ouvira.

— Isso é verdade? Ela machucou você?

— Bem, não foi a melhor coisa que já me aconteceu. — Uma discreta e charmosa risada. — Mas eu não me machuquei. Foi minha culpa, na verdade. Eu a assustei. Não foi minha intenção, mas ela estava um pouco agitada por causa de uma briga em que tinha se envolvido. Estava coberta de sangue e descalça no meio da neve.

— Que terrível! Ela lhe contou o que houve?

— Não! Porque estava ocupada demais atirando-o pela janela! — gritou Zuzana mais uma vez.

— Foi uma porta, na verdade — disse Kaz, fuzilando Zuzana com o olhar. Então apontou para uma porta de vidro atrás dele. — Aquela ali.

— Esta? Esta porta aqui?

A repórter estava maravilhada. Ela estendeu a mão e tocou a porta como se houvesse um grande significado ali, como se o vidro novo, substituindo o anterior, estilhaçado por um ator medíocre sendo lançado aos ares, fosse algum tipo de símbolo importante para o mundo.

— Por favor — pediu Zuzana a Mik. — Ele está bem aqui, embaixo da varanda. — A garota tinha as chaves do apartamento da amiga, o que havia sido bastante útil para dar um sumiço nos cadernos de desenhos de Karou antes que os investigadores pudessem colocar as mãos neles. Ela queria que Zuzana fosse morar ali, mas agora, graças a Kaz, o lugar tinha virado um circo. — Olhe. — Ela apontou. — Vai direto na cabeça dele. E você bebeu litros e litros de chá...

— Não.

A repórter se aproximou de Kaz com um ar conspiratório.

— E então, onde ela está agora?

— É sério isso? — murmurou Zuzana. — Como se ele soubesse. Até parece que ele só não contou para os outros vinte e cinco repórteres porque estava guardando o furo de reportagem só para ela.

Ainda na escada, Kaz deu de ombros.

— Todos nós vimos. Ela saiu voando. — O garoto balançou a cabeça como se não pudesse acreditar, e olhou direto para a câmera. Ele era tão mais bonito do que merecia. Kaz fazia Zuzana desejar que a beleza fosse algo que pudesse ser revogada por mau comportamento. — Ela saiu voando — repetiu ele, fingindo estar abismado.

Aquelas entrevistas eram uma peça de teatro para ele: o mesmo espetáculo repetidas vezes, com apenas algumas pequenas improvisações dependendo das perguntas. Já estava ficando cansativo.

— E você não tem ideia de aonde ela possa ter ido?

— Não. Ela vivia sumindo, passava dias sem aparecer. Nunca dizia aonde ia, mas sempre voltava exausta.

— Você acha que ela vai voltar desta vez?

— Espero que sim. — Outro olhar emocionado para as câmeras. — Sinto saudade dela, sabe?

Zuzana gemeu como se estivesse com dor de barriga.

— Aaaaaah, faça esse cara calar a bocaaaaaa!

Mas Kaz não se calou. Virou para a repórter e disse:

— A única coisa boa é que posso usar essa experiência no meu trabalho. A saudade, a dúvida. Isso enriquece muito a performance.

Em outras palavras: Chega de Karou, vamos falar de mim.

A repórter embarcou na dele.

— Então você é ator...

Zuzana não aguentava mais.

— Vou subir. Você pode segurar seu chá de bexiga. Eu me viro.

— Zuze, o que você vai... — começou Mik, mas ela já estava saindo com pressa. Ele a seguiu.

E quando, três minutos depois, um balão cor-de-rosa caiu lá de cima direto na cabeça de Kazimir, ele deveria agradecer a Mik, porque não foi “chá de bexiga” o que estourou em cima dele. Foi perfume, litros de perfume, misturado a bicarbonato de sódio para formar uma pasta grudenta, que se emaranhou em seu cabelo e fez seus olhos arderem. A expressão no rosto de Kaz foi impagável. Zuzana soube disso porque, embora a entrevista não fosse ao vivo, a rede de tevê achou que valia a pena transmiti-la.

E ela foi ao ar várias e várias vezes.

Foi uma vitória, mas vazia, porque, quando ela tentou ligar para o telefone de Karou — pela milionésima vez —, a chamada caiu direto na caixa postal, e Zuzana soube que o aparelho estava desligado. Sua melhor amiga tinha desaparecido, provavelmente ido parar em outro mundo, e mesmo ver repetidas vezes Kaz sem fôlego sob uma coroa de pasta de perfume e pedaços de balão cor-de-rosa não compensava isso.

Se fosse xixi, compensaria.

 

 

 


 

 

 


2

CINZAS E ANJOS

O céu do Uzbequistão, aquela noite.

O portal era uma fenda no ar. O vento o cortava nas duas direções, sibilando como o ar da respiração passando pelos dentes, e nos limites tremulantes do portal via-se o céu de um mundo revelando o do outro. Akiva observava as estrelas mesclando-se ao longo da fenda, preparando-se para atravessá-la. No outro mundo as estrelas de Eretz cintilavam, visíveis-invisíveis, visíveis-invisíveis, e ele fez o mesmo. Haveria guardas do outro lado, e ele não sabia se deveria revelar sua presença.

O que o esperava em seu mundo?

Se seus irmãos o tivessem denunciado como traidor, os guardas o prenderiam imediatamente... ou pelo menos tentariam. Akiva não queria acreditar que Hazael e Liraz pudessem ter desistido dele, mas os últimos olhares dos dois ainda estavam bem vivos em sua memória: a fúria de Liraz por sua traição, a revolta silenciosa de Hazael.

Ele não podia arriscar ser pego. Vivia assombrado por outro último olhar, mais penetrante e mais recente que os deles.

Karou.

Dois dias antes ela o havia deixado no Marrocos, e o olhar que lhe lançara antes de partir fora tão terrível que ele quase preferia que ela o tivesse matado. E a tristeza dela nem tinha sido o pior. O pior fora sua esperança, a inapropriada e rebelde esperança de que o que ele lhe dissera não fosse verdade, quando ele sabia com a mais absoluta e realista certeza que era.

Os quimeras tinham sido destruídos. A família dela estava morta.

Por causa dele.

A infelicidade de Akiva o consumia. Ia lhe corroendo aos poucos, e ele sentia a dor a todo instante, como se dentes o dilacerassem — a tristeza que o devorava por dentro, a verdade sombria do que tinha feito, atormentando-o como um pesadelo do qual não conseguia acordar. Naquele momento, Karou podia estar rodeada pelas cinzas de seu povo, sozinha nas ruínas escuras de Loramendi... ou pior, podia estar com aquela coisa, Razgut, que a levara de volta para Eretz. E o que aconteceria com ela?

Akiva devia ter ido atrás deles. Karou não entendia. O mundo para o qual ela estava voltando não era o mesmo de suas lembranças. Ela não encontraria nenhuma ajuda ou conforto lá — somente destruição e anjos. Patrulhas de serafins eram frequentes nas antigas terras livres agora, e os poucos quimeras restantes eram acorrentados e levados para o norte sob o chicote dos traficantes de escravos. Eles a veriam — quem não a veria, com seu cabelo lápis-lazúli, a deslizar sem asas facilmente pelo ar? Ela seria morta ou capturada.

Akiva precisava encontrá-la antes dos outros.

Razgut dissera a ela que conhecia um portal, e, considerando o que ele era — um dos Decaídos —, provavelmente conhecia mesmo. Akiva havia tentado localizá-los, mas sem sucesso, de forma que no final das contas não tivera opção a não ser voar em direção ao portal que ele próprio tinha redescoberto: aquele diante do qual estava agora. Qualquer coisa podia ter acontecido durante o tempo que ele tinha perdido sobrevoando oceanos e montanhas.

Ele decidiu ficar invisível. O dízimo era fácil. A magia não vinha de graça; exigia como pagamento a dor, que o antigo ferimento de Akiva supria em abundância. Seria muito simples trocá-la pela quantidade de magia necessária para apagá-lo do ar.

Então ele foi para casa.

A mudança na paisagem era sutil. As montanhas dali se pareciam muito com as montanhas de lá, embora no mundo humano as luzes de Samarcanda brilhassem à distância. Ali não havia nenhuma cidade, apenas uma torre de vigia no alto de uma das montanhas, com dois guardas serafins andando de um lado para o outro atrás do parapeito, e, no céu, a melhor forma de reconhecer Eretz: duas luas, uma brilhante e a outra um mero fantasma, quase invisível.

Nitid, a lua brilhante, era a deusa de quase tudo para os quimeras — menos dos assassinos e dos amantes secretos. Esses eram devotos de Ellai.

Ellai. Akiva se retesou ao vê-la. Ela bem podia ter-lhe sussurrado, Conheço você, anjo; afinal, ele não tinha vivido um mês em seu templo, bebendo de sua fonte sagrada, e até sangrado lá dentro quando o Lobo Branco quase o matara?

A deusa dos assassinos provou meu sangue, pensou ele. Será que tinha gostado, será que queria mais?

Ajude-me a encontrar Karou em segurança, e você terá até a última gota dele.

Ele voou para o sudoeste, o medo o puxando como um anzol, e ainda mais rápido à medida que o sol subia no céu e o medo se transformava no pânico de chegar tarde demais. Tarde demais e... o quê? Encontrá-la morta? Ele revivia a todo momento o instante da execução de Madrigal: o baque surdo de sua cabeça caindo e o retinir dos chifres batendo no chão e a impedindo de rolar para longe do cadafalso. E não era mais Madrigal, mas Karou, a protagonizar aquelas lembranças, a mesma alma em um corpo diferente e sem chifres para impedir que sua cabeça rolasse, apenas a improvável seda azul de seu cabelo. E embora seus olhos fossem agora negros em vez de castanhos, ficariam embotados da mesma forma, se revestiriam novamente do olhar pétreo dos mortos, e seria seu fim. De novo. De novo, e dessa vez para sempre, porque não havia mais Brimstone para ressuscitá-la. Dali em diante, morte significava morte.

Se ele não chegasse lá. Se não a encontrasse.

E enfim surgiram à sua frente: as ruínas que um dia foram Loramendi, a cidade-fortaleza dos quimeras. Torres tombadas, ameias destruídas, ossos carbonizados, toda a cidade um campo de cinzas. Até as barras de ferro que um dia se arqueavam sobre o lugar tinham sido arrancadas, como se pelas mãos dos deuses.

Akiva sentia como se estivesse sendo sufocado pelo próprio coração. Sobrevoou as ruínas, procurando um vislumbre de azul naquela vastidão de cinza e preto — o cenário de sua terrível vitória —, mas não encontrou nada.

Karou não estava lá.

Ele procurou durante todo aquele dia e também no seguinte, por Loramendi e além, perguntando-se furiosamente aonde ela poderia ter ido e tentando não passar a se perguntar o que podia ter acontecido com ela. Mas as possibilidades ficavam mais sombrias à medida que as horas passavam, e seus medos se transformavam em pesadelos inspirados em todas as coisas terríveis que ele já tinha visto e feito. Imagens assaltavam sua mente. Várias vezes ele levou as mãos aos olhos para afastá-las. Ela não. Karou tinha que estar viva.

Akiva simplesmente não conseguia sequer pensar na alternativa.


3

SENHORITA CHÁ DE SUMIÇO

De: Zuzana <fada_raivosa@punhosminusculos.net>

Assunto: Senhorita Chá de Sumiço

Para: Karou <karouazul@garota-para-la-e-para-ca.com>

Bem, Senhorita Chá de Sumiço, pelo visto você foi embora e não tem lido minhas MISSIVAS MUITO URGENTES.

Foi embora para OUTRO MUNDO. Sempre soube que você era esquisita, mas realmente não esperava por isso. Por onde anda, e o que tem feito? Você não tem ideia de como isso está acabando comigo. Como é aí? Com quem você está? (Com Akiva? Por favor, por favorzinho?) E o mais importante: existe chocolate por aí? Imagino que não tenha internet e que não seja possível dar uma escapadinha rápida para visitar os amigos do lado de cá — aliás, espero que não seja mesmo possível, porque se eu descobrir que você anda passeando à toa e despreocupada por aí sem nem pensar em vir me ver, serei obrigada a tomar atitudes drásticas. Posso tentar aquela coisa, você sabe, aquele negócio de ficar com os olhos cheios d’água e com cara de idiota... como é que se chama mesmo? Chorar?

Ou NÃO. Em vez disso posso dar um SOCO em você, sabendo que eu sairia ilesa graças ao meu adorável e minúsculo tamanho. Seria como bater em uma criança.

(Ou em um esquilo.)

Enfim. Tudo bem por aqui. Joguei uma bomba de perfume em Kaz, passou até na tevê. Vou publicar os seus cadernos de desenho como se fossem meus e aluguei sua casa para piratas. Piratas fedidos. Entrei para um culto de anjos e estou adorando participar do círculo de orações diárias, e também estou CORRENDO, para caber na minha roupa especial para o apocalipse — que, é claro, eu levo comigo para todo lado, POR VIA DAS DÚVIDAS.

Vamos ver, o que mais? *olhando para o teto e pensando*

Por razões óbvias, a cidade anda cada vez mais cheia. Minha misantropia não tem limites. O ódio emana de mim como ondas de calor de desenho animado. O show de marionetes vem rendendo uma boa grana, mas estou ficando de saco cheio, sem falar que tenho que trocar as sapatilhas de balé como se não houvesse amanhã — bom, se o culto dos anjos estiver certo, não vai haver mesmo.

(Uhul!)

Mik é ótimo. Tenho andado um pouco chateada (pois é, né), e sabe o que ele fez para me animar? Bem, eu tinha contado a ele aquela história de quando eu era pequena e gastei toda a minha mesada no parque de diversões tentando ganhar o bolo que iam dar em uma das barraquinhas de prendas, porque eu queria muito, mas muito mesmo comer um bolo inteiro sozinha, mas que não ganhei e depois descobri que podia ter simplesmente comprado um bolo que sairia bem mais barato e eu ainda teria dinheiro para andar nos brinquedos, e que aquele foi o pior dia da minha vida. E não é que ele montou uma barraquinha de prendas só para mim? Com as prendas e música e SEIS BOLOS INTEIROS. Depois que eu ganhei TODOS, levamos os bolos para o parque e ficamos umas cinco horas dando pedaços de bolo na boca um do outro. Foi o melhor dia da minha vida.

Até o dia em que você voltar.

Adoro você, e espero que esteja bem e feliz e que, onde quer que esteja, alguém (Akiva?) também esteja comprando bolos para você ou o que quer que impetuosos anjos apaixonados façam por suas garotas.

*beijo/soco*

Zuze


4

CHEGA DE SEGREDOS

— Bem. Isso é meio surpreendente.

Foi o que disse Hazael. Liraz estava ao lado dele. Akiva vinha esperando pelos dois. Era bem tarde, e ele estava na arena de treinamento atrás dos alojamentos do cabo Armasin, a antiga guarnição quimera para onde o regimento deles tinha sido enviado ao fim da guerra. Ele estava fazendo uma apresentação ritual de kata, mas abaixou as espadas e olhou para os irmãos, esperando para ver o que fariam.

Ele não tinha sido desafiado ao retornar. Os guardas o haviam saudado com os olhos arregalados, reverentes como sempre — para eles, Akiva era o Ruína das Feras, o Príncipe dos Bastardos, um herói, e isso não tinha mudado —, então parecia que Hazael e Liraz não o haviam denunciado ao comandante, ou então a história simplesmente ainda não havia chegado às fileiras. Ele devia ter tomado mais cuidado, não aparecido ali sem fazer ideia do que o aguardava, mas estava atordoado.

Depois do que encontrara nas cavernas dos Kirin.

— Devo ficar com o coração partido por ele não ter vindo nos procurar? — perguntou Liraz ao irmão, encostada à parede com os braços cruzados.

— Coração? — Hazael a olhou estranho. — Você?

— Eu também tenho sentimentos; alguns — retrucou ela. — Só não tenho sentimentos idiotas, como remorso. — E olhou incisivamente para Akiva. — Ou amor.

Amor.

Akiva sentiu-se contorcer por dentro, pensando em tudo o que havia de errado em si.

Tarde demais. Ele tinha chegado tarde demais.

— Está dizendo que não me ama? — perguntou Hazael a Liraz. — Porque eu amo você. Acho. — Ele ficou pensativo por um momento. — Ah, não. Esqueça. O que eu sinto é medo.

— Mais um sentimento que eu não tenho — disse Liraz.

Akiva não sabia se isso era verdade; ele duvidava, mas talvez Liraz sentisse menos medo do que a maioria e soubesse esconder melhor. Mesmo quando criança ela era impetuosa, a primeira a pisar no ringue de luta fosse quem fosse o oponente. Liraz e Hazael sempre fizeram parte de sua vida. Nascidos no mesmo mês, no harém do imperador, os três tinham sido entregues juntos aos Ilegítimos — a legião de bastardos de Joram, frutos de seus encontros noturnos — e criados para serem armas do reino. E tinham sido armas leais, os três lutando lado a lado em incontáveis batalhas, até que a vida de Akiva mudara e a deles não.

E agora tinha mudado de novo.

O que havia acontecido, e quando? Fazia apenas alguns dias desde o Marrocos e aquele olhar de Karou. Não era possível. O que é que tinha acontecido?

Akiva estava entorpecido; sentia-se desconectado da realidade. As vozes pareciam não alcançá-lo — ele as ouvia, mas era como se viessem de algum ponto distante, e tinha a estranha sensação de não estar completamente presente. Ele vinha tentando se concentrar com o kata, e conquistar o sirithar, o estado de calma em que os deuses da luz atuam através dos espadachins, mas era o exercício errado. Ele estava calmo. Uma calma fora do normal.

Hazael e Liraz o encaravam de um modo estranho. Trocaram um olhar.

Ele se forçou a falar:

— Eu teria avisado que voltei, mas com certeza vocês já sabiam.

— E eu sabia mesmo — disse Hazael, quase como quem se desculpa.

Ele sabia de tudo que acontecia. Com seu jeito tranquilo e seu sorriso indolente, transmitia uma imagem de despretensão tal que o fazia parecer inofensivo. As pessoas lhe contavam as coisas; ele era um espião natural: gentil, desprovido de ego e com uma perspicácia atroz que passava totalmente despercebida.

Liraz também era perspicaz, mas o oposto de inofensiva. Tinha uma beleza gélida e um olhar fulminante, e usava o cabelo claro preso para trás em tranças austeras, uma dezena de fileiras apertadas, que sempre pareceram dolorosas para seus irmãos; Hazael gostava de provocá-la sugerindo que ela poderia usá-las como dízimo. Seus dedos, que tamborilavam impacientemente nos braços, estavam tão cobertos pelas marcas de assassinatos que, à distância, pareciam pretos.

Quando, em uma noite de brincadeiras e também de certa embriaguez, alguns soldados do regimento fizeram uma votação para ver quem eles menos gostariam de ter como inimigo, Liraz vencera por unanimidade.

Agora ali estavam eles, os maiores companheiros de Akiva, sua família. Por que o olhavam daquela maneira? Em seu estranho estado de distanciamento, parecia-lhe que era o destino de outro soldado que pendia na balança. O que eles iriam fazer?

Akiva mentira para eles, escondera segredos durante anos, sumira sem dar explicação, e na ponte de Praga chegara a escolher o lado do adversário. Ele nunca esqueceria o horror daquele momento, em que ficara entre eles e Karou e tivera que escolher — muito embora fosse apenas a ilusão de uma escolha. Ele ainda não via como poderiam perdoá-lo.

Diga alguma coisa, ele insistia consigo mesmo. Mas o quê? Por que tinha decidido voltar ali? Ele já não sabia o que fazer. Eles eram sua família, aqueles dois, mesmo depois de tudo que acontecera.

— Eu não sei o que dizer. Como fazer vocês entenderem...

Liraz o interrompeu:

— Eu nunca vou entender o que você fez.

A voz dela soou fria como uma lâmina, e Akiva pôde ouvir, ou imaginar ali, o que ela não disse mas já dissera antes.

Amante de fera.

Algo dentro dele se atiçou.

— Ah, é claro que você nunca conseguiria entender. — Um dia ele já sentira vergonha de amar Madrigal, mas agora era apenas a vergonha que o envergonhava. Amá-la tinha sido a única coisa pura que ele fizera na vida. — Será porque você é incapaz de amar? A intocável Liraz. Isso não é vida. É ser exatamente o que ele quer que sejamos. Soldadinhos de corda.

Ela estava incrédula, cheia de fúria.

— Agora quer me dar lições sobre sentimentos, lorde bastardo? Muito obrigada, mas eu dispenso. Estou vendo como fez bem a você.

Akiva sentiu a raiva deixar seu corpo; tinha sido apenas uma breve vibração de vida na casca que era o que restara dele. O que Liraz disse era verdade. O que o amor tinha feito com ele? Seus ombros estavam caídos, suas espadas arranhavam o chão. E, quando sua irmã pegou uma alabarda da estante de equipamentos e sussurrou “Nithilam”, ele quase não ficou surpreso.

Hazael pegou sua grande espada e lançou a Akiva um olhar que, assim como sua voz, parecia querer se desculpar.

E então eles o atacaram.

Nithilam era o oposto de sirithar. Era o caos quando tudo estava perdido. Era o frenesi ímpio do calor da batalha, o matar para não morrer. Era disforme, cruel e brutal, e foi como os irmãos de Akiva partiram para cima dele.

As espadas de Akiva se ergueram de repente para bloquear os golpes. Onde quer que sua mente estivesse antes, entorpecida e desorientada, agora estava concentrada, em um piscar de olhos, e não havia nada de abafado no retinir de aço contra aço. Ele havia treinado com Hazael e Liraz milhares de vezes, mas aquilo era diferente. Desde o primeiro contato ele sentiu o peso de seus golpes — força total e movimentos precisos. Mas é claro que não era um ataque de verdade. Ou era?

Empunhando sua grande espada com as duas mãos, os golpes de Hazael perdiam em velocidade e agilidade para os de Akiva, mas ganhavam uma força espantosa.

Liraz, cuja espada ainda estava embainhada, tinha que ter escolhido a alabarda pelo prazer assassino de seu peso, e, embora ela fosse esguia e gemesse com o esforço de manusear aquela arma, o resultado era o borrão mortal de um cabo de madeira de quase dois metros de altura, com duas lâminas de machado e uma ponta em lança de meio braço de comprimento.

Ele logo teve que levantar voo para desviar dela, apoiar os pés em um torreão e se lançar para trás para ganhar mais espaço, mas Hazael já estava o alcançando. Akiva bloqueou um golpe que fez vibrar seu corpo inteiro e o obrigou a voltar para o chão. Ele aterrissou agachado e foi recebido pela alabarda. Mergulhou para o lado quando a arma desceu com força e deixou uma marca no chão bem no ponto do qual ele acabara de sair. Teve que se virar para desviar da espada de Hazael, e o fez certo dessa vez, girando enquanto aparava o golpe, para que a força do impacto corresse por sua própria lâmina e se perdesse — energia liberada no ar.

E assim a luta continuou.

E continuou.

O tempo se perdeu no redemoinho de nithilam, e Akiva se tornou uma criatura instintiva vivendo em meio aos golpes das lâminas.

Os ataques vinham sem cessar, e ele os bloqueava e desviava, mas não revidava; não havia tempo nem espaço para isso. Seus irmãos o cercavam, de forma que sempre havia uma arma vindo em sua direção, mas, quando ele conseguia ver uma brecha — quando ocorria uma lacuna de uma fração de segundo entre as investidas, como se fosse uma porta aberta em direção ao pescoço de Hazael ou ao tendão de Liraz —, deixava passar.

O que quer que fizessem, ele nunca iria machucá-los.

Hazael soltou um rugido do fundo da garganta e desferiu um golpe tão pesado quanto um centauro, acertando a espada direita de Akiva e lançando-a para longe aos giros. A força do impacto irradiou uma intensa onda de dor em sua antiga lesão no ombro; ele deu um pulo para trás, mas não rápido o suficiente para desviar de Liraz, que, investindo com a alabarda rente ao chão, derrubou-o. Ele caiu de costas, as asas abertas. A segunda espada escapou de suas mãos, indo parar junto da primeira, e então Liraz avançou sobre ele, a arma erguida para o golpe mortal.

Ela hesitou. E aquele meio segundo — que pareceu uma eternidade em meio ao caos do nithilam — foi tempo suficiente para Akiva achar que ela ia mesmo fazer aquilo, e depois que não, não ia. E então... ela ergueu a alabarda. O movimento exigiu dela todo o ar de seus pulmões, e então a arma estava descendo e não havia mais como fazê-la parar — o cabo era muito longo; Liraz não poderia deter sua queda mesmo se quisesse.

Akiva fechou os olhos.

Ouviu e sentiu o zunido no ar, o impacto de estremecer. E sentiu também a força do golpe, mas... não a dor. Quando o instante passou, ele abriu os olhos. A lâmina do machado estava cravada na terra batida bem ao lado de seu rosto, e Liraz já se afastava.

Ele ficou lá deitado, apenas olhando para as estrelas e respirando, permitindo-se, à medida que o ar entrava e saía do seu corpo, sentir o peso da percepção de que estava vivo.

Não era uma surpresa insignificante ou gratidão momentânea por ter sido poupado de levar um golpe de machado no rosto. Bem, isso também, mas era algo maior, mais forte. Era a compreensão — e o fardo — de que, ao contrário daqueles muitos que haviam morrido por sua culpa, ele tinha vida, e vida não era um estado padrão — não estou morto; logo, devo estar vivo —, mas um meio. Para a ação, para o esforço. Enquanto tivesse vida, coisa que merecia tão pouco, ele a usaria, a empregaria, faria tudo o que pudesse em nome dessa vida, mesmo que não fosse, pois nunca era, suficiente.

Mesmo que Karou nunca soubesse.

Hazael apareceu à frente dele. Gotículas de suor cobriam sua testa. Seu rosto estava vermelho, mas sua expressão continuava tranquila.

— Está confortável aí embaixo?

— Estou quase dormindo — respondeu Akiva, e sentiu que era verdade.

— Caso não se lembre, você tem uma cama para isso.

— Tenho? — Ele fez uma pausa. — Ainda?

— Uma vez bastardo, sempre bastardo — replicou Hazael, uma forma de dizer que não havia como deixar os Ilegítimos. O imperador os criara com um propósito; eles serviam até morrer. E no entanto, isso não queria dizer que seus irmãos teriam que perdoá-lo. Akiva olhou de relance para Liraz. Hazael seguiu seu olhar. — Soldadinho de corda? Sério? — Ele balançou a cabeça e, a sua maneira de insultar sem rancor, acrescentou: — Idiota.

— Eu falei por falar.

— Eu sei. — Tão simples. Ele sabia. Hazael nunca fazia drama. — Se achasse que fosse sério, eu não estaria aqui.

O cabo da alabarda estava inclinado por cima do corpo de Akiva. Hazael o pegou, arrancou a arma do chão e a ergueu. Akiva se sentou.

— Ouça. O que aconteceu na ponte... — começou, mas não sabia o que dizer. Como pedir desculpas por traição?

Mas Hazael o poupou de procurar as palavras certas.

— Você protegeu uma garota na ponte — falou com sua voz lenta e tranquila. Ele deu de ombros. — Sabe de uma coisa? É um alívio finalmente entender o que aconteceu com você. — Ele estava falando de dezoito anos antes, quando Akiva desaparecera por um mês e voltara mudado. — A gente discutia sobre isso. — Com um gesto, ele indicou Liraz, que estava organizando as armas na estante, sem prestar atenção a eles, ou ao menos fingindo não prestar. — Ficávamos nos perguntando, mas paramos com isso há muito tempo. Você era assim e pronto, e não posso dizer que gostava disso, mas você é meu irmão. Não é, Lir?

Ela não respondeu, mas quando Hazael atirou a alabarda na direção dela, a irmã a pegou prontamente.

Hazael estendeu a mão para Akiva.

É só isso?, perguntava-se Akiva. Ele estava machucado e dolorido e, quando o irmão o puxou para levantá-lo, sentiu outra dor rasgando seu ombro, mas ainda assim parecia fácil demais.

— Você deveria ter nos contado sobre ela — disse Hazael. — Anos atrás.

— Eu queria contar.

— Eu sei.

Akiva balançou a cabeça; se não fosse por todo o resto, ele quase poderia sorrir.

— Você sabe tudo, não é mesmo?

— Eu sei quem você é, sim. — Hazael também não estava sorrindo. — E sei que alguma outra coisa aconteceu. Mas dessa vez você vai nos contar.

— Chega de segredos.

Isso veio de Liraz, que ainda estava à distância, séria e irascível.

— Não esperávamos que você fosse voltar — disse Hazael. — Da última vez que o vimos, você estava... comprometido.

Se ele era vago, Liraz era direta, e perguntou:

— Cadê a garota?

Akiva ainda não tinha dito em voz alta. Contar a eles tornaria aquilo real. A palavra ficou presa na garganta, mas ele a forçou a sair.

— Morreu. Ela morreu.


5

UMA ESTRANHA PALAVRA LUNAR

De: Zuzana <fada_raivosa@punhosminusculos.net>

Assunto: Alôôô

Para: Karou <karouazul@garota-para-la-e-para-ca.com>

ALÔ. Alô alô alô alô alô alô.

Alô?

Droga, agora eu consegui. Fiz alô soar estranho e abstrato. Parece uma runa alienígena agora, algo que um astronauta encontraria gravado em uma pedra na Lua e diria: Uma estranha palavra lunar! Vou levar isso para a Terra como um presente para meu filho surdo! E aí a pedra — é claro — criaria piranhas espaciais voadoras e destruiria a humanidade em menos de três dias, mas POR ALGUM MOTIVO pouparia o astronauta, para que ele pudesse estar na última cena chorando de joelhos diante das ruínas da nossa civilização e gritando para os céus: Era só um alôôôôôôôô!

Ah. Bem. Está tudo de volta ao normal agora. Nada mais de destruição alienígena. Astronauta, acabei de impedir que você destruísse a Terra.

DE NADA.

Lição do dia: Não traga presentes de lugares estranhos. (Que se dane. Traga sim!)

Além disso: escreva para dizer que continua respirando, ou vai pagar muito caro por isso.

Zuze


6

O RECEPTÁCULO

Havia um lugar além de Loramendi, contou Akiva a seus irmãos, ao qual Karou talvez fosse. Ele não esperava de fato encontrá-la; já estava convencido de que ela atravessara o portal de volta para sua vida — arte, amigos, cafés com mesas em formato de caixão — e deixara aquele mundo devastado para trás. Bem, ele estava quase convencido disso, mas algo o atraía para o norte.

— Acho que eu sempre a encontraria — dissera Akiva para Karou poucos dias antes, minutos antes de partirem o osso da sorte. — Não importa quão bem estivesse escondida.

Mas não era aquilo que ele queria dizer...

Não era aquilo.

Nas montanhas Adelphas, com seus picos cobertos de gelo que por séculos tinham servido como bastião entre o império e as terras livres, ficavam as cavernas dos Kirin.

Era lá que Madrigal tinha morado quando criança, e era para lá que tinha retornado em uma tarde distante, sob raios de luz brilhantes, apenas para descobrir que sua tribo fora massacrada e pilhada por anjos enquanto ela estava brincando. As peles de elementais que ela trazia em suas pequenas mãos caíram na entrada e foram varridas para dentro pelo vento. Elas teriam se transformado com o tempo, passando de seda a papel, de translúcidas a azuis, e finalmente virando pó, mas eram outras peles de elementais que cobriam o chão quando Akiva entrou. E não havia nenhum sinal das criaturas em si nem de nenhum outro ser vivo.

Ele já estivera nas cavernas uma vez, muitos anos antes, e apesar do tempo e da tristeza que embotava suas lembranças, o lugar parecia o mesmo. Uma rede de cavernas e caminhos escavados na rocha se estendia a uma grande profundidade, com as superfícies todas lisas e curvas. As cavernas eram parte natureza, parte arte, com canais habilmente esculpidos por toda a sua extensão para funcionar como flautas eólicas, de forma que mesmo as câmaras mais escondidas fossem preenchidas por uma música etérea. Ainda restavam ali algumas poucas relíquias dos Kirin: tapetes tecidos a mão, capas penduradas em ganchos, cadeiras caídas onde tinham ido parar no caos dos últimos momentos da tribo.

Em uma mesa, bem à vista, ele encontrou o receptáculo.

Tinha a forma de um lampião, feito de uma prata escura, e ele sabia o que era. Já vira vários deles na guerra: os soldados quimeras os carregavam nos ganchos de longos cajados. Madrigal levava um quando Akiva a vira pela primeira vez no campo de batalha em Bullfinch, embora ele não tivesse entendido na época o que era ou para que servia.

Ou que aquele era o grande segredo do inimigo e a chave para sua ruína.

Era um turíbulo — um recipiente para recolher as almas dos mortos e preservá-las para a ressurreição —, e não parecia estar na mesa havia muito tempo. Havia poeira embaixo do objeto, mas não nele. Alguém o colocara lá pouco antes; quem, Akiva não sabia dizer, nem por quê.

A existência daquele turíbulo era um mistério em quase todos os aspectos, com exceção de um.

Preso a ele, com um arame prateado torcido, havia um pequeno pedaço de papel com uma única palavra escrita. Era uma palavra quimera, e, naquelas circunstâncias, a mais cruel provocação que Akiva poderia imaginar, porque significava esperança, e também era o fim da sua, uma vez que também era um nome.

Era Karou.


7

POR FAVOR, NÃO

De: Zuzana <fada_raivosa@punhosminusculos.net>

Assunto: Por favor, não

Para: Karou <karouazul@garota-para-la-e-para-ca.com>

Ah, meu Deus. Você morreu, não foi?


8

O FIM DO PÓS-GUERRA

E aquele era o novo inferno de Akiva: que tudo houvesse mudado e continuasse igual.

Ali estava ele, de volta a Eretz, nem morto, nem preso, ainda um soldado dos Ilegítimos e herói da Guerra Quimérica: o célebre Ruína das Feras. Era absurdo se ver de volta em sua antiga vida, como se ele fosse a mesma criatura que era antes de esbarrar em uma garota de cabelo azul, em uma ruela de outro mundo.

Ele não era o mesmo. Já não sabia que criatura era agora. O desejo de vingança que o havia sustentado por todos aqueles anos sumira, deixando em seu lugar um poço de cinzas tão vasto quanto Loramendi; vergonha e pesar, aquela infelicidade que o consumia, e uma ligeira e incerta sensação de... dever a cumprir. De propósito.

Mas que propósito?

Ele nunca havia pensado no que viria a seguir, no que aconteceria na época em que estava vivendo. A “paz” estava sendo festejada no império, mas Akiva só conseguia pensar naquilo como pós-guerra. Em sua mente, o fim sempre havia sido a queda de Loramendi e a vingança contra os monstros cujas exclamações de satisfação tinham servido de trilha sonora para a morte de Madrigal. Ele mal havia pensado no que viria em seguida. Talvez acreditasse que já estaria morto até lá, como tantos outros soldados, mas agora via que morrer seria fácil demais.

Viva no mundo que você criou, pensava todo dia de manhã ao se levantar. Você não merece descanso.

O pós-guerra era feio. Todos os dias ele era forçado a testemunhar as consequências do conflito: as caravanas de escravos em movimento, as carcaças queimadas dos templos, arruinadas e enegrecidas, os vilarejos e estalagens de beira de estrada destruídos, as colunas de fumaça sempre presentes, subindo à distância. Akiva tinha dado início a tudo aquilo, mas, se a vingança dele já se acabara fazia tempo, a do imperador ainda não. As terras livres tinham sido trucidadas — um feito facilitado pelo lamentável fato de incontáveis quimeras terem fugido para Loramendi em busca de segurança, onde acabaram sendo queimados vivos durante a queda da cidade —, e a expansão do império estava em curso.

A região populosa no norte das terras quimeras era apenas a ponta de um grande continente selvagem, e, embora a força principal dos exércitos de Joram tivesse voltado para casa, as patrulhas continuavam, movendo-se como a sombra da morte cada vez mais para o sul, aniquilando aldeias, queimando campos, o que resultava em mais escravos e mais mortos. Podia ser obra do imperador, mas Akiva a tornara possível, e observava tudo com olhos tristes, se perguntando quanto daquilo Karou tinha visto antes de morrer, e a que ponto chegara seu ódio no fim.

Se ela estivesse viva, pensava Akiva, ele nunca mais conseguiria olhá-la nos olhos.

Se estivesse viva.

Sua alma ainda existia, mas, por culpa de Akiva, o ressurreicionista estava agora morto. Em um dos mais sombrios momentos da vida dele, a ironia da situação o fez começar a rir sem conseguir parar, e os sons que saíam de sua garganta, antes de finalmente se transformarem em soluços, eram tão pouco alegres que poderiam ser uma inversão forçada do riso — era como se sua alma fosse puxada de dentro para fora e revelasse sua face mais crua.

Ele estava nas cavernas dos Kirin quando aquilo aconteceu, sem ninguém para ouvi-lo. Voltara para buscar o turíbulo, que havia escondido lá. A viagem durava um dia inteiro. Ele se sentou com o turíbulo nas mãos e tentou acreditar que Karou estava ali, mas, ao tocar a prata fria, não sentiu nada, e um nada o dominou, tão profundo que ele se permitiu a esperança de que a alma dela não estivesse ali dentro — não podia estar. Ele sentiria se fosse; saberia. Então atravessou o portal de volta para o mundo humano e foi até Praga, onde espiou pela janela da casa dela como já tinha feito antes, e viu... duas pessoas dormindo entrelaçadas.

A esperança que sentiu foi como inspirar ar gelado — doía —, e seu ciúme foi igualmente violento e súbito. Em um rápido instante seu corpo ardeu e gelou, os punhos se fechando com tanta força que ardia. Uma onda de adrenalina o percorreu, deixando-o trêmulo. Mas não era ela. Não era ela, e por um brevíssimo e fugaz instante ele sentiu alívio. Seguido por uma decepção esmagadora e pelo autodesprezo ao se dar conta da reação que tivera.

Akiva esperou que os amigos de Karou acordassem. Eram eles: o músico e a garota pequena cujos olhos quase se comparavam aos de Liraz em termos de ferocidade. Ele os observou ao longo daquele dia, esperando a todo momento que Karou aparecesse, mas isso não aconteceu. Ela não estava lá. Por um bom tempo a amiga dela ficou parada, vasculhando com os olhos a multidão na ponte, os telhados, até o céu — um olhar tão ansioso que fez Akiva perceber que ela também não tinha notícias de Karou.

Não havia nenhum rumor ou boato em Eretz que desse alguma pista sobre ela; não havia nada a não ser o turíbulo, com sua única e terrível explicação.

Durante um mês Akiva deixou-se levar. Cumpria seu serviço, patrulhando a região noroeste das antigas terras livres, com seu litoral selvagem e seus vastos montes. Fortes dominavam os picos e penhascos. A maioria, como aquele, tinha sido construída em fendas verticais na rocha, para protegê-los de ataques aéreos, mas no fim nada disso tinha adiantado. O cabo Armasin havia sido cenário para uma das batalhas mais violentas da guerra — com perdas terríveis para ambos os lados — e caíra. Escravos agora trabalhavam na reconstrução dos muros da fortaleza, acompanhados de perto por senhores com chicotes, e Akiva se pegava observando-os, todos os músculos do corpo impossivelmente tensos.

Era culpa sua.

Às vezes ele mal conseguia impedir que o grito em sua cabeça finalmente saísse, disfarçar o desespero na presença de sua família e de seus companheiros. Outras, ele conseguia se distrair: treinando movimentos de luta, tentando secretamente fazer magia ou apenas procurando a companhia de Hazael e Liraz e tentando conquistar seu perdão.

E ele poderia ter continuado assim por um tempo se ao fim do pós-guerra não tivesse sucedido o império.

Aconteceu do dia para a noite, e despertou no imperador uma ira tão violenta, uma fúria tão avassaladora que foi capaz de mandar uma tempestade de volta para o mar e carregar para longe os botões das flores das árvores de sycorax, para que perdessem suas pétalas macias como asas de mariposa nos jardins de Astrae.

No grande coração selvagem daquela terra que, dia após dia, sofria com caravanas de escravos e carnificinas, alguém havia começado a matar anjos.

E, quem quer que fosse, o fazia com muita, muita eficiência.


9

DENTES

— Ei, Zuze?

— Hum? — Zuzana estava no chão com um espelho em uma cadeira diante dela, pintando círculos cor-de-rosa nas bochechas, e levou um momento para olhar para cima. Quando olhou, viu Mik observando-a com aquela pequena ruga de preocupação que às vezes aparecia entre suas sobrancelhas. Uma ruga linda. — Que foi?

Mik olhou de volta para a televisão na sua frente. Estavam no apartamento que ele dividia com outros dois músicos. Não havia tevê no apartamento de Karou, onde Zuzana praticamente morava desde que a amiga sumira — o circo da mídia por fim diminuíra um pouco — e onde os dois costumavam passar as noites. Mik comia uma tigela de cereais e assistia às notícias enquanto Zuzana se preparava para a apresentação daquele dia.

Embora estivessem ganhando uma boa grana, Zuzana estava ficando meio impaciente com a coisa toda. O problema com o show de marionetes era ter que repetir a mesma apresentação várias vezes, o que exigia um temperamento que ela não tinha. Zuzana enjoava das coisas muito fácil. Só não enjoava de Mik.

— O que você tem de diferente? — perguntara ela um dia qualquer. — Eu quase nunca gosto de pessoas, mesmo em pequenas doses. Mas nunca me canso de ficar junto com você.

— É o meu superpoder — respondera ele. — Uma incrível ficarjuntabilidade.

Ele desviou o olhar da televisão, sua ruga de preocupação ainda mais profunda.

— Karou pegava dentes, não é?

— Hum, é — respondeu Zuzana, distraída à procura dos cílios postiços. — Para Brimstone.

— Que tipo de dentes?

— De todos os tipos. Por quê?

— Ah.

Ah? Mik se virou de volta para a tevê, e Zuzana de repente ficou muito alerta.

— Por quê? — perguntou ela de novo, levantando-se do chão.

Aumentando o volume da tevê, ele disse:

— Você precisa ver isso.


10

ENXAME

— Eles sabiam que estávamos vindo.

Oito serafins estavam em uma aldeia vazia. As evidências de uma partida apressada permeavam o lugar: portas escancaradas, fumaça saindo das chaminés, uma saca no chão (provavelmente caída de alguma carroça), com os grãos derramados em volta. A serafim Bethena se viu novamente junto ao berço perto da escada. Era entalhado e polido, muito liso, e ela via marcas de dedos nas laterais — gerações embalaram suas crianças ali. E cantaram canções de ninar, pensou, como se também visse isso, e sentiu, apenas por um instante, a angústia da mãe fera que, ali parada por um instante, admitira para si mesma, bem naquele lugar, que o berço era pesado demais para carregar consigo na fuga.

— É claro que sabiam — retrucou outro soldado. — Viemos acabar com todos eles.

Ele falou isso como se fosse um ato de justiça. Como se suas palavras pudessem captar a luz do sol e brilhar como aço.

Bethena lançou-lhe um olhar muito, muito cansado. De onde ele arranjava toda aquela veemência? Guerra era uma coisa, mas aquilo... Aqueles quimeras eram simples criaturas que plantavam o alimento que consumiam, embalavam seus filhos em berços polidos e provavelmente nunca tinham derramado uma única gota de sangue. Não se pareciam em nada com os soldados espectros contra quem os anjos tinham lutado suas vidas inteiras — sua história inteira —, monstros brutais e esmagadores que podiam cortá-los ao meio com um golpe, atirá-los para longe com a força dos olhos do demônio em suas mãos, rasgar suas gargantas com os dentes. Aquilo era diferente. A guerra não tinha chegado até ali; o Comandante a mantivera nos extremos da terra. Aqueles vilarejos rurais dispersos mal tinham milícias, e quando tinham, ofereciam uma resistência patética.

Os quimeras tinham sido derrotados — Loramendi marcara seu fim. O Comandante estava morto, e o ressurreicionista também. Já não havia mais espectros.

— E se simplesmente deixássemos as feras irem embora? — disse Bethena, olhando para a bela terra verdejante lá fora, suas colinas, imersas em névoa, suaves como pinceladas.

Vários de seus companheiros riram como se ela tivesse dito uma piada. Ela deixou que pensassem assim, embora seu esforço para sorrir não tenha sido bem-sucedido. Seu rosto parecia ser feito de madeira de tão duro, e o sangue corria devagar em suas veias. É claro que não podiam deixá-los simplesmente irem embora. A ordem do imperador era que livrassem a terra de todas as feras. Enxames, como ele chamava as aldeias. Infestações.

Um enxame muito do impotente, pensou ela. Aldeia após aldeia, fazenda após fazenda, os conquistadores não tinham sido ferroados nem uma vez. Aquele trabalho era fácil. Terrivelmente fácil.

— Então vamos acabar logo com isso — falou. Rosto duro, coração duro. — Eles não podem ter ido muito longe.

Foi fácil rastrear os aldeões; o gado deixara uma trilha de estrume fresco pela estrada que corria para o sul. É claro que tentariam escapar para as Terras Distantes, mas ainda não tinham aberto uma grande distância. A menos de cinco quilômetros dali, o caminho passava por baixo de um aqueduto. A estrutura monumental em três níveis estava parcialmente destruída, e as pedras caídas não permitiam ver a passagem. Do céu, a estrada depois dos arcos parecia vazia, serpeando por um vale estreito que lembrava a linha de divisão de um cabelo verde, tendo dos dois lados a mata cerrada. O rastro das feras — estrume, poeira e pegadas — terminava ali.

— Estão escondidos debaixo do aqueduto — disse Hallam, o mesmo da veemência, puxando a espada.

— Esperem. — Bethena mal sentira a palavra se formar em seus lábios e já a dissera. Os outros soldados olharam para ela. Eram oito. A caravana dos escravos, movendo-se ao ritmo arrastado dos trajetos terrestres, estava um dia à frente deles. Oito soldados serafins eram mais do que suficientes para aniquilar uma aldeia daquelas. Bethena balançou a cabeça. — Nada. — E fez sinal para descerem.

Parece uma armadilha, foi o que tinha pensado, mas isso era coisa da guerra, e a guerra tinha acabado.

Os serafins desceram dos dois lados da passagem, encurralando as feras no meio. Para o caso de haver arqueiros — nada mais forte em mãos fracas do que flechas —, eles ficaram perto das pedras, fora de alcance. O dia estava claro; as sombras, muito escuras. Os olhos dos quimeras, pensou Bethena, estavam acostumados à escuridão; a luz atrapalharia sua visão. Vamos acabar logo com isso, pensou, e deu o sinal. Ela avançou, as asas ardentes e ofuscantes, a espada baixa e pronta para o ataque. Ela esperava ver gado e aldeões assustados, ouvir o som agora familiar: o gemido de animais encurralados.

Ela viu gado e aldeões assustados. O fogo de suas asas pintou-os com as cores do pavor. Seus olhos brilhavam como mercúrio, como os seres que vivem à noite.

Não estavam gemendo.

Uma risada, como o som de um fósforo sendo riscado: seca, sombria. Alguma coisa ali estava muito errada. E quando a serafim Bethena viu o que mais havia ali esperando por eles sob o aqueduto, soube que estava enganada. A guerra não tinha acabado.

Embora para ela e seus companheiros, abruptamente, isso fosse verdade.


11

O INSONDÁVEL PORQUÊ

Um fantasma, disse o âncora do telejornal.

A princípio a evidência de invasão tinha sido muito pequena para ser levada a sério, sem contar que, é claro, era impossível fazer tal coisa. Ninguém conseguiria passar pela altamente equipada equipe de segurança dos principais museus do mundo sem deixar vestígio. E, no entanto, um estranho desconforto corria pela espinha dos curadores, a sensação arrepiante e incontestável de que alguém tinha estado ali.

Mas nada havia sido roubado. Nada tinha sumido.

Quer dizer, nada que pudessem notar.

Foi o Museu Field, de Chicago, que capturou uma prova do invasor. Primeiro, só uma coisinha de nada no vídeo gravado pela câmera de segurança: uma sombra intrigante no limite da visão, e então, por um mero instante — um passo em falso que a colocou claramente dentro do quadro —, uma garota.

O fantasma era uma garota.

Seu rosto estava virado para o outro lado. Dava para ver a curva de uma maçã do rosto proeminente; o pescoço era comprido, e o cabelo estava escondido por um boné. Um passo e ela desapareceu de novo, mas foi o suficiente. Ela era real. Tinha estado lá — na ala da coleção africana, para ser preciso. Então eles conferiram toda aquela área, cada milímetro, e descobriram que de fato algo estava faltando.

E não era só o Museu Field. Agora que sabiam o que procurar, outros museus de história natural foram conferir seus próprios acervos, e muitos descobriram perdas similares, não detectadas anteriormente. A garota tinha sido cuidadosa. Nenhum dos saques era fácil de se notar; era preciso saber onde procurar.

Ela havia roubado pelo menos uma dúzia de museus em três continentes. Impossível ou não, a garota não havia deixado sequer uma impressão digital nem disparado um único alarme. Quanto ao que ela roubara... o como foi rapidamente substituído pelo insondável porquê.

Que tipo de propósito poderia ter aquilo?

De Chicago a Nova York, Londres a Pequim, dos dioramas de vida selvagem dos museus, das bocas paralisadas de leões e hienas, das mandíbulas de dragão-de-komodo e pítons-reais e lobos-brancos empalhados, a garota, o fantasma... ela estava roubando dentes.


12

ESTOU FELIZ

De: Karou <karouazul@garota-para-la-e-para-ca.com>

Assunto: Não tô morta ainda

Para: Zuzana <fada_raivosa@punhosminusculos.net>

Não tô morta ainda. (“Eu não quero ir na carroça!”)

Onde estou e o que ando fazendo?

Nem queira saber.

Esquisitinha, você diz?

Você nem faz ideia.

Sou sacerdotisa de um castelo de areia

em uma terra de poeira e luz das estrelas.

Tente não ficar preocupada.

Sinto tanto a sua falta que nem sei.

Um beijo para Mik.

(P.S.: “Estou feliz... Estou feliz...”)


13

ASSIMETRIA

Luz através dos cílios.

Karou apenas finge dormir. Com a ponta dos dedos, Akiva contorna as pálpebras dela, descendo suavemente pela curva de sua face. O calor que ela sente denuncia o olhar dele. Estar sob o olhar de Akiva é como estar ao sol.

— Sei que você está acordada — murmura ele em seu ouvido. — Acha que não consigo perceber?

Ela continua de olhos fechados, mas sorri, entregando-se.

— Shh, estou no meio de um sonho.

— Não é um sonho. É tudo real.

— Como sabe? Você nem está nele.

Ela está de bom humor, repleta de felicidade, de certeza.

— Estou em todos os seus sonhos — diz ele. — É onde eu vivo agora.

Ela para de sorrir. Por um instante não consegue lembrar quem é, ou quando. Karou? Madrigal?

— Abra os olhos — sussurra Akiva. A ponta de seus dedos volta a tocar-lhe as pálpebras. — Quero mostrar uma coisa.

De repente Karou se lembra, e sabe o que ele quer que ela veja.

— Não!

Ela tenta se afastar, mas ele a segura. Tenta forçá-la a abrir os olhos. Seus dedos pressionam, forçam, mas sua voz não perde a ternura.

— Olhe — insiste ele. Pressionando, forçando. — Olhe.

E ela olha.

* * *

Karou acordou sem fôlego. Era um daqueles sonhos que invadem o espaço entre um segundo e outro, provando que o sono tem sua própria física — em que o tempo se contrai e se expande, vidas inteiras se desenrolam em um piscar de olhos e cidades se reduzem a cinzas em um mero bater de cílios. Ali sentada, bem viva e acordada — ou pelo menos era o que pensava —, ela teve um sobressalto e deixou cair o molar de tigre que segurava. Levou as mãos correndo aos olhos. Ainda podia sentir a pressão dos dedos de Akiva.

Um sonho, apenas um sonho. Droga. Como isso tinha acontecido? Sonhos furtivos como aves de rapina, espreitando, só esperando que ela adormecesse. Ela baixou as mãos, tentando acalmar as batidas violentas do coração. Não havia mais nada a temer. Ela já vira o pior.

Era fácil mandar o medo embora. Já a raiva... Ser tomada por aquela sensação de certeza, depois de tudo que acontecera... Era uma mentira deslavada. Não havia nada certo em relação a Akiva. Aquele sentimento viera de uma outra vida, em que ela fora Madrigal dos Kirin, em que amara um anjo e morrera por isso. Mas ela não era mais Madrigal, não mais quimera. Ela era Karou. Humana.

De certa forma.

E não tinha tempo para sonhos.

Na mesa diante dela, opaco sob a luz das velas, havia um colar. Era formado por dentes alternados de humanos e veados, contas de cornalina, limalhas de ferro octogonais, ossos de morcego compridos e tubulares e, o que o deixava assimétrico, um único molar de tigre; seu par tinha escorregado para debaixo da mesa ao cair da mão dela.

Assimetria, quando se tratava de colares espectrais, não era uma boa coisa. Cada elemento — dente, conta e osso — era crucial para o corpo resultante, e a menor falha podia causar um defeito físico grave.

Karou empurrou a cadeira para trás e se ajoelhou para tatear pela escuridão embaixo da escrivaninha. Nas fendas do chão de terra fria, seus dedos encontraram fezes de rato, pedaços de barbante e uma coisa úmida que ela esperava ser apenas uma uva que caíra e apodrecera — Vamos deixar que isso permaneça um mistério, pensou Karou, deixando aquilo de lado —, mas nada de dente.

Cadê você, dente?

Afinal, ela não tinha dentes reservas. Conseguira aquele par em Praga, alguns dias antes. Sinto muito pela perna que falta, Amzallag, ela se imaginou dizendo. Perdi um dente.

O pensamento a fez rir, um som exausto e descontrolado. Ela podia até imaginar o que iria acontecer. Bem, Amzallag provavelmente não reclamaria. O soldado quimera sem senso de humor já tinha ressuscitado em tantos corpos que talvez levasse na esportiva e aprendesse a se virar sem a perna. Mas nem todos os soldados encaravam tão bem suas limitações no ofício. Na semana anterior, quando fizera as asas de grifo de Minas pequenas demais para seu peso, ele não fora indulgente.

— Brimstone nunca teria cometido um erro crasso com esse — explodira ele.

Jura?, Karou quisera replicar, com toda a seriedade e maturidade que podia reunir. Dã.

Aquela não era uma ciência exata, para começo de conversa, e proporção asa-peso... bem. Se Karou soubesse o que seria quando crescesse, talvez tivesse prestado mais atenção em certas aulas na escola. Ela era uma artista, não uma engenheira.

Sou uma ressurreicionista.

O pensamento lhe ocorreu de repente, óbvio e estranho como sempre.

Ela se enfiou ainda mais debaixo da mesa. O dente não podia ter simplesmente desaparecido. Então, através de uma rachadura na pedra, sentiu uma brisa nos nós dos dedos. Havia uma abertura. O dente devia ter caído.

Ela se endireitou. Sentiu uma imobilidade gélida atravessar o corpo. Sabia o que teria que fazer agora. Teria que descer e pedir ao ocupante da câmara debaixo para entrar e procurar o dente. Uma extrema relutância a prendia ao chão. Tudo menos isso.

Tudo menos ele.

Será que ele estaria lá agora? Achava que sim; às vezes ela achava que podia sentir sua presença irradiando pelo chão. Devia estar dormindo — afinal, era madrugada.

De jeito nenhum ela bateria lá no meio da noite. O colar podia esperar até o dia seguinte.

Pelo menos esse era o plano.

Mas então ela ouviu: uma batida na porta. Soube logo quem era. Ele não tinha o menor escrúpulo em procurar por ela àquela hora. Era uma batida suave, o que a perturbou mais do que tudo — parecia íntima, secreta. Ela não queria ter nenhum segredo com ele.

— Karou? — chamou ele, delicadamente.

O corpo dela se retesou. Sabia melhor do que ninguém que aquela delicadeza não passava de um ardil. Não ia atender. A porta estava trancada. Ele que pensasse que ela estava dormindo.

— Estou com o seu dente — explicou ele. — Acabou de cair na minha cabeça.

Mas que droga. Ela não podia fingir que estava dormindo se tinha acabado de deixar cair um dente na cabeça dele. E também não queria que ele pensasse que estava fugindo dele. Droga, por que ele ainda a afetava daquele jeito? De cabeça erguida, com um ar sério e a trança balançando em um arco azul às suas costas, Karou foi até a entrada, ergueu a antiga barra transversal — que antes de mais nada era uma proteção contra ele — e abriu a porta. Estendeu a mão para receber o dente de volta. Tudo o que ele tinha que fazer era deixá-lo na palma da mão dela e ir embora, mas ela sabia — é claro que sabia — que não seria tão simples assim.

Com o Lobo Branco, nunca era.


14

AQUELA DEVASTAÇÃO DOS ANJOS

O Lobo Branco.

O primogênito do Comandante, herói das tribos unidas e general das forças quiméricas. Ou do que restara delas.

Thiago.

Ele estava parado no corredor, tranquilo e elegante em uma de suas impecáveis túnicas brancas, o cabelo branco e sedoso penteado para trás, em um rabo de cavalo frouxo amarrado por uma tira de couro. Os fios brancos destoavam de sua idade — sua idade física, pelo menos. Sua alma tinha centenas de anos e havia passado por uma guerra sem fim e incontáveis mortes, muitas vezes dele mesmo. Mas o corpo estava no auge do vigor, bonito e poderoso, tendo usufruído ao máximo da maestria de Brimstone.

Sua aparência era altamente humana e fora elaborada segundo suas próprias especificações: humano à primeira vista, mas fera nos detalhes. Um sorriso humano lascivo revelava caninos afiados, as mãos fortes terminavam em garras escuras, e suas pernas se tornavam, a partir do meio da coxa, lupinas. Ele era muito bonito — de alguma forma ao mesmo tempo rude e refinado, com um quê de selvagem que fazia Karou sentir como se estivesse correndo um grande perigo sempre que ele estava por perto.

O que não era de se estranhar, considerando-se a história dos dois.

Ele agora tinha cicatrizes que não havia em seu corpo na época em que ela era Madrigal. Um corte já cicatrizado dividia uma de suas sobrancelhas e se espalhava como uma teia de aranha em direção ao couro cabeludo; outra passava pelo ângulo da mandíbula e corria em um traço irregular pelo pescoço, atraindo o olhar para o músculo trapézio até a forma suave de seus ombros fortes e largos.

Ele não tinha saído ileso das brutais últimas batalhas da guerra, mas havia sobrevivido e ficado ainda mais bonito — se é que isso era possível — com aquelas cicatrizes, que o faziam parecer mais real. Parado à porta de Karou naquele instante, ele parecia muito real, muito próximo, muito elegante e muito ali. O Lobo Branco sempre fora muito grandioso.

— Sem sono? — perguntou ele.

O dente estava preso em sua mão fechada; ele não o estendeu para ela.

— Sono. Que fofo. Isso ainda existe?

— Existe — disse ele. — Para quem tem sorte. — Havia pena em seu olhar (pena!) quando ele acrescentou, cordialmente: — Também acontece comigo, sabia?

Karou não fazia ideia de sobre o que ele estava falando, mas ficou arrepiada com a delicadeza dele.

— Pesadelos — explicou Thiago.

Ah. Isso.

— Eu não tenho pesadelos — mentiu ela.

Mas Thiago não se deixou enganar.

— Você precisa se cuidar, Karou. Ou... — ele olhou para dentro do quarto, para além dela — deixar que outros cuidem de você.

Ela tentou ocupar todo o vão da porta. Não queria que nenhuma brecha fosse interpretada como um convite para entrar.

— Está tudo certo — disse ela. — Eu estou bem.

Ele avançou assim mesmo, obrigando-a a recuar se ainda quisesse manter o mínimo de distância. Mas ela não arredou pé. Ele estava barbeado e exalava um aroma suave e agradável de almíscar. Como ele conseguia estar sempre impecável naquele lugar sujo, Karou não sabia.

Até parece. Claro que ela sabia. Não havia quimera que não se dispusesse de bom grado a atender às necessidades do Lobo Branco. Karou até suspeitava de que sua criada, Ten, escovasse o cabelo dele. Thiago raramente precisava expressar seus desejos; eram todos adivinhados e satisfeitos de prontidão.

Naquele momento seu desejo era entrar no quarto dela. Qualquer outra teria cedido à primeira insinuação de aproximação. Mas não Karou, embora seu coração batesse como o de um animalzinho aflito quando estava perto dele.

Thiago não a pressionou. Apenas a observou por um momento. Karou tinha noção da própria aparência: estava pálida, com ar soturno, a magreza a definhá-la. Suas clavículas se projetavam, sua trança estava uma bagunça e seus olhos negros, embotados de cansaço. Thiago a fitava incisivamente.

— Bem? — repetiu ele, cético. — Mesmo aqui?

Ele passou os dedos pelo bíceps dela, e Karou se afastou, desejando que sua blusa tivesse mangas. Não gostava que ninguém visse suas contusões, muito menos ele; isso a fazia se sentir vulnerável.

— Eu estou bem — disse ela.

— Você pediria ajuda se precisasse, não é mesmo? No mínimo, você precisava de um assistente.

— Eu não preciso de um...

— Não é fraqueza alguma pedir ajuda. — Ele fez uma pausa, e então acrescentou: — Até Brimstone tinha quem o ajudasse.

Foi como se ele tivesse arrancado o coração de seu peito.

Brimstone. Sim, ele tivera ajuda, inclusive, ostensivamente, a dela. E ainda assim, onde estava ela enquanto Brimstone era torturado, massacrado, queimado? O que ela estava fazendo quando os anjos assassinos montavam guarda sobre os restos carbonizados dele, para ter certeza de sua evanescência?

Issa, Yasri, Twiga, cada alma em Loramendi. Onde ela estava enquanto suas almas eram carregadas para longe como pipas cortadas ao vento e mergulhavam na inexistência?

— Eles estão mortos, Karou. É tarde demais. Estão todos mortos.

Essas mesmas palavras tinham destruído a felicidade dela um mês antes, em Marrakech. Apenas minutos antes, Karou e Akiva tinham partido o osso da sorte, e a vida dela como Madrigal — todas as lembranças que Brimstone tinha removido para sua segurança — voltara subitamente. Ela agora sentia o calor do bloco em que apoiara a cabeça enquanto o carrasco erguia a lâmina e ouvia o grito de Akiva — um grito arrancado do fundo da alma — como se o eco daquele som também tivesse ficado preso no osso da sorte.

Dezoito anos antes ela havia morrido. Brimstone a ressuscitara em segredo, e ela vivera aquela vida humana sem saber da que tivera antes. Mas em Marrakech tudo lhe voltara à mente, e ela havia... acordado — se somado a sua vida já em curso —, vendo-se então com o osso partido na mão e Akiva miraculosamente diante dela.

Isso era o mais surpreendente: que eles tivessem se encontrado, mesmo atravessando diferentes mundos e existências. Por um puro e radiante momento, Karou conhecera a felicidade.

Mas Akiva logo encerrara o momento com aquelas palavras, ditas com uma profunda vergonha e uma dor arrebatadora:

— Estão todos mortos.

Ela não acreditara. Simplesmente não podia aceitar aquela possibilidade.

Então seguira o anjo aleijado Razgut dos céus do seu mundo para os de Eretz, agarrada à esperança de que não fosse — não podia ser — verdade aquilo que Akiva lhe contara. Mas então ela chegara à cidade, e... não havia cidade. Ainda não conseguia compreender toda aquela devastação. Já tinha morado ali antes. Milhões de quimeras também. E agora? Razgut, a criatura desprezível, rira ao ver o cenário; era sua última lembrança dele. A partir daquele momento, ela entrara em um estado tal de torpor e atordoamento que não conseguia lembrar como ou onde tinham se separado.

Tudo em que ela pensara naquele instante era a ruína de Loramendi. Na paisagem escurecida pairava algo que Karou nunca sentira antes: um vazio tão profundo que a própria atmosfera parecia fina, raspada, como o couro de um animal esticado e trabalhado incessantemente até ficar limpo.

O que ela sentia era a completa ausência de almas.

— É tarde demais.

Por quanto tempo ela vagara em meio às ruínas, não sabia dizer. Estava em choque. As lembranças estavam se organizando em sua mente. Sua vida como Madrigal se entrelaçava a sua existência como Karou, uma vida repleta de morte, perda, e, no âmago de seu pesar e atordoamento, ela sabia que havia desencadeado aquilo tudo. Ela amara o inimigo e o salvara. Ela o libertara.

E ele tinha feito aquilo.

Aquela cruel e amarga devastação dos anjos.

Quando uma voz rompeu o silêncio, ela se virou, puxando as lâminas em formato de lua crescente com a rapidez de quem queria fazer anjos sangrarem. Se tivesse sido Akiva lá nas ruínas, ela talvez não tivesse poupado sua vida de novo. Mas não era ele, nem outro serafim.

Era Thiago.

— Você — dissera ele, com certo espanto. — É você mesmo?

Karou nem tinha conseguido dizer nada. O Lobo Branco a olhou da cabeça aos pés, e ela se encolheu em resposta. As lembranças queimavam em sua mente. A repulsa se agitou como cobras na boca do estômago, e, em meio ao entorpecimento do choque, Karou encheu-se de raiva — do universo, por aquela nova crueldade. Dele, por ter sido o único a sobreviver.

De todas as almas que poderiam ter sobrevivido ao massacre, tinha que ser ele: aquele que a matara.


15

FERIDO

Ela devia ter percebido naquela noite, muito tempo antes, em outra vida e em outro corpo, que estava sendo seguida, mas a alegria havia vencido a cautela.

Ela era Madrigal dos Kirin. Estava apaixonada. Vivia um sonho grandioso e ousado. Durante um mês de noites secretas, ela cruzara a escuridão até o templo de Ellai, onde Akiva a esperava, inquieto com aquele amor recente e ardendo de ansiedade, assim como ela, para recriarem seu mundo. Ela sempre saboreava o momento da chegada — a primeira visão do rosto de Akiva olhando para cima enquanto ela passava pelas copas das árvores de réquiem, como ele se iluminava ao vê-la, com uma alegria igual à dela. Era a imagem que guardaria consigo nos dias que se seguiram — seu rosto erguido, tão perfeito e luminoso, cheio de encanto e prazer. Ele estendeu a mão para puxá-la para baixo. Acariciou de leve suas pernas enquanto ela descia, segurou-a pela cintura e a pegou ainda no ar, de forma que seus lábios se encontraram antes mesmo de os cascos dela tocarem o chão.

Ela riu com os lábios na boca de Akiva, as asas ainda abertas como grandes leques escuros, e ele deitou, reclinando-se ali mesmo no musgo, as pernas dela apertadas em volta do corpo dele. Zonzos e ávidos, fizeram amor no meio do bosque, sob os olhares brilhantes das evangelinas, cuja sinfonia noturna era a música deles.

Sob os olhares daqueles que a tinham seguido desde a cidade.

Mais tarde, pensar que eles tinham assistido a tudo a enojava. Tinham esperado e observado, sem se contentar com a traição de meros beijos, querendo testemunhar crimes ainda mais ultrajantes — ver tudo, e ouvir sobre o que conversariam depois.

E com que tinham sido recompensados?

Os amantes entraram languidamente no pequeno templo, onde beberam da fonte sagrada e comeram os pães e frutas que Madrigal levara. Praticaram magia. Akiva lhe ensinava seu encanto de invisibilidade. Ela até conseguiu por um instante, mas a magia exigia um dízimo de dor maior do que o que Madrigal tinha para oferecer em troca da continuidade do efeito. No templo, ela aparecia e desaparecia: em um instante estava ali; no outro, não mais.

— O que devo fazer para sentir dor? — indagou ela.

— Nada. Nada de dor para você. Só prazer.

Ele roçou o nariz no dela. Madrigal o empurrou, sorrindo.

— Prazer não vai me ajudar a ficar invisível por mais tempo.

Eles não podiam continuar a se esconder para sempre, precisavam ir e vir das terras dos dois, entre quimeras e serafins, invisíveis quando necessário. Estavam pensando em quem recrutar para sua causa; prontos para começar. Seria um momento crítico, revelar seu segredo para os primeiros colegas escolhidos, e conversavam sobre cada um deles.

Também falavam sobre quem matar.

— O Lobo — disse Akiva. — Enquanto ele estiver vivo, não haverá esperança para a paz.

Madrigal ficou em silêncio. Thiago, morto? Ela sabia que Akiva tinha razão. Thiago nunca aceitaria menos do que a aniquilação de seus inimigos, e sem dúvida ela não nutria nenhum tipo de amor por ele, mas matá-lo? Ela brincou com o osso da sorte pendurado no cordão em seu pescoço, em conflito. Ele era a alma do exército e o herói que unia seu povo. Os quimeras o seguiriam para qualquer lugar.

— Isso é um problema — falou para Akiva.

— Você sabe que isso é necessário tanto quanto eu. Joram também.

O imperador era ainda mais sanguinário que Thiago, se é que isso era possível. E também era pai de Akiva.

— Você... Você acha que seria capaz de fazer isso? — perguntou Madrigal.

— Matá-lo? Para o que mais fui criado além de matar? — Seu tom era amargo. — Eu sou o monstro que ele criou.

— Você não é um monstro.

Ela o puxou para si. Acariciou sua testa, que estava sempre quente como fogo, e beijou as marcas de tinta nos nós dos dedos dele como se pudesse perdoá-lo pelas mortes que representavam. Então deixaram de falar sobre morte, desejando em silêncio que pudessem ter o mundo que queriam sem precisar matar.

Ou, como acabaria acontecendo, sem precisar morrer.

Do lado de fora, Thiago chegou à conclusão de que já ouvira o suficiente e ateou fogo ao templo.

Mesmo antes de sentirem cheiro de fumaça ou verem o fogo, Madrigal e Akiva foram aturdidos pelos gritos das evangelinas. Eles nem mesmo sabiam que as criaturas podiam gritar. Afastaram-se de um pulo, procurando instintivamente por armas que não estavam lá. Tinham sido deixadas no musgo lá fora, junto com as roupas largadas.

— Tão descuidados — disse Thiago assim que eles saíram às pressas, quando fugiram do templo em chamas e deram de cara com uma companhia de soldados a sua espera.

O Lobo Branco, à frente dos outros, tinha, uma em cada mão, as facas de lua crescente de Madrigal. Balançava-as para a frente e para trás, enganchadas na pontas dos dedos. Atrás dele, um dos integrantes de seu séquito segurava as espadas de Akiva; ele bateu as lâminas em um gesto de provocação.

Um segundo se seguiu ao som do retinir, um único segundo de silêncio, e então irrompeu o caos.

Akiva ergueu os braços, evocando magia. O que ele pretendia fazer, Madrigal nunca chegou a saber, porque Thiago já se adiantara, e quatro soldados-espectros tinham levantado as mãos, apontando os hamsás para o anjo. Uma náusea violenta o atingiu. Akiva cambaleou, caiu de joelhos, e nisso partiram para cima dele com as espadas, os punhos cobertos por luvas grossas e as botas pesadas, além de um rabo reptiliano envolto em correntes que o açoitou.

Madrigal tentou correr até ele, mas foi detida por Thiago, com um soco na barriga tão forte que a arrancou do chão. Por um instante, sem fôlego e sem peso, ela perdeu todo senso de direção, e então atingiu o chão. Seu corpo inteiro estremeceu. Ela sentiu o sangue subindo pela garganta, invadindo o nariz e a boca.

Engasgada, ofegante, enjoada. Dor. Dor e sangue. Ela tossiu em busca de ar. Nua, dobrou-se de dor. No alto: fumaça, árvores pegando fogo e então Thiago. Ele a fuzilava com o olhar, sua boca deformada em um rosnado.

— Criatura imunda — rugiu ele, em um tom de profunda repulsa. — Traidora. — E por fim, a mais cruel de todas: — Amante de anjo.

Ela viu assassinato em seu olhar, e achou que fosse morrer bem ali, no musgo. Lá no fundo, Thiago estava ferido. Às vezes o chamavam de Selvagem, por suas matanças violentas em batalhas; sua marca registrada era dilacerar gargantas com os dentes. Era muito perigoso deixá-lo com raiva. Madrigal se encolheu, esperando por um golpe que não veio.

Thiago deu as costas.

Talvez ele quisesse que ela assistisse. E talvez fosse apenas instinto — um ímpeto de macho alfa, de destruir seu rival. De destruir Akiva.

Havia tanto sangue.

A lembrança era sombria, carregada de fumaça sufocante e dos gritos dos pássaros-serpentes queimando vivos, e, embora não fosse uma lembrança própria de Karou, mas sim de Madrigal, ainda assim era dela, surgindo de seu eu mais profundo. Era totalmente ela, e Karou se lembrava de tudo: Akiva no chão, seu sangue escorrendo até a fonte sagrada, e Thiago, de olhos arregalados mas assustadoramente contido e em completo silêncio, golpeando o anjo vezes sem fim, os respingos de sangue fazendo brilhar o rosto e o cabelo branco.

Ele teria matado Akiva naquela noite mesmo, mas um de seus seguidores mais sensatos interveio e o levou dali, adiando o fim. Por dias e dias Madrigal ouviu os terríveis gritos de seu amado ecoando pela prisão de Loramendi, onde ele era torturado e ela aguardava a execução.

Foi esse o Thiago que Karou viu — assassino, torturador, selvagem — quando ele apareceu diante dela uma vida inteira depois, nas ruínas de Loramendi.

Mas... tudo parecia diferente, não? Afinal, como, considerando tudo o que tinha acontecido, ela podia condenar o que ele fizera?

Akiva deveria ter morrido aquele dia, assim como ela. Eles tinham, sim, cometido traição; o amor dos dois, os planos que nutriam e, o pior de tudo, a tola compaixão dela, ao salvar a vida do anjo não só uma mas duas vezes, para que ele pudesse viver e se tornar o que se tornara. O Príncipe dos Bastardos, como o chamavam, entre outros nomes. Thiago fizera questão de que ela soubesse de todos — Senhor dos Ilegítimos, Ruína das Feras, Anjo da Aniquilação. Por trás de cada nome, a acusação velada: Culpa sua, culpa sua.

Se não fosse por ela, os quimeras ainda estariam vivos. Loramendi ainda existiria. Brimstone continuaria a criar cordões de dentes, e Issa, a doce Issa, continuaria preocupada com a saúde dele e enroscando serpentes nos pescoços dos humanos que entravam no vestíbulo da loja. As crianças da cidade ainda correriam livremente pela Serpentina em todas as suas variadas formas, e cresceriam para ser soldados, como ela, e passariam de corpo para corpo enquanto a guerra seguiria em frente. Sem fim.

Para sempre.

Quando parava para pensar, Karou mal podia acreditar na própria ingenuidade, mal podia acreditar que havia acreditado que o mundo poderia ser diferente, e que ela poderia fazer isso.


16

OS HERDEIROS

Parada na entrada do cômodo, Karou estendeu a mão.

— Thiago, me dê logo o dente.

Ele se aproximou; seu peito agora encostava de leve na ponta dos dedos de Karou, e ela teve que afastar um pouco as mãos. Sua pulsação se descompassou. Ele estava tão perto... Ela realmente queria se afastar, mas, se o fizesse, abriria espaço para ele entrar, e não podia deixar isso acontecer. Desde que se aliara a ele, tentava sempre evitar ficar sozinha em sua presença. Sua proximidade a fazia se sentir menor, tão mais fraca em comparação a ele e tão... humana.

Com um floreio de mágico, ele abriu a mão, revelando o molar como se a desafiasse a pegá-lo. O que ele faria? Agarraria a mão dela?

Ela hesitou, desconfiada.

— É para Amzallag? — perguntou Thiago.

Karou assentiu. Ele lhe pedira um corpo para Amzallag, e era o que teria. Olha só como eu sou uma ajudantezinha obediente, pensou ela.

— Que bom. Ele está comigo.

Ele ergueu a outra mão, mostrando o turíbulo.

Karou sentiu um frio na barriga. Então já estava feito. Ela não sabia por que aquela parte do processo a perturbava tanto; talvez pela imagem de duas criaturas se lançando no penhasco rochoso e apenas uma voltando. Ela não vira o poço, e esperava nunca ver, mas às vezes sentia seu cheiro: um bafo pesado de carne em decomposição que envolvia na realidade aquilo que geralmente parecia distante. Turíbulos eram limpos e simples; os novos corpos que ela fazia eram tão imaculados quanto as roupas de Thiago. Eram os outros corpos que a incomodavam; os que eram descartados.

Mas nisso, como em praticamente tudo o mais, ela estava sozinha. Thiago era inabalável. Ele balançava o turíbulo de Amzallag como se não tivesse acabado de matar um companheiro e jogá-lo em um poço de corpos em decomposição. Afinal, o tal companheiro tinha pedido por aquilo; tudo pela causa, e os corpos antigos simplesmente não serviam ao novo propósito, então Karou estava substituindo todos, um por um.

O Lobo a encarou com seu pálido olhar penetrante, com tanta intensidade que ela teve vontade de dar um passo para trás.

— Começou, Karou. Aquilo em que temos nos empenhado tanto.

Ela assentiu, sentindo um calafrio percorrendo a espinha. Rebelião. Vingança.

— Alguma notícia? — perguntou.

— Não, mas ainda está cedo.

Vários dias antes, Thiago tinha enviado cinco patrulhas de seis soldados cada. Com quais missões exatamente, Karou não sabia. Ela perguntara, mas simplesmente não tinha discutido ao ouvir a resposta de Thiago.

— Não precisa se preocupar com isso, Karou. Concentre suas forças nas ressurreições.

Não fora isso o que Brimstone fizera? Ele deixara a guerra para o Comandante, e ela estava deixando a rebelião para o Lobo.

— Admito que tenho estado ansioso. — Thiago jogou o dente para cima e depois o pegou no ar. — Foi bom ter um motivo para aparecer aqui. Por que não me deixa ajudá-la, Karou?

— Não preciso de ajuda.

— Seria de grande ajuda para mim ter alguma coisa para fazer.

Com isso, ele deu mais um passo à frente, obrigando-a a chegar para o lado ou arriscar um abraço, e então por fim passou. Estava dentro do quarto dela, que parecia diminuir ao seu redor.

Era um quarto bonito, ou tinha sido algum dia. Mosaicos brilhavam no teto alto, e tapeçarias de seda desbotadas cobriam as paredes. Duas janelas com venezianas entalhadas estavam abertas para a noite lá fora, e os peitoris de quase um metro de profundidade revelavam como a espessura das paredes era comparável à de fortalezas. Não era muito grande; havia outros quartos que seriam mais adequados ao trabalho de Karou, mas ela pedira aquele por conta da barra na porta e da sensação de segurança que lhe proporcionava — mas agora que Thiago estava do lado errado da porta, não seria lá muito útil aquela barra de segurança.

Idiota, pensou ela. Ainda parada à porta aberta, ela disse:

— Prefiro trabalhar sozinha.

Ele foi até a escrivaninha, colocou o molar de tigre em cima dela com um clique e então olhou para ela.

— Mas você não está sozinha. Estamos nisso juntos. — A intensidade em sua voz, sua aparente sinceridade, era penetrante. — Somos os herdeiros, Karou. O que meu pai e Brimstone foram para nosso povo, você e eu somos para aqueles que restaram.

E que herança pesada era aquela: nada menos do que o destino das raças quimeras e todas as suas esperanças de sobrevivência.

Os quimeras estavam a um passo da extinção. O bando de soldados de Thiago era tudo o que restara do exército quimérico, e só com a colaboração de Karou eles podiam ter alguma esperança de criar uma resistência significativa.

Quando ela se juntara a eles, eram pouco mais de sessenta: um punhado de feridos sobreviventes da defesa do cabo Armasin. Tinham escapado pelos túneis das minas, junto com outros que encontraram enquanto atravessavam a terra devastada. Eram em sua maioria soldados, com alguns civis de grande valia, como o ferreiro Aegir e duas fazendeiras para cuidar da comida. E, embora sessenta fosse um número insignificante para uma força rebelde, sua esperança ultrapassava e muito essa limitação.

Eles tinham turíbulos. Tinham almas.

Karou apostava no seguinte: várias centenas de soldados mortos esperavam nos receptáculos de prata. Cabia a ela trazê-los de volta à luta.

— Estamos nisso juntos — dissera Thiago.

Ela lhe lançou um olhar duro, esperando a náusea de sempre, mas não sentiu nada dessa vez. Talvez estivesse muito cansada, só isso.

Ou... talvez o Destino estendesse sua vida diante de você como um vestido sobre a cama: você podia escolher vesti-lo ou então sair nua.

Do outro lado do quarto, ele encontrara a maleta de ferramentas dela. Era um belo objeto, em couro cor de açafrão trabalhado. Parecia uma maleta de maquiagem.

Mas não era.

Ele jogou todo o conteúdo sobre a mesa. Havia alguns objetos comuns — alfinetes, uma pequena lâmina, um martelo e um alicate, é claro —, mas a maior parte eram mesmo tornos. Não eram vistosos: apenas morsas simples de bronze, como as que Brimstone usara. Era impressionante a dor que se podia infligir com objetos tão simples, desde que você soubesse o que estava fazendo. Karou mandara fazê-los a mão com um ferreiro de uma medina de Marrakech. O sujeito não fizera perguntas, mas adivinhara para que serviriam e dera um risinho que a fizera se sentir suja. Como se ela gostasse daquilo.

— Vou pagar o dízimo — disse o Lobo.

Karou sentiu, naquele curioso vazio de náusea, o alívio invadi-la.

— Sério?

— É claro. Já teria feito isso antes, se você tivesse me deixado entrar. Acha que gosto de saber que está trancada aqui, sozinha e sofrendo?

Acho, pensou ela, mas ao mesmo tempo sentiu uma pontada de dúvida em relação a toda a sua desconfiança, a todas as noites com a porta trancada pela barra. Thiago oferecia sua dor à magia dela, evitando seu sofrimento. Como poderia recusar? Ele já estava tirando sua impecável túnica branca.

— Venha. — Ele sorriu, e Karou viu nele uma fadiga que refletia a sua própria. — Vamos acabar logo com isso.

Karou cedeu. Fechou a porta com o pé e foi até ele.


17

O DÍZIMO DE DOR

Há intimidade na dor. Qualquer um que já confortou alguém que estivesse sofrendo sabe disso: a ternura impotente de quem consola, o abraço, os gemidos e o lento embalar, quando dois se tornam um contra o mesmo inimigo, a dor.

Karou não confortou Thiago. Não o tocou mais do que o necessário enquanto a dor invadia seu corpo. Mas ficaram sozinhos à luz de velas, ele seminu e subjugado, seu belo rosto sério e resignado, e embora de fato Karou tenha sentido o que esperava — um prazer cruel em lhe fazer passar por uma pequena parte da angústia que ele um dia lhe causara —, também sentiu algo mais.

Gratidão. Havia um novo corpo deitado no chão atrás deles, recém-conjurado a partir de dentes e dor, e, pelo menos daquela vez, a dor não tinha sido dela.

— Obrigada — falou, de má vontade.

— É um prazer — replicou Thiago.

— Espero que não. Seria doentio.

Ele deu uma risada cansada.

— O prazer não está na dor, mas em poupar você.

— Quanta nobreza. — Karou estava retirando os tornos e sentia o braço dele pesado em sua mão, os músculos tão fortes que ela tivera dificuldade em prender as braçadeiras, e estava sendo difícil soltá-las também. Ela se encolheu ao torcer seus tríceps de um jeito que não deveria, deixando uma marca feia. Ele recuou, e um pedido de desculpa escapou automaticamente dela. — Sinto muito. — Queria engolir as palavras de volta. Ele fez você ser decapitada, teve que lembrar a si mesma. — Na verdade, não sinto, não. Você mereceu.

— Imagino que sim — concordou ele, esfregando o braço. E, com um leve sorriso, acrescentou: — Agora estamos quites.

Uma breve risada, que lembrava mais um grito violento, escapou dela. Uma risada quase (apenas quase) sem alegria.

— Vai sonhando.

— Eu sonho, Karou. Karou.

A risada morreu rapidamente; ele dissera seu nome vezes demais, como se o reivindicasse. Ela começou a se afastar, carregando vários tornos, mas ele a deteve ao dizer:

— Eu pensava que, se pagasse os dízimos em seu lugar, poderia... reparar... o que fiz a você.

Karou o olhou fixamente. O Lobo, reparar?

Ele abaixou a cabeça.

— Eu sei. Não há como reparar o que fiz.

Posso pensar em uma maneira, ponderou Karou.

— Fico... Fico surpresa por você achar que precisa reparar alguma coisa.

— Bem... — Ele falava com suavidade. — Não tudo. Você não me deixou escolha, Karou, você sabe disso, mas eu podia ter feito as coisas de forma diferente, e disso eu sei. A evanescência... foi inaceitável. — Um olhar suplicante na direção dela. — Eu não respondia por mim, Karou. Estava apaixonado por você. E vê-la com... ele, daquele jeito... Você me deixou meio maluco.

Karou ficou vermelha, sentindo-se nua de novo. Pelo menos, pensou ela, lutando para manter a compostura, aquele corpo humano nunca tinha sido exposto aos olhos dele, ao contrário do que acontecera com seu corpo natural. Ainda assim, pelo jeito como ele a olhava, Karou deduziu que ele não se esquecera de nada que acontecera naquela noite no bosque.

Ela pôs-se a guardar os tornos na maleta, meio sem jeito.

— Tem uma coisa que eu sempre quis lhe dizer, mas achava que você não estava preparada para ouvir.

O tom da voz dele a alarmou. Soava... confessional.

— Eu realmente preciso terminar... — começou ela, mas o Lobo a interrompeu.

— É sobre Brimstone.

O efeito da menção a Brimstone foi o mesmo de sempre: pareciam mãos apertando seu pescoço; um ataque sufocante de pesar.

— Ele e eu tínhamos nossas diferenças — admitiu Thiago. — Isso não é nenhum segredo. Mas quando descobri que ele havia salvado você, que sua alma não estava perdida... Talvez você pense que fiquei furioso por ele ter me desafiado, mas nada podia estar mais longe da verdade. E agora... Acredite em mim quando digo que acordo todos os dias repleto de gratidão pela misericórdia de Brimstone. — Ele fez uma pausa. — Toda vez que olho para você, dou graças a ele.

Quem diria, agora ele resolveu que aprecia a misericórdia, pensou Karou.

— Bem, sorte sua esbarrar em outro ressurreicionista por aí.

— Não vou mentir. Quando a vi nas ruínas, quase caí de joelhos. Mas sorte é pouco para definir isso, Karou. Foi uma salvação. Eu estava rezando a Nitid, clamando por esperança, e quando abri os olhos e vi você lá... você... como uma linda alucinação. Achei que Nitid tinha me respondido fazendo chegar até mim a única pessoa que Brimstone treinara.

Karou não diria exatamente que Brimstone a treinara; dava a impressão de que ele a havia escolhido de propósito como sua sucessora, quando sabia que ele preferiria carregar o fardo sozinho até o fim dos tempos a ter que transmiti-lo a ela. Brimstone, Brimstone. Na maior parte do tempo ela aceitava — sabia que sim — que ele se fora, mas havia momentos em que era invadida de repente por uma certeza: de que a alma dele estava em estase, escondida, apenas esperando que ela a encontrasse.

Esses momentos eram pontos radiantes de esperança, mas logo passavam, sendo seguidos por uma culpa esmagadora: ao admitir para si mesma que só desejava ardentemente devolver seu fardo a Brimstone. Egoísta.

No fundo, ela se sentia feliz por Brimstone estar livre daquilo, descansando finalmente. Que outra pessoa carregasse aquele peso. Era sua vez — e quem o merecia mais do que ela? A feiura e o sofrimento, o desagradável fedor do poço trazido pelo vento, o isolamento e a fadiga, a dor. E, embora Brimstone não a tivesse exatamente treinado, ele lhe ensinara o suficiente para que ela conseguisse realizar a tarefa, ainda que com dificuldade. Ela estava ficando melhor, mais rápida — mais macilenta, mais esgotada —, e isso sem nenhuma ajuda de deuses, luas, nem de ninguém, muito obrigada. Karou disse a Thiago, com uma leve nota de rispidez na voz:

— Nitid não teve nada a ver com isso.

— Talvez não. Não importa. Só estou tentando agradecer.

Uma trêmula empatia cintilava nos seus olhos azuis gélidos. A intimidade daquele momento atingiu Karou agudamente — os dois sozinhos à luz bruxuleante, a pele desnuda dele —, e a náusea lhe voltou de súbito, forte e amarga como bile.

— De nada — respondeu ela, pegando a camisa de Thiago, pendurada no encosto da cadeira, e atirando-a para ele. — Dá para você se vestir?

Karou deu as costas de novo, tentando disfarçar a inquietação. O único som que se ouvia era o da corrente do turíbulo quando ela o pegou da mesa e o suspendeu em um gancho sobre o novo corpo de Amzallag.

O corpo estava deitado à sua frente, imenso e inerte. Monstruoso. Ela duvidava muito que Brimstone tivesse orgulho dela naquele momento, mas, como Thiago a persuadira a acreditar, aqueles eram tempos monstruosos, e os rebeldes precisavam maximizar o impacto de seu pequeno contingente.

Aquele pelo menos guardava alguma semelhança com o antigo Amzallag, sendo veado e tigre com torso de homem, mas era muito maior — as limalhas de ferro davam tamanho e peso ao corpo, e, apropriadamente, tinham sido retiradas das barras acima de Loramendi. Era imenso; nenhuma armadura caberia nele. Cada músculo se pronunciava, e a pele tinha um tom acinzentado — fruto do excesso de ferro. A cabeça era de tigre, com caninos tão compridos quanto facas de cozinha. Sem falar das asas.

Ah, as asas.

Era por causa das asas que os soldados vivos precisavam de novos corpos. Culpa de Karou. Tinha sido ideia dela vir... até ali. Ela olhou para fora, para a lua singular que a janela emoldurava. Será que ela era maluca? Burra? Talvez. Mas é que não dava para continuar se deslocando o tempo todo de um lado para outro de Eretz, escondendo-se em ruínas e túneis de minas e vasculhando os céus em busca de patrulhas de serafins. Ela teria enlouquecido, e o mais provável era que, se tivessem ficado, já teriam sido descobertos àquela altura. Ainda assim, Karou tinha que admitir que não havia pensado em todas as consequências.

O poço, principalmente.

Os soldados precisavam ir e vir pelo portal no céu. Precisavam de asas. Para chegarem até ali, aqueles que podiam voar haviam levado os que não podiam — indo e voltando diversas vezes, e os que eram grandes demais para serem carregados tinham sido mortos, suas almas depois colhidas e levadas. Karou nunca esqueceria aquele dia. Agora que estavam ali, os sem asas tinham sido relegados à função de guarda até que ela pudesse refazê-los, quando então poderiam se juntar às incursões a Eretz.

Era simples assim. Simples. Rá. Ela estremeceu só de olhar para aquela coisa assustadora ali no chão de seu quarto. O corpo anterior de Amzallag — o último de muitos que Brimstone fizera para ele — tinha sido jogado fora como uma roupa velha, para que Amzallag pudesse se tornar aquilo. Por um instante ela só pôde vê-lo como suas presas o veriam: o horror e a desesperança em saber que não havia como escapar; imaginou aquelas asas abertas, como se cobrissem toda a extensão do céu. Sentiu as mãos ficarem frias e úmidas. O que é que eu estou fazendo?

O que é que eu estou criando?

E... O que eu trouxe para o mundo humano?

Era como emergir de um sonho e vislumbrar a fria realidade por apenas uma fração de segundo antes que o sono a arrastasse de volta. O horror amainou. Ela estava dando armas a soldados, era o que estava fazendo. Se não, quem faria os serafins pagarem?

Quanto a tê-los trazido para o mundo humano, aquele lugar era remoto e esquecido; a chance de encontrarem alguém era quase nula. E, apesar de uma vozinha em sua mente insistir em sussurrar: Isso não é o suficiente, Karou, ela estava se acostumando a ignorá-la.

Respirou fundo. Agora só faltava guiar a alma de Amzallag para dentro de sua nova pele, bastando a fumaça para isso. Ela estendeu a mão para um incenso e se virou de volta para Thiago, que, felizmente, tinha vestido a camisa. Ele parecia muito cansado, com as pálpebras pesadas, mas conseguiu esboçar um sorriso.

— Tudo pronto? — perguntou ele.

Ela assentiu e acendeu o incenso.

— Boa menina.

Ela se irritou com as palavras e o tom carinhoso na qual foram ditas. Será que sou mesmo?, ponderou enquanto se ajoelhava para fazer renascer o morto.


18

RENASCIDOS

Ao chegar à aldeia silenciosa, a caravana de escravos não estranhou o céu repleto de aves de rapina. Esquisito teria sido não vê-las; naquele trabalho, aves carniceiras eram comuns. Com a diferença de que, em geral, os cadáveres eram de feras.

Não daquela vez.

Os mortos estavam pendurados no aqueduto: oito serafins com as asas abertas em leque. À distância, pareciam sorrir. De perto, porém, o horror chocaria até um traficante de escravos. Seus rostos...

— O que fez isso? — alguém conseguiu perguntar, embora a resposta estivesse bem diante deles. Uma mensagem tinha sido pintada em letras grandes, traçadas com sangue em uma pedra angular do aqueduto.

Das cinzas nós renascemos.

Em pânico, eles enviaram mensageiros para Astrae. Praticamente sem defesas, nem se deram ao trabalho de soltar os corpos dos soldados; simplesmente foram embora, às pressas, conduzindo seus escravos quimeras com chicotes. Uma grande mudança se operou nos cativos ao verem os mortos — um brilho, uma avidez entusiasmada e astuciosa. Os rabiscos feitos com sangue não eram a única mensagem; os sorrisos também.

Os cantos das bocas dos anjos mortos tinham sido cuidadosamente cortados, alargados em sorrisos forçados. Os traficantes sabiam muito bem o que aquilo significava, assim como os escravos, e portanto todos ficaram atentos — alguns por medo, outros em alegre expectativa.

A noite chegou e a caravana montou acampamento, guardas puseram-se em vigia. Pequenos sons começaram a atravessar a escuridão: passos apressados, um galho se partindo. Os guardas logo levaram as mãos aos cabos das espadas; sentiam o sangue gelar, olhavam freneticamente de um lado para o outro.

E então os escravos começaram a cantar.

Isso não havia acontecido em nenhuma das noites anteriores. Os traficantes estavam acostumados às lamúrias dos cativos, não à música, e não gostaram daquilo. A voz das feras era áspera como feridas, forte, primitiva, destemida. Quando os serafins tentaram silenciá-los, um rabo chicoteou do meio do grupo e derrubou um guarda.

E então, entre um tremular e outro das chamas da fogueira do acampamento, eles surgiram. Pesadelos. Redentores. Chegaram do alto, e os traficantes, confusos, pensaram de início que se tratava de reforços, mas aqueles não eram serafins. Asas e gritos, chifres, galhadas, rabos afiados e ombros ursinos encurvados. Pelos, garras.

Espadas e dentes.

Nenhum anjo sobreviveu.

Escravos libertos se dispersaram pelos arredores, levando consigo as espadas e os machados — e, sim, os chicotes — de seus captores. Seria mais difícil subjugá-los no futuro.

A quietude tomou conta. Ali também foi deixada uma mensagem escrita com o sangue do massacre — as mesmas palavras que seriam encontradas em muitas cenas semelhantes nos dias que estavam por vir.

Nós renascemos. É a sua vez de morrer.


19

PARAÍSO

Era uma vez um anjo e um demônio que se apaixonaram e ousaram imaginar um novo modo de viver — sem massacres ou gargantas cortadas ou fogueiras feitas com os mortos, sem espectros ou exércitos bastardos ou crianças arrancadas dos braços de suas mães para assumir seu lugar naquele ciclo de matar ou morrer.

Uma vez, deitados no templo secreto da lua com seus corpos entrelaçados, os amantes sonharam com um mundo que era como uma caixa de joias sem as joias — um paraíso esperando que eles o encontrassem e o preenchessem com sua felicidade.

* * *

Algo que este mundo jamais seria.


20

UMA TERRA DE FANTASMAS

Akiva, Hazael e Liraz caminhavam por entre os anjos mortos. Não falavam nada, só olhavam, em um turbulento silêncio de raiva. Aqueles corpos tinham sido dilacerados, como camundongos caçados por gatos. Akiva não os reconhecia — as aves carniceiras já tinham feito seu trabalho —, mas em vários rostos havia carne suficiente para se perceber a mutilação. Os sorrisos obscenos não eram vistos havia gerações, mas todos os serafins e quimeras os tinham bem gravados na memória. Eram a assinatura do Comandante.

Ele fizera aquilo com seus mestres serafins quando se erguera contra a escravidão, mil anos antes, e assim mudara o mundo. Era um poderoso e inconfundível símbolo de rebelião.

— Harmonia com as feras — disse Liraz, baixinho.

Akiva ficou tenso. Suas próprias palavras, atiradas de volta na sua cara. E o que ele podia dizer em resposta? Que aqueles mesmos soldados tinham deixado um rastro de aldeias incendiadas em seu caminho e não eram nem um pouco inocentes? Daria a entender que Akiva achava que eles mereciam aquilo. Não era o caso, mas ele também não conseguia sentir indignação e revolta, apenas uma tristeza profunda. Aqueles soldados tinham cometido seus crimes, e sofreram as consequências disso. Era a ordem natural das coisas.

Naquele ciclo de massacres, represália gerava represália, para sempre. Mas aquela não era hora de filosofar, não com aves carniceiras circulando no céu, esperando que eles fossem embora e as deixassem com seu banquete. Então ele guardou esses pensamentos para si.

O sol nascia, tocando com um brilho feérico os caules das plantas, e as folhas se abriam como asas ao sabor da brisa. Tinham muitos tons de verde e dourado, ainda estavam verdes — e nunca teriam a chance de amadurecer. Os soldados começavam a atear fogo ao campo, e as chamas se espalhariam rápido com aquele calor. Antes de o sol subir a pino as plantas já estariam crepitando, assim como os corpos. O fogo levava os mortos. Não havia funerais para soldados.

Um grito veio do alto:

— Vocês aí! O que estão fazendo?

Akiva inclinou a cabeça para trás. Os primeiros raios de sol matinais iluminaram seus olhos cor de âmbar, e o serafim no ar, ao ver quem ele era, ficou pálido.

— Perdão, senhor. Eu... Eu não tinha sido informado de que o senhor estaria aqui.

Akiva se ergueu no ar para ir ao encontro do serafim. Seus irmãos subiram logo atrás.

— Viemos com os reforços do cabo Armasin — explicou ele.

Sendo a maior guarnição das antigas terras livres, o cabo Armasin tinha enviado soldados para reforçar o pequeno contingente do sul, em resposta àqueles ataques.

O jovem líder da patrulha, cujo nome era Noam, parecia ligeiramente atordoado por se ver frente a frente com o Ruína das Feras.

— É bom tê-lo aqui, senhor — disse ele.

Pela segunda vez: senhor. Liraz soltou um pigarro. Akiva não era nenhum senhor. Embora a fama tivesse lhe conferido certo respeito, ele era um Ilegítimo, e seu posto continuava sendo o que sempre fora e sempre seria: baixo.

— O que descobriu? — perguntou Akiva.

O soldado estava com os olhos arregalados.

— A luta aconteceu embaixo do aqueduto, senhor.

Que estava bem atrás deles, uma estrutura antiga e gigantesca, com árvores brotando das fendas nas pedras de tal forma que o aqueduto parecia uma espécie de floresta aérea. Akiva sabia que devia ter sido construído por serafins, no início da primeira expansão do império, muitos séculos antes, quando os anjos chegaram àquela terra selvagem, cheia de tribos hostis e primitivas de feras, e a civilizaram.

Civilizar. A palavra era suave demais para exprimir todo o horror da escravidão e do aniquilamento moral que colocara os quimeras sob o jugo do império. O Comandante destruíra esse domínio, que no entanto ressurgira, e agora Akiva fazia parte daquilo.

— Uma emboscada — acrescentou Noam. — Eles foram mortos embaixo do aqueduto e depois amarrados ali.

Ele apontou para a mensagem vermelha pintada na elevada parte superior da construção.

Renascemos. Renascemos.

Akiva ficou olhando para as palavras. Quem?

— É possível que tenham sido os aldeões? — perguntou Liraz.

Noam olhou mais uma vez para os mortos.

— É uma aldeia de Caprina — declarou simplesmente.

Akiva entendeu: aquelas feras, com sua plácida aparência, jamais poderiam ter cometido tal ato, muito menos prendido os corpos no alto do aqueduto.

— Há inimigos mortos? — perguntou Akiva.

— Não, senhor. Somente pessoal nosso, e não há sangue nas armas.

Então eles não tinham desferido um único golpe em defesa própria? Eram soldados experientes que tinham sobrevivido à guerra.

— E ali embaixo, senhor. — Noam indicou a parte da estrada que seguia para o sul pelas colinas. — A caravana de escravos também foi atacada.

Akiva olhou naquela direção. A paisagem era pastoril: a suavidade dos vales, colinas escondendo-se umas atrás das outras como sombras de sombras, tudo tão sereno e tranquilo como o canto de um pássaro. E lá, demorando-se logo acima do horizonte, estava Ellai. Uma lua-fantasma, que a aurora quase fazia desaparecer. Eu vi o que aconteceu aqui, ela poderia ter dito, em provocação. E eu ri.

— E os escravos? — perguntou ele a Noam.

— Fugiram, senhor. Para a floresta. Os traficantes tiveram que... comer correntes.

— Comer correntes? — repetiu Hazael.

Noam assentiu.

— Os grilhões dos escravos.

Akiva olhou para seus irmãos esperando uma reação, mas eles não demonstraram nada. O que vocês fariam, gostaria de lhes perguntar, se alguém acorrentasse nosso povo?

Escravos eram considerados um mal necessário para o império, mas Akiva não pensava assim e não lamentava a perda de traficantes. Já soldados eram outra história, e ali oito tinham sido perdidos. O número de mortos estava aumentando. Tinham sido cinco ataques ao todo. Em uma única noite, em Duncrake, em Véu do Espírito, nos pântanos Iximi e ali, nas colinas Marazel, patrulhas de “limpeza” de serafins tinham sido pegas de surpresa, mortas, mutiladas e deixadas como repulsivos e horripilantes recados para o império.

Era pior que a guerra, pensou ele, sangrar até a morte enquanto longe dali seus companheiros davam vivas e erguiam as taças em brindes pela paz.

Paz, é claro.

Akiva olhou para baixo. Metade do campo já fora incendiado, e os primeiros soldados já tinham sido engolidos pelas chamas. Squalls subiam e depois desciam quase preguiçosamente, carregando os insetos atordoados pela fumaça que voavam em bandos perto do fogo.

— Senhor? — chamou Noam. — Sabe dizer o que foi que fez isso?

Espectros, pensou Akiva imediatamente. Ele já tinha visto bastantes campos de batalha inundados de mortos para saber que somente os maiores, mais monstruosos e mais anormais quimeras poderiam ter causado toda aquela matança. Mas os espectros já não existiam mais.

— Provavelmente alguns sobreviventes da guerra — respondeu ele.

— Há rumores — disse Noam, hesitante — de que os antigos monstros não estão realmente mortos.

Ou seja: o Comandante e Brimstone.

— Acredite — disse Akiva, sendo invadido por lembranças dos últimos momentos dos dois. — Estão mais do que mortos.

E o que aquele jovem soldado de olhos arregalados diria se soubesse quão ardentemente o herói conhecido como Ruína das Feras desejava que não estivessem?

— Mas e a mensagem? Nós renascemos. O que mais poderia significar, senão que eles voltaram?

— É um grito de guerra. Só isso.

O Comandante e Brimstone estavam mortos, sem qualquer chance de retornarem. Ele os vira morrer.

Mas... também tinha visto Madrigal morrer.

Sua certeza foi levemente abalada. Seria possível? Sua pulsação acelerou um pouco. Ele pensou no turíbulo que encontrara, na pequena palavra escrita em letras fortes: Karou. Se houvesse outro ressurreicionista, talvez aquele nome não fosse uma provocação tão grande quanto ele acreditara.

Não. Ele não podia se permitir ter esperança.

— Só havia Brimstone — disse Akiva, mais ríspido do que pretendia.

Liraz o observava com os olhos ligeiramente apertados. Será que ela sabia o que se passava na cabeça dele? Ela sabia sobre o turíbulo, é claro. “Chega de segredos”, dissera ela, e de fato não havia mais nenhum. Uma breve chama de esperança contava como segredo? Se sim, era um segredo que ele achava justo guardar para si.

Noam assentiu, aceitando suas palavras. Com um tom leve, como se apenas repetisse tolices em que não acreditava, disse:

— Outros dizem que são fantasmas.

Seus olhos, no entanto, traíam um medo real, e Akiva bem que o entendia. Afinal, as últimas palavras de Brimstone também lhe deram calafrios.

Ele se lembrou de como a voz de Joram tinha reverberado pela ágora de Loramendi no silêncio que se seguiu à destruição de toda a resistência. O Comandante e Brimstone estavam de joelhos; tinham sido mantidos vivos para testemunhar as mortes de todos os outros.

Todos os outros.

— Você os condenou — sibilara Joram no ouvido do Comandante. — Vocês nunca iriam vencer. São animais. Acharam mesmo que poderiam dominar o mundo?

— Esse não era o nosso sonho — respondera o Comandante, com serena dignidade.

— Sonho? Poupe-me de seus sonhos de fera. Sabe qual é o meu sonho?

Como se alguém não soubesse que ele pretendia dominar toda Eretz.

A galhada de cervo do Comandante estava quebrada, lascada. Ele tinha sido espancado, e sustentava a cabeça erguida com visível dificuldade. Ao seu lado, Brimstone não conseguia fazer nem mesmo isso. Estava curvado para a frente, o peso do corpo apoiado na mão estendida, o outro braço tentando conter o sangramento de uma ferida no tronco, e seus grandes ombros subiam e desciam enquanto ele tentava respirar. Já não tinha muito tempo de vida, mas ainda assim conseguiu levantar a cabeça e responder.

Aquela voz. Foi a única vez que Akiva a ouviu, e o som — a sensação que provocava — jamais o deixaria. Profunda como o bater de asas de um caça-tempestades, parecia ter se alojado em sua mente e lá ficado desde então.

— Almas mortas sonham apenas com morte — disse o ressurreicionista ao imperador. — Sonhos pequenos para homens pequenos. É a vida a única capaz de crescer e preencher mundos. Ou temos a vida como mestre, ou a morte. Olhe só para você. É um senhor de cinzas, de restos carbonizados. Sua vitória o deixou imundo. Aproveite essa vitória, Joram, porque nunca vai conhecer outra. Você é o senhor de uma terra de fantasmas, e nunca será mais que isso.

Parecia uma maldição, pensou Akiva, e Joram reagiu com ardor.

— Sim, será uma terra de fantasmas, isso eu lhe prometo. Uma terra de cadáveres. Fera alguma andará por essa terra senão sob o peso de correntes, e tão açoitada pelo chicote que mal consiga erguer a cabeça!

A ira era o estado de espírito mais comum do imperador. Serafins eram seres ardentes, mas falava-se que Joram se inflamava como o núcleo de uma estrela. E isso lhe despertava tamanha voracidade — como se tivesse um inferno a alimentar — que, quando transformava-se em fúria, era terrível, fora do alcance de qualquer razão ou controle.

Ele matou Brimstone na mesma hora. Um só golpe; com certeza pretendia cortar-lhe a cabeça, mas não conseguiu, tão grosso era o pescoço da fera. Quando Brimstone desabou em uma torrente de sangue, Joram puxou sua espada com violência e a ergueu para mais uma tentativa. Com um urro de raiva, o Comandante, aquela criatura tão antiga, abaixou sua galhada quebrada e se lançou em direção ao imperador. Foram necessários dois soldados para derrubá-lo, o que só conseguiram depois que ele havia lanceado Joram com um galho denteado, atirando-o ao chão, sem matá-lo, sem nem mesmo feri-lo seriamente, mas roubando sua dignidade naquele dia de triunfo.

E, desde então, Joram vinha cumprindo a promessa que fizera: uma terra de fantasmas, de fato.

— Se fantasmas pudessem continuar a matança do ponto em que os vivos pararam — disse Akiva a Noam —, já estaríamos todos exterminados há muito tempo.

Noam assentiu mais uma vez, aceitando suas palavras como sabedoria. Então perguntou:

— Senhor? Temos novas ordens?

Liraz não conseguiu mais se conter:

— Não precisa chamá-lo de senhor — disse ela. — Você sabe muito bem o que somos.

Ilegítimos. Bastardos. Lixo.

— Eu... — gaguejou Noam. — Mas ele é...

— Esqueça isso — disse Akiva. — Não. Não temos novas ordens. Quais foram as últimas ordens? — Tinham acabado de chegar; ele não sabia. — Devemos rastrear os rebeldes?

Mas Noam balançou a cabeça em negativa.

— Não há o que rastrear. Eles simplesmente desapareceram. Devemos... Devemos responder.

— Responder?

— As mensagens, os sorrisos. O imperador... — Ele engoliu em seco; estava sendo cuidadoso, pesando as palavras que diria a Akiva, mas faltava-lhe convicção. — O imperador também quer mandar um recado.

Akiva ficou em silêncio, absorvendo aquilo. No cabo Armasin, ele tivera sorte: no norte, não havia restado ninguém para matar. Ali era outra história. Aldeões em fuga, escravos libertos, quimeras tentando chegar às Terras Distantes, onde acreditavam que encontrariam proteção, um caminho pelas montanhas para uma nova vida. E agora ele deveria caçá-los? Fazer deles um recado?

O Ruína das Feras. Ele deveria ser bom naquilo.

Akiva foi tomado por uma mistura de desespero, cansaço e desamparo. Não queria ser parte do recado de Joram.

A fumaça que soprava dos cadáveres no campo fez os anjos baterem suas asas e se afastarem dali, pousando no alto do aqueduto. Ao ver o sangue e as penas partidas onde os soldados tinham estado presos, Noam deixou que a emoção quebrasse sua impassibilidade marcial.

— Para que tudo isso? — perguntou ele com fervor, dirigindo-se ao céu, a ninguém. — Não consigo me lembrar. Acho... Acho que eu nunca soube. — Então fixou o olhar abruptamente em Akiva. — Senhor — implorou, esquecendo-se da repreensão de Liraz —, quando isso tudo vai acabar?

Nunca, pensou Akiva. Ele olhou nos olhos do jovem soldado e soube que, em pouco tempo, aquela parte dele que o fazia perguntar o porquê logo estaria morta, por obrigação — outra alma arrancada para dar lugar a um monstro. Exércitos precisam de monstros, como o velho corcunda lhe dissera no Marrocos, para fazerem seu terrível trabalho. Quem sabia disso melhor que Akiva? Ele olhou para Hazael e para Liraz. Seria muito tarde para os dois? Para ele mesmo?

Desesperado e cansado, desamparado e dominado pelo cheiro de carne queimada que vinha dos companheiros mortos, ocorreu-lhe algo em que já não pensava havia muito tempo, desde que Madrigal fora arrancada nua de seus braços no templo de Ellai.

Imaginou dois futuros para Eretz: um como Joram queria, e outro, como poderia ser.

Um tipo diferente de vida.


21

ASSUSTADA O BASTANTE

Sveva acordou com um sobressalto, sentindo um mal-estar repentino. Tinha caído no sono durante a vigia e agora tentava despertar depressa e se situar. Cada célula de seu corpo correu do sonho ao medo em um estalo; o ruído de um galho se quebrando e ela estava acordada, alerta, ouvindo.

Piscou algumas vezes. Amanhecia. Através dos galhos das árvores, via o céu pálido e suave. Quanto tempo tinha dormido? E o galho que se partiu — tinha ouvido mesmo aquilo ou não passara de um sonho?

Ficou ali sentada imóvel, prestando atenção a sua volta. Estava tudo silencioso. Depois de alguns minutos, ela relaxou. Estavam seguras. Sarazal ainda dormia; não precisava saber que ela caíra no sono. Já lhe dava bastante bronca mesmo sem isso. Com um suspiro, Sveva esticou as pernas dianteiras, que estavam dobradas sob o corpo. Eram esguias como as de um filhote de cervo, o pelo ainda ligeiramente coberto de manchas. Ela era a menor das duas garotas, a mais jovem. Era a que estava acostumada a se dar bem, e não a fazer sua parte.

Mas isso era antes.

Quando voltassem para casa, ela teria um comportamento impecável. Nada mais de sonhar acordada, ou de se esconder quando a mãe delas chamasse. A mãe delas. Como devia estar preocupada agora, assim como todo o restante da tribo. Será que sabiam que elas tinham sido capturadas por traficantes de escravos? As duas tinham acabado de sair para correr, para sentir um pouco o vento em seus cabelos depois de um dia de trabalho no tear. Tinha sido Sveva, a mais rápida, quem acabara levando as duas até muito longe, longe demais. Não dera escolha à irmã a não ser ir atrás dela. E Sarazal não poderia deixá-la — irmãs mais velhas não fazem isso. Era tudo culpa de Sveva.

Será que a tribo achava que elas tinham morrido? Sentia-se mal só de imaginar a tristeza que lhes causara. Estamos bem, pensou ela. Tentou se concentrar bastante nisso, desejando que a mensagem atravessasse a distância e alcançasse a mente de sua mãe. As mães conseguem sentir essas coisas, certo?

Estamos bem, mãe. Estamos livres. Fomos libertadas!

Mal podia esperar para contar como tinha sido, os espectros vindo do céu como a vingança materializada em corpos. E que corpos! Imensos, terríveis. Bem, um deles não era terrível: um alto, com chifres compridos e pontudos, tinha tirado uma faca de um anjo morto e colocado em sua mão; ele era bonito.

Ah, quem tinha uma história como aquela para contar? Ela falaria tudo bem rápido, antes que Sarazal pudesse se intrometer. Sveva era mesmo melhor em contar histórias; lembrava-se de todos os detalhes interessantes, como aquele momento em que os escravos cantaram juntos. Eram de tribos diferentes, mas todos sabiam a letra da balada do Comandante. O som de suas vozes unidas, pensou Sveva, era como o som do próprio mundo: terra e ar, folha e rio, e dentes e garras também. E rosnados, e gritos. Alguns escravos haviam assustado Sveva tanto quanto os traficantes, mas todos tinham seguido caminhos diferentes quando lhes tiraram as algemas. A maioria tinha fugido para o sul, carregando chicotes e espadas, prontos a avisar qualquer um que encontrassem. Sveva apertou com força a faca — era grande demais para sua mãozinha —, mas seu destino era o norte e o oeste.

Nossa casa. Estamos indo para casa.

Quando Sarazal melhorasse, quer dizer.

Sveva mordia a bochecha por dentro, preocupada com a perna da irmã — nem o cheiro das ervas do cataplasma que ela fizera conseguia se sobrepor ao fedor da ferida —, quando ouviu outro estalo. Sua pele ficou gelada de súbito, e ela olhou fixamente para a densa floresta, onde a noite ainda se agarrava às sombras das inúmeras árvores donzelas.

Provavelmente era apenas um skote, disse a si mesma, ou uma ave trepadora.

Certo?

Seu coração batia disparado; quem dera Sarazal estivesse acordada. Irmãs mais velhas podiam ser irritantes quando se queria apenas aproveitar o dia, mas traziam conforto quando você estava fugindo, no meio de uma floresta estranha, vulnerável em meio a sons e sombras, precisando de alguém que lhe dissesse que ia ficar tudo bem.

Sveva se levantou sem fazer barulho, as pernas de cervo estendidas à sua frente, seu silfídico torso humano erguendo-se devagar. Os Dama eram a menor das tribos de centauros, leves e flexíveis, conhecidos por sua velocidade. Ah, a velocidade; eram os mais rápidos de todos os quimeras, e, como Sveva era a mais rápida dos Dama, gostava de se gabar dizendo que era a criatura mais rápida do mundo. Sarazal dizia que isso não era necessariamente verdade, mas, fosse ou não, Sveva adorava correr, ansiava por isso. Poderiam já estar a meio caminho de casa agora, rumo às florestas altas de ezerin e às planícies Aranzu, cobertas de musgo, onde se estendia a tribo dos Dama, nômade e selvagem.

Estariam a meio caminho agora, se não fosse pela perna de Sarazal.

Ela ainda não tinha nem se mexido. Estava toda encolhida nas samambaias macias, de olhos fechados, o rosto relaxado e tranquilo, e, por mais que Sveva quisesse que ela acordasse, não conseguia chamá-la. Sarazal passara dias com tanta dor que nem conseguia dormir direito. Tudo por causa das algemas. Agora que a provação das duas tinha acabado, era nisso que Sveva concentrava seu ódio. Interessante como um ódio menor podia crescer dentro de um maior e tomar conta de tudo. Quando pensava nos traficantes de escravos agora — e, embora estivessem mortos, ela os odiaria para sempre —, era a imagem da algema de Sarazal, mais do que qualquer outra coisa, que fazia seu peito apertar e seu rosto contrair-se em uma expressão de fúria.

Como os quimeras tinham tantas formas e tamanhos diferentes, os traficantes carregavam todo tipo de algemas e usavam as que dessem — todos os tamanhos de anéis de ferro e correntes de aço, presos em pernas, cinturas, pescoços. Mas nunca nos braços. Tinha sido Rath, outro escravo — um apavorante garoto dos Dashnag, cujos longos caninos brancos faziam Sveva se encolher como uma flor murcha —, que lhes contara por quê.

— Um braço dá para cortar fora e escapar — dissera ele. — Não é impossível viver sem um braço.

Ah.

— Para mim é — replicara Sveva, com certo ar de superioridade.

Selvagens, lembrava-se de ter pensado, como se fosse por falta de sentimentos mais nobres que os Dashnag não se importavam muito com seus membros.

— Você diz isso porque não sabe o que lhe espera.

— E você sabe?

Ela não devia ter dito aquilo. Rath podia ter comido seu rosto com uma bocada só, mas ela não tinha resistido. Ele estava tentando assustá-la? Até parece que ela já não estava assustada o bastante.

Talvez, pensou, ela realmente não estivesse tão assustada assim naquele momento. Mas agora estava. Sentia o odor desagradável e doce de infecção que vinha de sua irmã e sabia que, quando a tocasse, ela estaria ardendo em febre. As ervas não estavam adiantando.

Sveva as encontrara — todas, até sana-febre. Quer dizer, ela estava quase certa de que era sana-febre. Bom, mais ou menos certa. Mas ela via a ferida na perna de Sarazal, pousada delicadamente no travesseiro de samambaias, e não parecia nem um pouco melhor. Passou os dedos pelas marcas doloridas que as algemas deixaram na própria pele e sentiu o peso da culpa pela sorte que não merecia.

Os traficantes tinham prendido Sveva pela fina cintura com uma algema de ferro que devia ter sido projetada para as pernas de um enorme touro-centauro, mas, quando chegaram a Sarazal — ela era a última da fila; que azar tinha sido, puro azar —, não encontraram nada que encaixasse e acabaram prendendo-a com um pedaço de ferro qualquer logo acima da articulação de sua pata dianteira esquerda. O metal cortara a pele, o machucado tinha inchado, e foi então que a algema improvisada fizera o verdadeiro estrago, cortando ainda mais fundo a pele já ferida, e rasgando cada vez mais a cada passo que ela dava. Depois de um tempo Sarazal estava mancando tanto que os traficantes a teriam deixado para trás se os espectros não tivessem aparecido. Rath dissera que eles teriam feito isso antes caso os Dama não fossem tão valiosos, e ele nem precisou lhe explicar que, se deixassem sua irmã ou qualquer um deles para trás, não seria vivo.

Mas os espectros tinham aparecido — vindos só as luas sabiam de onde, com asas como ela nunca vira antes, muito mais assustadores do que qualquer figura saída dos pesadelos —, e bem na hora. Sarazal mal conseguia andar, e elas não tinham se afastado muito, porque Sveva era pequena demais para carregar a irmã.

Ela suspirou. Não ouviu mais nenhum som vindo das sombras, o que era bom, mas as sombras estavam sumindo. Já era dia. Estava na hora de acordar Sarazal. Relutantemente, Sveva tocou o ombro dela. Como já esperava, a pele estava bem quente e, quando ela aos poucos abriu os olhos, não pareciam normais: tinham aquele brilho turvo dos doentes. Sveva sentiu o estômago se revirar com a culpa. Queria apoiar a cabeça da irmã no colo, pentear com os dedos seu cabelo cacheado e avermelhado e cantar para ela, não a balada do Comandante, mas uma música doce, que não falasse de ninguém morrendo. Contudo, apenas murmurou:

— Já amanheceu, Sara, hora de levantar.

Um resmungo.

— Não consigo.

— Consegue sim. — Sveva tentava soar alegre, mas um pânico desesperado crescia dentro dela. Sarazal estava muito mal. E se ela...? Não. Afastou o pensamento. Aquilo não podia acontecer. — É claro que consegue. Mamãe está esperando pela gente.

Mas Sarazal só choramingou de novo e voltou a se aninhar nas folhas de samambaia. Sveva não sabia o que fazer. Era sempre a sua irmã que estava no comando, mandando, planejando e convencendo. Talvez devesse deixá-la dormir mais um pouco, pensou, deixar a sana-febre agir.

Se é que aquilo era mesmo sana-febre. E se não fosse? E se estivesse fazendo mais mal do que bem?

Eram esses pensamentos que ocupavam sua mente quando ela ouviu uma voz atrás de si. Não houve nenhum galho partido para avisá-la — de repente estava bem ali, quase junto ao seu ouvido, fazendo-a sentir calafrios por todo o corpo.

— Vocês precisam ir embora.

Sveva se virou, brandindo a faca grande demais, e se deparou com Rath, o garoto Dashnag de caninos longos, semioculto nas sombras. Apesar de ainda ser um menino, ele era muito grande. Sveva respirou fundo, ofegando, vacilante de pavor. Rath lançou-lhe um olhar demorado, e Sveva não conseguia decifrar a expressão em seu rosto de fera. Ele tinha cabeça de tigre e olhos felinos que captavam a luz e brilhavam. Era um caçador, sempre à espreita, um carnívoro. Ela podia deixá-lo para trás facilmente se corresse, sabia disso... só que não podia, porque se corresse deixaria Sarazal para trás.

— O que está fazendo aqui? — exclamou ela. — Estava nos seguindo?

A voz de Rath era profunda e áspera.

— Estava procurando os espectros. Mas eles sumiram, e eu não contaria com eles para salvar vocês duas vezes.

Aquilo era uma ameaça?

— Deixe a gente em paz — disse ela, colocando-se na frente da irmã.

Rath deixou escapar um som de impaciência.

— Não é de mim que vocês precisarão ser salvas — disse ele. — Se estivesse observando o céu, você saberia.

— O quê? — O coração de Sveva retumbava. — Do que você está falando?

— Tem anjos vindo para cá. Soldados, não traficantes de escravos. Se quiserem sobreviver, vocês precisam ir embora agora.

Anjos. O ódio de Sveva se inflamou.

— Estamos escondidas aqui — insistiu ela. As copas das árvores formavam um manto contínuo vistas de cima, estendendo-se por quilômetros e quilômetros. Duas garotas Dama seriam como dois pontinhos de poeira. — Nunca vão nos encontrar.

— Eles não precisam ver para matarem vocês — disse Rath. — Veja com seus próprios olhos.

Ele apontou para um espaço entre os arbustos que, Sveva sabia, abria caminho para uma pequena elevação e uma cadeia de montanhas, com vista para as colinas ao redor. A garota deu uma olhada na irmã, que voltara a dormir, os lábios se movendo e as pálpebras agitadas em meio aos pesadelos. Rath fez outro som impaciente, e Sveva decidiu ir verificar. Contornou-o devagar, avançando de lado, seus cascos fendidos pisando nervosamente, e, depois que passou por ele, correu a toda velocidade até o topo da elevação.

Fumaça.

Do outro lado do vale, no meio do caminho que as levaria para casa, cerca de meia dúzia de colunas de fumaça negra se erguia da floresta de tempos em tempos. Abaixo da fumaça viam-se violentas labaredas de fogo, e acima, cintilando no ar como miragens de calor, serafins.

Eles iam queimá-las. Queimar aquela terra. Queimar o mundo.

Atordoada, ela voltou para perto de Rath.

— Viu? — perguntou ele.

— Vi — retrucou ela, com raiva. Com raiva dele, como se fosse culpa do garoto. Mas era melhor que o pânico que ela sentia pulsar logo abaixo da raiva. Ela tentou levantar a irmã, mas Sarazal resistiu.

— Não — disse ela, a voz fraca como a de uma criança. — Eu não consigo, não consigo.

Sveva nunca a tinha visto daquele jeito. Tentou de novo.

— Vamos, Sarazal, você consegue sim. Não tem jeito.

Mas Sarazal balançou a cabeça.

— Svee, por favor. — Ela contraiu o rosto e apertou os olhos. — Dói. — Era a primeira vez que ela admitia sentir dor. Sua voz saiu em um sussurro distante, profundo, suplicante. — Vá. Você sabe que não vou conseguir. Não vou culpá-la. Ninguém vai. Svee, Svee, talvez você seja mesmo a mais rápida do mundo. — Sveva tentou sorrir. Svee era seu apelido quando bebê. Ela sentiu um aperto no peito. — Então corra! — gritou.

Sveva a sacudiu.

— Vou deitar aqui e morrer com você, está me ouvindo? É isso o que você quer? Mamãe vai ficar uma fera com você! — Sua voz soava estridente, cruel. Ela precisava fazer a irmã se levantar. — E nem venha me dizer que no meu lugar você iria embora sozinha. Sei que não faria isso, e eu também não vou fazer!

Sarazal tentou se levantar, mas gritou de dor ao apoiar o peso do corpo na perna inchada, e desabou de volta no chão.

— Não consigo — sussurrou, com os olhos febris arregalados de pavor.

Então Rath deu um pulo. Sveva tinha quase se esquecido dele. Ela não viu o começo do salto, só o final, quando ele pousou na samambaia à frente delas, um pouso inacreditavelmente leve para seu tamanho, e levantou Sarazal, passando um dos seus grandes braços por baixo da barriga lisa de cervo dela, o torso humano preso firmemente ao seu ombro. Sarazal arfou, rígida de dor e medo, mas Rath não disse nada. Deu outro salto e se pôs em movimento, se afastando do fogo que chegava perto e do brilho radiante dos anjos sem nem sequer olhar para trás, em direção a Sveva.

Após um instante de entorpecimento e surpresa, ela o seguiu.


22

O FANTASMA DOS DENTES

— Mas por que dentes? — perguntou Mik a Zuzana. — Juro que eu não consigo entender.

Zuzana, que caminhava pela calçada na frente dele, parou de repente e se virou para olhar para o namorado. Mik vinha puxando o carrinho com a marionete gigante dela e teve que se deter bruscamente para não atropelá-la. Ela o encarou, pequena mas altiva, o biquinho e as sobrancelhas franzidas rivalizando para ver qual sobressaía mais em sua expressão.

— Não sei por quê. Não é essa a questão. A questão é que ela esteve aqui. Em Praga.

Deixou o restante por dizer, o biquinho vencendo, de forma que por um instante seu rosto mostrou, sem reservas, como ela estava magoada. Karou — o “fantasma dos dentes”, era como a estavam chamando, sem saber que ela e a “garota da ponte” eram a mesma pessoa — aparentemente tinha roubado o Museu Nacional em algum momento de sua série de crimes. O noticiário local havia mostrado um curador enfiando uma pequena lanterna entre as mandíbulas de um tigre siberiano ligeiramente comido pelas traças.

— Como vocês podem ver, ela não levou os caninos, só os molares — dissera o homem, na defensiva. — Foi por isso que não notamos. Não temos nenhuma razão para olhar dentro da boca dos espécimes.

Estava na cara que o fantasma era Karou. Mesmo que a imagem de relance vista na filmagem da câmera de segurança não bastasse para identificá-la, Zuzana tinha uma fonte de informação inacessível às várias forças policiais do mundo: os cadernos de desenho de sua amiga. Todos os noventa estavam empilhados em um canto do quarto de Mik. Desde que Karou tinha idade suficiente para segurar um lápis, ela vinha desenhando aquela história de monstros e portais místicos e dentes. Sempre dentes.

Era uma boa pergunta, a de Mik. Por quê? Bem, Zuzana não fazia ideia. Mas ela tinha preocupações maiores no momento.

— Como Karou pôde vir aqui e nem falar com a gente? — perguntou ela.

Uma sobrancelha se erguia, furiosa, forçando o biquinho à submissão. Com suas botas plataforma e seu tutu vintage, o rosto feroz erguido, a maquiagem de boneca com círculos cor-de-rosa nas bochechas e os cílios postiços tremulantes, Zuzana era a perfeita “fada raivosa”, como Karou a apelidara.

Mik pôs as mãos nos ombros dela.

— Não sabemos pelo que a Karou está passando. Talvez estivesse com pressa. Ou sendo seguida. Sabe, poderia ser qualquer coisa, não é mesmo?

— É isso o que mais me irrita — retrucou Zuzana. — Pode ser qualquer coisa, e eu não sei de nada. Sou a melhor amiga dela. Por que ela não me contou o que está havendo?

— Não sei, Zuze — disse Mik, em uma voz suave. — Ela disse que está feliz. Isso é bom, não é?

Estavam no início da ponte Carlos, indo encontrar uma área para as apresentações do dia. Tinham chegado tarde naquela manhã, a ponte medieval já cheia de artistas e músicos, sem falar em uma boa parcela dos malucos apocalípticos do mundo. Mik observava, meio tenso, uma enorme banda de jazz passar lentamente com suas caixas surradas de instrumentos.

Zuzana não prestava a menor atenção.

— Argh! Nem me fale desse e-mail. Tenho vontade de matá-la, nem que seja só um pouquinho. Aquilo era uma charada? Referências a um filme do Monty Python? Castelos de areia? Tipo... hein? E ela nem mencionou Akiva. O que isso quer dizer?

— Não deve ser boa coisa — reconheceu Mik.

— Pois é. Afinal, eles ainda estão juntos? Ela falaria dele, não é?

— Bem, sim. Assim como você conta a ela tudo sobre mim, todas as coisas engraçadas que digo, e como fico mais bonito e inteligente a cada dia. Com emoticons e tudo...

Zuzana bufou com desdém.

— Claro. E sempre assino como Sra. Mikolas Vavra, com um coraçãozinho no pingo do i.

— Hum. Gostei disso.

Ela deu um soco no ombro dele.

— Ah, dá um tempo. Se algum dia você me pedir em casamento, nem pense que eu me identificaria como um adendo seu, igual a uma velha senhora assinando o cheque do aluguel em caligrafia perfeita como Sra. Nome do Marido...

— Mas você aceitaria, é o que está dizendo?

Os olhos azuis de Mik brilhavam.

— O quê?

— Pelo jeito que você falou, a única questão era saber como ficaria o seu nome, e não se aceitaria ou não.

Zuzana corou.

— Eu não disse isso.

— Então você não se casaria comigo?

— Que pergunta ridícula. Eu só tenho dezoito anos.

— Ah, então é uma questão de idade? — Ele franziu a sobrancelha. — Você não está falando de se entregar às loucuras da juventude, não é? Não vamos precisar dar um tempo só para você experimentar outros...

Ela cobriu a boca dele com a mão.

— Que horror. Nem fale uma coisa dessas.

Aliviado, Mike beijou a palma da mão dela.

— Que bom.

Ela se virou e continuou andando. Mik deu um puxão na imensa marionete para fazer o carrinho andar e a seguiu.

— Então — gritou, atrás dela —, só por curiosidade, sabe, puramente teórica, com quantos anos você vai começar a considerar propostas de casamento?

— Acha que vai ser fácil assim? — gritou ela de volta, por sobre o ombro. — Até parece. Vai ter desafios. Como em um conto de fadas.

— Parece perigoso.

— Muito. Então pense bem.

— Não preciso — disse Mik. — Você vale a pena.

E com isso o rosto dela se iluminou de alegria.

Conseguiram encontrar um espacinho ainda não ocupado no lado da ponte que dava para o Centro Histórico. Instalaram ali a marionete, que se erguia enorme com seu casacão preto como um guardião sinistro da ponte, um escuro contraponto ao grupo com túnicas brancas mais à frente. Uma aglomeração de um culto de anjos. Estavam ali à toa, acendendo suas velas de vigília e entoando cânticos — pelo menos até a polícia aparecer, dispersando-os por algum tempo. Eram perseverantes em acreditar que os anjos retornariam àquele lugar, ao cenário de sua mais dramática aparição.

Vocês não sabem de nada, pensou Zuzana com desdém, mas estava ficando cansada do seu senso de superioridade. Então ela tinha conhecido um dos anjos. E daí? Sabia tão pouco quanto todos os outros.

Karou, Karou. O que será que significava o fato de ela ter estado ali e nem ter passado para dizer um oi? E aquele e-mail! Sim, era absurdo, tão misterioso que ficava martelando na sua cabeça, mas... havia algo de muito estranho no que ela escrevera.

Então Zuzana teve um estalo: uma lembrança repentina.

Estou feliz... Estou feliz...

Karou não estava feliz. Zuzana de repente teve um mal-estar. Pegou o celular para ter certeza. Foi fácil achar o vídeo on-line; era um clássico. “Eu não quero ir na carroça!” Essa era a pista. Monty Python em busca do cálice sagrado: ela e Karou tinham passado por uma fase, aos quinze anos, em que provavelmente assistiram àquele filme umas vinte vezes. E lá estava, no final da cena “Tragam seus mortos”.

— Estou feliz... Estou feliz...

Uma cantilena desesperada. Aquilo era o que o velho dizia para convencê-los de que estava bem, logo antes de lhe acertarem a cabeça e atirarem seu corpo na carroça que levava as vítimas da peste. Caramba. Só mesmo Karou para se comunicar usando Em busca do cálice sagrado. Será que ela estava tentando dizer que estava em perigo? Mas o que Zuzana poderia fazer? Seu coração começou a bater acelerado.

— Mik — chamou. Ele estava afinando o violino. — Mik!

Sacerdotisa de um castelo de areia? Em uma terra de poeira e luz das estrelas?

Aquilo também era uma pista?

Será que Karou queria ser encontrada?


23

SACERDOTISA DE UM CASTELO DE AREIA

A casbá era um castelo feito de terra, uma das centenas que despontavam na região sul do Marrocos, onde tinham passado séculos sendo cozidos pelo sol. Um dia haviam sido o lar de clãs guerreiros e seus séquitos. Eram fortalezas primitivas, imponentes e vermelhas e altivas, com ameias parecendo dentes de víboras e enigmáticos padrões berberes gravados nas grandes paredes lisas.

Pequenos grupos de descendentes de guerreiros ainda viviam em muitas das casbás, atualmente levando a vida com alguma dificuldade, enquanto o tempo operava a ruína nas construções que os abrigavam. Mas aquela casbá, quando Karou a encontrou, tinha sido abandonada às aves e aos escorpiões.

Algumas semanas antes, quando retornara ao mundo humano para coletar dentes, ela estava, bem, relutante em voltar a Eretz. Não que duvidasse que iria, nem por um segundo; mas voltar para lá era extremamente difícil. Para aquele mundo em geral, com seu hálito de morte, e especificamente para o túnel da mina em que vivera por um tempo. Os ecos e arrepiantes gritos estridentes dos morcegos-querubim, a terra, a escuridão, as pálidas raízes tuberosas que pulsavam como veias, nenhuma privacidade, “companheiros” rudes, olhos sempre atentos a ela e... nenhuma porta. Era a pior parte, não poder fechar uma porta e se sentir segura, nunca, principalmente quando estava trabalhando — porque, quando usava magia, ela ia para um lugar dentro de si que a deixava completamente vulnerável. E não dava nem para pensar em dormir. Então precisara encontrar uma alternativa.

Não era uma tarefa simples esconder o crescente exército de quimeras no mundo humano. Eles precisavam de um lugar grande, isolado e próximo ao portal das montanhas Atlas que Razgut lhe mostrara, para que pudessem ir e vir entre os mundos. Eletricidade e água corrente também seriam bem-vindas, mas ela não tinha esperado encontrar um lugar que atendesse nem mesmo às necessidades mais básicas.

Mas a casbá atendera, perfeitamente.

Aos olhos do mundo, o local parecia exatamente o que Karou dissera em seu único e breve e-mail para Zuzana: um castelo de areia, um enorme castelo de areia. Era monumental: uma cidade inteira, sem exagero — ruas e praças, bairros, um caravançará, um armazém e um palácio —, tudo imensamente vazio. O lugar havia sido projetado em uma escala absurda, fazendo com que quem estivesse em seu pátio de lajotas, com as paredes de barro e os telhados pontiagudos projetando-se para o alto, se sentisse pequeno como um pássaro.

Era incrível: janelas com grades de ferro com arabescos e madeira entalhada, mosaicos montados com ladrilhos de vidro brilhante, grandes arcos mouros, telhas verde-esmeralda e detalhes arquitetônicos feitos em gesso branco por artesãos há muito mortos.

E estava praticamente em ruínas. Em algumas partes os telhados tinham desabado por completo, e várias torres só tinham uma única quina de pé. Escadas levavam a lugar nenhum; portas se abriam para abismos de mais de dez metros; arcos imensos assomavam, precários e cheios de rachaduras.

Atrás do castelo, crescendo na direção do céu, as encostas subiam para o norte, onde as montanhas Atlas tocavam o céu. À frente, a terra baixava em um declive de pedras e arbustos em direção ao distante Saara. Era uma paisagem desolada, tão imóvel que parecia que, se um escorpião balançasse bruscamente sua cauda a quilômetros de distância, seria notado.

Karou via tudo isso de seu quarto no ponto mais alto do palácio. Embaixo havia um amplo pátio interno, todo murado. Os vários quimeras que estavam na galeria arqueada que dava para o portão principal ficaram em silêncio quando ela desceu flutuando diante deles. Ela havia saído pela janela — as passagens estavam sendo consertadas, portanto andar por ali era muito perigoso; além do mais, por que andar se você pode voar? Seu voo silencioso, sem bater de asas, sempre os perturbava. Eles agora a encaravam com seus olhos coloridos de aves de rapina, bois e lagartos, e não a cumprimentaram quando ela passou.

O calor do dia pesava como mãos pressionando sua cabeça, mas mesmo assim ela vestira uma túnica com mangas compridas, para cobrir os braços feridos, e colocara por cima a bainha das facas. Suas lâminas em forma de lua crescente pendiam da cintura, embora ela esperasse não precisar utilizar aquele recurso. Todos os quimeras andavam armados o tempo todo, então ela não se destacava naquele grupo; seus “camaradas” não precisavam saber que era deles que ela sentia medo.

Logo que ela entrou no grande salão, ouviu um sussurro.

— Traidora.

O som veio de trás dela, um sibilar muito inexpressivo para que ela pudesse identificar de quem viera. Aquilo a magoou, mas ela não demonstrou e apenas continuou em seu caminho, notando as pausas nas conversas à medida que passava. Podia ter sido Hvitha, que estava se servindo, ou Lisseth ou Nisk, que já estavam à mesa. Mas Karou apostava que fora Ten, por nenhuma outra razão além do fato de a fêmea lupina, a única sobrevivente do séquito de Thiago, ser mais amigável com ela do que a maioria. O que, é claro, a tornava totalmente suspeita.

Minha vida é ótima mesmo, pensou Karou.

No entanto, se tinha sido Ten, a mulher-lobo era a própria imagem da inocência, acenando para Karou e lhe oferecendo um prato.

— Eu já ia levar para você — disse ela.

Karou lançou uma olhar de suspeita tanto na direção dela quanto do prato.

Ten não deixou passar.

— Acha que eu a envenenaria? Bem, eu me arrependeria bastante disso quando morresse de novo. — Ela riu, um som rouco de sua mandíbula lupina. — Thiago me pediu — explicou. — Ele está em reunião com seus capitães agora. Se não fosse por isso, tenho certeza de que ele mesmo o faria.

Karou pegou o prato de cuscuz e legumes. Essa era outra vantagem de estar ali: em Eretz, era difícil conseguir comida. Eles tinham sobrevivido principalmente de vegetais cozidos, cujo sabor e textura não eram muito melhores do que de argila. Ali, Karou usava uma caminhonete velha para comprar grandes sacos de cereais, tâmaras e legumes em viagens ocasionais até as cidades mais próximas, e, atrás do grande salão, uma dinastia de galinhas magrelas dominava um pequeno pátio.

— Obrigada — disse Karou.

Thiago levava o jantar para Karou várias vezes, de forma que ela não precisasse interromper seu trabalho, e Karou tinha que admitir que era mais fácil do que descer e enfrentar a recepção duvidosa de seus companheiros — sem contar que o Lobo pagava o dízimo. Os braços dele estavam quase tão feridos quanto os dela agora, cobertos de manchas que iam do amarelo mais claro ao roxo mais escuro e se sobrepunham, em constante mudança.

— Uma nova forma de arte — dissera Thiago a respeito das manchas, para então lhe fazer o mais estranho e nojento elogio que ela já recebera: — Você deixa lindas marcas.

Naquela noite, no entanto, ele não aparecera, e foi quando Karou percebeu que estava esperando por ele — esperando pelo Lobo — que se levantou resoluta e saiu pela janela.

Deixou que Ten a guiasse até a mesa. O salão não estava cheio àquela hora. Uma rápida olhada e ela calculou que metade dos soldados ali era obra sua. Era fácil ver a diferença: as asas, o tamanho. Ali estava Amzallag: obra dela; Oora: não. Nisk e Lisseth, ambos dela; Hvitha e Bast: não. Por enquanto, pelo menos. Mas havia uma razão por não a terem chamado de traidora na cara dela: todos sabiam que em questão de dias, semanas, possivelmente até horas, suas almas passariam pelas mãos dela. Um deles poderia até caminhar para o fosso com Thiago aquela noite mesmo; quem sabe? O que eles sabiam é que iriam morrer; estavam acostumados à ideia.

Mas não estavam acostumados à ideia de confiar sua ressurreição a uma traidora.

— Néctar? — perguntou Ten. Uma piada. Ela indicou com um gesto o grande tambor com água do rio e lhe serviu um copo. Sentaram-se. — Vi Razor hoje mais cedo.

— Ah, é?

Karou ficou desconfiada na hora. Razor era um Heth que ela trouxera de volta naquela manhã, do local onde os turíbulos ficavam guardados. Tinha sido uma ressureição complicada, um dos pedidos especiais de Thiago.

Ten assentiu.

— Estava perplexo com a cabeça dele.

— Vai se acostumar.

— Mas uma cabeça de leão, Karou? Em um Heth?

Como se Karou não soubesse que tipo de cabeça os Heth tinham. Eram terrivelmente assustadores, na verdade, com grandes olhos compostos e mandíbulas cortantes que lembravam garras de caranguejo. Como Brimstone tinha resolvido essa questão? Karou não tinha dentes de inseto em seu estoque, e, até onde sabia, Brimstone também nunca tivera nenhum.

— Thiago queria que eu o ressuscitasse. Foi o melhor que eu consegui assim, de uma hora para outra.

E já é mais do que ele merece, pensou ela. Karou não conhecia Razor, mas sentira uma personalidade sombria enquanto trabalhava. Cada alma deixava uma impressão única em sua mente, e a dele era... desagradável. Por que Thiago fizera dele uma prioridade, ela não sabia, tampouco havia perguntado, como não perguntara sobre os outros. Ela fazia seu trabalho, e o Lobo, o dele.

— É verdade que ele está bem mais bonito agora — reconheceu Ten.

— Não é? Estou esperando que ele venha me agradecer qualquer hora dessas.

— Ah, bem, não recolha suas garras — disse Ten.

Era uma expressão quimera que equivalia, em linhas gerais, a espere sentado, embora a necessidade implícita de autodefesa a fizesse soar mais ameaçadora. Bom conselho, pensou Karou.

Estava com a boca cheia quando Ten disse, casualmente:

— Thiago sugeriu que eu a ajudasse.

O cuscuz parecia massinha de modelar na língua de Karou. Ela não conseguiu responder, e se esforçou para engolir.

— Sabe — prosseguiu Ten —, é uma tarefa muito importante para uma pessoa só, não é?

Karou finalmente engoliu a massinha. Brimstone era um só, pensou, mas não disse nada. Ela sabia que essa comparação não a favorecia. Além do mais, Brimstone não trabalhava exatamente sozinho, era bom lembrar.

— Eu seria sua assistente. Como a mulher-naja, qual era o nome dela? — Ao ouvir essa displicente menção a Issa, Karou se retesou. Ten não percebeu, e não esperou pela resposta. — Eu poderia cuidar dos serviços menores, e você ficaria livre para a parte que só você pode fazer.

— Não — respondeu Karou, rispidamente. Você não é Issa. — Diga a Thiago que agradeço, mas...

— Ah. Acredito que a ideia dele era que você aceitasse.

Ora, mas é claro que era essa a ideia dele; Thiago sempre queria que todos aceitassem sua vontade e a cumprissem imediatamente. E ela precisava mesmo de ajuda. Mas Ten? Karou não podia suportar a ideia de ter a mulher-lobo sempre nos seus calcanhares, vigiando-a.

Havia algo de selvagem em Ten (na maioria dos soldados, na verdade) que Karou estava tendo dificuldade em ligar às lembranças que tinha de sua família quimera — será que eles sempre haviam sido assim e ela só não conseguia ver, na época? Houvera, por exemplo, a questão da árvore de arza doce, não muito depois que ela se juntara ao grupo. Queimada como todo o restante em Loramendi, a árvore já não era mais tão doce, e erguia-se imensa e esquelética como os ossos de uma grande mão estendendo-se em direção ao céu. Havia esferas queimadas balançando em seus galhos, e Karou não tinha entendido o que eram até ouvir alguns soldados falarem de usar “o fruto da arza” para praticar arco e flecha.

Ela nem pensara — idiota, idiota — antes de dizer:

— Ah, aquilo são frutas? São tão grandes.

O modo como olharam para ela. Não conseguia se lembrar disso sem sentir a vergonha arder em seu rosto. Ten é que respondera:

— São cabeças.

Karou empalidecera.

— Vocês vão usar cabeças como alvos?

Só conseguia pensar em uma coisa: Mas eles eram do nosso povo. Eram quimeras. E Ten retrucara:

— O que mais faríamos com elas?

Após um segundo de incredulidade, Karou respondera:

— Poderíamos enterrá-las.

E Ten replicara, com ardor violento:

— Prefiro vingá-los.

Era algo assustador de se dizer. Karou sentira um calafrio — e uma pequena centelha de admiração, tinha que admitir, mas aquilo não lhe saía da cabeça depois, e a admiração não perdurou. Por que não os dois? Enterrar os mortos e vingá-los. Era bárbaro deixar cadáveres espalhados por aí daquela maneira, e ela sabia que aquilo não era apenas seu lado humano falando.

Ela vivia um estranho choque de reações naqueles dias. As mais imediatas e mais fortes eram sempre as de Karou, mas as de Madrigal também faziam parte dela: seus dois eus, unindo-se com uma espécie esquisita de vibração. Não era propriamente desarmonia; Karou era Madrigal, mas suas reações eram influenciadas por sua vida humana, permeada pelos luxos da paz, e coisas que poderiam ser comuns para Madrigal ainda a perturbavam a princípio. Cabeças queimadas penduradas em uma árvore de arza doce? Mesmo se Madrigal não tivesse visto exatamente aquilo, havia testemunhado outros horrores, o bastante para que a imagem não a chocasse.

Durante a vida de Madrigal, porém, os quimeras enterravam seus mortos, se pudessem. Nem sempre podiam; incontáveis vezes eles colhiam as almas e deixavam os corpos no campo de batalha, mas só quando a necessidade ditava que assim o fizessem. Já aquilo era... brutal. Treinar pontaria com os mortos? Não era só o lado humano de Karou que estranhava aquilo. O que havia acontecido durante os últimos dezoito anos para que os quimeras abrissem mão de um atributo tão básico de civilização quanto os funerais?

Agora, inclinando-se para a frente, Ten disse a Karou:

— Thiago precisa de mais soldados, e rápido. É crucial.

— Atrasaria mais ainda as coisas se eu tivesse que lhe ensinar tudo.

— Com certeza tem alguma coisa que eu possa fazer.

Com certeza havia. Muitas coisas. Ela poderia fazer e moldar o incenso, limpar os dentes, pagar o dízimo. Mas alguma coisa incomodava Karou. Não Ten. Ela passara anos ligada diretamente ao Lobo Branco: integrando sua guarda pessoal, como parte de um bando que sempre se movia à sombra dele, dentro e fora das batalhas.

Ela estivera no bosque de réquiem.

— Um ferreiro seria mais útil — tentou Karou. — Para fazer os colares de dente com prata.

— Aegir está ocupado. Forjando armas.

Pelo seu tom, Ten estava sugerindo que prender dentes era algo abaixo da capacidade de um ferreiro.

— E o que eu estou forjando, joias? — rebateu Karou no mesmo tom.

Ela olhou Ten bem nos olhos, que eram castanho-dourados como os de um verdadeiro lobo, diferente dos de Thiago, que eram azul-claros, uma cor nunca vista nesse animal. Ele devia ser chamado é de Husky Siberiano Branco, pensou Karou, irritada.

— Aegir não pode ser dispensado.

A voz de Ten ficava mais tensa.

— Estou surpresa que Thiago possa dispensar você.

Quem vai pentear o cabelo dele?

— Ele considera esse trabalho muito importante.

Ten agora respondia de maneira dura e direta, e Karou começou a perceber que talvez não fosse vencer daquela vez, e também que seus argumentos contra a ajuda de Ten não eram muito sólidos. Conseguia entender o ponto de vista de Thiago; ela não era Brimstone, isso estava claro. O Lobo tentava organizar uma rebelião, e ainda havia um bom número de soldados que não podiam voar esperando sua vez de ir para o fosso, sem falar na avalanche de turíbulos em seu quarto, que mal tinha começado a diminuir.

E as patrulhas ainda não haviam retornado do primeiro ataque da rebelião.

Se algo tivesse acontecido a eles... Só de pensar nisso Karou já tinha vontade de cair no chão e chorar. Daqueles trinta soldados, metade era recém-formada — corpos de carne e osso arduamente moldados, como as feridas em seus braços ainda podiam provar.

Do restante, um deles era Ziri, o único quimera no grupo que — Karou tinha quase certeza — não havia comemorado sua execução.

Ziri.

Como Thiago dissera, ainda era cedo. Karou suspirou e massageou as têmporas, o que Ten interpretou como uma concordância, as mandíbulas exibindo uma versão lupina de sorriso.

— Ótimo — disse ela. — Começaremos depois do jantar.

O quê? Não. Karou tentava decidir se retomava sua argumentação quando, em sua visão periférica, notou uma enorme figura entrando na sala e parando abruptamente. Ela reconheceu a figura, mesmo pelo canto do olho. Mas é claro: tinha acabado de fazê-la.

Era Razor.


24

AMANTE DE ANJO

Toda a conversa no salão cessou. Cabeças se viraram em direção a Razor, que, parado na entrada, olhava direto para Karou.

Ela sentiu um aperto no estômago. Aquela era a pior parte, sempre. Alguns, como Amzallag, caminhavam até o fosso e acordavam sabendo onde e com quem estavam e tudo que acontecera em Eretz. E havia as almas dos turíbulos: os soldados que tinham morrido no cabo Armasin e nem sabiam que Loramendi tinha caído, muito menos que estavam em outro mundo.

Estes, sem exceção, olhavam para Karou estupidamente, sem reconhecê-la. Como poderiam? Uma garota de cabelo azul e sem asas nem chifres? Ela era uma estranha.

E, é claro, ela nunca ouvia o que era dito depois, quando os quimeras ficavam sabendo da verdade. Gostava de imaginar alguém falando a favor dela: Ela é uma de nós; é a ressurreicionista; ela trouxe você e todos nós de volta, e olhe: comida! Mas o mais provável seria que dissessem algo do tipo: Não temos escolha; precisamos dela. Ou ainda, o que em seus momentos mais sombrios ela imaginava ser a resposta: Não podemos matá-la, por mais que todos queiram. Pelo menos não por enquanto.

Ao que parecia, porém, ninguém tinha avisado isso a Razor.

— Você — rosnou ele.

E saltou.

Na mesma hora — mais rápido que Ten, que tropeçou — Karou estava de pé e longe da mesa. Razor aterrissou bem onde ela estivera sentada. A mesa cedeu sob seu peso com um forte crac, rachada no meio. O tambor d’água virou, entornou, atingiu o chão com o estrondo de um gongo, e vários quimeras se moveram, todos em um borrão, menos o Heth, que parecia pronto para a ação, focado. Cruel.

— Amante de anjo — disparou ele, e a vergonha ardeu em Karou como uma chama.

Era uma expressão de total degradação; em todas as línguas humanas que Karou sabia falar, não havia algo tão carregado de aversão e desprezo, nada capaz de transmitir tanto asco quanto aquela. E era assim tão ruim mesmo quando usada de forma figurada, apenas como uma calúnia.

Nunca, antes dela, tinha sido literal.

Razor agitou a cauda e deslizou para a frente. Era a única forma de descrever o movimento. Seu corpo era reptiliano — dragão-de-komodo e cobra —, e, mesmo sendo muito grande, ele se movia como o vento na grama.

Obra dela. Karou é que lhe dera aquela graça, aquela velocidade. É bom se lembrar disso, pensou, e pulou para longe. Também Karou era graciosa, e rápida. Ela desviou para trás. As facas de lua crescente estavam em suas mãos, e ela nem percebera que as havia pegado. A sua frente, o rosto de leão que antes parecia tão bonito no chão de seu quarto agora estava grotesco, desfigurado pelo ódio de Razor. Ele abriu a mandíbula, e a voz que saiu de lá era dissonante, amarga, um rugido angustiado.

— Você sabe o que perdi por sua causa?

Ela não sabia e não queria saber. Por sua causa, por sua causa. Queria tapar os ouvidos, mas suas mãos estavam ocupadas segurando as facas.

— Sinto muito — disse ela, sua voz soando tão frágil depois da dele, e nada convincente nem mesmo para seus próprios ouvidos.

Ten se aproximou e disse algo para ele em tom baixo e urgente; o que quer que tivesse sido, não fez efeito. Razor passou por ela. E por Bast, que não fez a menor menção de intervir. Tudo bem que ela era da metade do tamanho dele, mas pelo menos Amzallag podia tê-lo detido facilmente, só que parecia indeciso, olhando de um para o outro. Karou afastou-se de novo. Os outros ficaram só lá parados, e ela sentiu uma pontada de raiva no peito. Bundões ingratos, pensou, e sem querer achou graça. Ela e Zuzana costumavam chamar tudo e todos de bundões — crianças, pombos, frágeis senhoras que olhavam de cara feia para o cabelo azul de Karou —, e nunca deixara de ser engraçado. Bundões, fendas, orifícios. Agora, mesmo estando no caminho daquela criatura lagarto-leão de alma desagradável, Karou sentiu seu rosto se contrair pela mais improvável das expressões faciais: um sorriso.

Era uma arma tão cortante quanto suas lâminas de lua crescente. E, ao ver o movimento seguinte de Razor, ela se manteve firme, segurando as facas. Depois cerrou os dentes e correu uma lâmina curva com força contra a outra, gerando um som estridente de aço que chamou a atenção dele por um instante — uma pausa longa o bastante para Karou pensar: E agora? Terei que matá-lo? Será que consigo?

Sim.

E então: um borrão branco, e estava acabado. Thiago se colocou entre os dois, de costas para Karou, ordenando a Razor que se retirasse, e ela não precisou matar ninguém. O Heth obedeceu, sua cauda agitada derrubando cadeiras a cada passo que ele dava.

Lisseth e Nisk o interceptaram. Karou ficou lá parada, ofegante, as facas nas mãos, o sangue pulsando em seus braços, e por um instante ela se sentiu como Madrigal de novo — não a traidora, mas a guerreira.

Apenas por um instante.

— Leve-a de volta para o quarto — ordenou Thiago a Ten, como se Karou fosse uma doente mental que escapara ou algo parecido.

O sorriso dela desapareceu.

— Ainda não acabei de comer — disse ela.

— Pois parece que sim. — Ele olhou com tristeza para a mesa quebrada e a comida caída em volta. — Eu levo alguma coisa para você depois, lá em cima. Você não devia ter que passar por isso. — A voz dele era gentil, até demais. Ele se aproximou para perguntar baixinho: — Você está bem? — E com isso Karou teve vontade de arrancar o rosto dele a unhadas.

— Estou ótima. O que acha que eu sou?

— Acho que é nosso bem mais valioso. E que precisa me deixar protegê-la.

Ele tentou tocar seu braço, mas Karou se afastou com brusquidão. O Lobo ergueu as mãos em um gesto de rendição.

— Posso me proteger sozinha — disse ela, tentando recuperar a vibração de poder que tinha se apoderado dela por um breve momento. Sou Madrigal, disse a si mesma, mas ali, de frente para o Lobo Branco, só conseguiu pensar que Madrigal tinha sido uma vítima, e falhou em sua tentativa de se agarrar à sensação de poder. — Pense o que quiser, mas não sou indefesa.

Sua voz, porém, soava como se ela tentasse convencer tanto a si mesma quanto a ele. Sem pensar, ela passou os braços em volta da própria cintura em um gesto infantil de autodefesa. Ao se dar conta disso, soltou os braços na mesma hora, o que no entanto só fez com que parecesse nervosa.

Ele respondeu com brandura:

— Nunca falei que você era indefesa. Mas, Karou, se alguma coisa lhe acontecer, estaremos arruinados. Preciso de você a salvo. É só isso.

A salvo. Não do inimigo, mas de seu próprio povo — a quem dedicava toda a sua atenção, sua saúde, sua dor, dia após dia, noite após noite. Ela deu uma risada mordaz.

— Eles precisam de tempo — continuou Thiago. — Só isso. Vão acabar confiando em você. Como eu.

— Você confia em mim?

— É claro que sim, Karou. Ah, Karou. — Seu semblante agora era triste. — Achei que tivéssemos deixado tudo aquilo para trás. Nos tempos que vivemos agora não há lugar para pequenos ressentimentos. Precisamos concentrar toda a energia na causa.

Karou podia ter argumentado que sua execução não era exatamente um pequeno ressentimento, mas não fez isso, porque sabia que ele tinha razão. Precisavam mesmo concentrar toda a energia na causa, e ela odiava que Thiago precisasse lembrá-la disso, como se ela fosse uma colegial querendo aparecer. Mais ainda: odiava a insegurança que sentia, agora que a descarga de adrenalina estava indo embora. Por mais que se ressentisse de ter que sair dali por ordem dele, tudo o que queria era ir para a segurança e o isolamento de seu quarto, então guardou as facas de lua crescente nas bainhas e, tentando fingir que aquilo tinha sido ideia sua, deu meia-volta e saiu. Manteve a cabeça erguida, mas sabia, a cada passo, que não estava enganando ninguém.


25

INIMIGOS: FAVOR FORMAR FILA

Ten escoltou Karou até o quarto, e deve ter interpretado o silêncio dela como concordância, porque não parou de falar, oferecendo críticas não solicitadas sobre as últimas ressurreições, e foi pega completamente desprevenida quando, no alto da escada, Karou bateu a porta na sua cara e baixou a barra com força.

Após um instante de perplexidade, as batidas começaram.

— Karou! Eu tenho que ajudar você. Deixe-me entrar. Karou.

— Como eu amo você — sussurrou Karou, fazendo um carinho na barra que bloqueava a porta.

A voz de Ten se elevou com firmeza, repreendendo, bufando. Karou tirou o cinto e ignorou-a. Em cima da mesa havia um colar pela metade, mas ela não queria trabalhar, nem ter companhia — ou uma babá. Queria papel e lápis, para desenhar o olhar exato que vira no rosto de Razor enquanto ele avançava em sua direção, o V da mesa quebrada e o borrão em volta das figuras que não fizeram nada para ajudá-la. Desenhar sempre tinha sido sua forma de processar as coisas. Assim que passavam para o papel, tornavam-se propriedade sua, e assim Karou conseguia decidir que poder teriam sobre ela.

Karou pegou seu caderno de desenhos e o abriu com carinho. Ao ver, na margem interna, os resquícios irregulares de uma página arrancada, ela se lembrou, de forma tão vívida como se estivesse diante de seus olhos, do desenho de Akiva que ocupara aquela folha. Ele tinha dormido em sua casa. É claro que ela destruíra aquele desenho. Destruíra todos.

Se ao menos pudesse fazer o mesmo com as lembranças.

Amante de anjo.

Só de pensar nessas palavras já sentia vergonha. Como pudera ter feito aquilo: amar Akiva — ou melhor, acreditar que o amara? Porque agora, fosse lá o que tivesse havido entre os dois, estava coberto por aquele véu de imundície — amante de anjo — que não se parecia em nada com amor. Desejo, talvez. Juventude, rebeldia, autodestruição, teimosia. Ela nem chegara a conhecê-lo direito; como pudera achar que era amor? Mas o que quer que tivesse sido... poderia ser perdoado algum dia?

Quantos quimeras Karou ainda teria que ressuscitar para que a aceitassem?

Todos. Esse era o número. Cada um daqueles que tinham morrido por sua causa. Centenas de milhares. Mais.

O que, é claro, era impossível. Aquelas almas tinham evanescido, inclusive as que mais amava. Estavam perdidas. Era isso, então? Não havia possibilidade de redenção?

Aquela era sua vida, e era também seu pesadelo, e às vezes ela só conseguia suportar se dissesse a si mesma que tudo chegaria a um fim. Se era mesmo um pesadelo, ela acordaria e Brimstone estaria vivo; todos estariam vivos. E se não fosse um pesadelo? Bem, então terminaria de uma das várias formas que as vidas acabam. Mais cedo ou mais tarde.

Ela continuou a desenhar, capturando o rosnado de Razor com incrível vividez.

Quer mesmo saber o que eu ando fazendo, Zuzana? Então lá vai. Estou presa em um castelo de areia com monstros mortos, forçada a ressuscitá-los um a um, enquanto tento evitar ser devorada.

Parecia a propaganda de um game show japonês. Karou teve que rir de novo, mesmo que por apenas um segundo, porque Ten ouviu do outro lado da porta e soltou um leve rosnado. Que ótimo. A mulher-lobo provavelmente achou que Karou estava rindo dela.

Inimigos: favor formar fila, escreveu Karou embaixo de seu desenho.

Ah, Zuze.

Ela lançou um olhar para as bandejas de dentes e as xingou em silêncio por estarem tão cheias. Tinha sido eficiente demais em sua viagem de busca e coleta. Ainda levaria algum tempo até que pudesse sair de novo, alegando a necessidade de conseguir mais dentes. No entanto, quanto mais rápido trabalhasse, mais rápido essa hora chegaria, e então faria mais do que mandar um e-mail para Zuzana. Iria vê-la. E se esconderia no Sabor de Veneno com Zuzana e Mik, tomando chá e comendo goulash, e contaria tudo para eles, e ficaria feliz por ter amigos que ficassem indignados com sua situação.

Eles concordariam com ela que aqueles Heth ingratos mereciam não majestosas cabeças de leão, e sim uma de hamster da próxima vez, ou quem sabe a de um cãozinho pequinês.

Ou melhor ainda, imaginou Zuzana dizendo com seu jeito ácido, que fossem todos para o inferno.

Não estou fazendo isso por eles, responderia Karou. Era um argumento treinado, a que ela precisava se agarrar. É por Brimstone. E por todos os quimeras que os anjos ainda não conseguiram matar. Bastava se lembrar de Loramendi para sentir o peso de sua responsabilidade. Não havia mais ninguém além dela que pudesse fazer aquele trabalho.

Lá fora soou o alerta da sentinela, um único assovio, alto e curto. Karou se levantou de um pulo e chegou à janela com um passo largo. Uma patrulha estava voltando, a primeira das cinco. Sem piscar, ela inclinou o corpo para fora e observou o céu. Ali: vinham de onde pairava o portal, alto e despercebido, acima das montanhas. Ainda estavam muito distantes para que ela pudesse identificar as silhuetas e saber que grupo era, mas, estreitando os olhos, Karou conseguiu ver que eram seis. Uma razão para se alegrar; pelo menos uma equipe estava intacta.

Lá vinham eles, cada vez mais perto, até que ela o viu: alto e empertigado, os chifres como um par de lanças. Ziri. Sentiu um nó, que ela nem sabia que existia, desaparecer de seu peito. Ziri estava bem. Ela agora conseguia identificar os outros, que em pouco tempo já estavam sobrevoando a casbá e aterrissando no pátio interno. Metade dos guerreiros voava com asas criadas por ela, nenhum igual a outro, tanto em tamanho quanto em formato, mas todos representando uma ameaça igual: armados para matar, os couros escurecidos de sangue e cinzas. Ficou feliz em ver Balieros também, mas seu alívio era por Ziri.

Ziri era um Kirin; era da família.

Quando Karou olhava para ele, suas lembranças da vida como Madrigal se reavivavam, e ela pensou nos homens de sua tribo, que não via fazia muito tempo. Tinha apenas sete anos quando os anjos a deixaram órfã. Passara o dia fora de casa, uma criança livre em um mundo selvagem, e voltara para enfrentar o resultado de uma incursão escravagista e o fim da vida tal qual ela conhecia. Morte e silêncio, sangue e ausência, e, bem no fundo das cavernas, aninhados, um punhado de idosos que tinha conseguido salvar os menores bebês.

Ziri era um desses bebês, pequeno e novinho como um bebê raposa, ali com os olhos ainda fechados. Karou tinha algumas lembranças dele em Loramendi, tempos depois: Ziri a seguia para todo lado, sempre com o rosto vermelho — sua irmã de criação, Chiro, a provocava dizendo que ele tinha uma queda por ela. “Sua pequena sombra Kirin”, era como ela o chamava.

Ela sentia muita pena dele, um órfão como ela mas sem nenhuma lembrança de seu lar ou de seu povo a que se agarrar. Haviam restado alguns anciões Kirin, e uns poucos outros órfãos da idade dele, mas Madrigal era a única Kirin adulta que ele já vira.

Engraçado que agora tudo tivesse mudado: era ela quem olhava para ele e via o que tinha perdido. Ele era adulto agora, e alto, mesmo sem contar os chifres de antílope, que lhe acrescentavam vários centímetros. Suas pernas humanas se estreitavam, transformando-se em membros de antílopes, como as dela um dia tinham sido, e, com suas vastas asas de morcego, conferiam-lhe o mesmo caminhar leve de todos os Kirin — como se a terra sob seus pés estivesse ali por mero acaso e ele pudesse levantar voo a qualquer instante, erguendo-se quilômetros acima de tudo aquilo.

Só que não havia leveza nele agora. Seu caminhar era pesado, seu rosto, amargo. Enquanto a patrulha entrava em formação para esperar seu general, ele foi o único a levantar o olhar até a janela de Karou. Ela ergueu a mão discretamente, acenando para ele, o braço machucado gritando de dor com aquele simples gesto, que... ele não retribuiu. Ziri olhou para baixo novamente como se ela não estivesse lá.

Magoada, Karou baixou a mão.

De onde eles estavam vindo? O que tinham visto? O que tinham feito?

Desça e descubra, ouviu ela em um sussurro vindo do fundo de sua mente, mas ignorou a sugestão. O que quer que tivesse acontecido na paisagem cheia de cinzas e no mundo coberto de sangue pela guerra aonde suas criações tinham ido para cometer violências, não era da sua conta. Ela conjurava os corpos; e só.

O que mais poderia fazer?


26

ESTRAGOS TERRÍVEIS

O Lobo estava na janela logo abaixo da de Karou. Assim que Ziri ergueu os olhos, viu um vulto branco e logo abaixou a cabeça. Mal deu tempo de registrar o olhar quase esperançoso no rosto dela enquanto levantava a mão para acenar para ele, hesitante. Solitária.

E então ele evitou seu olhar.

O Lobo o orientara a não manter nenhum contato com ela. Estava se dirigindo a todos quando dissera isso, mas Ziri tivera a sensação de que aqueles olhos claros tinham se demorado mais nele, e que Thiago o vigiava com mais atenção. Por ele ser Kirin? Será que o Lobo achava que somente isso já seria suficiente para criar uma ligação entre os dois, ou será que se lembrava de Ziri quando criança? Do baile do Comandante?

Da execução.

Ele tentara salvá-la. Seria engraçado se não tivesse sido patético — como ele se agachara no espaço apertado sob a arquibancada dos torneios, reunindo coragem, segurando suas espadas de treinamento, sem fio, como se bastassem para resgatá-la. As arquibancadas tinham sido montadas na ágora para que todos pudessem assistir melhor à morte dela; era um espetáculo. Madrigal, tão aprumada e silenciosa, tão bonita, tinha feito a multidão, que batia os pés com estrondo, parecer um bando de animais, e ele, um garoto magro de doze anos, pensara que poderia irromper pelo cadafalso e... e o quê? Soltar suas asas, cortar suas algemas? A cidade era uma gaiola; ela não teria para onde ir.

Não chegou a fazer diferença. Um soldado o acertou com o punho da espada antes mesmo que ele pisasse na plataforma. Madrigal nunca nem viu seu tolo gesto de heroísmo. Os olhos dela nunca deixaram os do amante.

Mas isso tudo acontecera havia muito tempo. Ziri não entendia a traição dela na época, aonde aquilo poderia levar. Aonde tinha levado. Mas ele já não era mais um garotinho apaixonado, e Karou não era nada para ele.

Então por que seus olhos eram atraídos para sua janela? Para ela, nas raras ocasiões em que ela descia?

Seria pena? Só de olhar dava para ver sua imensa solidão. Nos primeiros dias, em Eretz, Karou estava pálida, trêmula, muda — claramente em choque. Foi mais difícil, na ocasião, não procurá-la, não lhe falar nem mesmo uma só palavra. E ela devia ter notado — que algo dentro dele o impelia a tentar aliviar seu pesar, sua solidão, de forma que agora ela o procurava com aquele olhar de quase esperança sempre que o via, como se ele pudesse ser um amigo.

E ele se afastava. Thiago tinha sido claro: os rebeldes precisavam de Karou, mas não podiam cometer o erro de se permitir confiar. Ela era traiçoeira e precisava ser conduzida com muito cuidado — por ele.

E ali estava o Lobo agora, tendo descido para cumprimentar a patrulha.

— Que bom ver vocês.

Thiago vinha caminhando a passos largos como o senhor da mansão. Senhor das ruínas, melhor dizendo, mas mesmo que aquele castelo de terra fosse um declínio para o grande Lobo Branco, ele o tomara para si como a qualquer outra coisa em sua vida — ou melhor, como tomava tudo: como propriedade sua para fazer o que bem entendesse até conseguir outra coisa melhor. Ele dizia que antes que tudo terminasse teria o trono de Astrae e faria dos serafins seus escravos, e, por mais ridícula que tal afirmação pudesse parecer à luz das circunstâncias, Ziri nunca subestimaria o Lobo.

Thiago era não só um líder, ele sabia valorizar seus soldados. Suas tropas o veneravam e fariam qualquer coisa por ele. O Lobo comia, bebia e respirava batalha; estava em seu hábitat natural quando em barracas cheias de mapas revendo estratégias com seus capitães ou, melhor ainda, lançando-se para cima de anjos com os dentes à mostra, cobertos de sangue.

— Imprudente! — espumara o Comandante uma vez, furioso quando seu filho, que havia sido morto, voltou em um novo corpo. — Um general não precisa morrer no front da batalha!

Mas Thiago nunca fora de ficar para trás, em segurança, enquanto mandava outros na frente para morrer. Ele liderava, e Ziri sabia em primeira mão como era destemido e impetuoso no campo de batalha. Isso era o que o tornava grande.

Agora, no entanto, que a existência dos quimeras pendia por um fio, parecia que ele finalmente tinha acreditado nas palavras do pai. Tinha mandado as patrulhas para Eretz mas ficado para trás — com clara relutância e até má vontade, mais parecendo, para Ziri, os sentinelas que eram obrigados a ficar de serviço durante as festas. Era muito difícil ficar de fora. Durante a espera, ele andava de um lado para o outro, impaciente como um lobo, voraz, com inveja, e agora voltara à vida com o retorno dos soldados.

Apertou o braço de um por um até por fim parar em frente a Balieros.

— Espero — disse ele, seu sorriso cruel indicando que ele duvidava do contrário — que vocês tenham causado estragos terríveis.

Estragos terríveis.

A prova disso cobria todos eles, em manchas e respingos. Sangue: seco, em um tom escuro e opaco de marrom, preto nos acúmulos dos vincos das manoplas, botas e cascos. Toda a extensão das lâminas de lua crescente de Ziri estava revestida de sangue; ele mal podia esperar para limpá-las. Mutilar os mortos: talvez fosse uma questão de orgulho, aqueles sorrisos entalhados que tinham sido a marca do Comandante muito tempo antes. Ziri só sabia que se sentia sujo, que queria se banhar no rio. Até em seus chifres havia crostas de sangue, por ter empalado um anjo que o atacara enquanto ele lutava com outro. A patrulha tinha mesmo causado estragos terríveis.

Mas também tinha protegido fazendeiros Caprina de um ataque inimigo, libertado e armado uma caravana de escravos, deixando-os soltos para espalharem a notícia do que estava por vir. Mas Thiago não perguntou sobre nada disso. Ao ouvi-lo, tinha-se a impressão de que ele parecia não se lembrar de que nem todas as criaturas no mundo eram soldados — inimigos ou aliados —, de que nem tudo se resumia a matar.

— Contem — pediu ele, ávido. — Quero saber qual foi a expressão nos rostos deles. Quero saber como foram os gritos.


27

GRANDE E SELVAGEM CORAÇÃO

Por volta do meio-dia, o garoto Dashnag, Rath, ainda carregando Sarazal, descia um despenhadeiro escarpado e coberto de árvores em direção a uma ravina, seguido por Sveva. Era tão estreito que as copas das árvores pareciam contínuas, e Sveva pensou, ao olhar para o alto, que os galhos pálidos das árvores donzela que se arqueavam, encontrando-se no meio, pareciam os braços dados de moças dançando. A luz do sol conseguia ultrapassá-los, às vezes como lanças brilhantes, outras como uma renda matizada em inconstantes tons de verde e dourado. Criaturinhas aladas voavam e zuniam naquela pequena ravina que era o mundo inteiro deles, e lá de baixo vinha o ruído de um córrego, suave e ligeiro como uma música.

Tudo vai queimar, pensou ela, desviando de vinhas e descendo atrás de Rath.

O fogo ainda ardia atrás deles. Como o vento que vinha do sul carregava a fumaça para longe, eles não sentiam o cheiro, mas tinham subido pequenas elevações no terreno várias vezes e visto que o céu continuava escuro.

Como os anjos podiam fazer aquilo? Prender ou matar alguns quimeras era tão importante assim a ponto de destruir a terra inteira? Não dava nem para entender por que eles a queriam, se só pretendiam destruí-la.

Por que não nos deixam em paz?, ela quis gritar, mas ficou quieta. Sabia que era um pensamento infantil, que as guerras e ódios do mundo eram grandes demais para entender, e que ela não era mais importante no esquema das coisas do que as mariposas e libélulas ali voando nos raios de luz.

Mas eu sou importante, insistia para si mesma. Assim como Sarazal, e as mariposas e libélulas, e os furtivos skotes, e as flores tão pequenas e perfeitas, e até mesmo os minúsculos skinwights mordedores, que afinal só estavam tentando sobreviver.

E Rath também era importante, mesmo com aquele seu hálito de quem se alimentou a vida inteira de carne e sangue e ossos.

O garoto as estava ajudando. No momento em que Rath pegara Sarazal para carregá-la, Sveva não chegara a pensar a sério que ele a levaria para longe e faria dela sua refeição, mas era difícil não sentir medo quando seu coração disparava só de vê-lo. Os Dashnag comiam carne. Essa era a natureza deles, da mesma forma que os skinwights eram skinwights, mas isso não queria dizer que tinha que gostar deles. Ou dele.

— Não comemos os Dama — dissera ele, sem olhar para Sveva, depois que ela o alcançara, o que aliás tinha sido fácil, afinal ela era bem mais rápida, ainda mais com ele carregando o peso de Sarazal. — Nem nenhuma das outras feras superiores. Como tenho certeza de que você sabe.

Sveva sabia que supostamente era verdade, mas era difícil não ficar desconfiada.

— Nem mesmo se estiverem com muita fome? — perguntara ela, cética e, por alguma estranha razão, querendo pensar o pior dele.

— Eu estou com muita fome, e vocês continuam vivas.

E foi só. Ele então seguiu em frente, e Sveva não teve como continuar com medo, porque Sarazal dormia com a cabeça no ombro dele, e Rath permanecia ereto, segurando-a, quando teria sido mais fácil deixá-la para trás e descer muito mais rápido com o galope veloz que os Dashnag usavam para caçar suas presas. Mas ele não fez isso.

Rath as trouxera até ali, e depois de descerem um bom pedaço da ravina, Sveva ouvia o que ele tinha ouvido e sentia o cheiro do que ele já tinha notado vários quilômetros antes com seus apurados sentidos de predador: os Caprina.

Os Caprina? Teria sido por isso que ele havia seguido na direção leste? Para achar a trilha daqueles lentos criadores de gado — que, a julgar pelo cheiro, tinham mantido todos os seus animais?

Rath parou na base do despenhadeiro e, quando Sveva chegou ao seu lado, disse:

— Acho que são da aldeia perto do aqueduto. Você deve lembrar.

Como se ela pudesse esquecer o lugar onde os soldados serafins tinham sido pendurados com seus sorrisos vermelhos do Comandante. Ela jamais se esqueceria daquilo enquanto vivesse, o horror misturado à esperança de salvação. Como não tinham visto ninguém na aldeia, ela concluíra que seus habitantes estivessem mortos. Ficou feliz, então, ao saber que não, mas não entendia por que Rath os seguia.

— Os Caprina são lentos — disse ela.

— Então vão precisar de ajuda — replicou Rath.

Sveva sentiu o rosto corar de vergonha. Ela só vinha pensando na própria fuga.

— Sem contar que talvez tenham um curandeiro — acrescentou Rath, olhando para Sarazal.

Ela repousava no peito dele, de olhos ainda fechados, a perna ferida aninhada com cuidado na dobra do braço de Rath. Era uma visão tão incongruente, o predador aninhando a presa, que Sveva só conseguiu ficar olhando e sentir que tinha atingido o fundo do pedregoso poço da própria superficialidade.

Será que ela sabia alguma coisa dessa vida?

* * *

O lugar era imenso. Akiva tinha a impressão de que poderia subir cada vez mais alto no ar e mesmo assim continuaria vendo a terra se estender em todas as direções, infinita e verde, para todo o sempre. Mas sabia que não era bem assim. A leste, o terreno se elevava e formava extensas colinas, baixas e rochosas, para então se transformar em um planalto desértico que se podia percorrer por dias ou até semanas, uma terra vermelha com plantas espinhentas onde besouros venenosos grandes como escudos escavavam esconderijos e passavam meses ou anos enterrados, até uma presa passar a seu alcance. Havia rumores de que alguns nômades viviam perto daquelas ilhas do céu — como os Sab, com suas cabeça de chacal —, mas as patrulhas serafins ou nunca haviam encontrado nenhum sinal de vida ali, ou simplesmente desapareceram na região, nunca retornando para relatar nada.

A oeste ficava a Serra do Mar, e, mais além, a Costa Secreta, onde havia várias aldeias litorâneas, e lar de povos que podiam viver tanto dentro quanto fora d’água, e que sumiam, rápidos como peixes, assim que percebiam a presença do inimigo, retirando-se para seus refúgios profundos e escondidos até o perigo passar.

E, ao sul, ficavam as fabulosas Terras Distantes, as montanhas mais altas de Eretz e também as mais amplas, cobrindo cerca do triplo da área de qualquer outra cadeia de montanhas no mundo. Formavam um incrível muro cinzento de baluartes e ameias naturais, desfiladeiros crivados de rios que perfuravam o coração da rocha e surgiam de novo, e encostas cujas milhares de cachoeiras as faziam cintilar. Dizia-se que havia passagens — muitas ravinas e túneis labirínticos — que levavam a terras verdejantes do outro lado, impossíveis de serem atravessadas sem ter como guia alguém das tribos nativas, criaturas com pele de rã que viviam quase o tempo todo na escuridão. Nos pontos mais altos, formações de gelo a distância pareciam cidades de cristal, mas de perto via-se que eram desolados labirintos ventosos, que apenas os caça-tempestades que lá faziam seus ninhos conseguiam atravessar, colocando seus imensos ovos e enfrentando ventanias que lançariam qualquer outra criatura para a morte em um piscar de olhos.

Essas eram as fronteiras naturais da região sul que os serafins tinham, muito tempo antes, tentado conquistar, e a terra verdejante que Akiva via agora lá embaixo era seu grande e selvagem coração, impossível de se dominar de tão gigantesca, nem mesmo com todos os soldados dos exércitos do império. Eles podiam, e iriam, incendiar aldeias e campos, mas ali havia mais quimeras nômades — rápidos e elusivos — do que fazendeiros, e os serafins não podiam queimar tudo, mesmo que quisessem, o que, apesar do que parecesse, com aquelas nuvens de fumaça escura, não era sua intenção.

O fogo era apenas para encurralar os fugitivos nas direções sul e leste, onde o arvoredo era mais esparso e os riachos desembocavam no grande rio Kir. Talvez ali eles pudessem fazê-los sair. E se conseguissem?

Akiva preferia que isso não acontecesse. Na verdade, fez mais do que só querer: usou todas as habilidades de rastreador para levar o grupo na direção errada. Quando achava que os quimeras podiam estar em um lugar — onde um espaço entre as copas das árvores indicava que poderia haver um riacho, por exemplo —, ele procurava levar o grupo para o outro lado, e, como ele era o Ruína das Feras, ninguém o questionava. Exceto talvez Hazael, e mesmo assim só com o olhar.

Liraz não estava com eles; tinha sido designada para outra equipe. Akiva não pôde deixar de se perguntar, ao longo do dia, com que fervor sua irmã cumpria as ordens.

— Então, o que acha? — perguntou Hazael de repente.

Já estava anoitecendo, e eles não tinham descoberto nenhum escravo liberto ou aldeão.

— Sobre o quê?

— Sobre quem está por trás desses ataques.

O que ele achava? Não sabia. Durante o dia todo Akiva travara uma guerra com a esperança — tentava não se permitir ter esperança, em parte porque era tão errado sentir isso baseado em um massacre, e em parte por simples medo de que fosse em vão. Haveria outro ressurreicionista? Ou não?

— Bem, não foram fantasmas, com certeza — disse, optando pela resposta mais segura.

— Não, provavelmente não — concordou Hazael. — Mas é curioso. Nenhum sangue nas lâminas dos nossos soldados, nenhuma pista que nos leve àqueles que escaparam, e cinco ataques em uma única noite: então quantos eram no total? Eles devem ser fortes, para terem conseguido fazer o que fizeram, e provavelmente têm asas, pois só assim poderiam ir e vir sem deixar rastro, e acho também que têm hamsás, ou nossos soldados teriam conseguido acertar nem que fossem alguns golpes. Isso foi só um show de abertura. — Era uma análise estudada; Akiva já pensara tudo aquilo. Hazael olhou para ele demoradamente. — Com o que estamos lidando, Akiva?

Por fim, ele teve que dizer:

— Espectros. Só pode ser.

— Outro ressurreicionista?

Akiva hesitou.

— Talvez.

Será que Hazael sabia o que significava para o irmão se de fato houvesse outro ressurreicionista? Seria ele capaz de pressentir sua esperança de que Karou pudesse reviver? E o que pensaria dessa sua esperança? Será que o perdão de Hazael dependia de Karou estar morta, como se a loucura de Akiva pudesse ter ficado no passado, algo a ser superado para que pudessem seguir em frente e fazer tudo voltar a ser como era antes?

Mas isso não era mais possível para Akiva. O que era possível para ele, afinal?

— Ali! — disse a líder da patrulha, despertando-o de seus pensamentos.

Kala era uma tenente da Segunda Legião, de longe a maior das forças do império, às vezes chamada de exército geral. Ela apontava para uma ravina com árvores não muito densas, onde, como Akiva observou, um pequeno movimento gerou outro, e outro, e então ele viu vários animais correndo. Uma movimentação de rebanho. Os Caprina. Ficou tenso, e seu primeiro impulso foi de raiva: Que idiotice, em meio a essa vasta terra selvagem, eles se deixarem ser vistos.

Era tarde demais para desviar a atenção dos soldados; não havia nada que ele pudesse fazer a não ser seguir Kala, que liderava a equipe terreno abaixo em direção às árvores. Ela estava alerta para uma possível emboscada, e fez sinal para que Akiva e Hazael fossem para o lado oposto da ravina. Os dois seguiram para lá, sem tirar os olhos do espaço aberto entre as copas das árvores, esperando ter uma boa visão. Não conseguiram — somente vislumbres de lã e de um caminhar lento.

Akiva segurava suas espadas contrariado. Ele fora treinado de forma bastante clara. Levante uma arma e você se torna um instrumento, com um propósito tão claro quanto o da própria arma: encontrar artérias e cortá-las, encontrar membros e decepá-los; tomar o que está vivo e entregá-lo à morte. Não havia outra razão para se empunhar uma arma, nenhuma outra razão para ser uma.

Ele não queria mais ser uma arma. Ah, ele podia desertar, podia desaparecer naquele instante mesmo. Não precisava fazer parte daquilo. Mas não era suficiente que ele deixasse de matar quimeras. Um dia ousara sonhar com muito mais do que isso.

Ele e Hazael desceram junto com os outros, as árvores passando sob eles como um sussurro verdejante. O que soava em sua mente era uma voz que ele ouvira uma única vez: É a vida a única capaz de crescer e preencher mundos. Ou temos a vida como mestre, ou a morte. Quando Brimstone dissera essas palavras, não significaram nada para Akiva. Agora ele entendia. Mas como pode um soldado mudar de mestre?

Como alguém que empunhava duas espadas podia ter esperanças de evitar que sangue fosse derramado?


28

O PIOR TIPO DE SILÊNCIO

Havia tantos tipos diferentes de silêncio, pensou Sveva, apertando o rosto no ombro de Rath e tentando não respirar. Mas aquele era o pior. Era um silêncio do tipo “faça um barulho sequer e morra”, e, embora ela nunca tivesse passado por aquela experiência antes, percebeu instintivamente que aquele silêncio ficava mais carregado quanto maior fosse o número de pessoas sob o compromisso de mantê-lo. Era até possível confiar que você conseguiria ficar quieto, mas trinta e tantos estranhos?

Com bebês?

Estavam escondidos embaixo de uma caverna feita pela terra escavada em estações de cheia pelo riacho que passava na frente deles, salpicando seus cascos — e as imensas patas de Rath —, o burburinho da água cobrindo pelo menos alguns sons mais baixos, como choramingos e fungadas. Aliás, Sveva notou que não ouvia nada disso. Com os olhos fechados, poderia até achar que estava sozinha, se não fosse pelo calor de Rath, de um lado, e de Nur, do outro. A mãe Caprina segurava seu bebê junto ao corpo. Sveva a todo momento esperava que Lell fosse começar a chorar, mas a criança continuava quieta. O silêncio, pensou ela, era incrível: algo perfeito e frágil. Assim como vidro, caso se quebrasse nunca mais voltaria a ser igual.

Se Lell chorasse, ou se o casco de alguém derrapasse na margem, ou se algum som se elevasse acima do inocente murmúrio da água, todos morreriam.

E mesmo se a assustada criança dentro dela quisesse culpar Rath por estarem ali, não conseguiria. Ah, mas não por falta de vontade. Era bom ter alguém para culpar, mas o problema com Sveva e a culpa era que, se ela fosse tentar chegar à origem de tudo, só veria a si própria, correndo pelo vale à frente de Sarazal, o vento no cabelo, sem dar ouvidos aos pedidos da irmã para que voltassem. A culpa daquilo tudo não era de Rath. E mais: ela e a irmã provavelmente já estariam mortas se não fosse por ele. E os Caprina, bem, eles estariam morrendo agora mesmo. Naquele exato momento.

Como era terrível e estranho saber disso.

Se Rath não tivesse sentido o cheiro dos Caprina e os seguido, os alcançado e se juntado a eles, então aquele silêncio carregado não existiria; aquele mesmo ar estaria sendo cortado por gritos e balidos, e Lell, aquele doce e pequeno embrulhinho, estaria berrando, assim como todos os outros, em vez dos carneiros.

* * *

— Carneiros! — exclamou Hazael, rindo, e Akiva teve a impressão de que seu riso era de alívio.

Ele então viu que na ravina só havia carneiros, com sua lã densa e seus chifres curvos, nenhum Caprina, nenhum quimera sequer.

— Você e você. — Kala apontou para dois soldados. — Matem-nos. Todos os outros... — Ela se virou em um meio círculo, examinando a equipe. Pairava no ar, as asas largas a ponto de roçar as árvores inclinadas nas margens da ravina e soltar faíscas. — Vão e encontrem os donos.

* * *

Ao ouvir os berros dos carneiros, Sveva escondeu ainda mais o rosto no ombro de Rath. Ele havia convencido os Caprina a afugentar seu rebanho e voltar ao longo do leito do riacho, para saírem da ravina e encontrarem outra — em que estavam agora —, em busca de abrigo. Todos juntos, eles eram muitos, e os carneiros eram muito barulhentos, ingovernáveis demais. Não podiam arriscar suas vidas ficando com os animais. Bem que Rath tinha dito que o rebanho seria visto.

Agora os carneiros estavam morrendo.

Sveva agarrou com força a mão da irmã: estava frouxa e mole. Os berros dos carneiros eram terríveis, mesmo a distância, mas não duraram muito. Quando finalmente diminuíram de intensidade, ela imaginou sentir os anjos circulando no céu acima de suas cabeças. Anjos, caçando. E eram eles a caça. Ela apertou o punho de sua faca roubada, mas isso só a fez se sentir ainda mais ciente da própria pequenez, com aquela arma feita para os punhos grandes e brutos dos anjos.

Talvez ela pudesse usá-la para acertar um anjo. Qual seria a sensação? Ah, seu ódio fervia; ela quase ansiava por essa chance. Sempre odiara anjos, é claro, mas de uma maneira vaga e distante. Eles eram os monstros das histórias de ninar. Sveva nunca tinha sequer visto um até ser capturada. Por séculos aquela terra tinha sido segura — os exércitos do Comandante a protegiam. Que azar viver em uma época de insegurança! Agora, de repente, os serafins eram reais: algozes ardilosos, bonitos de uma maneira que tornava a beleza algo terrível.

E por outro lado havia Rath, que era bonito de um jeito que o tornava assustador... Bem, se não bonito, então pelo menos majestoso. Imponente. Que estranho se sentir confortada pela presença de um carnívoro, mas ela sentia. Mais uma vez, Sveva notou que abria mão de um pouco de sua superficialidade; desde que fora levada como escrava, seu mundo se ampliara à força. Ela vira serafins e espectros; tinha visto mortos e sentido seu cheiro, e naquele mesmo dia, só naquele dia, tinha aprendido mais sobre os povos do que em todos os seus catorze anos de vida. Primeiro Rath, depois os Caprina: criadores de carneiros que ela antes chamava de feras criadoras de gado e, se lhe fosse dada a chance de escolha, teria deixado que se virassem sozinhos. Nur fizera um cataplasma para Sarazal e lhe dera especiarias misturadas com água, na tentativa de fazer diminuir a febre. Eles tinham lhe dado comida, e deixado que carregasse por um tempo a pequena Lell, com seu suave cheiro de grama, uma perna de cada lado do tronco de Sveva, os braços em volta de sua cintura, onde, até poucos dias antes, havia um grande grilhão preto.

Sveva mantinha os olhos fechados. Seu rosto estava apoiado no ombro de Rath, seu quadril imprensado contra o de Nur, e o silêncio os mantinha juntos. Era o pior tipo de silêncio, mas a proximidade era boa. Eles não eram seu povo, mas... eram, e talvez isso significasse que qualquer um podia fazer parte de qualquer povo, o que era um bom pensamento a se ter no momento em que o mundo parecia desabar. Sveva se perguntou se alguma dia voltaria para casa, para seus pais, e contar.

Tentou rezar, mas, tendo passado toda a sua vida rezando apenas à noite, tinha a sensação de que as luas não eram grandes protetoras quando os anjos decidiam caçar de dia.

No fim, acabou não sendo Lell quem os entregou, mas Sarazal.

Ela acordou de repente, sua mão mole subitamente ganhando força e se soltando da de Sveva. A febre tinha baixado; o cataplasma e os temperos de Nur haviam funcionado. Os grandes olhos escuros de Sarazal, quando se abriram, estavam bem mais vivos do que quando Sveva os vira pela última vez. Só que... ao se abrirem, a primeira coisa que viram foi o rosto assustador de Rath, a poucos centímetros do dela.

Então Sarazal abriu a boca e gritou.


29

OS DEMÔNIOS AINDA VÃO ESTAR POR AÍ DE MANHÃ

— Escute essa — disse Zuzana. — Mulher-demônio vista no sul da Itália...

— Cabelo azul? — perguntou Mik, a voz abafada pelo travesseiro que lhe cobria o rosto. Ele estava tentando dormir.

— Rosa, na verdade. Acho que as legiões de Satã estão explorando novas palhetas de cores. — Zuzana estava sentada na cama, lendo as notícias em seu laptop. — Então: ela escalou a lateral de uma catedral e sibilou, como uma serpente, que foi quando a testemunha conseguiu ver, a algumas centenas de metros, que a língua dela era bifurcada.

— Que olhos, hein.

— É. — Ela bufou, inflando as bochechas, e voltou para a página do Google. — Bando de idiotas.

Mik espiou por baixo do travesseiro.

— Está claro aí fora — disse ele. — Por que não vem para o meu covil?

— Covil. Nossa, que covil incrível o seu.

— É do tamanho exato para a minha cabeça.

— Claro, claro — disse Zuzana vagamente. — Achei uma notícia de ontem. É de, hã, Bakersfield, Califórnia. Cabelo azul, casaco legal, flutuando no ar. Isso! Achamos Karou! Só não sei o que ela estaria fazendo em Bakersfield, Califórnia, perseguindo criancinhas.

Ela bufou e voltou para o Google.

O mundo, ao que parecia, estava infestado de demônios de cabelo azul. Os mesmos fóruns de discussão que falavam de anjos entre nós também se mantinham informados sobre aquele demônio. Por uma estranha coincidência — claro —, desde o confronto amplamente televisionado na ponte Carlos, os demônios tendiam a usar trench coats pretos, ter cabelo azul e tatuagens de olhos nas palmas das mãos.

Karou era a personificação do apocalipse, o que para Zuzana parecia ser o melhor tipo de má fama. Karou saíra até na capa da revista Time, com a manchete: “Será esse o rosto do demônio?” Havia uma foto deslumbrante que alguém tirara no dia em que Karou enfrentara os anjos: cabelo ao vento, mostrando os hamsás com os braços estendidos, um olhar concentrado com um quê de... prazer selvagem. Zuzana se lembrava do prazer selvagem. Tinha sido um pouco estranho. A Time tentara lhe entrevistar para a matéria, mas, estranhamente, decidira não publicar sua declaração cheia de palavrões. Já Kaz, obviamente, não os desapontara.

— Venha dormir — tentou Mik de novo. — Os demônios ainda vão estar por aí de manhã.

— Só um minuto.

Mas não foi um minuto. Uma hora depois, Zuzana tinha feito uma xícara de chá e passado para a poltrona ao lado da cama. Os fóruns de discussão não a levavam a lugar algum; eram todos malucos. Ela restringiu a busca. Já tinha rastreado o endereço de IP do único e-mail de Karou, assim descobrira que ela estava no Marrocos, o que não era nenhuma surpresa, pois era lá que ela estava da última vez que Zuzana tivera notícias suas. Mas a cidade não era Marrakech, e sim uma tal de Ouarzazate, localizada em uma região de oásis com palmeiras, camelos e casbás às margens do deserto do Saara.

Poeira e luz das estrelas? Ah, claro. Dava para imaginar.

Sacerdotisa de um castelo de areia? Realmente, casbás eram perfeitos castelos de areia. Pena que houvesse, sei lá, uns cinquenta milhões deles espalhados por centenas de quilômetros. Ainda assim, Zuzana estava animada. Só podia ser isso. Agora estava com aquela música boba, “Rock the Casbah”, na cabeça. Cantarolando enquanto tomava chá e visitava dezenas de sites que eram, em sua maioria, lojas virtuais de artigos para trilhas ou hotéis instalados em casbás — para uma “autêntica experiência nômade”, todos com piscinas cintilantes com uma aparência nada genuína em termos de nomadismo.

Até que achou por acaso um blog de viagem de um francês contando sobre a jornada que fizera pelas montanhas Atlas, alguns dias antes. A maioria das fotos era de paisagens, sombras de camelos e crianças cobertas de areia vendendo bijuterias na beira da estrada, mas uma das imagens fez Zuzana colocar a xícara de lado e se endireitar. Deu um zoom e aproximou o rosto da tela. Era um céu noturno com uma meia-lua perfeita, e — impossíveis de serem notadas se ela não estivesse procurando algo do tipo — silhuetas. Seis delas, com asas, visíveis quase unicamente pela maneira como encobriam as estrelas. Era difícil determinar a escala de uma foto do céu, porém foi a legenda que a convenceu.

Não contem aos caçadores de anjos, mas por aqui tem umas aves noturnas bem grandes.


30

PÉSSIMA EM AVALIAR MONSTROS

Karou foi até o rio tomar banho — sentindo-se quase uma esbanjadora por lavar o cabelo com xampu, e mais ainda por ter gastado quinze minutos secando-o, deitada sobre uma rocha quente — e, quando voltou à fortaleza, a barra da porta de seu quarto tinha desaparecido.

— Cadê? — perguntou ela a Ten.

— Como posso saber? Eu estava com você.

Sim, é verdade, apesar de Karou ter sido contra aquilo. Não era seguro sair sozinha, dissera Thiago, mesmo nas águas rasas do rio que descia das montanhas e passava pela casbá, à vista da torre de sentinela — com algumas grandes rochas atrás das quais ela procurava esconder sua nudez de olhos curiosos. Os quimeras ficavam tão intrigados com sua natureza humana quanto Issa e Yasri costumavam ficar, mas de uma forma menos gentil.

— Que coisa mais simples e estranha você é — observara Ten aquele dia, olhando Karou da cabeça aos pés e contemplando sua falta de rabo, de garras, de cascos e, basicamente, a falta de muitas coisas.

— Obrigada — dissera Karou, se afundando no rio. — Eu me esforço.

Por um breve momento ela teve vontade de deixar a corrente carregá-la por debaixo d’água, para um lugar onde pudesse ficar livre da presença da mulher-lobo por, hã, uma meia hora? Ten era uma presença constante nos últimos dias: assistente e acompanhante, vigia e sombra.

— O que vocês vão fazer quando eu tiver que sair para buscar mais dentes? — perguntara Karou a Thiago aquela manhã. — Vão mandá-la comigo?

— Ten? Não. Não ela — respondera ele, de uma maneira que Karou entendera na mesma hora.

— O quê, você? Você vai comigo?

— Tenho que admitir, estou curioso para conhecer este mundo. Deve haver mais coisas interessantes além deste deserto. Você pode me mostrar.

Ele falava sério. Karou sentiu um nó no estômago. Ela não tinha perguntado a sério, mas... logo ele?

— Não dá. Você não é humano... As pessoas notariam. E você não voa.

E você é perverso, e eu não quero.

— Vamos dar um jeito.

Vamos mesmo?, pensara Karou, imaginando Thiago no Sabor de Veneno com seus pés de lobo sobre um caixão, levando uma colher de goulash até sua boca sensual e cruel. Será que Zuzana ficaria encantada com sua beleza, assim como ficara com a de Akiva? Imediatamente lhe viera a resposta: Não. Zuze veria quem ele realmente é.

No entanto, havia uma falha nesse raciocínio. Zuzana não percebera logo quem Akiva era, certo? Tampouco ela. Ao que parece, Karou era péssima em avaliar monstros, algo lamentável considerando sua situação atual.

— Quem pegou a barra? — exigiu saber.

Seu coração batia descompassado, pequenos acessos em staccato.

— Por que tanto estardalhaço? É só um pedaço de madeira.

— É só a minha segurança.

Então era esse o custo de um cabelo limpo? Como ela conseguiria dormir sabendo que qualquer um poderia entrar ali? Ela já dormia mal mesmo com a barra na porta. Então se lembrou de repente, como se levasse uma agulhada, que dormira tranquilamente com Akiva a poucos metros dela, em seu apartamento em Praga. O que havia de errado com ela para ter se sentido segura ao lado dele?

— Isso foi ideia sua, não foi? Porque eu a tranquei do lado de fora no outro dia? — Até mesmo os suportes de parede tinham sido arrancados, então não podia simplesmente colocar outra barra de madeira no lugar. — Vocês querem o quê, que alguém me mate enquanto durmo?

— Calma, Karou. Ninguém quer matar...

— Ah, claro. Ninguém quer, ou ninguém vai me matar?

Ela realmente esperava que Ten tentasse amenizar a realidade?

— Tudo bem. Ninguém vai matar você — disse a mulher-lobo. — Você está sob a proteção do Lobo Branco. Isso é melhor do que qualquer pedaço de madeira. Agora, venha. Vamos voltar ao trabalho. Temos que terminar Emylion, e Hvitha vai para o fosso esta noite.

Era isso? Simples assim? Ela era obrigada a obedientemente entrar em seu quarto e voltar a trabalhar na listinha de ressurreições do Lobo? Nem pensar. Ela se virou para a escada, mas Ten se colocou a sua frente, então Karou atravessou o quarto até a janela aberta. Se Thiago quisesse que a vigiassem, pensou, era melhor escolher uma sombra que pudesse voar.

Ten percebeu o que ela ia fazer, e disse:

— Karou...

Naquele momento ela se lançou para fora. Flutuou por tempo suficiente para lançar um olhar raivoso para Ten e depois se deixou cair. Rápido. Com uma grande lufada de ar, ela reduziu abruptamente a velocidade e acabou aterrissando agachada quatro andares abaixo.

Ai. Um pouco abruptamente demais. Seus pés doeram com o impacto, mas com certeza fora uma saída dramática. Viu Ten com a cabeça para fora da janela, e resistiu ao impulso de mandá-la para aquele lugar — com a versão britânica, levantando os dedos indicador e médio, que é muito mais legal do que mostrar o dedo do meio. Seria uma atitude ridícula de qualquer forma. Não seja tão humana, disse a si mesma, e saiu à procura do Lobo.

Ele devia estar na guarita, a estrutura meio em ruínas em que se reunia com seus capitães, desenhava mapas na areia e depois apagava-os, andava de um lado para o outro, planejava. Karou seguiu naquela direção. No caminho passou por Hvitha, que assentiu brevemente, sem desacelerar o passo. Acho que verei você mais tarde, pensou Karou com uma pontada de pena. Hvitha não tinha sido exatamente gentil com ela, mas também não fora grosseiro — não tinha sido nada —, e não devia ser muito legal andar por aí sabendo que teria sua garganta cortada em algumas horas. Parecia um desperdício da arte de Brimstone.

Não é problema meu.

Ao passar por roupas penduradas em um muro para secar ao sol, ocorreu-lhe que aquele lugar estava começando a parecer habitado; graças a ela. Nove novos soldados nos últimos dias — seu ritmo estava melhorando com a ajuda de Ten, mas em compensação, minha Nossa, seus braços estavam um horror —, e todos os lugares pareciam cheios de vida. Ela podia ouvir o martelo de Aegir e ver a fumaça se levantando da forja, sentir o cheiro quase nulo do cuscuz a cozinhar e o ranço forte vindo do contraforte que tinha se tornado o urinol de preferência dos soldados que não queriam se dar ao trabalho de andar — ou voar, caramba — até o lado de fora da casbá.

Não precisam agradecer pelas asas, mas agora por favor aproveitem para urinar um pouco mais longe, obrigada!

Uma discussão, uma gargalhada e, vindo do pátio, o retinir de lâminas recém-forjadas erguidas por mãos recém-formadas: seus mais novos espectros experimentando a força de seus novos corpos, asas e tudo mais. Ela parou sob um arco para observar e logo viu Ziri. Estava com Ixander, sua maior monstruosidade até o momento. Parecia um anão perto dele.

Ixander sempre fora grande — era dos Akko, uma das maiores tribos e um importante pilar do exército —, mas agora estava alto como um urso, coisa de três metros ou mais, além de corpulento e com presas, como determinavam as especificações de Thiago. Suas asas eram quase tão grandes quanto as de um caça-tempestades, e os músculos necessários para erguê-las deixavam suas costas enormes curvadas como as de um urso. O corpo era deselegante, e Karou lamentava isso. Seu breve contato com a alma dele a surpreendera por lhe evocar... um prado.

A impressão das almas era sinestésica: som ou cor, flashes de imagens ou sensações. A de Ixander lhe lembrara um prado. Raios de luz por entre flores recém-desabrochadas e silêncio — o oposto do colossal corpo de fera que ele parecia começar a dominar agora, com a ajuda de Ziri.

Ziri se lançou ao céu, gracioso e sem ruído, e chamou Ixander, que repetiu o movimento sem a mesma graciosidade nem silêncio. Suas batidas de asas faziam um barulho quase sônico e levantaram uma nuvem de poeira que atingiu Karou mesmo ela estando do outro lado do pátio. No ar, os dois começaram a treinar posições de luta. Karou se viu prestando atenção não em Ixander, mas em Ziri, esquecendo a afronta que havia sofrido e o que pretendia fazer, e sendo levada de volta ao passado ao ver um Kirin em pleno voo.

Toda vez que isso acontecia, era como se ela voltasse a ser Madrigal. Nunca se sentia mais quimera do que no primeiro instante em que via Ziri — e nunca mais humana do que no seguinte, quando se lembrava do que era agora. Não que fosse decepcionante. Ela era o que era. O que sentia era só uma ligeira desorientação, uma breve vibração entre dois eus que sempre estariam separados, como duas gemas em uma única casca.

— Você poderia ser Kirin de novo, sabia? — dissera-lhe Ten quando estavam no rio.

— O quê?

Karou achou que tivesse entendido errado, por estar lavando o cabelo.

— Você poderia ser quimera. Talvez assim os outros a aceitassem melhor. — Mais uma vez ela olhara Karou dos pés à cabeça, com ar de superioridade diante de sua lamentável natureza humana. — Eu poderia ajudá-la.

— Ajudar? — Ela só podia estar brincando. — Quer dizer me matando? Muuuito obrigada!

Mas Ten não estava brincando.

— Ah, não. Thiago faria isso, é claro. Mas eu a ressuscitaria. Você só precisaria me mostrar como.

Ah, simples assim?

— Que tal o seguinte? — dissera Karou, com um grande sorriso debochado. — Vamos remodelar você. Tenho várias ideias para o seu novo corpo.

Ten não gostara nada da brincadeira, mas Karou não se importava com o que ela gostava ou não. Ainda estava irritada. Será que a mulher-lobo havia conversado sobre isso com Thiago? Talvez fosse mais fácil se misturar se ela parecesse uma quimera, mas não fazia sentido sequer pensar nisso agora. Karou precisava ser humana para conseguir comida para os rebeldes, assim como tecido para roupas e material para a forja de Aegir, sem falar nos dentes. Mas será que esperariam que ela fizesse essa transformação algum dia?

Bem, eles que esperassem sentados. Karou olhou para os hamsás nas palmas de suas mãos; pareciam quase uma marca registrada. Brimstone fizera aquele corpo para ela, e ela ficaria com ele.

O som de uma risada a trouxe de volta para o presente. Ziri e Ixander estavam lutando e Ixander perdera o equilíbrio, espiralando para o chão. Tentando se aprumar, ele começou a bater as asas desajeitadamente e se chocou no parapeito meio desmoronado que cercava o pátio. Acabou produzindo uma cascata de terra e ficando pendurado por uma das mãos na parede. Rindo. E Ziri também ria, e os outros, e o som era tão estranho, tão leve... Karou então se deu conta de que estava espiando, porque eles nunca riam quando ela estava por perto e com certeza parariam se a vissem. Então se afastou, para impedir que isso acontecesse.

Ziri se lançou para a frente no ar e bateu na mão de Ixander com a parte chata de sua lâmina, fazendo-o soltar o parapeito e cair no chão com um rugido. Ele aterrissou com uma força absurda e tentou acertar Ziri, que o provocava lá de cima, ainda rindo ao se aproximar do outro apenas para bater no seu capacete e se afastar logo em seguida. Alguns dos outros rodearam Ixander, debochando dele — com inequívoco bom humor —, e quando Ixander decolou atrás de Ziri, todos vibraram, urrando.

As cinco patrulhas tinham voltado de Eretz, sem uma única baixa e quase sem ferimentos. Thiago andava bem-humorado, e a atmosfera na casbá era de glória, embora que glória, Karou continuava sem saber, assim como desconhecia qual tinha sido a missão das patrulhas. Uma das mulheres da cozinha fizera para Thiago um novo estandarte para substituir o que tinha sido queimado em Loramendi; era mais modesto, feito de lona e não de seda, mas exibia um lobo branco e as palavras Vitória e vingança, que eram seu lema. E agora, aparentemente, o de todos eles.

Karou pessoalmente preferia o brasão do Comandante: chifres dos quais brotavam folhas, representando assim o surgimento de algo novo, mas não estava imune ao desejo de vingança — grande e feio dentro de si: uma batida primal de tambor, com dentes arreganhados —, e tinha que admitir que o lema de Thiago dava um grito de guerra melhor para a rebelião.

O estandarte estava pendurado na galeria e era a primeira coisa que se via ao entrar no pátio, como que para afirmar a eminência do Lobo. Cadê o meu?, pensou Karou, em um ataque súbito de hilaridade. Por que não? Estamos nisso juntos, lhe dissera. Então o que ele faria se ela criasse seu próprio estandarte para pendurar ao lado do dele? E qual seria o desenho? Um colar de dentes? Um alicate? Não. Um torno, e seu lema seria Ai.

Ela riu sozinha. Era engraçado, pensou, mas seu sorriso de repente lhe pareceu melancólico por não haver ninguém com quem dividir suas ideias. No pátio, os soldados ainda riam, e ela estava escondida nas sombras, sem tomar parte naquilo.

Ixander se movia muito mais facilmente agora, e ela levou um instante para entender o motivo: era porque não estava se esforçando tanto. Apenas se movia da forma como os corpos são feitos para se moverem, sem pensar. Sentiu uma ponta de orgulho, vendo aquele corpo enorme passar a deslizar suavemente. A provocação de Ziri fizera com que Ixander esquecesse a timidez — devia ser essa a intenção dele —, e Ziri pagava o preço disso agora, pois Ixander o agarrou pelo pescoço, fingindo sufocá-lo, antes de atirá-lo para longe. Ziri capotou no chão e derrapou até conseguir parar, de pé nos cascos fendidos, praticamente cara a cara com Balieros, o grande centauro que era seu líder de patrulha.

Balieros balançou a cabeça, seu corpo se sacudindo de tanto rir, e, passando o braço em volta do ombro de Ziri, os dois voltaram juntos para ver Ixander voar.

Karou sentiu um nó na garganta. Como ficavam à vontade uns com os outros, como riam fácil. Um dia ela fizera parte da intimidade dos soldados de seu povo, dividindo com eles alojamentos e campos de batalha, refeições e músicas. Tinha salvado vidas e colhido almas; tinha sido um deles.

Mas fizera suas escolhas, e agora precisava enfrentar as consequências.

Quando as risadas cessaram abruptamente, Karou se assustou, achando que os soldados tinham detectado sua presença. Mas eles não olhavam em sua direção. Um instante depois, Thiago surgiu em seu campo de visão. Karou se lembrou de que ia pedir a barra da porta de volta, mas agora a coragem e a afronta que sentira já a haviam abandonado. Não só por causa dele, embora com certeza o Lobo tivesse um efeito sobre sua coragem, mas por quem o acompanhava.

As Sombras Vivas.

Eram belas a sua maneira, com seu andar sinuoso. Tangris e Bashees eram idênticas: criaturas-pantera, parecendo esfinges negras, de ossatura delicada e pelo macio, com cabeça de mulher e penas de coruja preta nas asas incrivelmente silenciosas. Não eram grandes, ou mesmo terríveis, mas Thiago tratava as duas com uma deferência que não demonstrava a nenhum outro soldado, e não era para menos. Ninguém mais era capaz de fazer o que elas faziam. Karou sentiu as mãos ficarem frias e úmidas. Será que ele iria enviá-las em uma missão?

Sim.

Dessa vez ela não poderia se perguntar em pretensa inocência qual seria a natureza da missão, ou fingir não entender. As Sombras Vivas eram lendas, e eram... especiais, portanto sua missão também devia ser.

Elas se ergueram no ar e saíram voando, deixando um rastro de silêncio atrás de si. Ninguém se despediu ou lhes desejou boa sorte. Não precisavam de sorte. Em algum lugar em Eretz, no entanto, alguns anjos iriam precisar, e muito; mas não teriam. Quem quer que fossem, já estavam praticamente mortos.


31

CONTAGEM

Akiva podia ter passado aquela noite sem fogueira no acampamento. Já vira fogo suficiente por um dia: o céu ainda estava coalhado de fumaça das chamas que tinham ateado para expulsarem os quimeras fugitivos da segurança da floresta. Quando ergueu os olhos, não viu uma única estrela. Mas uma fogueira era a parte central e imprescindível de um acampamento, seu ponto focal. Os soldados se reuniam em volta do fogo para limpar suas lâminas, comer e beber, e, embora estivesse sem apetite, sede ele tinha. Tinha bebido seu terceiro jarro d’água, mergulhado em pensamentos tão sombrios quanto o céu, quando uma voz chamou sua atenção.

— O que vocês estão fazendo?

Era uma pergunta agressiva, vinda de Liraz. Akiva levantou a cabeça. Ela estava do outro lado da fogueira, a luz das chamas a cobrindo de um brilho lúrido.

— O que acha? — retrucou um soldado da Segunda Legião que Akiva não conhecia.

Ele estava sentando com outros dois. Quando Akiva viu o que seguravam — o que estavam prestes a fazer —, cerrou os punhos de raiva.

Ferramentas de tatuagem: bastava uma faca e um tubo de tinta para se registrar mortes na pele.

— Acho que você vai aumentar a sua contagem — respondeu Liraz —, mas não pode ser isso, claro que não; afinal, nenhum soldado que se preze marcaria o dia de hoje nas mãos.

Hoje. Hoje. O que a patrulha de Liraz fizera naquele dia? Akiva não sabia. O olhar dela, quando ele e Hazael a encontraram após seu dia também sombrio, parecia desafiá-lo a perguntar, mas ele não queria saber. Alguns integrantes do grupo dela estavam feridos — marcas de açoite, mordidas. Nada sério, mas revelavam o suficiente. Akiva também não havia contado o que fizera horas antes naquela ravina a sudeste dali. Ele e Hazael não tinham nem conversado a respeito, mal trocando olhares que confirmavam o que havia acontecido.

A questão é que a contagem era para mortes em batalha, para soldados assassinados. Não para cidadãos comuns em fuga.

— Eles estavam armados — alegou o soldado, dando de ombros.

— Ah, e isso basta para o exército geral? Um escravo com uma faca já se torna um oponente importante? Quantos desses aí revidaram? — perguntou ela, apontando para as mãos dele, para todas as linhas pretas em seus dedos. — Algum?

O soldado se levantou de repente. Era uns trinta centímetros mais alto que Liraz, mas, se achava que isso lhe daria alguma vantagem, logo aprenderia com seu erro. Akiva ficou de pé também — não porque achasse que a irmã precisava de ajuda, mas por se surpreender com a raiva dela.

— Minhas marcas foram merecidas — disse o soldado, aproximando-se dela, altivo.

Liraz não recuou. Por entre os dentes trincados e com amargo desprezo, disse:

— Hoje não.

— E quem é você para decidir?

Os lábios dela se repuxaram, mostrando os dentes em um sorriso maldoso.

— Pergunte por aí.

Talvez tenha sido o sorriso, ou algo que viu nos olhos dela, mas o soldado hesitou em seu ar de valentão.

— Isso deveria me assustar?

— Bem, eu estou com calafrios — intrometeu-se Hazael, se aproximando. — Posso lhe contar algumas histórias, se quiser mesmo saber. Eu a conheço desde pequeno.

— Que sorte — disse um dos outros, o que despertou algumas risadas idiotas.

— É uma sorte mesmo, eu sei. — Hazael estava sendo sincero. — É bom ter alguém por perto para salvar a sua vida. Foram quantas vezes, Lir? Quatro?

Liraz não respondeu. Akiva se colocou ao lado deles.

— Fazendo novos amigos, Lir?

— Aonde quer que eu vá.

Akiva dirigiu-se aos outros soldados:

— Vocês sabem que ela está certa. É uma desonra orgulhar-se do trabalho de hoje.

— Estou só seguindo ordens — defendeu-se o soldado, que ficara desconfortável na presença de Akiva.

— Vocês receberam ordens de gostar do que fizeram?

— Vamos — disse um dos outros, puxando o amigo pelo cotovelo; enquanto se retiravam, Akiva e seus irmãos ouviram alguns resmungos de “Ilegítimos”.

Liraz gritou para eles:

— Se eu vir tinta fresca em algum de vocês amanhã, vou arrancar seus dedos.

O valentão soltou uma gargalhada cética e olhou para trás.

— Não me provoque — completou ela.

— Não a provoque — disse Hazael. — Por favor. Acho que ela ficaria um pouco feliz demais com uma coleção de dedos.

Depois que eles se afastaram, Liraz se sentou. Olhou de esguelha para Akiva.

— Não preciso da ajuda do Ruína das Feras para discutir com alguém.

Hazael ficou ofendido.

— E quanto a mim? Tenho quase certeza de que foi de mim que eles ficaram com medo.

— Claro, porque nada assusta mais do que ficar alardeando quantas vezes sua irmã salvou sua vida.

— Bem, eu não falei quantas vezes salvei a sua. No momento estamos empatados, não?

— Eu não estava tentando ajudar — interrompeu Akiva. — Só concordando com você. — Ele hesitou, e então perguntou: — Liraz, o que aconteceu hoje?

— O que você acha? — foi a única resposta dela.

O que ele achava é que haviam cruzado com alguns dos escravos fugidos da caravana e, como o soldado dissera, cumprido as ordens. Pelo modo como Liraz olhava para a fogueira, Akiva teve a impressão de que ela não tinha gostado nada da tarefa, mas ele não esperaria o contrário. Ela podia se orgulhar de uma batalha bem travada, mas nunca de um massacre. A questão era o quanto ela estava comprometida em seguir ordens. E... será que ela o surpreenderia, assim como Hazael?

Akiva olhou para o irmão e viu que Hazael o olhou de volta. Ficaram ali se entreolhando por um tempo, por sobre a cabeça da irmã, finalmente admitindo o que tinham feito naquele dia na ravina.

Ou, mais exatamente, o que não tinham feito.

Quando Akiva ouvira o grito — breve, entrecortado, inequívoco —, Hazael estava mais próximo do local de onde viera o som do que ele. A distância não era grande, mas ainda assim foi Hazael quem reagiu primeiro, dobrando as asas de repente e mergulhando em direção ao leito rochoso do riacho, com as pernas flexionadas em posição de prontidão, caso precisasse levantar voo de novo. Meio segundo depois Akiva estava ao seu lado, e viu o que ele via: um grupo trêmulo de criadores de gado, apavorados e encolhidos em uma concavidade na ravina.

Os Caprina eram uma das tribos mais dóceis de quimeras, tão inadequados para a luta que eram dispensados do exército. O fato é que muitas tribos quimeras não davam bons soldados: eram pequenos, ou não tinham um tipo físico muito apropriado para empunhar armas, ou eram aquáticos, ou tímidos, ou mesmo grandes, lentos e desajeitados demais. As razões eram tantas quanto o número de tribos, o que explicava por que Brimstone passara tanto tempo em seu trabalho: vários quimeras simplesmente não eram feitos para lutar, e com certeza não para lutar contra serafins.

A principal força do exército sempre saíra de algumas dezenas de tribos mais selvagens, e foi com surpresa que Akiva reconheceu um deles no meio daquele grupo. Um Dashnag entre os Caprina. Pequeno, ainda jovem, mas mesmo os menores Dashnags eram criaturas brutais, embora aquele estivesse carregando uma esguia jovem cervo-centauro em seus braços fortes — a jovem cobria a própria boca; devia ter sido ela quem gritara, e seus límpidos olhos de cervo pareciam incrivelmente grandes em seu rosto pequeno e doce. Outra garota cervo estava encolhida de medo junto ao garoto Dashnag, e, embora Akiva não pudesse saber precisamente o que reunira aquelas criaturas naquele momento, o quadro era simples e pintava em escala reduzida o que os anjos tinham feito com Eretz: graças ao terror, tinham conseguido que os povos se unissem contra eles.

Tudo isso em um instante. O garoto Dashnag então colocou a jovem cervo de lado, com cuidado. Havia medo em seus olhos, mas ele estava disposto a defender aquele grupo. Akiva tinha suas espadas nas mãos, mas não queria usá-las.

Não precisamos ser assim, pensou ele.

— Haz... — começou.

Seu irmão se virou em sua direção. Parecia confuso, estreitando os olhos.

— Que estranho — disse ele, interrompendo Akiva. — Eu podia jurar que tinha ouvido alguma coisa aqui embaixo.

Akiva levou um segundo para entender. Então uma onda de alívio — e gratidão — o invadiu.

— Eu também — disse Akiva, com cautela, esperando ter interpretado corretamente o irmão.

O garoto Dashnag os observava com atenção, cada músculo preparado para saltar. Os Caprina e as duas garotas Dama tinham os olhos arregalados, sem piscar. Um bebê começou a resmungar — um bebê —, e sua mãe o segurou com mais força.

— Deve ter sido um pássaro — arriscou Akiva.

— Um pássaro — concordou Hazael.

E então... deu as costas aos fugitivos. Entrou no riacho, espirrando água, casualmente e até de maneira um pouco cômica, e se abaixou para pegar uma das flores que cresciam de caules frágeis à beira d’água, enfiando-a em um buraco de sua cota de malha. Ainda estava lá.

Só à noite, no acampamento, ele a tirou. Entregou a flor a Liraz, fazendo Akiva ficar tenso, temendo que ele lhe contasse que tinham poupado o equivalente a uma vila inteira de quimeras, incluindo um Dashnag, que, embora fosse só um garoto, certamente se tornaria um soldado em breve. O que ela acharia disso? Mas Hazael disse apenas:

— Trouxe um presente para você.

Liraz a pegou, olhou para a flor e depois para Hazael, impassível. E então a comeu. Mastigou a flor e a engoliu.

— Hum — fez Hazael. — Que forma diferente de se receber uma flor.

— Ah, quer dizer que você anda distribuindo flores por aí?

— Sempre — respondeu ele. E provavelmente era verdade. Hazael tinha um jeito de aproveitar a vida apesar das muitas restrições sob as quais viviam por serem soldados e, o que era pior, por serem Ilegítimos. — Tomara que não seja venenosa — completou com bom humor.

Liraz deu de ombros.

— Existem maneiras piores de morrer.


32

A MORTE REGIA A TODOS

— Aí está você — disse Ten, exasperada, flagrando Karou espiando escondida.

— Aqui estou eu — concordou Karou, olhando para a mulher-lobo. — Aonde elas estão indo?

— Quem?

— As esfinges. Aonde ele as enviou? Para fazer o quê?

— Não sei, Karou. Para Eretz, para fazer o trabalho delas. Podemos voltar ao nosso?

Karou virou-se de volta para o pátio. Os soldados tinham se reunido em volta de Thiago, observando o céu depois que as Sombras Vivas tinham desaparecido. Vá lá, instava ela. Vá perguntar. Mas não conseguia reunir coragem para ir até ele e sentir todos aqueles olhares fixos em si como sempre, ou projetar sua voz e interromper a intensidade vigilante e silenciosa dos quimeras.

Então se sentiu quase aliviada quando Ten colocou a mão em seu braço e disse:

— Venha. Emylion, depois Hvitha. Temos um exército para construir.

Karou quase sentiu alívio. Covarde.

E se deixou conduzir.

* * *

Após dois dias sob os cuidados de Nur, Sarazal conseguiu voltar a apoiar o peso do corpo na perna, embora Rath ainda a carregasse a maior parte do tempo — agora com a ajuda de uma faixa presa às costas que tinham improvisado. Sveva sentiu o peso da vida de sua irmã sair de seus ombros. Sarazal ficaria bem, e elas reencontrariam sua tribo, só que... só não seria tão rápido. Era difícil ir na direção errada, mas arriscado demais seguir para o norte. Havia muitos serafins no caminho para casa.

Estamos bem, mãe. Estamos vivas. Sveva continuava enviando seus pensamentos a distância, imaginando-os como squalls carregando mensagens que sua mãe poderia simplesmente desenrolar e ler. Ela quase acreditava nisso agora; era muito difícil admitir a verdade: que seu povo devia achar que não voltariam mais. Anjos pouparam nossas vidas, disse em pensamento à mãe, ainda aturdida com aquele milagre. Sua vida parecia renovada: perdida e recuperada, mais leve e mais pesada ao mesmo tempo.

Se encontrar um anjo com olhos de fogo e outro com um lírio do pântano preso na armadura, pensou para a mãe, não os mate.

O grupo seguiu para o sul em direção às montanhas, onde os rumores indicavam haver um porto seguro. Encontraram outros pelo caminho e os encorajaram a seguir em frente. Dois Hartkind se juntaram a eles, mas tomaram cuidado para não deixar o comboio aumentar depois disso. Não era seguro viajar em grupos grandes. Bem, nada era seguro, mas fazia-se o possível. A menos que estivessem em uma área de floresta cerrada, só avançavam à noite, quando os serafins podiam ser facilmente localizados, suas asas de fogo pintando de luz a escuridão.

Lell ia montada nas costas de Sveva, agora parecendo a coisa mais natural do mundo colocá-la ali sempre que seguiam viagem, e caminhar atrás de Rath, para poder ficar de olho em Sarazal.

— Mal posso esperar para voltar a correr — disse sua irmã, baixinho, certa manhã, enquanto penavam para subir uma encosta no ritmo dos Caprina.

— Eu sei — disse Sveva. E então, no alto da colina, tiveram a primeira visão das Terras Distantes: enevoada pela distância, absurdamente grande, seus picos cobertos de neve se fundindo com as nuvens como uma terra branca no ar. — Mas é bom estar viva.

* * *

As patrulhas serafins não estavam tendo uma caçada muito frutífera. Havia muito terreno a cobrir, a terra era selvagem, e os habitantes desapareciam a cada dia.

— Alguém está alertando as feras — disse Kala certa manhã, quando chegaram a mais uma aldeia abandonada.

Aldeias eram raras; o mais comum eram fazendas simples onde pequenos clãs viviam, mas essas também andavam desertas. Durante as noites, em volta da fogueira, os soldados ainda limpavam suas espadas, mas agora faziam isso mais por hábito do que por necessidade. A terra parecia se esvaziar à frente deles; fazia dias que mal derramavam sangue. Os rumores sobre fantasmas persistiam. Alguns diziam que a culpa era dos escravos, embora todos soubessem que teria sido um feito notável — tanto de coragem quanto de logística — que os poucos fugitivos avisassem toda aquela imensa terra sobre a chegada do flagelo.

A única conclusão lógica, embora não houvesse nenhuma evidência para embasá-la, era que se tratava de obra dos rebeldes.

— Por que eles não mostram a cara? — disparou um soldado da Segunda Legião, em um ataque de fúria. — Covardes!

Akiva se perguntava a mesma coisa. Onde estavam os rebeldes? Mas ele sabia que não eram os rebeldes que alertavam o povo.

Era ele.

À noite, enquanto todos no acampamento dormiam, ele se tornava invisível com um encanto e saía escondido da barraca. Aonde quer que fossem no dia seguinte, ele ia na frente, e, ao encontrar uma aldeia ou fazenda ou acampamento nômade, ficava visível para eles e os assustava, na esperança que tivessem o bom senso de não voltarem.

Já era alguma coisa, mas não o suficiente. Estava exausto e sabia que não seria capaz de se manter daquela forma, mas também não conseguia pensar em mais nada que pudesse fazer. O que pode um soldado fazer quando compaixão é traição e quando está sozinho nisso? Sua esperança era que o povo do sul tivesse tido tempo de alcançar as Terras Distantes. Devia ter funcionado.

Mas não foi o que aconteceu.

Porque durante a noite, no escuro, com suas asas silenciosas, enquanto Akiva lutava para tentar salvar o inimigo, uma família de cada vez, os rebeldes mandavam ao império um recado. E esse recado provocaria em Joram uma reação capaz de acabar com qualquer esperança que Akiva tivesse de diminuir o número de mortes.

— Ou temos a vida como mestre, ou a morte — dissera Brimstone, mas, nos dias banhados a sangue em que viviam, não havia o luxo da escolha.

A morte regia a todos.


Era uma vez
uma época em que o céu viu a fúria de exércitos de anjos em movimento,

e o fogo de suas asas fez o vento soprar em fúria infernal.


33

AS SOMBRAS VIVAS

Na guarnição serafim de Thisalene — não em uma praia distante ou uma região desolada ocupada pelas feras, mas encravada nos penhascos sinuosos da costa de Mirea, no próprio coração do império —, uma sentinela vigiava o terreno de seu posto na torre enquanto o sol se erguia sobre o mar. A ausência de sinais de seus companheiros no acampamento abaixo o inquietava. Cem soldados treinados para se levantar à primeira luz do dia e ainda assim não se ouvia um só farfalhar de tecido, nem um som sequer. A aurora chegara, mas os alojamentos continuavam muito quietos. O silêncio parecia surreal e muito errado. A quietude se limitava às madrugadas. Àquela hora já devia haver barulho de vozes, comida sendo preparada em fogueiras, os primeiros sons desordenados do choque das lâminas em treinamento.

Ele sabia que já devia ter sido substituído no turno, mas não conseguia se convencer a deixar o posto. O terror o prendia ali. Nada além do mar e do sol se movia. Era como se tudo que havia de vivo no mundo tivesse sido congelado, tudo menos ele. Só quando as primeiras aves carniceiras começaram a circular ele finalmente despertou de sua imobilidade, saltou da torre, desceu voando e encontrou, em cada uma das barracas, colegas adormecidos que nunca iriam acordar.

Uma centena de gargantas abertas habilmente como cartas. Uma centena de sorrisos vermelhos, e na parede, também escrita em vermelho, uma nova mensagem:

OS ANJOS DEVEM MORRER.

Era um eco das infames palavras do imperador, havia muito vociferadas do alto da Torre da Conquista e marteladas, desde a infância, na consciência de cada serafim, cidadão ou soldado: As feras devem morrer.

Deveria ter desertado, aquele soldado. Deveria imaginar que seria enforcado por seu erro; era imperdoável, mesmo que fosse verdade o que relatou quando chegou à cidade ao norte da costa, abalado e desesperado, falando sem parar. Thisalene era o principal porto de escravos do império, a apenas meio dia de viagem por terra partindo-se da capital — uma hora voando, no máximo —, e era fortemente armado e protegido. Soldados de seu próprio regimento se revezavam na patrulha das muralhas do cais, e ele temia encontrá-los mortos também.

— Graças aos deuses da luz! — exclamou o soldado, arfando. — Devemos triplicar os sentinelas. Elas estão vivas. Estão de volta, e estamos todos mortos!

O comandante foi chamado. Quando chegou, o soldado já havia se recuperado um pouco do choque. A primeira coisa que disse foi:

— Eu não dormi, senhor, juro.

— E quem disse que você dormiu? O que aconteceu, soldado? Você está coberto de sangue.

— O senhor precisa acreditar em mim. Eu nunca dormiria no posto. Elas estão vivas. Eu teria visto qualquer coisa que fosse natural...

— Explique direito. Quem morreu? Quem está vivo?

— Nós estamos mortos, senhor. Eu não fechei os olhos nem por um instante! Foram as Sombras Vivas. Não há outra explicação. Elas voltaram.


34

COMEMORAÇÃO

Karou era boa em várias coisas, mas dirigir não era uma delas. Ela ainda nem tinha idade para tirar carteira, o que agora lhe parecia engraçado. Não sabia sobre a legislação no Marrocos, mas na Europa era preciso ter dezoito anos para dirigir, e ainda faltava um mês para isso acontecer — isto é, a não ser que contasse suas duas vidas juntas. Devia ter pedido um certificado, pensou enquanto a velha caminhonete azul que usava para buscar suprimentos para a casbá pulava e derrapava pela estrada.

Um grande solavanco deixou o veículo apoiado nas duas rodas laterais, suspenso por um momento antes de bater de volta no chão com um impacto que fez Karou pular uns trinta centímetros no ar. Uff.

— Desculpe! — cantarolou ela por sobre o ombro, com uma falsa doçura.

Ten estava na parte de trás, escondida dos olhos humanos. Karou mirou em outra lombada.

— Se não quisesse estar aqui, já teria ido embora — dissera ela a Thiago antes de sair, com a mulher-lobo a tiracolo, apesar de seus protestos. — Não preciso de uma carcereira.

— Ela não é uma carcereira — replicara ele. — Karou, Karou. — A intensidade de seus olhos era mais irritante que nunca. — Só não consigo suportar a ideia de você ir sozinha. Faça o que estou lhe pedindo. Se alguma coisa acontecesse a você, eu estaria perdido.

Não nós estaríamos perdidos. Eu estaria.

Eca.

É claro, podia ser pior. O próprio Thiago poderia ter ido, e ela passara por um breve momento de tensão, receando isso. Mas, como ele estava aguardando o retorno das Sombras Vivas de sua missão, decidira esperar na casbá.

— Traga algo para comemorarmos — dissera ele. — Se puder.

Os pelos em sua nuca se arrepiaram.

— O que estamos comemorando?

Em resposta, Thiago apontou para seu estandarte e sorriu. Vitória e vingança.

Certo.

Então, perguntava-se Karou, o que se leva para uma comemoração de vitória e vingança? Birita? Seria difícil encontrar isso no Marrocos, e ainda bem. Álcool era a última coisa que ela daria aos soldados.

Bem, talvez não a última.

Quando chegou na rua principal longa e empoeirada de Agdz, que lembrava mais o Velho Oeste do que as Mil e uma noites, ela evitou a loja em cuja vitrine recordava-se de ter visto rifles. Não queria correr o risco de que Ten, mesmo escondida, visse aquilo e perguntasse o que eram.

Não seriam um ótimo presente para a comemoração? Sem dúvida.

A questão das armas estava sempre presente na mente de Karou. Ao pensar nisso, levou a mão à barriga, às três pequenas cicatrizes a lembravam das balas que um dia rasgaram sua pele, no porão de um navio em São Petersburgo. Lá, em torno dela, meninas e mulheres, com suas bocas desdentadas, sangravam e choravam e corriam.

Karou odiava armas, mas sabia o que podiam representar para a rebelião. Mil vezes pensara em contar a Thiago sobre essa tecnologia humana fatal, e mil vezes desistira. Por várias razões, a começar pelos seus sentimentos a respeito do assunto e pelas pessoas com quem teria que negociar para consegui-las. A situação já não estava bem ruim mesmo sem traficantes de armas envolvidos? Mas isso tudo seria suportável se não fosse pela razão mais importante, à qual ela sempre voltava.

Brimstone nunca levara armas para Eretz.

Só lhe restava imaginar qual teria sido o motivo, mas seu palpite era simples: porque daria início a uma corrida armamentista, acelerando absurdamente o ritmo da matança, o que era a última coisa que ele gostaria. Brimstone lhe dissera — para seu eu Madrigal —, nos últimos momentos antes de ela ser executada, que, desde muitos séculos antes, ele só vinha lutando contra a maré, tentando manter seu povo vivo até que outra maneira pudesse ser encontrada, uma mais verdadeira. Um caminho para a vida, para a paz.

Vida e paz. Vitória e vingança.

E esses dois binômios nunca se encontrariam.

Na cidade, Karou comprou caixotes de damascos, cebolas e abobrinhas. Adaptando-se aos hábitos locais, ela usava um hijab de algodão cobrindo o cabelo azul, e uma djellaba de manga comprida com uma calça jeans. Não chegariam a confundi-la com uma marroquina, mas, com seus olhos pretos e seu árabe perfeito, também não achariam que fosse ocidental. Tomando cuidado para não deixar que vissem seus hamsás, ela comprou tecidos, couro, chá e mel, amêndoas e azeitonas e tâmaras secas. Ração para as galinhas e pão pita. Carne vermelha marmorizada — não muita; para não estragar. Praticamente toneladas de cuscuz — sacos tão grandes que ela mal conseguia levantá-los, mas ainda assim teve que dispensar ajuda; afinal, havia um monstro com cabeça de lobo escondido na traseira da caminhonete. Muito obrigada, Ten.

A uma mulher com ar indagador que trabalhava para um organizador de passeios turísticos, ela explicou:

— Turistas famintos.

De fato. Karou percebeu que literalmente comprara comida para um pequeno exército, e não conseguia nem achar graça disso.

Não parava de pensar nas esfinges, e no que deviam estar fazendo.

Isso fez com que sua vontade de pensar em algo para levar para a comemoração dos soldados praticamente sumisse. Jogou uma garrafa de água para Ten e fechou a porta traseira do carro. Saindo da cidade, viu uma loja que a fez reconsiderar. Tambores. Tambores tribais berberes. Algumas vezes, no passado, os soldados tocavam tambores nos acampamentos militares. Cantavam também. Ninguém nunca cantara na casbá, mas lembrou-se de Ziri e Ixander brincando no pátio, daqueles momentos de risadas do qual não participara, e comprou dez tambores. Depois dirigiu pelo longo caminho de volta enquanto a luz do dia sumia.

Estavam descarregando a caminhonete quando as Sombras Vivas voltaram.

* * *

— Pensei que as Sombras Vivas fossem as Sombras que morreram — comentou Liraz.

Tinham recebido notícias de Thisalene, e Akiva ainda estava meio zonzo. O horror, a quantidade de mortos, a ousadia do ato. A tolice do ato. Atacar tão perto de Astrae era atacar a crença da santidade do próprio império. Será que aqueles rebeldes sequer sabiam o que haviam provocado?

Hazael soltou um suspiro longo e cansado.

— Sou só eu, ou vocês também notaram que os quimeras não gostam muito de ficar mortos?

— Bem, pelo menos isso temos em comum com eles — disse Liraz.

— Temos mais do que isso em comum — afirmou Akiva.

Liraz se virou para ele.

— Com você, principalmente — provocou Liraz. Ele achou que a irmã estava sendo sarcástica em relação a viver em “harmonia” com as feras, mas ela abaixou a voz e acrescentou: — O costume de ficar invisível, por exemplo?

Akiva gelou.

Ela sabia o que ele vinha fazendo nas últimas noites, ou só estava falando do encanto de forma geral? Liraz ficou olhando para ele por um tempo, e parecia haver algo escondido naquele olhar, mas, quando ela continuou, foi só para dizer:

— Se nosso pai soubesse que você pode fazer isso... — Ela encerrou a frase com um assovio. — Poderia ter sua própria Sombra Viva.

Akiva olhou em volta. Não gostava de falar sobre isso no acampamento — sua magia, seus segredos. Mesmo chamar o imperador de “pai” já era passível de punição, primeiro porque o uso do seu título honorífico era obrigatório por lei, e em segundo porque os Ilegítimos não tinham o direito de reivindicar a paternidade de Joram. Eles eram armas, e armas não tinham pai, nem mãe, e, se uma espada pudesse reivindicar seu criador, seria o ferreiro, não a mina de onde fora retirado o metal de que era feita. É claro que isso não impedia Joram de se vangloriar do número de “armas” que tinha saído de sua “mina”. Os intendentes mantinham um registro. Mais de três mil soldados bastardos nascidos no harém.

Restavam pouco mais de trezentos dos três mil soldados, e a maioria das mortes eram recentes.

Akiva viu que não havia ninguém por perto que pudesse ouvi-los.

— Você também poderia fazer — ele lembrou a Liraz.

Ele ensinara aos irmãos o encanto de invisibilidade para que pudessem entrar no mundo humano e ajudá-lo a queimar as marcas de mão nas portas de Brimstone. Os dois de fato conseguiam fazê-lo, embora com dificuldade, e não por muito tempo.

Ela fez um som de nojo.

— Não, obrigada. Prefiro que minhas vítimas saibam quem as matou.

— Para que possam sonhar com seu belo rosto por todo o descanso eterno — replicou Hazael.

— É uma bênção morrer pelas mãos de alguém tão belo — retrucou Liraz.

— Então isso não inclui Jael — observou Hazael.

Jael. Akiva olhou para o céu. O nome era um doloroso lembrete.

— Não. Pelos deuses da luz. — Liraz estremeceu. — Não há bênção que possa ajudar as vítimas dele. Sabe, tenho duas razões para gostar de ser Ilegítima, e as duas são Jael.

— Que razões?

Akiva não conseguia imaginar por que alguém, principalmente a irmã, ficaria feliz em ser uma bastarda do imperador.

Os Ilegítimos eram as mais eficazes e menos reconhecidas de todas as forças do império. Nunca podiam comandar, para que não aspirassem a nada mais alto que seus postos, e serviam apenas para aumentar as fileiras de soldados, emprestados aos regimentos da Segunda Legião para fazer o trabalho sujo. Não recebiam aposentadoria, pois esperava-se que servissem até morrer, e não tinham permissão de casar, ter filhos ou terras, ou mesmo de morar em outro lugar que não os alojamentos. Era uma espécie de escravidão. Não tinham direito nem a um funeral, sendo apenas cremados em urnas comuns, e, como seus nomes eram mais emprestados do que deles de fato, considerava-se desnecessário gravá-los em uma lápide ou placa. O único registro de vida que um Ilegítimo deixava era seu nome riscado da lista dos intendentes, para que pudesse ser dado a um novo bebê choramingante que logo seria arrancado dos braços da mãe.

Viva sem ser notado, mate quem lhe ordenarem matar e morra no anonimato. Esse poderia ser o lema dos Ilegítimos, mas não. O verdadeiro era: Sangue é força.

— Por ser Ilegítima — explicou Liraz, contando a primeira razão no dedo —, nunca servirei sob o comando de Jael.

— Uma boa razão — concordou Akiva.

Jael era o irmão mais novo do imperador, e o comandante do Domínio, a legião de elite do imperador, fonte de infinita amargura para os bastardos. Qualquer Ilegítimo superaria um soldado do Domínio em uma luta ou — se chegassem a isso — combate, mas ainda assim os soldados do Domínio eram considerados superiores em tudo. Vestiam-se com elegância e recebiam provisões financiadas pelos cofres das mais importantes famílias do império — que preenchiam as fileiras da legião com seus segundos e terceiros filhos e filhas —, além de terem sido ricamente recompensados ao final da guerra, recebendo de presente castelos e terras após a divisão das terras livres.

Uma meia-irmã bastarda mais velha chamada Melliel ousara perguntar a Joram se os Ilegítimos receberiam também uma parte. A resposta do pai deles, dissimuladamente fazendo que até mesmo sua recusa fosse uma forma de se gabar de sua virilidade, fora:

— Não há castelos suficientes em Eretz para todos os meus bastardos.

Ainda assim, apesar de todos os benefícios que os soldados do Domínio tinham, eles serviam ao bel-prazer de Jael, e o bel-prazer de Jael era, pelo que se dizia, algo horripilante.

— Continue — disse Hazael. — O que mais?

Liraz ergueu mais um dedo.

— Em segundo lugar, por ser Ilegítima, nunca me deitarei com Jael.

Akiva olhou para a irmã, perplexo. Era a primeira vez que a ouvia fazer alguma referência a sua sexualidade, mesmo que de maneira oblíqua. Ela vestia sua ferocidade como uma armadura, e era uma armadura totalmente assexuada. Liraz era intocável e intocada. Pensar em sua irmã... deitada sob Jael... era uma imagem abominável e difícil de apagar da cabeça.

Hazael parecia horrorizado também.

— Realmente espero que não — comentou ele, a voz soando fraca de tanto horror.

Liraz revirou os olhos.

— Olhem só para vocês. Já conhecem a reputação do nosso tio. Só digo que estou segura por ser da família, e é um dos únicos motivos que tenho para agradecer aos deuses da luz.

— Que se danem os deuses da luz — disse Hazael, indignado. — Você está segura porque o estriparia com as próprias mãos se tentasse tocá-la. Eu diria até que eu mesmo faria isso, mas sei que, antes que qualquer um chegasse lá para ajudá-la, nosso tio já estaria com as tripas para fora. O que, aliás, o tornaria menos feio.

— É, imagino que sim. — Tanto a expressão quanto a voz de Liraz pareciam cansadas. — E quanto a todas as outras garotas? Não acha que elas também têm vontade de arrancar as tripas dele? Mas o que aconteceria? Forca? Tudo se resume à vida, não é?... e a saber se vale a pena mantê-la, não importa o que aconteça. E então: será?

Ela olhou para Akiva. Estava perguntando para ele?

— Será o quê?

— Será que vale a pena continuar a viver, não importando o que aconteça?

Estaria ela falando de viver ferido, viver com o pesar? Será que considerava a perda dele verdadeira e queria mesmo saber, ou havia uma farpa ali em algum lugar? Às vezes Akiva achava que não conhecia nem um pouco a irmã.

— Vale — respondeu ele, desconfiado, pensando no turíbulo, e em Karou. — Enquanto estamos vivos, há sempre uma chance de as coisas melhorarem.

— Ou piorarem — rebateu Liraz.

— Sim — admitiu ele. — Geralmente pioram.

Hazael os interrompeu.

— Minha irmã, Luz, e meu irmão, Raio de Sol... Vocês deveriam se oferecer para animar as fileiras. Desse jeito vão acabar fazendo todo mundo querer se matar amanhã de manhã.

Amanhã de manhã. Todos eles sabiam o que iria acontecer pela manhã.

Liraz se levantou.

— Vou dormir enquanto posso, e vocês deviam fazer o mesmo. Quando eles chegarem, duvido que teremos alguma chance de descansar.

Ela saiu; Hazael foi atrás.

— Você não vem? — perguntou ele a Akiva.

— Só um minuto.

Ou mais. Akiva olhou para o céu. Ainda estava escuro até onde a vista alcançava, mas ele imaginou sentir uma mudança no ar: uma alteração provocada pelo bater de muitas, muitas asas. Era ilusão, ou profecia, ou apenas temor.

Seria uma longa distância a percorrer naquela noite, um vasto território a cobrir, muitos quimeras a salvar. Nada de descanso para ele. O Domínio estava a caminho.


35

PAPÉIS A CUMPRIR

As esfinges tocaram o chão com seus delicados pés felinos, levantando pequenos redemoinhos de poeira no chão ao redor. Os quimeras saíram pelas portas e janelas rumo ao pátio interno, para ouvi-las contar sobre a missão. Entre eles Thiago, vindo a passos largos da guarita. Karou estava atenta e curiosa. O que elas tinham feito? Não só as esfinges, mas todas as patrulhas. Foi irreal ver-se levada pelos próprios pés na mesma direção dos outros.

— Karou — chamou Ten, mas a garota continuou andando.

Quando a viu, Thiago parou, observando-a se aproximar. Os soldados seguiram seu olhar, assim como as esfinges. Todos olhavam-na com a mesma inexpressividade no rosto, mas Thiago sorriu.

— Karou. Foi tudo bem na cidade?

— Ah, sim, tudo bem. — As mãos dela estavam frias e úmidas. — Não precisa interromper o que você ia fazer. Eu só vim mesmo para ouvir.

O Lobo inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, parecendo perplexo.

— Ouvir?

— Sobre a missão. — Karou percebeu que se encolhia, gaguejava. — Só quero saber o que estamos fazendo.

Ela não sabia o que esperava ouvir de Thiago, mas não era isto:

— Está preocupada com alguém em especial?

Karou sentiu o rosto queimar. Insinuação capciosa.

— Não — respondeu ela, ofendida.

Também estava irritada, percebendo que qualquer coisa que dissesse soaria como preocupação com os serafins. Com Akiva.

— Bem, então não se preocupe. — Outro sorriso do Lobo. — Você já tem muito no que pensar. Perdeu o dia inteiro hoje, e preciso ter outra equipe pronta amanhã. Acha que consegue fazer isso?

— É claro — respondeu Ten por ela, pegando Karou pelo braço como fizera no dia anterior. — Já estamos indo.

— Ótimo — disse Thiago. — Obrigado.

Ele esperou as duas se afastarem antes de voltar a falar.

Karou sentia como se tivesse acordado subitamente de um estado de estupor. A intenção de Thiago não era poupá-la dos detalhes; ele claramente não queria que ela soubesse dos planos. Enquanto Ten a conduzia para longe dali, Karou trocou um olhar — breve — com Ziri. Ele parecia tão distante. O comentário de Thiago... Será que todos achavam que ela ainda era apaixonada por Akiva? Nem mesmo sabiam sobre Marrakech e Praga, ou que ela o reencontrara fazia tão pouco tempo. Reencontrara-o e... Não. Nada. Ela o deixara para trás. Era isso o que importava. Daquela vez, fizera a escolha certa.

Já longe do pátio, Karou se soltou com um puxão, encolhendo-se de dor quando a mão de Ten passou por seus ferimentos.

— Que droga! — reclamou. — Acho que tenho o direito de saber para que minha dor está servindo.

— Não seja criança. Todos temos nossos papéis a cumprir.

— E qual é o seu, babá? Ah, desculpe, babá de traidora?

O ar de desafio reluziu nos olhos de Ten.

— Se Thiago pedir, sim.

— E você faz qualquer coisa que ele lhe pede?

Por um segundo, Ten só a encarou, como se a achasse burra.

— É claro — respondeu. — E você também. Principalmente você. Pelo bem do nosso povo, por tudo que perdemos e pela grande dívida que tem conosco.

Karou se sentiu envergonhada, mas logo foi tomada por uma onda de raiva. Nunca a deixariam esquecer o que tinha feito. Ela estava ali por vontade própria, quando, ao contrário deles, tinha uma escolha. Tinha outra vida, e naquele momento o que mais queria era voar de volta para Praga, para seus amigos e aquela vida de arte e chás e de não se preocupar com nada mais terrível que borboletas no estômago — Papilio stomachus, recordou com saudade. Como tudo isso lhe parecia tão pequeno e delicado agora, como algo que se pode colocar dentro de um globo de neve.

Ela não iria embora. Ten estava certa: tinha uma dívida com eles. Mas já estava enjoada da pessoa covarde que se tornara. Achava que Brimstone mal reconheceria aquela criaturazinha lamentável e complacente; com certeza ela nunca tinha seguido as ordens dele tão docilmente.

Quando chegaram ao quarto, ela pegou o colar que começara mais cedo, enquanto Ten, impaciente, despejava o conteúdo da maleta na mesa. Prensas de bronze se espalharam em todas as direções com estardalhaço. Karou pegou uma, mas não a prendeu. Não estava em condições de conjurar um corpo.

O que ela não podia saber?

— Quer que eu pague o dízimo? — perguntou Ten.

Karou olhou para ela. A mulher-lobo não oferecia sua dor com muita frequência, e a garota se surpreendeu ao responder:

— Não, obrigada.

Foi só quando se ouviu pronunciar essa resposta que percebeu que ia fazer algo.

O que eu vou fazer?

Ah.

Ela brincou com o torno, apertando e afrouxando o parafuso. Será que ainda lembrava como? Fazia tanto tempo.

O que devo fazer para sentir dor?

Nada. Nada de dor para você. Só prazer.

Ainda brincando com o torno, ela disse a Ten:

— Imagino que você não conheça a história do Barba Azul.

— Barba Azul? — Ten olhou para o cabelo de Karou. — Parente seu?

Karou abriu um sorriso amargo.

— Eu não tenho nenhum parente, lembra?

— Ninguém mais tem — respondeu Ten simplesmente.

E era verdade, percebeu Karou. Todos ali tinham perdido... todo mundo. Eram um povo sem mais nada a perder.

— Bem — continuou ela, prendendo tranquilamente o torno na teia de pele e músculo que ligava o polegar à palma da mão. Era um ponto sensível. — Barba Azul era um lorde. Quando levou sua nova esposa para o castelo, entregou-lhe as chaves de todas as portas e disse que ela poderia ir aonde quisesse, menos abrir uma pequena porta que havia no porão. E que ela nunca deveria entrar lá.

Ela apertou o torno, e sentiu a dor começar a desabrochar dentro dela como uma flor.

— Imagino que tenha sido o primeiro lugar aonde ela foi — disse Ten.

— Assim que ele virou as costas.

Ten tinha acabado de se virar para pegar o bule de chá. Ao ouvir as palavras de Karou, virou-se novamente e soltou um palavrão.

Karou soube, pela reação dela, que tinha funcionado; finalmente se lembrara do encanto de invisibilidade de Akiva. Engraçado, a dor parecera uma grande coisa naquela época. Não mais. Pulsava no ritmo das batidas do seu coração, quase natural.

Não ocorreu a Ten que Karou pudesse nem ter se levantado dali. A mulher-lobo logo pensou que ela havia saído pela janela de novo, e portanto, quando se refez do choque e conseguiu agir, foi naquela direção. Karou saiu sorrateiramente pela porta. Foi uma ironia o fato de que a ausência da barra tenha facilitado sua fuga. Com cuidado para manter o encanto, desceu rapidamente e saiu ao pátio para ouvir o que pudesse antes que Ten chegasse lá com a notícia de seu desaparecimento.

Não ouviu muita coisa.

Não foi sua sombra que a entregou. O encanto não escondia sombras, então ela procurou se manter afastada da claridade e não fez nenhum barulho. Tinha certeza disso. Não estava nem tocando o chão. Ainda assim, fazia apenas alguns minutos que estava ali no pátio, tempo suficiente apenas para saber sobre a natureza doentia do “recado” que os rebeldes vinham enviando aos serafins e sobre... a reação do imperador — meu Deus, o céu escuro e brilhante com os soldados do Domínio, uma demonstração impiedosa de poder, da qual não haveria chance de ninguém escapar, nenhuma, nenhuma esperança —, quando Thiago parou no meio de uma frase, virou-se em seus pés de lobo e, levantando um pouco a cabeça, abrindo um pouco as narinas, farejou o ar.

E olhou para ela.

Karou congelou. Já estava imóvel, e a alguns metros de distância, porém ficou sem respirar, observando com pavor aqueles olhos sem cor. Não conseguiam localizá-la exatamente, mas estavam perto. Thiago farejou o ar de novo. Não podia vê-la, ela sabia disso, tampouco o restante do exército, que seguiu a direção do olhar do Lobo. Ainda assim — idiota, idiota —, eles sabiam, da mesma forma que Thiago, que ela estava por perto.

Eram feras. Podiam sentir seu cheiro.


36

VONTADE DE SORRIR

Ela tirou o torno no rio, deixou a magia se desfazer e observou seu corpo voltar a ficar visível. Sua mão estava arroxeada no ponto em que a prensa se prendera. Um hematoma. Algo podia ser mais insignificante que um hematoma?

Será que Thiago descobriria sobre o encanto? Aquilo fora uma estupidez. Se o Lobo suspeitasse de que ela podia ficar invisível, ele e sua espiã nunca mais tirariam os olhos dela. Sem falar que, se ele desconfiasse de que Karou podia fazer isso, iria querer saber como. Iria querer que todos os seus soldados soubessem como, e não seria bom, se isso pudesse ajudar os quimeras?

Ajudá-los a matar mais anjos enquanto dormiam?

Foi o que Tangris e Bashees tinham feito. Ninguém sabia exatamente como conseguiram; de alguma forma elas se envolviam nas sombras para se aproximarem sem serem vistas, mas só um encanto não explicaria os assassinatos em massa perpetrados em perfeito silêncio. Quem dormia tão profundamente a ponto de não acordar arfando ao sentir sua garganta sendo cortada? E, no entanto, as vítimas continuavam dormindo enquanto morriam, uma garganta após outra, toda a vida do lugar sendo eliminada até só restarem as assassinas.

Karou não sabia por que aquilo a incomodava. Era indolor. Quantos quimeras aqueles soldados tinham matado, certamente com menos compaixão?

Compaixão? Que pensamento terrível.

Karou permaneceu sentada, argumentando consigo mesma, desejando mais desesperadamente do que nunca ter com quem conversar. Havia alguns conflitos internos que ela simplesmente não conseguia solucionar. Não conseguia aceitar aquela brutalidade da qual fazia parte, e por isso vinha tentando fingir que aquilo não passava de um pesadelo, para poder seguir em frente.

Não conseguia aceitar a guerra.

Sua vida como Karou de forma alguma a preparara para aquilo. Guerra era uma coisa sobre a qual se ouvia falar no noticiário, e ela nem mesmo assistia ao noticiário, era horrível demais. E se achava que Madrigal poderia ajudá-la, como se seu eu interior pudesse torná-la capaz de aceitar aquela feia realidade, estava enganada também. Por que Madrigal tinha feito o que fizera, conspirando com Akiva pela paz? Porque não tinha estômago para a guerra, mesmo fazendo parte de sua vida. Sempre fora uma sonhadora.

E o que estava acontecendo em Eretz... Os rebeldes tinham piorado, e muito, as coisas. Tinham mexido em um ninho de vespas. Os rostos mutilados em sorrisos, as gargantas cortadas, o recado escrito com sangue. Onde Thiago estava com a cabeça ao provocar o império daquela maneira? E a resposta do império era rápida e assustadora. Para os quimeras, seria cataclísmica. A força total do Domínio enviada para exterminar civis?

O que Thiago tinha imaginado que aconteceria? O que ela imaginara?

Ela não tinha parado para pensar; não fizera questão de saber, e agora veja só.

Estou feliz... Estou feliz...

Karou tirou os sapatos e mergulhou os pés na água fria. Deviam estar procurando por ela na casbá, e a encontrariam facilmente. Ela esperava bem à vista. Após um bom tempo ouviu o barulho de asas, e então uma sombra a cobriu. Tinha chifres e, por um instante, alinhou-se com a própria sombra de Karou, fazendo parecer que os chifres eram dela.

Ziri.

Fora Ziri quem fizera os cortes na sua patrulha. Suas lâminas curvas — como as dela — eram perfeitas para isso; bastava enganchá-las nos cantos da boca de um cadáver e, com um giro rápido do pulso, estava feito: a representação de um sorriso. E foi isso que se tornou minha pequena sombra Kirin. Virou-se para olhar para ele, mas, como o sol estava bem atrás de Ziri, ela teve que proteger os olhos. Agora que ele a encontrara, parecia não saber o que fazer. Karou viu o olhar dele percorrer seus braços — uma confusão de hematomas e tatuagens — antes de voltar para seu rosto.

— Você está... bem? — perguntou Ziri, hesitante.

Eram as primeiras palavras que ele lhe dirigia. Se tivessem vindo antes, ela teria ficado muito feliz. Desde os assustadores primeiros dias que passara entre os rebeldes, ela esperava tê-lo como um amigo, um aliado; julgara reconhecer algo nele... compaixão? A doçura de sua juventude? Mesmo naquele instante, ela via o garoto nele, os olhos castanhos arredondados, sua seriedade e timidez. Mas ele tinha se mantido distante todas aquelas semanas, e agora, quando finalmente decidira falar com ela, já não importava mais.

— Você parece... — gaguejou ele, desconcertado. — Você não parece bem.

— Ah, não? — Só rindo mesmo. — Que surpresa.

Ela se levantou, espanou a poeira da calça jeans e pegou os sapatos. Olhou para Ziri — precisava erguer a cabeça, de tão alto que ele ficara. Em um de seus chifres tinha uma marca de corte, com vários sulcos raspados; bastava olhar para perceber que o chifre o salvara de um golpe fatal. Ele tivera sorte. Ela ouvira os outros quimeras dizerem isso. Ziri Sortudo.

— Não se preocupe comigo — disse Karou. — Da próxima vez que eu tiver vontade de sorrir, acho que sei quem procurar.

Ziri se encolheu como se tivesse levado um tapa. Karou passou por ele, subiu o barranco poeirento e seguiu em direção à casbá. Não voou, foi andando. Não estava com a menor pressa de voltar.

* * *

O irmão do imperador parecia cortado ao meio. Uma cicatriz começava no alto de sua cabeça, passava pelo meio do rosto, fazia a curva do queixo e então acabava — infelizmente —, quase na garganta. E também não era uma linha fina, mas um queloide franzido e lívido que dominava o que restava do nariz e partia seus lábios, revelando dentes quebrados. Ninguém sabia como ele tinha conseguido aquela marca. Ele afirmava ser uma cicatriz de batalha, mas rumores o contradiziam — embora fossem tantos e tão variados que era impossível descobrir qual (se é que algum era) o verdadeiro. Nem Hazael, com seu talento para descobrir as coisas, fazia ideia.

Qualquer que fosse a origem da cicatriz, o resultado é que era quase insuportável ouvir Jael comer, pois os sons que ele fazia eram como os de um cachorro lambendo suas partes íntimas.

Akiva mantinha o rosto impassível, como sempre, embora fosse um desafio. Ninguém causava tanto desconforto quanto o capitão do Domínio.

— Pense nisso como um grupo de caça — disse Jael casualmente após engolir meio pássaro defumado frio com uma golada de cerveja, sem se importar em limpar a saliva que escorria pela boca deformada. — Um grupo de caça bem grande. Você costuma caçar? — perguntou ele.

— Não.

— É claro que não. Soldados não têm gana por esportes... Até o inimigo se tornar a presa. Acho que você vai gostar.

Acho que não, pensou Akiva.

A força total do Domínio estava pronta para atacar os fugitivos do continente sul, vários milhares de tropas se preparando para deter sua fuga para as Terras Distantes e então seguir para o norte, matando toda criatura viva no caminho.

— Eu falei que era cedo demais para retirar nossa força principal — disse Jael. — Mas meu irmão não acreditou que o sul fosse uma ameaça.

— Não era — disse Ormerod, o comandante da Segunda Legião, que até então vinha supervisionando aquela varredura e que não estava, pelo que parecia a Akiva, muito feliz em ser destituído do cargo.

Estavam no pavilhão dele — um lugar não muito frequentado por Akiva. Longe disso. Bastardos não se sentavam à mesa principal ou comiam com seus superiores. Estava ali, desagradavelmente surpreso, a pedido de Jael.

— O príncipe dos bastardos — aclamara o capitão ao vê-lo chegar.

Akiva já fora obrigado a trabalhar com ele no passado. Mesmo na época, quando seus ideais estavam alinhados — a destruição de Loramendi, por exemplo —, ele o desprezava. E percebia que o sentimento era mútuo.

— Que honra — dissera Jael aquela manhã. — Eu não tinha pensado em procurá-lo aqui. Junte-se a nós para o café da manhã. Aposto que tem muitos comentários a tecer sobre nossa atual situação.

Ah, e como tinha, mas nenhum que pudesse ser expressado àquela mesa.

— O sul não era uma ameaça antes e continua não sendo agora — continuou Ormerod, sua honestidade sendo objeto da admiração de Akiva.

Ele quase se sentia obrigado a concordar com aquilo.

— Quem quer que esteja atacando os serafins, não é do povo.

— Sim, bem... os rebeldes estão se escondendo em algum lugar, não estão? — Jael suspirou. — Rebeldes. Meu irmão está irritado. Ele só quer planejar sua nova guerra. É pedir muito? E eis que a antiga volta, ressurgindo dos mortos.

Ele riu da própria piada, mas Akiva não.

Nova guerra? Tão cedo? Ele não iria perguntar. Curiosidade era fraqueza, e tanto Joram quanto Jael gostavam de prolongar o suspense e deixá-lo perdurar o máximo possível.

Ormerod aparentemente não tinha aprendido essa lição.

— Que nova guerra?

Jael manteve os olhos fixos em Akiva, com ar de divertimento, e seu olhar era direto e pessoal.

— É uma surpresa — respondeu, sorrindo, se é que se podia chamar aquilo de sorriso: a boca se contorceu em algo que era quase um esgar; os lábios pálidos repuxados pela cicatriz.

Eis um sorriso que os quimeras poderiam melhorar, pensou Akiva. Mas se Jael estava tentando provocá-lo, teria que fazer melhor que aquilo. Não era difícil de deduzir. Quem mais poderia ser o próximo alvo de Joram senão os serafins renegados, cuja liberdade e magia o irritavam havia anos?

Os Stelian.

Para Akiva, o povo de sua mãe eram mais fantasmas do que aqueles rebeldes surgidos do nada. Ele não permitiu aquele prazer a Jael. No momento, sua preocupação era a batalha presente e aquelas terras do sul onde o fogo serafim ainda lançaria morte a tudo que vivia ou respirava, fosse planta, animal ou fera. E agora? O desespero o dominou, impaciente, recusando-se a se acalmar. Ele pensou nos quimeras que tinha poupado e alertado. Seriam isolados, encurralados, capturados, mortos. O que ele poderia fazer? Milhares de soldados do Domínio. Não havia o que fazer.

— Para Joram, esta rebelião pode ser um estorvo, mas para mim é uma bênção — dizia Jael. — Precisamos ter alguma coisa para fazer. Acredito que um soldado ocioso é uma afronta à natureza. Você não concorda, príncipe?

Príncipe.

— Não acredito que a natureza pense em nós a não ser como um problema.

Jael sorriu.

— A terra queima, as feras morrem, e as luas choram no céu ao ver isso.

— Cuidado — alertou Akiva, também abrindo um ligeiro sorriso. — Os quimeras foram criados a partir das lágrimas da lua.

Jael o olhou friamente.

— O Ruína das Feras cuspindo mitos das feras. Você conversa com os monstros antes de matá-los?

— Devemos conhecer nossos inimigos.

— Sim. Devemos.

De novo aquele olhar: direto, pessoal, divertido. O que significava? Akiva não era nada para Jael além de um dos bastardos da legião de seu irmão.

Porém, quando a refeição por fim terminou, ele ficou se perguntando o que mais representaria para o capitão.

Jael empurrou sua cadeira para trás e ficou de pé.

— Obrigado por sua hospitalidade, comandante — disse ele a Ormerod. — Partiremos em uma hora. — Então se virou para Akiva. — Sobrinho. É sempre um prazer vê-lo. — Ele se virou para sair, mas então parou e voltou. — Eu provavelmente não deveria admitir isso agora que você é um herói, contudo fui a favor de o matarem na época. Sem ressentimentos, espero.

Akiva olhou para Jael, impassível. Quando sua vida estivera em discussão?

Ormerod se mexeu, inquieto, e gaguejou algumas palavras, mas nem Akiva, nem Jael lhe deram atenção.

— A conspurcação do seu sangue, você sabe — disse Jael, como se devesse ser óbvio. Então. A mãe dele, de novo. Akiva recompensou a ironia com o mesmo desinteresse que tinha mostrado diante da provocação sobre a nova guerra. Tinha apenas pequenos fragmentos de lembrança da mãe, além do comentário enigmático do imperador: Foi terrível o que houve com ela. Qual era o interesse de Jael? — Meu irmão tinha fé em que o sangue dele provaria ter força; Sangue é força, etc... E agora ele diz que estava certo. Você foi um teste, e os resultados foram gloriosos, então acho que não se pode dizer nada contra você agora. Que pena. Odeio estar enganado sobre essas questões.

E com isso, Jael do Domínio, o segundo serafim mais poderoso do império, se virou para sair, parando rapidamente apenas para dar uma ordem a Ormerod antes de continuar andando.

— Mande uma mulher para minha barraca, está bem?

Ormerod ficou pálido. Abriu a boca, mas não disse nada. Foi Akiva quem primeiro se ergueu. Lembrou-se das palavras de Liraz, e de “todas as outras garotas” de quem falara. Só lhe ocorreu naquele instante que sua irmã tinha falado sobre um medo que sentia. Não diretamente; ela não faria isso, e foi só então que ele sentiu o medo por ela, e por “todas as outras garotas” também. Não apenas medo. Fúria.

— Não temos mulheres aqui — disse ele. — Apenas soldados.

Jael parou. Suspirou.

— Bem, não se pode ser muito exigente em um campo de batalha. Uma delas terá que servir.

* * *

A um mundo de distância, o Lobo Branco preparava suas tropas. Reuniu-as no pátio ao anoitecer e as enviou em equipes aladas, sem exceção. Nove grupos de seis, além das esfinges, que formavam uma equipe separada. Cinquenta e seis quimeras. Parecera uma quantidade enorme durante o dízimo, tantos hematomas, mas, dali da janela, Karou imaginou-os em um céu cheio de soldados do Domínio e soube que não eram nada. Lembrou-se do sol brilhando nas armaduras, da envergadura flamejante das asas dos serafim, da terrível visão do inimigo pronto para a batalha — e se sentiu entorpecida. O que eles esperavam, lançando-se em ofensiva daquele jeito? Era suicídio.

Eles se ergueram no ar, em formação de esquadrão, e voaram.

Ziri não olhou para a janela dela.


37

SUICÍDIO

Não era suicídio.

Os esquadrões não foram em direção ao sul quando passaram pelo portal. Os cinquenta e seis não voaram para ajudar as criaturas nas Terras Distantes que espiavam por entre as copas das árvores para ver por que o sol se escondia e o que o céu lhes trazia. Afinal, o que cinquenta e seis poderiam ter feito contra tantos? Thiago não acreditava em suicídio. Teria sido uma jogada sem propósito, um desperdício de soldados.

Os rebeldes não estavam presentes para testemunhar os quimeras desesperados correndo e caindo, correndo, caindo, tentando ficar de pé de novo, agarrando seus bebês e levantando os idosos pelos cotovelos. Não viram a tormenta de seu povo. Não os viram morrer às centenas, perseguidos enquanto fugiam de florestas incendiadas e mortos muito perto de chegarem a um lugar seguro. E não morreram defendendo esses quimeras, porque não estavam lá.

Estavam no império, causando uma outra tormenta.

— Estamos em vantagem dupla agora — dissera Thiago. — Em primeiro lugar, eles não sabem onde estamos, assim como não sabem quem ou o que somos. Somos fantasmas. Em segundo, agora somos fantasmas alados. Graças a nossa nova ressurreicionista, temos uma liberdade de movimento que nunca tivemos antes, o que nos permite cobrir uma distância muito maior. Eles não esperam ser atacados no próprio território. — O Lobo aguardou até que todos ficassem em silêncio para só então acrescentar, com a delicadeza perversa que lhe era característica: — Os anjos também têm seus lares. Os anjos têm mulheres e crianças.

E agora não teriam tantos.

* * *

Somente um líder de equipe desafiou as ordens do Lobo: Balieros. O corpulento touro-centauro se recusou a virar as costas para seu povo. Quando as equipes se separaram em direção aos seus territórios designados, ele apresentou a opção aos seus soldados, e todos o seguiram, com orgulho. O urso Ixander; o grifo Minas; Viya e Azay, ambos da tribo dos Cervos, como era o Comandante; e Ziri. Voaram para o sul, suas asas cortando nuvens e deixando muitas léguas para trás. Porém, por mais rápido que voassem, a terra que um dia tinham defendido era de uma vastidão imensa, e já fazia um dia que estavam voando quando por fim viram os bastiões das Terras Distantes ao longe.

Meros seis soldados em um redemoinho de asas inimigas — aquilo sim era suicídio, e só podia terminar de um jeito.

Eles sabiam, e voaram em direção a seu fim, corações ardendo e sangue pulsando, infinitamente mais vivos em sua perdição do que o restante dos soldados, que seguiu para o outro lado com toda a chance de sobreviver.

* * *

— E então — começou Hazael, aproximando-se silenciosamente de Akiva enquanto aguardavam a ordem para voar. Seguiriam Ormerod naquele dia, as duas patrulhas unidas para reforçar o Domínio, que já havia saído. — O que fazemos agora, irmão? Você acha que vamos encontrar muitos pássaros por aí hoje?

Pássaros?

Akiva olhou para ele. Nunca tinham falado sobre os quimeras na ravina. “Deve ter sido um pássaro”, eles haviam concordado na ocasião, fingindo não ver o grupo encolhido a sua frente.

— Infelizmente não muitos, acho — respondeu Akiva.

— É, imagino que não. — Hazael colocou a mão no ombro do irmão, deixando-a repousar ali por um tempo. — Mas talvez alguns.

Ele se virou; Liraz estava vindo. Hazael foi ao encontro dela, deixando Akiva sozinho com seus pensamentos.

Talvez alguns. Seu ânimo melhorou, ainda que só um pouco.

Quando receberam a ordem de levantar voo, ele deixou a desesperança no acampamento e levou consigo apenas seu empenho. Não se iludiu pensando que aquele seria um dia de atos heroicos. Seria um dia de morte e terror, como tantos outros, como muitos outros, e um — ou seriam dois? — serafim renegado não podia esperar salvar muitas vidas.

Mas talvez algumas.


38

O INEVITÁVEL

O tilintar metálico dos turíbulos, o tinido suave dos dentes.

Os dedos de Karou trabalhavam sem descanso nas bandejas. Selecionando, tecendo. Dentes, dentes. Gente, touro. Lascas de jade, ferro. Dentes de iguana — serreados e terríveis —, ossos de morcego. Selecionando, tecendo. Quando chegou aos dentes de antílope, ela se recostou e os observou.

— Para quem são esses?

Karou se assustou e fechou a mão em volta deles. Tinha se esquecido de Ten por um instante. Observando. A mulher-lobo estava sempre observando.

— Para ninguém — respondeu, e os colocou de lado.

Ten deu de ombros e voltou à tarefa de misturar incenso.

No Museu de História Natural de Londres, Karou hesitara ao lado do lindo órix macho por alguns minutos, passando as mãos por seus longos chifres sulcados, lembrando-se de como era sentir aquele peso na própria cabeça.

— Você poderia ser Kirin de novo — dissera Ten, mas a ideia nunca ocorrera a Karou.

Os dentes de antílope não eram para ela, mas para Ziri, e Karou nem quisera levá-los. Supersticiosamente, a preparação lhe parecera capaz de atrair a morte dele — como cavar um túmulo antes do falecimento de alguém. Sim, a morte era esperada, a morte era rotineira, mas... não para Ziri.

Ziri Sortudo.

Extraordinariamente, ele ainda tinha seu corpo natural. Fosse por sua velocidade ou habilidade — ou sorte, ele seria o primeiro a dizer —, nunca havia morrido. E, por mais tolo e hipócrita que fosse se preocupar com a “pureza” dele, era assim que Karou se sentia. Ele era o último de sua tribo, o último sangue verdadeiro de seu povo. Havia algo de sagrado nisso, e, quando ele saíra naquela primeira missão, um temor frio se cristalizara nela e crescera, só se acalmando quando ela o vira voltar.

E agora Karou esperava de novo — vê-lo apenas, e assim saber que os Kirin ainda não tinham desaparecido do planeta —, mas desta vez não era como antes. Desta vez ela não sabia como ele poderia voltar. Suas palavras de despedida para ele — suas únicas palavras para ele — tinham sido muito cruéis, como se Ziri fosse o culpado pelo que estava acontecendo. Algum dia ela teria a chance de retirar o que dissera?

Selecionando, tecendo. Dentes, dentes.

As horas passavam, e seu medo aumentava. O sol nasceu, arrastando as muitas horas atrás de si, e nunca um dia naquele lugar parecera tão lento, tão quente, tão interminável. Karou se sentia envelhecida quando finalmente chegou o crepúsculo. Várias vezes se pegou com os dentes de antílope nas mãos.

Naquela noite em Londres, ela acabara por levar seu alicate até a boca do órix. Não estava atraindo a morte de Ziri, se convencera, mas se preparando para sua inevitabilidade. Todos os soldados quimeras morriam. Talvez a hora dele tivesse chegado. Ela tentou imaginá-lo voltando em um turíbulo, sua verdadeira carne — o último Kirin em toda Eretz — abandonada em algum lugar, ferida ou queimada... e descobriu que conseguia enfrentar isso.

Desde que não tivesse que considerar a outra possibilidade: de que ele talvez não voltasse de forma alguma.


39

DESAFIO NÚMERO UM

Em uma estrada de terra no sul do Marrocos, um carro parou ruidosamente, despejando dois passageiros e suas mochilas antes de se afastar em meio a uma nuvem de poeira e desejos berberes de boa sorte. Zuzana e Mik cobriram o rosto, tossindo. O ronco do motor foi enfraquecendo, e, quando a poeira baixou e eles olharam em volta, viram-se às margens de um imenso vazio.

Zuzana inclinou a cabeça para trás.

— Caraca, Mik. O que são aquelas luzes sinistras?

Mik olhou para cima.

— Onde?

Ela apontou para o céu — o céu inteiro —, e ele olhou de um lado para o outro duas vezes antes de se virar para ela e perguntar:

— Você quer dizer... as estrelas?

— Até parece. Já vi estrelas. São como pontos distantes no espaço. Essas estão bem ali.

O que à luz do dia parecia uma terra austera, do tom invariável de areia, se tornava, à noite, uma tapeçaria escura carregada de estrelas. Mik riu, e Zuzana também, e os dois praguejaram e se maravilharam, com a cabeça erguida.

— Dá para pegar essas coisas como se fossem frutas — disse Zuzana, esticando a mão e sacudindo os dedos para o alto.

Logo ficaram em silêncio, ali parados contemplando a superfície áspera e irregular daquela terra. Parecia uma paisagem saída de um documentário — e não do tipo agradável.

— Não vamos morrer aqui, vamos? — disse Mik, com a voz animada.

A resposta dela foi firme:

— Não. Isso só acontece nos filmes.

— Claro. Na vida real, os bobos da cidade nunca morrem no deserto para virarem esqueletos descorados...

— Que serão esmagados pelos cascos dos camelos — acrescentou Zuzana.

— Acho que camelos não têm cascos — disse Mik, meio incerto.

— Bem, com ou sem cascos, eu daria um beijo na boca de um camelo agora mesmo. Acho que devíamos ter arrumado uns.

— Você tem razão — concordou ele. — Vamos voltar.

Zuzana bufou.

— É sério, intrépido explorador do deserto? Não faz nem cinco minutos que chegamos aqui.

— E onde exatamente é aqui? Como você sabe que estamos no lugar certo? Parece tudo igual.

Ela pegou um mapa. Todo rabiscado de caneta vermelha e carregado de post-its, não inspirava muita confiança.

— Aqui é aqui. Não confia em mim?

Ele hesitou.

— É claro que sim. Sei o quanto você se empenhou nisso, mas... esta não é exatamente a nossa especialidade.

— Ah, qual é. Agora eu sou uma expert. — Zuzana teria gabaritado qualquer teste sobre o sul do Marrocos depois do tanto que pesquisara, e achava que devia se qualificar como nômade honorária por isso. — Eu sei que é aqui que ela está. Tenho certeza. Até aprendi a usar uma bússola! Temos água. Temos comida. Temos um telefone... — Ela olhou para seu celular. — Que está sem sinal. Bem, temos água. Temos comida. E avisamos às pessoas aonde iríamos. Ou quase. Qual é o perigo?

— Além dos... dos monstros?

— Ah, monstros. — Como se não fosse nada de mais. — Você já viu os cadernos de desenho da Karou. Eles são monstros legais.

— Monstros legais — repetiu Mik, observando o deserto cheio de estrelas.

Zuzana abraçou a cintura dele.

— Nós chegamos até aqui — disse, procurando persuadi-lo. — Este pode ser um dos seus desafios.

Ele se animou com a ideia.

— Quer dizer os desafios dos contos de fadas?

Ela assentiu.

— Hum, então tudo bem. Nesse caso, melhor irmos andando.

Ele pegou sua mochila e segurou a de Zuzana enquanto ela passava os braços pelas alças.

Saíram da estrada rumo à vastidão que se estendia à frente deles.

— Talvez eu devesse ter perguntado isso antes — disse Mik —, mas são quantos desafios?

— São sempre três. Agora vamos. Devem ser uns vinte quilômetros... — Ela fez uma careta. — De subida.

— Vinte quilômetros? Amor, você já andou vinte quilômetros?

— Claro — disse Zuzana. — No total.

Mik riu e balançou a cabeça.

— Que bom que você deixou as plataformas para trás.

— Até parece. Botei na sua mochila.

— Na minha...? — Mik flexionou os ombros, sacudindo a mochila e o estojo do violino. — Bem que eu achei que ela parecia mais pesada.

Zuzana fez cara de inocente. Tinha calçado o que era sua ideia de uma escolha sensata de sapatos. Eram tênis, mas o solado de espuma era mais grosso do que o estritamente necessário, sem falar que tinham estampa de zebra. Ela deu um puxão na mão de Mik e os dois mergulharam no deserto. Estavam ambos animados com a aventura, mas Zuzana só faltava sair saltitando, tamanho era seu entusiasmo. Em breve veria novamente sua amiga.

Além de um gigantesco castelo de areia.

Cheio de monstros.


40

ERRADO

Mais uma noite caiu sobre a casbá, as estrelas nunca tão lentas em seu arco quanto quando havia vidas em jogo.

Karou se distraía com o trabalho, com a renovada urgência na feitura dos corpos. Tentava não pensar que estava começando do zero, mas era difícil, considerando que as probabilidades eram muito sombrias.

Podia levar dias para ficarem sabendo de alguma coisa. Era um longo caminho até as Terras Distantes, tendo que passar por todas as terras livres e o vasto continente meridional. Sem asas, teriam sido várias semanas de uma caminhada penosa, mas isso era coisa do passado, felizmente. Karou se lembrava de ficar irritada, quando era Madrigal, com o ritmo insuportável de seus batalhões. Mas com asas, dependendo do que acontecesse, as patrulhas podiam voltar em questão de dias.

Ou nunca mais.

A possibilidade de ninguém voltar era bem real, e a tensão de saber disso, e esperar, esperar para saber alguma coisa sem nunca saber de verdade, isso era tão antigo quanto a própria guerra, e o pior tipo de espera, arrastada e infeliz, em que podia pensar.

Então ela ficou surpresa ao ouvir o alerta da sentinela logo após o amanhecer — cedo demais. Chegou à janela em um instante, com um colar de dentes ainda nas mãos. Subiu no parapeito na ponta dos pés e continuou, subindo em direção ao céu. Não fazia nem trinta e seis horas e já surgiam formas no horizonte, uma patrulha inteira. Parecia um milagre.

Mais um minuto e ela pôde identificar a figura imensa de Amzallag. Era a equipe dele.

Nada de Ziri, então.

Por enquanto. Ela ignorou a decepção que sentia. Estava feliz ao menos de ver Amzallag, e surpresa em saber que uma equipe — qualquer equipe, ainda que não fosse a que mais esperava — havia retornado intacta de uma batalha tão difícil, e tão rápido! Pousou nas telhas verdes e ficou vendo-os aterrissar. Thiago apareceu para falar com eles, como sempre fazia, e apertou seus braços, sem parecer especialmente satisfeito ou surpreso. Ela não conseguiu ouvir o que diziam, mas podia ver que as mangas dos soldados estavam endurecidas de sangue ressecado.

Outra patrulha retornou, e mais outra.

O sol subiu, os esquadrões voltavam para casa um a um, e o milagre disso começou a parecer suspeito. Como era possível que não tivessem perdido ninguém? No meio da manhã, todas as equipes tinham retornado, menos a de Balieros, e Karou mal conseguia respirar com o bolo que sentia na garganta.

— Para onde eles foram? — perguntou ela a Ten ao voltar para seu quarto, procurando se ocupar com o trabalho.

— Como assim? Eles foram às Terras Distantes — respondeu a mulher-lobo, mas Karou sabia que era mentira.

Estavam de volta cedo demais, vivos demais, e havia algo de errado com o clima. Estava pesado.

Dali de cima ela viu o soldado Virko — que, com seus chifres espiralados de carneiro, lembrava um pouco Brimstone — ir para o contraforte do xixi e vomitar, caído de joelhos. O som que ele fazia crescia e sumia, crescia e sumia, atravessando em ondas o pátio onde o restante da companhia, que andava por ali em um silêncio estranho, ficou ainda mais quieta, parecendo evitar olhar uns para os outros.

Amzallag se sentou sob a arcada e pôs-se a limpar a espada. Quando Karou olhou lá para baixo, uma hora depois ou até mais, ele continuava no mesmo lugar, seus movimentos violentos, furiosos.

No entanto, foi quando avistou Razor que Karou sentiu a boca se encher com a saliva doce que antecede a ânsia de vômito. O que quer que as equipes tivessem feito naquele período de um dia e meio — o que, de forma alguma, seria tempo suficiente para chegar às Terras Distantes e voltar —, tinha acrescentado um balanço arrogante a seu silencioso e suave caminhar reptiliano, e... ele carregava um saco. De tecido marrom, cheio e pesado, e... manchado com um fluido cuja cor era indeterminada em razão do tom do próprio saco. Karou segurou a ânsia de vômito; ela sabia que líquido era aquele e de que cor, e por mais que tivesse se repreendido por sua ignorância deliberada alguns dias antes, não queria saber mais do que aquilo.

Então se viu de novo com os dentes de antílope na mão, e os colocou de lado. Volta e meia ela ia de novo até a janela. Ten lhe deu uma bronca pela falta de concentração, mas ela não conseguia se conter. Havia algo de errado.

Errado.

Errado.

E então, finalmente, enquanto a hora mais quente do dia lentamente ia embora, a sentinela deu o alerta de novo. Ziri. Karou se lançou pela janela. O céu estava da cor do cobalto, sem nuvens e sem profundidade, sem nada a esconder.

Vazio. Ela se virou para a torre da sentinela, confusa. Era Oora quem estava de guarda, mas ela não olhava na direção do portal. O Lobo apareceu ao seu lado, e Oora apontou para baixo, ao longe. Karou teve que estreitar os olhos para enxergar o que eles estavam vendo. Quando conseguiu, disse baixinho:

— Não. Não, não. Não.

Humanos, dois, subindo com dificuldade a base rochosa do penhasco.

Indo diretamente para a casbá.


41

LOUCA ALQUIMIA

Dessa vez, quando os anjos vieram para cima deles, Sveva buscou seus olhos: nenhum era de fogo; ela observou suas armaduras, e não encontrou nenhum lírio. Eram outros anjos. Que azar.

Chegar tão perto de um lugar seguro...

Ela realmente tinha achado que conseguiriam. As montanhas eram tão grandes, e a cada momento pareciam mais perto do que de fato estavam. Pareciam ao alcance das mãos. Até que, no alto de uma encosta que esperavam que fosse a última — a última colina antes que a terra se transformasse naqueles grandes paredões de granito, que eram como os próprios muros do mundo —, outro vale se abriu a seus pés. Outra vastidão a percorrer, mais uma elevação a subir. Parecia que lhe pregavam uma peça.

Mas aquele era mesmo o último trecho. Sveva via o lugar onde uma campina encontrava uma fileira de imensas pedras abauladas.

— Parecem dedos de um pezão gordo — acabara de dizer, não fazia nem dois minutos, sorrindo com os outros. Tinha girado Lell, e a bebê sorrira. — Os dedos da montanha — cantarolara. — Chegamos aos dedos da montanha. — E se empinou, abraçando a pequena Caprina junto ao peito, ainda cantando sua música feliz e tola... — Será que é fedorento ali entre os dedões da montanha?

Então Sarazal gritara:

— Svee!

Ela olhou, e lá estavam eles. Anjos. Os anjos errados.

Ainda assim, Sveva ficou dividida entre o ódio e uma esperança que nem sequer existia alguns dias antes. Eles haviam encontrado compaixão uma vez; por que não de novo? A compaixão, descobrira ela, produzia uma louca alquimia: uma única gota podia diluir um lago de ódio. Em razão do que acontecera na ravina, agora serafins eram para ela mais do que traficantes de escravos e assassinos alados desprovidos de individualização.

E, no entanto, quando aqueles serafins chegaram, brandindo espadas já vermelhas e sem compaixão nenhuma nos olhos, ela não teve problemas em gritar:

— Mate-os!

Rath avançou em um pulo.

Os anjos não o tinham visto. Estavam quase sorrindo, aqueles dois com suas armaduras reluzentes. Viram um grupo de Caprina, duas meninas Dama, dois Cervos já velhos e grisalhos — presas fáceis, todos eles. E o Dashnag? Ele vinha por último na fila; não o viram até que já estava em cima dos dois, já ao alcance de suas espadas e derrubando-os no chão, lutando, rasgando.

Eles gritavam.

Sveva não queria ficar olhando, mas se obrigou, e foi assim que viu um deles liberar um braço e erguer a espada, golpeando Rath nas costas. Ela entregou Lell à irmã, saiu em disparada com a faca que pegara dos traficantes e a cravou no inimigo. Enfiou a lâmina em um pequeno vão não coberto pela armadura do anjo. Esfaqueou-o na axila, bem fundo, e ele largou a espada.

E morreu.

Então é essa a sensação, pensou ela quando a coragem deu lugar ao tremor. É horrível. Sua faca estava escorregadia, seu estômago se revirava. Sarazal agarrou seu ombro.

— Svee, vamos!

Sua voz era carregada de urgência. E então eles se viram mergulhados nas sombras, todos. Sombras que rodopiavam, se entrelaçavam. Mais anjos no alto. Sveva olhou para o alto.

Muito mais anjos.

Rath rugiu. Sveva olhou para a irmã, para Lell, para Nur, que estendia os braços tentando pegar a filha, para todos os outros Caprina e para o velho casal Cervo, e segurou sua faca com força, apontando para os dedos de pedra à distância.

— Corram! — gritou.

E eles correram.

Ela ficou com Rath.

Olhe só para mim, pensou ela, com um orgulho estranho e frio. Tudo era nítido e claro. Esfaquear alguém era horrível, e ela nunca antes teria acreditado que ficaria em vez de sair correndo. Adorava correr. Mas também se sentia bem ficando. Olhou para Rath. Ele devolveu o olhar. Sveva pensou que ele talvez fosse encorajá-la a fugir, mas não. Talvez ele apenas soubesse que não adiantaria, que não havia lugar seguro, mas talvez... talvez gostasse de não estar sozinho. Afinal, era apenas um garoto.

Sveva sorriu para Rath, e ali ficaram eles, tão perto do fim da jornada que podiam sentir a névoa das cachoeiras que desciam do alto. Mas agora estavam sob as sombras dos anjos, de onde provavelmente nunca mais sairiam.

A não ser, é claro, que acontecesse outro milagre.

Quando as figuras surgiram acima da linha das árvores, Sveva quase não pôde acreditar. Se não os tivesse visto antes, teria tanto medo deles quanto tinha dos anjos. Eram muito mais assustadores que anjos.

Eram espectros. Quimeras.

Vinham salvá-los. Parecia aquela noite em que a caravana dos escravos tinha sido libertada, mas agora era dia e ela podia vê-los claramente. Reconheceu alguns: o grifo que soltara sua algema e o centauro que tinha desenroscado o metal que prendia Sarazal. Sveva procurou o outro — o bonito com chifres, que colocara aquela faca em suas mãos —, mas não o viu.

Eram cinco rebeldes contra o triplo de seu número, mas atacaram os serafins com uma fúria inescapável.

Depois do primeiro confronto, do baque surdo dos primeiros corpos caindo — todos inimigos —, Rath enfim se virou para Sveva e a instou a fugir. Os olhos dele brilhavam.

— Eu sabia que eles voltariam — falou com fervor. — Sabia que não nos abandonariam. Vá, Sveva. Alcance os outros. Cuide deles, e diga adeus por mim. — Ele pousou uma das imensas mãos com garras no ombro dela. — Boa sorte.

— Mas e quanto a você?

— Eu lhe disse que estava procurando os rebeldes. — Ele estava feliz; Sveva viu que era isso que ele queria o tempo todo. — Vou me juntar a eles.

E foi o que ele fez. Quando Sveva fugiu, Rath ficou e lutou com os rebeldes.

E morreu com eles, bem ali junto aos dedos das montanhas.

E foi arrastado junto com eles para uma grande pilha de corpos.

E queimado.


42

ZIRI SORTUDO

— Vamos — disse Hazael. — Não há mais nada que possamos fazer.

Mais? Isso implicaria terem feito alguma coisa. Mas não haviam encontrado nenhuma oportunidade. Muitos soldados do Domínio, uma área aberta grande demais. Akiva balançou a cabeça e não disse nada. Talvez seu voo noturno tivesse espantado as criaturas de seu lugar de descanso, talvez tivesse conseguido que alcançassem as ravinas e túneis antes dos anjos. Ele nunca viria a saber. Tudo o que saberia era aquilo que via agora diante de si.

O céu estava perfeitamente limpo, com um tom de azul primaveril. Imaculado. A fumaça ainda estava contida a finas colunas, aqui e ali. Daquela posição no alto das rochas, o mundo parecia um rendilhado de copas de árvores e grama, e os rios que corriam ao sol eram como veios de pura luz percorrendo os contornos das colinas. Montanhas e céu, árvore e rio, e o brilho das asas à medida que os esquadrões do Domínio se moviam de um lugar a outro, ateando fogo a tudo. Aquele lugar era úmido, cheio de trepadeiras: véus de névoa e cachoeiras. Não queimaria facilmente.

Em um lugar como aquele, em uma paisagem como aquela, era quase impossível aceitar o que acontecera ali hoje. Mas as aves carniceiras não deixavam dúvidas.

Eram tantas. Aquelas aves sentiam o cheiro de sangue no ar a quilômetros de distância. A julgar pelo seu número — e pela avidez espasmódica de suas espirais em geral lânguidas —, o cheiro devia estar bem forte.

— E lá estão nossos pássaros — disse Akiva, derrotado.

Hazael entendeu.

— Tenho certeza de que alguns conseguiram chegar a um lugar seguro.

Logo depois Akiva percebeu que dissera isso com Liraz bem ao lado deles. Ela agora olhava para os irmãos. Akiva esperou que ela dissesse alguma coisa, mas Liraz apenas se virou e olhou para os picos das montanhas.

— Dizem que não é possível cruzá-los voando — disse ela. — O vento é forte demais. Só caça-tempestades conseguem sobreviver.

— O que será que há do outro lado? — comentou Hazael.

— Talvez reflita o que há neste, e os serafins de lá tenham caçado os quimeras até os túneis também, e eles vão se encontrar no meio, no escuro, e descobrir que não existe nenhum lugar seguro no mundo todo, nenhum final feliz.

— Ou — disse Hazael, radiante — talvez não haja serafins do outro lado, e exista um final feliz. Sem nós.

Ela voltou o olhar para ele abruptamente. Seu tom, que estava curiosamente distante, endureceu:

— Vocês não querem mais fazer parte de nós, não é? — Ela olhava rapidamente de um para o outro. — Acham que não estou vendo isso?

Hazael contraiu os lábios e olhou de relance para Akiva.

— Eu ainda quero — disse ele.

— Eu também — disse Akiva. — Sempre. — Então se lembrou do céu do outro mundo, quando detivera os dois em sua caçada por Karou e se forçara a lhes contar, finalmente, toda a verdade. Que ele amara uma quimera e sonhara com uma vida diferente. Ele se arriscara a dizer, na época, que sua irmã era mais do que uma arma do imperador e que, se ela descartara a ideia de harmonia, pelo menos não se voltara contra ele. Akiva achava que era o único que estava cansado daquelas mortes? Havia Hazael também. Quantos mais pensavam assim? — Mas podemos ser melhores do que isso — completou.

— Podemos ser melhores? — disse Liraz. — Olhe para nós, Akiva. — Ela ergueu as mãos, mostrando as marcas de tinta. — Não podemos fingir. Carregamos as marcas do que fizemos.

— Só das mortes. Não há marcas para compaixão.

— Mesmo se houvesse, eu não teria nenhuma.

Akiva olhou em seus olhos e viu neles uma espécie de conflito.

— Você só precisa começar, Lir. Compaixão gera compaixão, assim como sangue gera sangue. Não podemos esperar que o mundo seja melhor do que aquilo que o fazemos ser.

— Não — disse Liraz, e sua voz saiu fraca, e por um instante ele achou que ela falaria mais alguma coisa, investigaria mais a fundo, exigiria saber seus segredos. Ou quem sabe confessaria os dela? Mas, quando se virou, ela disse apenas: — Vamos embora daqui. Estão queimando os mortos, e não quero sentir o cheiro.

* * *

Ziri contemplava as chamas. Estava no alto de uma encosta, na segurança provida pelas árvores.

Segurança. A palavra lhe pareceu absurda. Não havia segurança alguma. Era melhor que os anjos ateassem fogo no mundo inteiro e acabassem com tudo logo. As coisas que ele vira queimar naqueles últimos meses... Fazendas, rios cheios de óleo. Crianças correndo em fuga e gritando — em chamas —, até não poderem mais correr e gritar. E, agora, seus amigos.

Ele apertava o punho da faca com tanta força que seus dedos pareciam capazes de atravessar o couro e sentir o aço embaixo, e atravessá-lo também. Segurança, pensou de novo. Era pior do que absurdo: era profano. Assim como a ordem que recebera, ficar em segurança.

Balieros ordenara que ele se escondesse.

Em toda missão, sempre era preciso que alguém ficasse escondido, em segurança, para em alguma eventualidade como aquela colher as almas dos outros caso fossem mortos. Era uma honra, um grande voto de confiança — a de ter nas mãos a perpetuidade de seus companheiros —, e também uma tortura.

Ziri Sortudo, pensou com amargura. Ele sabia por que Balieros o escolhera. Era tão raro um soldado estar em seu corpo original; o comandante lhe dera a chance de conservá-lo. Como se ele se importasse com isso. Ser o único restante era pior. Fora obrigado a assistir ao massacre sem fazer nada. Até o garoto Dashnag tinha lutado — e bem —, mas não Ziri, embora seu corpo e sua mente tivessem lhe implorado que voasse até a luta.

A única transgressão que se permitira tinha sido matar um serafim que perseguira a pequena garota Dama, um cervo-centauro, linda como uma boneca. Era a mesma menina que ele ajudara a libertar dos traficantes de escravos nas colinas Marazel, e ela empunhava a faca que ele lhe dera. E pensar que tinham chegado tão longe e quase morrido bem ali. Ele viu seu grupo, as garotas Dama e os Caprina, desaparecer em uma fenda nas rochas, o que era bom. Assim tinha algo sólido a que se agarrar enquanto assistia à morte de seus companheiros. Saber que aquilo tudo não tinha sido em vão.

Os cinco tinham tirado cinco vezes mais vidas do que as que perderam, e o garoto Dashnag tinha sido responsável por boa parte deste número. Ziri vira os serafins observando boquiabertos os mortos, gesticulando — Ixander principalmente, cujo corpo tivera que ser arrastado por três deles quando tudo terminara. Eles empilharam os cadáveres e então, assassinos profanos que eram, cortaram suas mãos antes de atearem fogo neles. Cortaram e guardaram as mãos — por quê? Como troféus? —, e então incendiaram toda a clareira e assistiram às chamas devorarem os cadáveres mutilados. Ziri sentia o cheiro agora — misturado ao doce aroma da grama carbonizada, havia o fedor de pelos e chifres queimados, e, o mais horrível de tudo, o cheiro de carne assada —, e imaginou as almas dos companheiros pairando na clareira, mantendo uma tênue ligação com seus corpos queimados pelo máximo de tempo que pudessem.

Ele não podia esperar muito mais. Queimar os corpos acelerava a evanescência, e já fazia horas. Logo seria tarde demais. Se Ziri tinha alguma esperança de salvar seus companheiros, tinha que fazer isso agora.

Os anjos tinham ficado ali desde a manhã até a tarde, mas finalmente estavam indo embora, levantando voo com toda a sua abominável graça e se afastando.

Ele desceu a encosta decidido, mantendo-se sob o abrigo das árvores. Quando chegou à clareira, o inimigo já havia desaparecido no horizonte. Ele examinou o lugar. O fogo serafim era devastador, ardendo tão intensamente que os corpos tinham sido completamente destruídos. Um vento começava a se levantar, revirando o monte de cinzas, soprando-as nos olhos de Ziri e, pior, espalhando o pouco que as almas tinham a que se agarrar. Ele acendeu quatro cones de incenso no turíbulo e o segurou com firmeza. Cinco soldados e um voluntário. Esperava ter conseguido colher a alma de todos, inclusive a do menino.

Pronto, fizera todo o possível. Ele girou a parte de cima do turíbulo para fechá-lo e atravessou a alça do bastão nas costas. Observou o céu. Estava vazio, mas ele sabia que precisava esperar escurecer para voar — mais tempo se escondendo, esperando. Os soldados do Domínio estavam por toda a parte, ainda espalhando o recado do imperador de forma terrivelmente eficiente, e, como ele vira... gostando do que faziam.

A princípio, no ataque inicial dos rebeldes, Ziri odiara cortar os sorrisos do Comandante nos mortos, mas agora só conseguia pensar que a alegria sombria dos anjos tinha que ter uma resposta à altura.

E se o ato de revidar despertasse também nele uma alegria sombria? O que Karou pensaria disso? Não. Ziri afastou o pensamento. Ele não gostara nem um pouco, mas também não podia culpar Karou pelo desprezo com que o tratara. Naquele dia no rio, ele se surpreendera com a dor profunda que sentira — com a forma como ela o olhara, a forma como fora embora. Na hora ele tentara ocultar a vergonha sob um véu de raiva — quem era ela para desprezá-lo? —, mas já não podia mais se enganar. Quando Balieros reunira a tropa para lhes perguntar se estavam com ele, se queriam massacrar inimigos civis ou ajudar o povo, Ziri pensara logo em Karou, em apagar o desprezo dela e substituí-lo por outra coisa. Respeito? Aprovação? Orgulho?

Talvez ele ainda fosse aquele garotinho apaixonado, afinal.

Ziri balançou a cabeça. Depois virou-se em direção às copas das árvores que o ocultavam. E foi então que os viu ali, observando-o: três anjos de braços cruzados.


43

UMA HISTÓRIA DIVERTIDA

— Você — disse Ziri.

Dizia-se entre os quimeras que todos os serafins se pareciam, mas qualquer quimera saberia quem era aquele anjo logo ao vê-lo. A cicatriz que dividia seu rosto era única.

Ziri assoviou.

— Espere até meus amigos ouvirem que matei o capitão do Domínio. Eles não vão acreditar.

Jael riu, com um som úmido. Ele deu um passo à frente, e seus soldados se espalharam para cercar Ziri. Três anjos não o preocupavam muito, mesmo que um deles fosse o irmão do imperador. Três eram fáceis de matar. Mas então ouviu um som vindo de trás, se virou e viu mais... seis... emergirem da mata a distância. Ah. E quando olhou de volta para Jael, havia mais três atrás dele. Uma dúzia.

Então era a morte.

Provavelmente.

— Sabe, todo soldado quimera se diz o autor dessa sua cicatriz — disse Ziri a Jael. — É uma brincadeira que fazemos quando estamos entediados, para ver quem inventa a melhor história. Quer ouvir a minha?

— Todo soldado quimera? — indagou Jael. — E quantos são hoje em dia, quatro? Cinco?

— Bem, um quimera vale... — ele fez toda uma encenação para contá-los e então abriu um largo sorriso — pelo menos uma dúzia de serafins. Então isso deve ser levado em conta.

Ele pegara suas lâminas logo que os vira. Estavam mantendo distância por enquanto, mas Ziri sabia que se aproximariam e tentariam pegá-lo. Que viessem. Toda a angústia das últimas horas estava viva em suas mãos — seus dedos latejavam no punho das armas.

— A história é mais ou menos assim — começou Ziri. — Estávamos jantando juntos, você e eu. Como fazemos de tempos em tempos. Era um tetraz. E o tempero tinha passado do ponto. Você matou o cozinheiro por isso. Temperamento ruim, sabe? — E acrescentou como um aparte instrutivo: — São detalhes assim que fazem uma história parecer real. Mas enfim: você ficou com um osso preso no bigode. Já mencionei que você tinha um bigode?

Jael não tinha bigode. Ziri sentiu que os soldados se aproximavam a sua volta. Jael estava a uma distância segura, uma paciência calculada em seu rosto.

— Eu tinha? — indagou.

— Era ralo e sem graça, mas não importa. Fui tentar tirar o osso, usando a sua espada, e foi esse o meu erro. Porque estou acostumado com lâminas bem menores. — Ele ergueu suas facas em forma de lua crescente para ilustrar o que falava. — E, bem, eu errei no corte. Um erro fenomenal, sem dúvida, embora eu sempre diga: quem dera tivesse errado na outra direção. — Ele cortou o ar como se cortasse uma garganta. — Nada pessoal.

— É claro que não. — Jael correu um dedo pela longa linha irregular de sua cicatriz. — Quer saber a verdadeira história?

— Não, obrigado. Estou a um passo de acreditar na minha versão.

Um movimento rápido. Atrás de Ziri, um soldado; ele se virou, as facas cintilando, o sol incidindo forte e convidativo nas curvas afiadas. O aço queria sangue, e ele também. O soldado recuou.

— Pode abaixar as armas — disse Jael. — Não vamos matar você.

— Eu sei — replicou Ziri. — Eu vou matar vocês.

Eles acharam engraçado. Vários riram. Mas não por muito tempo.

Ziri se moveu em um borrão. Acertou primeiro os que riam, e dois anjos morreram ali mesmo onde estavam, suas gargantas cortadas antes que os outros pudessem sequer pegar suas armas.

Se algum deles tivesse lutado algum dia com um Kirin, não teriam se sentido tão confiantes por estarem em maior número, não a ponto de ficarem tão perto assim dele com as espadas embainhadas. Eles sacaram suas armas bem rapidamente depois disso. Os dois corpos desabaram no chão, e outros dois anjos estavam sangrando antes mesmo de os aços retinirem. Então a luta começou. Nithilam, como os serafins diziam. Caos.

Ziri estava em minoria, mas usou isso a seu favor. Movia-se tão rápido no kata rodopiante das lâminas de lua crescente que os serafins mal sabiam onde procurá-lo. Tentavam segui-lo, e ele se afastava. Os anjos acabavam entrando no caminho dos golpes dos outros. Para Ziri era fácil: todos eram inimigos. Todos eram alvo. Suas lâminas de lua crescente pareciam se multiplicar no ar; era para isso que tinham sido feitas, não para cortar sorrisos, mas para enfrentar vários oponentes ao mesmo tempo, bloqueando, retalhando, trespassando. Mais dois anjos caíram: intestinos perfurados, tendões cortados.

— Mantenham-no vivo! — urrou Jael, e Ziri percebeu, mesmo em meio ao turbilhão confuso de sangue e aço, que aquilo não era uma boa notícia.

Disparou para cima deles, agarrando os punhos das facas com força para que o sangue não escorresse por baixo dos dedos, deixando-as escorregadias. Depois atacou-os em pleno voo, levando a luta para o ar, e cortou e matou, sem ver de fato alguma esperança de escapar. Afinal, eram soldados serafins; ele era rápido, mas eles estavam longe de serem lentos, e eram muitos. Não era a primeira vez em sua vida que desejava ter hamsás. As marcas poderiam ter enfraquecido seus oponentes, dando-lhe alguma chance. Quando o desarmaram, o número de anjos tinha sido reduzido à metade, e ele só tinha feridas superficiais — o que ele atribuía tanto à disciplina dos inimigos quanto à própria agilidade. Eles o queriam vivo, e por isso Ziri assim permanecia.

Estava de joelhos diante deles, e ninguém ria agora. Jael foi em sua direção. Tinha perdido sua presunção; a expressão estava rígida e a cicatriz muito branca em contraste com o vermelho de seu rosto enfurecido. Ziri viu que receberia um chute e se curvou para absorver o golpe, mas ainda assim o impacto no estômago foi forte e o deixou sem ar.

Ofegante, transformou a respiração difícil em risada.

— Mas por que isso? — perguntou ele, endireitando-se. — Se fiz algo que o ofendeu...

Jael o chutou de novo. E de novo. Ziri já não conseguia mais rir. Foi só quando já estava sufocando com o sangue que Jael se aproximou para arrancar o turíbulo das suas costas. Seu olhar de triunfo era duro, e Ziri sentiu a primeira pontada de medo.

— Tenho uma história muito divertida também, só que a minha é verdadeira. Encontrei seu Comandante e Brimstone recentemente, e ateei fogo neles assim como fiz com seus companheiros, e é por isso que sei que estão mortos e acabados, e que isso — ele ergueu o artefato — só pode estar sendo levado para outra pessoa. Então... quem?

Ziri podia ouvir o sangue pulsando estranhamente alto em sua cabeça. Começou a entender o que estava acontecendo: os serafins tinham preparado uma armadilha na clareira e esperado para ver se alguém apareceria para colher as almas. Antes os rebeldes eram fantasmas, como o Lobo dissera; agora eram reais. Ele cortara suas mãos.

— Perdão — disse Ziri, fingindo não entender. — Quem o quê, mesmo?

Jael olhou para baixo. Revirou as cinzas com a ponta da espada.

— Você vai me contar quem é o ressurreicionista — disse ele. — Quanto mais cedo, melhor. Para você, é claro. Pessoalmente, eu não me importo se isso der... um pouco de trabalho.

Bem, aquilo não parecia nada divertido. Ziri não tinha nenhuma experiência com tortura, e, quando pensava nisso, havia um rosto que lhe vinha à mente.

O de Akiva.

Nunca se esqueceria daquele dia. A ágora, toda Loramendi presente para assistir, e o amante de Madrigal forçado a ver tudo também. O serafim ficara de joelhos, como Ziri estava naquele momento, enfraquecido de tanto apanhar, e por causa dos hamsás, e arrasado pela tristeza. Ele revelara alguma coisa para o Lobo? Ziri achava que não, e, por mais estranho que fosse, aquilo lhe deu forças. Se o anjo pudera resistir à tortura, ele também conseguiria. Para proteger Karou e, com ela, a esperança dos quimeras, ele achava que poderia aguentar qualquer coisa.

— Quem é? — perguntou de novo o capitão.

— Chegue mais perto — replicou Ziri, com um sorriso cruel. — Vou falar bem no seu ouvidinho.

— Ah, que bom. — Jael parecia satisfeito. — Tive medo de que você fosse facilitar as coisas. — Ele fez um sinal para seus soldados, e dois se aproximaram para pegar Ziri pelos braços. — Segurem-no. — E, cravando o cajado do turíbulo na terra escura, começou a arregaçar as mangas. — Estou me sentindo inspirado.


44

ALGUNS LUXOS

— Eu disse que nenhum humano seria ferido. — A voz de Karou, já rouca de tanto argumentar, lhe soou como um rosnado. — Essa foi a primeira condição. Nenhum humano ferido. Ponto final.

Ela andava de um lado para o outro no pátio. Os quimeras estavam reunidos na galeria e no chão, alguns se aquecendo ao sol, outros abrigados na sombra.

Como se estivesse lhe ensinando uma verdade dura da vida, Thiago retrucou:

— Na guerra, Karou, alguns luxos devem ser deixados de lado.

— Luxos? Como não matar pessoas inocentes? — Ele não falou nada. Era exatamente o que queria dizer. Karou sentiu um nó no estômago. — Ah, não. Definitivamente não. Quem quer que sejam, eles não têm nada a ver com a sua... — Ela parou e se corrigiu: — Com a nossa guerra.

— Mas se eles colocarem em risco nossa localização, passam a ter tudo a ver com isso. Você devia saber desse risco, Karou.

Ela sabia? Porque é claro que ele tinha razão: bastaria que um andarilho saísse contando histórias para atrair a atenção de toda a mídia para a casbá. E o que aconteceria então? Ela não gostava de pensar nisso. Os militares, claro. Era uma vez uma época em que uma história sobre monstros no deserto podia ter sido encarada apenas como “viagem” de mochileiros que fumaram muito haxixe, mas os tempos tinham mudado. Então, e agora?

— Eles podem passar direto — disse ela.

Mas era uma esperança vã, os dois sabiam disso. Fazia uns quarenta graus lá fora e não havia outro destino em um raio de quilômetros. Além disso, mesmo à distância dava para ver que aquelas pessoas não estavam indo muito bem no percurso.

Subiam com dificuldade, parando a cada minuto para se abaixar com as mãos nos joelhos, tomar água de cantis, e então... a menor delas se curvou, com ânsia de vômito. Estavam muito distantes para que Karou pudesse ouvir alguma coisa, mas era óbvio que corriam o risco de terem uma insolação, se é que já não era o caso. Os andarilhos ficaram recurvados juntos por um bom tempo, até recomeçarem a caminhada. Karou andava de um lado para o outro. Eles precisavam de ajuda, mas aquele com certeza não era o lugar onde encontrariam isso. Se ao menos soubessem para onde estavam indo... Mas, mesmo que soubessem, os dois claramente não estavam em condições de voltar.

Thiago estava calmo, sempre tão enlouquecedoramente calmo — até perder a cabeça, mas enfim —, porque os andarilhos não representavam nenhum perigo iminente. Estava tranquilo em deixá-los se aproximar. E então o quê?

O fosso?

Mais uma vez Karou sentiu um aperto no estômago. Dava para sentir o cheiro do fosso hoje. Talvez porque tivesse carne nova — Bast finalmente tinha feito a caminhada com o Lobo. Karou já fizera o novo corpo dela; estava ali no chão naquele instante — e talvez porque a brisa, apesar de fraca, fosse insistente e viesse daquela direção. Parecia estar dizendo: Aqui, sinta o cheiro. Aqui, sinta o cheiro, repetidamente.

Karou parou de andar de um lado para o outro e se postou diante do Lobo. Endireitou os ombros e tentou não tremer, tentou soar como alguém a ser levada em consideração quando disse:

— Vou até lá ajudá-los. Dou a volta com eles pelo portão dos fundos até o armazém. — Lá era frio e isolado. Era onde a caminhonete ficava. — Dou um pouco d’água para os dois, eles não veem ninguém, depois eu os levo de volta até a estrada. — Ela fez uma pausa. Ela ouvia o que dizia e sabia que não estava transmitindo toda a firmeza que gostaria. — Você não vai precisar fazer nada — continuou, mas sua voz falhou, e ela se xingou mentalmente. Que hora perfeita para parecer uma adolescente. — Eu cuido disso.

— Muito bem — disse Thiago. Como era forçada aquela expressão em seu rosto. Karou quase podia ver os cordões que mantinham aquela máscara de benignidade no lugar, e isso a deixava furiosa. Falar com ele era como dar murros em uma parede. — Vá em frente, então.

E ela foi, tentando ter ao menos a dignidade de não sair pisando duro como uma criança impotente. Passou pelo portão, e a brisa estava mais forte ali: um cheiro podre, algo errado no ar. Corpos se putrefazendo em um fosso, e, se ela não os ajudasse, os andarilhos acabariam lá também, junto com qualquer outro humano que tivesse o azar de perambular até aquele lugar desolado. O que ela fizera, trazendo os rebeldes para este mundo?

Mas então pensou em Eretz, e em quais teriam sido as chances dos rebeldes se ela não tivesse feito isso — e as chances de todos os quimeras —, e já não sabia mais o que era certo. Karou precisava acreditar que os rebeldes tinham alguma humanidade. Eram soldados, não assassinos cruéis, e também não eram animais selvagens com um apetite irracional. Claro que Amzallag não machucaria ninguém sem motivo, assim como Balieros, ou Ziri, ou a maioria dos outros. Mas bastava pensar em Razor — e naquele saco — para saber que tudo podia acontecer.

Teve que se lembrar de manter os pés no chão quando saiu da casbá. Agora seu primeiro impulso era voar, de tão desacostumada que estava à sociedade humana, e não era fácil caminhar naquele terreno irregular.

Percebeu, então, que seu cabelo estava descoberto. E se os andarilhos a reconhecessem? Eles realmente poderiam ser perigosos. Mas o que fazer?

Não demoraram muito para vê-la. Em toda a encosta que descia da fortaleza, ela seria a única coisa em movimento à vista. Ainda estavam muito afastados para que Karou os visse com clareza, mas ela ouviu o grito que lhe foi dirigido, e parou de andar como se tivesse atingido uma parede. O som correu por sobre as rochas e arbustos, um grito a plenos pulmões que se diluiu na distância.

A voz.

Não era possível. Mas o que ela ouvira fora “Karou!”, e a voz era a de Zuzana. Àquela altura, Karou já tinha aprendido que “possível” e “impossível” eram, na melhor das hipóteses, categorias fluídas. Ah, meu Deus, não, pensou, olhando fixamente para as figuras e vendo o que nunca esperava ver: Zuzana e Mik, ali.

Não eles, não ali.

Como? Como?

E isso importava? Eles estavam ali, e correndo perigo — a insolação, os quimeras. Karou sentiu o coração disparar e como que inchar dentro do peito; de pânico, de... alegria... e mais pânico, e mais alegria, e uma onda de raiva — no que eles estavam pensando? —, e então ternura, espanto, e ela estava com os olhos molhados quando seus pés deixaram o chão, e então seguiu a encosta voando e apertou os dois em um abraço que ameaçava terminar o que o calor começara.

Eram mesmo eles. Karou recuou um pouco para olhar para os dois. Zuzana sucumbira de um alívio somado à exaustão. Marcas de lágrimas se destacavam em suas bochechas vermelhas, e ela ria e chorava, esmagando as mãos de Karou com a força de um torno — apertando bem na parte machucada, o que a deixou sem ar.

— Caramba, Karou — exclamou Zuzana, a voz esganiçada e rouca de tanto ter gritado. — Logo no deserto? Não podia ter sido Paris ou algo do tipo?

E Karou também ria e chorava, mas Mik não — nem um, nem outro. Ele apoiava Zuzana com a mão em suas costas, o rosto tenso de preocupação.

— Podíamos ter morrido. — disse ele. As garotas ficaram em silêncio. — Eu nunca devia ter concordado com isso.

Depois de um segundo, Karou concordou.

— Não, não devia. — E então observou a paisagem do deserto com novos olhos, imaginando como seria chegar até ali a pé. — No que vocês estavam pensando?

— O quê? — Mik a encarou, depois olhou para Zuzana e então de volta para Karou. — Você não queria que a gente viesse?

Karou ficou surpresa.

— É claro que não. Eu nunca teria... Meu Deus. Como foi que vocês me acharam, para começo de conversa?

— Como? — Mik se sentia desorientado de tanta frustração. — Zuze decifrou a sua charada, ora essa.

Charada?

— Que charada?

— A charada — disse Zuzana. — Sacerdotisa de um castelo de areia, em uma terra de poeira e luz das estrelas.

Karou olhou para ela sem entender. Lembrava-se de haver escrito aquele e-mail; tinha sido logo depois de trazer os quimeras pelo portal até a casbá, quando estava em Ouarzazate à procura de suprimentos para Aegir.

— Então foi assim que vocês me encontraram? Ah, Zuze. Sinto muito. Não foi minha intenção atrair vocês até aqui. Nunca pensei que...

— Ah, você só pode estar brincando. — Mik levou as mãos à cabeça e se virou de costas. — Viemos até o fim do mundo, e você nem nos quer aqui?

Zuzana parecia arrasada. Karou se sentiu péssima.

— Não é que eu não queira vocês aqui! — Ela puxou a amiga para mais um abraço esmagador. — Eu quero. Tanto. Tanto. É só que... eu nunca teria trazido vocês para... isso. — E apontou para a casbá.

— O que é isto? — perguntou Zuzana. — Karou, o que você está fazendo aqui, meu Deus?

Karou abriu a boca, depois voltou a fechá-la, duas vezes, como um peixe. Por fim, disse:

— É uma longa história.

— Então pode esperar — disse Mik com firmeza. Karou nunca o tinha visto com raiva antes, mas seu rosto estava vermelho de irritação, os olhos apertados de maneira acusadora. — Podemos, por favor, tirá-la do sol?

— É claro. — Karou respirou fundo. — Vamos.

Colocou uma das mochilas deles no ombro e foi arrastando a outra, enquanto Mik ajudava Zuzana a subir a encosta. Karou não os levou pelo caminho mais longo, que contornava o armazém, em vez disso foi direto até o portão principal, onde eles pararam, olhando fixamente.

Mais uma vez, Karou viu sua vida com novos olhos, imaginando como aquelas criaturas deviam parecer para humanos.

Thiago estava de pé, com uma expressão perplexa, Ten logo atrás. Ele quase poderia se passar por humano, mas Ten já era outra história, com sua cabeça de lobo e seus ombros curvados. E os outros, então, eram um show de horrores: soldados reunidos na galeria e no chão, até mesmo no telhado, estranhamente imóveis a não ser pelo chicotear de um rabo aqui, o agitar de uma asa ali. Todos em tamanhos monstruosos, com muitos e variados olhos, sem piscar. Razor, mais próximo do que seria confortável para Karou, açoitou sua língua de serpente rapidamente, e Karou se viu de prontidão, os pés já quase saindo do chão, para o caso de ele resolver saltar sobre os visitantes.

Mik falou, em um sussurro rouco:

— Só esclarecendo para eu poder relaxar um pouco: Karou, seus amigos não vão comer a gente, vão?

Não, pensou Karou. Não vão. E respondeu, também em um sussurro:

— Acho que não. Mas tentem não parecer muito apetitosos, ok?

Ao que foi recompensada com uma risadinha de Zuzana.

— Isso pode ser um problema, considerando que somos incrivelmente apetitosos. — E meio segundo depois, completou, tensa: — Espere aí. Eles não entendem tcheco, entendem?

— Não — respondeu Karou.

O tempo todo ela olhava para Thiago, e ele para ela. O mau cheiro do fosso pairava no ar, e foi naquele momento que o pesadelo surreal que era a vida dela deixou de existir, desapareceu de repente, e tudo se tornou real. Aquela era sua vida, não um sonho sinistro do qual acordaria; tampouco era o purgatório, e sim sua vida real, no mundo real — nos mundos reais —, e agora seus amigos haviam entrado naquela vida também, que agora era deles.

Isso mudava as coisas.

— Estes humanos são meus convidados. — Karou sentiu que as palavras vinham de alguma parte firme e decidida dentro de si que não existia uma hora antes. Não falou alto, mas havia uma mudança significativa em sua voz. Vinda daquela parte, sua voz soava forte e verdadeira; não era persuasiva, ou desesperada, ou antagônica. Apenas era. Aproximou-se do Lobo, mais do que era de seu agrado. Forçou-se a invadir o espaço físico dele, como ele fazia com ela, e ergueu o rosto. — As vidas deles não são um luxo. São meus amigos, e eu confio neles.

— É claro — disse Thiago, sorrindo como um perfeito cavalheiro. — Isso muda tudo.

Ele assentiu para Mik e Zuzana e até os saudou, mas seu sorriso... simplesmente era errado. Falso, como se ele o tivesse aprendido em um livro.


45

MORTO

— Quem é aquele cara? — sussurrou Zuzana enquanto Karou levava os dois para fora do grande pátio onde os monstros se reuniam. — Ele se lavou com um sabão que lava duas vezes mais branco?

A risada de Karou foi quase um engasgo.

— Ah, caramba — disse ela, quando conseguiu voltar a respirar. — Agora vou pensar nisso toda vez que olhar para ele. Prestem atenção em onde pisam.

Atravessavam um caminho cheio de entulhos, Mik com a mão no cotovelo de Zuzana para lhe dar apoio. Tiveram que passar com cuidado por cima de uma parede desmoronada. Zuzana olhou em volta. De longe, a casbá lhe parecera majestosa, em um estilo meio maluco de castelo de areia, mas por dentro o lugar era bem desolado. Sem contar — ela passou por cima de um pedaço de madeira com pregos gigantes enferrujados e precisou contornar um buraco — perigoso. E tinha aquele cheiro, de xixi e coisa pior. O que era aquele cheiro, meu Deus? Por que Karou estava morando ali? E aquelas criaturas... Não eram completamente diferentes dos desenhos dos cadernos dela, mas também não muito parecidos. Eram bem maiores e mais esquisitos do que qualquer coisa que Zuzana imaginara.

Quanto ao cara branco, ele parecia quase humano; era sexy de um jeito artificial — lindo, aqueles olhos, aqueles ombros, dava para imaginá-lo na capa de um livro de romance —, mas havia nele algo tão gélido que ela sentira um arrepio, mesmo estando a ponto de morrer de calor naquele deserto infernal.

— Aquele é o Thiago — respondeu Karou. — Ele é... é quem manda por aqui.

Isso Zuzana podia deduzir, pelo seu ar de senhor do castelo.

— Manda em quê, exatamente? — perguntou ela. Então algo lhe ocorreu de repente, e ela parou de andar. — Espere. Onde está Brimstone?

Karou também parou. Sua expressão abatida foi o suficiente.

— Ah, não — disse Zuzana. — Ele não...? Ele morreu?

Karou assentiu.

Morrer. Uma palavra que não era para fazer parte daquela aventura. Horrorizada, Zuzana continuou:

— E quanto a... Issa? E Yasri?

Mais uma vez a expressão de Karou lhe bastou como resposta.

— Ah, Karou, eu sinto muito.

Ao olhar para Karou dessa vez, Zuzana conseguiu olhá-la de verdade, não apenas tomada pelo puro alívio que a inundara à primeira vista, mas de fato vendo a amiga. Karou estava magra demais, os ossos pronunciados, os lábios rachados, o cabelo preso em uma trança descuidada; sua camisa — larga, de algodão, de estilo marroquino — estava toda amarrotada, como se nunca deixasse seu corpo, e seus olhos estavam marcados por olheiras arroxeadas, de quem vem dormindo pouco. E não era só falta de sono; ela parecia... esgotada.

Zuzana sentiu outro calafrio percorrer sua espinha. Onde é que ela havia se metido, para onde trouxera Mik? Tinha ficado tão envolvida pelo mistério e pelo desafio... mas é claro que sabia que algo estranho estava acontecendo com Karou. Seu e-mail críptico tinha deixado isso claro, mas ela não havia propriamente considerado a possibilidade de que envolvesse a palavra morte, e agora tinha certeza de que aquele cheiro horrível no ar era de decomposição.

Engoliu em seco. Sua cabeça doía horrores, seus pés estavam lhe matando, ela queria muito, muito tomar um banho e tinha o triste pressentimento de que não havia a menor chance de comer um sorvete tão cedo, mas lembrou-se de uma pessoa sobre quem ainda não havia perguntado. Ela hesitou, com medo de ver outra resposta sombria no rosto da amiga.

— E quanto a Akiva?

Uma resposta de fato surgiu no rosto de Karou, mas não a que ela havia esperado. A desolação deu lugar à severidade. Karou trincou o maxilar e estreitou os olhos.

— O que tem ele? — perguntou, séria.

Zuzana ficou olhando para ela. Hã?

— Hum... Ele... está vivo?

— Até onde sei, sim — respondeu Karou, e se virou. — Vamos.

Zuzana e Mik trocaram um olhar de espanto e a seguiram. Pela postura tensa de Karou, era melhor não tocar no assunto, mas Zuzana preferiu ignorar o alerta. Francamente, aquilo a tirou do sério. Tinha ido até ali; resolvido uma charada que nem era uma charada; encontrado Karou no meio do deserto do Saara — ok, ali não era exatamente o deserto do Saara, mas era quase, e se algum dia ela fosse contar essa história com certeza diria que se embrenhara em pleno deserto do Saara a pé, com um tênis de zebra. Ora essa. Ela realmente não merecia aquele tratamento.

— O que houve? — perguntou, dirigindo-se às costas da amiga.

Karou olhou de relance por sobre o ombro.

— Esqueça isso, Zuze. Eu lhe conto todo o resto, mas não quero falar sobre ele.

Como ela parecia amarga ao dizer aquilo.

— Karou. — Zuzana tocou o braço dela, mas a sentiu se encolher de dor ao seu toque, e afastou a mão. — O que foi? — perguntou. — Você está machucada?

Karou parou de andar. Largou as mochilas que estava arrastando e cruzou os braços; parecia tão perdida. Tão linda e tão perdida. Como era injusto que ela ficasse tão bonita mesmo quando era evidente que não fazia o menor esforço!

— Eu estou bem — disse Karou, tentando sorrir. — É com vocês dois, meus Lawrences da Arábia, que estou preocupada. Você pode só ficar quieta e me deixar levá-los lá para dentro?

Karou olhou para Mik em busca de apoio, e, é claro, ele concordou com ela.

— Vamos, Zuze, a gente coloca o papo em dia depois.

Zuzana suspirou.

— Está bem. Seus tiranos. Mas eu corro o risco de morrer de curiosidade.

— Não se eu puder evitar — disse Karou, e Zuzana involuntariamente apertou a mão de Mik, porque não parecia ter sido uma brincadeira.

* * *

Karou ainda tentava tirar Akiva da cabeça quando chegaram ao palácio. Só de ouvir o nome dele já se sentia ficar dura como pedra. Bem. Isso ainda era melhor do que ficar toda mole, e ela nunca mais deixaria ninguém fazê-la se sentir assim de novo.

Colocou-se de lado na porta para deixar os amigos entrarem. Tão empoeirado e deteriorado por fora quanto o restante da casbá, por dentro o palácio era... bem, empoeirado e deteriorado também, mas inesperadamente luxuoso. Por ter sido um dia o lar das belas esposas de chefes tribais e de toda a sua barulhenta prole, era um complexo com muitos e grandes quartos. Havia pilastras de alabastro esculpido, lascadas, e nichos para lampiões no formato de buracos de fechadura. As paredes eram revestidas de seda desbotada, os tetos, entalhados como favos de mel, e uma grande escadaria coberta de azulejos rascados em lápis-lazúli, da cor do cabelo de Karou.

Zuzana deu a volta lentamente, observando tudo.

— Não acredito que você mora aqui — disse ela. — Agora entendo por que me deu aquele seu apartamento chinfrim.

— Está brincando? — Karou teve que rir do absurdo da comparação. — Sinto tanta falta daquele apartamento. — E daquela vida. — Trocaria com você sem pensar duas vezes.

— Não, obrigada — disse Zuzana prontamente.

— Garota esperta.

Karou começou a subir a escada, parando para oferecer o braço a Zuzana. Unindo suas forças às de Mik — que, mesmo não parecendo muito disposto, segurava o outro braço de Zuzana —, ela a ajudou a alcançar o primeiro andar, onde um corredor levava à suíte de Thiago e à pequena antecâmara onde Ten dormia. Uma volta e surgiam mais degraus.

— Ainda não acredito que vocês estão aqui — disse Karou enquanto subiam. — Vão ter que me contar como conseguiram me achar. Depois que descansarem um pouco, é claro. Podem ficar com a minha cama enquanto estiverem aqui.

— Onde você vai dormir? — perguntou Mik.

— Ah, não se preocupe com isso. Eu não durmo muito.

Zuzana ergueu a sobrancelha.

— Percebe-se. E também não come, ao que parece. Nem se cuida. — Ao ver aquela sobrancelha erguida, Karou ignorou totalmente o insulto e foi inundada de amor. Zuzana, ali. Era surpreendente. Ela a esmagou em mais um abraço, o que não impediu a amiga de perguntar: — Então o que exatamente você está fazendo?

Karou a soltou. “Eu lhe conto todo o resto”, dissera, e era sério. Não estava desesperada por alguém com quem conversar? E agora, como um desejo realizado, Zuzana e Mik estavam ali. Como em um passe de mágica.

Karou respirou fundo, consciente do estado em que deixara seu quarto, e levou a mão à pesada porta de cedro.

— Quer mesmo saber?

Sobrancelha.

— Tudo bem, então. — Karou abriu a porta. — Vamos entrar que eu conto tudo. — E inocentemente acrescentou, enquanto eles passavam: — Ah, cuidado para não tropeçar no corpo aí no chão.


46

NÃO VIVO

Alguns meses tinham se passado desde que Karou experimentara contar a verdade a Zuzana pela primeira vez, lá em Praga. Tinha sido tão estranho falar sobre sua vida secreta que ela não soubera como começar. Simplesmente despejara a história toda, anjos e quimeras e tudo mais, e, se Kishmish não tivesse aparecido naquele exato momento — em chamas —, ela provavelmente teria perdido a amiga para sempre.

Bem, as coisas que tinha para contar agora faziam aquela primeira rodada de confissões parecer brincadeira de criança, mas Mik e Zuzana estavam preparados agora, prontos para acreditar. Afinal, tinham acabado de entrar em uma casbá cheia de monstros. Ainda assim, podia levar algum tempo até se acostumarem à ideia da ressurreição.

— AhmeuDeusporquetemummonstromortonochãodoseuquarto? — foi a esbaforida pergunta de Zuzana quando ela viu o novo corpo de Bast esparramado ali diante de si.

— Bem, ela não está exatamente morta — disse Karou, de forma evasiva.

Zuzana estendeu um tênis cheio de areia e cutucou o corpo inerte com o pé.

— Viva ela não está.

— Verdade. Hum. Vamos dizer que ela está... não viva.

E assim Zuzana e Mik aprenderam que não vivo podia significar morto — e geralmente é o caso —, mas também podia significar novo.

— Eu fiz esse corpo mais cedo — contou-lhes Karou, como se falasse que tinha tricotado um chapéu ou assado um bolo.

Zuzana estava calma; com um pouco de esforço, mas estava. Empoleirou-se na beirada da cama e cruzou as mãos no colo.

— Você fez esse corpo — disse ela.

— Sim.

— Explique, por favor.

E Karou explicou, o mais sucintamente possível, apontando para as bandejas de dentes e omitindo o detalhe do dízimo da dor. Colocou água em uma bacia para que eles pudessem lavar o rosto e os pés — nessa ordem, especificou ela, com uma seriedade fingida —, fez chá de hortelã e ofereceu-lhes tâmaras e amêndoas. Quando eles terminaram de se lavar, ela esvaziou a bacia pela janela sem nem olhar lá para baixo, torcendo para que Thiago ou Ten estivessem passando ali embaixo. Mas nenhum grito ou rosnado veio em resposta ao barulho da água caindo, e ela fechou as persianas para proteger o quarto do calor.

Então concluiu logo a ressurreição, em parte porque era mais fácil mostrar o que fazia do que contar, mas também para tirar aquele corpo dali e permitir que seus amigos relaxassem.

O despertar era a parte fácil. A magia já estava feita, então não era necessário pagar nenhum dízimo ou arregaçar as mangas, expondo os braços cheios de feios hematomas. Karou sentia muita vergonha das marcas, e não queria que Zuzana as visse, mas não seria preciso naquele estágio do processo. Bastava apenas levantar o turíbulo que Thiago lhe trouxera, acender um incenso e colocá-lo na testa do corpo. Zuzana e Mik assistiram a todo o procedimento sem nem piscar, embora na verdade não houvesse nada para se ver. O cheiro de enxofre, o ranger da corrente, esses eram os únicos sinais. Só Karou podia sentir a alma que emergia do receptáculo, hesitando por apenas um instante antes de convergir para seu novo corpo.

Antes, Bast se parecia com uma deusa egípcia felina: forma humana esguia, seios altos, cabeça felina com orelhas grandes. Karou mantivera o aspecto felino o máximo possível, mas tinha sacrificado muito da parte humana, a pedido de Thiago. Aquele novo corpo era todo músculos definidos, embora não tão grande quanto alguns, pois fora feito visando à agilidade. Os braços e o torso superior permaneceram humanos para permitir a versatilidade no uso das armas — Bast era uma boa arqueira —, mas as ancas eram de leopardo, para que ela pudesse dar grandes saltos. E, é claro, aquele corpo também tinha as indispensáveis asas, que, abertas, ocupavam a maior parte do chão. Karou estava feliz por aquela não ser uma de suas criações mais monstruosas, tanto pelo bem de Zuzana e Mik quanto, por incrível que pareça, por Bast.

A alma de Bast, descobrira, tinha uma beleza delicada, inadequada para uma guerra. Karou se perguntou brevemente que vida ela poderia ter tido em um mundo diferente. Bem, pensou enquanto Bast abria os olhos, eles nunca saberiam.

Zuzana deixou escapar uma breve exclamação de susto. Mik apenas olhava fixamente.

Bast ergueu a cabeça, arregalando os olhos ao ver novos humanos, mas não disse nada. Concentrou-se em seu novo eu, testando os membros com pequenos gestos antes de se levantar sem firmeza, encontrando patas onde antes havia mãos e pés.

— Tudo bem? — perguntou Karou.

Bast assentiu e esticou toda a sua flexível coluna, em um gesto inequivocamente felino. Parecia um gato andando pelo peitoril de uma janela.

— Foi bem-feito — disse ela, sua voz soando como um ronronar em sua nova garganta. — Obrigada.

Karou sentiu um aperto no peito. Nenhum dos soldados nunca tinha lhe agradecido antes.

— De nada — respondeu. — Precisa de ajuda para descer as escadas?

Bast balançou a cabeça em negativa.

— Acho que não. — Esticou-se de novo. — Como eu disse, foi bem-feito.

Karou sentiu outra vez o aperto no peito. Um elogio. Era meio ridícula a enorme gratidão que sentia por aquelas poucas palavras. Bast saiu. Quando a porta se fechou, Karou se virou para os amigos.

— Bem — disse Mik, deitando-se apoiado em um cotovelo, assumindo um falso ar de indiferença. — Isso não foi nada estranho.

— Não? — Karou desabou na cadeira e esfregou o rosto. — Meu medidor de estranheza deve estar com problema. Imaginei que fosse pelo menos um pouco estranho.

— De novo — disse Zuzana.

— O quê?

Karou abaixou as mãos e olhou para a amiga. O rosto de Zuzana estava vívido de espanto.

— De novo, de novo. — Ela deu pulinhos na beirada da cama, como uma criança, batendo palmas e pedindo: — Quando eu vou poder fazer isso? Você vai me ensinar, não vai? É claro que vai. Foi por isso que me trouxe até aqui.

— Ensinar você? Eu não trouxe você aqui...

Mas Zuzana não ouvia.

— Isso é tão mais legal que teatro de fantoches. Caramba, Karou. Você está fazendo criaturas vivas. Você é uma Frankenstein, cara!

Karou riu e balançou a cabeça.

— Não sou, não. — Ela tivera bastante tempo para pensar a respeito e descartar a comparação. — A questão central na história de Frankenstein é de onde vem a alma.

Se um humano criasse “vida”, não haveria alma, apenas um pobre monstro incivilizado sem lugar no mundo — ou mesmo no céu ou no inferno, caso houvesse essa preocupação, o que não era o caso de Karou.

— Eu já tenho as almas. — Ela apontou para a pilha de turíbulos. — Só estou fazendo os corpos.

— Ah, só? — disse Mik, com a voz arrastada. — Agora sim.

Mas Zuzana estava hipnotizada pelas dezenas e dezenas e mais dezenas de turíbulos. Arregalou os olhos, boquiaberta.

— Tudo isso? — Ela atravessou o quarto em um segundo e puxou um dos turíbulos do meio da pilha, provocando um pequeno desmoronamento. — Vamos fazer um? Por favor! Quero ver como você faz o corpo. — Ela ainda pulava; Karou temia que a amiga fosse parar no teto. — Serei seu Igor. Por favor, por favor, por favor? Veja. — Ela fingiu ser corcunda e saiu arrastando uma perna. — O que deseja, Herr Doktor? — E em um estalar de dedos estava de volta ao normal. — Por favor... De quem é essa alma? Como você sabe de quem é? Quer dizer, você sabe?

Zuzana tinha mais um milhão de perguntas, mas não esperava a resposta de nenhuma. Karou olhou para Mik em busca de ajuda, mas ele apenas se reclinou e deu de ombros, como se dissesse, Isso é com você.

— Ah, meu Deus. — E uma ideia fez Zuzana ficar imóvel. — Uma exposição de arte. Já imaginou? — Ela descreveu a cena com mãos de uma modelo anunciando um produto. — Galeria Balthus, meia dúzia de corpos quimeras em sarcófagos ornamentais, e na abertura da exposição todo mundo falando oh, ah, que material você usa, eles parecem tão reais, e nós apenas sorrimos com ar de Mona Lisa e giramos o vinho em nossas taças, hã? Isso seria a melhor coisa de todos os tempos. Mas não! Melhor. Nós os trazemos à vida! A fumaça, o cheiro, esse negócios aí que parecem lampiões, e então as esculturas levantam a cabeça e ficam de pé. Todo mundo vai pensar que são marionetes ou algo assim, afinal o que mais poderia ser, e vão ficar tentando descobrir como fizemos aquilo, e todos vão posar para fotos com monstros sem nem saber.

Ela não parava, e Karou riu descontroladamente e tentou fazê-la parar.

— Isso nunca vai acontecer. Você entende isso, não é? Nunca.

Zuzana revirou os olhos.

— Eu sei, sua desmancha-prazeres, mas não seria incrível?

— Seria o máximo — Karou se permitiu dizer.

Ela nunca pensara em seu trabalho como arte, o que agora lhe parecia tolo, ainda mais depois do elogio de Bast. Lembrou-se então de algo de sua vida como Madrigal, de como gostava de ter ideias para novos quimeras quando, ainda criança, começara a trabalhar com Brimstone, até fazia desenhos para mostrar a ele o que tinha em mente. Então se perguntou se tinha sido isso o que fizera Issa incentivá-la — como Karou — a começar a desenhar. Doce Issa, que saudade.

— Mas você vai me deixar ajudar, não vai? — Zuzana estava séria. Ela entregou a Karou o turíbulo que pegara da pilha. — Vamos começar por este. Quem é?

Karou pegou o turíbulo, ficou segurando-o sem dizer nada. Não queria contar que era Thiago quem decidia quem seria ressuscitado e quando.

— Zuze — disse ela —, você não pode.

— Não posso o quê?

— Você não pode me ajudar. Não pode ficar aqui.

— O quê? Por quê?

Zuzana começava a sair do transe de frenética alegria.

— Você não quer ficar aqui, pode acreditar. Vou levá-los de volta assim que tiverem se recuperado o suficiente. Tenho uma caminhonete...

— Mas acabamos de chegar.

Sua expressão era de quem se sentia traída.

— Eu sei. — Karou suspirou. — E é muito bom ver vocês. Só quero que fiquem seguros.

— E você? Você está segura?

— Sim, eu estou — respondeu ela, lembrando-se, ao dizer isso, de quão insegura se sentia a maior parte do tempo. — De mim eles precisam.

— Aham. — Zuzana olhou para ela com ar infeliz. — E por que você, aliás? Por que está aqui, com eles? Por que é você quem está fazendo isso?

Isso já era outra questão, e Karou relutava em falar sobre sua verdadeira natureza assim como em mostrar os hematomas. Por que toda aquela vergonha? Ela respirou fundo.

— Porque... eu sou um deles.

— De que tipo?

Aquilo a surpreendeu. Foi Mik quem perguntou, e soou tão casual que ela pensou não ter ouvido direito.

— O quê?

— Que tipo de quimera você era? Você foi ressuscitada, certo? Tem as tatuagens de olhos.

E apontou para as palmas das mãos dela. Karou virou-se para Zuzana e a encontrou tão pouco surpresa quanto Mik.

— É isso? — disse ela. — Eu conto a vocês que não sou humana, e vocês ficam aí, na maior tranquilidade?

— Sinto muito — disse Mik. — Acho que você neutralizou nossa capacidade de nos surpreender. Devia ter começado com isso e só depois dizer que ressuscitava os mortos.

— Bem, era meio óbvio — comentou Zuzana.

— Como assim óbvio? — perguntou Karou.

Ela acreditara a vida inteira que era humana; e eles não iriam persuadi-la a pensar que, por algum motivo, não tinha sido convincente o bastante.

— É essa sua aura de estranheza, só isso. — Zuzana deu de ombros. — Sei lá.

— Aura de estranheza — repetiu Karou, sem emoção na voz.

— É uma estranheza boa — esclareceu Mik.

— E então, de que tipo você era? — perguntou Zuzana.

A pergunta era tão leve, tão espontânea. Karou sentiu as palmas das mãos úmidas e frias. Afinal, era de sua tribo que estavam perguntando, da família que lhe tinha sido arrancada tanto tempo antes. Flashes daquele dia invadiram sua memória, as longas marcas de sangue no chão, dos corpos que tinham sido arrastados até a entrada da caverna. Ela respirou fundo. Eles não entendiam. É claro que não. No mundo deles não era necessário se preocupar se alguém tinha ficado órfão por causa de traficantes de escravos antes de perguntar sobre sua família.

Houvera uma época em que ela tinha pais, um lar, família. Houvera um tempo em que ela pertencera a algum lugar, perfeitamente e sem necessidade de esforço.

— Eu era Kirin — respondeu Karou suavemente. Eu sou Kirin, pensou, embora tudo o mais que era Kirin lhe tivesse sido tirado: sua tribo e seu lar, por anjos; seu verdadeiro corpo, pelo Lobo Branco; e agora, talvez... Ziri. — Vou mostrar a vocês — ela se ouviu dizendo.

Pegou seu caderno de desenhos e um lápis e os segurou por um instante, tensa, perguntando-se se conseguiria fazer aquilo. Já tentara desenhar Madrigal antes, mas acabava se concentrando em outra coisa. Tinha medo — de desenhar errado, de desenhar direito, do que sentiria ao ver sua antiga eu. Sentiria como se aquela fosse sua verdadeira forma, e ansiaria por ela? Ou acharia estranho, como se nunca tivesse sido aquela garota de tanto tempo antes? De um jeito ou de outro, ela só podia imaginar que aquilo não seria muito agradável.

Ainda assim, achou que já era hora, e começou a desenhar. Uma linha curva. Outra. Seus chifres tomaram forma. Zuzana e Mik observavam. Karou quase sentia como se também estivesse observando, e não criando a imagem, e ficou um pouco surpresa com o que surgiu na página. Com quem surgiu.

— Hum, você era um cara? — perguntou Zuzana.

Karou enfim soltou a respiração em uma risada.

— Não, me desculpe. Esse não sou eu; é Ziri. Ele é... — Parecia brutal demais dizer que ele era o último membro vivo de sua tribo, então falou apenas: — Ele é um Kirin também.

— Ah, ufa. Não sei por que seria mais esquisito se antes você fosse um cara não humano e não uma garota não humana, mas seria.

— Cadê ele? — perguntou Mik. — Ele está aqui?

— A equipe dele já devia ter voltado de uma missão em Eretz.

Zuzana deve ter percebido a ansiedade na voz dela.

— O que quer dizer com já devia ter voltado? Eles estão bem?

— Talvez. Espero que sim. Devem estar atrasados, só isso.

Ou talvez estivessem mortos.


47

ASSASSINOS E AMANTES SECRETOS

O dia passou, a noite chegou, e Karou se viu diante da indesejável tarefa de explicar a situação do banheiro a Zuzana. Quer dizer, a situação da falta de banheiro.

Para sua surpresa, Zuzana disse apenas:

— Bem, isso explica o cheiro.

Pelo visto Karou tinha mesmo neutralizado a capacidade deles de se surpreenderem. Decidiu que o melhor seria irem até o rio para que os dois pudessem tomar banho e cuidar de suas necessidades com alguma privacidade. “Privacidade” entre muitas aspas, na verdade. Thiago os encontrou quando estavam saindo e, com seu jeito forçado e antiquado de ser cortês e excessivamente solícito, insistira para que Ten os acompanhasse.

— Só para garantir a segurança de vocês — disse ele.

Segurança, pensou Karou. Claro.

— Não se preocupe — disse ela. — Não vou tentar fugir.

— É claro que não.

E ela sabia que não poderia, nem se quisesse. Não conseguiria escapar das criaturas que tinha feito. Aladas, poderosas e com sentidos apurados, eles os encontrariam em um piscar de olhos. Que belo trabalho eu fiz, pensou enquanto conduzia os amigos portão afora e descia até o rio, com a mulher-lobo logo atrás deles. Com o calor do dia já dissipado, a água fria não era muito convidativa — sem mencionar que a presença de Ten, encurvada em uma pedra ali perto, não os incentivava a tirar a roupa —, então eles não tomaram banho propriamente, só jogaram um pouco de água no corpo, esfregaram o rosto e o pescoço e se deitaram em uma pedra para secar.

— Banho de estrelas — disse Karou.

— Sério — disse Zuzana, estendendo a mão para o alto como se pudesse tocar as estrelas com as pontas dos dedos. — Sempre achei que fotos de céus assim ou não eram reais, ou tinham sido manipuladas.

— Como aquelas que mostram uma lua gigante — acrescentou Mik.

Karou se virou para os dois.

— Já contei a vocês que existem duas luas em Eretz? E uma delas é bem grande assim mesmo.

— Duas luas?

— Sim. Os quimeras... nós as adoramos.

Ela não, na verdade; não mais. Houvera uma época em que ela acreditara na existência de uma força em ação no universo, mas, se de fato existia, essa força a abandonara no templo de Ellai.

— Nitid é a lua grande. Ela é a deusa de praticamente tudo.

— E a outra?

— Ellai — respondeu Karou, pensando no templo, no shh-shh das evangelinas, no sussurro da fonte sagrada a correr. No sangue. — É a deusa dos assassinos e dos amantes secretos.

— Legal — disse Zuzana. — Eu escolheria essa para adorar.

— Aham, sei. E o que você é, assassina ou amante secreta?

— Bem — disse Zuzana, com uma voz melosa —, meu amor não é segredo. — E girou para beijar Mik. — Acho que isso faz de mim uma assassina. E você? — perguntou, virando-se de volta para a amiga.

Karou sentiu um aperto na garganta.

— Assassina eu não sou.

Imediatamente se arrependeu de ter dito isso. O silêncio que se seguiu estava tão cheio de Akiva que ela quase podia sentir o cheiro dele. Idiota, pensou, repreendendo-se por tocar no assunto; era como se ela quisesse falar sobre ele. O silêncio se estendeu, e por um instante ela achou que Zuzana fosse deixar aquela passar; já estava até aliviada. Não queria falar de Akiva. Não queria pensar nele. Deus do céu, queria nunca tê-lo conhecido, queria poder voltar no tempo até aquele dia em Bullfinch e seguir para outro lado no campo de batalha enquanto ele se esvaía em sangue na areia até morrer.

— Queria que você me contasse o que aconteceu — disse Zuzana.

— Não quero falar sobre isso.

— Karou, você está tão infeliz. De que adianta ter amigos se eles não puderem ajudá-la?

— Nesse assunto não há nada que você possa fazer para me ajudar, acredite.

— Vamos, me dê uma chance.

O corpo todo de Karou se retesou.

— Ah, é? Está bem — disse ela, olhando para as estrelas. — Vamos ver. Sabe o fim de Romeu e Julieta, quando ela acorda na cripta e Romeu já está morto? Ele achou que ela estivesse morta e por isso se matou bem ao lado dela.

— Lembro. É incrível. — Houve uma pausa, seguida de um “ai!”, que sugeria que Mik tinha lhe dado um cutucão.

Karou ignorou a amiga.

— Bem, imagine que ela acordou e ele ainda estava vivo, mas... — Engoliu em seco, esperando passar o tremor na voz. — Mas tinha matado toda a família dela. E incendiado sua cidade. E matado e escravizado seu povo.

Depois de um longo silêncio, Zuzana falou, em um fiapo de voz:

— Ah.

— Pois é — disse Karou, e as estrelas sumiram quando ela fechou os olhos.

* * *

O alerta da sentinela soou quando eles estavam subindo de volta a encosta, um troar profundo que Karou reconheceu como sendo de Amzallag, e ela levantou voo na mesma hora, estreitando os olhos na direção do portal. A princípio, não viu nada. Seriam mais humanos? Não. Amzallag apontava para o céu.

E então as estrelas cintilaram. Uma figura veio cortando a noite, no começo visível apenas por cobrir as estrelas. Uma figura, sozinha — uma, somente uma? —, e... batia as asas com dificuldade e um ritmo irregular. Lançava-se para a frente, caía, parava, avançava mais um pouco, a dor evidente em cada movimento. Soldados ergueram-se no ar, indo ajudá-lo — foi aí que Karou viu que era ele. Era Ziri. Vivo. Ela queria ir até lá também, mas seus amigos estavam ali embaixo, e de qualquer forma ela não imaginava que Ziri fosse querer vê-la, não depois do que ela lhe dissera da última vez. Então ela voltou a pousar e disse:

— Vamos. Depressa.

Ten quis saber o que Karou tinha visto, então ela lhe contou, e a mulher-lobo saiu trotando à frente enquanto Karou segurava os cotovelos de Zuzana e Mik e os fazia subir correndo a encosta, praticamente levantando-os do chão de tanta pressa.

— O que houve? — perguntou Zuzana. — Karou, o que foi?

— Só venham.

Quando chegaram perto, Nisk e Emylion estavam pousando com Ziri, diante de Thiago. Suas asas pendiam frouxas, e o Lobo se ajoelhou para apoiá-lo. Karou sentia os ouvidos zunirem enquanto procurava de onde vinha o sangue, o sangue que cobria o corpo inteiro de Ziri. De onde vinha? Ele estava curvado, a cabeça baixa, os braços retesados contra o corpo, e... havia algo de errado com suas mãos. Estavam escuras de sangue, rígidas e recurvadas, como garras — ah, céus, o que tinha acontecido com as mãos dele? —, e então ele levantou a cabeça, e seu rosto...

Karou ficou sem ar.

Às suas costas, ouviu Zuzana dar um grito.

Ziri estava mais branco que neve, e isso foi o que Karou conseguiu ver, mas o restante estava... confuso. Ele estava pálido e coberto de cinzas — seu queixo, sua boca... os lábios estavam pretos, cobertos de coágulos e crostas, mas nem era isso o pior. Os olhos de Karou se desviaram, perderam o foco, e ela os forçou de volta.

O que tinham feito com ele?

Mas é claro. Claro que tinham feito aquilo. Tinham cortado Ziri como eles cortaram seus inimigos, mas ele ainda estava vivo, exibindo aquele sorriso terrível. Ele tinha sido... entalhado. E sangrava, pálido devido ao choque e à perda de sangue. Seus olhos procuraram por ela e a acharam e se focaram em um estalo — um estalo repentino quando seus olhos se encontraram —, e os dela se arregalaram quando viu que ele lhe dizia coisas com aquele olhar, mas ela não conseguia entender. Faltavam as palavras, só havia a urgência.

Então ele pendeu para a frente e Thiago o pegou, mas não antes que um de seus longos chifres batesse no chão, a ponta se quebrando com um barulho que pareceu um tiro. Ten aproximou-se às pressas e pegou o outro braço de Ziri, e, pendurado entre os dois, desmaiado, ele foi erguido e levado embora. Karou pegou o pedaço de chifre — por que fez isso, não sabia — e os seguiu a passos curtos e apressados, fazendo um gesto para que Zuzana e Mik fossem também.

— Esperem — disse ela quando Thiago e Ten chegaram à porta do alojamento onde os soldados dormiam. — Levem-no para o meu quarto. Acho que... Acho que talvez eu possa curá-lo.

Thiago assentiu e mudou de direção. Ten o acompanhou, e Karou, atrás deles, sentiu um formigamento na nuca e se virou. Observou atentamente o caminho atrás de si. O chão estava cheito de detritos; o muro atrás era alto e as estrelas brilhavam, mas não havia nada além disso.

Então se virou de novo e se apressou para alcançá-los.

* * *

Akiva caiu de joelhos. Não tinha respirado desde que a vira. Arfava agora, e seu encanto falhou, e, se Karou não tivesse ido embora, teria visto a forma dele recortada no ar, suas asas delineadas em brasas e centelhas. A uns cinco metros dela.

De Karou.

Ela estava viva.

Em breve todo o resto faria sentido. Em breve Akiva perceberia o significado de tudo aquilo — o lugar, os quimeras, o que ela dissera; uma coisa levaria à outra e o destruiria — em um estalo repentino e doloroso. Mas durante aqueles instantes, antes de respirar, o mundo pareceu silencioso e tão radiante, e Akiva só conseguia pensar em uma coisa, e a ela se agarrou, querendo viver para sempre naquele momento.

Karou estava viva.


Era uma vez uma garota que vivia em um castelo de areia,

onde fazia monstros e os enviava por uma fenda no céu.


48

CONVIDADO FASCINANTE

— Capitão, encontramos... algo. Senhor.

Jael encarou o batedor com o olhar maligno que seus soldados conheciam bem. O capitão do Domínio não era temperamental como o irmão. Sua raiva era fria, premeditada, mas igualmente cruel — talvez até mais, uma vez que ele a mantinha sob total controle enquanto cometia seus piores atos, conseguindo, assim, saborear melhor o momento.

— Devo entender que por “algo” você não está se referindo ao rebelde? — perguntou ele tranquilamente.

— Não, senhor, não é ele.

O batedor olhava para além da cabeça de Jael, encarando a parede de seda da barraca. Era noite, e soprava uma brisa. As abas da barraca esvoaçavam suavemente, e o brilho dos lampiões tingia as ondulações do movimento em carmesim e rubro, um quadro hipnotizante em constante tremeluzir. Jael sabia; ele mesmo estava com o olhar perdido ali antes de seu intendente ter deixado o batedor entrar, mas não achava que o sujeito estivesse hipnotizado, e sim que não queria olhar para o rosto de seu capitão.

— Bem, então o que é? — perguntou, impaciente.

Era o rebelde que ele queria, o Kirin que, inacreditavelmente, tinha escapado por entre seus dedos. Duvidava muito de que algum outro assunto pudesse prender sua atenção naquele momento.

Mas ele estava enganado.

— Não sabemos ao certo o que é, senhor — disse o batedor.

Pelo jeito que falava, ele parecia confuso; por sua expressão, parecia enojado. Jael estava acostumado com aquele olhar; via-o com bastante frequência. Eles tentavam disfarçar, mas sempre havia algo que os denunciava: um tique, o olhar desviando-se para longe, os lábios ligeiramente contraídos. Às vezes aquilo o irritava tanto que ele lhes dava algo para ocupar a mente, fazê-los deixar de pensar na repulsa que sentiam. Sofrimento, por exemplo. Mas se Jael fosse punir todo mundo que sentisse aversão ao seu rosto, não faria mais nada na vida. Além do mais, a repulsa daquele soldado especificamente não era causada por ele. Quando percebeu isso, sua curiosidade foi despertada.

— Achamos um... uma coisa... escondida nas ruínas de Arcos Carnaval. A criatura tinha uma fogueira.

— A criatura? — instigou Jael. — Uma fera?

— Não, senhor. Não é como nenhuma fera que eu já tenha visto. Ela alega... Ela alega ser um serafim.

Jael soltou uma gargalhada.

— E você não sabe dizer se é verdade? Que tipo de idiotas me cercam que não conseguem reconhecer nossa própria espécie?

O batedor parecia extremamente desconfortável.

— Sinto muito, senhor. A princípio achei que fosse impossível, mas há algo nessa criatura. Se o que ela diz é verdade...

— Tragam-na aqui — ordenou Jael.

E assim o fizeram.

Jael ouviu a criatura antes de vê-la. Falava a língua dos serafins e gemia.

— Irmãos, primos — implorava ela —, sejam gentis com esta pobre criatura, tenham piedade!

O intendente de Jael que segurava a aba da barraca aberta foi quem o viu primeiro. Ele costumava ser imperturbável, devido aos anos de experiência naquele serviço e em tudo que o trabalho envolvia; então, vê-lo empalidecer foi algo que chamou a atenção de Jael.

Dois soldados arrastavam a criatura pelas axilas. Seu corpo era uma bola inchada, os braços finos e pegajosos, e o rosto...

Jael não empalideceu. O que nos outros causava repulsa era para ele objeto de fascínio. Ele se levantou da cadeira. Chegou mais perto e se ajoelhou em frente à criatura para observá-la melhor, e quando aquilo olhou para o rosto dele, aquilo recuou. Era engraçado — que um monstro como aquele pudesse sentir repulsa —, mas Jael não riu.

— Por favor! — gritou a criatura. — Já fui punido o bastante. Voltei para casa afinal. A beldade azul me fez voar novamente, mas ela foi má, ah, garota falsa, ela tem gosto de contos de fadas... Mas deixe que ela fique com sua cidade de cinzas, deixe que ela sofra por seus monstros mortos, ela me enganou. O desejo se esgotou. Quantas vezes terei que cair? Já faz mil anos. Já sofri o bastante.

Jael entendeu que estava olhando para uma lenda.

— Decaído — disse ele, impressionado, e observou os belos olhos da criatura, afundados em seu rosto roxo e inchado.

Olhou para suas pernas, que pendiam inúteis, e para as pontas ossudas que se projetavam de suas escápulas, das quais, em um passado distante — um passado de lendas cujos livros tinham sido queimados e perdidos —, suas asas tinham sido arrancadas do corpo.

— Então você é real — disse Jael, espantado, e não pouco, em ver a criatura ainda viva depois de tudo por que já tinha passado.

— Eu me chamo Razgut, meu bom irmão, tenha piedade. O outro anjo, ele era cruel, ah, seus olhos de fogo brilhavam, mas ele estava morto, e se recusou a me ajudar.

Olhos de fogo. De repente Jael achou a tagarelice da criatura tão fascinante quanto sua história.

Com um impulso de força inesperada daqueles braços finos como junco, Razgut se libertou do soldado que o prendia e agarrou a mão de Jael.

— Você que sabe como é se sentir ferido, irmão, você terá piedade de mim.

Jael sorriu. Era quando Jael sorria que sentia mais vivamente o que seu rosto era: uma máscara de cicatrizes, um horror. Ele não se importava de ser um horror. Aquela que o havia cortado, bem, ela vivera o bastante para lamentar sua mira ruim, e depois para lamentar ter nascido. Jael era feio, mas, por mais que seu rosto tivesse sido ferido um dia, aquilo claramente nunca o abalara, e, quanto à pena, ele nunca fora incomodado por esse tipo de coisa. Ainda assim, deixou Razgut apertar sua mão. Dispensou a ajuda dos soldados quando tentaram arrastar a criatura de volta, e ordenou que seu intendente trouxesse comida.

— Para nosso convidado — disse ele.

Nosso fascinante convidado.


49

UM SORRISO DE VERDADE

Todo o cuidado que Karou vinha tendo em esconder seus hematomas foi por água abaixo quando arregaçou as mangas e colocou a maleta de ferramentas na mesa. Mas foi um choque pequeno, diluído por outros maiores, e Zuzana não disse nada. Karou não olhou para ela; não queria ver sua reação. Procurou se concentrar em Ziri.

Thiago e Ten o deitaram na cama — sem chance de Zuzana e Mik dormirem ali naquela noite —, e Ten foi buscar água fervida para lavar as feridas. Ziri continuava inconsciente, o que para ele era uma bênção, já que Karou não tinha nada capaz de aliviar a dor para lhe dar. Por que teria? Ela não era uma curandeira.

Mas... talvez fosse; afinal, ela podia fazer o que um curandeiro comum não podia — pelo menos em teoria. A mesma magia usada para conjurar um corpo podia também emendar e curar. Era possível até reparar um corpo morto e devolver-lhe a alma, embora apenas se isso fosse feito imediatamente após a morte, antes que houvesse o menor sinal de decomposição, e se os ferimentos não tivessem sido graves. Como os soldados não costumavam morrer na porta do ressurreicionista, a colheita de almas era a alternativa mais prática. Além do mais, Brimstone explicara que geralmente era mais fácil conjurar uma nova forma do que recuperar uma antiga.

Seria, segundo ele, como remendar um rasgo em uma malha de lã: o novelo de lã, antes uma fibra contínua no momento da criação original, agora estaria repleto de interrupções, cada uma delas um emaranhado de pontas soltas e costuras desfeitas. Para serem reparadas, essas interrupções exigiam uma grande habilidade, e era improvável que o remendo resultasse em um conjunto exatamente igual ao de antes.

Karou se ajoelhou para examinar os ferimentos de Ziri. Por mais terrível que parecesse o sorriso, ela tinha certeza de que conseguiria dar um jeito. Os cortes retos tinham sido feitos com firmeza, por uma lâmina bem afiada. Talvez ficassem algumas cicatrizes, mas e daí?

Thiago se inclinou por cima do ombro dela.

— Isso... são cinzas? — perguntou ele.

Karou percebeu que sim. Eram cinzas o que escurecia a boca de Ziri, inclusive por dentro.

— Parece que ele comeu isso — disse ela.

— Ou foi forçado a comer — replicou Thiago sombriamente.

Forçado a comer cinzas? Por quem? Karou pegou as mãos de Ziri e abriu-as com cuidado. Quando viu o que tinham feito com ele, deixou escapar um leve gemido de angústia. As mãos haviam sido perfuradas, como se Ziri tivesse sido crucificado. A esquerda estava completamente rasgada, do meio para fora, no tecido entre o terceiro e o quarto dedos, como se ele tivesse feito força para se soltar. Só de imaginar a dor, Karou se sentiu zonza, um ruído branco zunindo em seus ouvidos. Delicadamente, ela colocou as mãos de Ziri de volta sobre o peito.

— Então. Você pode curar as mãos dele? — perguntou Thiago.

Karou notou o tom cético em sua voz, e não o condenou por isso. Mãos eram partes muito complexas do corpo. Na escola de artes, tivera que desenhá-las e legendá-las nas aulas de anatomia: todos os vinte e nove ossos, dezessete músculos só na palma, e... mais de uma centena de ligamentos.

— Não sei — admitiu ela.

— Se não puder, é melhor que me diga logo.

Ela se sentiu gelar.

— Por quê? — perguntou, embora já soubesse a resposta.

— Se Ziri não puder usar as mãos, esse corpo não tem mais utilidade para ele... nem para mim.

— Mas é o corpo original dele.

Thiago balançou a cabeça, não de todo desprovido de compaixão.

— Eu sei. E, por mais raro que isso seja, você acha que ele vai lhe agradecer por recuperá-lo se não puder mais empunhar as facas?

É só isso que importa?, perguntou-se Karou, e a triste resposta foi: sim.

Sentiu que o Lobo a observava, mas manteve os olhos em Ziri. Pobre Ziri, ferido de maneira tão brutal. Lindo Ziri, com pernas e braços longilíneos, o gracioso eco de um povo morto. Que corpo monstruoso Thiago pediria para substituir aquele, tão perfeito? Isso não ia acontecer. Ela não deixaria Ziri ir para o fosso. Não mesmo.

— Vou curá-lo.

— Se for mais rápido fazer um novo... — começou Thiago.

— Eu consigo — retrucou Karou acidamente, e o Lobo se recostou.

Quando ela se virou em sua direção, ele a avaliava com o olhar.

— Está bem, então. Tente. Mas antes preciso interrogá-lo.

— O quê? Acordá-lo? — Karou balançou a cabeça em negativa. — É melhor assim...

— Karou, o que você acha que aconteceu com ele? Ziri foi torturado. Preciso saber por quem, e se ele revelou alguma coisa.

— Ah.

Ela então compreendeu que era importante, e, por mais que odiasse despertar Ziri para a dor, ela o acordou, o mais delicadamente possível.

Foi terrível ver os olhos dele piscarem até se abrirem por completo, turvos de dor. Olhos que procuraram o rosto dela, depois se dirigiram para o Lobo e de volta para ela. Mais uma vez Karou viu neles a urgência que percebera quando Ziri chegara, e teve certeza de que ele queria lhe contar alguma coisa.

Thiago, com seu estilo todo próprio, ajoelhou-se ao lado de seu soldado para interrogá-lo.

— Quem fez isso? — perguntou em um tom reconfortante, mas logo ficou claro que Ziri não conseguia falar, não com os músculos das faces rompidos.

O Lobo teve, então, que pensar em perguntas que Ziri pudesse responder fazendo que sim ou que não com a cabeça, o que claramente lhe causava dor.

— Você contou alguma coisa a eles? — perguntou Thiago, entendendo apenas que “eles” eram serafins.

Ziri fez que não, de forma resoluta, sem hesitação.

— Muito bem. E... o restante da equipe?

Ziri fez que não de novo. Seus cílios se encheram de lágrimas, e Karou entendeu que estavam mortos. Ela já imaginara, mas ainda assim a notícia a atingiu como um soco. Cinco soldados, mortos. Balieros. Ixander. Lembrou-se da inesperada delicadeza da alma de Ixander, de como tinha desejado fazer algo melhor para ele do que aquele corpo monstruoso.

— Conseguiu colher as almas? — perguntou o Lobo, e Karou se inclinou para a frente, esperançosa.

Ziri hesitou. Seus olhos se focaram em Karou. Desesperados. Confusos. Não fez que sim nem que não. O que aquilo significava? Thiago perguntou de novo, mas Ziri piscou e fechou os olhos, os cílios fazendo as lágrimas rolarem por seu rosto sujo de cinzas, e ele gemeu. Estava perdido em meio à dor, e, após mais algumas tentativas, Thiago teve que desistir, agora mais tranquilo ao saber que a posição deles não fora comprometida. Ficou de pé.

— Vá em frente — disse a Karou. — E boa sorte.

Quisera ela poder dizer que não tinha a ver com sorte, mas na verdade também rezava para que funcionasse. Quase queria pedir ajuda a Nitid.

— Obrigada.

Depois que Thiago saiu, ela pegou alguns tornos em cima da mesa. Ziri fez um som confuso, e, quando Karou olhou, viu que ele balançava a cabeça, agitado. Só entendeu quando ele bateu no peito com as mãos mutiladas. Ele queria oferecer sua dor.

— Ah, não. Não. Você teria que permanecer consciente para pagar o dízimo...

Ele assentiu, bateu de novo no peito, tentou falar. Seu rosto se contorceu, fazendo o sangue voltar a brotar dos cortes.

— Pare — gritou Karou, segurando as mãos dele para impedi-lo.

Os dedos se curvaram, e ele segurou a mão dela com força apesar da imensa dor que aquilo lhe causava. Assentiu de novo.

Os olhos de Karou estavam cheios d’água.

— Está bem — disse ela, limpando as lágrimas. — Está bem.

Ten voltou com água e alguns panos, e Karou começou a limpar os ferimentos do quimera. Karou tinha um pouco de antisséptico, e, à medida que o passava nos ferimentos, sentia a dor de Ziri se amplificar no ar a sua volta, quase como correntes elétricas. Ela precisava de ajuda; era um terrível desperdício deixar aquilo tudo se dissipar enquanto limpava as feridas. Virou-se para Ten, mas só de olhar para as mãos desajeitadas e brutas da mulher-lobo, desistiu. Não podia confiar os ferimentos de Ziri a ela. Olhou por cima do ombro e viu que Zuzana e Mik continuavam ali, junto à parede, do outro lado do quarto. A garota estava pálida, observando tudo atentamente com os olhos arregalados. Sem dúvida não era aquilo que ela tinha em mente quando se dispusera a ser seu Igor, uma assistente de ressurreicionista, mas suas mãos eram pequenas e gentis, e Zuzana tinha anos de prática com trabalhos delicados.

— Zuze, acha que pode me ajudar? Não precisa, se não se sentir confortável...

— O que posso fazer? — interrompeu, indo para perto de Karou.

Ten quis se oferecer, mas Karou dispensou-a e explicou a Zuzana do que precisava. Embora tenha ficado ainda mais pálida, Zuzana pegou uma gaze limpa, a bacia d’água e o antisséptico e olhou para Ziri.

— Oi — disse ela. Depois, para Karou: — Como se diz oi em quimera?

Karou falou, e ela repetiu, e embora não pudesse responder, Ziri assentiu.

— Foi ele que você desenhou. O da sua tribo.

— Sim.

— Está bem. Vamos começar.

Karou assentiu para encorajá-la e observou-a por um instante para ter certeza de que Zuzana ficaria bem. Então respirou fundo, mergulhou na terrível dor de Ziri e começou a reuni-la e a utilizá-la.

* * *

Ela não sabia por quanto tempo estivera perdida dentro de si mesma, naquele estranho estado em que trabalhava a magia de Brimstone. Não era a mesma sensação meditativa, contínua e fluida, de quando conjurava um novo corpo, e sim uma tentativa insegura de remendar e reconstruir algo que um dia tinha sido completo. Muito tempo parecia ter se passado; ela estava em um curioso estado de suspensão, como se estivesse embaixo d’água e, embora precisasse subir à tona para respirar, não subia. Sair daquele estado foi como emergir de águas escuras e profundas. Ela piscou várias vezes, respirou. O sol tinha nascido; as venezianas estavam fechadas, mas a luz vazava pelas frestas, e, embora os muros da fortaleza protegessem o quarto do calor mais forte, o frescor da noite tinha acabado; e parecia que boa parte do dia já tinha se passado.

— Karou. — Era a voz de Zuzana, abafada e reverente. — Isso foi... incrível.

O quê? Karou tentou fazer os olhos ganharem foco. Estavam secos, como se ela não piscasse houvesse horas, o que talvez fosse verdade. Ela olhou em volta. Ten tinha ido embora. Zuzana ainda estava ao seu lado; e Mik a segurava do outro lado, o braço em volta de Karou. Ela percebeu, com enorme cansaço, que ele era praticamente a única força que ainda a mantinha de pé. A exaustão era uma força equivalente à gravidade, inexorável. Nunca sentira a cabeça tão pesada.

Finalmente olhou para Ziri, que também ficara consciente por horas, alimentando-a com sua dor, e viu que ele olhava para ela de volta. Sorriu. Foi um sorriso completamente esgotado, cheio de tristeza e de outras coisas que ela não conseguia entender, mas um sorriso genuíno, não uma mensagem feia cortada na pele.

Tinha conseguido.

Ela comemorou ao ver o rosto dele. Conseguira sanar os ferimentos, e quase sem deixar cicatrizes. E as mãos? Aquele seria o verdadeiro teste. Pegou suas mãos, segurou-as e as observou com atenção. A princípio prendeu o fôlego, porque as cicatrizes eram feias e nodosas, e ela achou que tinha falhado, mas então Ziri flexionou os dedos e os movimentos foram fluidos, e Karou pôde respirar novamente. Deixou escapar um sorriso e tentou se levantar, mas a vertigem a dominou.

O quarto tombou para o lado.

E por um instante não havia mais nada além disso.


50

COMO JULIETA

Zuzana sentou na beirada da cama. Karou dormia; a pele em torno de seus olhos azul-escura, sua respiração era regular e profunda. Ziri dormia ao lado de Karou, a respiração em sincronia com a dela. Zuzana tinha lavado o rosto da amiga com água fria, assim como as mãos e os pulsos, antes de estender os braços dela ao lado do corpo.

— Ela precisa descansar — falou para Mik. — E eu preciso comer. Duvido que você também não esteja morrendo de fome.

Em resposta, Mik abriu a mochila e tirou algo dela.

— Aqui — disse ele.

Zuzana pegou. Era — ou tinha sido — uma barra de chocolate.

— Derreteu na nossa caminhada infernal — falou ela.

— E depois desderreteu, tomando um formato novo e instigante.

Virando o rosto para a janela, Zuzana inspirou fundo, depois abanou o ar na direção de Mik.

— Está sentindo? É cheiro de comida. O chocolate com formato instigante pode ser a sobremesa. Podemos dividi-lo com os quimeras.

A ruga de preocupação dele apareceu.

— Você não está pensando em descer até lá sem Karou.

— Estou.

— E oferecer chocolate.

— Sim.

— Tudo bem. Quem é você e o que fez com a verdadeira Zuzana?

— Como assim? — disse ela, adotando uma inflexão de voz dura e indiferente. — Sou a humana chamada Zuzana, e não estou tentando atraí-lo lá para onde estão os monstros. Confie em mim, humano apetitoso... quer dizer, Mik.

Ele riu.

— Só não surto com isso porque você não saiu do meu lado desde que chegamos. — Ele pegou a mão dela. — Não saia de perto de mim, ouviu?

Ela o olhou com doçura.

— Nem para ir ao banheiro?

— Ah, é. Tem isso. — Eles tinham feito um pacto de nunca virarem um daqueles casais que usam o banheiro um na frente do outro. “Preciso me manter misterioso”, Mik lhe dissera solenemente, segurando a mão dela entre as suas. — Bem, então precisamos pelo menos ter uma senha para saber se o outro é um impostor. Vai que, sabe como é, um monstro rouba meu corpo nos cinco minutos que eu levar para fazer xixi.

— Você acha que eles podem roubar corpos? E o mais importante: você leva cinco minutos para fazer e ainda assim se recusou a mijar em cima de Kaz quando eu pedi?

— Vou ter que me desculpar por isso a vida inteira, não é? Mas sério agora: uma senha.

— Está bem. Que tal... impostor?

Mik a olhou sem acreditar.

— Nossa senha anti-impostor vai ser impostor?

— Bem, é fácil de lembrar.

— Mas a questão é não deixar ninguém perceber. Se eu suspeitar que você não é você, preciso descobrir isso sem que você saiba que eu sei. Como nos filmes. Vou estar de costas para você, de frente para a câmera, e vou dizer casualmente, hã, mascate no meio da conversa...

— Mascate? Essa é nossa senha?

— Isso. E você não vai demonstrar nenhuma reação, e eu vou fazer uma careta de pânico — ele mostrou como seria a careta de pânico — porque acabei de descobrir que forças hostis se apossaram do seu corpo, mas, quando eu me virar, vou estar na maior tranquilidade do mundo. Fingindo que não desconfiei de nada enquanto planejo em segredo a minha fuga.

— Fuga? — perguntou ela, fazendo bico. — Quer dizer que você não vai tentar me salvar?

— Está maluca? — Ela a puxou para si. — Eu enfiaria a cabeça goela abaixo de qualquer monstro para resgatar você.

— Sei. E vamos torcer para que o monstro tenha convenientemente me engolido sem mastigar. Como nos contos de fadas.

— Claro. E eu cortaria a barriga dele e tiraria você de lá. Mas seria uma pena para o monstro não mastigar você: ia perder a chance de provar do seu delicioso sabor.

Mik mordiscou o pescoço dela, que deu um gritinho e o empurrou.

— Então vamos lá, meu corajoso vasculhador de gargantas de monstros, vamos arranjar alguma coisa para jantar. Tenho quase certeza de que não seremos nós o prato principal. — Ela cheirou o ar. — Afinal, já estão cozinhando. — Quando ele já ia recomeçar os protestos, ela estendeu a mão. — Do que você tem mais medo: deles ou de uma Zuze com hipoglicemia?

A boca de Mik, antes séria de preocupação, se repuxou em um sorriso.

— Não sei.

— Pegue seu violino — disse ela.

Dando de ombros, ele obedeceu. Zuzana sentiu a testa de Karou uma última vez e então eles saíram do quarto, descendo as escadas em busca de comida.

* * *

Foi um sono agitado e perigosamente profundo. Karou perdeu a noção dos dias e noites, das próprias vidas — humana e quimera —, vagou pelas lembranças como se fossem salas de um museu. Sonhou com a loja de Brimstone e sua infância lá, e com Issa, Yasri e Twiga, com ratos-escorpião e sapos alados... com Brimstone. E mesmo dormindo sentia como se tornos apertassem seu coração.

Sonhou com o campo de batalha de Bullfinch, a neblina, a primeira vez que vira Akiva, caído no chão, morrendo.

Com o templo de Ellai. Amor e prazer e esperança, a grandeza do sonho que a preenchera durante aquelas semanas — ela nunca fora, em nenhuma das suas duas vidas, tão feliz como naquela época — e a delicadeza do osso da sorte que ela e Akiva haviam segurado juntos, os nós dos dedos se tocando justo antes do osso se partir.

E, finalmente, Karou sonhou consigo mesma em uma cripta, acordando como um espectro — ou como Julieta — em uma mesa de pedra. Ao seu redor, corpos irreconhecíveis de tão queimados, e no meio deles estava Akiva, as mãos em chamas e tendo abismos insondáveis no lugar dos olhos. Ele a olhava por sobre os mortos e pedia que o ajudasse.

Ela acordou de um pulo, e o dia novamente tinha se transformado em noite, e havia o calor de uma presença ao seu lado.

— Akiva — soltou ela, arfando.

O nome escapara do sonho, aquele nome que abria um buraco em seu peito só de lhe surgir à mente. Quando dito em voz alta era dilacerante e cruel, como uma estaca, um tapa — e não apenas para ela, mas também para Ziri, se ouvisse. Porque não era Akiva ao seu lado, claro que não. E o que a percorreu naquele instante foi amargura, uma pontada dupla: uma quando ela pensou que fosse ele.

E outra quando percebeu que não era.

* * *

Akiva se assustou ao ouvir seu nome, ao ouvir a voz de Karou, e ao vê-la sentada, acordada, tão perto. Não conseguiu deter a onda de calor que o percorreu em resposta ao grito dela, uma chama que devia ter saído de suas asas e a alcançado do outro lado do quarto. E não só a ela como também a... àquele deitado ao seu lado, que não se moveu nem abriu os olhos nem mesmo quando ela gritou.

Akiva se manteve imóvel, oculto sob o encanto, mas Karou nem mesmo olhou em volta; seus olhos foram direto para o Kirin, e Akiva não conseguia imaginar o que a fizera chamar por seu nome, mas, o que quer que fosse, parecia já ter sido esquecido. Ela observava o quimera agora, e Akiva fechou os olhos. Procurou acalmar a respiração e lembrar a si mesmo, enquanto ia até a janela, que ela não podia ouvir as batidas de seu coração.

Ele queria ficar. Nunca mais queria tirar os olhos de Karou, mas, agora que ela havia acordado — pois ele precisava saber que ela acordaria —, não podia suportar ficar espionando-a daquela forma. E ele não se sentia capaz de aguentar o que talvez visse em seguida, quando o Kirin acordasse.

Não ia ficar pensando no que havia entre os dois. Não tinha esse direito.

Ela estava viva, era só o que importava.

Isso e o fato de que... era ela a ressurreicionista. Isso provocava nele um torpor que embotava quase todo o resto.

Quase.

Vê-la dormindo ao lado de outro homem era algo importante demais para ser embotado. Uma cena bem parecida com aquela ocorrera em Praga, quando vira o casal de amigos dela pela janela, e o ciúme absurdo que o abalara naquela ocasião, ao pensar, por um instante, que era ela lá deitada, o atacou de novo. Se tivesse um pingo de decência, desejaria que ela estivesse feliz com alguém de seu povo, porque, apesar de toda a incerteza daqueles dias, de uma coisa ele não tinha dúvida: não havia esperança de que ela ainda pudesse amá-lo.

Karou pegou a mão do Kirin, e foi mais do que Akiva podia suportar. Lançando-se janela afora, ele foi embora.

 

 

 


C O N T I N U A