Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DOIS PARA CONQUISTAR
Primeira Parte
O ALIENÍGENA
Paul Harrell despertou, emporcalhado e semiconsciente, com uma sensação de ter suportado pesadelos durante muito tempo. Cada músculo de seu corpo doía como uma dor de dente isolada e sua cabeça latejava como se ele estivesse com uma ressaca monumental. Recordações veladas, vagas, um homem com um rosto idêntico ao seu, a mesma voz, perguntando-lhe: Mas que inferno! Quem é você? Por acaso não será o demônio? Não acreditava no demônio, ou no inferno, nem em qualquer uma daquelas coisas inventadas para forçar as pessoas a fazerem o que na realidade não pretendiam fazer.
Movimentou a cabeça e a dor experimentada o fez encolher-se. Puxa! Devo ter entornado um bocado a noite passada!
Esticou-se, tentando virar-se e descobriu que estava deitado, as pernas livres e à vontade, confortavelmente esticadas. Isto o despertou por completo, deixando-o sobressaltado.
Podia se mexer, esticar-se; não se encontrava na caixa de estase!
Quer dizer então que tudo não passara de um pesadelo? A fuga da polícia Alpha, a rebelião que ele tinha comandado na colônia, o confronto final, com seus homens mortos ao seu redor, a captura e a prisão e, finalmente, o horror da caixa de estase fechando-se em torno dele para sempre.
Para sempre. Este fora seu último pensamento. Para sempre.
Indolor, é claro, até agradável, como quando adormecemos ao nos sentirmos totalmente exaustos. Porém, ele tinha lutado e se debatido por este último instante de consciência, sabendo que seria o último; jamais despertaria.
Os governos benevolentes tinham abolido a pena de morte há muito tempo. Uma prova nova, com muita freqüência, tinha demonstrado a inocência do prisioneiro apenas alguns anos após a sua execução. A morte tornava o erro irreparável e desconcertava todo o sistema judiciário. A caixa de estase mantinha o prisioneiro em segurança, afastado da sociedade... mas ele sempre podia ser recuperado e trazido de volta à vida. E nada de cadeias, nada de lembranças traumáticas de associação com criminosos empedernidos, nada de tumultos na prisão, sem necessidade de conselhos, recreação, reabilitação. Bastava trancafiá-los na caixa de estase e deixar que envelhecessem ali, naturalmente, para no final morrerem, inconscientes, sem vida... a não ser que sua inocência fosse comprovada. Nesse caso, podiam ser retirados dali.
Contudo, pensou Paul Harrell, ninguém poderia provar sua inocência. Era culpado como o diabo e, ademais, tinha reconhecido isto, e tentara, de todas as formas possíveis, ser morto a tiros antes de ser preso. E, o pior de tudo, certificara-se de levar consigo uns dez policiais, para que não lhe pudessem conceder a opção da reabilitação.
O que restara de seus homens, aqueles que não tinham sido mortos a tiros, rumara submisso para a reabilitação como um rebanho de ovelhas, para serem transformados em conformistas, que é tudo o que querem neste mundo enfadonho. Gatinhos. Portentos sem entranhas. E já próximo ao fim, podia ver, o juiz e todos os seus conselheiros jurídicos estariam esperando que ele se ajoelhasse e implorasse a clemência executiva — uma oportunidade de reabilitação, de modo que pudessem procurar recuperar sua mente, com drogas, reeducação e lavagem cerebral, de modo que pudessem transformá-lo num nada, para caminhar aferrolhado como todo mundo através daquilo que denominavam vida. Mas eu não, muito obrigado. Não seria capaz de jogar seu jogo infernal. Quando terminei minha fuga, estava pronto para ir e fui.
E tinha sido uma boa vida enquanto durara, pensou ele. Ele tinha feito uma mixórdia de suas leis imbecis porque, durante anos, não lhes passava pela cabeça que alguém fosse capaz de transgredi-las, a não ser por acaso ou ignorância! Tivera todas as mulheres desejadas e todas as boas coisas da vida.
Sobretudo mulheres. Não respeitara as regras que as mulheres procuravam fazer os homens seguirem. Ele era um homem, e se desejavam um homem ao invés de um carneiro, aprenderam logo que Paul Harrell não se submetia às suas regras conformistas e sem objetivo.
Aquela mulher maldita que tinha levado a polícia até mim.
A mãe dela, com toda a probabilidade, ensinara-lhe que era preciso criar barulho quando se tratasse de estupro, a menos que o homem se pusesse de joelhos e fingisse ser um eunuco, um portento sem entranhas que permitia que uma mulher o levasse para onde bem entendesse e nunca a tocasse, a menos que ela dissesse que o queria! Que inferno, ele sabia das coisas. Era aquilo que as mulheres queriam e do que gostavam, quando o dava para elas, e não aceitava um não como resposta: Ora, ela descobriu aquilo; ele não fazia o que elas queriam, mesmo com a caixa de estase balançando sobre sua cabeça! Sem dúvida ela pensara que ele iria implorar por uma oportunidade na reabilitação e eles o transformariam num gatinho que ela pudesse levar para onde quisesse, puxando-o pelos testículos!
Ora! Ela que vá para o inferno! Haverá de acordar durante as noites por todo o resto de sua vida, lembrando-se de que, pelo menos por uma vez, encontrara um homem de verdade...
E Paul Harrell, quando alcançou este ponto de suas recordações, sentou-se e arregalou os olhos. Não estava na caixa de estase, mas não se encontrava em lugar algum de que pudesse se lembrar. Teria sido tudo aquilo um pesadelo? A garota, a revolta, o tiroteio com a polícia, o juiz, o julgamento, a caixa de estase...
Será que nunca estivera ali, será que nada daquilo tinha acontecido?
E se fosse assim, o que o tinha tirado de lá?
Estava acomodado num colchão macio, coberto com um lençol de linho muito limpo e, sobre ele, havia cobertores de lã, mantas e um cobertor de peles. Uma claridade muito fraca, fosca e avermelhada envolvia o ambiente. Estendeu o braço e descobriu que a claridade atravessava pesadas cortinas da cama; que se encontrava deitado numa cama muito alta, com cortinado, como já havia visto num museu em algum lugar; e que as cortinas ao redor da cama impediam a passagem da luz. Cortinas vermelhas.
Afastou-as. Encontrava-se num quarto que nunca tinha visto antes, assim como nunca tinha visto nada parecido com ele.
Uma coisa era mais do que certa. Não se achava dentro da caixa de estase, a menos que parte do castigo fosse uma série de sonhos estranhos. Também não se achava em nenhum setor do centro de reabilitação. Na realidade, pensou ele, olhando para fora, através da janela arqueada e alta, para um sol descomunal e vermelho que se encontrava mais além, não estava em Alpha, nem na Terra, nem em nenhum dos planetas dos Mundos Confederados que tinha visitado antes.
Talvez isto fosse Valhalla, ou algo parecido. Havia antigas lendas que se referiam a um local perfeito para os guerreiros que morriam como heróis. E, sem dúvida, ele tinha sucumbido lutando; no seu julgamento informaram que ele matara oito policiais e aleijara um outro para o resto da vida. Tinha partido como um homem, não como um conformista submetido a uma lavagem cerebral; não tinha se aviltado, implorado e se lamuriado para conseguir uma oportunidade de ficar se arrastando um pouco mais num mundo onde não havia o mínimo respeito por alguém que preferisse morrer de pé!
De qualquer forma, encontrava-se fora da caixa, isto já era um bom começo. Contudo, estava nu, exatamente como havia entrado na caixa. Seus cabelos continuavam cortados muito curtos, como quando havia entrado na caixa... não. Eles os tinham raspado então, portanto, já devia se achar ali há um mês ou dois, pois podia sentir a suavidade dos cabelos curtos de encontro à palma da mão. Passou os olhos pelo cômodo à sua volta. O quarto tinha o piso de pedra com alguns tapetes de peles e couro. Não havia mobília alguma, a não ser a cama e um baú pesado, primorosamente entalhado, numa madeira escura.
E agora, em meio à dor que ainda lhe atormentava a cabeça, recordou-se de outra coisa; dores intermitentes, relâmpagos azuis ao seu redor, um círculo de rostos, caindo como de uma elevada altura... dor e depois um homem. Um homem com o seu rosto e sua própria voz perguntando: Mas que inferno! Quem é você? Por acaso não será o demônio? Antigas lendas. Se você se encontrar com um homem com seu rosto, sua cópia, seu doppelganger[1], seu fantasma, ou era o demônio ou um aviso de morte. Mas ele tinha morrido, para qualquer objetivo prático, quando o haviam colocado na caixa de estase; portanto, o que mais poderia alguém fazer contra ele? Afinal de contas, aquilo fora um sonho. Não fora? Ou será que, ao entrar na caixa, eles não o teriam transformado num clone, submetendo-o a uma lavagem cerebral para fazer dele um bom cidadão, respeitável e conformista, que sempre tinham desejado que ele fosse?
Alguma coisa levara-o para ali, de alguma forma. Mas quem, quando e como? E acima de tudo, por quê?
E, então, a porta abriu-se e o homem com o seu rosto entrou no quarto.
Não se tratava de uma semelhança, como sucede com irmãos ou gêmeos. Ele próprio.
Assim como ele, o homem tinha os cabelos louros; mas no estranho homem eles eram espessos, longos e estavam trançados e amarrados com uma corda vermelha. Paul jamais conhecera alguém que usasse os cabelos daquela maneira.
Também nunca tinha visto um homem vestido como aquele ali a sua frente, com roupas feitas com lã pesada e couro; uma jaqueta de couro ajustada por um cordão, sobre uma túnica grossa em lã crua, calças de couro, botas de cano alto. Agora que Paul já estava meio fora das cobertas, percebeu que fazia bastante frio no quarto e que, portanto, aquelas roupas faziam sentido; e então viu, através das janelas, uma grossa camada de neve recobrindo o chão. Ora, já sabia que não estava em Alpha; se ainda tivesse alguma dúvida, as sombras esmaecidas de cor púrpura sobre a neve, e o grande sol vermelho, teriam esclarecido tudo.
Porém, além de tudo isto, o homem com seu rosto. Não se tratava apenas de uma semelhança muito grande. Não era uma similitude que desapareceria quando ficassem perto um do outro. Nem mesmo a imagem que teria visto num espelho, invertida, mas o rosto que tinha visto durante seu julgamento, olhando o videotape de si mesmo.
Um clone, se alguém, a não ser excêntricos ricos, pudesse conseguir tal feito. Uma réplica absoluta e idêntica dele mesmo, até mesmo com relação ao queixo fendido e o pequeno sinal de nascença no polegar esquerdo. Mas, afinal, que loucura estava acontecendo ali?
— Com os diabos! Quem é você? — indagou.
— Vim até aqui para lhe formular a mesma pergunta — retrucou o homem da jaqueta de couro.
Paul ouviu a singularidade das sílabas. Soavam ligeiramente como espanhol arcaico — uma língua de que Paul só conhecia algumas poucas palavras. Porém, podia entender com clareza o que o estranho queria dizer e isto deixou-o ainda mais assustado do que qualquer outra coisa que já tinha acontecido até então. Os dois estavam lendo os próprios pensamentos.
— Com a breca! Você é eu! — explodiu ele.
— Não exatamente, mas quase isto. E foi por isto que o trouxemos para cá — replicou o outro homem.
— Aqui — disse Paul, fixando-se nisto. — Onde é aqui! Que mundo é este? Que sol é este? Como cheguei até aqui? E quem é você?
O homem balançou a cabeça e, novamente, Paul experimentou a estranha sensação de estar observando a si mesmo.
— O sol é o sol, e estamos naquilo que denominam de Cem Reinos; este é o Reino de Astúrias. Quanto a que mundo é este, chama-se Darkover, e esta é a única palavra que conheço. Quando eu era um garotinho narraram-me algumas fábulas sobre as outras estrelas que seriam sóis iguais ao nosso, com um milhão de outros mundos circundando-os como o nosso e, quem sabe, com seres semelhantes a nós como seus habitantes, porém sempre achei que se tratava de uma história para amedrontar as crianças! Contudo, na noite passada, vi coisas mais estranhas ainda e ouvi também coisas bem mais esquisitas do que isto. A bruxaria de meu pai trouxe-o para cá e se desejar saber o porquê, deve perguntar-lhe. No entanto, não lhe queremos fazer nenhum mal.
Paul quase não escutou a explicação. Permanecia com o olhar fixo no homem com seu rosto, seu corpo, suas próprias mãos e procurando entender o que sentia com relação a ele.
Seu irmão. Ele próprio. Ele me compreendeu. Estes pensamentos lampejavam na sua mente. E ao mesmo tempo, atravessando-os, uma súbita revolta veemente: Como é que ele ousa andar por aí usando o meu rosto? E depois, dominado por uma confusão geral, se ele ê eu, com mil demônios, quem sou eu?
E o outro homem formulou a sua pergunta em voz alta:
— Se você é eu — disse e cerrou os punhos —, então quem sou eu? Paul respondeu, com uma risadinha um tanto apressada:
— Talvez você seja, no final das contas, o demônio. Como se chama?
— Bard, porém me chamam de Lobo. Bard di Asturien, o Lobo de Kilghard. E você?
— Sou Paul Harrell — disse ele e inclinou-se. Não seria tudo aquilo um sonho estranho da caixa de estase? Será que tinha morrido e acabara em Valhalla?
Nada daquilo fazia sentido para ele. Sentido algum.
Sete anos antes...
A claridade resplandecia através de cada janela e de cada vão de porta do Castelo das Astúrias; nesta noite, o Rei Ardrin das Astúrias oferecia uma festa monumental pela comemoração do noivado de sua filha, Carlina, com seu filho de criação e sobrinho, Bard di Asturien, filho de seu irmão, Dom Rafael de High Fens. A maioria dos nobres das Astúrias, e de alguns dos reinos vizinhos, tinham comparecido para comemorar o contrato de casamento e prestar homenagem à filha do rei; o pátio estava iluminado com esplendor; estranhos cavalos e animais de montaria esperavam ali para serem levados aos estábulos, nobres ricamente vestidos, as pessoas do povo amontoavam-se para espiar o que podiam ver do lado de fora dos portões e receber as migalhas de comida, vinho e doces distribuídos pelo pessoal encarregado da cozinha a todos que até ali chegavam, criados correndo de um lado para o outro cumprindo tarefas verdadeiras ou imaginárias.
No alto dos aposentos reservados às mulheres, Carlina di Asturien olhava com desagrado para os véus rebordados e o vestido em veludo azul, enfeitado com pérolas de Temora, que iria usar para a cerimônia de noivado. Estava com 14 anos; uma jovem esbelta, pálida, com compridas tranças enroladas ao redor das orelhas e imensos olhos cinzentos — as únicas coisas bonitas num rosto magro demais e pensativo para ser belo. Apresentava a face avermelhada em volta das pálpebras; estivera chorando por muito tempo.
— Vamos, já, vamos, ande — apressava-a sua babá, Ysabet. — Não deve chorar assim, chiya. Veja que vestido lindo, nunca mais terá outro tão bonito como este. E Bard é tão encantador e corajoso; imagine só, seu pai nomeou-o porta-estandarte no campo de batalha por sua bravura na batalha de Snow Glen. E, afinal de contas, minha criança querida, não vai se casar com um estranho; Bard é seu irmão de criação, educado aqui na casa do rei desde os dez anos. Ora, quando eram crianças, estavam sempre brincando juntos, até pensava que você o amava muito!
— E o amo mesmo... como a um irmão — retrucou Carlina, sussurrando. — Mas não para me casar com Bard... não, ama, não quero me casar com ele. Não quero me casar de modo algum...
— Isto é uma tolice — disse a mulher mais velha, dando um muxoxo, e ergueu o vestido bordado com pérolas para ajudar a sua menina a vesti-lo.
— Está bem. — Carlina submeteu-se como uma boneca, sabendo que de nada adiantaria oferecer resistência.
— Então, por que não deseja se casar com Bard? Ele é encantador e corajoso... quantos jovens distinguiram-se antes de alcançar seu décimo sexto aniversário? — indagou Ysabet. — Um dia, disto tenho plena certeza, ele será o general de todos os exércitos de seu pai! Não está se opondo a ele por ser um nedestro, não é verdade? O pobre moço não escolheu nascer dos amores de seu pai com uma de suas aventuras e não de sua mulher legítima!
Carlina sorriu debilmente diante do pensamento de que alguém pudesse se referir a Bard como pobre moço. A ama beliscou suas faces. Falou:
— Muito bem! É assim a maneira correta de ir para seu noivado... com um sorriso! Deixe-me arrumar melhor estas rendas. — Trabalhou ajeitando as rendas, depois entregou-se aos laços. — Sente-se aqui, minha linda, enquanto arrumo suas sandálias. Veja só que elegância, sua mãe mandou fazê-las para combinar com o vestido, couro azul com pérolas! Como está linda, Carlie, parece uma flor azul! Deixe-me apertar os laços de fita nos seus cabelos. Acho que não há noiva mais bela em qualquer ponto de nove reinos esta noite! E Bard tão lindo, certamente, para ser digno de você, tão louro onde você é tão morena...
— Que lástima que ele não possa se casar com você, ama, de vez que gosta tanto dele — exclamou Carlina secamente.
— Ora, deixe disto, ele não haveria de me querer, velha e mirrada como estou — retrucou Ysabet, contendo-se. — Um guerreiro jovem e bonito como Bard deve ter uma noiva maravilhosa e jovem, e foi isto que seu pai ordenou... Não entendo por que o casamento não é celebrado e consumado ainda hoje!
— Porque implorei a minha mãe e ela falou com meu pai e senhor em meu nome; então ele concordou que não deveria me casar até que eu completasse quinze anos. A cerimônia do casamento se realizará daqui a um ano, no Festival do Solstício do Verão.
— Como pode agüentar uma espera tão longa? Evanda abençoe-a, criança, se eu tivesse um amor tão lindo e jovem como o Bard, seria incapaz de esperar tanto tempo... — Percebeu que Carlina estava perturbada e falou com mais delicadeza: — Está com medo da cama matrimonial, minha criança? Jamais uma mulher morreu por causa dela, e não tenho dúvidas de que a achará bastante agradável; mas no seu caso será menos assustadora, pois ele é um companheiro e seu irmão de criação também.
Carlina sacudiu a cabeça:
— Não, não é isto, ama, embora, como já lhe falei, não penso em casamento; preferiria passar minha vida em castidade e fazendo boas obras entre as sacerdotisas de Avarra.
— Que os céus nos protejam! — A mulher fez um gesto como se se sentisse chocada. — Seu pai jamais permitiria uma coisa destas!
— Sei disto, ama. A deusa sabe, implorei a ele que me poupasse deste casamento, que me deixasse ir, porém ele me fez recordar que era uma princesa e que meu dever é casar, para trazer sólidas alianças para seu trono. Como acontecera com minha irmã Amalie, mandada para se casar com o Rei Lorill de Scathfell. Além de Kadarin, coitadinha, sozinha naquelas montanhas do norte, e minha irmã Marilla casou-se no sul com Dalereuth...
— Está aborrecida por elas terem se casado com príncipes e reis e você, apenas, com o filho bastardo do irmão de seu pai?
Carlina sacudiu a cabeça.
— Não, não — retrucou com impaciência. — Sei o que meu pai tem em mente; deseja prender Bard a ele com um forte laço, de forma que, algum dia, Bard venha a ser seu mais forte paladino e seu protetor. Não se preocupou comigo, nem com o Bard; não passa de mais uma das manobras de meu pai visando proteger o trono e o reino!
— Ora, minha criança, a maioria dos casamentos são realizados por causas menos justas do que esta.
— Porém, não é necessário — retrucou Carlina, com impaciência. — Bard haveria de ficar satisfeito com qualquer mulher, e meu pai poderia ter descoberto alguma jovem de estirpe nobre que satisfaria a ambição de Bard! Por que devo ser obrigada a passar minha vida com um homem que pouco se importa se sou eu, Carlina, ou outra qualquer, desde que seja bastante bem-nascida para satisfazer a sua ambição, que tenha um rosto bonitinho e um corpo desejávell? Avarra que se apiede de nós, acha que desconheço que todas as criadas jovens do castelo dividem a cama com ele? Depois elas andam por aí se vangloriando disto!
— Quanto a isto — observou Ysabet —, ele não é melhor nem pior do que qualquer um de seus irmãos ou irmãos de criação. Não pode culpar um rapaz por andar com prostitutas e, pelo menos, você sabe através de suas bazófias que ele não é estropiado nem um amante de homens! Quando ele estiver casado com você, tudo que deve fazer é mantê-lo bastante ocupado na sua cama para afastá-lo das outras!
Carlina fez um gesto de desagrado diante daquela vulgaridade:
— Elas são recebidas de bom grado por Bard na sua cama, e não pretendo disputar meu lugar ali. Contudo, já ouvi coisas piores, soube que não aceita recusas; que se uma moça lhe responde que não, ou caso ele ache que haja razão para que ela lhe diga não, o orgulho dele é tão grande que lançará uma compulsão sobre ela, um encanto, de modo que ela não possa recusar, mas irá para a cama dele mesmo sem vontade, sem poder fazer nada em seu favor...
— Já ouvi comentários a respeito de homens que possuem este laran — explicou Ysabet, dando umas risadinhas. — Trata-se de algo útil, mesmo quando um rapaz é bonito e fogoso; porém não dou e nunca dei muito crédito a estas histórias de encantamentos. Qual é a moça que necessita ser enfeitiçada a fim de ir para a cama de um rapaz? Está claro que elas recorrem a esta velha lenda para se desculparem caso apareçam grávidas inoportunamente...
— Não, ama. Tenho certeza de que pelo menos por uma vez isto realmente aconteceu; e com a minha criada Lisarda, ela é uma boa moça e contou-me que não conseguiu se controlar...
— Toda sirigaita afirma, depois, não ter podido se controlar! — exclamou Ysabet com uma gargalhada vulgar.
— Não fale assim — interrompeu-a Carlina, aborrecida. — Lisarda mal acabou de completar doze anos; não tem mãe e praticamente não sabia o que ele queria com ela, apenas não teve escolha e foi forçada a se submeter à vontade dele. Pobre menina, mal acabara de entrar na puberdade e, depois, chorou em meus braços; foi muito difícil para mim explicar-lhe por que um homem podia desejar uma mulher desta maneira...
Ysabet revelou seu desagrado:
— Eu me perguntava o que tinha acontecido com Lisarda...
— Acho difícil perdoar o Bard, como pôde fazer isto com uma menina que nunca lhe tinha feito mal? — falou Carlina, ainda revoltada.
— Ora, ora — exclamou a ama, suspirando —, os homens agem sempre assim e as mulheres devem aceitar isto.
— Não vejo por quê!
— O mundo é assim — afirmou Ysabet. Em seguida estremeceu e olhou para o relógio preso à parede. — Vamos, Carlina, minha querida, não deve se atrasar para o seu noivado!
Carlina levantou-se, suspirando resignada, no momento em que sua mãe, a Rainha Ariel, entrou no seu aposento.
— Está pronta, minha filha? — a rainha examinou a jovem da cabeça aos pés, desde as tranças enroladas sobre as orelhas até as delicadas sandálias bordadas com pérolas azuis. — Não haverá noiva mais bonita, pelo menos nos Cem Reinos. Fez um bom trabalho, Ysabet.
A anciã inclinou-se numa reverência, agradecendo o elogio.
— Precisa apenas de um pouco de pó-de-arroz no rosto, Carlie, seus olhos estão vermelhos — observou a dama. — Ysabet, traga-me a esponja. Carlina, você esteve chorando?
Carlina baixou a cabeça sem responder. Sua mãe falou com firmeza:
— É impróprio para uma noiva derramar lágrimas, e isto nada mais é do que o seu noivado. — Com sua própria mão passou a esponja sobre as pálpebras da filha. — Assim. Agora um toque de lápis ali, nas sobrancelhas... — falou, orientando Ysabet para que retocasse a maquiagem. — Adorável. Venha, minha querida, minhas damas estão esperando...
Ouviu-se um pequeno coro de murmúrios e exclamações de admiração quando Carlina, encantadora, reuniu-se às mulheres. Ariel, Rainha das Astúrias, acompanhada por suas damas, estendeu a mão para Carlina.
— Esta noite ficará sentada entre as minhas damas, e quando seu pai chamá-la, deve adiantar-se e juntar-se a Bard diante do trono — começou ela a explicar.
Carlina olhou para o rosto tranqüilo da mãe e refletiu sobre se deveria ou não fazer um derradeiro apelo. Sabia que sua mãe não gostava de Bard, se bem que por motivos errados; ela apenas se opunha a sua condição de bastardo. Jamais gostara daquilo, que ele devesse ser o irmão de criação de Carlina e Beltran. Contudo, não fora sua mãe quem lhe arranjara aquele casamento, e sim o pai. E sabia que o Rei Ardrin não estava acostumado a dar muito ouvido ao que as mulheres desejavam. Sua mãe tinha conseguido aquela concessão, ou seja, que não deveria se casar até que tivesse completado 15 anos.
Quando eles me chamarem para entregar minha mão ao Bard, gritarei e me recusarei a falar, direi não em alto e bom som quando me pedirem para concordar sairei correndo do salão... Mas, no fundo de seu coração, Carlina sabia que não faria nenhuma destas coisas indignas, mas suportaria a cerimônia com o decoro adequado a uma Princesa das Astúrias.
Bard é um soldado, pensou no seu desespero, quem sabe não morrerá combatendo, antes do casamento? Em seguida, experimentou uma sensação de culpa, pois em uma determinada época ela o amara. Mais que depressa corrigiu seus pensamentos: talvez ele encontre alguma outra mulher com quem deseje se casar, talvez meu pai mude de idéia...
Avarra, deusa misericordiosa, Grande Mãe, livre-me deste casamento...
Agastada, desesperada, conteve as lágrimas que ameaçavam inundar seus olhos novamente. Sua mãe ficaria indignada caso ela os desonrasse desta forma.
Num aposento situado na parte inferior do castelo, Bard di Asturien, filho de criação do rei e seu porta-estandarte, estava sendo vestido para seu noivado por seus dois companheiros e irmãos de criação: Beltran, filho do rei, e Geremy Hastur, que, como Bard, fora educado na casa do rei, mas era um dos filhos mais moços de Lorde de Carcosa.
Os três jovens eram muito diferentes. Bard era alto e de constituição vigorosa, já com altura de um homem feito, com fartos cabelos louros trançados, como os de um guerreiro, junto à nuca, e seus braços fortes e musculatura vigorosa eram de um esgrimista e cavaleiro; erguia-se sobre os outros como um jovem gigante.
O Príncipe Beltran também era alto, embora não tanto quanto Bard; contudo, ainda era magricela e folgazão, ossudo, com a rotundidade de um menino, e suas faces ainda estavam cobertas com as penugens dos primeiros sinais do aparecimento da barba. Seus cabelos eram curtos e bem crespos, mas tão louros quanto os de Bard.
Geremy Hastur era o mais baixo dos três, com cabelos ruivos, rosto descarnado, penetrantes olhos cinzentos e com a rapidez de um falcão. Vestia roupas simples e escuras, vestimenta mais apropriada a um erudito do que a um guerreiro, e seus modos eram tranqüilos e simples.
Ele ergueu o olhar para Bard e pediu:
— Terá que se sentar, irmão de criação; nem Beltran nem eu alcançamos a altura de sua cabeça para que possamos amarrar o cadarço vermelho na sua trança! E não pode comparecer a uma cerimônia sem ele!
— Não pode mesmo — concluiu Beltran, forçando Bard a se sentar. — Venha, Geremy, você amarra o cadarço, suas mãos são mais jeitosas do que as minhas, ou as de Bard. Recordo-me ainda quando, no outono passado, você suturou o ferimento do guarda do rei...
Bard riu por entre os dentes enquanto abaixava a cabeça para que seus amigos pudessem amarrar o cadarço vermelho, cujo significado era de um experiente guerreiro em combate e recomendado por bravura. Falou:
— Sempre o julguei um covarde, Geremy, que não combatia no campo de batalha, e suas mãos eram tão suaves quanto as de Carlina; ainda assim, quando vi aquilo, mudei meu pensamento e julguei que você tinha mais coragem do que eu, pois não teria feito aquilo. Lastimo que não haja um cadarço vermelho para você!
Geremy retrucou, naquele seu tom de voz abafado:
— Ora, deixe disto, caso contrário teríamos que dar um cadarço vermelho para cada mulher que desse à luz uma criança, ou a cada mensageiro que se esgueirasse, sem ser visto, através das linhas inimigas. A coragem assume vários aspectos. Posso me arranjar muito bem sem a trança de guerreiro ou o cadarço vermelho.
— Quem sabe, um dia — disse Beltran —, quando chegar o momento em que governarei estas terras... que o reinado de meu pai seja longo!... talvez possamos premiar a coragem sob outras formas além daquela que vemos nos campos de batalha. O que acha disto, Bard? Quando este tempo chegar, você será meu herói, Bard, caso vivamos todos por tanto tempo assim. — De repente, olhou muito sério para Geremy e indagou: — O que tem você?
Geremy Hastur sacudiu a cabeça ruiva. Respondeu:
— Sei lá... um arrepio repentino; talvez, como costumam dizer os habitantes das montanhas, algum animal selvagem urinou sobre o local onde serei enterrado.
Terminou de enrolar o cadarço vermelho em volta da trança de guerreiro de Bard, entregou-lhe a espada e o punhal e ajudou-o a colocá-los na cintura.
— Sou um soldado; sei muito pouco a respeito de outros tipos de coragem — com um movimento dos ombros ajeitou sua capa bordada para as ocasiões festivas, uma capa vermelho vivo para combinar com o cadarço vermelho enrolado em toda a extensão de sua trança. — Vou revelar-lhes uma coisa, é preciso mais coragem para enfrentar esta tolice desta noite; prefiro me ver diante de meus inimigos com minha espada em riste!
— Que conversa é esta sobre inimigos, irmão de criação? — indagou Beltran, examinando seu amigo. — Certamente, não tem inimigos no salão de meu pai! Ora, quantos jovens da sua idade receberam o cadarço de guerreiro, foram feitos porta-estandartes do rei no campo de batalha, antes de terem completado dezesseis anos? E quando você matou Dom Ruyven de Serrais e seu mediador, salvando por duas vezes a vida do rei em Snow Glen...
— Lady Ariel não gosta de mim. Se pudesse, impediria meu casamento com Carlina. E está furiosa porque eu, e não você, fiquei famoso no campo de batalha, Beltran.
Beltran balançou a cabeça:
— Talvez isto não passe de uma atitude maternal — arriscou ele. — Para ela não basta que eu seja um príncipe, herdeiro do trono de meu pai, também quer que conquiste renome como guerreiro. Ou, quem sabe?... — tentou transformar tudo aquilo em pilhéria, porém Bard seria capaz de jurar que também havia um traço de amargura... — ela teme que sua coragem e fama farão meu pai julgá-lo melhor do que seu próprio filho.
— Essa não, Beltran, você recebeu o mesmo tipo de ensino que eu; você também poderia ter ganho condecorações como guerreiro. É o acaso da guerra, acho, ou a sorte no campo de batalha — comentou Bard.
— Não. Não sou um guerreiro nato e não possuo o seu talento para combater. E tudo o que posso fazer para me comportar com dignidade e salvar minha pele inteira é matar alguém que tente atingi-la — replicou Beltran.
Bard soltou uma gargalhada e falou:
— Muito bem, acredite-me Beltran, é exatamente isto o que faço.
— Alguns homens são guerreiros natos e outros são guerreiros elaborados; não me enquadro em nenhum dos casos — afirmou Beltran, sacudindo a cabeça com tristeza.
Geremy intrometeu-se na conversa para diminuir a tensão:
— Mas você não precisa ser um grande guerreiro, Beltran; deve se preparar para governar as Astúrias algum dia. Quando isto acontecer, poderá ter quantos guerreiros desejar, e caso eles o sirvam bem, não será necessário saber qual a extremidade de uma espada que deva ser agarrada! Você será aquele que comandará todos os guerreiros e também todas as feiticeiras... Será que, nesse dia, gostará de me ter como seu laranzu? — ele usou a palavra arcaica para feiticeiro, mágico, e Beltran sorriu e deu-lhe umas palmadinhas no ombro.
— Quer dizer que terei um mágico e um guerreiro como irmãos de criação e nós três governaremos as Astúrias juntos contra todos os seus inimigos, tanto em combate como em feitiçaria! Geremy, mande o seu pajem novamente até o pátio para verificar se o pai de Bard compareceu para assistir ao noivado do filho.
Geremy já ia fazer um sinal para o jovem que ali se encontrava à sua disposição, porém Bard sacudiu a cabeça.
— Não dê este trabalho ao rapaz — suas mandíbulas contraíram-se. — Ele não há de vir e não vejo por que devemos fingir que o fará, Geremy.
— Nem mesmo para vê-lo casado com a própria filha de seu rei?
— Talvez ele apareça para o casamento, caso o rei deixe bastante claro que se sentirá ofendido se não comparecer — observou Bard —, mas não se dará tamanho trabalho apenas para assistir a um noivado.
— Mas o noivado é o verdadeiro compromisso — comentou Beltran. — A partir da concessão da mão de minha irmã, você é o marido legal de Carlina, e ela não poderá aceitar qualquer outro enquanto você viver! O único problema é que minha mãe a considera muito criança ainda para a consumação do casamento; portanto, esta parte da cerimônia fica adiada para o próximo ano. Mas Carlina é a sua mulher; e você, Bard, é meu irmão — pronunciou estas palavras com um sorriso tímido.
Bard, apesar da expressão calma estampada no rosto, sentia-se tocado. Falou:
— Esta, provavelmente, é a melhor parte de tudo.
— Porém, sinto-me atônito diante do fato de Dom Rafael não querer comparecer para assistir ao seu noivado! — comentou Geremy. — Sem dúvida alguma, ele já soube que você foi condecorado no campo de batalha por bravura, foi feito porta-estandarte do rei, matou de um só golpe Dom Ruyven e seu mediador... se meu pai soubesse de feitos iguais a estes a meu respeito, haveria de se postar ao meu lado cheio de orgulho e satisfação!
— Oh, não duvido que ele se orgulhe de mim — disse Bard, e seu rosto contraiu-se numa amargura profunda, muito estranha em alguém tão jovem ainda. — Porém ele dá ouvidos a tudo e por tudo a Lady Jerana, sua mulher legítima; e ela jamais se esqueceu de que ele renunciou ao seu leito quando ela ficou sem lhe conceber filhos, durante doze anos de casamento; como também nunca perdoou minha mãe por lhe ter dado um filho. E ficou furiosa por meu pai ter me criado na sua casa, ter me acostumado e ensinado as proezas de guerra, e os costumes da corte, ao invés de ter me mandado para ser criado com objetivo de arar ou limpar os campos plantando cogumelos!
— Ela deveria é ter ficado agradecida por alguém ter dado um filho ao seu marido quando ela não o podia fazer — retrucou Beltran.
Bard encolheu os ombros:
— Esta não é a maneira de proceder de Lady Jerana! Muito pelo contrário, cercou-se de leroni e feiticeiras... a metade de suas damas de companhia tem cabelos vermelhos e são bruxas experientes... até que, mais cedo ou mais tarde, uma delas pudesse lhe dar um encanto para curá-la da esterilidade. Depois, teve meu irmão, Alaric. E, então, quando meu pai não lhe podia mais negar coisa alguma, pois ela tinha lhe dado um filho legítimo, um herdeiro, dedicou-se a se ver livre de mim. Oh, Jerana era incapaz de revelar qualquer tipo de gentileza para comigo, até ter seu próprio filho; ela fingia ser uma verdadeira mãe para mim, porém eu percebia a sua revolta contida em cada beijo que me dava! Acho que ela temia que eu pudesse tomar o lugar de seu filho, pois Alaric era pequenino e não tinha boa saúde, enquanto eu era forte e saudável. Odiava-me mais ainda porque Alaric gostava de mim.
— Pois creio que ela deveria receber de bom grado um irmão forte e um guardião para seu filho, alguém que se preocuparia com ele... — tornou a falar Beltran.
— Adoro o meu irmão — esclareceu Bard. — Há vezes em que penso não existir mais ninguém no mundo que se importaria por eu estar vivo ou morto; mas, desde o momento em que Alaric passou a distinguir um rosto do outro, ele sorria para mim, levantava seus bracinhos para que o carregasse às costas e implorava para dar voltas no meu cavalo. No entanto, para Lady Jerana, não parecia adequado que um meio-irmão bastardo devesse ser o escolhido para ser o mediador e companheiro para seu pequeno príncipe; ela exigia para seu filho a companhia de príncipes e filhos de nobres! E assim chegou um tempo em que eu só o via recorrendo à astúcia; e certa vez, deixei-a furiosa quando ele estava doente, por ter me esgueirado sem autorização no seu precioso cômodo. Uma criança de quatro anos e ela estava zangada porque seu irmão conseguia adormecê-lo com suas canções enquanto que ela, com seus afagos, era incapaz. — Seu rosto estava duro, amargo, carrancudo, mergulhado nas recordações.
"E depois disto, não deixou mais meu pai em paz até que ele me mandasse embora. E ele, ao invés de a mandar ficar calada, mandar na sua própria casa, como um homem deve agir, preferiu manter a paz na sua cama e no lar afastando-me de lá e de meu irmão!"
Beltran e Geremy ficaram, momentaneamente, emudecidos diante da sua amargura. Geremy bateu então com delicadeza em seu ombro e falou, com ternura e meio sem jeito:
— Ora, você tem dois irmãos para ficarem ao seu lado esta noite, Bard, e dentro em breve terá parentesco aqui.
O sorriso esboçado por Bard foi gélido, implacável:
— A Rainha Ariel gosta tanto de mim quanto minha madrasta. Estou certo de que ela encontrará um jeito para colocar Carlina contra mim, e, quem sabe, vocês dois também. Não culpo meu pai, a não ser por dar ouvidos às palavras de uma mulher. Que Zandru torça meus pés se eu jamais escutar o que uma mulher diz!
Beltran explodiu numa gargalhada e disse:
— Bard, ninguém poderia imaginar que você detestasse as mulheres. Pelo que as criadas dizem, acontece justo o oposto... no dia em que for se deitar ao lado de Carlina, haverá prantos por todos os cantos e recantos do reino das Astúrias!
— Oh, quanto a isto — disse Bard, fazendo um esforço deliberado para se engajar no estado de alegria —, só dou ouvidos às mulheres num lugar e vocês podem imaginar que lugar seja este...
— E tem mais — prosseguiu Beltran —, quando nós éramos todos apenas meninos e meninas, recordo-me que você sempre escutava o que Carlina dizia; era capaz de subir numa árvore, na qual ninguém se arriscaria a trepar, apenas para ir apanhar o gatinho dela, e quando ela e eu discutíamos, ficava logo sabendo que era melhor desistir, pois caso contrário você acabava me surrando para valer, tomando as dores dela!
— Ah... Carlina — resmungou Bard, e sua face distendeu-se num amplo sorriso. — Carlina não é igual às outras mulheres; não seria capaz de falar sobre ela no mesmo alento como o faria com relação à maioria das cadelas e vagabundas deste lugar! Quando estiver casado com ela, acreditem-me, não terei tempo para nenhum outro lazer! Asseguro-lhes, não precisará se cercar de encantos como fez Lady Jerana, para manter meu pai fiel a ela. Desde que vim para cá, ela sempre foi muito boa para comigo.
— Todos nós queríamos ser bons com você — protestou Beltran —, porém você não era capaz de dirigir a palavra a ninguém e ameaçava brigar com todos nós...
— Ainda assim, Carlina fez-me sentir, talvez pela primeira vez, que alguém se importava em saber se eu estava vivo ou morto — retrucou Bard —, e eu não tinha coragem de brigar com ela. Agora seu pai resolveu entregá-la a mim... logo ela que jamais pensei pudesse ganhar, por ser um bastardo. Lady Jerana pode ter me afastado de meu lar, de meu pai, de meu irmão, mas agora talvez eu tenha um lar aqui.
— Mesmo que tenha que levar Carlina junto? — zombou Beltran. — Ela não é bem o tipo que eu escolheria para minha mulher; esquelética, morena, sem graça... seria preferível, parece-me, levar para a cama o espantalho que armam nos campos para espantar os corvos!
— Eu não esperaria que o irmão dela se apercebesse de sua beleza e não é por isto que a desejo — comentou Bard, inteligentemente.
Geremy Hastur, que tinha os cabelos ruivos e o dom de laran do pessoal de Hastur de Carcosa, o talento de ler os pensamentos até mesmo sem estar de posse das pedras das estrelas usadas pelos leroni e pelas feiticeiras, podia sentir os pensamentos de Bard à medida que se dirigiam para o grande salão para a cerimônia de noivado.
Existem muitas mulheres neste mundo para se levar para a cama, pensava Bard. Mas Carlina é diferente. Ela é a filha do rei; casando-me com ela, já não sou mais um bastardo, um joão-ninguém, mas sim o porta-estandarte do rei e seu herói; terei um lar, uma família, irmãos, filhos algum dia... serei grato por toda a minha vida a esta mulher que tudo isto me proporcionou; juro que ela jamais terá motivos para reprovar seu pai por tê-la entregue a seu irmão bastardo...
Certamente. Pensou Geremy, isto era motivação suficiente para um casamento. Talvez ele não deseje Carlina por ela mesma, mas como um símbolo de tudo aquilo que ela lhe pode oferecer. Ademais, casamentos são realizados diariamente em todos os reinos, com menos motivação do que este. E caso ele seja bom para Carlina, ela haverá de se sentir feliz, sem dúvida alguma.
Contudo, ele se sentia intranqüilo, pois sabia que Carlina tinha medo de Bard. Ele presenciara quando o Rei Ardrin mencionara o casamento para a sua filha e tinha visto o choro nervoso dela, seus acessos de pranto.
Bem, isto não tem remédio, o rei faria as coisas a seu modo e, sem dúvida, era certo ele premiar seu porta-estandarte, que também era seu sobrinho, se bem que um bastardo, com honrarias e um rico casamento com alguém da sua família; isto haveria de prender Bard ao trono do Rei Ardrin na qualidade de herói. Talvez fosse uma lástima para Carlina, porém todas as garotas eram dadas em casamento, mais cedo ou mais tarde, e ela poderia vir a se casar com algum devasso mais velho, ou com algum velho guerreiro encanecido, ou até mesmo com algum bandido bárbaro de um dos pequenos reinos localizados do outro lado de Kadarin, caso seu pai julgasse conveniente selar uma aliança com outro remo. Ao invés disto, ele a entregava a um parente próximo, alguém que tinha sido seu companheiro de brincadeiras, um irmão de criação que sempre a tinha defendido na infância. Carlina haveria de se conformar com o casamento e bem rápido.
Contudo, seus olhos perspicazes tinham vislumbrado as pálpebras avermelhadas, mesmo sob o cuidadoso toque de pó e a pintura. Ergueu o olhar e fitou Carlina com compaixão, desejando que ela conhecesse Bard tão bem quanto ele. Talvez, se compreendesse seu prometido marido, pudesse diminuir a sua amargura, fazê-lo sentir-se menos retraído, menos desamparado entre os outros. Geremy suspirou, refletindo sobre seu próprio exílio.
Isto porque Geremy Hastur não tinha ido de boa vontade para a corte do Rei Ardrin. Ele era o filho mais novo do Rei Istvan de Carcosa; e fora mandado, meio refém, meio diplomata, para ser criado na família do Rei Ardrin como um testemunho das relações amistosas entre a casa real das Astúrias e a casa dos Hasturs de Carcosa. Ele teria preferido ser um conselheiro, um feiticeiro, um laranzu de seu pai... ele sempre soubera que não possuía os dotes de um soldado, porém o pai julgara-o um filho não desejado e enviara-o como um refém, como poderia ter mandado uma das filhas para se casar. Geremy pensou, pelo menos Carlina não teria que abandonar a própria casa para se casar!
A corte levantou-se quando o Rei Ardrin entrou. Bard, de pé ao lado de Beltran, ouvindo os toques dos arautos, ainda passou os olhos pela multidão para verificar se seu pai não viera no último momento, desejando, talvez, fazer-lhe uma surpresa; desistiu e, zangado, virou o rosto para a frente. Por que haveria de se importar? O Rei Ardrin pensava mais nele do que o próprio pai, o rei condecorara-o em batalha, presenteara-lhe com terras e uma propriedade maravilhosa, conferira-lhe o cadarço vermelho de guerreiro e dera-lhe a mão de sua filha mais nova em casamento. Com tudo isto, por que deveria se preocupar com seu pai, sentado em casa e escutando o veneno que a asquerosa megera Jerana vertia nos seus ouvidos?
Contudo, gostaria que meu irmão estivesse aqui. Quero que Alaric saiba que sou o paladino do rei e seu genro... ele deve estar com sete anos, agora...
No momento adequado ele se adiantou, induzido por Beltran e Geremy. Carlina estava de pé ao lado direito do trono do pai. Os ouvi-dos de Bard zumbiam e ele quase não conseguiu escutar as palavras do rei.
— Bard mac Fianna, denominado di Asturien, a quem fiz meu porta-estandarte — começou Ardrin das Astúrias —, nós o convocamos aqui, esta noite, para lhe conceder a mão de minha filha mais moça, Lady Carlina. Responda, Bard, é de sua vontade entrar para a minha família?
A voz de Bard soou perfeitamente controlada; achava-se em dúvida quanto a isto porque, no íntimo, sentiase tremer. Ele imaginou que aquilo era como cavalgar rumo à batalha. Havia algo que o deixava inabalável quando precisava se mostrar ajuizado.
— Meu rei e senhor, esta é a minha vontade.
— Pois bem — disse Ardrin, pegando a mão de Bard numa das suas, e a de Carlina na outra — peço-lhes para juntarem as mãos diante de toda esta gente e para trocarem suas promessas.
Bard sentiu a mão de Carlina na sua; muito macia, os dedos tão finos que pareciam não ter ossos. Ela estava tão gélida e não olhou para ele.
— Carlina, você aceita este homem para ser seu marido? — perguntou Ardrin.
Ela murmurou algo que Bard não conseguiu discernir. Imaginou que devia ser uma frase de concordância. Pelo menos ela não o tinha recusado.
Ele se inclinou para a frente, como o exigia o cerimonial, e beijou seus lábios trêmulos. Ela tremia da cabeça aos pés. Fogo do inferno! Será que a menina estava com medo dele? Ele sentiu o perfume de flores que seus cabelos exalavam, de algum cosmético que tinham passado em seu rosto. Quando Bard voltou a se afastar, uma parte da gola bordada de seu vestido arranhou-lhe ligeiramente o rosto. Muito bem, pensou ele, já tinha possuído muitas mulheres; logo, logo, ela haveria de perder o medo em seus braços, era isto que sempre acontecia com todas; mesmo se agora estava toda arrumada como uma boneca. Carlina. Sua, para sempre, sua princesa, sua mulher. E, então, ninguém mais poderia chamá-lo novamente de bastardo ou rejeitado. Carlina, seu lar, sua amada... apenas dele. Sentiu a garganta áspera ao murmurar as palavras do ritual.
— Diante de nossos parentes reunidos prometo me casar com você, Carlina, e fazê-la feliz para sempre.
Ele escutou a voz dela, apenas um sussurro.
— Diante... parentes reunidos... prometo casar... — porém, por mais que tentasse, não conseguiu ouvi-la pronunciar o seu nome.
A Rainha Ariel e seus planos absurdos para livrar a filha dele que vão para o inferno! Deveriam ter se casado e consumado o casamento naquela mesma noite, pois assim Carlina perderia logo o medo que sentia dele! Bard tremia, ao pensar nisto. Jamais desejara tanto uma mulher assim. Aumentou a pressão de sua mão sobre os dedos dela tentando acalmá-la, porém sentiu apenas que ela se retraía devido à dor.
— Que vocês dois sejam para sempre uma só pessoa — concluiu o Rei Ardrin.
Bard afrouxou, com relutância, o aperto. Juntos, beberam de uma taça de vinho mantida próxima de seus lábios. Estava terminado; Carlina era sua noiva. Agora, era tarde demais para o Rei Ardrin mudar de idéia. Bard percebeu que, até este momento, pensara que algo poderia se interpor entre ele e sua boa sorte, mesmo quando estivessem de pé, um ao lado do outro, durante a cerimônia do noivado, que a maldade de sua madrasta, ou da Rainha Ariel, haveria de se inserir entre ele e Carlina, que representava para ele um lar, um lugar, honradas... que todas as mulheres vão para o inferno! Todas as mulheres, à exceção de Carlina, isto mesmo!
Beltran abraçou-o como a um parente chegado e comentou:
— Agora você é realmente meu irmão!
Bard entendeu que, de alguma forma, Beltran sempre tinha sentido ciúmes de sua amizade com Geremy; agora, o laço que o unia a Beltran era tão forte, que Geremy não tinha nada que o pudesse igualar. Beltran e Geremy haviam trocado juramentos de fraternidade, trocando adagas, antes de saírem da infância. Ninguém, pensava Bard com um leve toque de ressentimento, jamais lhe pedira para prestar juramento de família; não a ele, um bastardo e sem casta... Pois muito bem, isto tinha terminado, acabado por toda a sua vida. Agora ele era genro do rei, o prometido marido de Carlina. Cunhado, ainda que não tivessem trocado juramentos de fraternidade, do Príncipe Beltran. Tinha a sensação de que ficara mais alto; dando uma olhadela para si mesmo num dos enormes espelhos que decoravam o Grande Salão, sentia-se bonito, pelo menos por uma vez, estava maior e, de algum modo, era um homem melhor do que todos os outros que já haviam se mirado naquele espelho antes.
Mais tarde, quando os menestréis chegaram para o baile, ele conduziu Carlina para o meio do salão. A dança separava os casais, formava outros com seus passos e revoluteios elaborados, tornava a juntá-los novamente; à medida que passavam e repassavam durante a dança, teve a impressão de que Carlina mostrava-se menos relutante para segurar-lhe a mão. Geremy dançava com uma das mais jovens damas da rainha, uma moça de cabelos ruivos chamada Ginevra; Bard desconhecia seu sobrenome; ela tinha brincado com Carlina quando eram garotinhas, depois passara a ser uma dama de honra. Bard ficou imaginando se Ginevra não dividia a cama de Geremy. Possivelmente; qual homem seria capaz de dedicar tanto tempo e se preocupar com uma mulher se isso não acontecesse? Ou, sabe-se lá, talvez Geremy ainda estivesse tentando persuadi-la a fazê-lo. Muito bem, se era assim, considerava Geremy um tolo. Bard jamais tinha se preocupado pessoalmente com as jovens de alta estirpe; em geral elas eram muito exigentes com relação às lisonjas e promessas de devotamento. Também nunca dera muita atenção às mais bonitinhas, prometiam mais, descobrira ele, do que realmente tinham. Ginevra era uma jovem quase sem graça, feia, para se sentir agradecida quando contava com a atenção masculina. Mas o que estava fazendo, pensando em coisas deste tipo quando tinha Carlina?
Ou melhor, pensou deprimido, enquanto a levava até o bufê para tomarem uma taça de vinho depois da intensa dança, ele não possuía Carlina, ainda não! Um ano de espera! Droga! Por que a mãe dela fez isto?
Carlina balançou a cabeça ao ver que ele se dispunha a colocar mais vinho em sua taça:
— Não, muito obrigada, não gosto muito de vinho, Bard... e creio que você já bebeu o suficiente — falou ela com sobriedade.
— Gostaria muito mais de ser beijado por você do que tomar qualquer bebida jamais fabricada! — proferiu ele impulsivamente.
Carlina ergueu os olhos para ele, atônita; em seguida sua boca vermelha abriu-se num pequeno sorriso.
— Veja só, Bard, nunca o ouvi dizer palavras tão bonitas antes! Será que anda tomando aulas de galanteria com nosso primo Geremy?
— Não conheço nem sei dizer frases bonitas. Sinto muito, Carlina, quer que eu aprenda a arte da lisonja por você? Nunca dispus de tempo para coisas deste tipo.
E a parte não enunciada, onde havia um quê de ressentimento, Geremy nada mais tem a fazer além de ficar comodamente sentado em casa e aprender a dizer coisas bonitas para as mulheres, foi perfeitamente audível para Carlina.
Inesperadamente, ela se lembrou de como Bard era quando chegou para ser educado ali, três anos antes, e como lhe parecera então desajeitado, mal-humorado, afeito à vida do campo, recusando-se a adotar as boas maneiras que conhecia, birrento, declinando dos convites para participar das brincadeiras das crianças. Na época, já era o mais alto de todos, mais alto do que a maioria dos homens, e mais corpulento. Demonstrava pouco interesse por qualquer coisa a não ser as peças relativas às façanhas bélicas de suas lições e passara a maior parte de seus momentos de folga ouvindo as histórias de campanhas e guerra narradas pelos guerreiros. Nenhuma das crianças gostava muito dele, porém Geremy dizia que ele estava muito solitário e dera-se um trabalho enorme para convencê-lo a ir brincar com eles.
Ela sentiu, de repente, quase que pena dele, pena daquele jovem a quem fora prometida em casamento. Não desejava se casar com ele; mas ele também não fora sequer consultado a respeito, e nenhum homem seria capaz de se recusar a casar com uma filha de rei. Tinha passado grande parte de sua vida na guerra e preparando-se para combater; não era sua culpa se não se mostrava tão galante e nem um cortesão como Geremy. Ela teria preferido se casar com Geremy... embora, como tinha revelado a sua ama, sua vontade era de não se casar de modo algum. Isso não significava que ela sentisse algo mais profundo por Geremy; considerava-o apenas mais meigo e julgava entendê-lo melhor. Mas Bard parecia tão infeliz.
— Vamos nos sentar e conversar um pouco? Ou prefere continuar a dançar? — perguntou Carlina, bebendo as últimas e indesejadas gotas de sua taça.
— Prefiro conversar. Não sei dançar muito bem, nem entendo de nenhuma dessas artes da corte!
Carlina sorriu para ele mais uma vez, revelando suas covinhas. Comentou:
— Se é bastante leve com os pés a ponto de ser um espadachim... e Beltran me disse que você é inigualável... deveria ser também um maravilhoso bailarino. E lembre-se, costumávamos dançar juntos nas aulas quando éramos pequenos; quer me convencer de que se esqueceu de como se dança, depois dos doze anos?
— Para lhe dizer a verdade, Carlina — replicou Bard, hesitante —, alcancei todo meu crescimento ainda quando muito pequeno, quando todos vocês ainda eram muito baixinhos. E, sendo o meu corpo grande como era, sempre achei que meus pés eram ainda maiores e que eu era um bruto pesadão! Depois comecei a cavalgar para guerrear, e para combater, então meu tamanho e peso foram-me proveitosos... porém, parece-me difícil pensar em mim mesmo como um cortesão.
Algo nesta confissão tocou-a de modo insuportável. Ela suspeitava que ele jamais tivesse dito antes, para alguém, algo daquele tipo, ou que sequer o tivesse pensado. Falou:
— Você não é desajeitado, Bard, considero-o um esplêndido dançarino. Contudo, se isto o deixa pouco à vontade, não precisa tornar a dançar, pelo menos não comigo. Ficaremos sentados aqui e conversaremos um pouco. — Virou-se para ele sorrindo: — Terá que aprender a me oferecer o braço quando atravessarmos um salão juntos. Com a ajuda da deusa, serei realmente capaz de civilizá-lo algum dia!
— Você tem nas mãos uma árdua tarefa, damisela — afirmou Bard, e deixou que as pontas dos dedos de Carlina tocassem de leve o seu braço.
Conseguiram um lugar para se sentarem juntos numa das extremidades do salão, fora do caminho dos dançarinos, próximo ao ponto em que alguns convidados mais idosos jogavam cartas e dados. Um dos homens da família real dirigiu-se para junto deles, sem dúvida alguma com a intenção de convidar Carlina para dançar, mas Bard lançou-lhe um olhar e ele logo descobriu que tinha algo mais urgente a fazer noutro lugar.
Bard estendeu a mão que achava desajeitada e tocou o canto de sua têmpora.
— Quando estávamos de pé diante de seu pai, achei que você estivera chorando. Carlie, alguém a maltratou?
— Não — retrucou ela, sacudindo a cabeça.
Mas Bard era suficientemente telepata... se bem que quando as leroni da família tinham-no testado, aos 12 anos, informaram-no que não dispunha de muito laran... para sentir que ela não lhe revelaria em voz alta o motivo de suas lágrimas; e procurou adivinhar qual seria a verdadeira razão.
— Não se sente feliz com este casamento — afirmou ele, com ar carrancudo e sentiu novamente a perturbação de Carlina como já acontecera antes ao sentir o aperto de sua mão.
Carlina abaixou a cabeça. Finalmente disse:
— Não tenho a menor vontade de me casar; e chorei porque ninguém pergunta a uma jovem se ela quer ser dada em casamento.
Bard franziu a sobrancelha, mal podendo acreditar no que ouvia.
— Em nome de Avarra, o que faria uma mulher se não estiver casada? Você, certamente, não deseja ficar em casa o resto de sua vida até ficar velha, não?
— Gostaria de poder ter o direito de assim proceder, caso o desejasse — retrucou Carlina. — Ou, talvez, escolher pessoalmente com quem me casar. Porém, preferiria não me casar de modo algum. Gostaria de ir para uma torre como uma leronis, talvez manter minha virgindade para a Visão, como fizeram algumas das damas de minha mãe, ou ainda, quem sabe, viver entre as sacerdotisas de Avarra, lá na ilha sagrada, pertencendo apenas à deusa. Isto lhe parece estranho?
— Sim. Sempre ouvi dizer que o maior desejo de todas as mulheres é se casarem o mais cedo possível.
— E é assim mesmo, para a grande maioria delas, mas por que deveriam ser as mulheres mais parecidas entre si do que você e Geremy? Você decidiu ser um soldado e ele um laranzu; acha que todo mundo deveria preferir ser um soldado?
— Com os homens é diferente. As mulheres não entendem destas coisas, Carlie. Você necessita de um lar, filhos e alguém que a ame. — Pegou a mão dela e levou os dedinhos macios até os lábios.
Carlina sentiu-se repentinamente zangada, e, ao mesmo tempo, quase teve pena dele.
Ela teve vontade de lhe dar uma resposta indignada, porém ele a mirava com tanta ternura, tão cheio de esperanças, que preferiu não fazer o que pretendia.
Ele não podia ser culpado daquilo; se havia um responsável, esse seria seu pai, que a tinha entregue a Bard como se fosse o cadarço vermelho que ele usava na sua trança de guerreiro, um prêmio por sua bravura em combate. Por que deveria ela culpá-lo pelo costume da terra, que transformava uma mulher em apenas uma serva, um joguete para as ambições políticas de seu pai?
Ele acompanhou uma parte destes pensamentos, as sobrancelhas franzidas enquanto permanecia sentado, segurando a mão dela.
— Você não quer se casar comigo de forma alguma, Carlie?
— Ah, Bard... — respondeu ela e ele pôde perceber o sofrimento presente em sua voz... — Não é você. Sinceramente, falando apenas a verdade, meu irmão de criação e meu prometido marido, desde que tenho que me casar, não existe nenhum outro homem que pudesse estar no seu lugar. Quem sabe se algum dia... quando eu estiver mais velha, quando ambos estivermos mais amadurecidos... então, se os deuses forem bons conosco, talvez cheguemos a nos amar mutuamente como deve acontecer entre as pessoas casadas. — Segurou-lhe a mão imensa entre as suas tão pequeninas e falou: — Que os deuses permitam que assim seja.
E, então, apareceu alguém que veio tirar Carlina para dançar; e embora Bard parecesse novamente irritado, ela disse:
— Bard, devo dançar; um dos deveres de uma noiva é dançar com todo aquele que a convidar a fazê-lo, como você sabe muito bem, e cada jovem aqui presente, desejosa de se casar este ano ainda, acha que dá sorte dançar com o noivo. Poderemos conversar mais tarde, meu querido.
Bard concordou com relutância e, recordando-se de seu dever, deslocou-se pelo salão, dançando com três ou quatro damas da Rainha Ariel, como era conveniente para um homem ligado à família real, um porta-estandarte do rei. Mas seus olhos procuravam Carlina, sem cessar, e o seu vestido azul, todo bordado em pérolas, seus cabelos escuros trouxeram de volta a sua compreensão.
Carlina. Carlina era dele, e se deu conta de que detestava, com uma violenta onda de revolta, cada homem que a tocava. Como ousavam fazer aquilo? O que pretendia ela, flertando, erguendo os olhos para qualquer um que dançava com ela, como se fosse uma das mulheres sem-vergonhas que seguiam os acampamentos? Por que ela os encorajava? Por que não podia se manter tímida e modesta, recusando-se a dançar, a não ser com seu prometido marido? Ele sabia que isto era irracional, porém parecia-lhe que ela estava querendo conquistar o sorriso aprovador e apaixonado de cada homem que a tocava. Moderou sua cólera quando ela dançou com Beltran, com o pai e com o veterano encanecido, com sessenta anos, cuja neta tinha sido sua irmã de criação; porém, toda vez que ela dançava com algum jovem soldado ou guarda do rei, tinha a impressão de que a Rainha Ariel o fitava de modo triunfal.
Evidentemente que aquilo que ela dissera a respeito de não desejar se casar de forma alguma... era uma tolice infantil, ele não acreditava numa só palavra de tudo aquilo. Não tinha dúvidas de que ela estava acalentando alguma paixão infantil por algum homem, alguém que, na verdade, não a merecia, não lhe era digno, a quem seus pais jamais a dariam em casamento. E, agora, que estava comprometida e com idade suficiente para dançar com homens sem qualquer ligação de parentesco, poderia procurá-lo. Bard sabia que se encontrasse Carlina com outro homem, haveria de rasgá-lo de membro a membro, e feriria até mesmo Carlina... será que teria coragem de machucá-la? Não. Simplesmente lhe perguntaria o que tinha dado ao outro homem, a faria tão sua que ela nunca mais pensaria em qualquer outro homem vivo. Ele examinou, com atenção, e cheio de ciúmes, as fileiras da guarda real, porém Carlina parecia não dedicar maior atenção a quem quer que fosse, dançando cortesmente com todos que a convidavam, mas jamais aceitando uma segunda dança com ninguém.
Mas não, ela estava dançando outra vez com Geremy Hastur, um pouquinho mais junto dele do que com os outros, ria para ele e a cabeça do rapaz estava inclinada sobre a dela. Estaria ela lhe fazendo confidências, será que lhe tinha dito que não desejava se casar com Bard? Não seria com Geremy, talvez, que gostaria de se casar? Afinal de contas, Geremy era da família de Hastur, descendente dos legendários filhos e filhas de Cassilda, filha de Robardin... parente de todos os deuses, pelo menos era isso que afirmavam. Que se danassem todos os Hasturs, os di Asturiens também possuíam uma linhagem nobre e antiga, por que iria ela preferir Geremy? Revolta e ciúme dominando-o, atravessou o salão rumando para junto dos dois; ele ainda sabia como se comportar segundo a boa educação e tratou de se refrear para não interromper a dança, porém assim que a música cessou e eles se separaram, rindo, aproximou-se dos dois com tamanha decisão, que esbarrou em outro casal, sem se desculpar por isto.
— Já é hora de dançar novamente com seu prometido marido, minha senhora — disse ele.
Geremy riu baixinho:
— Como está impaciente, Bard, considerando-se que passarão todo o resto de suas vidas juntos — comentou, pousando a mão de modo carinhoso sobre o cotovelo de Bard. — Ora, Carlie, pelo menos sabe que seu prometido marido está ansioso!
Bard percebeu o toque de maldade naquelas palavras e retrucou aborrecido:
— Minha prometida mulher — disse, enfatizando bem estas palavras — é, Lady Carlina para você, não Carlie!
Geremy levantou os olhos para ele, sem poder acreditar que ele não estivesse pilheriando.
— Cabe a minha irmã de criação me dizer quando não a deverei mais chamar pelo nome que a chamava quando seus cabelos eram curtos demais para serem trançados — retrucou com perspicácia. — O que o domina, Bard?
— Lady Carlina é minha prometida mulher — retrucou Bard, com resolução. — Você se comportará com relação a ela da forma adequada a uma mulher casada.
Carlina abriu a boca assombrada e tornou a fechá-la.
— Bard — disse ela com uma paciência desvelada —, talvez, quando formos realmente marido e mulher, e não apenas um casal comprometido, lhe permitirei que me diga a forma como devo me comportar com relação aos meus irmãos de criação; e talvez não. No momento presente, continuarei a agir exatamente como bem me aprouver a este respeito! Peça desculpas a Geremy ou não pense sequer em me deixar ver seu rosto outra vez esta noite!
Bard fitou-a aflito e zangado. Estava ela querendo fazê-lo se arrastar diante deste usuário de sandálias, este mágico laranzu? Estava ela desejando insultar seu prometido marido em público por causa de Geremy Hastur? Seria por ele que ela se preocupava?
Geremy também fitou-a perplexo, quase não podendo acreditar no que estava ouvindo, porém o Rei Ardrin estava olhando na direção deles. Percebeu que já havia suficiente tumulto na corte aquela noite para que fosse uma atitude sábia estabelecer uma discussão. Além disto, não desejava discutir com seu amigo e irmão de criação. Bard estava sozinho ali, sem o pai para ficar do seu lado e, sem dúvida, sentia-se irritado porque seu parente mais próximo não podia se dar o trabalho de cavalgar meio dia para vê-lo ser agraciado como o paladino do rei, casar-se com sua filha. Por isto, decidiu não levar o caso avante.
— Não necessito das desculpas de Bard, irmã de criação. Se o ofendi, pedirei seu perdão com a melhor das boas vontades. E lá está Ginevra a minha espera. Bard, meu bom amigo, seja o primeiro a nos desejar felicidades; pedi a ela permissão para escrever a meu pai a fim de que tome as providências necessárias para um noivado nesta dependência. E ela não me recusou, apenas declarou precisar pedir autorização ao seu pai para aceitar minha proposta. Portanto, se todos os velhos estiverem de acordo, talvez eu esteja de pé onde estão vocês dois hoje, daqui a um ano, mais ou menos! Ou até, se os deuses forem benevolentes, nas colinas de minha terra...
Carlina tocou no braço de Geremy.
— Está com saudades, Geremy? — indagou delicadamente.
— Se tenho saudades? Não, na realidade, não, penso. Enviaram-me de Carcosa antes que ali pudesse ser verdadeiramente o meu lar. Mas, às vezes, na hora do pôr-do-sol, meu coração anseia pelo lago, pelas torres de Carcosa, erguendo-se de encontro ao sol poente e pelos sapos que coaxam depois que o sol se põe, o som da minha primeira cantiga de ninar.
Carlina falou com suavidade:
— Nunca estive longe de casa; mas deve ser a coisa mais triste que possa existir. Sou uma mulher e fui criada sabendo que, acontecesse o que acontecesse, teria que abandonar o meu lar algum dia...
— E agora os deuses foram bons, pois seu pai entregou-a a um membro da família e você jamais precisará sair de sua casa — retrucou Geremy.
Ela sorriu para ele, esquecida de Bard, e falou:
— Se há alguma coisa que pode me fazer conformar com este casamento, creio que seja isto.
As suas palavras foram como sal numa ferida para Bard, enquanto a ouvia. E interrompeu-a com sutileza:
— Pois então vá e junte-se a Ginevra — e colocou a mão sobre a de Carlina, de um modo um tanto rude, afastando-a dali.
— Quer dizer... que você falou para Geremy que não desejava se casar comigo? Andou dando com a língua nos dentes, contando esta história para cada homem com quem dançou, tornando-me alvo de caçoadas às minhas costas?
— Ora, não — replicou ela, fitando-o surpresa. — Por que haveria de fazer isto? Abri meu coração para Geremy por ser ele meu irmão de criação e irmão de Beltran por juramento; e o vejo, como não podia ser de outra forma, como tendo o mesmo sangue que eu, nascido de meu pai e minha mãe!
— E tem certeza que, da parte dele, a coisa é tão inocente assim? Ele é da região das montanhas, onde um irmão pode se deitar com sua irmã; e a maneira como a tocou...
— Bard, isto é ridículo demais — retrucou Carlina, impaciente. — Mesmo que já estivéssemos casados, e com o casamento consumado, um ciúme deste tipo seria inimaginável! Será que pretende desafiar todos os homens, com quem eu conversar educadamente quando estivermos casados? Terei que ter medo de dizer uma palavra agradável a meus irmãos de criação? Sentirá ciúmes de Beltran, ou de Dom Cormel?... — Este era um veterano, com cinqüenta anos de serviços prestados ao seu pai e ao seu avô.
Bard abaixou os olhos diante de seu olhar enraivecido.
— Não posso me controlar, Carlina. Sinto muito medo de perdê-la. Seu pai foi cruel por não me ter dado você agora, já que se decidiu pelo nosso casamento. Não consigo deixar de pensar que está se divertindo às minhas custas e que, depois, antes de podermos consumar o casamento, ele a dará a outra pessoa de quem goste mais, ou que traga um dote maior, ou cuja posição poderia significar uma aliança mais forte para ele! Por que haveria de entregá-la ao filho bastardo de seu irmão?
Diante da aflição refletida em seu olhar, Carlina sentiu-se invadir por uma onda de pena. Por trás da presunção de suas palavras, estaria ele inseguro? Ela estendeu o braço para segurar-lhe a mão.
— Não, Bard, não deve pensar uma coisa destas. Meu pai gosta muito de você, meu prometido marido, favoreceu-o bem mais do que a meu próprio irmão Beltran, tomou-o seu porta-estandarte e conferiu-lhe o cadarço vermelho; como pode lhe passar pela cabeça que ele pudesse ser assim tão falso com você? No entanto, ele teria motivos para se aborrecer caso estabelecesse uma discussão idiota com Geremy Hastur no nosso festival! Agora, prometa-me que não será mais tão bobo e ciumento outra vez, Bard, ou eu também discutirei com você!
— Se estivéssemos realmente casados e coabitando, não teria razão para sentir ciúme, pois saberia que você me pertencia inexoravelmente. Carlina — implorou ele, segurando inesperadamente ambas as mãos da jovem e cobrindo-a de beijos —, a lei reconhece que somos marido e mulher; a lei nos permite consumar nosso casamento a qualquer momento que assim o desejarmos. Deixe-me possuí-la esta noite e saberei que é minha e disto estarei certo!
Ela não conseguiu se controlar; encolheu-se experimentando um terror mortal. Tinha conseguido um adiamento e agora ele lhe pedia isto, como o preço a ser pago para acabar com suas cenas de ciúmes. Sabia que a sua retração o estava magoando, contudo, baixou os olhos e disse:
— Não, Bard. Não tento... colher frutas numa árvore em flor, e você também deveria agir assim. Todas as coisas acontecem no momento oportuno. — Sentiu-se tola, ao pronunciar o velho dito popular. — É indecoroso me pedir uma coisa destas no dia de nosso noivado!
— Você disse que esperava vir a me amar...
— No momento oportuno — retrucou ela e notou que sua voz estava trêmula.
— Este ê o momento oportuno e sabe disto! A menos que tenha conhecimento de algo que ignoro, algo planejado por seu pai para me trair e dá-la a alguém mais, prendendome a ele por enquanto!
Carlina engoliu em seco, sabendo que na verdade ele acreditava no que dizia, e sentiu muita pena de Bard.
Este percebeu sua hesitação, sua pena, envolveu-a com seus braços, porém Carlina recuou com tamanha aflição, que a soltou. Falou cheio de amargura:
— Então é verdade. Você não me ama realmente.
— Bard — suplicou ela —, dê-me um tempo. Prometo-lhe, quando chegar a hora, não me esquivarei. Porém não me disseram... não me falaram sobre isto, orientaram-me para aguardar um ano... talvez quando eu estiver mais velha...
— Será preciso todo um ano para que se entregue ao terrível destino de compartilhar sua cama comigo? — perguntou ele, com tanta amargura, que a jovem desejou não sentir uma relutância tão acentuada.
— Talvez, daqui a um ano, não me sentirei assim... minha mãe afirma que ainda sou muito nova para me casar, ou consumar um casamento, portanto, quando tiver idade suficiente, quem sabe...
— Isto é uma loucura — retrucou eíe com sarcasmo -; garotas mais moças do que você se casam todo dia e também vão para a cama com seus maridos. Tudo isto não passa de uma artimanha para que eu me conforme a esperar e depois também me resigne a perdê-la; contudo, se já tivéssemos deitado juntos, minha adorada, então ninguém poderia nos separar, nem seu pai, nem sua mãe... Carlina, dou-lhe minha palavra de que não é jovem demais para isto! Deixe que lhe prove! — e envolveu-a nos seus braços, beijando-a, comprimindo sua boca sob a dele; ela opôs-se sem nada falar, porém com tamanho desalento, que Bard a soltou.
E disse com amargura:
— E se eu o recusar, usará a força, como fez com Lisarda, que também ainda era muito garota para este tipo de coisas? Atirará algum encantamento sobre mim, de modo que eu não possa recusar a fazer o que quer, de forma que tenha que satisfazer a sua vontade, ainda que eu o queira ou não?
Bard inclinou a cabeça, os lábios comprimidos com amargura, transformados num traço de revolta:
— Então foi assim. Quer dizer que esta prostitutazinha foi chorar a seus pés e encheu sua cabeça com mentiras contra mim?
— Ela não mentiu, Bard, pois li os pensamentos dela.
— Não importa o que ela falou para você, ela bem que estava querendo — retrucou Bard.
— Não; e isto é que foi pior; você pressionou a vontade dela de tal forma que ela não lhe quis oferecer resistência! — retorquiu Carlina realmente aborrecida.
— Você experimentará tanto prazer nisto quanto ela — afirmou Bard muito excitado.
— E aceitaria uma coisa destas... que eu não fosse Carlina, mas apenas algum desejo seu forçado sobre o meu verdadeiro ego? Sem dúvida eu satisfaria a sua vontade e até o faria com prazer caso agisse sob coação, exatamente como Lisarda o fez! E do mesmo modo que ela, eu o odiaria em cada minuto de toda minha vida! — retrucou ela com a mesma dose de revolta.
— Acho que não — insistiu Bard. — Penso que talvez, quando se libertar desses seus receios, passaria a me amar e saberia que eu tinha feito aquilo que era melhor para nós dois!
— Não — repetiu ela, toda trêmula. — Não, Bard... eu lhe imploro... Bard, sou sua mulher. — Uma idéia repleta de perfídia dominou seus pensamentos; estava envergonhada de si mesma por tentar manipulá-lo deste jeito, porém estava apavorada e desesperada. — Teria coragem de me usar como se eu não fosse nem um pouquinho melhor do que qualquer uma de minhas criadas?
Bard largou-a, chocado. Disse:
— Que todos os deuses não permitam que seja eu a lhe revelar qualquer tipo de desonra.
Carlina recuou, colocando-se rapidamente fora de seu alcance.
— Prometo-lhe, hei de lhe ser fiel. Não há razão para ter medo de me perder; contudo, todas as coisas acontecem no momento adequado. — Tocou de leve a mão de Bard e afastou-se.
O rapaz, observando-a afastar-se, pensou que ela o fizera de bobo. Não, ela estava certa; tratava-se de uma questão de honra, que ela, sua mulher, devesse se entregar a ele por sua livre vontade e sem qualquer tipo de coação. Mas, apesar disto, estava excitado, a revolta contribuindo para o tumulto estabelecido na sua mente e no seu corpo.
Nenhuma mulher jamais se queixara de suas propostas amorosas! Como é que aquela criada infernal, Lisarda, tinha a coragem de se queixar dele? Ela não tinha se importado, a cadelinha, ele lhe dera apenas uma oportunidade para fazer o que desejava! Recordou-se dela; sim, no início ficara assustada, mas antes que ele tivesse terminado, ela tinha gemido de prazer; que direito tinha ela de mudar seu modo de pensar, e ir depois se lamentar junto a Carlina por sua virgindade perdida, como se aquilo representasse algum valor especial? Ela não era uma herdeira que devesse preservá-la por dignidade e dote!
E, agora, Carlina, deixara-o excitado e largara-o naquela situação! Revolta e ressentimento misturavam-se em seu íntimo; aquela garota pensava que ele iria aguardar a sua conveniência com toda a paciência como se ainda estivesse solteira?
Repentinamente, ele soube o que deveria fazer para se vingar de ambas de modo apropriado, daquelas duas mulheres infernais que o haviam feito de bobo! As mulheres eram todas iguais, a começar por sua mãe desconhecida que tanto tinha desejado dá-lo, desistindo da criança em favor da riqueza e posição de seu pai. E Lady Jerana, que tinha envenenado a cabeça de seu pai e conseguira que este o afastasse de casa. E esta cadelinha da Lisarda com suas lamúrias e suas histórias contadas para Carlina. E até mesmo a própria Carlina não estava livre da danação geral das mulheres!
Furioso, dirigiu-se para as galerias onde os criados mais considerados assistiam às festividades. Localizou Lisarda entre eles, uma garota esbelta com aspecto infantil, com macios cabelos castanhos, o corpo esbelto começando apenas a tomar as formas do corpo de uma mulher; Bard retesou-se com a excitação, recordando-se.
Ela havia se mostrado insensível, até inábil, e amedrontada, porém em pouco tempo abrira mão de sua relutância. Mas, ainda assim, havia tido a desfaçatez de ir se queixar com Carlina, como se tivesse se importado! Garota dos diabos, desta feita ela iria ver!
Esperou até que ela estivesse olhando na sua direção, então atraiu-lhe o olhar. Notou o estremecimento que atravessou o corpo dela e como tentou afastar o olhar, porém Bard entrou em contato com sua mente, como tinha aprendido a fazer, atingindo algo muito profundo dentro dela, sob a vontade consciente, a reação de corpo para corpo. O que lhe importava o que ela julgava desejar? Isto estava lá e também era verdadeiro, e todas as suas idéias altaneiras a respeito de sua inocência orgulhosamente mantida nada significavam diante desta realidade. Dominou-a até sentir que seus sentidos tinham sido estimulados, observou com prazer malicioso e imparcial a sua aproximação. Mantendo-se fora de vista, puxou-a para trás de uma pilastra, beijou-a com experiência, percebeu a reação dominando a ambos.
Longe, bem longe, num canto isolado da mente de Lisarda, ele pôde perceber, nos olhos dela, o pânico da sua mente consciente, agora temporariamente inativa, seu pavor e horror ao constatar que aquilo estava lhe acontecendo outra vez apesar do que ela de fato desejava, que seu corpo estava lhe correspondendo quando sua vontade era outra. Bard riu intimamente e sussurrou-lhe algo; ficou observando-a se afastar, como uma sonâmbula, esgueirando-se para cima rumo ao quarto dele, onde, ele sabia, estaria a sua espera, nua e ansiosa, quando se resolvesse a ir para lá.
Manteve-a aguardando-o por algum tempo. Isto serviria para provar a ela o que realmente queria, que o esperasse; suas lágrimas e gritos a fariam recordar que, na verdade, sempre desejara aquilo. Isto iria lhe servir como uma lição por ter ido se queixar a Carlina como se ele a tivesse maltratado, ou possuído contra a vontade!
E se, de algum modo, Carlina tomasse conhecimento daquilo, ora, a culpa também lhe cabia. Ela era a sua mulher, perante a lei e de fato, e se não reconhecera isto como uma responsabilidade, não tinha o direito de reclamar por ele procurar outra mulher.
O ano já ia bem adiantado, e a colheita inicial do feno mal tinha começado, quando Bard di Asturien foi procurar o Rei Ardrin na sua sala de recepção.
— Tio — disse ele, pois gozava deste privilégio, por ser o rei seu pai de criação —, iremos para a guerra antes da colheita das maçãs?
O Rei Ardrin ergueu as sobrancelhas. Ele era alto, um homem imponente, os cabelos louros claros como a maioria dos di Asturiens, e já fora vigoroso, porém, há alguns anos fora ferido no braço, tendo, em conseqüência, ficado com ele imobilizado. Também exibia outras cicatrizes, as marcas de um homem que fora forçado a manter seu reino às custas das armas, durante a maior parte de sua vida.
— Por que, filho de criação, esperava que isto não fosse necessário? Contudo, sabe melhor do que eu o que está acontecendo nas fronteiras, de vez que esteve por lá com os soldados, nos últimos quarenta dias; quais são as novidades?
— Não há nada de novo na fronteira, tudo por lá está tranqüilo; depois de Snow Glens não há problemas de revoltas naquela área. No entanto, ouvi este boato enquanto voltava para cá; o senhor está a par de que Dom Eiric Ridenow, o jovem, casou a irmã com o Duque de Hammerfell?
O Rei Ardrin pareceu-lhe pensativo, mas tudo que comentou foi:
— Prossiga.
— Um de meus soldados tem um cunhado que é um mercenário a serviço do duque. Ele matou um homem por infelicidade e foi mandado para o exílio por três anos; então, sentou praça em Hammerfell e já foi desobrigado do juramento feito. Meu soldado informou-me de que o cunhado, quando lá sentou praça, estabeleceu uma condição, ou seja, que nunca lutaria contra as Astúrias. Julgo interessante o fato dele ter sido desobrigado de seu juramento agora, ao invés de sê-lo, como de hábito, em meados do inverno.
— Então acha...
— Quer me parecer que o duque de Hammerfell está consolidando seu novo parentesco com Ridenow de Serrais — respondeu Bard —, concentrando seu exército contra as Astúrias. Devíamos ter esperado por isto na primavera. Se nos atacar antes da neve do inverno, estará esperando nos encontrar despreparados. Beltran também conta com um laranzu entre seus homens, cujo dom é manter-se em contato com os pássaros-sentinela; afirmou ele, que embora não houvesse nenhum exército pela estrada, havia homens reunindo-se na cidade-mercado de Tarquil, situada não muito longe de Hammerfell. Na verdade, ali há o mercado de contratação de serviço; porém o laranzu disse que havia muito poucos homens com forcados e caçambas de leite e muitos montados a cavalo. Quer me parecer que os mercenários estão se reunindo por lá. E um comboio de bestas de carga partiu de Dalereuth Tower, e o senhor sabe tão bem quanto eu o que é feito em Dalereuth. O que pretende o Duque de Hammerfell com o clingfire, senão investir contra nós ao lado de Ridenow de Serrais?
O Rei Ardrin concordou com um lento movimento da cabeça. Perguntou:
— Tenho certeza de que tem razão. Muito bem, Bard, você que viu esta campanha sendo armada contra nós, o que faria caso o comando lhe coubesse?
Não era a primeira vez que Bard escutava esta pergunta. Nunca significara nada, exceto que seu pai de criação desejava ver se possuía um forte sentido da tática militar; gostaria de ter feito a mesma pergunta a Beltran e Geremy, caso estivessem presentes, e, então, iria procurar seus habituais conselheiros. Mas, apesar disto, Bard entregou-se o melhor que pôde ao problema.
— Avançaria contra eles já, antes que consigam reunir seus mercenários, antes mesmo de partirem de Hammerfell. Sitiaria Hammerfell, muito antes dele sequer imaginar que sabemos do que está acontecendo. Ele não espera que a guerra ocorra em seu país, está apenas congregando mercenários para enviar como ajuda a Dom Eiric, de modo que quando Ridenow nos atacar neste verão, como estão certos que o farão, depararemos com seus exércitos desagradavelmente maiores. Porém, se atacarmos Hammerfell agora, se estabelecermos o cerco contra o duque até que ele deseje prestar juramento e enviar reféns para não se deslocar contra o senhor, poderá deixar Dom Eiric e seus conselheiros confusos. Se eu estivesse no comando, também mandaria algumas tropas para o Sul a fim de capturar e destruir o clingfire antes que possa ser usado contra nós. E como, sem dúvida alguma, ele deve estar vigiado por feiticeiras, enviaria um laranzu, ou dois, integrando esta comitiva.
— Quando estaremos em condição de nos deslocarmos contra Hammerfell? — perguntou o Rei Ardrin.
— Dentro de uns dez dias, senhor. O recrutamento dos cavalos estará então concluído e os homens estarão livres para atender à convocação para a guerra. Mas eu faria tudo de modo sigiloso, ao invés de convocar os homens através de sinais de radiofarol; talvez tenham mágicos espionando para ver os radiofaróis, de bem longe. Podemos então atacar Hammerfell dez dias depois dele tomar conhecimento que cruzamos a fronteira... se pudermos nos deslocar depressa, com um punhado de homens, poderemos destruir as pontes do Valeron e deter qualquer pessoa que avance contra nós, enviando um destacamento para sediar o castelo.
O rosto carrancudo do Rei Ardrin abriu-se num sorriso. Falou:
— Nem mesmo eu teria sido capaz de traçar melhores planos; na verdade, Bard, duvido que pudesse fazer um só que fosse tão bom quanto este. Agora tenho uma outra pergunta para lhe fazer: se eu comandar as tropas rumo ao Norte, para Hammerfell, você seria capaz de se dirigir para o Sul a fim de capturar o clingfire? Posso lhe dar alguns leroni e uns trinta e seis cavaleiros escolhidos... pode escolhê-los pessoalmente... mas não mais do que isto; será este número suficiente?
Bard não lhe respondeu logo. Depois indagou:
— Não poderia me ceder quatro dúzias deles, senhor?
— Não; precisarei destes doze cavaleiros extras para irmos até Hammerfell.
— Então terei que me arranjar com três dúzias, senhor. Pelo menos podem se deslocar com rapidez quando houver necessidade — seu coração pulsava. Jamais tinham-lhe entregue um comando independente antes.
— O Príncipe Beltran será seu superior... oficialmente — disse o Rei Ardrin —, porém os homens obedecerão a você. Compreende-me, Bard? Tenho que entregar este comando nas mãos de Beltran. Porém deixarei claro, para ele, que você é o conselheiro militar.
Bard concordou com um movimento de cabeça. Isto era simplesmente a realidade da questão; um membro da casa real deve estar no comando nominal. O Rei Ardrin era um líder bélico amadurecido; mas ele, Bard, tinha recebido uma missão difícil comandando uma força de ataque escolhida.
— Vou me retirar e escolher os meus homens, senhor.
— Um momento — exclamou o Rei Ardrin, e fez um gesto para que voltasse. — Chegará o momento em que você, como meu genro, receberá o comando. Sua coragem é bem recebida por mim, Bard; contudo, proíbo-o de se arriscar demais. Necessito de sua habilidade na estratégia bem mais do que de seu braço forte e sua coragem. Não se deixe matar, Bard. Tenho-o em mira; estou velho demais para ser meu próprio general além de alguns poucos anos mais. Você sabe o que estou tentando lhe dizer.
Bard fez uma inclinação profunda e afirmou:
— Estou a seu serviço, meu rei e senhor.
— E chegará o dia quando estarei a seu serviço, meu parente. Vá agora e escolha seus homens.
— Posso ir me despedir de Lady Carlina, meu senhor?
Ardrin sorriu.
— Claro que pode.
Bard refletiu, exultante, sobre a sua boa sorte. Parecia que sua carreira estava assegurada e, talvez, se fosse bem-sucedido na sua missão, o Rei Ardrin se dispusesse a lhe conceder um outro favor, ou seja, que consumasse seu casamento com Carlina no Festival do Solstício de Inverno. Ou talvez pudesse convencê-la, pelo menos, a consumar seu casamento nesta noite tradicional de permissividade! Evidentemente, quando ele fosse o comandante do rei e seu paladino, ela não haveria de continuar a recusá-lo!
Reconheceu para si mesmo, estava cansado de manter relações sexuais ocasionais. Era Carlina que desejava. De início, gostara dela apenas como um sinal de que o rei o tinha na mais alta consideração, como um acesso à posição e poder no reino, um poder que um nedestro não poderia ter dentro do âmbito do reino das Astúrias, se assim não fosse. Contudo, quando ela lhe falara com tanta delicadeza no solstício de verão, ficou logo certo de que ela era a única mulher que realmente desejava.
Sentia-se cansado das relações ocasionais. Estava cansado de Lisarda, cansado até mesmo do jogo que estabelecia com ela, fazendo o corpo dela reagir com o desejo, quando chorava e insistia que o detestava. Infeliz desmancha-prazeres, quando dera o melhor de si mesmo para dar-lhe prazer! Porém, agora, já não se importava mais. Não desejava mais ninguém a não ser Carlina.
Encontrou-a na sala de costura, supervisionando as mulheres que faziam almofadas em linho e com um aceno afastou-a dali. Mais uma vez admirou-se, sem saber por que desejava aquela garota sem graça quando havia tantas outras tão bonitas ao seu redor. Seria apenas porque ela era a filha do rei, porque fora sua companheira de brincadeiras quando ambos eram crianças? Os cabelos dela haviam sido trançados apressadamente e repuxados para trás a fim de deixar seu rosto livre, seu vestido azul avermelhado era um que ele já a havia visto usar, ao que parecia, diariamente desde que tinha dez anos; ou será que mandara fazer um igual quando o outro ficou pequeno ou surrado?
— Carlina, seus cabelos estão cheios de penas.
Ela passou a mão por eles, preocupada e deu uma gargalhada:
— Não podia deixar de ser assim, sem dúvida; algumas das mulheres estão enchendo edredons para o inverno que está para chegar e fazendo almofadas e travesseiros; tomo conta das penas enquanto as mulheres de minha mãe estão salgando e avinagrando a carne das aves para o inverno. — Ela olhou para os pedacinhos de penas presos em seus dedos. — Você se lembra, irmão de criação, daquele ano em que você, eu e Beltran nos metemos dentro das tinas com penas e elas saíram voando por todas as salas de costura? Experimentei um sentimento de culpa imenso, pois você e Beltran levaram uma surra enquanto fui apenas mandada para meu quarto sem jantar!
Bard riu:
— Pois nós levamos a melhor, já que eu preferia apanhar a ficar sem a refeição, e tenho certeza de que Beltran também é da mesma opinião! E durante todos estes anos achei que você é quem tinha levado a pior!
— Mas a travessura tinha sido minha; você, Beltran e Geremy estavam sempre levando surras por diabruras que eu engendrava. Tivemos bons momentos, não acha, irmão de criação?
— É verdade, tivemos sim — retrucou Bard e segurou-lhe as mãos. — Porém eu não a chamaria mais de irmã de criação, Carlina mea. E vim para lhe revelar boas novas!
Ela sorriu para ele.
— Do que se trata, meu prometido marido? — indagou, usando aquelas palavras com timidez.
— O rei, seu pai, entregou-me o comando das tropas — explodiu exultante. — Deverei partir, acompanhado por trinta e seis cavaleiros escolhidos a dedo, para capturar uma caravana de clingfire... Nominalmente é Beltran quem está no comando, mas você sabe e eu também, que o comando, na realidade, me pertence... e deverei escolher meus próprios homens agora e levar leroni conosco...
— Oh, Bard, que maravilha! — exclamou ela, demonstrando um falso interesse pelas notícias que ele lhe transmitia. — Sinto-me tão contente por você! Isto significa, certamente, como você esperava, sei disto, que de porta-estandarte será elevado à condição de um de seus capitães e, talvez um dia, deva liderar todos os seus exércitos!
Bard respondeu, tentando não revelar orgulho em demasia:
— Sem dúvida alguma ainda faltam muitos anos para que isto aconteça. Porém isto demonstra que seu pai continua a pensar bem a meu respeito; e pensei, Carlina mea, caso esta missão seja frutífera, que talvez ele antecipe nosso casamento em meio ano e com isto poderemos nos casar no solstício do verão...
Carlina procurou controlar a perturbação involuntária que a dominou. Ela e Bard deveriam se casar; era esta a vontade de seu pai, que era lei nas terras das Astúrias. Gostava de fato de Bard, desejava-lhe tudo de bom; não havia nenhuma razão para que fossem inimigos. Afinal de contas, não havia muita diferença entre o solstício do inverno e o do verão. Contudo, procurava se convencer disto, ainda continuava inutilmente relutante.
Porém, o prazer de Bard por aquela idéia era tão grande que ela não podia desapontá-lo. Temporizou:
— Isto deve acontecer segundo os desejos de meu pai e senhor, Bard.
Bard interpretou aquele comentário apenas como uma timidez feminina e adequada. Aumentou a pressão de seus dedos sobre a mão dela e disse:
— Poderá me dar um beijo de despedida, minha prometida mulher?
Como poderia lhe negar isto? Permitiu que ele a puxasse para mais perto de si, sentiu os lábios dele, decididos e insistentes sobre os seus, deixando-a sem ar. Ele nunca a havia beijado antes, a não ser aquele beijo fraternal e respeitoso que tinham trocado diante das testemunhas no dia do noivado. Este era diferente e, de algum modo, assustador, quando percebeu que ele tentava abrir os lábios dela com sua boca; ela não lutou, submetendo-se, amedrontada e passiva, àquele toque e, de alguma forma, isto era para Bard mais excitante do que poderia ter sido a mais violenta das paixões.
Quando se separaram, ele disse em voz baixa, um pouco receoso de sua própria emoção:
— Amo-a, Carlina.
A jovem, mais uma vez, ficou sensibilizada diante do tom da voz dele, experimentando uma ternura sem par. Tocou com os dedos a face dele e comentou com delicadeza:
— Sei disto, meu prometido marido.
Quando ele se retirou, ela ficou com os olhos presos à porta fechada, suas emoções num torvelinho. Todo o seu coração desejava ardentemente o silêncio e a paz da Ilha do Silêncio; contudo, parecia que isto nunca iria acontecer, ela deve ir, deve anular seu próprio ego, ser a mulher de seu primo, de seu irmão de criação, seu prometido marido, Bard di Asturien. Talvez, ponderou, talvez não seja tão ruim assim, quando éramos pequeninos gostávamos muito um do outro.
— Ah, Carlina — chamou-a uma das mulheres —, o que devo fazer com este pedaço de tecido? Os fios estão todos repuxados na extremidade e há um pedaço com defeito aqui...
Carlina aproximou-se e inclinou-se sobre a fazenda.
— Terá que acertá-lo da melhor maneira possível; e se depois não tiver largura suficiente para fazer um lençol, deverá guardá-lo para ser aproveitado em forro de almofadas, que pode ser trabalhado em lã por cima, com desenhos bem coloridos e bordados para esconder o defeito do tear...
— Ora, lady — zombou uma das jovens —, como pode pensar nestas coisas, quando acaba de receber aqui a visita de seu amante...?
Ela adotou uma inflexão que transformava a palavra sutilmente de prometido marido para amante, e Carlina enrubesceu, sentindo o calor apoderar-se de suas maçãs do rosto. Porém, tudo o que disse, forçando a voz soar calma e indiferente, foi:
— Muito bem, Catriona, pensei que a tivessem mandado para cá a fim de aprender a tecer e bordar, além de todas as outras artes femininas que as damas da rainha devem conhecer, porém estou percebendo que também está precisando receber ensinamentos relacionados com a casta, para que saiba dizer com a delicadeza adequada prometido marido; se o disser desta maneira entre as outras damas da rainha, irão zombar de você por se revelar tão ignorante.
Bard partiu a cavalo, antes do nascer do sol, no dia seguinte. Era tão cedo ainda, que o céu oriental nem tinha começado a resplandecer com a madrugada avermelhada; todas as quatro luas estavam no céu, se bem que apenas uma já perto da lua cheia; três pequenos crescentes e o claro disco de Mormallor flutuavam sobre as colinas distantes que se achavam por trás delas. A mente de Bard estava totalmente ocupada pela lembrança do tímido beijo de Carlina; talvez um dia ela o beijaria por sua livre e espontânea vontade, haveria de se sentir contente e orgulhosa por estar casada com o porta-estandarte do rei, o paladino do rei, talvez o general de todos os seus exércitos... Seus pensamentos eram agradáveis enquanto cavalgava à frente de seu primeiro comando, por menor que este fosse.
Por outro lado, Beltran, com uma aparência triste e enrolado numa capa enorme, estava deprimido e lento; Bard sentiu que ele estava aborrecido e se perguntava o porquê daquilo.
Beltran resmungou:
— Você me parece muito satisfeito e talvez este comando seja uma graça para você, porém para mim seria bem melhor cavalgar rumo ao Norte, para Hammerfell, ao lado de meu pai, onde ele poderia se certificar se me porto bem ou mal; e aqui estou eu, mandado para capturar uma caravana, enviado com o líder de uma quadrilha de bandidos!
Bard procurou explicar ao seu irmão de criação a importância de se certificar que o clingfire de Dalereuth jamais chegasse até Serrais, para ser usado contra os campos, as aldeias e as florestas das Astúrias; porém Beltran só percebia que não lhe fora dado o privilégio de cavalgar ao lado direito do pai, diante de seus exércitos.
— Meu único consolo é que você não ficará com o lugar que me pertence por direito — resmungou ele. — Este posto ele entregou a Geremy... ele que vá para o inferno, que se danem todos os Hasturs!
Bard compartilhava do desagrado experimentado por Beltran, quanto a isto, e julgou tratar-se de uma boa política colocá-lo a par de seus sentimentos.
— É isto mesmo; ele me prometeu que poderia contar com Geremy à frente dos feiticeiros que nos acompanhariam, e, no último momento, informou-me não lhe ser possível deixar Geremy comigo e ofereceu-me três estranhos — e acrescentou sua revolta à de Beltran. Desviou o olhar para mais adiante, para o ponto a que se dirigiam, um pouco além dos homens que tinha escolhido; um laranzu alto, começando a encanecer, o bigode ruivo escondendo a metade da parte inferior de seu rosto, e duas mulheres, uma delas atarracada demais para cavalgar, acomodada no lombo de um burro, e uma garota magricela, bem criança ainda, tão enrolada no seu manto de feiticeira, que Bard nem conseguia estabelecer se era bonita ou sem graça. Ele nada sabia sobre estas três pessoas e imaginava, muito preocupado, se elas estariam dispostas a aceitá-lo como líder da expedição. Sobretudo o laranzu; embora, como todos os de sua classe, cavalgasse desarmado, trazia apenas um punhal enfiado na cintura, uma faquinha como a que uma mulher talvez usasse; dava a impressão de que já participava de campanhas deste tipo muito antes de Bard ter nascido.
Bard perguntava com seus botões se essa também não seria a preocupação de Beltran, porém logo descobriu que o desgosto do príncipe tinha outra causa, totalmente diversa.
— Geremy e eu juramos um para o outro que, este ano, cavalgaríamos lado a lado rumo ao combate e, agora, preferiu ficar ao lado do rei...
— Irmão de criação, um soldado só ouve a voz de seu comandante, e seus desejos pessoais devem se subordinar a isto — falou Bard muito sério.
O tom da voz do Príncipe Beltran soava petulante:
— Tenho certeza, se ele tivesse revelado isto a meu pai, este teria honrado nossa promessa e permitido a Geremy participar desta expedição. Afinal, trata-se tão-somente de uma questão tola de perseguir caravanas, não tão mais importante do que partir para capturar bandidos que fazem incursões na fronteira.
Bard, carrancudo, entendeu subitamente por que o rei informara-lhe, com decisão, que era ele, e não o Príncipe Beltran, quem estava de fato no comando desta expedição; estava suficientemente claro que o príncipe não tinha a mínima noção da importância estratégica das caravanas de clingfire!
Se o Príncipe Beltran não tem um sentido militar, não é de causar espanto que meu senhor, o rei, esteja ansioso para, finalmente, me preparar para o comando; de modo que, se não pode deixar seus exércitos nas mãos do filho, poderá entregá-los ao seu genro... Se não conta com um filho com capacidade para ser o general de todos os seus exércitos, casará a filha com seu próprio general ao invés de casá-la com um rival de além-fronteiras...
Bard procurou fazer o Príncipe Beltran entender a importância de sua missão, mas ele estava mal-humorado e, finalmente, disse:
— Posso compreender que você deseje dar-lhe tanto mérito, Bard, porque o faz sentir-se mais importante.
Diante disto, Bard encolheu os ombros e desistiu.
No meio da tarde, já estavam bem próximos à fronteira sul das Astúrias; e durante a parada feita para descansar os cavalos, Bard cavalgou para onde se achavam os feiticeiros, que tinham parado um pouco mais distante dos outros. Isto era comum; a maioria dos soldados (e Bard não era uma exceção) desconfiava dos leroni.
Pensou que o Rei Ardrin devia ter considerado aquela missão muito importante, pois, caso contrário, muito dificilmente teria mandado um homem com tamanha experiência em campanha, mas teria lhes entregue o jovem e inexperiente Geremy, ao menos para satisfazer seu filho e o filho de criação. Contudo, Bard notou que ele mesmo compartilhava do desejo do príncipe, que teria preferido contar com a presença de Geremy ao lado deles, pois o conheciam muito bem, do que com aquele estranho. Não sabia como conversar com um laranzu. Geremy, ao completar 12 anos, tivera lições separadas dos outros, aulas não de combate com espada, luta desarmada, briga de punhal como todo o resto dos filhos de criação do rei, mas lições de profundos e secretos conhecimentos sobre as pedras da estrela, os cristais azuis dos magos que davam aos leroni seus poderes. Geremy tinha compartilhado de suas lições de táticas militares e estratégia, de equitação e caçada, participara com eles das almenaras e cavalgara em perseguição aos bandidos, porém estava claro, mesmo naquele tempo, que ele não estava destinado a ser um soldado. Quando deixou de usar a espada, trocando-a pelo punhal de feiticeiro, afirmando que não precisava de nenhuma arma, a não ser da pedra da estrela ao redor do pescoço, um grande abismo se abriu entre eles.
E agora, enquanto fitava o laranzu que o rei tinha mandado acompanhá-los, ele experimentou algo semelhante ao mesmo abismo.
Todavia, o homem dava impressão de ser bastante calejado e de estar apto para participar de campanhas, cavalgava como um cavaleiro e tinha, até mesmo, um jeito marcial de manobrar seu cavalo. Suas feições eram descarnadas, parecidas com um falcão, os olhos vivos e descoloridos, com uma tonalidade cinzenta semelhante ao aço temperado.
— Sou Bard di Asturien — apresentou-se ele. — Não sei como se chama, senhor.
— Gareth MacAran, a ves ordras, vai dom... — disse o homem, fazendo uma rápida saudação.
— Mestre Gareth, o que lhe contaram a respeito desta expedição?
— Apenas que estava sob suas ordens, senhor.
Bard possuía suficiente laran para se aperceber da ênfase colocada discreta e quase que imperceptivelmente na palavra suas. Intimamente experimentou uma satisfação precisa. Isto significava, portanto, que ele não era o único a acreditar que Beltran não apresentava o mínimo jeito para as questões militares.
— O senhor tem um pássaro-sentinela?
Mestre Gareth esticou o dedo. Falou, com delicadeza, porém com um tom preciso de recriminação:
— Já participava de campanhas antes mesmo da sua concepção, senhor. Se me disser qual a informação que deseja...
Bard notou a mordacidade da reprovação. Disse com rigor:
— Sou jovem, senhor, porém com experiência de campanha. Passei a maior parte de minha vida com uma espada nas mãos e não estou habituado com a cortesia adequada para se lidar com a feitiçaria. Preciso saber se a caravana do clingfire ruma para o Sul, para que possamos pegá-los de surpresa, sem dar-lhes tempo para destruírem sua carga.
Mestre Gareth cerrou os lábios. Falou:
— Clingfire, foi o que disse? Ficaria muito feliz ao ver toda esta coisa atirada ao mar. Pelo menos não servirá para fazer o sítio contra as Astúrias este ano. Melora! — chamou e a mais velha das leroni aproximou-se dele. Bard julgara, por seu corpo volumoso, que ela fosse mais velha; agora reparava que era jovem, corpulenta, o rosto redondo como uma lua cheia, com olhos claros e de cor indefinida. Seus cabelos, lustrosos e vermelho-fogo, estavam enrolados num coque malfeito.
— Traga-me o pássaro...
Bard observava com assombro, um assombro que não era novo para ele, mas que nunca falhava, enquanto a mulher, habilmente, tirou o capuz do pássaro grande que cavalgava empoleirado num madeiro colocado sobre a sela do seu cavalo. Já tivera oportunidade de lidar com pássaros-sentinela antes; se comparados a eles, mesmo os falcões mais ferozes durante as caçadas eram tão mansos quanto um passarinho mantido numa gaiola. O pescoço comprido e parecido com uma serpente girou e o pássaro berrou na direção de Bard; soltou um grito desabrido e agudo, porém, quando Melora afagou-lhe as penas, ele se tranqüilizou, soltando um chilreio quase lamentoso, ansioso para ser acariciado. Gareth pegou o pássaro, enquanto Bard se encolhia intimamente diante da proximidade daquelas presas, violentas e imensas, de seus olhos; porém Mestre Gareth segurava-o como Carlina teria lidado com um de seus passarinhos canoros.
— Isto, meu lindo... — disse ele, afagando o pássaro com carinho. — Vá e veja o que eles estão fazendo...
Lançou o pássaro para o ar; este alçou vôo com suas asas imensas e fortes, revoluteando mais à frente e desaparecendo em meio às nuvens. Melora inclinou-se sobre a sela, os olhos vagos e cerrados, e Gareth disse baixinho:
— Senhor, não há necessidade de que permaneça aqui. Ficarei em contato com ela e verei tudo aquilo que ela vir através dos olhos do pássaro. Quando recomeçarmos a cavalgada, irei ter com o senhor e então farei um relatório.
— Quanto tempo levará isto?
— Como poderia saber, senhor?
Mais uma vez, Bard percebeu uma recriminação por parte do velho veterano de campanhas. Fora por isto, perguntou com seus botões, que o Rei Ardrin entregara-lhe aquele comando, para lhe revelar todas as pequenas coisas que ele deveria saber, além de combater... inclusive a cortesia que se deveria ter para com um laranzu experiente? Muito bem, ele aprenderia.
Mestre Gareth avisou:
— Quando o pássaro tiver visto tudo quanto precisa ver e estiver de volta para junto de nós, então poderemos reiniciar a cavalgada. Ele nos encontrará onde quer que nos encontremos; no entanto, é impossível para Melora cavalgar e se manter em contato com seu pássaro. Haveria de cair do burro, e nem mesmo em seus melhores tempos foi uma exímia amazona.
Bard franziu as sobrancelhas, imaginando por que tinham mandado uma mulher acompanhar as tropas, uma pessoa que mal sabia se manter na sela de um burro, isto para não falar na de um cavalo!
Mestre Gareth falou:
— Porque, senhor, ela é a melhor que existe para manter contato com um pássaro-sentinela, a melhor de todas as leroni das Astúrias; esta é uma arte feminina, e nem mesmo eu sou tão experiente. Sou capaz de manter contato com os pássaros, apenas o suficiente para manuseá-los sem que me biquem até morrer, porém Melora é capaz de voar com eles, ver tudo quanto eles vêem e interpretar para mim. E agora, senhor, se me permite, não devo mais falar, tenho que acompanhar Melora.
O rosto do laranzu concentrou-se, os olhos viraram-se para dentro de sua cabeça, e Bard, olhando para os brancos de seus olhos, experimentou um tremor de susto. O homem não estava ali; alguma parte essencial dele estava longe, com Melora e o pássaro-sentinela...
Inesperadamente, ficou satisfeito por Geremy não tê-los acompanhado. Já era bastante ruim ver aquele estranho partir para algum reino sobrenatural onde não era capaz de o seguir; se aquilo tivesse acontecido com seu amigo e irmão de criação, teria considerado insuportável.
A terceira leronis tinha tirado seu manto cinzento para cavalgar, atirando para trás o capuz; agora podia ver que se tratava de uma jovem esbelta, com um rosto bonito e antigo, cujos cabelos flamejantes contornavam com seus cachos as maçãs do rosto; era bonita e séria. Quando percebeu os olhos de Bard concentrados nela, enrubesceu e virou-se, e algo naquela atitude tímida o fez se lembrar de Carlina, frágil, bem parecia um fantasma de sua prometida mulher.
Ela estava conduzindo o cavalo para uma fonte, lançando um olhar rápido para seus dois colegas, hipnotizados nas suas montarias. Bard desmontou e dirigiu-se para segurar a rédea do cavalo dela.
— Damisela, posso ajudá-la?
— Obrigada — entregou-lhe as rédeas. Não o fitou nos olhos; ele tentou captar-lhe o olhar, porém apenas viu a cor aumentando na face dela. Como era bonita! Ele conduziu o cavalo até o olho-d'água, ficando de pé com uma das mãos nas rédeas.
— Quando Mestre Gareth e dama Melora voltarem a si, mandarei dois de meus homens cuidarem de seus cavalos.
— Muito obrigada, senhor; eles ficarão agradecidos, pois ficam sempre extenuados depois de uma comunicação demorada com os pássaros. Não sou capaz de fazer isto de modo algum — comentou ela, num tom de voz baixo, quase um sussurro.
— Mas você é uma leronis experiente?
— Não, vai dom, apenas uma iniciante, uma aprendiz. Talvez, algum dia, venha a sê-lo. Meu dom, por enquanto, é saber para onde eles não podem mandar um pássaro — tornou a baixar os olhos e enrubesceu.
— Como se chama, damisela?
— Mirella Lindir, senhor.
O animal tinha acabado de beber água. Bard falou:
— Você tem um embornal para seu cavalo?
— Se me permite, agora não, senhor. O cavalo de uma leronis é treinado para ficar imóvel durante muito tempo... — fez um gesto na direção das duas pessoas imobilizadas, Mestre Gareth e Melora. — No entanto, se alimentar o meu, os outros irão se perturbar.
— Entendo. Muito bem, que seja assim — retrucou Bard, recordando-se de que deveria ir para junto de seus homens a fim de verificar o que estariam fazendo. O Príncipe Beltran poderia cuidar disto, contudo ele já havia começado a pôr em dúvida a habilidade do irmão de criação, ou até mesmo o interesse dele naquela campanha. Ora, tanto melhor; se tudo desse certo, o crédito de Bard seria muito maior.
— Não permita que eu o afaste de seus deveres, senhor — falou Mirella, muito tímida.
Bard inclinou-se para ela e afastou-se; os olhos dela, pensou ele, eram lindos, e a sua timidez era idêntica à de Carlina. Ficou imaginando se ainda seria virgem. Estava certo de que ela o olhara com interesse. Tinha prometido a si mesmo que abriria mão de suas farras, permaneceria fiel a Carlina, porém, quando em campanha, um soldado devia se aproveitar do que se lhe oferecia. Quando se reuniu aos seus homens, assoviava.
Ficou contente quando, algum tempo depois, a bonita Mirella, novamente embuçada no seu manto cinzento, modestamente, diante dos olhos dos soldados, cavalgou na sua direção e falou com timidez:
— Com sua permissão, senhor, Mestre Gareth comunicou que o pássaro já está voltando e poderemos reiniciar a cavalgada.
— Muito obrigado, damisela — agradeceu Bard e, escrupulosamente, virou-se para o Príncipe Beltran à espera de suas ordens.
— Dê a ordem de partida — ordenou Beltran com indiferença, montando a seguir. Quando todos os homens já estavam novamente a caminho, Bard, que os tinha observado passar por ele, os olhos alertas para qualquer coisa errada por parte deles, uma peça de equipamento enferrujada, um cavalo que estivesse apresentando os primeiros sinais de estar com uma pedra presa ao casco ou ter perdido uma ferradura, cavalgou para o lado dos três leroni.
— Quais as notícias trazidas por seu pássaro-sentinela, Mestre Gareth?
O rosto marcante do velho laranzu parecia tenso e deprimido. Mastigava uma tira de carne-seca enquanto se deslocava. Melora, ao lado dele, parecia praticamente tão extenuada quanto ele, os olhos vermelhos como se tivesse estado chorando. Também estava comendo, enfiando punhados de frutas secas com mel entre os lábios lambuzados.
— A caravana encontra-se aproximadamente a dois dias de distância daqui — esclareceu Mestre Gareth, fazendo um gesto com a mão. — São quatro carroções; contei vinte e quatro homens, excluídos os condutores dos veículos. E notei, por suas roupas e cavalos, pelo tipo de suas espadas, que são mercenários de Drytown.
Bard apertou os lábios. Pois os mercenários de Drytown eram os soldados mais aguerridos que jamais se conhecera, e ficou imaginando quantos de seus homens já teriam combatido contra as suas estranhas espadas curvas e os punhais que eles usavam no lugar de escudos.
— Avisarei meus homens — disse ele.
Entre os homens escolhidos encontravam-se vários veteranos das guerras contra Ardcarran. Tinha sido uma boa intuição, pensou ele, ter-se inclinado a escolher homens que já haviam guerreado contra as Drytowns. Talvez tivessem condições de aconselhar os outros a respeito de como lidar com aquele tipo de ataque e defesa.
E outra coisa. Fitou Mestre Gareth e falou ligeiramente preocupado:
— Senhor, sei que é um veterano de muitas guerras. Não espero que as mulheres saibam disto, porém ensinaram-me que não era adequado aos soldados comerem quando estão montados, a não ser nas emergências mais graves.
Percebeu o sorriso por trás dos bigodes avermelhados do velho.
— Está claro que o senhor sabe muito pouco sobre o laran, meu senhor; como ele esgota todas as forças do corpo. Consulte os seus intendentes; irão lhe dizer que receberam rações triplas para nós, e por boa razão. Alimento-me sobre a sela para ter forças e não cair ao chão, senhor, que seria muito mais deprimente do que comer enquanto cavalgo.
Por mais que Bard detestasse ser recriminado, aproveitou aquela lição, como fazia com todos os assuntos militares. Porém, fechou o rosto para Mestre Gareth e afastou-se, despedindo-se dele com o mínimo de gentileza que lhe foi possível.
Cavalgando entre seus homens, explicou a cada um deles que iriam combater, quando chegasse o momento de capturar a caravana, contra mercenários de Drytown; e, durante algum tempo, ouviu as reminiscências de um veterano mais velho que tinha participado de guerras ao lado de seu pai, Dom Rafael, anos antes do nascimento dele.
— Existe um processo para se combater os homens de Drytown; não se pode deixar de observar ambas as mãos, pois eles são tão experientes com aqueles punhaizinhos infernais que usam, quando usamos uma espada reta, e quando imobilizam a sua espada, aproximam-se da gente com a outra mão e enfiam o punhal nas nossas costelas; são treinados para combaterem com as duas mãos.
— Certifique-se de aconselhar os homens quanto a isto, Larion — disse e afastou-se, mergulhado em seus pensamentos. Que honra não haveria de ser para ele, se conseguisse capturar o clingfire intacto e levá-lo de volta para o Rei Ardrin! Como a maioria dos soldados, detestava o clingfire, julgando-o uma arma de covardes, embora conhecesse a importância estratégica que deveria ter ao incendiar um objetivo inimigo. Pelo menos, podia ter certeza de que não seria arremessado contra as torres das Astúrias! Ou usado para incendiar seus bosques!
Montaram seu acampamento, naquela noite, junto à fronteira das Astúrias, numa pequena aldeia situada nas proximidades das planícies de Valeron, uma terra de ninguém que não mantinha aliança com nenhum rei, e os aldeões reuniram-se, carrancudos, em volta dos homens de Bard como se pretendessem lhes negar que acampassem ali. Então, olhando para os três leroni com seus mantos cinzentos, assumiram um aspecto ameaçador e retiraram-se.
— Estas terras — comentou Bard com Beltran, enquanto desmontavam — deveriam estar sujeitas a algum senhor; é perigoso tê-los aqui, prontos a darem abrigo a proscritos, bandidos e, quem sabe, oferecerem-se para algum descontente que poderia aqui se estabelecer como um rei ou barão.
Beltran passeou o olhar com desdém por aqueles campos improdutivos onde só se viam grãos de baixa qualidade, os pomares com árvores esparsas de castanhas de má qualidade, algumas com tão poucas folhas, que os fazendeiros restringiram-se a cultivar cogumelos nelas.
— Quem se importaria com isto aqui? Não podem pagar imposto algum. Na verdade, quem se desse ao trabalho de conquistar pessoas como estas deveria ser um senhor muito pobre! Que honra poderia uma águia conquistar combatendo um exército de coelhos?
— A questão não é esta — retrucou Bard. — O problema é que algum inimigo das Astúrias poderia vir até aqui e colocar os aldeões contra nós, de modo que teríamos inimigos na nossa própria fronteira. Conversarei com meu senhor, o rei, a respeito disto, e talvez me envie até aqui na próxima primavera, para me certificar de que se não pagam nenhum imposto para as Astúrias, pelo menos não pagarão nada, também, para Ridenow ou Serrais! Deseja falar com os homens e certificar-se de que tudo está correndo como deve, ou deverei fazê-lo pessoalmente?
— Ah, deixe que eu mesmo o farei — murmurou Beltran bocejando. — Acho que eles devem saber que seu príncipe se preocupa com seu bem-estar. Não sei grande coisa a respeito da arte militar, porém há suficientes veteranos conosco que podem me dizer se está faltando alguma coisa.
Bard sorriu com desagrado enquanto Beltran se afastava. Talvez Beltran conhecesse muito pouca coisa de tática militar; mas sabia o bastante sobre a ciência de governar, portanto desejava conquistar o agrado e a aliança de seus homens. Um rei governava segundo a lealdade de seus soldados. Beltran era bastante inteligente para reconhecer que era Bard quem detinha o comando militar desta campanha; dificilmente poderia ser de outro jeito. Porém não estava inclinado a dar a oportunidade para que os homens pudessem pensar que seu príncipe fosse capaz de se manter indiferente com relação ao seu bem-estar! Bard observava o Príncipe Beltran indo de homem a homem, formulando perguntas a respeito de suas montarias, suas roupas de cama e uniformes, suas cotas de ração. Os cozinheiros da tropa estavam armando fogueiras e alguma coisa estava cozinhando numa caçarola. Dela exalava um perfume maravilhoso, após um interminável dia de cavalgada, cuja refeição do meio-dia tinha sido nada mais além de um naco de pão duro e um punhado de nozes!
Vendo-se por um instante sem ocupação, dirigiu-se para o lugar, um pouco afastado, onde os leroni tinham acampado. A recordação dos olhos da linda Mirella agia como um ímã; não devia ter muito mais que quinze anos.
Encontrou-a fazendo uma fogueira. Uma tenda fora erguida e, através do tecido, podia ver as formas corpulentas da leronis Melora deslocando-se lá dentro. Ajoelhou-se ao lado de Mirella e perguntou:
— Permite que lhe empreste o meu fogo, damisela? — estendeu o isqueiro alimentado com óleo, que era bem mais simples de ser usado do que a caixa com rastilho comumente usada.
Ela não desviou os olhos para ele. Bard notou seu enrubescimento, que achava tão adorável, inundando todo o seu pescoço pálido.
— Agradeço-lhe, meu senhor, porém não preciso dele. — E, realmente, quando ela olhou para a pilha de toras, a mão pousada sobre o saquinho de seda em volta do pescoço onde, imaginava ele, ela guardava a pedra da estrela, a madeira de repente incendiou-se, formando labaredas imensas.
Ele pousou a mão de leve no seu pulso e sussurrou:
— Se se dignasse apenas a olhar em meus olhos, damisela, também eu irromperia em chamas.
Ela se virou um pouco para ele e, embora não tivesse erguido os olhos, ele viu a curva de um pequeno sorriso nos cantos de sua boca. De repente, uma sombra projetou-se sobre eles.
— Mirella — disse Mestre Gareth com decisão —, entre na tenda e ajude Melora a fazer a sua cama.
Enrubescendo, Mirella ergueu-se rápida e correu para dentro da tenda. Bard também se levantou, furioso, encarando o feiticeiro mais velho.
— Com todo o respeito que lhe é devido, aconselho-o, vai dom, faça as suas farras noutro lugar. Aquela ali não é para o senhor.
— O que há com você, velho? Ela é sua filha? Ou, talvez, seu antigo amor, ou prometida noiva? — indagou Bard, revoltado. — Ou terá conquistado a lealdade dela com seus encantos?
Mestre Gareth sacudiu a cabeça, sorrindo:
— Não é nada disto, porém, em campanha, sou responsável pelas mulheres que me acompanham, e elas não devem ser tocadas.
— A não ser, talvez, pelo senhor?
Novamente, um sacudir silencioso de cabeça e um sorriso:
— O senhor nada sabe a respeito do mundo em que vive uma leronis, meu senhor. Melora é minha filha; não permitirei que seja tocada por amores eventuais, a não ser que ela assim o deseje. Quanto a Mirella, deve se manter virgem para a Visão, e há uma maldição contra qualquer um que viesse a possuí-la, a menos que ela se entregue voluntariamente. Estou aconselhando-o, evite-a.
Ofendido, com o rosto em brasa, sentindo-se como um garoto de escola que levou um pito, Bard baixou e cabeça e murmurou:
— Não sabia.
— Não, e é por isto que estou lhe dizendo — retrucou o ancião, com inteligência. — Mirella sentia-se muito intimidada para que pudesse lhe contar pessoalmente. Não está acostumada a lidar com homens que não podem ler seus pensamentos.
Bard lançou um olhar ressentido na direção da tenda. Pensou que deveria ter sido a gorda e feia Melora, a filha do velho, quem deveria ter se mantido virgem para a Visão, pois qual o homem que seria capaz de desejá-la, a menos que pudesse antes esconder o rosto dela dentro de um embornal? Por que a bonita Mirella? Mestre Gareth continuava a sorrir amistosamente, porém Bard experimentou a sensação repentina e misteriosa de que o ancião estava, na verdade, lendo a sua mente.
— Vamos, vamos, senhor — falou Mestre Gareth com um amplo e bem-humorado sorriso —, está prometido em casamento para a Princesa Carlina. Não vale a pena para o senhor olhar para uma simples leronis. Vá para a cama sozinho esta noite, e quem sabe... sonhará com a bem-nascida mulher que o espera em casa. Afinal de contas, não pode ter todas as mulheres sobre as quais pousam seus olhos inquietos. Não mostre um temperamento tão feio assim!
Bard soltou uma maldição e virou-se para se afastar. Sabia muito bem que não devia enfurecer um laranzu, sobre o qual talvez repousasse o destino da campanha, porém a voz do ancião, como se falasse com o mais imaturo dos garotos, deixara-o furioso. O que tinha Mestre Gareth a ver com aquilo?
O criado que fazia parte da comitiva, e cuja tarefa era servir os oficiais, tinha montado um terceiro acampamento, bem pequeno, para eles, afastado dos outros. Bard foi provar a comida que fora servida aos seus homens — tinha aprendido a não comer nunca até que os cavalos e seus homens estivessem acomodados em segurança para passar a noite — e para inspecionar as estacas alinhadas para prender os animais, em seguida retornou e encontrou Beltran a sua espera.
— Você parece estar de mau humor, Bard. O que o aflige?
— O infernal velho pássaro de presa — resmungou Bard. — Receoso de que eu fosse tocar a sua preciosa e jovem leronis, quando nada mais fiz além de lhe oferecer um pouco de isca para o lume!
Beltran reprimiu o riso:
— Muito bem, isto é um elogio, Bard. Ele sabe que você tem um jeitinho todo especial com as mulheres! Sua reputação, afinal de contas, simplesmente precedeu-o, apenas isto, e ele está com medo que nenhuma jovem solteira seja capaz de resistir aos seus encantos, nem conservar a virgindade na sua presença!
A coisa analisada sob este prisma fez com que Bard recuperasse um pouco de seu amor-próprio e começasse a se sentir menos como um garotinho de escola que fora repreendido.
— Na minha opinião — observou Beltran —, acho errado trazer mulheres em campanha, mulheres bonitas, quero dizer. Acho que todo o exército deveria contar com seguidoras de acampamento, se bem que, pessoalmente, não me agradem. Se devo ter mulheres a minha volta, prefiro o tipo que parece ter se banhado com mais freqüência do que quando são surpreendidas do lado de fora no decorrer das chuvas fortes! No entanto, mulheres bonitas numa campanha são uma tentação para os lascivos e um aborrecimento para os castos cujas mentes estão presas nos combates!
Bard concordou com um movimento de cabeça, reconhecendo a integridade daquilo que Beltran dizia.
— E o que é mais, se estiverem disponíveis, os homens brigarão entre si por causa delas; e se não estiverem à mão, eles perderão a cabeça por causa delas — comentou Bard.
Beltran falou:
— Quando chegar o dia em que comandarei os exércitos de meu pai, haverei de proibir que qualquer leronis acompanhe o exército; existem suficientes laranzus e, pessoalmente, considero os homens mais experientes neste tipo de habilidade; as mulheres são por demais exigentes e não têm um lugar, junto a um exército, não mais do que Carlina ou um de nossos irmãos menores! Quantos anos tem seu irmãozinho agora?
— Deve estar com uns oito anos — retrucou Bard. — Fará nove no solstício do inverno, fico imaginando se terá me esquecido. Desde que meu pai mandou-me para cá, para ser criado aqui, nunca mais voltei à sua casa.
Beltran deu umas palmadinhas amistosas no ombro de Bard. Falou:
— Ora, muito bem, sem dúvida poderá ter uma licença para ir até sua casa antes do solstício de inverno.
— Caso o combate em Hammerfell termine antes que a neve obstrua as estradas, farei isto mesmo. Minha mãe de criação não me ama, porém não me pode manter afastado de casa. Seria bom ver se Alaric ainda nutre afeição por mim. — Pensou, em seu íntimo, que talvez devesse pedir ao pai para comparecer ao seu casamento. Não era todo aquele que gozava da proteção do rei que seria unido em casamento pessoalmente pelo Rei Ardrin!
Ficaram conversando até bem tarde e quando finalmente adormeceram, Bard sentia-se muito satisfeito. Pensou rapidamente e com pena na bonita Mirella, mas afinal de contas, o que Mestre Gareth dissera era verdade: ele tinha Carlina e, logo, logo, estariam casados. Afinal de contas, Beltran estava com a razão. Mulheres virtuosas não tinham um lugar junto aos exércitos do rei.
Na manhã seguinte, após uma rápida conferência com Mestre Gareth e Beltran, eles rumaram na direção da passagem do Moray's Mills. Ninguém que estivesse vivo agora sabia quem poderia ter sido Moray, se bem que as histórias que corriam pelos campos faziam dele desde um gigante até um guardião do dragão; mas ainda existia um moinho em ruínas perto da vau e um pouco mais acima havia um outro moinho ainda em atividade. Um portão de portagem fechava a estrada, e quando os homens de Bard se aproximaram dele, um guarda, gordo e grisalho, apareceu e informou:
— Por ordem de Lorde de Dalereuth, esta estrada está fechada, meus senhores. Jurei que não o abriria para ninguém que não lhe pagasse impostos, ou tivesse seu salvoconduto válido nas suas fronteiras.
— Esta agora, por todos os infernos de Zandru... — começou Bard, porém o Príncipe Beltran adiantou-se, agigantando-se sobre o homenzinho com seu avental de moleiro.
— Estou com uma vontade incontrolável de pagar uma taxa de cabeça para o Lorde de Dalereuth — exclamou ele. — Tenho certeza de que ele apreciaria a cabeça de um camarada tão insolente quanto você, Rannvil... — fez um gesto, e um dos cavaleiros desembainhou a espada. — Abra os portões, homem; não seja tolo!
O guarda-portagem, batendo os dentes, rumou para junto do mecanismo que escancarou o enorme portão. Beltran atirou algumas moedas para o homem, cheio de desdém.
— Aí está o seu imposto. Contudo, se este portão estiver fechado para nós quando de nosso retorno, acredite-me, mandarei meus homens derrubá-lo e colocar sua cabeça em cima dele para espantar os corvos!
Enquanto atravessavam, Bard ouviu os resmungos do homem, abaixou-se em seu cavalo, agarrando-o pelo ombro.
— O que quer que tenha dito, diga-o em voz alta diante de nossos rostos, seu...!
O homem levantou os olhos, as mandíbulas contraídas, furioso. Falou:
— Nada tenho a ver com as disputas de meus superiores, vai dom. Por que deveria eu sofrer porque vocês, os nobres, não conseguem manter suas fronteiras? Tudo que me importa é administrar meu moinho. No entanto, não retornarão por aqui, ou melhor, de modo algum. Nada tenho a ver com o que os espera lá na vau. Agora, se o desejarem, conquistem honra matando um homem desarmado!
Bard largou-o e endireitou o corpo. Disse:
— Matar você? Por quê? Obrigado pelo seu aviso; foi bem pago. — Ficou observando o homem dirigir-se para seu moinho, e embora tivesse sido um soldado desde os 14 anos, franziu as sobrancelhas e, de repente, ficou imaginando por que tinha que ser daquele jeito. Por que deveria cada nobre decidir criar caso para poder se sentir soberano em suas próprias terras? Isto só gerava mais trabalho para os mercenários.
Talvez, pensou ele, toda esta terra devesse se achar sob um governo único, com paz nas fronteiras, desde as Hellers até o mar... e homenzinhos insignificantes como este poderiam cultivar suas safras e fazer seus moinhos girarem em paz... e eu poderia viver nas propriedades que o rei me deu, com Carlina...
Contudo, não sentiu nenhum prazer ao pensar naquilo, agora. Convocou Mestre Gareth com urgência, levantando a mão para deter seus homens.
— Avisaram-me — disse ele — que algo nos aguarda nesta vau; porém, não estou vendo nada. Seu pássaro deu-lhe algum aviso, ou as suas mulheres viram alguma coisa com seus encantos?
Mestre Gareth chamou Mirella com um aceno, ela que estava toda enrolada no seu manto, e falou com ela, bem baixinho. A jovem retirou a pedra da estrela da garganta e olhou para dentro dela.
Após um momento, ela falou numa voz baixa e neutra:
— Não há nenhum homem, ou animal, na vau à nossa espera; mas há escuridão por lá e um obstáculo que talvez não tenhamos condição de vencer. Devemos avançar com muito cuidado, parente.
Mestre Gareth levantou os olhos e encontrou os de Bard. Explicou:
— Ela tem a Visão; se há uma escuridão na qual ela não consegue penetrar, devemos, realmente, avançar com o maior cuidado, senhor.
Contudo, a vau parecia calma e tranqüila sob o sol, rumorejos superficiais revoluteando com laivos avermelhados. Bard ficou carrancudo, tentando descobrir o que se achava diante deles. Não conseguia ver nada, nenhum sinal de emboscada, nenhum rebento ou galho rodopiando na extremidade oposta do vau, onde uma trilha subia em meio a árvores crescidas. Na verdade, aquele seria um ótimo lugar para se armar uma emboscada.
— Se não podemos enxergar além do vau por feitiçaria ou pela Visão — disse ele —, não pode o pássaro-sentinela passar e ver se há alguma emboscada por lá?
Mestre Gareth anuiu:
— Para se certificar. O pássaro nada mais é além de um animal e nada tem a ver com feitiçaria ou a mágica de uma mente treinada para tanto. A única mágica com relação ao pássaro é a habilidade de Melora e minha para nos mantermos em contato com a criatura. Melora — chamou ele —, filha, deixe o pássaro-sentinela partir.
Bard ficou olhando enquanto o aterrador pássaro ergueu-se bem acima do vau, fazendo círculos. Depois de algum tempo, Mestre Gareth sacudiu-se, desperto, fez um sinal para Melora, que estendeu a mão e segurou o pássaro enquanto ele retornava fazendo círculos, afagando suas penas e dando-lhe alguns grãozinhos antes de enfiar-lhe o capuz de volta na cabeça. Mestre Gareth informou:
— Não há ninguém, homem ou animal, escondido além da vau; não há nenhum ser vivo por muitos quilômetros, a não ser uma menina cuidando de seu rebanho. O que quer que esteja nos aguardando aqui no vau, vai dom, não é uma emboscada com homens armados.
Bard e Beltran trocaram olhares. Finalmente, o último falou:
— Não podemos ficar o dia todo esperando por algo terrível que ninguém pode ver. Creio que devemos cavalgar rumo à vau; porém Mestre Gareth, fique aqui mesmo, pois devemos mantê-lo à espera e à mão, caso sua ajuda se faça necessária. Conheci feiticeiras capazes de incendiar florestas ou um campo que se achava no caminho de exércitos em marcha; e suponho que talvez haja algo assim além da vau. Precisamos estar atentos a isto. Bard, faça o favor de ordenar aos homens para iniciarem a cavalgada.
A pele de Bard começou a formigar. Ele já tivera este tipo de reação antes, uma ou duas vezes, na presença de um laran; ele não era dado a premonições, mas, de alguma forma, podia pressentir algo. Havia, ele sabia, um dom capaz de perceber o uso de um laran; talvez, se fosse treinado com relação ao seu uso, houvesse tido isto. Afinal de contas, talvez lhe tivesse sido de alguma utilidade. Sempre havia pensado que Geremy, ao ser treinado como um laranzu, era menos homem, menos soldado, do que Beltran e ele mesmo. Naquele momento, observando Mestre Gareth, começou a se dar conta de que este trabalho podia ter seus próprios perigos e medos, muito embora um laranzu cavalgasse desarmado rumo ao combate. Isto, em si, deve ser bastante aterrador, pensou Bard, colocando a mão sobre a sua espada para se tranqüilizar.
Virou-se para os homens e ordenou:
— Chamada por quatro! — Não podia ordenar a nenhum dos homens para que fosse o primeiro a cavalgar rumo a um terror desconhecido. Quando os soldados tinham se enfileirado, falou: — Grupo de dois, avançar! — e tomou a liderança.
Sua pele voltou a formigar à medida que avançava e seu cavalo sacudiu a cabeça em protesto quando colocou uma pata dentro da vau; porém a água estava calma, e ele ordenou:
— Cavalguem devagar, mantenham-se juntos!
Acima deles, exatamente na extremidade de sua visão, percebeu um pouco de movimento. Achou que Mestre Gareth tinha voltado a lançar mão do pássaro-sentinela... Uma rápida olhada revelou-lhe que o pássaro de Melora estava acomodado, encapuzado e tranqüilo, na sela da mulher. Portanto, eles estavam sendo observados a distância. Haveria algum tipo de defesa contra isto?
Naquele instante, encontravam-se bem no meio da vau, a água revoluteava ao redor dos jarretes dos cavalos; sua profundidade alcançava os quadris de um homem alto. Um dos soldados disse:
— Não há nada aqui, senhor. Podemos chamar os outros para se juntarem a nós.
Bard sacudiu a cabeça. Intimamente, sentia aquele formigamento, que o advertia contra o perigo, crescente, de modo que cerrou os dentes, imaginando se não iria vomitar seu café como uma mulher grávida...
Ouviu Mestre Gareth gritando, e virou seu cavalo no meio da torrente.
— Recuem — gritou. — Recuem...
A água aumentava de volume, alcançando a cernelha de seu cavalo, e, inesperadamente, a tranqüila vau passara a ser uma torrente enfurecida e espumante, um recuo de ondas rápidas, puxando. Sentiu o cavalo tropeçar sob ele como se estivesse cavalgando num rio de montanha repentinamente com as águas avolumadas por degelo transformando-se em corredeiras violentas. Águas enfeitiçadas! Puxando as rédeas com força, tentou acalmar o cavalo, que relinchava e afundava nas águas, conseguiu mantê-lo parado, correndo a ameaça de ser arrastado correnteza abaixo. Ao seu redor cada um dos homens do grupo lutava com os cavalos enlouquecidos pelo medo das águas calmas que subitamente tinham se enfurecido. Praguejando, lutando com o cavalo apavorado, Bard conseguiu dominá-lo, forçou-o a recuar até a beira da água. Viu um de seus homens escorregar para fora da sela, cair dentro da torrente. Um outro cavalo tropeçou, Bard esticou-se e agarrou as rédeas, tentando controlar sua montaria com apenas uma das mãos.
— Dominem-nos! Em nome de todos os deuses, dominem-nos! Voltem para a margem! Mantenham-se juntos!
A surpresa foi o pior; seu cavalo estava habituado às correntezas e vaus das montanhas. Se tivesse sabido daquilo antes, talvez tivesse conseguido controlá-lo contra isso. Firmando-se com os joelhos, estimulando-o a atravessar as águas que agora lhe chegavam ao pescoço, conseguiu conduzi-lo de volta a terra seca, ficou agarrando as rédeas dos outros à medida que safam da torrente. Um dos cavalos estava caído com uma das patas fraturada; ele jazia no solo, esperneando, gritando como uma mulher ao sabor da correnteza, até que se afogou. O pobre animal nunca fizera mal a nenhum ser vivo e tivera uma morte horrível. Não havia qualquer sinal do cavaleiro. Um outro cavalo também caíra, porém seu cavaleiro, pulando da sela para dentro da água, conseguira levantá-lo, mancando, e arrastara-o para a margem; ele mesmo despencou e debatia-se, meio afogado, até que um dos homens, deslizando pela margem, agarrou-o e puxou-o para fora.
Bard viu o último homem sair da água; depois gritou de pasmo e assombro. Novamente, as águas deslizavam tranqüilas e rasas diante deles, a pacífica e normal vau de Moray's Mill.
Então fora isto que o homenzinho quisera revelar...
Fizeram, com tristeza, o balanço de suas perdas. O cavalo que tinha quebrado a perna jazia imóvel agora, morto; e não havia qualquer sinal de seu cavaleiro em nenhum lugar. Ou ele estava submerso sob as águas da vau ou tinha sido arrastado pela correnteza e seu corpo só ia aparecer mais adiante, rio abaixo. Outro homem conseguira se salvar, porém seu cavalo estava manco e inutilizado; um terceiro cavalo atirara seu cavaleiro no chão e conseguira alcançar a margem, porém o homem jazia sem sentidos, o corpo boiando de um lado para o outro na beira d'água. Bard mandou que um de seus homens o puxasse para a terra firme; passou os dedos rapidamente pelo ferimento de seu crânio. Pelo visto nunca mais despertaria.
Bard agradeceu aquele aviso premonitório que o tinha feito mandar apenas a quarta parte dos homens para dentro do rio. Nesta proporção teriam perdido uns seis homens, em vez de dois homens e cavalos, e talvez houvesse mais cavalos coxos ou feridos. Contudo, fez um sinal chamando Mestre Gareth e sua voz soou triste.
— Então é isto que se encontra na escuridão que a sua filha não soube interpretar!
O homem balançou a cabeça, suspirando:
— Sinto muito, vai dom... Somos sensíveis às forças supranormais, não somos feiticeiros, e nossos poderes não são infinitos. Posso me aventurar a dizer em nossa defesa que sem nós seus homens teriam entrado na vau completamente desavisados?
— É verdade — reconheceu Bard —, mas o que devemos fazer agora? Se a vau está com algum encanto contra nós... será que desarmamos a armadilha, ou será que as águas tornarão a se avolumar tão logo coloquemos os pés dentro delas?
— Não posso esclarecer nada com relação a isto, meu senhor. Porém, talvez a Visão de Mirella possa nos revelar algo — falou, fazendo um sinal para que a jovem se aproximasse. Conversou com ela em voz baixa e, mais uma vez, a jovem olhou para dentro da sua pedra da estrela, dizendo afinal na sua voz vaga, neutra, em transe:
— Não consigo ver nada... há muita escuridão nas águas...
Bard praguejou, lentamente. Então, o encanto continuava ali, contra eles. Falou para Beltran:
— Acredita que poderemos atravessar a vau agora que já estamos avisados?
— Talvez — retrucou Beltran —, se os homens sabem o que devem enfrentar, são soldados escolhidos e bons cavaleiros, todos eles. No entanto, Mestre Gareth e as leroni não conseguirão atravessar e, com toda a certeza, aquela que monta um burro não cruzará mesmo...
— Somos leroni experientes, senhor — disse Mestre Gareth; enfrentamos quaisquer riscos que se ofereçam aos exércitos. E minha filha e a filha de criação vão aonde eu for. Elas não têm medo.
— Não estou duvidando da coragem delas — retrucou Bard, muito impaciente. — Estou colocando em dúvida a habilidade delas como amazonas. Ademais, este burrico haveria de se afogar na primeira onda que surgisse. Não desejo ver nenhuma mulher morta antes da hora, porém precisaremos de vocês quando chegar o momento do combate. E antes que façamos qualquer coisa, será capaz de impedir que sejamos espionados? — e fez um gesto na direção do pássaro-sentinela que fazia círculos acima de suas cabeças.
— Faria o que posso, senhor, porém creio que nossos encantamentos são mais necessários contra as águas enfeitiçadas da vau — retrucou Mestre Gareth.
Bard concordou, refletindo sobre o problema. Assim como um comandante aproveita ao máximo seus soldados, da mesma maneira, começava ele a saber, deve proteger a força dos leroni de seu exército e usá-los da melhor forma possível.
Será que o Rei Ardrin entregou-me este comando para que eu tivesse uma oportunidade para comandar não apenas soldados, mas feiticeiros também? Mesmo diante da premência de decisões, pensou muito excitado que isto era muito bom para seu futuro. Se... pensou ele, moderando-se rapidamente, pudesse levar esta aparentemente simples incumbência a cabo sem perder todos os seus homens na vau enfeitiçada!
— Mestre Gareth, isto se encontra no âmbito de seu conhecimento especial. O que me aconselha fazer?
— Podemos tentar lançar um encanto que anule o que está nas águas, senhor. Não posso garantir... não sei o que estamos enfrentando ou quais são os poderes deles... porém, faremos o máximo que pudermos para acalmar as águas. Temos algo em nosso favor; para se intervir desta forma na natureza é necessário um poder terrível, e não poderão mantê-lo por muito templo. A natureza sempre retoma o caminho para a normalidade; as águas buscam seu fluxo normal, e então contamos com a força natural das águas trabalhando para nós, enquanto eles devem lutar contra as forças da natureza. Portanto, o nosso encanto para anular o deles não deve ser muito difícil.
— Que todos os deuses permitam que esteja certo — disse Bard —, mas, ainda assim, advertirei meus homens para estarem preparados para se depararem com as corredeiras.
Bard cavalgou por entre seus homens, falando primeiro com um, depois com outro, avisando ao homem cujo cavalo tinha ficado manco para usar o do cavaleiro que morrera. Depois deslocou-se para perto de Beltran, dizendo:
— Cavalgue ao meu lado, irmão de criação; não desejo enfrentar meu senhor e rei se o deixar morrer nas corredeiras! Se você morresse em combate, suponho que ele suportaria a sua perda; porém, não assumo nenhuma responsabilidade se assim não for!
Beltran soltou uma gargalhada:
— Acha que monta tão melhor assim do que eu, Bard? Pois eu não! Parece-me que está extrapolando a sua autoridade... sou eu, não você, quem comanda esta expedição! — porém falou isto sorrindo e Bard encolheu os ombros.
— Como queira, Beltran; mas em nome de Deus, cuidado com o que irá enfrentar. Meu cavalo é maior e mais pesado do que o seu, pois é preciso um cavalo bem grande para suportar um peso igual ao meu e tive que me desdobrar para não cair da sela!
Deu a volta e dirigiu-se para o lado de Mestre Gareth.
— Mestra Melora não pode atravessar a vau nesse burrico, de forma alguma; certamente que não, caso seus encantos não dêem certo. Ela é capaz de montar a cavalo?
— Sou o pai dela, não seu mentor ou senhor do destino que a aguarda; por que não pergunta diretamente à senhora? — retrucou Mestre Gareth.
Bard contraiu a mandíbula.
— Não estou acostumado a formular perguntas às mulheres quando há um homem que as dirige. Porém, se o senhor insiste... muito bem, damisela, sabe montar a cavalo? Caso saiba, seu pai levará a Mestra Mirella junto com ele no seu cavalo, de vez que ela é mais leve do que a senhora, e a senhora montará o cavalo dela, que me parece suficientemente resistente.
— Prefiro confiar nos encantos de meu pai e nos meus — retrucou Melora, decidida. — Acha que abandonarei meu pobre burrico e permitirei que se afogue?
— Oh, que inferno, que danação, mulher — explodiu Bard. — Se souber montar a cavalo, um de meus homens conduzirá o seu burro. Acredito que o animal saiba nadar!
— Melora, deve se empenhar ao máximo para montar a cavalo — pediu Mestre Gareth. — E Whitefur deve nadar por ele mesmo. Tenho certeza de que ele pode atravessar a vau melhor do que você. Mirella, minha jovem, empreste seu cavalo para Melora e suba na garupa da minha sela.
Ela se acomodou com bastante agilidade, embora os homens que estavam parados observando-a tivessem vislumbrado suas pernas compridas e bem torneadas, cobertas com meias listadas de vermelho e azul, enquanto se ajeitava por trás do velho laranzu, arrumando o corpo, passando as mãos para abaixar as saias e agarrando-se à cintura dele. Bard foi pessoalmente ajudar a gorducha e desgraciosa Melora a se içar para a sela do cavalo da outra jovem. Ela se sentava num cavalo, pensou com seus botões severamente, como um saco de ração atirado sobre uma sela.
— Sente-se um pouco mais ereta, peço-lhe, vai leronis, e segure as rédeas com mais cuidado — avisou ele, deixando escapar um suspiro. — Creio que talvez seja melhor eu cavalgar ao seu lado e guiar seu cavalo.
— Seria muita gentileza de sua parte — disse Mestre Gareth — pois todos nós precisaremos nos concentrar para podermos lançar o nosso encantamento; e também consideraria uma delicadeza se um de seus homens puder guiar o burro de Melora, pois ela ficará preocupada com ele.
Um dos veteranos explodiu na gargalhada:
— Mestra Melora, se conseguir lançar um encantamento que acalme estas águas, carregarei pessoalmente seu burrico atravessado sobre a minha sela como se fosse um bebê!
Ela riu. Gorda e sem graça como era, tinha uma voz doce e um riso adorável.
— Temo que o senhor o assustaria mais ainda do que as corredeiras, senhor. Acho que se o senhor o guiar, ele dará um jeito para nadar, acompanhando a cauda de seu cavalo.
O veterano arranjou uma corda, amarrou-a na rédea do burro, prendendo-a à sua. Bard pegou as rédeas de Melora, pensando com pesar não ser as de Mirella, tão linda; e o doce sorriso de Melora entristeceu-se. Ficou pensando, pouco à vontade, se ela poderia ler os seus pensamentos, e afastou-os de si. Aquele não era o momento apropriado para se pensar em mulheres, não com uma vau enfeitiçada para se atravessar e uma batalha pela frente!
— Pelo amor de todos os deuses, Mestre Gareth, lance seu encantamento para anular o que aqui está!
O corpo pesado de Melora mantinha-se imóvel sobre a sela. O aspecto de alheamento, de concentração, tomava conta do rosto de Mestre Gareth. O capuz de Mirella escorregou sobre sua face, de modo que apenas se via seu pequenino queixo. Bard observava os três leroni, sentindo o formigamento pela sua coluna, o que significava que o laran era forte ali por perto... Como poderia saber o que era?
Silenciosamente, sentindo uma relutância estranha para romper a quietude com uma palavra ou um grito, Bard fez um sinal para que os homens se deslocassem para diante. Ainda oprimido pela sensação de formigamento intenso que pairava no ar, torceu as rédeas e insistiu para que o animal marchasse. A égua remexeu a cabeça e relinchou desassossegada, recordando-se do que lhe acontecera ao pôr as patas na vau antes.
— Calma. Calma, menina — pediu ele em voz baixa, pensando. Não a culpo de forma alguma, estou me sentindo assim também... Porém ele era um ser racional, não um animal, e não cederia a medos desarrazoados e insensatos. Instada pela voz e pelas mãos, a égua entrou na vau e Bard fez sinal para que seus homens o seguissem.
Nada aconteceu... mas antes, nada tinha acontecido, até alcançarem o meio da torrente. Bard continuava a instar para que sua montaria avançasse, segurando as rédeas de Melora, um pouco de lado na sela. Atrás dele vinha Mestre Gareth, Mirella agarrada à sua cintura, e atrás dele, os homens do destacamento, com o Príncipe Beltran fechando a retaguarda.
Todos se encontravam dentro d'água agora, e Bard notou que a pele de seu rosto se retesava. Se o encanto estivesse agindo ainda, haveria de pegá-los agora, cairia em cima deles como uma torrente. Retesou-se sobre a sela, sentindo o formigamento, formigamento que era sua percepção pessoal de um laran em atividade, aumentando de força como se ele quase pudesse ver a explosão e o efeito recíproco entre o encantamento lançado sobre a vau e o lançado por Mestre Gareth; seu cavalo parecia ter se metido no meio de um forte emaranhado de ervas daninhas embora nada houvesse de tangível ali...
Então, inesperadamente, desapareceu; sumiu, evaporou-se, a vau deslizava silenciosa e inocente, apenas água outra vez. Bard respirou aliviado e meteu os calcanhares na barriga do animal. Os primeiros cavaleiros estavam espalhados pela margem oposta agora, e ele manteve a sua montaria lá no meio das águas, observando-os passarem e galgar o outro lado da vau.
Por enquanto, pelo menos, seus leroni tinham conseguido anular os encantos dos mágicos que trabalhavam contra eles.
O tempo se mantivera ótimo até ali, nessa campanha. Porém agora quando o dia começava a declinar, o céu ia ficando cada vez mais escuro com pesadas nuvens e, próximo ao anoitecer, a neve começou a cair, suavemente, mas com persistência; no início, eram flocos espessos, amontoados, molhados de uma vez, depois espessos, diáfanos e sólidos, caindo, caindo, caindo com uma tola insistência. Melora, de volta sobre seu burro, envolveu-se no seu manto e enrolou um cobertor na cabeça. Os soldados, um a um, pegaram echarpes, luvas de lã e pesados capuzes e cavalgavam casmurros e irritados. Bard sabia o que estavam pensando. Por tradição, a guerra era um assunto para o verão, e durante o inverno todos, a não ser um louco, ou um desesperado, ficavam acomodados junto às suas lareiras. Havia certos perigos numa campanha de inverno. Os homens poderiam dizer, e com razão, que embora tivessem jurado servir ao Rei Ardrin, isto ia além do que era habitual e direito, e cavalgar daquela maneira sob uma tempestade de neve, que poderia, com toda a facilidade, transformar-se numa nevasca em intensidade, não era costumeiro e, portanto, o rei não tinha o mínimo direito de lhes pedir tal coisa. Como poderia ele comandar a sua lealdade? Pela primeira vez, desejou não estar no comando ali, mas sim rumando para o Norte, para Hammerfell, à direita do Rei Ardrin, o porta-estandarte de seu soberano. O rei podia exigir lealdade de suas tropas, usar influência pessoal para requisitar uma lealdade além do normal. Ele podia fazer promessas aos homens e transformá-las em realidade. Bard estava dolorosamente consciente de ter apenas 17 anos; que nada mais era do que o sobrinho bastardo do rei e seu filho de criação; que havia sido promovido passando por cima de vários oficiais experientes. Provavelmente havia homens nas fileiras, mesmo entre aqueles escolhidos que selecionara para participarem desta campanha, que deveriam estar esperando para vê-lo cair em desgraça; vê-lo cometer algum erro terrível que jamais pudesse reparar. Ter-lhe-ia o rei entregue aquele comando apenas para que extrapolasse seus poderes, para que se visse que soldado imaturo e despreparado ele era?
Apesar de seu triunfo e promoção no campo de Snow Glen, ele nada mais era além de um garoto. Seria ele capaz de levar esta missão até o fim? Não estaria o rei desejando ver o seu fracasso para poder, assim, lhe negar a mão de Carlina? O que estaria lhe esperando caso fracassasse? Seria ele destituído de seu cargo, mandado para casa desonrado?
Adiantou-se para se juntar a Mestre Gareth, que havia envolvido a parte inferior do rosto num cachenê pesado, vermelho e tricotado a mão, sob seu manto cinzento de feiticeiro. Disse com aspereza:
— Não pode fazer nada com relação a este tempo? Uma nevasca está vindo por aí, ou se trata apenas de uma pancada de neve?
— O senhor exige demais de meus poderes, senhor — retrucou o ancião. — Sou um laranzu, não um deus; não compete a mim gerir o tempo. — Um toque de humor enrugou um canto de sua face num sorriso de lado. — Acredite-me, Mestre Bard, se tivesse poderes sobre o clima, trataria de usá-los em meu favor. Estou tão enregelado, tão ofuscado pela neve quanto o senhor; meus ossos estão velhos e se ressentem muito mais sob o frio do que os seus.
Bard comentou, detestando ser forçado a confessar sua própria falta de adaptação:
— Os homens estão resmungando e estou com um pouco de receio que possa haver um motim. Uma campanha de inverno... enquanto o tempo se manteve bom, eles não se importaram. Mas agora...
Mestre Gareth anuiu em silêncio, fazendo apenas um movimento com a cabeça:
— Posso ver isto. Muito bem, tentarei ver até quando esta tempestade vai perdurar, e se sairemos dela em breve; muito embora a mágica do tempo não seja meu talento especial. Apenas um dos laranzus de sua majestade possui este dom, e Mestre Robyl rumou para o Norte, para Hammerfell, com o rei; julgou que seria mais necessário na fronteira norte com as Hellers, onde as nevascas são mais violentas. Porém, farei o melhor que me for possível — e acrescentou enquanto Bard se afastava: — Anime-se, senhor. A neve pode tornar difícil a nossa cavalgada, porém não tão dura quanto para a caravana com o clingfire; eles têm todos aqueles carros e carroças para empurrar através da neve e se ela ficar alta demais não conseguirão se deslocar de modo algum.
Bard se deu conta de que deveria ter imaginado aquilo. A neve imobilizaria os carros e as carroças da caravana, enquanto os cavaleiros leves do grupo selecionado ainda se sentiam suficientemente em forma para cavalgarem e combaterem. Além disto, se era verdade que os mercenários de Drytown tinham sido contratados para escoltar a caravana, estavam habituados com um clima mais quente, e a neve haveria de perturbá-los. Bard deslocou-se por entre os homens, ouvindo suas reclamações e protestos e recordou-os de tudo isso. Muito embora a neve continuasse a cair, e até se tornasse mais pesada, este pensamento parecia animá-los um pouco.
Contudo, as nuvens e a neve que caía ficavam cada vez mais espessas, e depois de ter trocado uma palavra com Beltran, decidiram parar mais cedo do que pretendiam. Nada lucrariam forçando os homens descontentes a continuarem se deslocando através da mesma neve que imobilizaria a sua presa. Cavalgando através da neve, os homens sentiam-se extenuados e desalentados, e alguns deles teriam preferido comer alguma coisa fria e se embuçado imediatamente em seus cobertores, porém Bard insistiu que as fogueiras deveriam ser acesas e servida comida quente, sabendo que isto haveria de levantar o moral dos homens muito mais do que qualquer outra coisa. Com as fogueiras acesas sobre lâminas de pedra e ardendo, alimentadas com os galhos caídos das árvores de um pomar abandonado — atingido pela praga que atacara as castanheiras alguns meses antes —, o acampamento parecia animado, e um dos homens apareceu com uma pequenina gaita de foles e começou a tocar antigas elegias tristes, mais velhas do que o mundo. As mulheres dormiram na tenda que compartilhavam, porém Mestre Gareth reuniu-se aos homens que se achavam ao redor da fogueira, e após algum tempo, embora declarasse não ser um menestrel ou poeta, concordou em lhes narrar a lenda do último dragão. Bard sentou nas sombras ao lado de Beltran, mastigando frutas secas e ouvindo a história de como o último dragão tinha sido morto por um membro da família Hastur, e como, sentindo com o laran próprio aos animais que este último companheiro estava morto, cada animal e pássaro dentro dos limites dos Cem Reinos tinha começado a gemer, a prantear a morte dele, e até as banshees (* Banshees: espíritos femininos cujos lamentos, segundo uma crença irlandesa, anunciam às famílias a morte de um de seus membros. (N. da T.)) juntaram-se às lamentações pela última das serpentes sábias... e o filho do próprio Hastur, colocando-se de pé ao lado do cadáver do último dragão sobre Darkover, tinha prometido nunca mais caçar qualquer coisa viva por esporte. Quando Mestre Gareth terminou esta lenda, os homens aplaudiram e rogaram-lhe para que contasse outras, porém ele balançou a cabeça, dizendo que era um homem velho, estivera cavalgando o dia inteiro e que ia se afastar para se acomodar entre os cobertores.
Pouco depois o acampamento estava às escuras e mergulhado no silêncio: apenas o olhinho vermelho da fogueira, coberta com ramos verdes devido à necessidade do preparo do mingau escaldante de manhã, chiava e vigiava sob a sua cobertura. Ao redor de toda a fogueira, triângulos escuros marcavam o local onde os homens jaziam deitados em suas cobertas, sob os lençóis à prova d'água, esticados num ângulo tal para protegê-los da neve que ainda continuava a cair; meias tendas em miniatura armadas cada uma sobre forquilhas, com dois, três ou quatro homens sob elas, todos encolhidos uns junto aos outros dividiam os cobertores e o calor de seus corpos. Beltran estava acomodado ao lado de Bard parecendo estranhamente pequeno e infantil, porém Bard continuava acordado, os olhos presos ao fogo e nas faixas brancas e prateadas de neve que formavam flechas claras através da luz. Em algum lugar, não muito distante dali, o inimigo jazia imobilizado, carros pesados atolados na neve, mulas de carga patinhando.
Beltran, ao seu lado, falou bem baixinho:
— Gostaria que Geremy estivesse aqui conosco, irmão de criação.
Bard riu quase sem fazer qualquer ruído.
— No começo, também desejei isto. Agora, já não estou tão certo assim. Talvez dois jovens imaturos no comando sejam o suficiente, e estamos muitíssimo bem por podermos contar com a experiência e a sabedoria de Mestre Gareth, enquanto Geremy, como um laranzu ainda inexperiente, cavalga ao lado de seu pai, que é habilíssimo no comando... Talvez ele tenha pensado que se nós três ficássemos juntos seria muito parecido com as caçadas que costumávamos fazer, nós três, quando ainda éramos uns meninotes...
— Lembro-me — disse Beltran — quando éramos mais jovens e saíamos cavalgando assim. Deitando-nos juntos, mirando o fogo e conversando sobre os dias quando seríamos homens, em campanha juntos, no comando, numa guerra de verdade e não nas nossas falsas batalhas contra rebanhos de chervine... Lembra-se, Bard?
Bard sorriu na escuridão:
— Recordo-me sim. Que campanhas e guerras violentas planejávamos, como subjugaríamos toda esta região rural, desde as Hellers até a costa de Carthon, e além-mar... Muito bem, daquilo que planejamos isto se tornou realidade, estamos todos três em campanha, e na guerra, exatamente como falávamos quando éramos uns garotinhos que mal sabiam qual a extremidade da espada devia ser segura...
— E agora Geremy é um laranzu viajando com o rei, e só pensa em Ginevra, e você é o porta-estandarte do rei, promovido em batalha, prometido à Carlina, e eu... — o Príncipe Beltran suspirou na escuridão. — Bem, sem dúvida, um dia saberei o que desejo de minha vida, ou se não o souber, meu pai e rei haverá de me dizer o que serei.
— Oh, você — exclamou Bard, rindo —, algum dia o trono das Astúrias será seu.
— Isto não é motivo para riso — protestou Beltran e parecia triste. — Saber que apenas assumirei o poder sobre a sepultura de meu pai e por sua morte. Amo o meu pai, Bard, e ainda assim, às vezes, penso que enlouquecerei se tiver que ficar de pé sobre o seu escabelo e esperar por alguma coisa verdadeira para fazer... Nem ao menos posso abandonar o reino e procurar aventura, como qualquer outro homem tem liberdade para fazer. Estou sentindo tanto frio, irmão de criação.
Por um momento Beltran pareceu, para Bard, não ser mais velho do que o irmãozinho que se atirou ao seu pescoço e chorou quando ele se foi para a casa do rei. Sem jeito, deu umas palmadinhas no ombro de Beltran em meio à escuridão reinante.
— Tome, puxe mais o cobertor para cima de você, não sinto tanto frio quanto você, nunca senti. Procure dormir. Talvez amanhã tenhamos um combate em nossas mãos, um combate de verdade, não uma das falsas batalhas com as quais costumávamos nos divertir tanto, e precisamos estar preparados para isto.
— Estou com medo, Bard. Estou sempre com medo. Por que você e Geremy nunca sentem medo?
Bard soltou uma pequena gargalhada:
— O que o faz pensar que não temos medo? Não sei o que acontece com o Geremy, porém senti tamanho medo, que estive a ponto de molhar as minhas calças como um bebê, e sem duvida tornarei a me sentir assim novamente. O que ocorre é que não tenho tempo para falar sobre ele quando me assoma e não sinto vontade de fazê-lo quando estou livre dele. Não se preocupe, irmão de criação. Você se saiu muito bem em Snow Glen, lembro-me.
— Então, por que meu pai promoveu-o no campo de batalha, e não a mim?
Bard reclinou-se na escuridão e fixou os olhos nele. Falou:
— Esta bobagem ainda o incomoda? Beltran, meu amigo, seu pai sabe que você já tem tudo de que precisa. Você é filho dele e seu herdeiro legítimo, você viaja ao lado dele, encontra-se apenas a um passo do trono. Ele me favoreceu porque eu era seu parente, e um bastardo. Antes não podia me colocar acima de seus homens, não podia entregar-me um comando, precisava me transformar em alguém que pudesse favorecer naturalmente, o que não lhe era possível fazer sem me revelar o quanto era grato sobretudo a mim. Promover-me nada mais foi além de afiar uma ferramenta que desejava usar, nada mais do que isto, não se tratou de uma prova de seu amor ou de uma consideração especial! Pelo gélido redemoinho do terceiro inferno de Zandru, sei disto se você o ignora! É tão tolo a este ponto, Beltran, de sentir ciúmes de mim?
— Não — replicou Beltran na escuridão. — Não, creio que não, irmão de criação.
E depois de algum tempo escutando a respiração silenciosa de Beltran em meio à escuridão, Bard adormeceu.
De manhã ainda nevava, e o céu estava tão negro que o coração de Bard baqueou enquanto observava os homens indo cuidar de seus cavalos com tamanha tristeza, cozinhando um caldeirão imenso de mingau, preparando-se e arreando os animais para montarem. Ouviu protestos por parte dos homens de que o Rei Ardrin não tinha o direito de mandá-los viajar no inverno, que esta campanha era obra de seu filho de criação, que não sabia o que era conveniente e certo; quem jamais tinha escutado falar sobre uma campanha como esta com o inverno às portas?
— Vamos, rapazes — instou-os Bard. — Se os mercenários de Drytown podem viajar num clima destes, vamos ficar de braços cruzados e deixá-los levar o clingfire para usá-lo contra nossas aldeias e famílias?
— O pessoal de Drytown está disposto a fazer qualquer coisa — resmungou um dos homens. — Outra coisa, eles arrendarão terras para a colheita na primavera! Guerra é um negócio para o verão!
— E por acreditarem que ficaremos confortavelmente em casa, acreditam que seja seguro atacar-nos — argumentou Bard. — Querem ficar em casa e permitir que nos ataquem?
— É isto mesmo, por que não ficamos em casa e esperamos que invistam contra nós? Defender nossos lares dos ataques é outra coisa, protestou um veterano corpulento, mas sair por aí à procura de problemas é muito diferente!
Contudo, embora houvesse resmungos e protestos, não havia qualquer comportamento que levasse a se pensar em motim ou rebelião. Beltran estava pálido e calado, e Bard, recordando-se da conversa da noite anterior, se deu conta de que o jovem estava apavorado. Era fácil pensar em Beltran como mais moço do que ele mesmo, muito embora, na realidade, a diferença fosse apenas de seis meses; Bard sempre tinha sido o maior e o mais forte dos irmãos de criação, sempre o melhor no manejo da espada, no combate e na caça, sempre fora o líder inquestionável.
Portanto, arranjou um momento propício para falar com Beltran sobre seu receio de que os homens pudessem se amotinar e pediu-lhe para se misturar a eles e tentar sentir quais eram realmente suas tendências enquanto cavalgavam.
— Você é o príncipe deles e representa a vontade de seu rei. Talvez surja um momento quando se recusarão a me obedecer, no entanto não gostariam, assim me parece, de desafiar o próprio filho do rei — insinuou ardilosamente, e Beltran, olhando para ele com uma zanga muda... afinal, deveria ele acatar as ordens de Bard?... concordou, finalmente, e afastou-se para cavalgar primeiro ao lado de um dos homens, depois, de um outro, fazendo perguntas, conversando com um depois do outro. Bard observava, pensando que talvez Beltran tivesse posto de lado seus temores ao executar aquela tarefa... e talvez aquele toque de preocupação pessoal por parte do príncipe tivesse aquietado a revolta dos homens.
E a neve continuou a cair. Agora, ela já chegava à altura da junta da quartela dos cavalos, e Bard começou a se preocupar seriamente sem saber se os animais suportariam aquilo, se conseguiriam prosseguir. Pediu a Mestre Gareth para enviar os pássaros-sentinela, porém recebeu a resposta já esperada de que eles não voariam com um tempo daqueles.
— Pássaros sensíveis! — murmurou Bard. — Quem me dera não precisasse deles! Ora, há alguma forma de descobrir a que distância de nós se encontra a caravana, e se a alcançaremos ainda hoje?
Mestre Gareth respondeu:
— Perguntarei a Mirella; é por isto que está conosco, para que possa usar a Visão.
Bard ficou olhando Mirella, sentada sobre seu cavalo, em meio à neve que caía, os cabelos revelando uma tonalidade cobre viva através dos grossos flocos presos às suas tranças, sentada com os olhos imóveis sobre seu cristal. A luz refletia-se, ligeiramente azul, sobre o seu rosto; a única luminosidade que se vislumbrava em qualquer ponto daquele dia sombrio, ao que parecia, era a luz azul e o escarlate de seus cabelos avermelhados. Estava toda embuçada no manto e em xales, contudo eles não conseguiam esconder a graça de seu corpo esguio, e Bard surpreendeu-se, mais uma vez, por permitir que sua mente se deixasse levar pela beleza dela. Indubitavelmente, era a jovem mais bonita que jamais tinha visto; comparada a ela, Carlina não passava de uma garota desenxabida e pálida. Contudo, Mirella estava inteiramente fora de seu alcance, sacrossanta, uma leronis, uma virgem prometida à Visão e havia muitas lendas fantásticas que advertiam sobre o que aconteceria à virilidade de qualquer um que violasse a virgindade de uma leronis contra a sua vontade. Pensou que poderia, com seu poder, assegurar-se de que não seria contra a vontade dela, que poderia forçá-la a ir para a sua cama voluntariamente...
Mas isto transformaria Mestre Gareth num inimigo. Que inferno! Já havia bastantes mulheres solícitas no mundo, ele estava comprometido com uma princesa e, de qualquer forma, aquele não era o momento adequado para se pensar em mulheres!
Mirella suspirou e abriu os olhos, a luz azul desaparecendo de seu rosto; seu olhar fixou-se nele, tímido, sério, tão direto que Bard ficou imaginando, um pouco desconcertado, se ela não poderia ler o que estivera pensando.
Porém ela se limitou a falar, com sua voz neutra e mansa:
— Não estão muito distante de nós, vai dom. Três horas de cavalgada depois daquela serra ali adiante. — Ela estendeu a mão para indicar o local da serra, porém esta estava invisível sob a neve que caía. — Eles acamparam porque a neve caiu mais forte por lá, e mais pesada, e seus carros não podem se deslocar. Estão atolados até os cubos das rodas e os animais de tração não os conseguem mover. Se continuarmos a nos deslocar no ritmo habitual, nos veremos diante deles pouco após o meio-dia.
Bard voltou para junto dos homens a fim de lhes transmitir estas notícias e encontrou-os carrancudos, e nem se mostraram contentes com as novidades.
— Isto significa que teremos que combater sobre uma grossa camada de neve acumulada no chão. E o que faremos com a caravana após a termos capturado, se seus animais de carga não estão servindo para nada? — perguntou um veterano, com amargura. — Sugiro que acampemos aqui e esperemos por um degelo, quando nos será mais fácil rendê-los. Se estão impossibilitados de se locomover, esperarão por nós!
— Acabaríamos ficando sem provisão e forragem para os cavalos — retrucou Bard —, e ainda temos a vantagem de combater quando quisermos. Vamos, vamos para lá assim que pudermos!
Prosseguiram viagem, a neve não parando de cair. Bard viu o leronis, com seu manto cinza, franzir as sobrancelhas. Finalmente adiantou-se e perguntou a Mestre Gareth:
— Como haveremos de proteger as mulheres durante a batalha, senhor? Não podemos abrir mão de um só homem para protegê-las.
— Já lhe disse antes — replicou Mestre Gareth. — Estas mulheres são leroni experientes; são capazes de cuidar de si mesmas. Melora já esteve presente durante um combate e, muito embora Mirella não tenha experiência a respeito, nada receio com relação a ela.
— Mas estes homens que combateremos estão acompanhados por mercenários de Drytown — insistiu Bard. — E se a sua filha e filha de criação forem feitas prisioneiras... leroni ou não... serão arrastadas, acorrentadas, para serem vendidas a um bordel de Daillon.
Melora, que se encontrava perto deles sobre seu burrico, disse com toda a suavidade:
— Não receie por nós, vai dom. — Pousou a mão sobre o pequeno punhal que levava à cintura, sob o manto. — Minha irmã e eu não cairemos nas mãos do pessoal de Drytown vivas.
O modo calmo e inquestionável com que falou fez com que um arrepio percorresse a coluna de Bard. Curiosamente, aquela observação lhe era familiar. Ele também tinha sabido que enfrentava a morte, ou coisa pior, numa batalha e tomara conhecimento disto bem cedo, e o modo tranqüilo com que Melora falou o fez recordar de suas primeiras batalhas. Viu-se sorrindo para ela, um riso espontâneo, firme.
— A deusa não permitirá que se chegue a isto, damisela. Porém, ignorava que houvesse mulheres capazes de tomar decisões deste tipo, ou serem corajosas na guerra.
— Não se trata de coragem — retrucou Melora, com sua voz suave. — É apenas porque tenho muito mais medo das correntes e dos bordéis de Drytown do que da morte. A morte, assim me ensinaram, é um portão para uma outra vida melhor do que esta; e a vida não teria encantos para mim se fosse uma prostituta acorrentada em Daillon. E meu punhal é muito afiado, de modo que poderia acabar com a minha vida com muita rapidez e sem grande sofrimento... creio que tenho mais medo da dor do que da morte.
— Ora essa! — exclamou ele, controlando sua montaria para poder acompanhar o passo do burro dela. — Creio que deveria usá-la para encorajar meus homens, Mestra Melora. Ignorava que as mulheres pudessem ter tamanha coragem. E se viu imaginando se Carlina seria capaz de falar daquela forma se se visse numa batalha. Não o sabia. Nunca tinha pensado em lhe perguntar aquilo.
Ocorreu a Bard que tinha conhecido muitas mulheres intimamente, desde que completara seus 15 anos. Mas assim mesmo, inesperadamente, parecia-lhe que, na verdade, muito pouco sabia a respeito de como eram as mulheres. Tinha conhecido seus corpos, sim, porém ignorava tudo o mais que lhes dizia respeito; nunca tinha lhe passado pela cabeça que qualquer mulher poderia ser considerada uma pessoa interessante para ele, a não ser para lhes fazer amor.
Contudo, e apesar disto, recordou-se que quando todos eles eram crianças, conversara livremente com Carlina, como o fizera com seus irmãos de criação, tinha passado muito tempo com ela; soubera quais eram suas comidas preferidas, as cores de fitas e os vestidos que mais gostava de usar, seus medos pelas corujas e pássaros noturnos, como detestava mingau de castanhas e bolo com sementes aromáticas, como detestava vestidos cor-de-rosa e sapatos com saltos muito altos, como se aborrecia por ter que ficar sentada, durante horas a fio, debruçada sobre a costura; ele a havia consolado por causa das calosidades em seus dedos quando aprendera a tocar rryl e a harpa e a ajudara com seus deveres escolares.
E, apesar disto, quando se tornara um homem, e começara a pensar nas mulheres em termos de sensualidade, tinha se afastado de Carlina cada vez mais; não sabia em que tipo de mulher a criança tinha se transformado. Na realidade, não se importara em saber, o que agora lhe parecia bem pior, tinha pensado nela, sobretudo como sua mulher prometida. Ultimamente, tinha pensado demais em levá-la para a cama; mas não entendia o porquê, nunca lhe ocorrera conversar com ela, conversar apenas com ela, como estava fazendo com esta mulher estranha, feia e de fala macia, a leronis.
Isto era inquietante; não sentira nenhum interesse especial em levar esta mulher para a cama. Na verdade, só de pensar naquilo arrepiavase, ela era tão gorda, sem graça, deselegante; ela era uma das pouquíssimas mulheres que tinha conhecido que não mexera nada, nada mesmo, com a sua virilidade. Contudo, desejava continuar conversando com ela; sentia-se mais próximo a ela, de uma forma estranha, do que se sentira em muitos anos com qualquer outra pessoa, a não ser seus irmãos de criação. Desviou o olhar para mais adiante de onde se achavam, para onde estava Mirella, silenciosa e distante, e encantadoramente linda, e, como antes, sentiu uma inesperada onda de desejo. Então, tornou a mirar a corpulenta e desgraciosa Melora, largada sobre seu burro, mais uma vez a comparação grosseira, como um saco de grãos. Por que, ficou se perguntando, a bonita Mirella não podia ter aquela voz suave, quente e amigável como esta, por que não podia cavalgar ao seu lado, olhar dentro de seus olhos com um interesse tão indulgente? Os cabelos de Melora eram quase da mesma tonalidade avermelhada dos de Mirella; e por trás de suas maçãs do rosto rechonchudas havia um ligeiro toque da mesma delicada estrutura óssea. Falou:
— A Mestra Mirella... você e ela são muito parecidas; Mirella é sua irmã ou meia-irmã?
— Não somos irmãs — explicou ela —, mas somos parentes; a mãe dela é minha irmã mais velha. Mas também tenho outra irmã que é uma leronis como nós... todas nós somos dotadas com laran. Você não é filho de Dom Rafael di Asturien? Pois então, minha irmã mais nova, Melisendra, é uma das damas de sua madrasta; foi servir Domna Jerana há três estações. Nunca a viu lá?
— Há muitos anos que não vou à minha casa — respondeu Bard, sem maiores explicações.
— Ah, isto é muito triste — disse ela com uma simpatia sincera, mas Bard não queria continuar a falar sobre aquele assunto.
— Está tão calma e sem revelar o menor medo, já esteve em combate alguma vez?
— Ora, já estive, encontrava-me ao lado de meu pai na batalha de Snow Glen, com os pássaros-sentinela. Vi quando entregaram a você o estandarte real.
— Não sabia que havia mulheres lá — comentou ele —, nem mesmo entre os leroni.
— Mas eu o vi — retrucou ela. — Como também eu não era a única mulher por lá. Havia um destacamento de abnegadas, a Fraternidade da Espada, e elas também lutaram com galhardia; se fossem homens, teriam conquistado as honrarias e os elogios reais, da mesma forma que aconteceu com você. Quando os homens conseguiram penetrar pelo flanco sul brandindo seus machados, elas mantiveram sua linha de defesa contra eles até que os cavaleiros, sob o comando do Capitão Syrtis, conseguiram chegar até lá para ajudá-las. Duas delas foram mortas e outra perdeu uma das mãos; contudo, mantiveram aquele flanco onde se achavam postadas.
Bard fez uma careta:
— Já ouvi falar sobre as abnegadas; não sabia que o Rei Ardrin haveria de se dignar a usá-las em combate! Já me parece suficientemente ruim que elas dividam a guarda do fogo com homens. Não me parece que o lugar de uma mulher seja no campo de batalha!
— Também sou da mesma opinião — concordou Melora. — Contudo, não creio que o lugar dos homens seja no campo de batalha, também; nem o meu pai. Ele preferiria ficar em casa, tocando alaúde e rryl e usando nossas pedras de estrela para curar as doenças e extrair os metais do subsolo. Porém, enquanto houver guerra, temos que lutar segundo os desejos de nosso senhor e rei, Mestre Bard.
Bard sorriu jovialmente e disse:
— As mulheres não compreendem estas coisas. A guerra é um assunto masculino e acho que os homens nunca se sentem mais felizes do que quando estão combatendo; porém as mulheres poderiam permanecer em casa, compor músicas e tratar de nossos ferimentos.
— Pensa realmente que a luta é um assunto para homens? — indagou Melora. — Pois bem, não penso assim e espero que surja um dia quando os homens estarão tão livres da guerra como você gostaria que acontecesse com todas as mulheres.
— Sou um soldado, damisela — retrucou Bard. — Num mundo de paz feminina não haveria nem lugar nem trabalho para mim. Porém, se ama a paz tanto assim, por que não deixa a guerra para os homens, que dela gostam?
— Porque não conheço muitos homens que realmente a apreciem — retrucou ela com ardor.
— Pois eu sim, damisela.
— Gosta de verdade? Ou será apenas porque nunca teve grandes oportunidades para qualquer outra coisa? — perguntou Melora. — Houve um tempo em que todas estas terras estavam em paz, sob os Reis Hasturs; mas agora temos uma centena de reinos insignificantes, todos lutando entre si, entra ano, sai ano, por não conseguirem concordar! Acha realmente que o mundo devia ser assim?
Bard sorriu e falou:
— O mundo será como bem entender, Mestra Melora, e não como eu ou a senhora gostaríamos que ele fosse.
— Contudo — replicou Melora —, o mundo é como os homens o fazem ser; e os homens são livres para modificá-lo, se tiverem coragem para tanto!
Ele sorriu para ela. Naquele instante ela lhe parecia realmente bonita, os olhos animados, seu rosto redondo de lua cheia ondulado como creme fresco. Percebeu que a seu próprio modo, sua presença era sensual e arrebatadora, que seu corpo pesado podia ser provocante, agradável; sem dúvida alguma ela não choramingaria como aquela boneca tola Lisarda, mas falaria com ele cheia de animação.
— Talvez o mundo fosse melhor se a senhora tivesse o mando sobre ele, Mestra Melora. Talvez seja uma lástima que as mulheres não participem das decisões que fazem o nosso mundo.
Beltran aproximou-se a cavalo. Com um pedido de desculpas, Bard afastou-se e dirigiu-se para a frente com o príncipe.
— Mestre Gareth afirma que eles estão acampados logo depois deste bosque — disse ele. — Devíamos nos deter aqui, deixar que os homens dêem descanso às suas montarias e se alimentem bem. Em seguida, como uma das moças tem a Visão, podemos estar certos da melhor maneira para atacá-los.
— Certo — concordou Bard, dando algumas ordens que fizeram os homens se reunirem num círculo junto dele, alertas para um possível ataque, o que não era impossível, de vez que os homens de Drytown, conscientes de que se encontravam imobilizados num ponto adequado a um assalto, talvez se adiantassem e tomassem a iniciativa.
— É possível — observou Beltran —, mas não é provável. Se é possível, eles gostam ainda menos da neve do que nós. E têm que defender a caravana — desmontou, remexeu nos seus alforjes â procura de um embornal para seu cavalo. — Percebi que estava cativando uma de nossas leroni. Você realmente deve ser um mulherengo incorrigível, se consegue encontrar em seu íntimo um ponto de ânimo para dizer uma palavra a esta vaca gorda! Como ela me parece idiota!
Bard sacudiu a cabeça:
— Oh, ela é bastante atraente, ao seu próprio modo, e a voz dela é tão suave. E não importa o que se pode dizer sobre ela, nada tem de idiota, muito ao contrário!
Beltran retrucou, com uma gargalhada sardônica:
— Observando-o, começo a achar que o antigo provérbio é verdadeiro, que todas as mulheres são iguais quando a luz está apagada, pois, certamente, você bancará o galante com qualquer coisa que use uma saia! Está tão desesperado por uma companhia feminina, a ponto de ansiar por uma leronis gorda e feia?
Bard retrucou desesperado:
— Dou-lhe minha palavra de que não anseio por ela. Nada mais existe na minha mente, neste presente momento, que não seja a batalha que temos que enfrentar além desta colina e se teremos ou não que nos haver com o clingfire ou feitiçaria! Sou gentil com ela por ser a filha de Mestre Gareth, nada mais do que isto! Em nome de Deus, irmão de criação, dedique toda a sua atenção à nossa missão, e não ao meu desempenho como um mulherengo!
Seu capacete estava dependurado no arção dianteiro da sua sela. Soltou-o, apertando-o sobre a cabeça com a tira de couro, prendendo, com todo o cuidado, a trança de guerreiro para não o atrapalhar. Beltran seguiu seu exemplo com movimentos lentos. O rosto dele estava esquálido e Beltran sentiu uma simpatia momentânea, recordando-se da conversa que tiveram na véspera à noite; porém não contava com tempo para isto agora.
Cavalgou rumo à retaguarda ao longo das fileiras, verificando o equipamento de cada um dos homens, dizendo uma palavra para cada um. Seu estômago estava retesado e sentiu-se cercado, como sempre, pelo perigo.
— Aproximar-nos-emos o máximo possível do topo da colina, sem nos deixarmos ver — disse ele —, e aguardaremos até que Mestre Gareth nos dê seu sinal. Então, trataremos de investir contra eles, o mais rápido possível, e procuraremos dominá-los de surpresa.
Um dos homens resmungou:
— Se os laranzus deles estiverem todos dormindo!
Bard disse:
— Caso eles disponham de pássaros-sentinela ou feitiçaria, observando-nos, talvez não os possamos pegar inteiramente de surpresa. Contudo, não poderão saber, por antecipação, quantos somos de fato, ou com que empenho combateremos! Lembrem-se, homens, eles são mercenários de Drytown, esta guerra nada representa para eles e a neve é nossa melhor aliada contra eles, pois não estão habituados com ela.
— Nós também não estamos — protestou um homem nas fileiras. — Homens sensatos não combatem na neve!
— Preferem deixar que este clingfire atravesse a fronteira? Se eles podem transportar um clingfire no inverno, nós o podemos capturar — afirmou Bard, asperamente. — Muito bem, rapazes, cessem já todas as conversas, podem nos ouvir e quero surpreendê-los por completo — adiantou-se na direção de Mestre Gareth, falando: — Tente descobrir quantos homens estão protegendo as carroças.
Mestre Gareth apontou para Mirella:
— Já fiz isto, senhor. Não consigo contar mais do que cinqüenta; isto sem incluir os condutores, que talvez estejam armados, mas que podem estar com as mãos ocupadas com seus animais.
Bard concordou com um movimento de cabeça. Chamou dois homens experientes, os melhores cavaleiros do grupo, e disse:
— Vocês dois, imediatamente antes de atacarmos, tomem seus escudos para se proteger e desçam a encosta rumo à cabeceira da caravana; soltem os animais e procurem debandá-los de volta na direção do séquito. Isto criará mais confusão ainda. Cavalguem com precaução; talvez os alvejem com flechas.
Eles concordaram. Homens experientes, veteranos de várias campanhas, cada qual usava o cadarço vermelho enrolado em volta da sua trança de guerreiro. Um colocou o capacete na cabeça e arreganhou os dentes, soltando o punhal que levava preso à cintura:
— Isto é melhor do que uma espada para este tipo de trabalho.
— Mestre Gareth — falou Bard —, sua parte está feita e muito bem-feita, por sinal. Pode ficar aqui com as mulheres. De qualquer forma não precisa nos acompanhar quando descermos para atacar. Se jogarem feitiços contra nós, o senhor se fará necessário para lançar os seus encantamentos contra as bruxarias deles, o que será muito ruim numa batalha, e pouco útil.
— Senhor — retrucou o laranzu —, sei qual o meu papel num combate. E o mesmo acontece com minha filha e minha filha de criação. Com todo o respeito que lhe é devido, senhor, cuide de seus guerreiros, e deixe que de minha gente trato eu.
Bard encolheu os ombros:
— Então, que seja assim, senhor. Não disporemos de tempo para cuidar de vocês quando o combate começar.
Seus olhos encontraram-se com os de Melora e sentiu-se, inesperadamente, perturbado ao pensar que ela iria desarmada, apenas com o punhal, montada no seu burrico, envolver-se no combate pesado. Porém, o que podia ele fazer? Ela deixara bem claro que não precisaria de sua proteção, de modo algum.
Todavia, olhou para ela, perturbado, sentindo o temor crescer. Ele pulsava através dele como uma coisa viva, completa, um terror irracional. Viu a carne sendo arrancada viva de seus ossos, viu-a sendo arrastada para longe, acorrentada, bandidos de Drytown disputando seu corpo mutilado, viu seu irmão de criação Beltran ferido e caído ao chão... Viu-se chorando de terror. Um dos homens nas fileiras berrou, um som agudo, pungente de puro pânico.
— Ah, não... vejam como sobe, o demônio...
Bard ergueu a cabeça rápido, vendo a escuridão pairando sobre eles, fechada e terrível, investindo contra eles, descendo, descendo; ouviu Mirella gritar alto... labaredas crepitavam sobre eles e ele se encolheu, afastando-se dali, sentindo o bafo destruidor do fogo...
De repente, a realidade apoderou-se dele; nada cheirava a queimado ou a chamuscado.
— Mantenham as fileiras, soldados — gritou. — É uma ilusão, um espetáculo para aterrorizar criancinhas... não é pior do que os fogos num dia de solstício de verão! Vamos, homens, isto é o melhor que podem fazer? Se pudessem incendiariam uma floresta de verdade, mas esta coisa não pode queimar ninguém; nada se incendiará na neve... vamos! — gritava, sabendo que a ação era a melhor coisa para fazer desaparecer a ilusão. — Atacar! Desçam a colina, vocês aí! — esporeou sua montaria, sentiu-a deslanchar-se num galope, alcançar o cume da colina e olhou para baixo, finalmente, para as carroças. Havia quatro delas, e viu seus homens em disparada, precipitando-se rápidos para baixo, cortar as rédeas dos animais de carga, açoitá-los com seus longos chicotes. Berrando, os animais desembestaram num galope desabrido; uma das carroças desequilibrou-se e virou de rodas para cima, fazendo um barulhão. Bard berrou e prosseguiu no galope. Um homem de Drytown, alto e esquálido, com cabelos louros e soltos, ergueu-se com uma lança muito comprida, fazendo pontaria contra seu cavalo. Bard inclinou-se e atirou-o ao chão. Com o canto dos olhos viu Beltran alcançar no galope um dos homens de Drytown, que tropeçou, rolou e gritou sob as patas de seu cavalo. Depois perdeu de vista o irmão de criação quando três inimigos investiram, juntos, contra ele.
Mais tarde, nunca mais conseguiu se recordar de nada com relação àquela batalha; apenas o barulho, o sangue espalhado sobre a neve, um frio sufocante, e que através de tudo isto a neve continuava a cair. Em algum momento, seu cavalo tropeçou, ele caiu e se viu combatendo a pé. Não fazia idéia de contra quantos lutara, ou se os tinha matado ou apenas colocado-os em debandada. Num determinado momento viu Beltran caído, enfrentando dois mercenários imensos e disparou através da neve, sentindo suas botas encharcando-se, desembainhando o punhal e aniquilando um dos homens; depois a batalha tornou a separá-los. Em seguida, estava de pé numa das carroças, gritando para seus homens se reagruparem ali, para defenderem as carroças. Ao redor deles havia o barulho do combate, as batidas de espadas e punhais, os gritos dos feridos e dos cavalos que morriam.
Então tudo ficou em silêncio, e Bard viu seus homens rumando com dificuldade para junto das carroças, através da neve, reunindo-se em volta delas. Viu, aliviado, que Beltran, apesar de seu rosto estar sangrando sob o capacete, permanecia de pé. Mandou um de seus homens fazer um levantamento dos mortos e feridos e foi, acompanhado por Mestre Gareth, inspecionar as carroças. Pensava como haveria de se sentir um idiota completo se aqueles barris contivessem frutas secas para a intendência do exército, em vez do clingfire que lhes tinha prometido.
Colocou os pés numa das carroças e, com cautela, destampou um dos barris. Sentiu o cheiro amargo e acre, balançando a cabeça com tristeza. Sim, era clingfire, a substância terrível que, uma vez acesa, não parava de queimar o que quer que tocasse, queimando através das roupas, carne e ossos... Não era uma substância presente normalmente na natureza; era fabricada por feitiçaria. Ele e seus homens haviam tido sorte, pois os mercenários de Drytown tinham pensado, provavelmente, que ele não se inflamaria sobre a neve. Ou talvez não lhes tivessem comunicado o que estavam protegendo; algumas vezes, eram usadas flechas com as pontas cobertas com o clingfire para atingir os cavalos dos soldados num campo, um recurso cruel e nada militar, pois os animais, enlouquecidos pela queimadura, ficavam furiosos e investiam às cegas contra tudo e contra todos, causando maiores prejuízos do que os incêndios.
Destacou doze homens em condições ou ligeiramente feridos, para montarem guarda às carroças, colocando-os sob as ordens de Mestre Gareth. Constatou, aliviado, que Melora estava bem, apesar de seu rosto estar todo salpicado de sangue.
— Um homem investiu contra mim — disse ela com toda a tranqüilidade —, e apunhalei-o. O sangue é dele, não meu.
Ele mandou que outros três homens arrebanhassem os cavalos desaparecidos. Dos mercenários que não haviam fugido, os mais feridos, em piores condições, eram mortos para acabar com seus padecimentos. Aqueles que permaneciam em condições de montar, ou até mesmo correr, tinham sumido.
Estava voltando para fazer um levantamento final, a fim de verificar quantos animais de carga podiam ser encontrados, pois não poderiam deslocar as carroças sem eles, quando ouviu um berro inesperado às suas costas e deparou com um mercenário alto, disparando na sua direção, portando a espada e o punhal. O homem, é claro, estivera escondido por trás das carroças. Sangrava de um ferimento grande na perna, porém aparou o golpe da espada de Bard, atacando-o sob a sua guarda com um punhal. Bard conseguiu afastá-lo, atirou a espada ao solo, agarrou seu punhal preso ao cinto. Em seguida os dois estavam envoltos num duelo mortal, lutando, inclinando-se, os punhais erguidos, tesourando a garganta de Bard. Este, com a mão livre da espada, atirou para o ar os dois punhais, agarrou o seu na queda e enfiou-o, com violência, nas costelas do homem. Ele berrou, ainda lutando, e morreu.
Tremendo todo, ainda ressentido com o choque do ataque de surpresa, Bard apanhou sua espada e colocou-a na bainha; inclinou-se para retirar seu punhal enfiado no corpo do inimigo, porém ele estava preso numa das vértebras e resistiu a todas as tentativas feitas para tirá-lo dali. Finalmente, riu desconsolado e disse:
— Enterrem-no com o punhal. Que ele o leve para os infernos de Zandru. No entanto, ficarei com o dele em troca.
Apanhou o punhal do mercenário, uma arma finamente enfeitada, com uma lâmina de metal escuro e o cabo trabalhado em cobre e pedras verdes. Olhou para a arma de modo apreciativo.
— Era um homem corajoso — comentou, e enfiou o punhal na sua bainha.
Foi necessário todo o resto do dia para arrebanhar os animais de carga, reunir as carroças e enterrar os três homens que tinham perdido. Mais sete deles estavam feridos com alguma gravidade; um destes, Bard sabia, não sobreviveria de modo algum à longa viagem de retorno às Astúrias, fato que o deixou triste. Mestre Gareth apresentava um ferimento na coxa, porém declarou que, possivelmente, estaria em condições de montar no dia seguinte.
Através de tudo isto, com um inclemente silêncio e justiça, a neve continuou a cair. O curto dia outonal transformavase logo em noite. Os homens de Bard vasculharam as carroças em busca de melhores provisões e prepararam um banquete. Um dos animais de carga estava com a perna fraturada; um dos homens que tinha experiência como açougueiro, desossou-o de forma correta, e colocou sua carcaça para assar. Os mercenários de Drytown também levavam uma grande quantidade de vinho, a bebida traiçoeira, profundamente doce, de Ardcarran, e Bard autorizou seus homens a beberem o quanto desejassem, pois o pássaro-sentinela e a Visão de Mirella confirmaram que não havia inimigos nas proximidades. Sentaram-se, cantaram músicas barulhentas e jactaram-se do que tinha sido feito em combate. Bard sentou-se e ficou observando-os.
Melora, de pé atrás dele e envolta no seu manto, falou:
— Fico me perguntando como eles podem ficar sentados assim, rindo e cantando, depois de um dia de sangue e morticínio, com tantos de seus amigos, e até seus inimigos, mortos por aí.
Bard respondeu:
— Ora, damisela, está com medo dos fantasmas dos mortos? Acha que os mortos perambulam por aí, ciumentos do divertimento dos vivos?
Ela balançou a cabeça sem nada comentar. Depois disse:
— Não. Porém, para mim este deveria ser um momento de luto.
— A senhora não é um soldado. Para um guerreiro, cada batalha à qual consegue sobreviver é uma ocasião para se alegrar por ainda continuar vivo. E, portanto, festejam, cantam, bebem, banqueteiam-se. E se estivéssemos em marcha com um exército regular, não com uma pilhagem isolada como esta, eles haveriam de se divertir com as seguidoras do acampamento, também, ou rumariam para a cidade mais próxima à procura de mulheres.
— Pelo menos não há cidades nas proximidades para eles pilharem e violentarem as mulheres... — retrucou ela, dando de ombros.
— Por que, damisela, se os homens arriscam a vida, é o destino da guerra; por que deveriam ficar as mulheres imunes a este destino? A maioria das mulheres aceita isto com bastante tranqüilidade — afirmou ele rindo e notou que ela não afastou o olhar, nem sorriu com afetação, ou com risinhos reprimidos, como teria feito a maior parte das mulheres que conhecia, chocadas, ou fingindo estarem chocadas.
Ela se limitou a falar com toda a serenidade:
— Acho que é assim mesmo; o excitamento, o alívio de estar vivo, em vez de morto, o choque geral da batalha... não tinha pensado nisto. Contudo, não teria aceito isto com tranqüilidade se os mercenários tivessem saído vencedores. Estou muito contente por não ter sido assim; contente por ainda estar viva. — Ela já se achava bastante próxima dele, de modo que podia sentir um perfume suave que se desprendia de seus cabelos e do manto. — Estava apavorada, com medo, caso a batalha não corresse bem para nós, de que não tivesse coragem para me suicidar, mas aceitaria... a devastação, o cativeiro, o estupro... ao invés da morte... ela me pareceu horrenda enquanto estava aqui e via os homens morrendo...
Ele se virou e segurou sua mão entre as dele; ela não protestou. Falou numa voz bem baixa:
— Estou contente por ainda estar viva, Melora.
— Eu também — falou ela, baixinho.
Bard puxou-a para junto e beijou-a, sentindo, assombrado, como era suave a sensação de sentir seu corpo pesado e os seios volumosos de encontro a ele, como eram mornos seus lábios sob os dele. Pôde sentir que ela se entregava toda àquele beijo; porém ela recuou um pouco e disse com doçura:
— Não, Bard, eu lhe imploro. Aqui não, não desta maneira, não com todos estes homens a nossa volta... Não o repeliria, dou-lhe minha palavra, mas assim não; disseram-me... não é direito...
Bard largou-a com relutância. Poderia amá-la com tamanha facilidade, pensou. Não é bonita, mas é tão sensível, tão doce... e toda a excitação refreada naquele dia explodiu em seu íntimo. E, mesmo assim, ele sabia que ela estava com a razão. Onde não havia mulheres à mão para os outros homens, seria inteiramente contrário à decência e aos bons costumes se o comandante tivesse uma; Bard era um soldado e sabia que não devia contar com nenhum privilégio que não pudesse dividir com seus subordinados. A espontaneidade demonstrada por ela só servia para tornar as coisas ainda piores. Nunca tinha se sentido assim, tão próximo a qualquer mulher.
Contudo... inspirou profundamente com resignação. Disse:
— O destino da guerra, Melora. Talvez... um dia...
— Talvez — retrucou ela suavemente, estendendo-lhe a mão e fitando-o dentro dos olhos. Parecia a Bard que nunca tinha desejado outra mulher com tamanha intensidade. Perto dela, todas as mulheres que conhecera eram como que crianças, Lisarda nada mais significava do que uma menininha brincando com suas bonecas, até mesmo Carlina, infantil e imatura. E, no entanto, para sua surpresa, não tinha o menor desejo de insistir na questão. Sabia, muitíssimo bem, que poderia lhe lançar uma compulsão, de modo que iria, sem ser vista por nenhum dos homens, para a sua cama depois que todo o acampamento estivesse dormindo; e, no entanto, só o fato de pensar nisto deixou-o repleto de asco. Desejava-a exatamente como era, todo o seu eu, de livre e espontânea vontade, desejando-o. Sabia que se possuísse apenas o corpo dela, tudo aquilo que a fazia ser Melora desapareceria. Afinal de contas, o corpo dela nada mais era além daquele de uma mulher gorda e deselegante; jovem, porém já barriguda e largada. Era algo mais que a tornava muito mais desejável para ele e, por um momento, ficou imaginando; então levantou o olhar para ela, formulando-lhe uma pergunta à queima-roupa:
— Você colocou um encanto em mim, Melora?
Ela ergueu as mãos, colocando-as em suas faces, os dedos roliços fechados em torno de suas maçãs do rosto com uma profunda ternura e olhou-o bem dentro dos olhos. Além da fogueira os homens cantavam uma canção barulhenta:
Quatro-e-vinte leroni foram para Ardcarran,
Quando retornaram, não puderam
usar seu laran...
— Oh, não, Bard — respondeu Melora, com muita delicadeza. — Apenas temos afinidades, você e eu; fomos muito sinceros um com o outro, e isto é muito raro entre um homem e uma mulher. Amo-o muito; gostaria que as coisas fossem diferentes, que estivéssemos em algum outro lugar esta noite, e não aqui. — Inclinou-se e tocou os lábios dele com os seus com muita delicadeza, não com desejo, mas com uma ternura intensa que lhe causou um prazer maior do que a mais louca das paixões. — Boa noite, meu querido amigo.
Ele apertou os dedos dela e deixou que se fosse, observando-a afastar-se, com pesar e tristeza que lhe eram desconhecidos.
Todos os rastreadores vieram, o local
botava gente pelo ladrão;
Nós os observamos fazendo-o, balançando-se
sob os raios de luz.
Quatro-e-vinte fazendeiros, carregando sacos
de castanhas;
Não conseguiam desfazer os nós...
Beltran falou às costas dele:
— Parecem estar se divertindo. Sabem alguns versos novos que jamais ouvi — riu. — Lembro-me quando nossos preceptores nos bateram por termos copiado os versos mais indecentes, dentre os que havia no livro de Carlina.
Bard retrucou, contente por ter algo mais em que pensar:
— Recordo-me de você lhe dizendo que isto comprovava que as meninas não deviam aprender a ler.
— Porém, pouco depois, abandonei a leitura em favor das mulheres, que não têm nada mais importante para fazer — disse Beltran —, embora eu suponha que terei que assinar os documentos de estado e coisas assim. — Inclinou-se sobre Bard; seu hálito estava adocicado e exalava o cheiro de vinho. Bard percebeu que o rapaz andara bebendo, talvez um pouco além da conta. — É uma boa noite para se ficar bêbado.
— Como está o seu ferimento?
Beltran soltou um risinho e disse:
— Ferido, que inferno! Meu cavalo disparou comigo colina abaixo, escorreguei da sela, bati com o rosto de encontro ao arção dianteiro e consegui um sangramento nasal; por isto combati com o sangue escorrendo por meu rosto! Acho que devo ter ficado com um aspecto muito assustador! — meteu-se sob o encerado de Bard, montado com a abertura virada para a fogueira e sentou-se ali. O encerado sobre suas cabeças mantinha-os protegidos contra a neve. — Até que enfim! Parece que o tempo está começando a clarear.
— Precisamos descobrir se há alguns homens que saibam, ou tenham capacidade para conduzir carroças e animais de carga.
Beltran bocejou, um bocejo imenso:
— Agora que tudo já terminou, acho que seria capaz de dormir dez dias seguidos. Olhe, ainda é cedo, porém a maioria dos homens está tão embriagada quanto os macacos no solstício de inverno.
— O que mais você espera que eles façam, sem nenhuma mulher por aí?
Beltran deu de ombros:
— Não invejo a embriaguez deles. Entre nós dois, Bard, sinto-me tão satisfeito... Recordo-me que depois da batalha de Snow Glen, uma turma de jovens arrastou-me com eles até um prostíbulo na cidade... — fez uma careta de nojo. — Não tenho inclinação para este tipo de coisas.
— Pessoalmente, prefiro companhias voluntárias, não aprecio muito as mulheres pagas — concordou Bard —, se bem que, após uma batalha como esta, duvido muito que percebesse a diferença. — Contudo, em seu íntimo, sabia que não estava dizendo a verdade. Aquela noite ele desejava Melora, e mesmo se tivesse contado com as habilidades de todas as cortesãs de Thendara ou Carcosa, ainda assim a teria escolhido. Será que a preferiria a Carlina? Descobriu que não desejava pensar sobre isto. Carlina era a sua mulher prometida e isto era diferente.
— Não bebeu o suficiente, irmão de criação — disse-lhe e entregou a Bard uma garrafa. Bard levou-a à boca e bebeu um grande e demorado gole, satisfeito por sentir o vinho forte esboroando a dor de saber que Melora o desejava, tanto quanto ele a desejava, e que ele, surpreendendo-se a si mesmo, concordara com que ela se fosse. Será que ela tinha escarnecido dele, considerando-o como um rapaz imaturo, fácil e meigo que receava impor sua vontade a uma mulher? Estava ela se divertindo com ele? Não, ele seria capaz de apostar sua virilidade na honestidade dela...
Um dos homens estava tocando um rryl. Chamaram Mestre Gareth aos gritos para ir se juntar a eles e cantar, porém Melora saiu em silêncio de sua tenda.
— Meu pai pede que o desculpem. Está sentindo dores muito fortes no ferimento e não tem condições de cantar.
— A senhora não gostaria de ficar conosco e cantar? — Mas o tom do convite era muito respeitoso e Melora sacudiu a cabeça. — Se me permitem, levarei um copo de vinho para meu pai. Talvez isto o ajude a conciliar o sono; porém minha irmã e eu devemos cuidar dele e, portanto, não beberemos. Assim mesmo, muito obrigada de qualquer modo.
Os olhos dela procuraram por Bard no local onde ele se achava sentado no escuro, do outro lado da fogueira e ele pensou que havia uma nova tristeza neles.
— Não pensei que os ferimentos fossem sérios — comentou Bard.
— Também pensei isto — anuiu Beltran —, muito embora já tenha ouvido dizer que os mercenários de Drytown, às vezes, colocam venenos de um tipo ou outro nas lâminas de suas armas. Contudo, nunca ouvi comentários a respeito de que alguém tivesse morrido por isto — e tornou a escancarar a boca num bocejo enorme.
Os homens reunidos em volta da fogueira cantaram uma balada depois da outra. Finalmente, o fogo extinguiu-se e foi coberto, e os homens, em grupos de dois, três ou quatro, devido ao frio, acomodaram-se debaixo dos cobertores. Bard dirigiu-se em silêncio para a tenda dividida pelas mulheres e, agora, pelo laranza ferido.
— Como está, Mestre Gareth? — perguntou, parando junto à entrada.
— O ferimento está muito inflamado, mas ele está dormindo — sussurrou Mirella, ajoelhando-se na entrada. — Agradeço o seu interesse.
— Melora está aí?
Mirella olhou para ele, seus olhos estavam arregalados e sérios e, de repente, ficou sabendo que Melora tinha feito confidências a ela, ou teria a moça mais jovem lido a mente e os pensamentos de Melora?
— Ela está dormindo, senhor — hesitou Mirella, depois deixou que as palavras saíssem de sua boca como uma enxurrada. — Chorou até adormecer, Bard — seus olhos se encontraram, cheios de simpatia e calor. Ela tocou, de leve, na mão dele. Ele descobriu que estava falando com um nó na garganta.
— Boa noite, Mirella.
— Boa noite, meu amigo — respondeu ela mansamente, e ele se deu conta de que ela não usara aquela palavra de modo impensado. Dominado por uma estranha mistura de amargura e zelo, afastou-se, voltando para junto da fogueira que se apagava e para a escuridão da meia tenda que dividia com Beltran. Em silêncio, tirou as botas, o cinturão da espada, desamarrou a tira que prendia o punhal à sua cintura.
— Você é um bredin (* Bredin: irmão. (N. da T.).) para um bandido de Drytown, Bard — Beltran soltou uma gargalhada na escuridão. — Isto porque vocês trocaram os punhais, um com o outro...
— Duvido muito que algum dia venha usar esta arma, pois ela é leve demais para a minha mão, porém é maravilhosamente trabalhada em cobre e pedras preciosas, e é uma verdadeira presa de guerra; portanto, pretendo usá-la em grandes ocasiões e despertar a inveja de todos — e enfiou a arma embaixo de uma dobra do encerado. — Pobre diabo, está sofrendo mais frio esta noite do que nós.
Deitaram-se, lado a lado. Os pensamentos de Bard estavam junto da mulher que tinha chorado até adormecer, do outro lado do acampamento. Ele havia bebido o suficiente apenas para amortecer a dor, mas não para fazê-la desaparecer por completo.
Beltran falou na escuridão:
— Não senti tanto medo quanto imaginei que iria sentir. Agora que tudo acabou, não me parece mais tão assustador...
— E nunca o é — disse Bard. — Depois é simples, até hilariante, e tudo que se quer é um drinque, ou uma mulher, ou ambos...
— Eu não — retrucou Beltran. — Acho que uma mulher me deixaria com asco a esta altura; preferiria beber com meus companheiros. O que têm as mulheres a ver com a guerra?
— Ora, escute, você ainda é jovem demais — disse Bard com carinho e apertou a mão do irmão de criação entre as dele. Sem saber se era seu o pensamento ou de Beltran, uma idéia vaga atravessou sua mente: Gostaria que Geremy estivesse conosco... Já quase dormindo, recordou-se de noites quando todos os três tinham dormido juntos assim, durante viagens de caça, vigiando o fogo; experiências confusas, infantis na escuridão; lembranças agradáveis, suavizando as ferroadas de seu sofrimento por causa de Melora; tinha amigos e companheiros leais, irmãos de criação que o amavam bastante.
Praticamente dormindo, meio sonhando, sentiu o corpo de Beltran comprimido forte contra o dele e o menino sussurrou:
— Eu... eu também seria capaz de me comprometer com você, irmão de criação; vamos trocar facas, também?
Bard, desperto pela indignação, arregalou os olhos e explodiu numa gargalhada:
— Pela deusa! — exclamou rudemente. — Você é mais criança ainda do que eu pensava, Beltran! Ainda pensa que sou um garotinho para me divertir com garotos? Ou imagina que por ser o irmão de Carlina seria capaz de possuí-lo pensando que fosse ela? — não conseguia parar de rir. — Ora, ora, quem teria pensado numa coisa assim... que Geremy Hastur é ainda tão infantil a ponto de se divertir com seus companheiros! — usara uma palavra grosseira, uma gíria de soldados, e ouviu o choro estrangulado de Beltran na escuridão, devido à vergonha e ao choque que sentiu. — Ora, não me importa o que Geremy prefere fazer, Beltran, não aprecio brincadeiras infantis deste tipo. Não pode se comportar como um homem?
Mesmo na escuridão pôde ver que o rosto de Beltran se obscurecia de tanta raiva. O garoto ficou sem ar, querendo chorar e sentou-se. Disse, por entre um soluço de revolta:
— Que vá para o inferno, você, filho bastardo de uma prostituta! Juro, eu o matarei por isto, Bard...
— O quê, do amor para o ódio, tão depressa? — zombou Bard. — Você ainda está bêbado, bredillu. Vamos, irmãozinho, é apenas uma brincadeira, algum dia não ligará mais para isto. Deite-se, torne a dormir e não seja bobo. — Agora, falava com delicadeza, pois o choque inicial tinha passado. — Está tudo bem.
Porém Beltran estava sentado, ereto, na escuridão, o corpo todo tenso devido à raiva. Disse por entre os dentes:
— Você escarneceu de mim, você... Bard mac Fianna, eu juro, rosas brotarão no nono inferno de Zandru antes que você leve Carlina para a cama!
Ergueu-se e caminhou a passos largos, agarrando suas botas e enfiando os pés dentro delas; e Bard, chocado, deixou-se ficar sentado olhando estatelado para ele.
Sabia repentinamente sóbrio como que por um punhado da neve que ainda caía, que havia cometido um grave erro. Devia ter-se lembrado do quanto Beltran era realmente jovem, e devia tê-lo recusado com mais delicadeza. O que o garoto desejava, sem dúvida, era apenas carinho e proximidade; como o próprio Bard desejara. Não devia ter zombado da virilidade do garoto. Sentiu um impulso repentino de sair correndo atrás de seu irmão de criação, pedir-lhe desculpas por ter escarnecido dele, acabar com a discussão.
Porém a lembrança da revolta de Beltran deixou-o estarrecido. Chamou-me de filho de uma prostituta, Bard mac Fianna, não di Asturien como tenho direito agora. Se bem que bem dentro de seu íntimo soubesse que Beltran tinha apenas deixado escapar o primeiro insulto que lhe tinha chegado à cabeça, a verdade daquilo o magoava demais. Zangado, rangendo os dentes, tornou a se deitar. Pouco lhe importava que o Príncipe Beltran fosse dormir entre as carroças, ou em meio aos cavalos!
Na noite do solstício de inverno, Ardrin das Astúrias comemorou sua vitória sobre o Duque de Hammerfell.
O inverno estava estranhamente suave, e o povo vinha de todas as direções. O filho do duque encontrava-se lá; Lorde Hammerfell tinha-o mandado para ser educado na Corte das Astúrias — pelo menos era o que se comentava. Todos eles sabiam, bem como o garoto, que ele era um refém para a paz entre Hammerfell e Astúrias. Não obstante, o Rei Ardrin, que era um homem bom, apresentou-o como seu parente, e era claro que ele estava sendo muito bem tratado e recebendo o melhor de tudo, desde preceptores e governantas, às aulas de manejo da espada e de línguas, uma educação adequada a um príncipe. A mesma educação, pensava Bard, olhando para a criança envergando suas roupas complicadas para o festival, que ele próprio tinha recebido, ao lado de Geremy Hastur e do Príncipe Beltran.
— Apesar de tudo — disse Carlina —, sinto pena do menino, mandado para longe de seu lar tão pequeno ainda. Você era mais velho, Bard. Já completara seus doze anos e já era tão alto quanto um homem feito. Que idade tem o pequeno Garris... oito, ou já fez nove?
— Creio que oito — respondeu Bard, pensando que seu pai poderia ter comparecido, ou poderia, se quisesse, ter mandado o filho mais moço e legítimo, Alaric. Não podia considerar o mau tempo como uma desculpa e Alaric já possuía idade suficiente para ser enviado para ali a fim de ser educado.
— Carlina, gostaria de dançar novamente?
— Ainda não, acho — respondeu, abanando-se. Usava um vestido verde, apenas um pouquinho menos trabalhado do que o que tinha usado no solstício de verão, para a festa de noivado; ele achou que aquela cor não lhe ficava bem, pois a deixava muito pálida e descorada.
Geremy aproximou-se deles e disse:
— Carlie, você ainda não dançou comigo. Deixe de bobagens, Bard, você já teve a sua vez e Ginevra não se encontra aqui. Ela partiu para passar as férias com a mãe e não tenho certeza se voltará. A mãe discutiu com a Rainha Ariel...
— Geremy, que vergonha, bancando o bisbilhoteiro! — exclamou Carlina, batendo nele de brincadeira com seu leque. — Tenho certeza de que minha mãe e Lady Marguerida logo, logo, farão as pazes e, então, teremos Ginevra de volta ao nosso lado. Bard, vá dançar com uma das damas de minha mãe. Não pode ficar a noite toda de pé ao meu lado! Há muitas damas ansiosas para dançarem com o próprio porta-estandarte do rei!
— A maioria delas não quer dançar comigo, sou tão sem jeito! — retrucou Bard com mau humor.
— Ainda assim, não podemos passar a noite toda aqui! Vá e dance com Lady Dara. Ela pessoalmente é tão desajeitada, que você, ao lado dela, ficará gracioso como um chieri; além disto, ela jamais perceberá se pisar no pé dela, pois é tão gorda que não está, por assim dizer, sentindo os próprios pés há vinte anos...
— E você me reprova por estar fazendo fofoca, Carlie? — riu Geremy e pegou o braço da irmã de criação. — Vamos dançar, breda. Quer dizer que já está dando ordens ao Bard como se ele já fosse seu marido?
— Ora, ele é qualquer coisa menos isto — retrucou Carlina, soltando uma gargalhada. — Creio que temos direito de já nos darmos ordens um ao outro! — sorriu com alegria para Bard e afastou-se apoiada no braço de Geremy.
Vendo-se só, Bard não fez o que ela lhe aconselhara, ou seja, se oferecer à desgraciosa Lady Dara para ser seu parceiro. Rumou para o bufê e serviu-se de um copo de vinho. O Rei Ardrin e um grupo de seus conselheiros encontravam-se de pé ali e, amistosamente, afastou-se para deixar que Bard se juntasse a eles.
— Um bom festival para você, filho de criação.
— E para o senhor, parente — respondeu Bard; ele só se dirigia ao rei como pai de criação quando se achavam a sós.
— Estava narrando para Lorde Edelweiss o que me relatou sobre aquele tipo que vive próximo a Moray's Mill — disse o rei. — Trata-se de um caos e uma anarquia que tanta gente viva sem ter um senhor adequado. Quando chegar o degelo da primavera, creio que devemos ir até lá e colocar as coisas em seus devidos lugares. Se cada aldeiazinha desejar ser independente e fazer suas próprias leis, haverá fronteiras por todos os lados, e um homem não poderá cavalgar a metade de um dia sem ter que lidar com um novo conjunto de leis.
— O rapaz sabe onde tem a cabeça — comentou Lorde Edelweiss, um homem grisalho vestido como um estróina empertigado, e, por trás de Bard, ele ouviu o velho dizer: — É uma lástima que seu filho mais velho não revele um talento como este em estratégia e artes marciais. Esperemos que tenha algum jeito para governar, ou aquele rapaz ali estará com o reino em suas mãos antes de completar os vinte e cinco anos!
O Rei Ardrin disse resolutamente:
— Bard é um dedicado irmão de criação de Beltran: são bredin. Nada devo temer se Beltran estiver nas mãos de Bard.
Bard mordeu os lábios, perturbado. Ele e Beltran praticamente quase nem se falavam mais desde aquela batalha e seus resultados; Beltran, hoje à noite, não tinha lhe dado nenhum presente de solstício de inverno, embora tivesse enviado para o príncipe um ovo de seu melhor falcão caçador, para que fosse chocado por uma galinha do palácio; um presente atencioso e que, normalmente, teria provocado os mais calorosos agradecimentos por parte de seu irmão de criação. Na verdade, parecia que Beltran o estava evitando.
Mais uma vez, Bard amaldiçoou-se por sua loucura em discutir com Beltran. Magoado devido à própria frustração, à separação forçada de Melora — pois sabia que ela o desejara tanto quanto ele a ela —, ele tinha descontado em Beltran porque o garoto era o objeto mais conveniente e à mão contra o qual atirar a sua fúria. Deveria, ao contrário, ter se aproveitado da oportunidade a fim de estreitar os laços que o prendiam ao jovem príncipe. Que inferno! Tinha perdido a antiga proximidade! Ora, pelo menos Beltran ainda não havia envenenado Geremy contra ele... esperava. Era difícil dizer o que se passava por trás do rosto sombrio de Geremy, e embora fosse apenas por ele estar com saudades de Ginevra, Bard achou aquilo muito difícil de aceitar. Eles não estavam comprometidos e Ginevra não era suficientemente bem-nascida para ser a mulher adequada ao herdeiro de Hastur de Carcosa.
Talvez aquela noite devesse procurar Beltran, apresentar-lhe suas desculpas e explicar ao irmão de criação por que fora tão duro com ele... Seu orgulho exacerbado aviltou-se diante deste pensamento. Contudo, uma disputa séria e irreparável com o príncipe podia causar danos à sua carreira, e se alguns dos conselheiros do rei já estavam se perguntando se Bard não se encontrava perigosamente junto ao trono — ele era, afinal de contas, o filho mais velho do próprio irmão do rei —, então era melhor se certificar de que Beltran não o considerasse como uma ameaça!
No entanto, antes de poder colocar sua resolução em ação, uma voz disse jovialmente junto ao seu ombro:
— Um bom festival para o senhor, Dom Bard.
Bard virou-se e deparou com o laranzu mais velho.
— E para o senhor também, Mestre Gareth. Senhoras — agradeceu ele, inclinando-se para Mirella, adorável nos seus drapeados em gaze azul-clara, e para Melona que usava um vestido verde decotado com uma gargantilha larga; o vestido, tão amplo quanto o de uma mulher grávida, fazia com que seu pesado corpo parecesse realmente com o de uma mulher naquele estado, porém a tonalidade exaltava a coloração maravilhosa de sua pele e fazia seus cabelos ruivos resplandecerem.
— O senhor não está dançando, Mestre Gareth?
O velho sacudiu a cabeça com um sorriso pesaroso. E falou:
— Não o posso fazer — e Bard viu que ele se apoiava numa bengala resistente. — Uma recordação, senhor, daquele combate com os mercenários de Drytown.
— Mas um ferimento desses já devia estar curado há muito tempo — observou Bard, preocupado, e ele deu de ombros.
— Creio que talvez houvesse veneno naquele punhal; caso não tivesse se diluído antes em outros ferimentos, teria perdido a perna — explicou Mestre Gareth. — Nunca cicatrizou por completo e, agora, começo a pensar que jamais ficarei curado. Nem mesmo laran adiantou. Contudo, não é o bastante para me manter afastado do festival — disse, encerrando o assunto com educação.
O jovem filho do Duque de Hammerfell apareceu e indagou muito tímido:
— Quer dançar comigo, Lady Mirella?
Ela olhou para seu guardião em busca de sua autorização... Mirella era jovem demais para dançar em bailes públicos, a não ser com seus parentes... mas, evidentemente, Mestre Gareth considerou o garoto jovem demais para que pudesse representar qualquer tipo de ameaça; eles eram apenas duas crianças juntas. Fez um sinal de aprovação, e os dois afastaram-se juntos. O menino era bem mais baixo do que Mirella, de modo que formavam um par um tanto esquisito.
Bard perguntou a Melora:
— Quer me dar a honra, Melora?
Mestre Gareth ergueu ligeiramente as sobrancelhas diante do uso informal do nome dela, porém ela respondeu:
— Claro que sim — e estendeu a mão. Ela era, pensou Bard, provavelmente vários anos mais velha do que ele e ficou surpreso por ela ainda não estar comprometida ou casada.
Após um momento, enquanto dançavam, ele formulou a pergunta e ela lhe respondeu:
— Estou prometida para Neskaya Tower. Morei em Dalereuth por algum tempo; porém eles nos puseram a preparar clingfire, me parece realmente... que leroni devem ser neutras nas guerras. Portanto estou presa a Neskaya, onde o guardião jurou neutralidade em todas as guerras entre os Domains.
— Isto me parece uma péssima escolha — falou Bard. — Se nós devemos combater, por que deveriam as leroni ficar livres das batalhas? Já não usam armas, mesmo em combate. Devem elas viver em paz enquanto todo o resto deve lutar por nossas vidas?
— Alguém deve iniciar a luta pela paz — disse Melora. — Conversei com Varzil e considero-o um grande homem.
Bard encolheu os ombros com desprezo:
— Um idealista enganado, nada mais — retrucou ele. — Eles incendiarão a torre de Neskaya sobre suas cabeças e continuarão guerreando como sempre. Desejo apenas, lady, que a senhora não compartilhe de sua queda.
— Também o espero — anuiu ela, e ficaram dançando em silêncio. Ela era estranhamente leve, deslocando-se como uma aragem.
— Dançando, você fica muito bonita, Melora. Que coisa estranha, quando a vi pela primeira vez, não a achei bonita de forma alguma.
— E agora, que olho para você, vejo que é um homem bonito — disse ela. Não sei o quanto ouviu falar sobre leroni... sou uma telepata e não olho muito para as pessoas, para saber qual seja seu aspecto exterior. Nem tinha a mínima idéia se você era louro ou moreno, quando conversava com você durante a campanha. E agora, você é o porta-estandarte do rei, um homem muito bonito e todas as senhoras me invejam porque você quase nunca as tira para dançar.
Bard pensou que se aquelas palavras tivessem partido de qualquer outra mulher, teriam soado intoleravelmente perigosas e conquistadoras. Melora o fazia de modo muito simples, como qualquer outra coisa.
Dançaram, em silêncio, a antiga simpatia começando a crescer novamente entre eles. Num canto isolado do salão, puxou-a para junto de si e beijou-a. Ela suspirou e deixou-se beijar, porém depois afastou-se dele arrependida.
— Não, meu querido — disse, com toda a delicadeza. — Não permitamos que isto vá tão longe a ponto de não podermos nos separar como amigos, e apenas isto.
— Mas por quê, Melora? Sei que sente a mesma coisa que eu sinto e agora não estamos embaraçados como aconteceu depois da batalha...
Ela o fitou sem rodeios. Disse:
— Aquilo que poderíamos ter feito, se tivesse surgido oportunidade, com o sangue quente e após a excitação e o perigo da batalha, é uma coisa à parte; agora, com o sangue frio, você sabe, e eu também, que não seria conveniente. Você se encontra aqui com a sua mulher prometida; e a Princesa Carlina foi muito complacente para comigo. Seria incapaz de pisar na orla do manto dela diante de seus próprios olhos. Bard, sabe que tenho razão.
Ele o sabia, porém, em seu orgulho ferido, não seria capaz de reconhecê-lo. Despejou sua revolta contra ela de modo violento:
— Qual o homem, a não ser algum pobre coitado, deseja apenas ser amigo de uma mulher?
— Oh, Bard — disse ela, sacudindo a cabeça —, acho que você é dois homens! Um é impiedoso e cruel, sobretudo com as mulheres, e pouco se importa como as fere! O outro é o homem que tive oportunidade de ver, o homem que amo de todo o coração — muito embora não dividirei sua cama com você esta noite, ou em qualquer outra — acrescentou com firmeza. — Porém, desejo de todo o coração, para o bem de Carlina, que seja sempre este outro homem que conheço que se revele para ela. Pois este homem eu trataria com carinho a vida inteira — apertou a mão dele com delicadeza, deu-lhe as costas, afastando-se e, rapidamente, desapareceu na multidão que dançava.
Bard, abandonado, o rosto esfogueado pelo ultraje, tentou seguir sua figura vestida de verde através da multidão; porém ela havia se escondido totalmente dele como se tivesse se evaporado do salão de baile. Ele sentiu o formigamento leve do laran em uso e ficou imaginando se ela não tinha jogado um manto de invisibilidade sobre si mesma, como ele sabia que algumas leroni podiam fazer. Sua raiva e mágoa não tinham limites.
Mulher gorda e idiota! Provavelmente tinha lançado um encanto em cima dele de modo que a desejasse, porque nenhum homem antes jamais o fizera... Ora, Varzil de Neskaya era aceito de bom grado por ela, que ele se dane, e desejou que a torre se incendiasse sobre as cabeças dos dois! Voltou para o bufê e, indignado, bebeu um copo de vinho, e mais outro, sabendo que estava ficando bêbado, sabendo que o Rei Ardrin era um abstêmio e não aprovaria a sua atitude.
Carlina também não; quando ela tornou a se encontrar com ele, havia uma delicada reprovação na sua voz.
— Bard, você andou bebendo mais do que seria conveniente.
— Vai fazer de mim um marido dominado pela mulher antes mesmo do casamento? — explodiu contra ela.
— Oh, meu querido, não fale assim — pediu ela, enrubescendo toda. — Mas meu pai também ficará aborrecido com você. Você não ignora que ele detesta quando qualquer um de seus oficiais mais jovens bebe muito a ponto de não poder se comportar de modo conveniente.
— Fiz algo inconveniente? — indagou ele.
— Não — reconheceu Carlina, sorrindo —, porém, prometa-me, Bard, que não beberá mais.
— A ves ordras, domna — concordou ele —, mas somente se dançar comigo de novo.
Era uma música para se dançar junto novamente, e, com a permissão de que gozava um casal de noivos, ele podia apertá-la com força, não precisava mantê-la a uma distância decorosa como era exigido para a maior parte dos casais. Geremy, observou ele, havia tido o privilégio de dançar com a Rainha Ariel mantendo, na verdade, uma distância respeitosa. Beltran tinha (possivelmente satisfazendo a um pedido de Carlina) tirado a deselegante Lady Dara para dançar. Ela também era graciosa ao dançar, tanto quanto Melora. Seria tão comum para as senhoras um tanto gordas dançarem de um modo tão gracioso? Que inferno! Não ia pensar em Melora agora! Ela podia dançar com seus amigos dos infernos de Zandru, pouco se lhe dava! Puxou Carlina para bem junto dele, sentindo seu corpo delgado, ossudo, em seus braços. Um homem podia se machucar naqueles ossos!
— Bard, não me aperte assim, está me machucando... E não é adequado...
Ele afrouxou os braços, tocado de remorso. Falou:
— Seria incapaz de machucá-la, Carlie, não o faria por nada neste mundo. Machucaria qualquer pessoa ou todas as pessoas, porém nunca você.
A dança terminou. O rei e a rainha, acompanhados pelos nobres mais velhos e honrados da corte, estavam se retirando, para que a sua presença não inibisse os mais jovens nos seus arroubos. Viu que o garoto, filho de Hammerfell, estava sendo retirado do salão pela governanta e que a linda Mirella estava sendo agasalhada com seu manto por Mestre Gareth. O Rei Ardrin pronunciou um rápido discurso, desejando um feliz festival aos mais jovens e autorizando-os a continuarem dançando até o romper do dia, se o desejarem.
Carlina permaneceu ao lado de Bard, sorrindo enquanto seus pais se retiravam. Disse:
— No ano passado eu também fui embora à meia-noite, quando os mais velhos e as crianças foram mandados para a cama. Este ano, acho, eles julgam que como sou noiva não corro nenhum perigo com meu prometido marido para me proteger — seu sorriso era alegre.
E, na verdade, Bard sabia que as comemorações do solstício de inverno, algumas vezes, extrapolavam. Sem dúvida alguma, os mais jovens tornaram-se mais barulhentos depois que os mais velhos e as crianças saíram; bebia-se mais, houve muitas brincadeiras envolvendo beijos ousados e as danças tornaram-se mais estonteantes e menos decorosas. À medida que a noite avançava pela madrugada, mais e mais casais fugiam para a galeria e passagens laterais do castelo, e certa vez Bard e Carlina, ao passarem dançando por um corredor muito longo, depararam com um casal abraçadinho, de modo tão íntimo, que Carlina, mais do que depressa, desviou o olhar. Porém Bard levou-a para uma das galerias.
— Carlina, você já me está prometida. Acho que a maioria dos casais que aqui se encontra e que está comprometido já se afastou — puxou-a para seus braços, apertando-a de encontro ao corpo. — Sabe o que desejo de você, minha prometida esposa. Estamos no solstício de inverno, estamos comprometidos, por que não concluirmos tudo agora, uma vez que a lei nos permite isto? — Sua boca comprimiu a dela; quando ela se virou para respirar, ele murmurou numa voz gutural: — Até mesmo seu pai não haveria de protestar!
— Não, Bard, não e não — retrucou baixinho.
Ele pôde perceber o pânico crescendo no íntimo da moça, mas ela falava a meia voz, procurando, desesperadamente, manter-se calma.
— Conformei-me com este casamento, Bard. Honrarei a vontade de meu pai, prometo-lhe. Mas não... não agora. — Ele percebeu, e isto o magoou profundamente, que ela lutava arduamente para não deixar transparecer seu desalento, sua reação violenta. — Dê-me tempo. Não... agora não, esta noite não.
Ele tinha a impressão de estar ouvindo novamente as palavras ameaçadoras de Beltran: rosas crescerão no nono inferno de Zandru antes de você levar Carlina para a cama!
— Quer dizer que Beltran conseguiu transformar a ameaça que me fez em realidade? — falou ele num tom de voz ríspido.
Melora, também, o tinha recusado, muito embora há quarenta dias o tivesse desejado. Melora era uma telepata; devia ter consciência da discussão mantida com Beltran, sabia que Beltran podia envenenar o rei contra ele; um relacionamento com um cortesão que não gozava dos favores reais não seria nada bom para Melora... Também fora Beltran quem colocara Melora contra ele e, agora, Carlina...
Carlina falou com voz trêmula:
— Não sei sobre o que está falando, Bard. Você andou discutindo com meu irmão?
— E se discuti, isto mudaria o seu modo de pensar a meu respeito? — indagou com amargura. — Será que você também, como todas as mulheres, pretende me provocar como se eu não tivesse virilidade? Você é a minha prometida mulher, por que foge de mim como se eu pretendesse violentá-la?
— Acabou de me dizer, agorinha mesmo, que jamais desejaria me ferir — replicou Carlina, erguendo o olhar para ele, tão amargurada quanto ele. — Isto só é válido quando concordo com tudo aquilo que pretende de mim? Pensa que não seria uma violação apenas por ser eu a sua prometida mulher? Amo-o como irmão de criação e amigo, e se a deusa for benevolente conosco, ainda chegará o dia em que o amarei como o marido que me foi dado por meu pai. Contudo, este momento ainda não chegou; prometeram-me que eu poderia esperar até o solstício do verão. Bard, eu lhe imploro, deixe-me ir!
— Para que seu pai disponha de tempo suficiente para mudar de idéia a meu respeito? Para que Beltran possa envenenar a mente dele contra mim, e entregue-a ao favorito de seu irmão?
— Como ousa dizer uma coisa destas de Geremy? — perguntou, furibunda, e, seja como for, aquele nome ativou as últimas reservas da cólera de Bard.
— Veja só, como se preocupa com a dignidade dele, daquele ombredin, aquele meio-homem...
— Não se refira desta maneira ao meu irmão de criação! — exclamou ela, revoltada.
— Falarei como bem entender e não será uma mulher quem me proibirá de fazê-lo — replicou, indignado.
— Bard, você continua bêbado; quem fala é o vinho e não você — disse ela, mais revoltada ainda, os últimos vestígios de autocontrole desaparecendo.
Tinha deixado que Melora lhe escapasse devido ao respeito que nutria por Carlina! Como ousava ela recusá-lo agora, como se nada representasse para ela? Não seria rejeitado duas vezes na noite do solstício de inverno pelos caprichos malditos de uma mulher! Arrastou-a para a galeria, segurando-a com tanta força, que ela gritou e comprimiu seus lábios contra os dela, ignorando sua luta. Uma mistura de raiva e desejo dominava-o; pela segunda vez, uma mulher que desejava e julgava ter o direito de possuir rejeitava-o, mas, desta feita, não pretendia submeter-se a ela como um cordeirinho, pelo contrário, imporia sua vontade à dela! Que inferno! Ela era sua mulher e naquela noite haveria de possuí-la, voluntariamente se ela preferisse, mas de qualquer jeito faria amor com ela! Ela se debatia em seus braços, num pânico crescente, excitando-o de um modo intolerável.
— Bard, não, não — implorou ela, soluçando. — Assim não, assim não... oh, por favor, por favor...
Bard manteve-a presa, de modo aterrador, sabendo que a estava machucando com a violência de sua posse.
— Então, vamos para o meu quarto! Não me obrigue a forçá-la a ir, Carlina!
Como podia ela se manter indiferente à violenta torrente de desejo que o dominava? Tinha que a fazer sentir aquilo, de qualquer forma! Queria apenas que ela o desejasse tão ardentemente quanto ele a desejava, e ali estava ela, brigando e debatendo-se, como se fosse uma criança mal-amada que ignorasse o que ele queria dela!
Uma mão pousou sobre seu ombro, afastou-se:
— Bard, você está embriagado, ou então está completamente fora de si? — perguntou Geremy, fitando-os consternado. Carlina cobriu o rosto com as mãos, soluçando de alívio e vergonha.
— Vá para o inferno! Como ousa interferir, seu meio-homem...
— Carlina é minha irmã de criação — falou Geremy. — Não permitirei que seja violentada numa festa, nem mesmo por seu prometido marido! Bard, em nome de todos os deuses, vá embora, lave o rosto com água fria, peça desculpas a Carlina e não falaremos mais sobre isto; e, da próxima vez, pare de beber enquanto ainda puder se dominar!
— Vá para o inferno... — protestou Bard, atirando-se com violência contra Geremy, os punhos fechados; Beltran agarrou-o por trás. Disse:
— Não, você não fará isto, Bard. Carlina, você não queria isto, queria?
— Não, não queria — respondeu ela entre soluços.
— Ela é a minha prometida esposa! Não tinha o direito de me rejeitar desta forma... vocês não a ouviram gritando, não é verdade? Com que direito você resolve que ela quer se livrar de mim? Bem que ela estava gostando, até vocês aparecerem para interferir... — exclamou Bard revoltado.
— Agora está mentindo — explodiu Beltran com raiva. — Pois todos aqueles que se encontram neste salão e contem com um pouquinho só de laran devem tê-la ouvido protestando contra você! Vou me certificar de que meu pai venha a saber disto! Seu bastardo desgraçado, tentando conseguir através da força aquilo que jamais haveria de obter voluntariamente...
Bard arrancou o punhal da bainha. As pedras verdes cintilaram sob a luz. Disse entre dentes, bem baixinho:
— Você, seu sodomita intrometido, não se atreva a interferir naquilo que, antes de mais nada, desconhece por completo! Saia do meu caminho...
— Não! — Geremy agarrou o pulso de Bard. — Bard, você está ficando louco? Sacando aço no solstício de inverno, diante de seu príncipe? Beltran, ele está bêbado, não dê ouvidos ao que diz! Bard, vá e cure esta bebedeira; dou-lhe minha palavra de que o rei nunca saberá de nada disto...
— Quer dizer que também está metido nisto e contra mim, você, seu nojento amante de garoto, você e o seu amado — gritou Bard e saltou na direção dele. Geremy afastou-se para o lado, procurando escapar do golpe do punhal, porém Bard, fora de si, atirou-se contra Geremy e os dois despencaram no chão, lutando. Geremy virou o corpo, agarrando seu punhal. Ainda implorava:
— Bard, não... irmão de criação, não faça isto...
Porém Bard não o ouvia, e Geremy viu que tinha que brigar de verdade, ou Bard o mataria. Já tinham brigado antes, quando garotinhos, porém nunca antes com armas de verdade nas mãos. Bard era mais forte do que ele. Deu um golpe, procurando jogar o punhal para o lado, tentando meter seu joelho entre ele mesmo e a lâmina da arma de Bard que já descia. Sentiu sua arma penetrando no braço de Bard, rasgar o couro e arranhar a carne; e, no instante seguinte, o punhal de Bard penetrou fundo na sua coxa, bem próximo à virilha. Ele gritou, de modo estridente, aflito, sentindo a perna amortecida.
Em seguida, uns doze guardas do rei estavam separando os dois e Bard, repentinamente sóbrio devido à descarga de adrenalina, como se fora um balde de água gelada atirada em cima dele, ficou olhando estarrecido para Geremy, rolando pelo chão numa agonia convulsiva.
— Pelos infernos de Zandru! Bredu... — suplicava ele, caindo de joelhos ao lado do irmão de criação; porém, ele sabia que Geremy não o escutava. Carlina estava aos prantos, soluçando nos braços de Beltran.
— Escolte minha irmã até seus aposentos e procure suas criadas; depois vá acordar o meu pai. Assumo esta responsabilidade — ordenou Beltran a um dos soldados.
Ajoelhou-se ao lado de Geremy e empurrou Bard para o lado com rancor.
— Não toque nele, seu...! Já fez o bastante! Geremy, bredu, meu querido irmão... fale comigo, suplico-lhe, fale comigo... — soluçou, e Bard percebeu a agonia, a angústia que o dominava. Porém Geremy não podia mesmo ouvir.
Um dos soldados agarrou Bard, sem qualquer consideração e tirou-lhe o punhal.
— Envenenado — disse ele. — Um punhal de Drytown.
E, pela primeira vez naquela noite, Bard, horrorizado, recordou-se que aquela era a arma que tinha conseguido na batalha. Um ferimento, ainda que superficial, com um punhal de Drytown, envenenado como aquele, tinha significado que Mestre Gareth, provavelmente, ficaria manco para o resto da vida. E ele tinha golpeado Geremy, na sua fúria, com toda a força no tendão do jarrete. Chocado, por demais horrorizado para poder falar, deixou-se levar pelos soldados que o prenderam.
Passou quarenta dias sob prisão domiciliar e ninguém se aproximou dele. Levou muito tempo para se arrepender de sua impetuosidade, sua fúria desencadeada pela embriaguez; mas houve momentos, também, que lançava a culpa de tudo aquilo em cima de Carlina. As refeições eram levadas ao seu quarto por soldados, que o informaram que, durante uma semana, Geremy tinha delirado e ficado entre a vida e a morte; porém tinham mandado vir um laranzu de Neskaya que lhe tinha salvo a própria vida e até mesmo a perna. No entanto, a perna, tinham ouvido falar, devido ao veneno, tinha atrofiado e encolhido e, provavelmente, nunca mais poderia caminhar sem um ponto de apoio.
Mergulhado numa onda de terror, Bard se perguntava o que fariam com ele. Sacar de uma arma forjada em aço durante o Festival do Solstício de Inverno já era um crime considerável; ferir um irmão de criação, mesmo por brincadeira, era uma injúria grave. Beltran tinha machucado, certa vez, o nariz de Bard durante uma de suas brincadeiras e fora surrado em regra pelos seus preceptores, que não se importaram de ser ele um príncipe, tinha sido obrigado a se desculpar, à hora do jantar e diante de todas as pessoas do palácio, e havia recebido ordens do rei para dar a Bard, como uma compensação, seu melhor falcão e melhor manto. O manto ele ainda o conservava.
Tentou subornar o guarda que o vigiava para levar um recado para Carlina. Se ela intercedesse por ele... era a sua única esperança. O mínimo que podia esperar seria um ano de exílio e a perda dos favores do rei. Não podiam invalidar seu casamento com Carlina, mas podiam colocar alguns obstáculos em seu caminho. Se Geremy morresse, enfrentaria, no mínimo, três anos de exílio e o pagamento de uma indenização à família de Geremy; porém ele não tinha morrido. Contudo, o soldado recusou-se a satisfazê-lo, declarando que o rei proibira terminantemente que qualquer recado de sua parte fosse aceito e transmitido.
Absolutamente só, atirado à própria sorte, a amargura de Bard fez desaparecer o remorso. A culpa fora de Melora; caso não o tivesse rejeitado, não teria despejado sua raiva e frustração sobre Carlina, podia ter concedido a Carlina os outros seis meses por ela desejados, até que chegasse o momento ajustado. Melora dera-lhe corda, depois rejeitara-o, mulher infernal e provocante!
E depois Carlina! Dissera que o amaria como marido e, apesar disto, tirara-o de seu caminho! E como tinham ousado Geremy e Beltran, desgraçados ombrediny, se intrometerem naquele assunto? Beltran estava com ciúmes, que inferno, porque Bard o havia repelido, e tinha convocado seu amante para brigar em seu lugar... A culpa era deles! Ele não tinha feito nada de errado!
A revolta tinha robustecido o seu remorso, até o dia, quando a suave chuva primaveril inundava os telhados do castelo e o degelo da primavera já se iniciara, dois soldados entraram em seus aposentos e lhe informaram:
— Dom Bard, vista sua melhor roupa; o rei convoca-o para uma audiência.
Bard colocou seu melhor traje, barbeou-se com o maior cuidado, trançou os cabelos e enrolou o cadarço vermelho ao redor da trança. Talvez, quando o rei visse aquilo, se recordasse como o tinha servido bem e durante muito tempo. Se tivesse matado ou aleijado o filho do rei, nada poderia salvá-lo, sabia disto; haveria de se considerar feliz se o condenassem a uma morte rápida e não a ser estraçalhado em ganchos. Mas Geremy era um refém, filho de inimigos do rei...
Geremy era filho de criação do rei, seu próprio irmão de criação. Isto não o salvaria.
Entrou na sala de audiências do rei com um andar empertigado e desafiante, encarando a todos que se achavam presentes. Carlina estava lá, entre as damas da rainha, pálida e encolhida, os cabelos afastados do rosto formando um coque, seus olhos imensos e assustados. Beltran parecia furioso, provocante, e seria incapaz de permitir que seus olhos se encontrassem. Bard procurou Geremy. Ele estava lá, apoiado em muletas, e Bard reparou que a perna ferida exibia um chinelo em vez da bota e que ele não conseguia tocá-la ao chão.
Sentiu um aperto na garganta. Não teria feito nenhum mal a Geremy. Com os diabos, por que Geremy não se mantivera longe deles, por que havia insistido em interferir naquilo que só dizia respeito a ele próprio e a sua prometida mulher?
— Muito bem, Bard mac Fianna, o que tem a dizer em sua defesa? — perguntou o Rei Ardrin.
O nome de um bastardo... o nome de sua desconhecida mãe, não di Asturien como o chamavam por cortesia, aquilo pressagiava algo de ruim.
Bard dobrou o joelho diante de seu pai de criação.
— Apenas isto, meu parente: não fui eu quem procurou a briga; forçaram-me a isto. Servi-o durante cinco anos, e quer me parecer que o fiz muito bem. Com suas próprias mãos o senhor promoveu-me em Snow Glen, concedeu-me um cadarço vermelho e capturei o clingfire para seus exércitos. Gosto demais de meu irmão de criação e jamais o teria ferido voluntariamente. Juro ao senhor, ignorava que o punhal estivesse envenenado.
— Está mentindo — interrompeu Beltran, de modo insensível —, pois pilheriamos com ele a respeito de ter se tornado um bredin de um mercenário de Drytown e tinha ouvido a senhora Melora, a leronis, dizer que o ferimento de seu pai estava envenenado.
— Havia me esquecido que aquele não era o meu punhal — protestou Bard revoltado. — Reconheço, meu parente, não devia ter sacado uma arma em aço durante o festival. Disto, reconheço, sou culpado; porém Geremy obrigou-me a lutar! O Príncipe Beltran lhe contou que ele só estava com ciúmes?
— Foi o Geremy quem sacou seu punhal primeiro? — indagou o Rei Ardrin.
— Não, meu parente — respondeu Bard, abaixando a cabeça —, mas juro, não sabia que o punhal estava envenenado; tinha me esquecido. Estava bêbado; se forem justos, também lhe confirmarão isto, e obrigaram-me a discutir quando me agarraram com violência. Saquei meu punhal para me defender. Não queria ser espancado por eles como se fosse um lacaio e eles eram dois!
— Geremy — perguntou o rei —, você e Beltran foram os primeiros a pôr as mãos sobre Bard? Desejo saber a verdade a este respeito, toda a verdade.
— Fomos, tio — retrucou Geremy —, porém ele tinha agarrado Carlina de uma forma que não a agradou, e Beltran e eu não a queríamos ver maltratada ou mesmo violentada.
— Isto é verdade, Bard? — o rei fitou-o surpreso e desgostoso. — Eles me pouparam e nada me relataram a este respeito! Perdeu tanto assim o domínio de si mesmo a ponto de maltratar Carlina quando estava embriagado?
— Quanto a isto — replicou Bard, sentindo toda a cautela desaparecer diante da recordação de sua revolta —, Carlina é minha prometida mulher, e eles não tinham o direito de interferir! Beltran agigantou tudo isto por estar com ciúmes, quer entregar Carlina ao seu bredu que ali está, para uni-los ainda mais! Sente ciúmes porque me revelei melhor do que ele mesmo na esgrima e na guerra e com as mulheres também... não que ele desconheça o que fazer com uma mulher quando se vê sozinho com ela! Onde estava Beltran, tio, quando eu o defendi lá em Snow Glen? — ele tinha consciência que com aquilo tinha atingido o rei em seu íntimo; pois Ardrin das Astúrias perturbou-se e olhou zangado para seu filho e para cada um de seus filhos de criação.
— Pai — indagou Beltran —, não está claro para o senhor que ele planejou arrancar o reino de suas mãos, possuir Carlina quer ela queira ou não, ganhar a aliança de seus exércitos às suas costas? Se ainda fosse um súdito leal e obediente, teria sacado uma arma em aço no Festival do Solstício de Inverno?
O Rei Ardrin respondeu:
— Seja lá como for, está claro que criei um filhote de lobo para morder a minha mão. Bard, não era o bastante para você saber que Carlina lhe estava prometida e seria sua no momento adequado?
— Por todas as leis deste reino, Carlina me pertence — protestou Bard, porém o rei ergueu a mão impedindo-o de continuar.
— Basta! Você pressupõe demais. Um noivado não é um casamento e nem mesmo o filho de criação do rei pode colocar uma mão indesejada sobre a filha do rei. Bard, você transgrediu muitas das leis desta corte; você é um desordeiro. Não manterei um transgressor da lei e um violador de parente nesta casa. Ordeno que se vá daqui. Vou lhe dar um cavalo, uma espada, um arco de caça, uma armadura e uma bolsa com quatrocentos réis de prata; e, assim, estou lhe recompensando por seus serviços passados. Porém, declaro-o banido das Astúrias. Dou-lhe três dias para abandonar este reino; e, depois disto, se for visto dentro dos limites das Astúrias durante sete anos a partir do solstício de inverno, não há lei que o possa proteger. Qualquer homem pode matá-lo como a um animal, sem que seja acusado de homicídio, sem dar início a uma vendeta entre famílias, nem será obrigado a pagar qualquer ressarcimento à sua família, por ferimento ou morte.
Bard sentiu-se profundamente ultrajado diante da sentença. Tinha esperado perder seu lugar na corte... o rei não poderia deixar por menos. Poderia ter aceito, com resignação, a habitual sentença de exílio por um ano; tinha até mesmo se preparado, caso o rei estivesse inclinado a se revelar severo, para reconhecer que deveria ficar no exílio durante três anos. Também tivera a certeza que da próxima vez que o Rei Ardrin precisasse ir para a guerra e sentisse a necessidade dele, seria perdoado e convocado para a corte. Mas sete anos de exílio!
— Isto é injusto, vai dom — protestou ele, ajoelhando-se diante do rei. — Servi-o com toda a lealdade e bem e ainda não amadureci inteiramente. Como posso merecer um tratamento tão rígido quanto este?
— Se você já tem idade suficiente para se comportar como um homem, e um homem depravado — disse, e seu rosto parecia talhado em pedra —, é suficientemente adulto para suportar a sentença que eu imporia a um homem deste tipo. Alguns de meus conselheiros consideraram-me muito transigente por não o ter condenado à morte. Afeiçoei-me a um cachorrinho e me deparo com um lobo mordendo meus calcanhares! Dou-lhe a alcunha de lobo e declaro-o um exilado. Ordeno que parta desta corte antes do pôr-do-sol e deste reino dentro de três dias, antes que eu reconsidere a questão e resolva não aceitar um homem como você vivendo dentro de meus domínios. Gosto muito de seu pai e não gostaria de ter o sangue do filho dele em minhas mãos; porém não se fie nisto, Bard, porque se vir o seu rosto dentro das fronteiras das Astúrias durante sete anos, não tenha dúvidas, haverei de matá-lo como o lobo que é!
— Não daqui a sete anos, nem daqui a sete vezes sete, tirano — gritou Bard, pondo-se de pé e atirando aos pés do rei o cadarço vermelho que este lhe dera em batalha. — Que os deuses permitam que nos deparemos, frente a frente, em batalha quando estiver protegido apenas por aquele seu filho ali e pelo seu sodomita de confiança! O senhor fala a respeito de transgressão de lei? Qual a lei que é mais forte do que aquela que une um homem à sua mulher, e o senhor a está desrespeitando! — deu as costas ao rei, afastou-se e dirigiu-se para onde se achava Carlina e as outras mulheres da corte. — O que me diz, minha mulher? Ao menos você, não está disposta a se manter obediente à lei e acompanhar-me no exílio como deveria fazer uma mulher?
Ela ergueu os olhos frios e sem lágrimas para ele:
— Não, Bard. Não o acompanharei. Um proscrito nada pode pretender, nem requerer a proteção da lei. Teria feito a vontade de meu pai e me casaria com você; mas, uma vez, supliquei-lhe que me poupasse deste casamento e agora alegra-me o fato dele ter mudado de idéia; e você sabe a razão.
— Já houve um tempo em que me declarou que me amaria...
— Não — interrompeu-o ela. — Convoco Avarra para minha testemunha; pensei que, talvez, quando eu estivesse mais velha e você talvez mais experiente, caso a deusa fosse complacente para conosco, quem sabe não chegássemos a nos amar mutuamente algum dia como é conveniente para as pessoas casadas! Seria bem mais verdadeira ao dizer que desejava isto, não que eu acreditava que tal iria acontecer. Já houve um tempo quando o amei muito como um irmão de criação e um amigo. Mas você mesmo se privou disto.
O rosto do jovem contraiu-se num gesto de desprezo:
— Então você é como todas as outras mulheres, cadela! E eu a julgava um pouco diferente e superior a elas!
Carlina disse:
— Não, Bard, eu...
O Rei Ardrin fez-lhe um gesto ordenando-lhe que se calasse:
— Não diga mais nada, menina. Não precisa mais se dirigir a ele. De hoje em diante ele não representa mais nada para você. Bard mac Fianna — disse ele —, concedo-lhe três dias para que saia de meu reino. Depois deste tempo decreto que seja considerado um proscrito; nenhum homem, mulher ou criança neste reino pode lhe oferecer um teto ou abrigo, alimento ou bebida, fogo ou combustível, ajuda ou conselho. E durante sete anos, se for descoberto dentro dos limites deste reino, será morto como um lobo por qualquer homem que o localize e seu corpo será atirado aos animais selvagens sem qualquer luto ou enterro público. Agora, vá.
A tradição exigia que o proscrito devia dobrar o joelho para o seu rei em sinal de que aceitara a sua sentença. Talvez, se o Rei Ardrin lhe tivesse dado a sentença habitual, Bard tivesse agido assim; mas ele era jovem e orgulhoso, sentia-se revoltado e cheio de frustrações.
— Partirei, uma vez que não me resta nenhuma outra escolha — falou com veemência. — O senhor me pôs a alcunha de lobo; então serei lobo a partir deste dia! Deixo-o entregue à mercê destes dois que o senhor preferiu a mim; e voltarei quando o senhor não o puder mais proibir. E quanto a você, Carlina... — seus olhos procuraram os dela, e a jovem estremeceu. — Juro que a terei, algum dia, quer você o queira ou não; e isto eu lhe juro, eu, Bard mac Fianna, eu, o lobo! — girou sobre os calcanhares, abandonou o salão e as portas fecharam-se atrás dele.
— Mas para onde irá? — perguntou Dom Rafael das Astúrias a seu filho.
— Quais são os seus planos, Bard? Você é ainda moço demais para se aventurar para fora destes domínios, de seu próprio reino, sozinho e proscrito! — O pai de Bard estava realmente preocupado. — Senhor da Luz, que loucura e que falta de sorte!
Bard sacudiu a cabeça impaciente:
— O que está feito está feito, pai, e ficar se lamuriando não adianta nada. Foi uma maldade; o rei, seu irmão, não demonstrou a mínima justiça para comigo e nem mesmo qualquer complacência, por uma briga que jamais desejei! Tudo que me resta a fazer é virar as costas à Corte das Astúrias e procurar algo melhor em qualquer outro lugar.
Encontravam-se de pé no aposento que tinha pertencido a Bard desde o momento em que seu pai o tinha trazido para casa, para educá-lo ao lado de seu filho legítimo; por gentileza ou sentimento, Dom Rafael tinha mantido o quarto de Bard pronto para ser usado por ele, muito embora não tivesse posto os pés ali desde os doze anos. Era um quarto de garoto, não de um homem, e não havia muita coisa ali que Bard fizesse questão de levar consigo para o exílio.
— Deixe disto, pai — falou, quase com afeição, pousando a mão sobre o ombro do ancião —, não adianta nada se lamentar. Ainda que o rei tivesse se mostrado clemente e só me tivesse mandado embora da corte por causa daquela loucura infernal do solstício de inverno, dificilmente poderia permanecer aqui; Lady Jerana gosta cada vez menos de mim. E agora praticamente nem consegue esconder a sua alegria por me ver fora de seu caminho, para sempre — seu sorriso revelava o orgulho. — Fico imaginando se ela pensa que eu tentaria me apoderar da herança de Alaric, como o rei pensou que eu faria com a de Beltran. Afinal de contas, ultimamente, ele revelava uma preferência por mim sobre seu filho legítimo. Ora, pai, nunca lhe passou pela cabeça que, talvez, não me sentisse contente ao constatar que o preferido era Alaric e tentasse me apossar daquilo que legalmente é dele?
Dom Rafaei di Asturien ergueu os olhos para seu filho, com toda a seriedade. Ele era um homem já de meia-idade, de ombros largos, com o aspecto de um homem musculoso e ativo, que se deixou ficar inerte sem muita relutância. Perguntou:
— Seria capaz de assumir uma atitude destas, Bard?
— Não — respondeu Bard e colocou sobre os dedos um capuz de falcão que tinha feito aos oito anos. — Não, pai, será que me considera totalmente sem honra devido a esta briga que tive com meus irmãos de criação? Aquilo foi uma loucura, uma loucura de bêbado, algo semelhante à demência, e se me fosse dado corrigi-la... porém nem o Senhor da Luz pode fazer o tempo voltar atrás, ou desfazer o que está feito. E quanto a Alaric e sua herança... Pai, há muitos bastardos que crescem como párias, sem qualquer nome, a não ser o de sua desonrada mãe, sem uma mão de homem para orientá-los, e que nada possuem a não ser aquilo que podem arrancar do mundo com as mãos, ou com banditismo. Mas você me criou na sua própria casa e desde pequeno tive bons companheiros, recebi bons ensinamentos, e fui criado no palácio real quando chegou a hora de aprender as artes masculinas. — Com uma timidez surpreendente para aquele jovem guerreiro pretensioso, puxou o pai para junto de si e beijou-o. — O senhor poderia ter tido paz na sua cama e no seio de sua família, se tivesse preferido me afastar daqui e tivesse me mandado aprender a profissão de ferreiro, fazendeiro ou comerciante. Porém, ao contrário, tive cavalos e falcões, fui educado como o filho de um nobre, e o senhor foi obrigado a suportar as brigas com sua mulher por causa disto. Acha que posso me esquecer de tudo isto, ou tentar obter algo melhor do que esta porção generosa, do irmão que sempre me chamou de irmão, e nunca de bastardo? Alaric é meu irmão e amo-o; seria eu mais do que ingrato, não teria qualquer resquício de honradez, se pusesse as mãos sobre aquilo que é dele por direito. E se sinto qualquer remorso da minha briga com aquele infeliz do Beltran, é apenas por ter talvez e de alguma forma prejudicado o senhor ou Alaric.
— Meu filho, você não me prejudicou, se bem que acharei difícil perdoar Ardrin pelo que fez a você. Ele, ao menosprezar a sua lealdade, está agindo de modo igual para comigo, levando-me a me perguntar aquilo que nunca questionei antes, se ele é o rei legítimo desta terra. Quanto a ter prejudicado Alaric... — interrompeu-se, soltou uma gargalhada e disse: — Pode lhe perguntar isto você mesmo. Creio que ele está contente, tão feliz de vê-lo novamente em casa, que bendiz qualquer coisa que o fez retornar aqui.
Enquanto assim falava, a porta abriu-se e um garoto pequenino, com uns oito anos, entrou no quarto. Bard afastou-se dos alforjes que estava arrumando.
— Veja só, Alaric, você era apenas uma criancinha quando fui para a corte real e agora já tem quase que a idade necessária para ter fama e glória! — agarrou a criança e ergueu-a nos braços.
— Deixe-me ir com você para o exílio, meu irmão — pediu o menino impetuosamente. — O pai quer que eu vá para a casa daquele rei velho para ali ser educado! Não desejo servir a um rei que teve a coragem de mandar meu irmão para o exílio! — viu Bard rir, sacudir a cabeça e insistiu: — Sei montar a cavalo; posso lhe servir como pajem, até mesmo como seu escudeiro, cuidar de seu cavalo, carregar suas armas...
— Não, agora não, meu garoto — disse Bard, pondo o menino ao chão. — Não terei necessidade de contar com um pajem ou escudeiro nas estradas que deverei trilhar a partir de agora; deve ficar aqui e ser um bom filho para seu pai enquanto me encontro em banimento, e isto significa aprender a ser um bom homem. Quanto ao rei, se for bem comportado, razoável e falar baixinho, ele gostará mais disto do que se se revelar corajoso e expuser seus pensamentos; ele é um tolo, mas é o rei e deve ser obedecido, embora seja tão idiota quanto o burro de Durraman.
— Mas, para onde você irá, Bard? — insistiu o menino. — Escutei os homens lendo a sentença de banimento que lhe foi dada, nos cruzamentos das estradas, e eles diziam que ninguém podia lhe oferecer comida, fogo ou ajuda...
Bard riu:
— Levarei provisões para três dias, e antes que eles se passem já estarei bem longe das Astúrias, em terras onde ninguém dá ouvidos às sentenças e justiças do Rei Ardrin. Tenho dinheiro e um bom cavalo.
— Vai embora e se tornar um bandido, Bard? — indagou o menino, os olhos arregalados de surpresa.
— Não; serei apenas um soldado. Há muitos senhores de terras que podem aproveitar um homem experiente.
— Mas onde? Saberemos onde? — perguntou o menino.
Bard riu baixinho e respondeu-lhe através de um trecho de uma balada antiga:
O sol poente meu rumo será.
Lá, onde mergulha, além do mar;
Meu destino o de um prescrito será
E todos os homens hão de me evitar.
— Quem me dera estivesse partindo com você — disse o menino. Porém Bard sacudiu a cabeça:
— Cada qual viaja com seu próprio destino, irmão, e o seu caminho é rumo ao palácio real. O filho dele já está grande, porém ele tem um novo filho de criação, Garris de Hammerfell, que é da sua idade, e não tenho dúvida de que serão irmãos de criação e bredin; razão pela qual, estou certo, ele o mandou chamar.
— Por isto — disse Dom Rafael com um toque de sarcasmo nos lábios —, e para se certificar de que eu compreendia que a briga dele era com você e não comigo. Muito bem, se ele quer pensar que me esqueço das coisas com esta rapidez, que seja assim. E quanto a você, Bard, poderia se dirigir para a fronteira e prestar serviço para The MacAran. Ele detém a posse de El Haleine e defende-a dos ataques que vêm de todos os lados; e é lá das colinas Venza que surgem os bandidos malfeitores; ficará muito contente em poder contar com um ótimo espadachim.
— Já tinha pensado nisto — falou Bard —, se bem que fique perto de Thendara, e é lá que estão os Hasturs. Algum parente de Geremy poderia declarar uma vendeta contra mim e eu teria que estar alerta noite e dia. Preferiria me manter afastado das terras dos Hasturs por alguns anos — mordeu o lábio e ficou com os olhos fixos no chão. Um retrato de Geremy encontrava-se diante de seus olhos, descorado e consumido pela doença, claudicando sobre a perna ferida. Maldito Beltran, que tinha arrastado Geremy para a briga! Se devia estropiar um irmão de criação, por que não fora aquele com quem tinha realmente uma diferença? Uma desavença boba, mas ainda assim uma desavença; ele e Geremy raramente tinham trocado uma palavra áspera; e este tinha ficado manco para toda a vida por sua causa. Cerrou os dentes e, mentalmente, virou as costas à recordação. O que estava feito estava feito. Era tarde demais para remorsos. Contudo, reconhecia que seria capaz de abrir mão dos dez melhores anos de sua vida para ver Geremy perfeito outra vez e sentir a mão de seu irmão de criação na sua. Engoliu em seco e cerrou a mandíbula.
Tinha pensado em rumar para o Leste e servir a Edric de Serrais. Minha alma transbordaria de alegria ao fazer guerra contra o Rei Ardrin! Talvez isto servisse para lhe ensinar que sou melhor amigo que inimigo.
— Não o posso aconselhar, meu filho — disse Dom Rafael. — Muito menos poderia mandar em você. Já é maior de idade e dentro em breve estará bem longe do alcance de minha voz; e tem seu próprio modo de conquistar o mundo durante sete anos. Porém, suplico-lhe, passe os anos de exílio bem longe das Astúrias e não participe de guerras contra nosso parente.
— Não tinha tomado isto em consideração — falou Bard. — Se me juntar aos inimigos do Rei Ardrin, ele haverá de o considerar seu inimigo também. Em certo sentido, Alaric é um refém para que eu me comporte bem. Não posso enfrentá-lo em combate enquanto for o pai de criação do irmão que amo.
— Não se trata apenas disto — continuou Dom Rafael. — Sete anos, na sua idade, farão com que alcance toda a sua maturidade. Quando voltar... e depois de escoados os sete anos estará livre para fazê-lo... poderá celebrar a paz com Ardrin e fazer uma carreira honrada na terra onde nasceu.
Bard riu alto, divertido:
— Ardrin das Astúrias fará as pazes comigo quando a loba de Alar deixar de rosnar para o coração de sua vítima e quando o kyorebni no inverno levar alimento para os coelhos esfaimados! Pai, enquanto Beltran e Geremy estiverem vivos, jamais encontrarei paz por aqui, mesmo se Ardrin já estiver morto.
— Não pode ter tanta certeza a este respeito, filho. Algum dia, Geremy voltará para seu país; e o Príncipe Beltran pode morrer em combate. E Ardrin não tem outro filho. Se Beltran morrer sem deixar filhos, Alaric é o herdeiro do rei, e creio que ele tem consciência disto; é por isto que Alaric será educado na sua corte, para que receba a educação adequada a um possível príncipe.
— A Rainha Ariel ainda não entrou na menopausa — retrucou Bard. — Ainda é capaz de dar um outro filho ao rei.
— Ainda assim, se isto ocorresse, o novo rei não poderia ter um desentendimento com você, e ficaria bastante satisfeito de poder contar com um parente, mesmo nedestro, com a sua habilidade nas artes marciais.
Bard encolheu os ombros:
— Que assim seja — exclamou ele. — Pelo seu bem, o de meu irmão e pela possibilidade dessa reivindicação ao trono, não participarei de nenhuma guerra contra o Rei Ardrin; muito embora fosse me fazer bem ao coração lutar contra ele na guerra, ou atacar as Astúrias e possuir Carlina à força.
— A Princesa Carlina é tão linda assim? — indagou Alaric com os olhos arregalados.
— Bem, quanto a isto — disse Bard —, acho que todas as mulheres são iguais quando a luz está apagada. Mas Carlina é a filha do rei, foi educada como minha irmã de criação e eu a amava muito; ela estava prometida para mim, e perante todas as leis ela é a minha prometida mulher. É contra todas as leis e contra toda a justiça que qualquer homem outro leve a minha prometida mulher para a cama! E, mais uma vez, a amargura irrompeu em seu íntimo, a revolta contra Carlina, por ela ter se recusado a acompanhá-lo no exílio como uma prometida mulher deveria fazer, a revolta contra Beltran e Geremy, que tinham se intrometido entre eles dois, a revolta contra Melora, que o fizera voltar para o lado de Carlina com tamanha frustração, que tinha perdido o autocontrole e bebido em excesso, a ponto de tentar forçá-la a fazer algo que não desejava...
— Quem sabe — argumentou o pequeno Alaric —, se não prestará um grande serviço a algum rei estrangeiro e ele lhe dará a filha em casamento...
— E a metade de seu reino, como dizem as antigas lendas? — disse Bard rindo. — Coisas estranhas aconteceram, creio, meu irmãozinho.
— Tem tudo de que necessita? — indagou o pai.
— O Rei Ardrin, maldito seja, pagou-me muito bem. Afastei-me furioso, revoltado demais para exigir o que me tinha dado e eis que um lacaio, espalhafatoso, vem atrás de mim com tudo aquilo que o rei me havia prometido, um eunuco louro das planícies de Valeron, uma espada e um punhal que bem poderiam ser bens móveis de herança entre a família dos Hasturs, a armadura em couro que eu usava nos campos de batalha em Snow Glen e uma bolsa com quatrocentos réis de prata; quando fui contá-los descobri que ele tinha acrescentado mais cinqüenta réis em cobre, também. Portanto, não posso dizer que fui mal pago pelos anos que o servi; dificilmente poderia ele ter sido mais generoso para com um de seus capitães com vinte anos de serviço, quando resolvesse se aposentar! Ele me desligou do serviço militar através de pagamento, que Zandru o açoite com chicotes de escorpião! Gostaria de estar em condições de lhe devolver tudo isto, mandando lhe dizer que uma vez que ele me privou de minha prometida mulher, eu não passaria de um alcoviteiro caso aceitasse dinheiro e mercadorias por ela; mas apesar disto... — deu de ombros. — Devo ser prático. Um gesto deste tipo não traria Carlina para mim, e precisarei de cavalo, espada e armadura quando me for das Astúrias... — interrompeu-se quando a porta abriu-se e uma jovem, robusta, os cabelos caindo-lhe sobre os ombros em duas compridas tranças ruivas, entrou no quarto. Num instante de surpresa julgou estar vendo Melora. Mas não, esta mulher era mais magra e muito mais jovem do que ela. Tinha o mesmo rosto redondo e os mesmos olhos imensos, cinzentos e nebulosos. Ela falou com timidez:
— Meu senhor, Lady Jerana mandou-me perguntar se precisará preparar alguma coisa antes que seu filho parta. Disse que se Bard mac Fianna necessitar de qualquer coisa, deve pedi-las de imediato, para mim ou para ela, para que assim possamos ir apanhar tudo na despensa e preparar.
— Precisarei de provisões para três dias de viagem; e agradeceria muitíssimo se pudesse dispor de duas ou três garrafas de vinho. Não incomodarei mais a senhora. — Seus olhos pousaram nas feições e corpo familiares, e ainda assim ligeiramente estranhos. A jovem de cabelos ruivos era mais bonita que Melora, mais esbelta, mais jovem, porém despertava em Bard a mesma mescla sutil de ressentimento e desejo que tinha sentido por Melora.
— Está vendo? — comentou Dom Rafael. — Minha mulher não lhe deseja nenhum mal, Bard; está preocupada e quer se certificar de que não passará nenhuma necessidade no exílio. Tem uma boa reserva de cobertores e não gostaria de levar uma ou duas panelas?
Bard explodiu numa gargalhada:
— Meu pai, deseja me convencer de que Lady Jerana me quer bem? Qual o quê! Assim como o rei, está ansiosa para me pagar e me ver de partida logo! Porém, aproveitarei a generosidade dela; um ou dois cobertores não seriam inúteis e, talvez, uma coberta a prova d'água para minha carga. A senhorita arranjará tudo isto, damisela? Você é nova entre as damas da senhora minha mãe?
— Melisendra não é uma dama, mas uma filha de criação para a minha mulher — esclareceu Dom Rafael —, e sua parente, também; ela é uma MacAran e a sua mãe era dessa família.
— É mesmo? Ora veja, damisela, conheço seu pai — disse Bard —, pois Mestre Gareth era o laranzu quando viajei rumo à batalha pelo Rei Ardrin e, do mesmo modo, sua irmã Melora e sua parente Mirella...
Seu rosto iluminou-se com um rápido sorriso:
— É verdade? Melora tem muito mais experiência do que eu como uma leronis; mandou-me avisar que estava prestes a se dirigir para Neskaya. Como está meu pai, senhor?
— Da última vez que o vi, no solstício de inverno, estava bem — informou-lhe Bard —, embora, suponho, deva saber que foi ferido na batalha perto de Moray's Mill, com um punhal envenenado de um dos mercenários de Drytown; e ele ainda andava com a ajuda de uma bengala.
— Ele me enviou uma carta — disse ela. — Foi Melora quem a escreveu; e teceu comentários sobre a sua bravura... — inesperadamente baixou os olhos e enrubesceu.
— Estou contente ao ver que Melora faz bom julgamento de mim — falou Bard com uma gentileza tranqüila. Mas, em seu íntimo, estava agitado devido ao conflito ali estabelecido. Melora, que o havia rejeitado, apesar de todas as boas palavras de amizade!
— Se sua parente nutre consideração por mim, damisela, estou contente; pois resolvi ir para El Haleine e passar a servir ao The MacAran.
— Mas The MacAran não necessita de soldados mercenários, senhor; assinou um armistício com os Hasturs e Neskaya e juraram manter a paz apenas dentro de suas fronteiras, assim como não combater fora delas. Pode se poupar o trabalho de viajar até lá, senhor, pois eles não contratarão mercenários de fora de suas fronteiras.
Bard ergueu as sobrancelhas. Então os Hasturs e Hali estavam estendendo seu campo de influência até El Haleine?
— Agradeço-lhe pela informação, damisela. Talvez a paz seja bem recebida pelos fazendeiros, mas é sempre uma notícia indesejável para um soldado.
— Porém — disse Melisendra, com seu sorriso ingênuo —, se houver paz durante bastante tempo, talvez chegue um dia em que os homens poderão aproveitar melhor as suas vidas do que sendo soldados, e homens como o meu pai poderão fazer melhor uso de seus talentos do que arriscar suas vidas, desarmados, em combate!
Dom Rafael interrompeu o diálogo, e dava a impressão de estar um pouco aborrecido:
— Vá para o lado de sua senhora, minha menina, e informe-a sobre as necessidades de meu filho; e avise-a que ele partirá ao pôr-do-sol.
— Pai, por que o senhor se revela tão ansioso para se livrar de mim? — perguntou Bard. — Pretendo passar esta noite na casa de meu pai; não tornarei a vê-la, nem ao senhor, durante sete longos anos!
— Ansioso para me livrar de você? Deus me livre, mas você só dispõe de três dias para abandonar as Astúrias.
— Se eu rumar para o Norte, para Kadarin, só precisarei de um dia de viagem para alcançar a fronteira — esclareceu Bard —, uma vez que El Haleine está nas mãos dos Hasturs, está fechada para mim; rumarei para as Hellers, e verei se o Lorde Ardais necessita de um espadachim pago que também é um líder de homens. Ou pensa que seu honrado parente mandará assassinos para me atacar de surpresa enquanto rumo para fora do reino, senhor?
Dom Rafael parou e refletiu. Falou:
— Sinceramente, espero que não. Mas, ainda assim, você teve uma briga com Geremy e com o príncipe... um dos dois poderá procurar se certificar de que você não tente retornar e fazer as pazes com Ardrin, depois dos sete anos de exílio. Eu viajaria com o maior cuidado, meu filho, e não deixaria para fazer isto no último momento.
— Serei cauteloso, pai, porém não me precipitarei rumo ao exílio como um cão chicoteado, nem com o rabo entre as pernas! E dormirei esta última noite na casa de meu pai. — Seus olhos encontraram-se com os de Melisendra num olhar demorado. A menina corou e procurou afastar os olhos dele, porém Bard não permitiu que o fizesse, mantendo-a nessa coação próxima. Mestre Gareth tinha advertido-o para que se mantivesse afastado de Mirella, como se ele fosse um garotinho desregrado, e Melora provocara-o, atormentara-o, e no fim o rejeitara. Ele dominou o olhar de Melisendra até vê-la estremecer, seu rosto ficar vermelho e finalmente ela conseguiu romper o domínio do olhar de Bard, saiu apressada do quarto, de cabeça baixa. Bard riu e inclinou-se para Alaric. Falou:
— Venha, vou lhe dar todos os meus arcos, flechas e todos os brinquedos. Sou um homem e não precisarei deles, e quem deveria ficar com tudo isto, depois que eu me for, a não ser o meu próprio irmão? Fique aqui, examine todas estas coisas e lhe direi o que fará no palácio real como filho de criação.
Mais tarde, depois do menino ter ido embora, as mãos repletas de bolas, petecas, arcos de caça e coisas deste tipo, Bard deixou-se ficar junto à janela, sorrindo em agradável antecipação. A menina Melisendra viria. Seria incapaz de romper a coação que tinha atirado contra ela. Malditas todas as mulheres, que pensaram que o podiam provocar, rejeitá-lo e menosprezá-lo com seus caprichos! E, portanto, ele sorriu, não de surpresa, mas satisfeito, quando escutou os passos leves na escada.
Ela entrou devagar, com um andar arrastado, no cômodo.
— Ora, senhora Melisendra — disse ele, com um sorriso que deixou à mostra seus dentes muito claros —, o que está fazendo por aqui?
Ela olhou para ele, os imensos olhos cinzentos arregalados, indistintos e um tanto assustados.
— Bem... não sei — falou ela, tremendo. — Pensei... achei que não podia deixar de vir, tinha que fazer isto...
Ele estendeu a mão com um sorriso indolente nos lábios, puxou-a para junto e beijou-a, apertando-a com violência. Sob seu braço, sentiu o coração dela pulsando, percebeu que estava apavorada e confusa.
Ele devia ter tentado isto com Carlina, assim não teria havido qualquer problema; ele a teria magoado, ela não teria protestado. Tinha sido um tolo. Julgara que Carlina devia compartilhar do tormento que o afligia, devia desejá-lo tanto quanto ele a desejava. Ainda a queria, como uma coceira violenta em seu sangue, uma sede que nenhuma outra mulher seria capaz de saciar; ela era dele, sua mulher, a filha do rei, sinal e símbolo de tudo aquilo que ele tinha feito, de sua honra, de sua conquista, e o Rei Ardrin tinha ousado se intrometer entre eles!
Suas mãos procuraram as rendas sob a sua túnica, mergulhando sob elas, e ela lhe permitiu fazer o que desejava, num silêncio aterrorizado, como um coelho nas garras de uma banshee. Chorou um pouco quando a mão dele se fechou sobre o bico do seio. Estes eram grandes e não como os de Carlina tão pequeninos, que mais pareciam um botão; esta jovem era um porco gordo e fêmea igual a Melora, como Melora que o tinha provocado e se divertido com as emoções dele! Muito bem, esta aqui não faria isto! Arrastou-a para a cama, mantendo a pressão implacável sobre a mente e o corpo dela. Ela não se debateu, mesmo quando a colocou sobre a cama, puxando suas saias. Ela continuou soluçando de modo irracional, mas ele não deu ouvidos àquilo, atirando-se sobre ela. A jovem gritou, uma vez. Depois ficou deitada em silêncio, tremendo, mas sem chorar. Ora, ela não era boba. O terror demonstrado por ela o excitara, como Carlina também o fizera. Esta mulher não iria resistir-lhe, esta não era tola!
Bard rolou pela cama distanciando-se dela e deixou-se ficar exânime, exausto e triunfante. Por que ela se lamuriava? Tinha querido aquilo tanto quanto ele; e ele lhe tinha dado aquilo que todas as mulheres desejavam, tão logo termina o período tolo das falas bonitas e da lisonja. Julgou que deveria ter agido assim com uma mulher casada. Recordou-se, com um repentino aperto no coração, como ele e Melora tinham se sentado ao lado da fogueira do acampamento, conversando. Não desejara exercer sua força sobre ela; e, por isto, ela o tinha transformado num idiota! As mulheres eram todas umas vagabundas de qualquer forma; já havia suportado muita coisa delas. Elas não faziam nenhum espalhafato; por que uma garota bem-nascida ia ser diferente? Todas tinham a mesma coisa por baixo das saias, não tinham?
A única coisa que diferia entre elas era o preço cobrado, as prostitutas exigiam dinheiro, as nobres não abriam mão de uma boa conversa, das lisonjas e de um sacrifício da própria masculinidade!
E, então, inesperadamente, sentia-se mortalmente doente e exausto. Indo para o exílio, abandonando o lar por vários anos e ainda era forçado a perder tempo e atenção com as mulheres, que todas vão para o inferno! Melisendra continuava deitada de costas para ele, soluçando novamente. Amaldiçoada! Com Carlina não teria sido assim. Ela o amava, teria aprendido a amá-lo, tinham sido amigos desde a infância, tudo que devia ter feito era lhe mostrar que não iria machucá-la... Devia ter sido Carlina. O que estava ele fazendo com aquela vigaristazinha infernal na sua cama? Não seria algum tipo de vingança contra Melora? Os cabelos ruivos, espalhados sobre o travesseiro, enchiam-no de desalento. Mestre Gareth teria ficado aborrecido. Mestre Gareth saberia que Bard mac Fianna não era um jovem ao qual se aconselhasse a se manter longe da mulher que desejava. No entanto, seus soluços baixinhos deixaram-no intranqüilo. Estendeu-lhe a mão, hesitante:
— Melora, não chore.
Ela se virou e encarou-o. Seus olhos, os cílios molhados e embaraçados, pareciam imensos no seu rosto pálido.
— Não sou Melora. Se tivesse feito isto com Melora, ela o teria matado com seu laran.
Não, pensou ele. Melora tinha-o desejado, porém por razões próprias e quixotescas preterira frustrar a ambos. Esta aqui... como era mesmo o nome dela... Mirella... Melisendra, sim era assim que se chamava. Ela era virgem. Não tinha previsto isto; sabia que a maioria das leroni tinha o privilégio de escolher os seus amantes. Gostaria que tivesse sido Melora. Ela teria correspondido à sua fome. Melisendra nada mais fora do que um corpo sem energia, de má vontade em seus braços E ainda assim... e assim mesmo, também isto era excitante, pois sabia que lhe havia imposto seu desejo e impedira-a de o fazer de idiota como ocorrera com Melora.
— Não importa. Está feito. Droga, pare de chorar!
Ela fez força para controlar os soluços.
— Por que está zangado comigo, agora que já satisfez seu desejo?
Por que ela se referia àquilo como se não o tivesse querido também? Tinha-a visto olhando para ele; simplesmente, dera-lhe a chance de fazer o que queria, sem a necessidade de sentir escrúpulos idiotas como aqueles que tinham afastado Melora de seus braços!
— Minha senhora ficará zangada comigo. E o que farei, primo, se me engravidou?
Empurrou as roupas dela para o lado:
— Nada tenho a ver com isto. Estou indo para o exílio; a menos que você tenha ficado tão alucinadamente apaixonada por mim a ponto de desejar me acompanhar vestida de homem, como uma moça solteira de alguma balada antiga, seguindo seu amado como um pajem, com roupas masculinas... não? Muito bem, damisela, não há de ser a primeira nem a última a dar um bastardo para os di Asturien; julga-se melhor do que minha mãe? Caso isto aconteça, tenho certeza de que meu pai não haveria de permitir que você, ou seu filho, morressem de fome pelos campos.
Ela olhou para ele estatelada, os olhos arregalados, enxugando as lágrimas que ainda inundavam-lhe o rosto.
— Ora essa! — exclamou num sussurro. — Você não é um homem, não passa de um fanático!
— Não — disse ele, soltando uma gargalhada amarga. — Ainda não sabe? Sou um proscrito e um lobo. Assim determinou o rei. Você realmente espera que me comporte como um homem?
Ela agarrou suas roupas e fugiu. Bard escutou seus soluços diminuírem enquanto suas pisadas leves extinguiam-se na escada.
Atirou-se na cama. Os lençóis ainda recendiam com o perfume dos cabelos de Melisendra. Que droga!, pensou, angustiado, devia ter sido Carlina...
Sem Carlina sou um proscrito, um bastardo... um lobo... e se sentiu dominado pela revolta, orgulho e saudades.
Com você teria sido tão diferente... Carlina, Carlina!
Ele partiu no meio da manhã, despedindo-se do pai e de Alaric com beijos e prantos; porém era jovem e sabia que estava indo para o mundo em busca de aventuras. Não podia ficar deprimido por muito tempo. Podiam chamar aquilo de exílio, porém para um rapaz com experiência de guerra, havia a esperança de conseguir algum lucro e poderia voltar decorridos sete anos.
À medida que se afastava as brumas desapareceram e o tempo ficou ótimo. Talvez pudesse ir até Drytown verificar se Lorde Ardcarran não estaria precisando de um espadachim, um guarda-costas, que falasse a língua das Astúrias e dos reinos localizados no Ocidente, para dar instrução aos seus guardas e defendê-lo de seus inimigos. Certamente, devia ter muita gente assim. Não sabia o porquê mas isto o fez pensar na canção barulhenta do soldado:
Quatro-e-vinte leroni foram para Ardcarran
Ao retornarem, não puderam usar o seu laran
Elas deviam ser, pensou ele, como Mirella, leroni que deviam permanecer virgens para a Visão. Por que, ficou imaginando, devia ser assim, por que somente uma moça solteira pode exercer esta forma especial de laran? Sabia tão pouco a respeito de laran, a não ser que devia temê-lo, e ainda assim poderia ter sido diferente, poderia ter sido escolhido, como Geremy, para se tornar um laranzu, para carregar uma pedra da estrela ao invés de uma espada numa batalha... Assobiou mais alguns versos da balada indecente, porém sua voz desaparecia sozinha nos espaços imensos. Teve vontade de que algum amigo ou parente, até mesmo um criado, estivesse viajando ao seu lado. Ou uma mulher; Melora cavalgando junto dele, no seu burrico esperto, para conversar com ele sobre guerra, ética, ambições como jamais tinha falado com nenhuma mulher viva, nem mesmo com um homem... não. Não ia pensar em Melora. Quando pensava nela imaginava seus brilhantes cabelos ruivos e isto o fazia recordar Melisendra, sem energia, debatendo-se em seus braços...
Carlina. Carlina, se ela tivesse concordado em acompanhá-lo no exílio, como o devia fazer uma esposa. Ela estaria viajando ao lado dele, rindo e conversando como faziam quando crianças. E quando desmontassem à noite para acampar, ele a envolveria com toda a delicadeza em seus braços, colocaria seus cobertores sobre ela com tanto carinho... pensando assim, sentiu-se desfalecer. E depois ficou tonto de tanta raiva, ao imaginar que o Rei Ardrin não perderia tempo em entregá-la para outro homem qualquer, talvez para Geremy Hastur. Irracionalmente, desejou que Carlina se divertisse às custas de Geremy, aleijado, com a sua perna mirrada... porém este pensamento atormentou-o. Carlina entregando-se a Geremy como não faria com ele! Que todos eles fossem para o inferno, de qualquer modo, o que desejaria ele com as mulheres?
Parou ao meio-dia para descansar sua montaria, amarrando-a numa árvore, pegando pão e pasta de carne nos seus alforjes e mastigando-os enquanto o cavalo comia a relva nova e primaveril. Tinha alimento para vários dias — Lady Jerana fora generosa com ele —, e não teria que se arriscar tentando comprar comida, ou alfafa para seu cavalo, até que tivesse atravessado as fronteiras das Astúrias. E encheria suas garrafas com a água das fontes, ao invés de o fazer nos poços das cidades; estava condenado ao exílio e eles tinham todo o direito de o impedir de se servir neles. Na verdade, não temia ser morto; o Rei Ardrin não tinha colocado um prêmio sobre sua cabeça e desde que se mantivesse fora do alcance dos parentes de Geremy, que poderiam muito bem declarar-lhe uma vendeta, tinha bem pouco a recear.
Porém ele se sentia terrivelmente só e não estava habituado àqui-lo. Teria apreciado muito a companhia de alguém, até mesmo a de um criado. Recordou-se que, certa vez, ele e Beltran tinham cavalgado por este caminho, numa viagem de caça. Deviam estar com uns 13 anos, mais ou menos, não eram ainda homens feitos, e algum problema em casa tinha-os feito falar em fugir, ir para as Drytown juntos para conseguirem um emprego como mercenários. Apesar de saberem que se tratava de uma brincadeira, tinha-lhes parecido real. Eram bons amigos naquele tempo. Uma inesperada tempestade de neve fizera-os procurar abrigo num dos celeiros em ruínas e tinham dividido os cobertores, conversado até altas horas e antes de adormecerem tinham se virado um para o outro, trocado juras de bredin, como costumam fazer os garotos... por que, em nome de todos os deuses, tinha discutido com Beltran por algo como isto? Fora aquela maldita garota, Melora, tinha ficado fora de si por causa de sua recusa e acabara descontando tudo em seu irmão de criação. Por que uma mulher devia se interferir nos laços que uniam os homens? E por Melora o ter rejeitado, tinha discutido com Beltran, dito coisas imperdoáveis, e isto resultara nisto... mesmo que tivesse abandonado estas brincadeiras infantis, devia ter-se lembrado dos longos anos de amizade com Beltran, seu irmão e príncipe. Bard cobriu o rosto com as mãos e pela primeira e última vez desde a infância, chorou, recordando-se dos anos de intimidade entre eles, que Beltran tinha se tornado seu inimigo e que Geremy estava coxo para o resto da vida. O fogo extinguiu-se, mas ele se deixou ficar deitado, exausto, a cabeça metida nos braços, angustiado de tanta tristeza, desesperado. O que tinha se passado com ele, para abrir mão de ambições, das amizades, da vida que havia feito para ele mesmo, por causa de uma mulher? E agora também perdera Carlina. O sol se pôs, mas ele não conseguia se levantar, lavar o rosto, montar novamente no cavalo. Lastimou-se por não ter morrido na batalha de Moray's Mill, que o punhal de Geremy não o tivesse atingido, em vez dele o ter ferido.
Estou sozinho. Estarei sempre só. Sou o lobo como meu pai de criação me apelidou. A mão de todos os homens está contra mim e a minha contra todos eles. Nunca antes se sentira tão consciente do significado da palavra proscrito, mesmo quando se encontrava diante do rei e ouviu-o pronunciar a sua sentença.
Finalmente, extenuado, adormeceu.
Quando acordou, saindo do sono de imediato como um animal selvagem, sentindo o rosto áspero devido ao sal das lágrimas que tinham secado sobre ele, as lágrimas do fim de sua meninice, percebeu, de repente, que tinha dormido demais; havia alguém junto dele. Agarrou a espada antes mesmo que seus olhos estivessem inteiramente abertos e pôs-se de pé de um salto.
A madrugada estava cinzenta; e Beltran, embuçado numa capa e num capuz azul, uma espada desembainhada na mão, estava ali, diante dele.
— Com que então — disse Bard —, não está satisfeito por me saber exilado; pressentiu que sete anos não iriam deixá-lo a salvo, Beltran? — ele estava dominado pelo ódio e franqueza; tinha chorado até cair no sono na noite passada, pensando na discussão mantida com seu irmão de criação, que o teria morto enquanto dormia?
"Como é corajoso, meu príncipe — exclamou ele —, a ponto de matar um homem adormecido! Será que se deu conta de que sete anos não seriam o bastante para deixá-lo livre de mim?”
— Não pretendo trocar palavras com você, lobo — disse Beltran. — Preferiu andar bem devagarinho no seu caminho para fora deste reino ao invés de o fazer a toda brida; agora, a sentença já vigora sobre você de modo que qualquer um pode matá-lo sem correr o risco de ser condenado por isto. Meu pai quis ser complacente com você; mas não o quero em meu reino. Sua vida a mim pertence.
Bard esbravejou:
— Venha e tome-a — e investiu contra Beltran com sua espada. Eram adversários dignos um do outro. Tinham tido aulas juntos, ministradas pelos melhores mestres em armas do reino, e sempre tinham treinado juntos; conheciam, na perfeição, as deficiências mútuas. Bard era mais alto e seu alcance mais distante; contudo, antes disto, nunca tinham lutado com armas de verdade, mas apenas com espadas para treinamento, cujas extremidades estavam sempre com protetores. E sempre, diante dos olhos de Bard, encontrava-se a lembrança daquela maldita noite do solstício de inverno quando tinha lutado contra Geremy e o aleijara para toda a vida... Não desejava matar Beltran; julgava impossível que Beltran, a despeito de sua discussão, tivesse a coragem de tentar matá-lo. Por quê, em nome de Zandru, por quê?
Apenas para que pudesse entregar Carlina legalmente para Geremy, para que ela ficasse viúva antes mesmo de se tornar uma esposa? Aquele pensamento deixou-o furioso; abriu uma brecha na defesa de Beltran, e, lutando como se fora um alucinado, conseguiu arrancar a espada de suas mãos. Ela foi cair a alguma distância de onde estavam.
— Não quero matá-lo, irmão de criação. Deixe que me vá em paz de seu reino. Se depois de sete anos ainda estiver disposto a me matar, desafio-o para um duelo e lutaremos limpo então.
— Não ouse me machucar enquanto estiver caído e desarmado — advertiu-o Beltran —, e sua vida não valerá nada em qualquer ponto dos Cem Reinos!
Bard protestou enfurecido:
— Pois então vá e pegue a sua espada, pois vou-lhe mostrar, mais uma vez, que não é adversário a minha altura! Pensa, menininho, que se tornará igual a mim se me matar?
Beltran foi apanhar a espada bem devagar. Tão logo inclinou-se para pegá-la, ouviu-se o barulho de cascos numa corrida desabrida e um cavalo rumou para eles a todo galope. Quando ele parou entre os dois, empinando-se, Bard viu, recuando assombrado, que o cavaleiro era Geremy Hastur, branco como a morte. Saltou rápido da sela e ficou agarrado às correias, incapaz de se manter de pé sem apoio.
— Suplico-lhes... Bard, Beltran — disse sem fôlego. — Será que não há nada que ponha um ponto final nesta desavença entre vocês a não ser a morte? Não façam isso, brediny. Nunca mais poderei andar; Bard tem que ir proscrito rumo ao exílio por um tempo enorme. Beltran, suplico-lhe... se gosta de mim... basta!
— Não interfira, Geremy — pediu Beltran, os lábios repuxados e num tom de voz ríspido.
— Desta feita, Geremy — protestou Bard —, juro pela honra de meu pai e pelo meu amor por Carlina, não fui eu quem começou a discussão; Beltran teria me matado enquanto dormia; quando o desarmei, desisti de matá-lo. Se conseguir enfiar algum juízo na cabeça deste tolo, em nome de Deus, faça-o, e deixe-me partir em paz.
Geremy sorriu para ele e falou:
— Não o odeio, irmão de criação. Você estava bêbado, fora de si, e acredito, embora o rei não seja da mesma opinião, que se esqueceu que não estava mais com aquele punhal antigo com o qual cortava a carne desde que éramos meninos. Beltran, seu idiota, coloque a espada na bainha. Vim para lhe dizer adeus, Bard, e fazer as pazes. Aproxime-se e abrace-me, meu parente.
Estendeu os braços, e Bard, os olhos embaçados pelas lágrimas, foi abraçar o irmão de criação, beijando-o dos dois lados do rosto. Percebeu que ia irromper no pranto outra vez. E, em seguida, mergulhou em revolta e ódio quando viu, por cima do ombro de Geremy, que Beltran corria rumo a ele com a espada em riste.
— Traidor! Seu maldito traidor! — gritou; desvencilhou-se do abraço de Geremy e rodopiou, a espada na mão. Dois golpes atiraram a espada de Beltran ao chão, e apesar de ter ouvido Geremy gritando, horrorizado e consternado, atravessou o coração de Beltran; viu o outro dobrar-se sobre sua espada e cair.
Geremy tinha caído, batendo com a perna aleijada com força e ficou no chão gemendo. Bard ficou olhando para baixo na direção dele, com amargura.
— Os cristoforos contam uma lenda de seu Bearer of Burdens, de que ele também foi traído pelo seu irmão de criação enquanto este lhe dava um abraço fraterno. Não sabia, Geremy, que você era um cristoforo, ou que seria capaz de fazer uma coisa dessas contra mim. Acreditei em você — sentiu sua boca retorcer-se numa careta de choro, porém mordeu a própria língua com força e não deixou transparecer nada. Geremy apertou os dentes, lutou para se levantar e falou:
— Não o traí, Bard, juro-lhe. Ajude-me, irmão de criação.
Bard balançou a cabeça:
— Duas vezes, não — murmurou amargurado. — Planejou tudo com Beltran para tirar a sua forra?
— Não — replicou Geremy. Agarrando-se ao estribo conseguiu, com muita dificuldade, pôr-se de pé. — Acredite ou não, Bard, vim para tentar fazer as pazes — ele chorava. — Beltran está morto?
— Não sei — respondeu Bard, e inclinou-se para auscultar-lhe o coração. Não havia qualquer sinal de vida; então ergueu o olhar para Beltran desesperado e também para Geremy. — Não tive escolha.
— Sei disto — respondeu Geremy, e sua voz partiu-se. — Ele o teria matado. Misericordiosa Avarra, como chegamos a isto?
Bard cerrou os dentes, esforçando-se para arrancar a espada do corpo de Beltran. Limpou a lâmina num punhado de relva e recolocou-a na bainha.
Geremy ficou em prantos, sem procurar mais esconder as lágrimas. Finalmente disse:
— Não sei o que falar para o Rei Ardin. Ele estava sob minha proteção. Sempre foi tão mais infantil do que nós... — e não teve condições de prosseguir.
— Sei disto — observou Bard. — Muito depois de termos nos tornado homens, ele continuava sendo um garotinho. Devia ter sabido... — e emudeceu.
Finalmente Geremy disse:
— Cada homem deve trilhar a estrada de seu próprio destino. Bard, detesto ter que lhe pedir isto; mas não tenho condições de andar sozinho. Quer, por favor, colocar o corpo de Beltran sobre o cavalo dele, para que eu possa levá-lo de volta ao castelo? Se contasse com um guarda ou um soldado comigo...
— Porém não queria nenhuma testemunha da sua traição — concluiu Bard.
— Ainda acredita nisto? — Geremy balançou a cabeça. — Não, vim para apaziguar, pois estava pronto a implorar junto a Beltran para fazer as pazes com você. Não sou seu inimigo, Bard. Já houve mortes em demasia. Também quer me tirar a vida?
Bard sabia que seria muito fácil para ele fazê-lo. Geremy, como um laranzu decente, estava desarmado. Sacudiu a cabeça, dirigiu-se para junto do cavalo de Beltran e conduziu-o para onde lhe seria possível levantar o corpo do irmão de criação e prendê-lo com cordas sobre a sela.
— Geremy, precisa de ajuda para montar?
Geremy abaixou a cabeça por não desejar que seu olhar se encontrasse com o de Bard. Aceitou, com relutância, a mão de Bard para montar e se acomodar em cima da sela, onde ficou desequilibrado e tremendo da cabeça aos pés. Seus olhos se encontraram e ambos sabiam que nada mais podia ser dito entre eles. Até uma despedida formal teria sido demais. Geremy segurou as rédeas, agarrou as do outro cavalo, que transportava o corpo inerte de Beltran, e, lentamente, fez a volta na trilha e encaminhou-se rumo às Astúrias. Bard o ficou observando enquanto se afastava, a fisionomia tensa, até perdê-lo de vista. Depois, suspirou, encilhou seu cavalo e afastou-se sem olhar para trás, saindo do reino das Astúrias, rumo ao exílio.
O Lobo de Kilghard
Seis meses antes de completar os sete anos de exílio, Bard mac Fianna, cognominado O Lobo, recebeu as notícias da morte do Rei Ardrin e soube que estava livre para retornar às Astúrias.
Naquela ocasião, encontrava-se bem longe, nos Hellers, no pequeno Reino de Scaravel, ajudando a manter Sain Scarp livre dos ataques dos bandidos que vinham do outro lado do Alardyn; pouco tempo depois do cerco ter acabado, Dom Rafael mandou uma mensagem ao filho com notícias do reino.
Três anos após a morte de Beltran, a Rainha Ariel tinha dado ao rei outro filho. Quando Ardrin faleceu, e o infante Príncipe Valentine sucedeu o pai no trono, a rainha tinha, com prudência, escapado para sua terra nas planícies de Valeron, deixando as Astúrias para qualquer pessoa que pudesse se apossar dela e mantê-la em suas mãos. A principal reivindicação estava sendo feita por Geremy Hastur, cuja mãe era prima do Rei Ardrin, e que declarava que, em tempos passados, todas estas terras tinham estado sob o domínio do velho Hasturs e que ainda deveria estar sob sua tutela.
Dom Rafael tinha escrito: Nunca mais dobrarei meu joelho diante da família Hastur e a minha reivindicação é melhor do que a de Geremy; Alaric é meu herdeiro legítimo e herdeiro de Ardrin, depois de Valentine na linha de sucessão. Venha, meu filho, e me ajude a tirar Alaric da tutela de Geremy e a deter em minhas mãos este reino para seu irmão.
Bard refletiu sobre a mensagem, encontrando-se ainda armado na sala da guarda de Scaravel, onde a havia recebido. Durante sete anos tinha servido como mercenário, e depois como capitão de mercenários, em vários pequenos reinos. Não tinha dúvidas de que a fama do Lobo de Kilghard tinha ultrapassado as Hellers, se espalhado pelas terras planas, até mesmo em Valeron. Nesses anos presenciara muitas lutas, e leu na mensagem as notícias insidiosas de que haveria mais brigas pela frente; contudo, no final desta disputa ele haveria de conquistar a paz, a honra e um lugar junto ao trono das Astúrias. Olhou, intrigado, para o mensageiro.
— E meu pai não lhe passou nenhuma outra mensagem além desta, um recado particular, que só deve ser ouvido por mim?
— Não, vai dom.
Nenhuma notícia a respeito de minha mulher, se perguntava Bard. Será que Geremy tivera a audácia de desposar Carlina? O que mais poderia lhe dar a presunção de reclamar o trono de Ardrin, a não ser o fato de ser o marido de sua filha? Toda esta conversa sobre a antiga família Hastur não passava de uma desculpa, e Geremy deve saber muito bem disto, tanto quanto eu!
— Porém trago um recado da parte de Lady Jerana — acrescentou o mensageiro. — Mandou-me lhe comunicar que Domna Melisendra lhe envia saudações e as de seu filho Erlend.
Bard assumiu um aspecto sombrio e o mensageiro recuou um pouco.
Não se esquecera de Melisendra, de forma alguma. Houvera muitas mulheres nesse meio-tempo, e era provável que ele tivesse um filho, ou dois, espalhados pelos reinos. Na verdade, ele tinha dado dinheiro a uma das mulheres que acompanhavam o acampamento porque o filho dela se parecia muito com ele quando criança, porque ela lavava as suas roupas e aparava seus cabelos quando necessitavam de um corte, e a comida que fazia era muito superior à que era servida na sala da guarda. Agora, pensava em Melisendra com desagrado. Rapariga manhosa, atrevida, chorona! Aquele encontro deixara um travo amargo na sua garganta. Fora a última vez que tinha lançado mão de seu dom para atirar a coerção em qualquer mulher que ia para a sua cama. Ora, ela era virgem, sem dúvida, e era bem provável que a idiota não tivesse descoberto nada melhor a fazer do que ir contar tudo o que tinha acontecido para a sua senhora. Desde que era um menino, Lady Jerana sempre tentara derrotá-lo traiçoeiramente e seu irmão Alaric tinha sempre preferido a sua companhia do que a de qualquer outra pessoa. Agora, Jerana contaria com mais uma ameaça terrível, ou pelo menos assim pensaria, para manter contra ele.
A presença de Melisendra seria uma boa razão para continuar longe das Astúrias. No entanto, não era inteiramente desagradável imaginar que poderia ter um filho com uma moça de boa família, um filho educado como um filho nedestro de um nobre. O garoto devia estar com uns seis anos, mais ou menos. Com idade já suficiente para aprender alguma coisa das artes essenciais; e sem dúvida Melisendra faria tudo para transformá-lo num homem sem energia a fim de se vingar da revolta sentida contra o pai dele. Não queria ver um filho seu ser educado por aquela moça chorona e esquálida, nem pela sua senhora. Portanto, se Lady Jerana achava que o estava pressionando para ficar longe, mandando lhe dizer que seu comportamento para com Melisendra era do conhecimento geral, ora, ela deveria pensar melhor.
— Diga ao meu pai — falou, dirigindo-se ao mensageiro — que partirei para as Astúrias daqui a três dias. Meu trabalho aqui está concluído.
Antes de partir, foi procurar Lilla entre as mulheres que seguiam os acampamentos militares e deu-lhe a maior parte do dinheiro ganho em Scaravel.
— Você deveria, quem sabe, comprar uma fazendola em algum ponto destas colinas, e talvez arranjar um marido para ajudá-la a cuidar da propriedade e a criar seu filho.
— Com isto, devo concluir que não pretende mais retornar quando tiver concluído seus negócios lá na sua pátria. É assim? — perguntou Lilla.
Bard sacudiu a cabeça:
— Acho que não volto.
Percebeu que ela engolia em seco e estremeceu imaginando a cena que poderia ocorrer. Mas Lilla era sensível demais para isto. Pôs-se nas pontas dos pés, beijou-o com amor e abraçou-o:
— Que Deus o proteja, Lobo, e que tenha sorte nos Kilghards.
Bard retribuiu o beijo e sorriu para ela:
— Isto é que é uma mulher de soldado! Gostaria de dizer adeus ao menino — falou e ela chamou o garoto rechonchudo, que se aproximou e ficou com os olhos presos em Bard, com seu capacete reluzente, pronto para pegar a estrada rumo ao Sul. Bard segurou-o no colo e deu-lhe um piparote embaixo do queixo.
— Não o posso reconhecer como filho, Lilla, não sei se terei um lar para onde levá-lo. E de qualquer modo, houve muitos homens antes e depois de mim.
— Não espero que o faça, Lobo. Qualquer homem com quem me casar poderá educar meu filho como se dele fosse, ou então pode ir procurar outra mulher.
— Ainda assim — prosseguiu Bard, sorrindo diante dos olhos brilhantes do menino —, caso ele venha a revelar algum talento para as armas, daqui a uns doze anos mais ou menos, e você tiver outros filhos, de modo que não necessite do trabalho dele na fazenda para sustentá-la na velhice, mande-o para o meu lado, nas Astúrias, e cuidarei para que possa ganhar seu pão com a espada, ou fazer ainda mais por ele caso isto me seja possível.
— É muito generoso — disse Lilla, e ele riu.
— É fácil ser generoso com algo que talvez nunca venha a acontecer. Tudo isto parte do pressuposto de que eu ainda esteja vivo dentro deste espaço de tempo, e esta é uma coisa que um soldado jamais pode assegurar. Caso tome conhecimento de minha morte... bem, então, seu filho deve conquistar seu espaço no mundo como o fez o pai dele, com a sua inteligência e braços fortes, e que todos os demônios sejam bons para ele como têm sido para comigo.
— Que maneira estranha para abençoar seu filho, Lobo — observou Lilla.
— A bênção de um lobo? — falou Bard tornando a rir. — Sabe-se lá... talvez ele nem seja meu filho. E a bênção de um parente de nada lhe adiantaria, da mesma forma como a minha maldição não lhe faria nenhum mal. Lilla, não acredito nestas coisas. Maldições e bênçãos são tudo uma coisa só. Desejo a ele tudo de bom, e a você também.
Deu um grande beijo no rosto do menino, colocou-o novamente no chão e deu outro beijo em Lilla. Depois montou em seu cavalo, afastou-se, e se Lilla chorou, teve bastante juízo para só o fazer quando Bard já estava longe de sua vista.
No entanto, Bard estava eufórico enquanto rumava para o sul. Tinha se libertado do único vínculo que estabelecera em todos aqueles anos e o fizera livrando-se tão-somente do dinheiro de que não ia precisar mais. Provavelmente, o garoto não era filho dele, pois, de qualquer maneira, todas as crianças louras se pareciam muito sem precisarem obrigatoriamente terem laços de parentesco; e possivelmente, cresceria com os pés bem firmes e enfiados no esterco do laticínio da mãe, e ele nunca mais precisaria se preocupar com nenhum dos dois.
Rumou para o Sul sozinho, na direção de Kadarin. Atravessou uma região rural devastada pelas guerras, pois os Aldarans que haviam, no tempo de seu pai, mantido a paz por toda aquela zona tinham se desentendido e, agora, havia quatro pequenos reinos e as florestas estavam arrasadas nos locais onde os quatro irmãos, todos eles insaciáveis e ansiosos por possuírem terras, tinham brigado entre si lançando mão do clingfire e da feitiçaria. Bard tinha prestado serviços a um deles durante um ano; e quando eles haviam se desentendido — Dom Anndra de Scathfell ficara com uma garota que Bard desejava, uma coisinha de 14 anos, com longos cabelos e olhos negros que o faziam se lembrar de Carlina —, partiu e foi servir ao irmão do sujeito e levou Dom Lerrys direto para a praça forte através de um caminho secreto que aprendera ao servir a Scathfell. Mas, então, os dois irmãos tinham resolvido suas diferenças e unido suas forças, jurando várias coisas contra o terceiro irmão; e a moça advertira Bard de que uma das cláusulas do acordo estabelecia um preço sobre a cabeça de Bard, pois os dois achavam que ele seria capaz de traí-los. Então ela o tinha deixado escapar pela mesma porta secreta, e Bard fugiu rumo a Scaravel, prometendo a si mesmo nunca mais se envolver numa disputa familiar.
E agora estava retornando para casa, apenas para fazer isto. Porém, pelo menos, estes eram sua própria família.
Atravessou Kadarin e passou através das colinas de Kilghard, vendo a zona rural e os sinais de guerra. Quando cruzou as fronteiras das Astúrias, notou os indícios de luta pelos campos; e ficou imaginando se deveria se apressar e rumar para a fortaleza real. Mas, não; Geremy reivindicava o trono e encontrava-se na praça forte do Rei Ardrin, e se Dom Rafael já havia sitiado aquele local, sua mensagem teria sido no sentido de Bard se unir a ele ali; e, portanto, rumou para a velha casa familiar.
Não tinha se dado conta do quanto o campo se modificaria em sete anos; nem, paradoxalmente, o quanto haveria de permanecer o mesmo. Era o início da primavera; durante a noite tinha nevado forte e as paineiras já estavam com suas vagens brotadas. Quando ele e Carlina eram crianças tinham brincado juntos embaixo de uma paineira no pátio. Ele já não se interessava mais pelas diabruras infantis; contudo tinha subido na árvore a fim de colher as vagens para Carlina, para que ela pudesse fazer as camas para as suas bonecas com as vagens cheias de plumas e a lã que continham. Certa vez acharam uma vagem tão grande, que Carlina havia posto um filhotinho de gato para dormir dentro dela, aninhado no material frágil, e cantara cantigas de ninar para o bichaninho. Lembrou-se de Carlina, os cabelos em ondas irregulares indo até a cintura, de pé com a vagem aberta nas mãos, chupando um dedo que o gatinho tinha arranhado, os olhos enchendo-se de lágrimas. Ele tinha apanhado o gato e ameaçado torcer-lhe o pescoço, mas Carlina o retirara das mãos dele, abrigara-o de encontro ao peito, mantendo-o afastado com seus dedinhos delicados.
Carlina. Ele estava voltando para Carlina, que era sua mulher segundo a antiga lei, e ele ia pedir ao pai que exigisse o seu cumprimento. Se tivessem entregue Carlina a outro homem, primeiro haveria de matar o outro e, depois, haveria de se casar com ela. E se o outro fosse Geremy, haveria de cortar os cuyones de Geremy e iria assá-los diante dele mesmo!
Quando avistou, a distância, as torres do Grande Salão de Dom Rafael, já estava totalmente dominado por um frenesi contra Geremy e contra Carlina; se ela tivesse ficado ao lado dele, nem mesmo Ardrin poderia tê-los separado legalmente!
O sol já havia se posto, mas a noite estava límpida e havia três luas no céu. Considerou aquilo como um bom augúrio, porém, ao se aproximar dos portões do Grande Salão, estes estavam trancafiados e quando desmontou e neles bateu, a voz do velho coridom de seu pai, Gwynn, soou soturna:
— Desapareça daqui! Quem se aproxima daqui quando as pessoas honestas já estão na cama? Se tem algum assunto a tratar com Dom Rafael, volte com a luz do dia quando os canalhas voltam para seus covis!
— Abra este portão, Gwynn — retrucou Bard em voz alta e rindo —, pois quem está aqui é o Lobo de Kilghard e se não o fizer saltarei o muro, e o farei me pagar uma indenização caso os ladrões levem meu cavalo embora! O quê? Você me impediria de ficar ao lado de meu pai?
— Jovem Mestre Bard! É o senhor mesmo? Brynat, Haldran, venham cá e retirem a tranca destes portões! Soubemos que se achava a caminho daqui, jovem senhor, porém quem haveria de imaginar que chegaria numa hora destas?
O portão escancarou-se. Bard apeou-se, levou o animal para dentro, o velho Gwynn aproximou-se dele e estendeu o braço, meio sem jeito, para abraçá-lo. Ele estava velho, com os cabelos grisalhos e aleijado; caminhava mancando, e tinha perdido um dos braços, à altura do cotovelo, quando defendera as torres do Grande Salão com apenas uma das mãos antes do nascimento de Bard, e escondera a senhora, a primeira mulher de Dom Rafael, no sótão. Por este serviço, Dom Rafael tinha jurado que ninguém mais, a não ser Gwynn, haveria de ser o coridom enquanto ele vivesse e, embora o velho já tivesse ultrapassado há muito a idade de se aposentar, mantinha-se ciumentamente no seu posto, recusando-se a deixar que qualquer outro mais jovem o substituísse. Quando Bard ainda não completara os sete anos, fora ele quem lhe mostrara os primeiros movimentos da esgrima. Agora, abraçava-o e beijava-o, dizendo:
— Pai de criação, por que os portões estão com as trancas numa região rural tão tranqüila?
— Não existe paz em lugar algum nestes tempos, Mestre Bard — disse o velho solenemente. — Não com os Hasturs jurando que todas estas terras por aqui lhes pertencem de há muito, terra que ficou de posse, todos estes anos, dos di Asturien... ora, o próprio nome Astúrias significa terra de di Asturiens; como podem todos esses canalhas dos Hasturs tentar reivindicá-la? E agora o povo em Hali promete colocar toda esta terra sob o jugo de seus tiranos e tentam tirar as armas das pessoas honestas, e assim todos ficaremos à mercê de assassinos e bandidos! Oh, Mestre Bard, desde que partiu só tivemos dias ruins nesta terra!
— Soube da morte do Rei Ardrin — falou Bard.
— Realmente, senhor, e o jovem Príncipe Beltran foi assassinado por bandidos, mais ou menos na mesma época em que nos deixou, senhor, embora cá entre nós dois, nunca tive certeza se esse Hastur que está tentando agora se apoderar do trono não tivesse dado a sua ajudinha. Ele e o jovem príncipe saíram juntos a cavalo, assim se diz, e apenas um deles retornou, e, evidentemente, foi o Hastur, um laranzu sórdido e um pobre coitado. Portanto, com a morte de Beltran e a fuga da Rainha Ariel para fora do país... disse Dom Rafael, quando o antigo rei faleceu: "Esta terra onde o rei não passa de uma criancinha não vai nada bem", e sem dúvida, há lutas por todos os lados, e as pessoas honestas não podem fazer suas colheitas devido a presença de bandidos nos campos, quando não são os próprios soldados! E agora fiquei sabendo que se os Hasturs vencerem esta guerra, confiscarão todas as nossas armas, até mesmo os arcos de caça, só contaremos com punhais e forcados, e se fizerem o que querem mesmo, ouso dizer que um pastor não terá permissão de levar seu cajado para manter os lobos afastados do rebanho! — prosseguiu, segurando as rédeas do cavalo de Bard com o braço normal: — Mas vamos entrar, senhor, Dom Rafael ficará contente quando souber que chegou!
Chamou dois palafreneiros para cuidarem do cavalo, ajudarem Bard a apear-se e carregar seus pertences para dentro do Grande Salão, e também para trazerem luz e criados; num piscar de olhos, havia uma porção de gente azafamada no pátio, cachorros latindo, barulho e confusão.
— Será que meu pai já foi para a cama? — perguntou Bard.
— Não, senhor — respondeu uma voz infantil quase embaixo de seus pés —, pois o avisei que o senhor chegaria esta noite; vi isto na minha pedra da estrela. E por isto o avô esperou pelo senhor no Salão.
O velho Gwynn estremeceu assustado:
— Jovem Mestre Erlend! Já lhe proibiram de vir aos estábulos, seu garoto perigoso, podia ter sido pisoteado pelos cavalos! Sua mãe vai ficar zangada comigo! — ralhou ele.
— Os cavalos me conhecem, e à minha voz também — retorquiu a criança, adiantando-se para um local onde havia luz. — Eles não me pisotearão. — Parecia ter cerca de seis anos, pequeno para a idade e com uma carapuça de cabelos encaracolados e ruivos, que mais pareciam ser lasquinhas de cobre recém-cortadas à luz da tocha. Bard percebeu logo quem devia ser ele, e mesmo antes do menino dobrar o joelho num cumprimento estranho e fora de moda, disse: — Seja bem-vindo ao lar, senhor meu pai, queria ser o primeiro a vê-lo. Gwynn, não tenha medo, direi ao avô para não brigar com você.
Bard olhou-o zangado e falou:
— Com que então você é o Erlend.
Estranho ele não ter pensado nisto; Melisendra tinha os cabelos ruivos dos antigos parentes, assimilados há muitas gerações, o sangue da família Hastur, de Hastur e Cassilda; porém ele não havia imaginado que o menino pudesse ter o dom do laran.
— E sabe quem sou eu? — como, perguntavase, teria Melisendra falado a seu respeito?
— Sim, eu o vi na mente e na memória de minha mãe, se bem que isto foi quando era menor do que agora. Atualmente, está muito ocupada, segundo me diz, com a educação de um garoto importante como eu, para relembrar dos tempos passados. E também o vi na minha pedra da estrela. O avô me contou que você é um grande guerreiro, e que é chamado Lobo. Creio que, talvez, gostasse de ser um grande guerreiro também, embora minha mãe tenha dito que o mais provável é que seja uma laranzu, um mágico, como o pai dela. Pai, posso ver a sua espada?
— Claro que sim — retrucou Bard, sorrindo para o garotinho sério; ajoelhou-se ao seu lado, tirando a espada da bainha. Erlend colocou sua mãozinha, com todo o respeito, na empunhadura da arma. Bard começou a adverti-lo para não tocar na lâmina, depois se deu conta de que o menino era esperto e já sabia disto. Embainhou a espada e colocou o garoto no seu ombro.
— Muito bem, meu filho, é o primeiro a me desejar boas-vindas ao lar após todos estes anos de exílio e isto é bem apropriado. Acompanhe-me quando eu for cumprimentar o meu pai.
O Grande Salão pareceu-lhe menor do que quando o vira pela última vez, e mais modesto. Um cômodo comprido e baixo, com o chão revestido com pedras, os escudos e estandartes de gerações de di Asturien pendurados nas paredes e também estavam em exposição armas já muito antigas para serem usadas: piques e as antigas lanças, muito desajeitadas para as lutas atuais, e tapeçarias tecidas centenas de anos antes, reproduzindo velhos deuses e deusas, a deusa da colheita afastando uma banshee dos campos, Hastur adormecido nas praias de Hali e Cassilda no seu tear. O chão de pedras era irregular sob os pés, e uma lareira estava acesa em cada uma das extremidades do comprido salão. Na extremidade mais afastada, as mulheres estavam todas juntas, e Bard ouviu o som de um rryl; junto à lareira mais próxima, Dom Rafael levantou-se de sua cadeira de braços quando viu Bard entrar com o filho no colo.
Ele vestia uma roupa de casa, longa, em lã verde-escura e tecida a mão, com bordados nas mangas e decote. Os homens di Asturien eram louros, todos eles, e os cabelos de Dom Rafael eram tão claros, que era impossível se saber se já estavam ficando grisalhos ou não; mas sua barba era tão branca quanto a neve. Sua aparência continuava a mesma de quando Bard o avistara pela última vez, apenas um pouco mais magro, os olhos um tanto fundos como que por preocupação.
Estendeu os braços, porém Bard pôs Erlend no chão e ajoelhou-se diante do seu pai. Nunca tivera uma atitude como aquela com nenhum dos senhores aos quais servira nos sete anos de exílio.
— Voltei, meu pai — falou, sentindo em algum ponto de sua mente a surpresa de seu filho, ao ver o pai, o famoso guerreiro e proscrito, ajoelhar-se diante do seu avô exatamente como agiam seus vassalos. Bard sentiu a mão do pai tocar em seus cabelos.
— Receba as minhas bênçãos, filho. E não importa os deuses que existem, se é que há algum, sejam eles benditos por o terem trazido de volta a mim são e salvo. Mas, também, nunca duvidei disto. Levante-se, querido filho, e abrace-me — pediu Dom Rafael, e Bard, ao obedecê-lo, percebeu as rugas no rosto do pai e sentiu a fragilidade de seus ossos. Pensou, chocado e consternado: Deus, ele já está velho. O gigante da minha juventude já é um homem velho! Sentiu-se perturbado ao constatar que estava mais alto do que o pai, e muito mais forte; se quisesse podia levantá-lo nos braços como tinha feito com Erlend!
Como tinham passado rápido aqueles anos, enquanto ele combatia estranhas guerras em terras estrangeiras! O tempo também deixou em mim as suas pesadas marcas, pensou Bard e soltou um suspiro.
— Estou vendo que Erlend foi dar-lhe as boas-vindas — observou Dom Rafael, enquanto Bard se acomodava ao lado dele junto à lareira. — Mas agora deve ir para a cama, neto; onde estava a cabeça de sua ama para permitir que fosse lá para fora tão tarde assim?
— Acho que ela pensava que eu já estava na cama, pois foi ali que me deixou — replicou Erlend —, mas achei mais conveniente sair e cumprimentar meu pai. Boa noite, avô, boa noite, senhor — acrescentou, fazendo aquela sua pequena reverência, engraçada e precoce. E Dom Rafael riu ao vê-lo saindo do salão.
— Que feiticeirozinho ele é! A metade da criadagem já morre de medo dele, mas ele é inteligente e muito amadurecido para sua idade. Orgulho-me dele. Contudo, gostaria que me tivesse contado que tinha deixado Melisendra grávida. Isto a teria poupado, e a mim também, de ouvir algumas palavras revoltadas de minha lady; ou ignorava que Melisendra estava sendo mantida virgem para a Visão. E por isto todos sofremos, pois Jerana estava furiosa por ter perdido a sua leronis tão jovem.
— Não lhe contei porque não o sabia — esclareceu Bard —, e a atitude tomada por Melisendra não poderia ter sido melhor no final das contas, caso a sua premonição a tivesse mantido fora de meus aposentos quando me achava sozinho e desejando uma mulher. — Depois de ter dito isto, sentiu-se um pouco envergonhado, recordando-se que ele, afinal, não lhe tinha dado a mínima opção com referência ao assunto. Porém, pensou, se Melisendra tivesse a metade do laran que seus cabelos ruivos prometiam, nunca teria sido vítima daquela coerção, de modo algum! Ele não conseguiria, por exemplo, fazer uma coisa como aquela com Melora.
— Muito bem, pelo menos ele é bonito e inteligente, e vejo que o educou nesta casa em vez de mandá-lo para ser educado por um estranho qualquer!
Seu pai disse, os olhos presos na lareira:
— Você estava partindo para o exílio e para a proscrição. Receava que ele pudesse ser tudo aquilo que me restava de você. De qualquer forma — acrescentou, defendendo-se, como se se envergonhasse de sua fraqueza —, Jerana não teve a coragem para separar Melisendra de seu bebê.
Bard pensou que nunca imaginara que Lady Jerana não pudesse ter um coração, e isto não o surpreendia. Não queria expressar este pensamento para o pai, por isto falou:
— Notei que a mãe dele já lhe ensinou um pouco de sua arte, também; ele já leva uma pedra da estrela presa ao pescoço, mesmo sendo pequeno. E agora, pai, chega de mulheres e crianças. Pensava que o senhor já teria feito alguma coisa contra o amaldiçoado Hastur que tentou se assenhorear desta terra.
— Não me é possível atacar Geremy de imediato — explicou Dom Rafael —, pois ainda detém a guarda de Alaric. Mandei-lhe chamar para ver se você consegue algum meio para trazer seu irmão de volta, para que eu possa ter a liberdade de atacar estes Hasturs.
— Geremy é uma serpente cujas espirais encontram-se por todos os cantos! Tive-o uma vez em minhas mãos, e evitei matá-lo. Será que não previ isto? — questionou Bard revoltado.
— Ah, não desejo nada de mal ao rapaz — explicou Dom Rafael. — Se estivesse no lugar deles, esteja certo, teria procedido da mesma forma. Ele era um refém da Corte de Ardrin através da boa vontade do Rei Carolin de Thendara! Estou certo de que Geremy alcançou a maturidade sabendo que se alguma desavença surgisse entre Ardrin e Carolin, a sua cabeça haveria de ser a primeira a rolar, não importava o fato de ser ele irmão de criação do filho de Ardrin. E falando sobre os filhos de meu irmão... você sabia, não?, que Beltran estava morto?
Bard cerrou os dentes e concordou com um movimento de cabeça. Algum dia haveria de relatar ao pai de que modo Beltran morrera; mas não já. E formulou uma pergunta ao pai, uma pergunta que nunca lhe tinha ocorrido fazer:
— Era eu um refém na Corte de Ardrin para assegurar a ele um bom comportamento de sua parte?
— Pensei que sempre tivesse sabido disto — retrucou Dom Rafael. — Ardrin nunca confiou inteiramente em mim. Contudo, não tenha dúvidas, Ardrin reconheceu o seu valor pessoal, pois caso contrário, jamais o teria promovido a seu porta-estandarte, nem ao posto acima de seu próprio filho. Meu jovem, você pôs tudo isto a perder com sua loucura, porém me parece que prosperou nestes anos de exílio, portanto não falaremos mais sobre isto. Todavia, enquanto você, e depois Alaric, estavam lá na corte dele, Ardrin sabia que eu seria incapaz de lhe causar qualquer transtorno, ou de disputar o trono com ele, se bem que o meu direito de me sentar ali fosse tão evidente quanto o dele, e melhor do que o de seu filho caçula. Agora, contudo, estando mortos tanto Ardrin como Beltran, seria catastrófico, em tempos como estes, para uma criança reinar... os ratos podem se divertir na cozinha quando o gato é um filhotinho! Se ficar do meu lado...
— Como pode duvidar disto, pai? — indagou Bard, porém antes que pudesse continuar, uma mulher surgiu dentre as mulheres agrupadas ao redor da outra lareira, esbelta, com cabelos grisalhos, envergando um manto ricamente bordado e cheio de alamares.
— Filho de criação, com que então está de volta? Sete anos de proscrição não parecem ter lhe causado muitos danos, no final das contas. É verdade — acrescentou, examinando suas vestes enfeitadas com pele, o punhal cheio de pedras preciosas e a espada dependurada na cintura, a trança de guerreiro salpicada de jóias. — Deve ter se saído muito bem nas guerras estrangeiras! Esta não é pele de lobo?
Bard inclinou-se diante de Lady Jerana. Pensou, ainda não deixou de ser a mesma cadela de feições agressivas, a língua viperina; seriam precisos três vezes sete anos para que houvesse qualquer melhora nela e a melhor de todas seria uma mortalha, porém naqueles anos tinha aprendido a não revelar tudo aquilo que lhe vinha à cabeça.
— Realmente, mãe de criação, os sete anos praticamente não se fizeram sentir em você — disse ele, e o sorriso dela revelou-se amargo.
— Seus modos, pelo menos, melhoraram bastante.
— No entanto, Domna, vivi durante sete anos de expedientes e da minha espada; naquelas terras e circunstâncias, senhora, ou se aprende rápido, ou se morre, e como está vendo, ainda me encontro entre os vivos.
— Mas seu pai não está se mostrando muito hospitaleiro — observou Lady Jerana. — Não lhe ofereceu sequer um refresco. Como pôde você cavalgar por aí em horas tão tardias em tempos como estes? — acrescentou, ao fazer um sinal aos criados para que servissem comida e vinho.
— É, realmente, tão inseguro assim, Domna? O velho Gwynn disse algo assim, porém pensei que, na idade dele, talvez já estivesse um pouco caduco.
— Ele continua com o juízo perfeito — disse Dom Rafael. — Fui eu que dei ordens para que os portões fossem fechados com trancas todas as noites ao pôr-do-sol, e que cada animal, homem, mulher e criança ficassem dentro destes muros. E criei uma tropa montada para montar guarda nas fronteiras, com sinais de fogo para nos avisarem se mais de três cavaleiros forem vistos juntos numa comitiva... razão pela qual não lhe demos as boas-vindas como merece. Nunca me passou pela cabeça que você viajaria sozinho, sem um guarda-costas ou intermediário, ou nem mesmo um escudeiro!
— Não é à toa que me chamam de Lobo — disse Bard — Lobo solitário, e errante, são os nomes mais delicados que me dão.
— No entanto, apesar de todas estas precauções — falou Dom Rafael —, assaltantes, bandidos é o que eles dizem, mas acho que podem ser homens de Geremy, penetraram nas aldeias e levaram alguns cavalos. Construímos paliçadas aqui no castelo, onde podem deixar seus animais se o desejarem, porém começaram a manter os animais em casa novamente. Os assaltantes também levaram sacos de trigo, nozes e metade da safra de maçãs. Não haverá muita fome, mas os mercados disporão de pouca mercadoria, o povo terá poucas moedas, e alguns habitantes das aldeias armaram-se. Chegou-se mesmo a falar sobre a contratação de um leronis, para manter os assaltantes afastados com feitiçarias, porém não deu em nada, coisa que não me desagradou; não gosto deste tipo de guerra.
— Nem eu — concordou Bard —, mas o pequeno Erlend referiu-se a ser treinado como um laranzu.
Lady Jerana anuiu em silêncio:
— O menino tem donas, e seu preceptor acha que provavelmente não terá a musculatura adequada para ser um espadachim.
Os criados tinham trazido vinho e passavam bandejas com saborosas guloseimas. De repente, Bard ficou paralisado ao deparar com os olhos de uma mulher baixinha e roliça, cujos cabelos pareciam línguas de fogo ao redor do rosto, e apesar das tranças estarem presas à nuca, pequeninos anéis ruivos escapavam delas.
— Melisendra?
— Meu senhor — disse ela, inclinando a cabeça à guisa de saudação. — Erlend falou, quando foi me pedir para pô-lo de volta na cama, que o tinha visto.
— Ele é um excelente menino e de ótima aparência. Fiquei sabendo da existência dele, pouco antes de retornar. Isto nunca me passara pela cabeça. Qualquer homem ficaria orgulhoso de ter um filho assim.
Um sorrisinho surgiu no rosto dela:
— E por um elogio igual a este, sem dúvida, qualquer mulher se sente recompensada, seja qual for o preço que tenha pago. Agora, acho que ele talvez tenha sido um ótimo preço por aquilo que perdi; porém foram necessários muitos anos para que eu passasse a pensar assim.
Bard observou a mãe de seu filho em silêncio. Seu rosto ainda continuava redondo e o queixo curto. Ela usava um sóbrio vestido cinza, sobre uma túnica azul, bordada com borboletas no decote e mangas. Ela possuía um porte e dignidade que, de repente, o fizeram recordar o modo solene de falar de seu filho. Ele não tinha se lembrado dela assim.
— Lady Jerana foi muito boa conosco; e seu pai também — explicou ela.
— Eu já devia esperar por isto. Fui criado na casa de meu pai e não há razão para que meu filho também não fosse tratado da mesma forma — comentou Bard.
Os olhos dela cintilaram junto com um sorriso irônico:
— Sim, meu senhor, esta foi a última coisa que me disse, que tinha certeza de que seu pai não haveria de permitir que eu e meu filhinho morrêssemos de fome pelos campos.
— Um neto é um neto. Embora o nascimento dele fosse abençoado sem muita bobagem — disse Bard.
— Nenhum nascimento é amaldiçoado, Bard — falou Melisendra com muita tranqüilidade. — As festas são para confortar o coração dos ignorantes; aquele que é sábio sabe que é a deusa quem dá a bênção. Porém, como é possível uma coisa que conforta ser uma bobagem?
— Então, quer dizer que não se encontra entre os ignorantes que necessitam de cerimônias deste tipo?
— Quando necessitei delas, meu senhor, era mais ignorante do que possa imaginar, pois era muito jovem. Agora sei que a deusa sozinha pode confortar mais do que qualquer cerimônia preparada por um homem ou uma mulher.
Bard riu:
— Que deusa é ela, entre tantas que confortam os ignorantes nesta região rural?
— A deusa é uma só, não importa o nome que ela própria possa adotar, ou qualquer nome que o ignorante lhe dê.
— Muito bem, acho que devo encontrar algum nome, através do qual lhe agradecerei — disse Bard — por ter me dado um filho tão bom. Contudo, preferia pensar que devo agradecer é a você, Melisendra.
Ela sacudiu a cabeça:
— Não me deve nada, Bard — protestou ela e virou-se para se afastar. Ele a teria seguido, porém os menestréis começaram a tocar junto à lareira. Bard voltou para se sentar ao lado do pai novamente. Na outra extremidade do salão, algumas mulheres dançavam, porém ele percebeu logo que Melisendra não se achava entre elas.
— Como é que Geremy está tentando reivindicar o trono? O próprio nome Astúrias significa terra dos Asturiens, o que tem um Hastur a ver com isto? — perguntou Bard.
— Ele declara — esclareceu Dom Rafael — que houve um tempo em que todas estas terras eram detidas pela família Hastur, e que as Astúrias foram doadas para os di Asturiens apenas por um testamento; que Astúrias significa, na velha língua, terra dos Hasturs.
— Ele está louco.
— Se for assim, é uma loucura que lhe é conveniente, de vez que reclama esta terra ao Rei Carolin de Carcosa.
— Que reivindicação fantasmagórica... — começou Bard, em seguida corrigiu-se. — Deixando de lado a reivindicação do Príncipe Valentine, e dentro em breve farei isto, pois esta terra não irá nada bem se seu rei for uma criança, que reivindicação fantasmagórica ele tem, a não ser do antigo mito dos filhos de Hastur e Cassilda? Não me submeterei a um rei cuja reivindicação ao trono vem da lenda e do mito.
— Nem eu — concordou Dom Rafael. — Seria mais fácil eu acreditar que os Hasturs foram um dia deuses, segundo reza o mito, e que os Hasturs eram verdadeiros filhos do Senhor da Luz! Porém, ainda que o primeiro Hastur fosse filho do próprio Aldones, não iria desistir tão pacificamente da reivindicação da posse das terras que os di Asturiens detiveram durante todos estes anos! Não posso agir contra ele enquanto estiver com Alaric ao seu lado; mas acho que ele sabe que o povo protestará contra o fato de um Hastur subir ao trono. Talvez ele queira ficar com Alaric para colocá-lo no trono como seu fantoche, porém deve estar tremendo nas suas sandálias, o patife!
— Quando souber que voltei, terá razão para se preocupar. Mas pensei que, talvez, ele tivesse preferido se casar com a filha do Rei Ardrin e garantir o trono para seus filhos.
— Carlina? — perguntou Dom Rafael, e sacudiu a cabeça. — Não sei nada sobre ela e, certamente, não se casou com Geremy; disto eu teria ouvido falar.
Logo depois, os menestréis foram dispensados; Lady Jerana ordenou que suas damas se fossem, e Dom Rafael desejou ao filho uma boa-noite. Lady Jerana tinha mandado um camareiro para seus velhos aposentos, para tirar suas botas e roupas e ajudá-lo a tomar banho; contudo, quando voltou para a cama, o criado omitiu-se da antiga gentileza de lhe perguntar se desejava a companhia de uma mulher. Bard já ia chamá-lo de volta, mas encolheu os ombros; tinha cavalgado demais naquele dia e não avistara nenhuma mulher entre as damas de Lady Jerana que o tivesse interessado. Apagou a luz e meteu-se na cama. E sentou-se atônito, pois já havia alguém ali.
— Pelos infernos de Zandru!
— Sou eu, Bard. — Melisendra sentou-se ao lado dele. Ela estava usando uma camisola comprida e diáfana em algum tom claro, os cabelos eram uma nuvem luminosa. Bard riu.
— Você voltou, embora tivesse chorado e se lamuriado quando impus minha vontade sobre você, antes.
— Não se trata da minha vontade, mas da vontade de Lady Jerana — esclareceu Melisendra. — Talvez não queira perder outra de suas leroni virgens; quanto a mim, o que eu tinha a perder só pode ser perdido uma vez — encolheu os ombros com cinismo. — Ela me autorizou a usar estes aposentos, dizendo que tinha direito a eles, e o pequeno Erlend e sua ama dormem mais além. Você não é pior do que qualquer outro; e a deusa sabe, fui obrigada a reclamar com bastante freqüência para que me deixassem em paz por aqui. Lady Jerana quer pensar em mim como uma barragana de seu filho de criação e lhe dei um filho. Contudo, caso não me queira aqui, me sentirei mais do que feliz indo dormir em outro lugar qualquer, mesmo se tiver que dividir o berço de meu filho.
Bard estava revoltado com a sua aceitação tranqüila e indiferente, porém assim mesmo se deu conta de que se ela tivesse se revelado contrária àquilo tudo, também teria ficado revoltado. Estava pronto a expulsá-la da sua cama com uma praga, uma bofetada e uma ordem para sair dali. Porém percebeu que fizesse o que fizesse, ela haveria de aceitar com o mesmo ar de indiferença, para enfurecê-lo ainda mais. Mulheres infernais! Podia-se pensar que ele lhe tinha feito algum mal, ao invés de lhe ter dado um filho de sangue nobre e um lugar seguro como barragana nesta grande família!
E, como não podia ter Carlina na sua cama, uma mulher era muito parecida com qualquer outra quando a luz estava apagada.
— Pois então, venha aqui — falou com brutalidade — e fique quieta. Não gosto das mulheres que fazem muito barulho e não quero ouvir mais nada de sua tagarelice insolente.
Ela o encarou, sorridente, assim que ele a segurou.
— Por que se mostra tão imparcial, mylord? Os deuses obrigaram-no a aturar qualquer coisa que o desagrade.
Melisendra não disse mais nada. Se tivesse agido de outra forma, Bard pensou numa raiva surda, ele teria batido nela para ver se conseguia arrancar aquele sorriso infernal do rosto dela.
Bard despertou com uma barulheira imensa e sentou-se, instantaneamente acordado. Tinha dormido em muitos postos de batalha para não saber que barulho era aquele. Melisendra sentou-se ao lado dele.
— Estamos sendo atacados?
— É o que me parece. Com mil diabos, como poderia eu saber?
Bard já estava fora da cama, enfiando-se nas suas roupas. Ela colocou um robe comprido sobre a camisola e disse:
— Devo ir para junto da minha senhora e cuidar para que as mulheres e crianças estejam a salvo. Deixe-me ajudá-lo a calçar as botas — acrescentou, e Bard ficou imaginando como ela sabia que ele remancheava para não chamar o camareiro. — E aqui estão sua espada e manto.
— Certifique-se de que o menino está a salvo! — ordenou ele, enquanto corria na direção da escada.
Bard estava ligeiramente surpreso com ele mesmo. Com um castelo sob ataque, não era o momento para se ter preocupações a respeito de mulheres e crianças.
Encontrou o pai no Grande Salão, vestido às pressas.
— Estamos sob ataque?
— Não; foi uma investida rápida, eles entraram e saíram das aldeias, carregando cavalos, que mal podíamos dispensar, e alguns sacos de trigo. O barulho foi provocado pelos aldeões, vindo até aqui para nos relatar o acontecido, e meus guardas preparando-se para saírem em sua perseguição, quem sabe para conseguir recuperar os cavalos...
— Foram homens de Geremy?
— Não, se fossem, teriam investido contra a Casa Grande, não contra as aldeias. Homens de Serrais, creio, reunindo-se nas nossas fronteiras, aproveitando-se da anarquia para abrir caminho para a escória de Dryland contra nós... A terra está infestada por eles. Gostaria que fossem e saqueassem Geremy no Castelo das Astúrias!
Gwynn entrou no salão, e Dom Rafael virou-se, irritado, para o velho coridom.
— O que aconteceu agora?
— Um mensageiro do rei, meu senhor.
Dom Rafael zangou-se e perguntou textualmente:
— Onde há um rei nesta terra para enviar um mensageiro?
— Perdoe-me, senhor. Deveria ter dito um mensageiro da parte de Dom Geremy Hastur. Ele chegou em meio a toda esta confusão, no momento em que seus homens encilhavam os animais para irem em perseguição dos bandidos...
— Devia ter ido com eles — disse Bard.
— Sem dúvida, é isto que eles querem, que desperdice suas forças contra bandidos e ataques fortuitos! — falou seu pai. Virou-se para Gwynn e disse: — Receberei o homem de Geremy. Diga a Lady Jerana para mandar uma leronis para lançar o encanto da verdade no salão. Não receberei nenhum lacaio de Hastur sem isto. Bard, você me auxiliará?
Quando o enviado de Geremy entrou no Grande Salão, trazendo a bandeira da paz e o estandarte dos Hasturs de Carcosa, um abeto prateado em campo azul, distinguido com as velas ardentes, Bard já havia tomado seu café rapidamente, uma tigela de mingau de nozes, engolido com cerveja amarga, já estava de rosto lavado e vestido com as cores de seu pai, azul e prateado dos di Asturiens. Dom Rafael encontrava-se sentado numa cadeira entalhada a mão e colocada sobre um estrado, dois passos atrás dele, no lugar do mediador. Bard ficou de pé com a mão pousada sobre a empunhadura de sua espada. Melisendra, também envergando o prateado e o azul dos di Asturiens — e como, ficou imaginando Bard, tinham os Hasturs e os di Asturiens as mesmas cores de família? — achava-se sentada num banquinho baixo, inclinada sobre sua pedra da estrela que emitia a claridade azulada do encanto da verdade pelo salão. O enviado estancou na soleira da porta, aborrecido.
— Meu senhor, isto não se faz necessário.
— No meu salão — retrucou Dom Rafael — julgo o que seja necessário, a não ser que saúde meu próprio senhor; e não reconheço nenhum filho de Hastur como meu senhor, ou seu mensageiro como a voz de meu rei legítimo. Cumpra sua tarefa sob o encanto da verdade, ou desista de falar e retire-se do meu salão.
O enviado era realmente muito bem treinado para o desempenho de seu trabalho para dar de ombros, porém, de algum modo, deu a impressão de o ter feito.
— Que assim seja, vai dom. Como não falo nenhuma inverdade, o encanto da verdade revela mais os costumes de seu salão do que a mensagem de meu mestre. Escutem, então, a palavra do grande senhor Geremy Hastur, guardião dos di Asturiens e regente das Astúrias, mantendo estas terras para o senhor de direito, Rei Carolin de Carcosa...
Dom Rafael interrompeu-o, suave mas de modo audível:
— Para que se encontra a leronis aqui? Pensei que o encanto da verdade tivesse sido lançado neste salão de modo que nenhuma inverdade pudesse ser dita aqui, e ainda assim ouço uma asserção...
Bard sabia que Dom Rafael dissera aquilo apenas para aborrecer; o encanto da verdade lidava apenas com fatos e intenções, não com reivindicações e disputas, e, naturalmente, o mensageiro também o sabia e não levou em consideração a interrupção. Sua atitude modificou-se, e Bard sabia que estava olhando uma Voz, ou um mensageiro mímico profissional, cuja tarefa era transmitir uma mensagem com as mesmas palavras e inflexão exatas de como a tinha ouvido. Qualquer mensageiro podia repetir sua mensagem textualmente, porém a arte de repeti-la com a mesma voz de quem a enviara, e levar de volta qualquer mensagem no mesmo tom, de modo que quem a recebesse pudesse ter condições de julgar por si mesmo cada sutileza, ironia ou insinuação, era uma habilidade rara e especial.
"— Para meu parente e velho amigo de meu pai, Dom Rafael das Astúrias" — começou a Voz, e Bard estremeceu; era fantástico. A Voz era um homenzinho gorducho com suíças amarelo-avermelhadas e libré indefinível, contudo, através de um recurso de voz ou feitiço, parecia que Geremy Hastur em pessoa estivesse de pé diante deles, um homem encurvado, um ombro mais alto do que o outro, uma das pernas colocada de forma a suportar menos peso, apoiado em algum tipo de suporte. E Bard sentiu um calafrio percorrer sua espinha quando constatou o que uma discussão infantil tinha provocado no homem amargo que se achava diante dele...
Não. Isto era um truque, uma Voz treinada, um mímico, um tipo especial de criado; o verdadeiro Geremy Hastur encontrava-se muito longe.
"— Parente, a nossa reivindicação ao trono das Astúrias pode ser disputada mais tarde; no atual momento todo o reino das Astúrias encontra-se sob o ataque da gente de Serrais, que vê o trono das Astúrias em disputa e considera esta terra como um pássaro de caça voando livre para que qualquer falcão o agarre. Não importam os méritos da sua ou da minha reivindicação, peço uma trégua, para expulsarmos estes forasteiros de Serrais de nossas fronteiras; e, depois disto, podemos nos sentar como parentes e discutirmos quem governará esta terra e como. Rogo-lhe para abraçarmos esta causa comum a nós dois por enquanto, como o mais eficiente dentre todos os generais que serviram sob o comando de meu primo Ardrin em épocas passadas. Empenho a palavra de um Hastur que enquanto durar o armistício, o seu filho Alaric, que vive como um parente em minha casa, será protegido contra a guerra; e quando os invasores tiverem sido expulsos, peço-lhe para me encontrar pessoalmente com o senhor, desarmados nós dois e com não mais de quatro mediadores, para discutirmos o destino desta terra e a volta de Alaric aos cuidados de seu pai."
E, após alguns segundos, a Voz acrescentou, agora com sua própria voz:
— Esta é toda a mensagem que Lorde Geremy Hastur lhe enviou nesta oportunidade; exceto seu pedido para que o senhor vá o mais rápido possível.
Dom Rafael continuou sentado, os olhos fixos no chão. Bard então perguntou:
— Quantos foram os invasores que atravessaram as fronteiras das Astúrias?
— Senhor, eles são um exército.
— Parece-me que não temos escolha — disse Dom Rafael. — Caso contrário, estes Serrais cairão sobre nós um a um e nos abaterão como bem entenderem. Diga a meu parente que me unirei a ele, com todos os homens disponíveis que puder reunir, e com tantas leroni quantas puder levar, tão logo estabeleça a defesa de minha própria casa, de minha senhora e de meu neto; e pode informar-lhe que declarei isto sob o encanto da verdade.
A Voz curvou-se e trocaram-se mais algumas palavras formais. Em seguida, a Voz retirou-se, e Dom Rafael virou-se para Bard.
— O que acha, meu filho? Soube de sua fama na guerra e veja, aqui há uma a sua espera, mal voltou para casa, para as Astúrias!
— Preferiria combater Geremy pessoalmente — falou Bard —, porém o trono das Astúrias deve se tornar seguro antes que qualquer pessoa nele se sente! Se Geremy julga que nosso auxílio reforçará sua reivindicação ao trono, ficará em nossas mãos lhe mostrar, quando chegar a hora, que está muito enganado. Quando partiremos?
Durante todo o decorrer do dia sinais de fogo foram enviados, convocando todos os homens em condições de servir às Astúrias para lutarem contra a invasão. A medida que avançavam, mais e mais homens uniam-se a eles, nobres usando armaduras de metal reforçadas com couro, levando espada, escudo e montados; arqueiros a pé, com arcos, flechas ígneas e compridas lanças, fazendeiros e camponeses montados em lombo de burro e animais de carga, carregando antigas lanças, maças repletas de cravos mortais, até mesmo cacetes e forcados.
Bard cavalgava com os mediadores de seu pai, e perto deles ia um pequeno grupo de homens e mulheres, desarmados, usando longos mantos cinzentos e capuzes que escondiam seus rostos; eram os leroni que iam combater ao lado dos guerreiros. Bard se deu conta de que durante toda a sua ausência o pai devia ter recrutado e treinado estes homens e, de repente, arrepiou-se um pouco. Há quanto tempo seu pai vinha maquinando esta rebelião, como algum ovo monstruoso escondido na sua mente? Será que desejava, há tanto tempo assim, a coroa para Alaric?
Pois ele, Bard, sentia-se melhor adequado à guerra do que à governança; preferia ser o homem de confiança do rei a ser o próprio rei, e se este fosse, algum dia, seu querido irmão, havia uma boa vida à sua espera. Começou a assobiar e prosseguiu seu caminho com alegria.
Contudo, cerca de uma hora após, teve um choque, pois entre os leroni tinha reconhecido, mesmo sob o capuz, a silhueta e o rosto de Melisendra.
— Pai, por que a mãe de meu filho acompanha os exércitos? Ela não é uma seguidora de acampamento!
— Não, ela é a leronis mais hábil que temos.
— Seja como for, pelo que me disse, pensei que Lady Jerana me culpava por tê-la incapacitado para este tipo de serviço...
— Oh, ela é inútil para a Visão — esclareceu Dom Rafael. — Contamos com uma jovem solteira para isto, nem tem ainda doze anos. Porém, para todo o resto, Melisendra está altamente capacitada. Houve um tempo em que cheguei a pensar em tomá-la como minha própria barragana, pois Jerana gosta dela, e como ficará sabendo quando estiver casado, é inútil escolher uma concubina que é detestada por sua mulher. Porém... — ele encolheu os ombros — Jerana desejava mantê-la virgem para a Visão, e acabei satisfazendo a vontade dela; e você sabe o que aconteceu. De qualquer maneira, desejava mesmo ter um neto. E, uma vez que Melisendra revelou-se fértil para você, talvez devesse tomá-la como esposa.
Bard amarrou o rosto, revoltado. Falou:
— Recordo-lhe, senhor, que já tenho uma esposa; enquanto Carlina viver, não me casarei com ninguém mais.
— É claro que você poderá se casar com Carlina caso descubra onde se acha — observou Dom Rafael. — Contudo, ela não tem estado na corte desde a morte do pai dela. Fugiu do castelo antes mesmo da Rainha Ariel levar Valentine para junto de seus parentes em Valeron.
Bard ficou se perguntando se ela não teria abandonado a corte para evitar o casamento com Geremy. Sem dúvida alguma, ele devia ter considerado tal casamento como o melhor caminho para reclamar o trono de Ardrin. Será que ela o estava esperando, em algum lugar, para que a fosse reclamar para si mesmo?
— Então, onde está Carlina?
— Sei tanto quanto você, meu filho. Pelo que me consta, encontra-se dentro de uma torre em algum lugar, aprendendo o ofício de uma leronis, ou até mesmo... — Dom Rafael ergueu os olhos para um último grupo de combatentes que tinha se unido ao seu exército na estrada — talvez tenha tosado os cabelos e feito votos ingressando assim na Irmandade da Espada.
— Nunca! — exclamou Bard, com um gesto de desalento, olhando para as mulheres com seus mantos vermelhos. Mulheres com os cabelos cortados mais curtos do que os de um monge, mulheres sem graça ou beleza, mulheres que usavam o punhal da Abnegada, não nas botas como os portavam os homens, mas amarrados através de seus seios, de uma forma tal que um homem que colocasse uma das mãos sobre eles morreria, e a própria mulher morreria antes de se render como uma presa de guerra. Sob os mantos usavam o estranho traje de sua irmandade, calções e uma jaqueta comprida e espartilhada até os joelhos, botas baixas amarradas em torno dos tornozelos; suas orelhas eram furadas como as dos bandidos, e do lóbulo esquerdo pendiam longas argolas balouçantes.
— Fico me perguntando, meu pai, por que faz estas... estas cadelas nos acompanharem.
— No entanto — disse Dom Rafael —, elas são lutadoras exímias, que se comprometem a morrer para não cair nas mãos dos inimigos; nenhuma delas foi, jamais, levada prisioneira, nem quebrou o juramento feito.
— E pretende me fazer acreditar que vivem sem homens? Não acredito nisto — falou Bard com sarcasmo. — E o que pensam os homens, cavalgando com mulheres que não são seguidoras de acampamento?
— Eles as tratam com o mesmo respeito que dedicam às leroni — observou Dom Rafael.
— Respeito? Para com mulheres que usam calções, cujas orelhas são furadas? Eu as trataria, todas elas, como o merecem aquelas que abriram mão das conveniências relativas ao próprio sexo!
— Não aconselharia isto — disse Dom Rafael —, pois ouvi dizer que caso uma delas seja violentada, e não se matar e ao seu sedutor, suas irmãs sairão atrás dela e matarão os dois. Pelo que sabe, são tão castas quanto as sacerdotisas de Avarra; porém, ninguém sabe ao certo o que acontece entre elas. Talvez sejam adeptas, simplesmente, da arte da prostituição secreta. E são, como digo, lutadoras experientes.
Bard não podia imaginar Carlina no meio delas. Prosseguiu viagem, silencioso e carrancudo, até que o chamaram, no meio da tarde, para examinar as armas de um grupo de jovens fazendeiros que tinha se unido a eles. Um deles trazia uma espada herdada, mas os outros levavam machados, piques, forcados e cacetes, que pareciam ter sido manuseados por gerações e gerações.
— Sabe montar? — perguntou ao homem que tinha a espada. — Em caso positivo, pode se juntar aos meus cavaleiros.
O jovem camponês sacudiu a cabeça.
— Nay, vai dom, nem mesmo um animal de arado — confessou ele no seu dialeto rústico. — A espada pertenceu ao meu bisavô, que a usou há cem anos em Firetop. Posso lutar com ela, um bocadinho, só isto, portanto é melhor que eu fique com meus companheiros.
Bard concordou com um movimento de cabeça. Armas não faziam um soldado.
— Como quiser, rapaz, e boa sorte para você. Pode ir com seus companheiros, se unir àqueles homens lá. Falam a sua língua.
— Aye, são vizinhos, vai dom — disse, e perguntou com timidez: — O senhor não é o filho do lorde, aquele que chamam de Lobo, dom?
— Assim me apelidaram — confirmou Bard.
— O que está fazendo aqui, dom? Soube que estava banido, em terras estranhas...
Bard riu divertido:
— Aquele que me baniu foi explicar isto no inferno. Vai tentar me matar para receber o prêmio pela minha cabeça, rapaz?
— Nay, nada disso! — respondeu o camponês, os olhos arregalados de assombro. — Não posso matar o filho do lorde. Só o senhor nos liderando podemos vencer, dom Lobo.
— Que todas as raposas e selvagens de Serrais pensem assim — falou Bard, e ficou observando o camponês se juntar ao seu grupo. Seus olhos estavam pensativos enquanto se encaminhava para se juntar ao pai. Aqui e ali escutava pedaços de conversa: o Lobo, o Lobo de Kilghard veio nos liderar. Bem, talvez aquilo lhes fizesse bem.
Quando chegou perto do pai, Dom Rafael fez um sinal para o mais moço dos leroni, um garoto com um semblante puro, cheio de sardas, os cabelos flamejantes sob o capuz cinzento; tinha apenas uns doze anos.
— Rory viu alguma coisa, Bard. Conte ao meu filho o que viu, meu jovem.
— Além do bosque, dom Lobo... Dom Bard — corrigiu-se rapidamente —, há uma comitiva de homens se aproximando para nos preparar uma emboscada.
— Você viu isto. Com a Visão? — indagou Bard com os olhos semicerrados.
O laranzu retrucou:
— Não pude ver muito bem, cavalgando, como num cristal, ou numa poça de água límpida. Mas estão lá.
— Quantos? Onde? Como estão armados? — Ele atirava as perguntas sobre o garoto. Rory desmontou do seu pônei e, apanhando um galhinho, começou a desenhar algo na terra.
— Quatro, talvez cinco dúzias. Uns dez a cavalo, assim... — traçou uma linha formando um ângulo com o resto. — Alguns dos outros têm arcos...
Melisendra inclinou-se sobre o menino e perguntou:
— Há leroni com eles?
— Acho que não, domna. É difícil de se ver...
Bard olhou rapidamente ao seu redor para a grande quantidade de homens caminhando dispersos atrás deles. Que inferno! Não tinha julgado necessário, ainda, mandá-los formar fileiras; porém, se fossem atacados pelo flanco do jeito em que se encontravam, mesmo alguns poucos homens poderiam causar danos terríveis! Antes mesmo de pensar seriamente na emboscada, ele disse de supetão:
— Rory, veja isto! Há homens nos seguindo? O garoto apertou os olhos e falou:
— Não, dom Lobo, a estrada está livre atrás de nós, até a fortaleza de Dom Rafael e há muita distância até a fronteira com Marenji.
Isto significava que o exército invasor de Serrais encontrava-se em algum ponto entre eles e o Castelo das Astúrias. Será que teriam que lutar para conseguirem passar e depois depararem com o Castelo das Astúrias sob cerco? Talvez os invasores pudessem solapar a resistência de Geremy Hastur mesmo antes deles chegarem lá. Não, esta não era a maneira conveniente de se referir a um aliado com o qual se celebrou um armistício. E nesse meio tempo havia uma emboscada aguardando seu exército. Uma emboscada insignificante, cuja finalidade — disto ele tinha certeza — era apenas retardá-los um pouco, pois teriam que parar para socorrer os feridos, e, assim, não chegarem ao castelo antes do anoitecer, ou talvez no dia seguinte. O que significaria um ataque planejado para aquela noite. Um exército deste tamanho não podia escapar da observação; se dispusessem de pássaros-sentinela ou leroni com a Visão, o exército de Serrais deveria sem dúvida saber que eles estavam a caminho, e teria algum interesse especial para mantê-los afastados por mais um dia.
Bard conversou com o pai sobre isto e este concordou com o seu raciocínio.
— Mas o que faremos? — indagou.
— É uma lástima, pai, não termos condições de contorná-los em algum lugar, e deixar os homens da emboscada observando ali como um gato diante de uma toca de camundongos já abandonada. No entanto, não podemos conduzir um exército deste tamanho, através do bosque, sem que seja visto. Rory afirma que não há nenhum leronis com eles, porém isto não significa que não haja nenhum leronis em comunicação com um de seus líderes, vendo através de seus olhos. Portanto, não podemos atacá-los sem que alertemos também o exército principal de Serrais. — Deixou-se ficar refletindo por algum tempo. — E se agirmos assim, mesmo que os aniquilemos rapidamente... quarenta e oito homens não têm condições de enfrentar nosso exército... lhes daríamos tempo para que os leroni ou um pássaro-sentinela nos espionasse e, desta forma, ficariam cientes de quantos somos, onde nos encontramos e como estamos armados. Contudo, uma leronis não consegue relatar aquilo que não testemunha. Acho que o grosso do exército deve atravessar o bosque num ponto onde os homens em emboscada não o possam ver. Pai, entregue a um dos homens o seu manto e deixe-o montar o seu cavalo, e mande-o continuar comigo, portando seu estandarte, enquanto o senhor conduz o exército principal contornando o bosque. Enquanto isto, dê-me... — fez uma pausa para refletir — dez ou doze cavaleiros com piques e uns doze espadachins com escudos grandes; e alguns arqueiros. Seguiremos pela trilha principal; e se tivermos sorte, os observadores ligados com a emboscada pensarão que é apenas isto com que contamos para terminar com o cerco do Castelo das Astúrias. Leve todas as leroni com o senhor, e quando tiver saído deste bosque, sente-se com elas e seus pássaros-sentinela e deixe-as nos dizer que tipo de exército Serrais mandou nos atacar desta vez.
Tudo isto foi resolvido com rapidez.
— Leve os arqueiros de Guild — disse-lhe o pai —, os cavaleiros de Lorde Lanzell... são quinze homens, acostumados a combaterem juntos e a seguir a liderança de um homem. Quanto aos outros, escolha-os à vontade.
— Pai, ainda não conheço os homens suficientemente bem para ter condições de escolher os melhores tão depressa quanto se faz necessário.
— Jerrall conhece-os — retrucou Dom Rafael, apontando para o seu porta-estandarte. — Já me serve há vinte anos. Jerrall, acompanhe meu filho e obedeça-o como se ele fosse eu.
Bard sentiu um estranho aperto na garganta enquanto seus homens selecionados punham-se em forma e observava o exército principal enfileirar-se de modo cerrado para seguir pelo outro caminho. Desde seus 13 anos que combatia, porém esta era a primeira vez que guerreava sob o estandarte do pai; e a primeira vez também, desde que fora mandado para o exílio, que combatia por uma terra cujo sucesso lhe interessava diretamente.
Precipitaram-se contra a emboscada vindos por trás dela, pegando os homens montados de surpresa e matando metade de seus cavalos antes que os soldados a pé pudessem cair sobre eles. Os homens de Bard formaram uma parede protetora e lançaram flechas em brasa contra eles. A batalha demorou menos de meia hora, após o que os homens de Bard já estavam com o estandarte de Serrais em suas mãos, e os feridos fugiam em todas as direções. Bard só perdera uns três homens, Porém tinham capturado ou matado todos os cavalos do inimigo. Ordenou que fossem cortadas as gargantas dos que estivessem gravemente feridos — não sobreviveriam caso fossem removidos dali e isto era uma atitude mais complacente do que os deixar ali para serem devorados pelos kyorebni ou lobos — e para recolherem armas e armaduras.
Retornando para o exército principal, os prisioneiros foram interrogados por um laranzu que podia esquadrinhar suas mentes. A partir daí, ficaram sabendo que, na verdade, teriam que lutar para abrir caminho através do exército de Serrais antes de conseguirem chegar ao Castelo das Astúrias. O exército, disposto do lado de fora dos muros do castelo, estava se preparando para atacar, porém se encontrava pronto para mantê-lo sitiado caso não fosse possível capturá-lo com um ataque surpresa.
Bard concordou com o semblante sombrio:
— Precisamos forçar nossa passagem durante a noite. Não nos será possível conduzir todas as carroças de provisões de modo tão rápido, porém nossos melhores homens devem chegar lá a tempo de impedir este ataque surpresa que os homens de Serrais estão planejando!
A chuva que caía todas as noites naquela estação já se fazia presente, porém eles prosseguiram o mais rápido que lhes era possível, mesmo depois que a chuva se transformou em neve fina, e houve alguns protestos entre os homens devido a isto.
— Está tentando nos dizer que eles atacariam o Castelo das Astúrias com este tempo? Não conseguiriam divisar os muros para dispararem contra eles!
Isto fez com que Bard se recordasse daquela campanha de há muito tempo, seu primeiro comando independente. Melisendra, os cabelos brilhantes cobertos pelo capuz cinzento, o fez lembrar, inesperadamente e com um toque de remorso profundo, de Melora. Onde estava ela agora? Até a voz de Melisendra era igual à dela, quando disse baixinho:
— Pode estar certo de uma coisa, o tempo vai melhorar antes do clarear do dia. E tenha certeza de que os feiticeiros deles também sabem disto. Talvez lá dentro do castelo imaginem que estão a salvo por causa da tempestade. No entanto, quando o céu limpar, haverá luar.
O homem olhou-a com uma admiração respeitosa, e disse:
— Domna, sabe disto através de sua feitiçaria?
— Sei disto porque conheço os ciclos da lua — falou Melisendra rindo. — Qualquer fazendeiro poderia lhe dar a mesma informação. Esta noite temos quatro luas no céu, e Liriel e Kyrrdis estão na fase da cheia. Ficará suficientemente límpido para os falcões voarem! Portanto, devemos chegar lá em tempo para combater; mas — acrescentou pensativa — haverá claridade suficiente para que os feiticeiros deles possam lidar, também, com a feitiçaria e devemos estar preparados para isto.
Bard estava contente com a notícia; contudo, não era adepto do emprego de feitiçaria em combate. Preferia as espadas e as lanças verdadeiras!
A tempestade aumentou de uma forma fora do comum, e os leroni cavalgavam à frente, levando tochas acesas, e o jovem Rory explorava os caminhos com a Visão. Homens e cavalos arrastavam-se atrás deles, seguindo as tochas, lutando contra a neve e as rajadas de vento, praguejando. Bard perguntava-se se aquela nevasca não seria obra dos leroni inimigos. Parecia-lhe violenta demais para ser uma coisa natural. Não tinha como se certificar e resolveu, cheio de despeito, que não iria perguntar aquilo a Melisendra!
E então, de repente, tudo terminou; deixaram a tempestade para trás e penetraram numa noite límpida, o vento parou e, mais à frente, as luas enormes e tranqüilas flutuavam cheias, a diáfana Liriel, e Kyrrdis lançando reflexos azulados na noite. Bard ouviu as exclamações de espanto dos homens. Do topo de uma colina, eles olharam para o vale que cercava o castelo.
Tudo estava calmo e soturno. Ele sabia, pelo que as feiticeiras lhe tinham contado, que todo o exército de Serrais ali se encontrava, acampado fora dos muros do castelo, preparado para atacar ao amanhecer; contudo, nem uma fogueira brilhava, nem se ouvia o ruído de um Cínico passo lá embaixo.
— Porém, estão lá — afirmou Melisendra ao seu lado e, através da mente dela, ele viu a imagem do vale, não mais escura como a tinha visto, mas iluminada com estranhos clarões que, ele sabia, eram homens, cavalos e engenhos bélicos.
— Melisendra, como pode ver isto?
— Não sei. Talvez a minha pedra da estrela absorva o calor dos corpos deles e o traduza num quadro que minha mente tem a capacidade de ver... todos enxergam de uma forma diferente do outro. Rory disse-me que era capaz de ouvi-los; talvez ele sinta o movimento de sua respiração, ou perceba o grito da relva quando os pés deles as esmagam.
Bard estremeceu, desejando não ter perguntado nada. Ele havia possuído esta mulher, ela lhe dera um filho, mas ainda assim nada sabia sobre ela e tinha medo dela. Ouvira comentários a respeito de um laran que era capaz de matar com um pensamento. Será que ela o possuía? Não, pois caso contrário o teria abatido, sem dúvida, para defender a sua castidade...
— Os leroni deles sabem que estamos nos aproximando?
— Tenho certeza de que sabem que estamos por perto. A presença de todos estes homens e animais não pode ser escondida de ninguém dotado com um laran. Contudo, Rory e eu bloqueamos nossos Dons o máximo que nos foi possível, e, felizmente, eles julgam que nos achamos bem mais longe do que estamos. Deixamos o velho Mestre Ricot, e a dama Arbella, junto às carroças de provisões, e instruímos os dois no sentido de enviarem imagens falsas, como se o exército ainda estivesse ao lado deles... Só nos resta esperar e ver.
Esperaram. Kyrrdis baixava rumo à linha do horizonte, e o céu, a Leste, estava começando apenas a ficar avermelhado, quando Melisendra tocou no braço de Bard e falou:
— Lá embaixo, foi dada a ordem para atacar.
Bard retrucou carrancudo:
— Pois bem, então nós os atacaremos antes — fez um sinal para o pajem e deu a ordem. Não se sentia cansado, embora há três noites dormisse muito pouco. Tirou um naco de um pedaço de pão assado com um pouco de carne cozida dentro. Parecia couro, porém ele sabia, por experiência, que se fosse enfrentar a batalha de estômago vazio, haveria de sofrer tonturas ou enjôos. Com outros homens, ele o sabia, acontecia o oposto; Beltran sempre declarara que se tocasse num pedacinho de qualquer alimento, haveria de vomitar tudo como uma mulher grávida... por que estava agora pensando em Beltran? Por que aquele fantasma se sentava no seu ombro?
Logo, estariam investindo contra o exército invasor de Serrais para salvar o Castelo das Astúrias e a vida inútil de Geremy Hastur. E quando atacariam eles novamente? Com o exército de Dom Rafael ali, será que Geremy pensava que poderia tornar válida a sua reivindicação ao trono? Será que Geremy achava que a trégua duraria mais tempo do que aquele que Dom Rafael julgasse ser conveniente? Contudo, ele tinha solicitado a Dom Rafael que conduzisse seu exército até ali.
Quantos homens haveriam de ficar a favor de Dom Rafael? Provavelmente, a maioria deles não devia querer ver um Hastur no trono, como acontecia com seu líder.
Abaixo dele cintilou algo e ele deu um comando rápido:
— Luzes!
De todos os lados, tochas acesas surgiram por trás dos escudos. Uma flecha em brasa desenhou uma comprida e sibilante cauda de cometa no meio do exército de Serrais.
— Atacar! — berrou Bard.
O exército, lançando o antigo brado de guerra dos di Asturiens, lançou-se colina abaixo investindo contra o exército de Serrais, atacando-o pela retaguarda enquanto ele se lançava contra os muros das Astúrias.
Quando o sol se erguia lentamente por cima das colinas orientais, o exército de Serrais jazia despedaçado, os remanescentes debandando em meio à confusão generalizada; a coragem abandonara-os quando do primeiro ataque ordenado por Bard, que tinha matado e ferido a metade da retaguarda. Não haviam conseguido sequer usar uma única catapulta ou engenho bélico, nem acender o clingfire; Bard conseguira capturar tudo aquilo. Em seguida, algumas cápsulas de seu clingfire tinham sido acesas entre eles, frágeis, explodindo por todos os cantos e irrompendo entre os cavalos que haviam restado, fazendo-os partir num estouro desenfreado; e então tudo estava terminado, menos a carnificina e a rendição final. Homens armados lá dentro do castelo tinham-lhes dado cobertura com arqueiros colocados sobre os muros e, no fim, os leroni tinham se unido para disseminar o terror entre os homens do exército de Serrais, de modo que o que ainda restava fugiu soltando gritos estridentes, como se todos os demônios de todos os nove infernos de Zandru estivessem atrás deles. Bard pensou, tendo combatido contra o terror do laran por si mesmo, que os demônios estavam provavelmente soltos — ou pelo menos assim julgavam os homens de Serrais, o que vinha a dar no mesmo.
Dom Eiric Ridenow de Serrais tinha sido preso, e no momento em que Bard cavalgou rumo ao castelo junto com seus porta-estandartes, eles já discutiam se era melhor mantê-lo como refém para assegurar o bom comportamento por parte dos outros senhores de Serrais, ou libertá-lo em troca de um resgate e mandá-lo de volta à casa depois de ter feito um juramento de neutralidade, ou enforcá-lo e dependurá-lo nos muros do castelo como um exemplo para outros que pudessem tentar cruzar armados as fronteiras das Astúrias.
— Façam o pior que puderem — disse o velho, cerrando os dentes com tanta fúria, que sua barba loura remexeu-se. — Vocês acham que meus filhos não marcharão contra as Astúrias com todas as forças, agora que já sabem o que aconteceu com seu exército avançado?
— Ele está mentindo — avisou um jovem laranzu. — Este exército não era uma força avançada; foi formado com todos os homens que conseguiu reunir. Seus filhos não estão em idade de combater. Eles arriscaram tudo numa única cartada.
— E teriam sido bem-sucedidos, se não fossem os seus esforços, meu parente — falou Geremy Hastur para Dom Rafael. Ele usava um manto longo, um manto de pessoa ilustrada, de cor púrpura, mas numa tonalidade tão escura, que era quase negro. Estava desarmado, usava apenas um pequeno punhal. O manto comprido escondia o terrível aleijão, porém não dissimulava o passo trôpego ou sua parada brusca, apoiado numa muleta como um homem que tivesse quatro vezes a sua idade. Seus cabelos ruivos já começavam a encanecer junto às têmporas, e tinha começado a usar, como um ancião, uma barba rala em volta da mandíbula. Bard pensou, com desdém, que seu irmão de criação parecia menos um guerreiro do que aquelas Abnegadas que tinham lutado no seu exército!
Dom Rafael e Geremy abraçaram-se como parentes, mas depois separaram-se; os olhos de Geremy depararam com Bard onde se encontrava, a dois passos atrás do pai.
— Você!
— Está surpreso em me ver, parente?
— Você foi proscrito deste reino por sete anos, Bard; e agora tem as mãos sujas de sangue real. Sua vida está duplamente perdida aqui. Dê-me apenas uma boa razão para que não chame meus homens a fim de retirá-lo daqui e enforcarem-no nos muros!
— Você bem sabe por que traição este sangue parou em minhas mãos... — falou Bard irado.
Dom Rafael o fez calar-se com um gesto:
— Primo Geremy, isto é gratidão? Bard comandou o assalto que salvou o Castelo das Astúrias de cair nas mãos de Serrais. Se ele não tivesse vindo, sua cabeça estaria agora enforcada como a de um papagaio, para que os homens de Dom Eiric a usassem como alvo de treinamento!
Geremy cerrou a boca:
— Jamais pus em dúvida a coragem de meu primo, e assim sendo, acredito que deva lhe conceder anistia, vida por vida. Que assim seja, Bard; vá e venha neste reino como lhe permitem seus direitos legais. Mas não diante de mim. Quando o exército se retirar, vá com ele, e não torne a pôr os pés na minha corte pelo bem de sua vida, pois no dia em que pousar meus olhos em você outra vez, sem dúvida alguma mandarei matá-lo!
— Quanto a isto... — começou a falar Bard, mas foi interrompido por Dom Rafael.
— Basta! Antes que comece a decretar sentença de morte ou de banimento, Hastur, seria melhor que contasse com um trono de onde pudesse falar. Baseado em que, reivindica reinar aqui?
— Na qualidade de regente de Valentine, filho de Ardrin, por solicitação da Rainha Ariel; e como guardião destas terras, que já foram, desde tempos imemoriais, parte dos domínios dos Hasturs e que voltarão a sê-lo, quando tiverem terminado estes anos de anarquia. Os Hasturs de Carcosa são pessoas pacíficas e permitirão que os di Asturiens reinem aqui, desde que jurem aliança ao domínio dos Hasturs, e Valentine já fez isto.
— Oh, bravos! — retrucou Dom Rafael. — Grande glória e dívidas galantes são as suas, Geremy Hastur, para arrancar um juramento de uma criancinha de cinco anos! O que prometeu a ele? Um brinquedo, uma espada de mentira ou um pônei novo, ou será que foi mais fácil que isto? Não teria sido um bolo açucarado e um punhado de doces?
Geremy perturbou-se com o sarcasmo:
— Ele acatou as palavras da Rainha Ariel, a mãe dele. Ela sabia muito bem que eu defenderia os direitos do menino até que ele estivesse crescido; momento em que, falou-me ele, faria o juramento como um homem, para aqui reinar como um guardião dos Hasturs.
— Não queremos nenhum Hastur nesta terra que se encontra em poder dos di Asturiens desde que a conquistaram, há séculos, dos homens-gatos! — disse Dom Rafael com ardor.
— Os homens desta terra seguirão Valentine, seu senhor de direito, aliado com o legítimo Rei de Hastur — avisou Geremy.
— Será mesmo? Se acredita realmente nisto, é melhor que lhes pergunte, meu senhor.
— Julgava — disse Geremy, controlando seu gênio com um esforço evidente — que estávamos sob armistício, Dom Rafael.
— Celebramos uma trégua enquanto os exércitos de Serrais o mantivessem aqui; mas, veja bem, este exército está em ruínas, e duvido que Dom Eiric possa reunir suficientes homens para pôr um exército em campo durante dez anos ou até mesmo mais! Mesmo se o deixarmos vivo! Quanto a isto — acrescentou, fazendo um sinal para um de seus guarda-costas —, leve Dom Eiric daqui e mantenha-o seguro.
— Numa masmorra, meu senhor?
— Não — disse Dom Rafael observando Eiric da cabeça aos pés. — Não. Isto seria duro demais para seus velhos ossos. Se ele estiver disposto a prestar um juramento, sob o encantamento da verdade, que não tentará escapar até termos deliberado a respeito de que destino lhe dar, nós o acolheremos com o conforto de sua classe e de seus cabelos grisalhos.
— Para cada cabelo branco na minha cabeça — retrucou Dom Eiric com veracidade — há dez na sua, Dom Rafael di Asturien!
— Ainda assim, vou abrigá-lo com conforto até que seus filhos possam pagar seu resgate, pois precisarão do senhor em casa até estarem adultos. Garotinhos são impetuosos e poderiam tentar algo muito perigoso para eles.
Dom Eiric deixou escapar um olhar fulminante, mas finalmente disse:
— Tragam nossos leroni. Jurarei pelos muros de Serrais que não deixarei este lugar até que o senhor, pessoalmente, me ponha em liberdade, vivo ou morto.
Bard soltou uma gargalhada sarcástica.
— Pai, trate de tirar dele um juramento mais forte do que este envolvendo as muralhas de Serrais, pois posso ir até lá e arrebentá-las quando bem entender.
Dom Eiric olhou-o furioso, porém nada comentou, pois o que Bard falara era verdade, e ele o sabia.
Dom Rafael ordenou para seu guarda:
— Leve-o para algum aposento confortável e mantenha-o ali, bem vigiado, até que eu possa vê-lo prestar o juramento. É a sua vida que está em risco, caso ele fuja antes que um leronis receba o juramento.
Geremy Hastur protestou enquanto o velho senhor era levado dali.
— Não se fie tanto assim na minha gratidão, primo. Está sendo liberal demais, me parece, ao dispor de meus prisioneiros.
— Seus prisioneiros? Quando irá enfrentar a verdade, primo? — indagou Dom Rafael. — Seu período de mando aqui terminou e lhe provarei isto — fez um sinal para Bard, que se dirigiu para o balcão. No pátio embaixo, onde o exército se achava aquartelado, ele ouviu uma explosão entusiasta de aplausos.
— O Lobo! O Lobo de Kilghard!
— Nosso general! Conduziu-nos à vitória!
— O filho de Dom Rafael! Viva a casa dos di Asturiens!
Dom Rafael rumou para o balcão e exclamou:
— Escutem-me, homens! Vocês se libertaram de Serrais. Vão entregar as Astúrias de volta aos Hasturs? Reclamo este trono da casa das Astúrias; não para mim mesmo, mas para meu filho Alaric!
Vivas entusiasmados abafaram suas palavras. Quando tudo ficou em silêncio outra vez, Dom Rafael disse:
— Sua vez, Lorde Geremy. Pergunte se há algum homem lá embaixo que deseje viver doze anos, ou mais, sob o mando de Hastur, enquanto Valentine, o filho de Ardrin, se desenvolve rumo à maturidade.
Bard percebeu que podia sentir o gosto do ódio e da fúria de Geremy, pois estes sentimentos envolviam-no de maneira muito forte; mas ele nada falou, limitou-se a aparecer no balcão. Houve um ou dois gritos de "Hastur, não!" "Abaixo os tiranos de Hastur!", porém, após um instante, todos emudeceram.
— Homens de di Asturien — falou Geremy bem alto. Sua voz era forte, ressonante, vibrante, o que desmentia o frágil corpo que a continha. — Em épocas passadas, Hastur, filho da Luz, conquistou este reino e colocou o di Asturien nele, em tutela! Estou aqui representando o Rei Valentine, filho de Ardrin. São vocês, homens, traidores para se rebelarem contra seu rei de direito?
— E onde se encontra este rei então? — gritou um homem no meio da multidão. — Se ele é nosso rei de direito, por que não se encontra aqui, sendo educado entre seus súditos fiéis?
— Nada de rei fantoche de Hastur aqui! — gritou um outro. — Volte para Hali que é o seu lugar, Hastur!
— Teremos um verdadeiro di Asturien no trono, não um Hastur adulador!
— Nas Astúrias não beijaremos nenhum traseiro de Hastur!
Bard escutava, com satisfação crescente, à medida que os brados cresciam. Alguém atirou uma pedra. Geremy não recuou; ergueu a mão e a pedra explodiu num fogacho de luz azul.
— Não queremos reis feiticeiros nas Astúrias!
— Queremos um soldado, não um laranzu diabólico!
— Dom Rafael! Dom Rafael! Quem toma o partido do rei Alaric? — gritavam eles, e houve até mesmo alguns gritos de "Bard! Bard di Asturien! Ficaremos com o Lobo de Kilghard!”
Alguém atirou outra pedra, que passou a menos de um palmo de Geremy. Ele não se deu o trabalho de se afastar dela. Em seguida, alguém jogou um punhado de esterco de cavalo que se esboroou sobre o manto púrpura. O mediador de Geremy segurou-o pelo cotovelo e arrastou-o do balcão.
— Ainda acha que pode reivindicar o trono das Astúrias, Dom Geremy? — perguntou Dom Rafael. — Talvez devesse mandar a sua cabeça de volta para a Rainha Ariel e para a gente de Carcosa, como uma advertência para que a senhora escolha seus empregados com mais cuidado.
O sorriso de Geremy era quase tão sombrio quanto o do ancião.
— Não o aconselharia a fazê-lo. O Rei Valentine adora seu companheiro de brincadeira Alaric; contudo, duvido muito que a Rainha Ariel não o conseguisse persuadir a lhe retribuir presente com presente.
Bard adiantou-se, os punhos cerrados, porém Dom Rafael sacudiu a cabeça.
— Não, meu filho. Nada de derramamento de sangue por aqui. Não desejamos nenhum mal aos Hasturs enquanto governarem suas terras e não se intrometerem nas nossas. Mas ficará aqui como meu convidado até que meu filho Alaric volte a morar sob este teto.
— Acha que Carolin de Carcosa negociará com um usurpador?
— Então, me sentirei muito feliz em tê-lo como hóspede até quando o deseje, meu senhor. Caso eu não viva o bastante para vê-lo retornar a Carcosa, tenho um neto que reinará como guardião das Astúrias no lugar de meu filho Alaric. — E depois, Dom Rafael dirigiu-se a Bard: — Conduza nosso hóspede real para seus aposentos... ele é membro da família real de Carcosa, embora jamais o venha a ser nas Astúrias. E deve contar com criados que cuidem para que nada lhe falte, e que não saia por aí fazendo explorações pelos bosques e sabe-se lá podendo cair e machucar sua perna coxa. Devemos cuidar do filho do Rei de Carcosa com toda a deferência.
— Cuidarei para que se mantenha dentro dos seus aposentos estudando e meditando e não corra qualquer risco de se machucar com exercícios — disse Bard, e pousou uma das mãos no ombro de Geremy:
— Vamos, primo.
Geremy tirou a mão de Bard de seu ombro como se aquilo o estivesse queimando.
— Você, seu maldito bastardo, não ouse pôr as mãos em mim!
— Não sinto o mínimo prazer ao tocá-lo — retrucou Bard. — Não gosto, nem sou amante de homens. Não quer atender ao meu delicado convite? Então... — fez sinal para dois soldados: — Meu senhor Hastur está tendo alguma dificuldade para andar; ele é manco, como vêem. Por favor, ajudem-no a ir para seus aposentos.
Geremy berrou e gritou quando os robustos homens de armas levantaram-no e carregaram-no; depois, lembrando-se de sua dignidade acalmou-se e permitiu que o levassem. Contudo, o olhar que lançou na direção de Bard deixou bem claro que se ele voltasse a se ver frente a frente com ele, armado e pronto, podia estar certo de que haveriam de lutar até que um dos dois morresse.
Devia tê-lo matado quando tive oportunidade para isto, pensou Bard com amargura. Mas o tinha aleijado por falta de sorte. Não o podia matar desarmado.
Gostaria bem mais de ter Geremy como irmão de criação e amigo, não como inimigo. Qual o deus que me odeia, a ponto de eu ter que suportar isto?
A mudança do poder no Castelo das Astúrias foi feita alguns dias depois, sem muito alarde. Tiveram que enforcar alguns homens de Geremy, que haviam organizado uma revolta palaciana, porém um dos laranzu descobriu o complô antes dele se tornar realidade. Logo depois, tudo estava calmo. Bard ficou sabendo por Melisendra que uma das damas da rainha exilada estava grávida de Geremy Hastur e tinha suplicado para se juntar a ele na prisão.
— Não sabia que Geremy tinha uma namorada. Sabe como se chama?
— Ginevra — respondeu Melisendra. Bard ergueu as sobrancelhas. Ele se lembrava de Ginevra Harryl.
— Você é uma leronis. Não pode fazê-la abortar? Manter um Hastur prisioneiro já é muito ruim, sem dar início a uma dinastia.
Os olhos de Melisendra estavam claros devido à raiva contida.
— Nenhuma leronis seria capaz de malbaratar seus poderes assim!
— Pensa que sou algum idiota, mulher? Não me venha com contos de fadas virtuosos! Toda a seguidora de acampamento que engravida contra sua vontade conhece uma feiticeira que a aliviará desta carga inconveniente!
Muito excitada, Melisendra retorquiu:
— Se uma mulher não quiser dar à luz uma criança na miséria, ou em campanha, ou sem pai, ou quando sabe que não terá leite... aí, sem dúvida, alguma leronis ficará com pena dela! Mas daí matar um bebê muito esperado, simplesmente porque algum homem acha-o inconveniente para o seu trono? — seus olhos pareciam soltar chispas contra ele. — Você acha que eu queria seu filho, Bard di Asturien? Porém estava feito, era irrevogável, e desse no que desse, tinha perdido a Visão... portanto, evitei causar danos a uma vida inocente, mesmo não a tendo desejado. E se tive condições de me abster de assim agir, você pensa que faria algum mal ao bebê de Ginevra, nem que fosse em pensamento? Ginevra ama o filho e o pai dele! Se quer que seu serviço imundo seja feito, mande um homem com uma espada para cortar a garganta dela, e acabe logo com tudo!
Bard não pôde dizer nada. Aquele era um pensamento terrível — pensar que Melisendra pudesse ter se livrado, tão facilmente, daquela criança que era Erlend? Por que tinha controlado a sua mão?
E havia o problema de Ginevra. Mulheres infernais e seus escrúpulos idiotas! Melisendra tinha matado em combate, ele sabia disto. Contudo, ali estava um inimigo em potencial dos di Asturiens, mais perigoso do que alguém que usasse espada ou pique, e este inimigo estava vivo, ia continuar vivendo! Não ia se rebaixar discutindo com ela, mas a faria entender o quanto estava furioso com ela novamente! Disse-lhe isto e saiu do quarto batendo a porta.
Sendo obrigado a pensar na mulher que tinha e não queria, recordou-se, por força, daquela que desejava e não possuía. E após algum tempo pensou numa maneira de usar Ginevra e o filho que ela esperava.
Quando a zona rural ficou calma, e os exércitos já tinham voltado para casa, a não ser o que Bard estava treinando para a defesa e talvez conquista (pois sabia muito bem que os Hasturs haveriam algum dia de investir contra eles, tivessem eles reféns ou não). Lady Jerana não tinha perdido tempo em se mudar para a corte. Bard foi procurá-la nos aposentos que tinham sido da Rainha Ariel.
— Lady Ginevra Harryl, que está grávida de Hastur... encontra-se saudável e bem? Quando deverá dar à luz?
— Talvez daqui a três luas — respondeu Lady Jerana.
— Faça-me uma gentileza, mãe de criação. Providencie para que seja cercada de todo o conforto, com damas à altura para cuidarem dela e providencie uma parteira boa e de confiança para assisti-la.
Lady Jerana franziu a testa:
— Ora, tudo isto já foi posto à disposição dela; conta com três damas que, se sabe, simpatizam com Hastur, e a parteira que assistiu ao nascimento de seu filho está à espera dela; contudo, conheço-o bem demais para pensar que está fazendo tudo isto apenas por uma questão de delicadeza para com Lady Ginevra.
— Não? — exclamou Bard. — Já se esqueceu de que Geremy é meu irmão de criação?
Jerana parecia cética, mas Bard nada mais comentou. No entanto, mais tarde, naquele mesmo dia, quando verificou pessoalmente que tudo quanto a mulher de Dom Rafael tinha dito era verdade, rumou para os aposentos de Geremy.
Geremy estava jogando um jogo chamado Castles com um dos pajens colocados à sua disposição. Quando Bard entrou, largou os dados e pôs-se de pé com dificuldade.
— Não precisava se levantar por cortesia, Geremy. De fato, não precisa se levantar de forma alguma.
— É habitual que um prisioneiro se levante na presença de seu carcereiro — retrucou Geremy.
— Como queira. Vim até aqui para lhe trazer notícias de Lady Ginevra Harryl. Tenho certeza de que é orgulhoso demais para pedir notícias dela, por isto vim para lhe assegurar que está alojada numa suíte junto à da mulher de meu pai, e que as suas damas, Camilla e Rafaella Delleray e Felizia MacAnndra, estão às ordens dela; e que uma parteira experiente, que costuma assistir aos partos na nossa família, está cuidando dela.
Os punhos de Geremy fecharam-se:
— Conhecendo você, estou certo de que esta é a sua maneira de me dizer que está se vingando de algum suposto insulto, colocando-a e as suas damas, em alguma masmorra imunda, com uma mulher maldita para ajudá-la a ter seu filho.
— Está me julgando mal, primo. Ela se encontra alojada com muito mais conforto do que você, e repetirei isto sob o encantamento da verdade, se assim o desejar.
— Por que haveria de fazer isto? — indagou Geremy, cheio de suspeitas.
— Porque sabendo como um homem fica perturbado com os pensamentos a respeito de sua mulher, julguei que devesse estar tão ansioso para ter noticiais de sua lady quanto eu da minha. Se quiser, pode-se dar um jeito para que Ginevra venha ficar com você...
Geremy despencou sobre a cadeira e cobriu o rosto com as mãos.
— Sente prazer em me atormentar, Bard? Você nunca teve nenhum problema com Ginevra, mas se sente prazer em me ver humilhado, rastejarei para você sobre meus joelhos, se for necessário; não faça nada de mal contra Ginevra ou com o filho dela.
Bard abriu a porta para que uma leronis do palácio entrasse — não era Melisendra. Quando a luz azul do encantamento da verdade iluminou o cômodo, ele disse:
— Ouça-me, Geremy. Lady Ginevra está acomodada luxuosamente, dispõe de alimentação farta para uma mulher grávida e tudo aquilo de que ela mais gosta, por ordem minha. Está com as suas damas ao seu lado, dormindo com ela para que ninguém possa incomodá-la, e a parteira de minha mãe encontra-se a sua inteira disposição.
Geremy observou a luz do encantamento da verdade e esta não tremeu nenhuma vez. Continuava com suspeitas, porém conhecia o bastante sobre laran, tendo ele sido treinado naquela arte, para saber que não houvera nenhuma mistificação quando o encantamento fora lançado. Perguntou:
— Por que diz isto tudo para mim?
— Porque também tenho uma mulher, que não vejo há sete longos anos de proscrição e exílio. Se estiver disposto a me dizer, sob o encantamento da verdade, onde posso encontrar Carlina, estou pronto a permitir que Ginevra venha para aqui, ou mudar você, sob guarda, para sua suíte, até o nascimento de seu filho.
Geremy atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, uma demorada gargalhada de desespero:
— Isto posso lhe dizer! Tinha me esquecido como levou a sério o compromisso de vocês... naquele momento, todos nós o consideramos muito seriamente, antes de sua briga com Ardrin.
— Carlina é minha mulher — contestou Bard. — E como há encantamento de verdade aqui, diga-me com sinceridade, também: Ardrin não se arrependeu da promessa feita e não tentou entregá-la para você, cria de Hastur?
— Arrependeu-se cedo e tarde — respondeu Geremy —, e com a morte de Beltran, você sob proscrição, ele considerou o laço entre vocês dois desfeito. E, na verdade, ofereceu-a a mim. Mas não cerre seus dentes assim e não se enraiveça desta forma, Lobo; Carlina seria incapaz de manter qualquer relacionamento comigo e declarou isto, muito embora o velho rei tenha feito um estardalhaço a respeito e jurado que não ia ser desafiado daquele jeito por nenhuma mulher viva!
A luz do encantamento da verdade que iluminava o rosto de Geremy continuava estável; Bard sabia que ele dizia a verdade. Experimentou uma onda de alegria. Carlina tinha se lembrado de seu compromisso para com ele, tinha se recusado a se casar até mesmo com Geremy!
— E onde está ela, Geremy? Fale, e Ginevra estará livre para ficar ao seu lado.
A gargalhada de Geremy tinha a amargura do desespero.
— Onde está agora? Vou lhe contar, primo, com toda a boa vontade! Ela fez os votos de uma sacerdotisa de Avarra, que nem mesmo o pai dela ousava impugnar, e abandonou o castelo e o reino, rumando para a Ilha do Silêncio, onde jurou viver o resto da vida em castidade e oração. E se a quer, primo, terá que ir até lá e apoderar-se dela.
Depois da conquista das Astúrias, o pai de Bard nomeara-o comandante de todos os exércitos. Como Serrais estava subjugado, por enquanto, e ele ainda não se achava preparado para atacar os Hasturs, foi procurar Dom Rafael e pediu-lhe uma licença de alguns dias.
— Mas claro, meu filho, você bem o merece. Onde deseja ir?
— Convenci Geremy a me contar onde se encontra Carlina, e desejo ir buscá-la com uma guarda de honra e trazê-la de volta para mim.
— Porém se ela estiver casada com outro homem não faça isto — aconselhou seu pai, aflito. — Conheço seus sentimentos, porém não posso, em sã consciência, conceder-lhe uma licença para tirar a mulher de qualquer um de meus súditos! Governo esta terra segundo a lei!
— Qual é a lei mais forte do que aquela que une um homem a uma mulher com a qual se comprometeu? Mas, acalme-se, meu pai, Carlina não está casada com ninguém; foi se refugiar onde não a podem obrigar a se casar com homem algum.
— Neste caso, leve os homens que desejar, e quando retornar com ela, celebraremos a cerimônia aqui com toda a pompa. — Teve um instante de hesitação. — A senhora Melisendra não se sentirá nada satisfeita de assumir seu papel como barragana quando sua mulher estiver aqui. Quer que a mande de volta para o nosso castelo? Poderá cuidar do filho lá e viver muito bem.
— Não — respondeu ele, revoltado. — Eu a darei a Carlina como uma criada!
Algo em seu íntimo regozijou-se ao pensar em Melisendra humilde, esperando por Carlina, penteando seus cabelos e indo apanhar os sapatos e fitas dela.
— Deve fazer como lhe parecer melhor, porém ela é a mãe de seu filho mais velho, e humilhando-a estará depreciando seu filho. E, acredito, Carlina não haveria de gostar de ser forçada a ver, dia e noite, o rosto de sua rival. Acho que não entende as mulheres muito bem.
— Talvez não, e o senhor pode estar certo de que se Carlina desejar que eu mande Melisendra embora, não perderei tempo em atendê-la. Na qualidade de minha mulher legítima, Carlina tem a obrigação de educar todos os meus filhos, e deixarei Erlend entregue a ela. — Isto, pensou ele, seria melhor do que permitir que Melisendra envenenasse a mente do menino contra ele. Gostava do pequenino Erlend e não pretendia se separar dele.
Escolheu uma guarda de honra com doze homens; isto seria o bastante para mostrar às mulheres da Ilha do Silêncio que pretendia recuperar sua mulher e que não deviam perder tempo e entregá-la logo a ele. Não havia necessidade de muita força para lutar contra um punhado de mulheres reclusas.
Além da guarda de honra, levou consigo dois feiticeiros: o garoto Rory e a própria Melisendra. Desde a infância ouvia lendas sobre a magia das sacerdotisas de Avarra e queria contar com feitiçarias dele mesmo para se haver com elas. E não ia fazer nenhum mal a Melisendra ficar sabendo que ele tinha uma mulher legítima e que não devia esperar mais nada da parte dele!
A Ilha do Silêncio localiza-se fora do Reino das Astúrias, no condado independente de Marenji. Bard pouco sabia a respeito de Marenji, a não ser que seus governantes eram escolhidos, após um determinado número de anos, por aclamação entre os integrantes da plebe; não tinham um exército regular e abstinham-se de fazer alianças com reis e governadores mais próximos. Certa vez o pai de Bard tinha recebido o xerife de Marenji no Grande Salão, negociando com ele alguns barris de vinho de frutas e fazendo um acordo para proteger suas fronteiras.
Ele atravessou a tranqüila zona rural de Marenji, com seus arvoredos de macieiras e pereiras, ameixeiras e rainhas-cláudias, seus pomares com nogueiras e paineiras. Numa ravina íngreme deparou com um rio represado para gerar força para um moinho, onde as fibras das paineiras eram transformadas em tecidos para o fabrico de mantas. Havia uma aldeia de tecelões; ele se lembrou de que eles faziam maravilhosos panos em xadrez para saias e xales. Não havia qualquer sinal de defesa em lugar algum.
Se este lugar fosse armado, pensou Bard, e houvesse soldados aquartelados nas aldeias, seria um esplêndido estado-tampão para deter os exércitos de Serrais quando eles rumassem novamente para as Astúrias e, em contrapartida, os homens das Astúrias poderiam protegê-los.
Tinha certeza de que seria fácil convencer o xerife de Marenji sobre isto. E se ele não concordasse, ora, não contava com um exército para opor resistência. Ele aconselharia seu pai, tão logo retornasse, a não perder tempo e basear alguns de seus exércitos em Marenji.
À medida que avançavam, a terra ia ficando mais escura. Cavalgaram à sombra de altas montanhas, passaram por lagos e laguinhos brumosos. O número de fazendas ia se tornando cada vez menor, apenas uma quinta aqui e acolá. Melisendra e o garoto cavalgavam bem próximos um do outro e não pareciam nada à vontade.
Bard reviu na sua mente tudo que sabia a respeito das sacerdotisas de Avarra. Elas habitavam, há tanto tempo quanto qualquer homem vivo podia se recordar, na ilha situada no meio do Lago do Silêncio; e sempre a lei rezara que qualquer homem que pusesse os pés naquela ilha deveria morrer. Comentava-se que as sacerdotisas faziam votos perpétuos de castidade e oração; porém, além delas, havia várias mulheres, casadas, solteiras ou viúvas, que iam para a ilha por tristeza, ou pena, ou penitência para ali morarem sob o manto de Avarra, a Mãe Enigmática; e fossem elas quem fossem, desde que cultuassem Avarra, usassem os trajes da irmandade durante sua estada ali, não falassem com nenhum homem e observassem a castidade, podiam ali ficar por quanto tempo quisessem. Na verdade, nenhum homem sabia o que acontecia entre elas, e as mulheres que para ali iam eram solicitadas a jamais nada revelarem.
Contudo, mulheres de luto e desesperadas com a perda de um filho ou marido, mulheres estéreis e ansiosas para terem filhos, mulheres cansadas de muitas gravidezes que desejavam pedir à deusa saúde ou esterilidade, mulheres padecendo de qualquer tristeza, estas iam para o santuário de Avarra para implorar a ajuda das sacerdotisas, ou a da mãe.
Certa vez, uma senhora de idade que servia a Lady Jerana — Bard era ainda tão pequenino nesta época, que as mulheres nem se preocupavam em mandá-lo embora quando conversavam entre elas — tinha dito e ele ouvira: "Segredo da Ilha do Silêncio? O segredo reside no fato de não haver nenhum segredo! Passei uma temporada lá, certa vez. As mulheres moram nas suas casas, em silêncio, castas e sozinhas, só falam quando imprescindível, ou para rezar, para se tratarem ou para fazerem caridade. Rezam ao amanhecer e quando o sol se põe, ou quando surgem as luas. São solicitadas a prestarem ajuda a qualquer mulher quando isto lhes é pedido em nome da deusa, não importa quais sejam suas mágoas ou responsabilidades. Conhecem uma quantidade imensa de ervas medicinais e plantas, e enquanto morei lá me ensinaram como usá-las. São mulheres boas e santas."
Bard ficou imaginando como aquelas mulheres podiam ser boas, se assassinavam qualquer homem que pusesse os pés na ilha. Se bem que, reconheceu ele (pilheriando intimamente, para diminuir a própria ansiedade), devem ser, no mínimo, diferentes das outras mulheres, já que nada falavam! Isto era sempre uma virtude nas mulheres!
Contudo, parecia errado que as mulheres morassem sozinhas, desprotegidas; se ele fosse o xerife de Marenji, haveria de mandar alguns soldados para lá a fim de protegê-las.
Encontravam-se, agora, à beira de um vale, olhando para as águas do Lago do Silêncio.
O local era tranqüilo e sobrenatural. Não havia qualquer som, enquanto desciam rumo ao lago, a não ser o barulho dos cascos de suas montarias; e o pipilar de um pássaro aquático, devido à perturbação causada ao seu ninho, voando para cima e soltando um pio inesperado. Árvores escuras inclinavam galhos flexíveis sobre as águas soturnas, negras contra a claridade baixa do pôr-do-sol no céu; e quando chegaram mais próximo, ouviram os lamentos dos sapos. Abriram caminho através do pantanal ao longo da costa, e Bard escutava ruídos como que de ventosas quando os cascos de seu cavalo patinhavam na lama.
Ufa, que lugar lúgubre! Carlina deveria ficar contente por ele ter vindo tirá-la dali! Talvez tivesse revelado bom senso ao se refugiar ali, para que não a pudessem obrigar a aceitar um outro casamento por motivos políticos, porém, sem dúvida alguma, sete anos eram suficientes para serem passados em oração e devoção, longe de todos os homens! A vida dela como a Princesa Carlina, mulher do comandante dos exércitos do rei, seria muito diferente!
E agora havia neblina, elevando-se em redemoinhos da superfície do lago, em espessos rolos, rodopiando, correndo rumo a eles, até que Bard mal podia distinguir a trilha a sua frente. Os homens resmungavam; o próprio ar parecia espesso e opressivo! O pequeno Rory, acomodado sobre o seu pônei ao lado de Bard, ergueu o rosto pálido e amedrontado.
— Por favor, vai dom, devíamos voltar. Ficaremos perdidos em meio à neblina. E não nos querem aqui, posso senti-lo!
— Use a Visão! — ordenou Bard. — O que vê?
A criança pegou a pedra da visão e, obedientemente, olhou para dentro dela, porém seu semblante contorcia-se, como se estivesse tentando não chorar.
— Nada. Não consigo ver nada, apenas a neblina. Elas estão tentando se esconder de mim, dizem que é profano a presença de um homem por aqui.
— Você se denomina um homem? — perguntou Bard com sarcasmo.
— Não, mas elas assim me chamam e dizem que não devo ficar aqui. Por favor, meu Lorde Lobo, vamos voltar! A Mãe Enigmática virou o rosto para mim, porém ela está com um véu, está zangada... oh, por favor, meu senhor, somos proibidos de vir aqui, precisamos dar a volta e ir embora, ou algo terrível há de nos acontecer!
Furioso, frustrado, Bard ficou imaginando se aquelas feiticeiras na ilha pensavam que poderiam assustá-lo lançando mão de seus truques mágicos contra um inocente garotinho com uma pedra de visão?
— Cale a boca e procure agir como um homem — ordenou ao menino, com severidade, e ele fungou, enxugou as lágrimas do rosto e continuou cavalgando em silêncio, todo trêmulo. A neblina aumentou e ficou mais escura ainda. Seria um prenúncio de tempestade? Estranhou, pois na colina que encimava o lago, o tempo apresentara-se bom e claro. Provavelmente, devia ser a umidade do pantanal insalubre.
Como eram supersticiosos os seus homens, resmungando deste jeito por causa de um pouco de neblina!
De repente a neblina redemoinhou, flutuou e começou a se juntar formando um desenho; percebeu que seu cavalo, nervoso, deu um passo para o lado, como se a neblina viesse se colocar diante dele; ela pairou, remexeu-se em si mesma e transformou-se numa mulher. Não era uma visão provocada pela neblina, mas sim uma mulher, sólida e real como ele mesmo. Ele podia ver cada fio de seus cabelos brancos, trançados em duas tranças que lhe desciam pelas laterais da face, coberta inteiramente, exceto em alguns poucos centímetros, por um véu pesado e negro. Usava uma saia preta e um pesado xale tricotado em negro igual ao usado pelas camponesas, simples e sem adornos, atirado sobre algum tipo de blusa feita em linho cru. Em volta da cintura havia um cinto comprido, tecido em várias cores que formavam desenhos, do qual pendia uma faca com o formato de uma pequena foice e cujo cabo era negro.
Ela ergueu a mão num gesto resoluto:
— Vá embora. Sabe que homem algum pode pôr os pés aqui; este solo é sagrado, consagrado à Mãe Enigmática. Vire seus cavalos e voltem por onde vieram. Aqui há areias movediças e outros perigos sobre os quais nada sabe. Volte.
Bard abriu a boca e teve um pouco de dificuldade para conseguir articular as palavras. Finalmente, conseguiu dizer:
— Não pretendo causar nenhum mal, nem desrespeitá-la, mãe, nem a senhora ou qualquer uma de suas devotadas servas de Avarra. Encontro-me aqui para levar para casa minha prometida mulher, Carlina di Asturien, filha do falecido Rei Ardrin.
— Por aqui não existem prometidas mulheres, apenas as irmãs que prestaram juramento a Avarra, que aqui vivem em oração e devoção; e algumas poucas penitentes e peregrinas que vieram conviver conosco por algum tempo para se curarem de suas aflições e mágoas.
— A senhora está se esquivando, velha mãe. Lady Carlina encontrase entre elas?
— Ninguém por aqui usa o nome Carlina. Não perguntamos que nome nossas irmãs usavam quando viviam no mundo; quando uma mulher vem para cá para fazer os votos conosco, o nome que ela usava fica perdido para sempre, apenas a deusa o conhece. Não há nenhuma mulher aqui que o senhor possa declarar que seja sua mulher, seja lá quem o senhor for. Advirto-o com a maior sinceridade: não cometa esta blasfêmia, ou atrairá sobre si mesmo a ira da Mãe Enigmática.
Bard inclinou-se para diante na sela:
— Não me ameace, velha senhora! Sei que minha mulher se encontra aqui e se não a entregar a mim, virei e a pegarei e não serei responsável por aquilo que meus homens possam fazer.
— Contudo, o senhor será o culpado, quer assuma ou não a responsabilidade — retrucou a anciã.
— Não discuta comigo! Será melhor a senhora ir dizer a minha mulher que seu marido veio buscá-la para levá-la de volta; e se assim agir, não cometerei nenhuma blasfêmia, mas aguardarei por ela aqui, fora de sua área sagrada.
— Porém, não tenho medo de suas ameaças. Nem a Grande Mãe — afirmou a velha sacerdotisa...
E a neblina redemoinhou ao redor de seu rosto e, inopinadamente, não havia, mas ninguém no local onde ela estivera de pé, apenas espirais vazias de bruma erguendo-se dos juncos à beira d'água.
Bard respirou convulsivamente. Como tinha ela desaparecido? Teria ela estado realmente ali em algum momento ou se tratava apenas de uma ilusão? Obstinadamente, tinha mais certeza do que nunca de que Carlina se encontrava ali e que a estavam escondendo dele. Por que a velha senhora não tinha tido a sensibilidade de fazer o que lhe pedira, indo procurar Carlina, informando-a que ele viera em paz, sem querer causar nenhum dano nem blasfemar, para levá-la de volta ao lar para compartilhar da cama dele? Seria ele então obrigado a cometer uma blasfêmia?
Ele deu a volta e guiou o cavalo para o lado de Melisendra:
— Agora chegou o momento de usar a sua feitiçaria, a não ser que devamos ser todos dominados pela areia movediça. Há areia movediça por aqui?
Ela pegou a sua pedra da estrela e olhou para o seu interior, o rosto assumindo aquela aparência distante, abstrata, que tinha visto tantas vezes na face de Melora.
— Há uma areia movediça perto, se bem que não tão perigosamente perto, creio. Bard, está mesmo decidido a prosseguir nesta loucura? Sinceramente, não é aconselhável provocar a ira de Avarra. Se Carlina desejasse acompanhá-lo, teria vindo; ela não é mantida prisioneira neste lugar.
— Não tenho como saber. Estas mulheres são loucas, querem viver sozinhas, substituindo o que é conveniente às mulheres por castidade e oração...
— Você considera a castidade e a oração impróprias para as mulheres? — perguntou ela com sarcasmo.
— Absolutamente; mas, sem dúvida, uma mulher pode fazer orações, tantas quantas queira, no seu lar, e nenhuma mulher casada tem o direito de se entregar à castidade contra a vontade de seu marido legítimo! De que servem essas sacerdotisas, qual o bem que podem fazer a alguém se desrespeitam as leis da natureza e dos homens desta maneira?
Ele abordara a questão de forma retórica, mas Melisendra interpretou-a literalmente.
— Disseram-me que elas realizam muitas obras boas. Conhecem a fundo as ervas e os remédios e são capazes de tornar férteis mulheres estéreis; e a oração é sempre uma boa coisa.
Bard ignorou-a. Através da neblina tinham alcançado uma pequena praia arenosa, livre dos juncos que delimitavam as margens do lago por todos os lados; e ali havia uma cabana e um barco amarrado.
Bard desmontou e gritou:
— Hei! Barqueiro!
Uma figura minúscula, encurvada, enrolada em xales, saiu da cabana. Bard ficou fora de si ao descobrir que não era um barqueiro mais sim uma velhinha, aleijada, encanecida e curvada.
— Onde está o barqueiro?
— Sou eu quem cuida deste barco, vai dom, para as boas senhoras.
— Leve-me através do lago até a ilha, rápido!
— Não posso fazer isto, senhor. É proibido. Mas aquela senhora lá, se ela quiser ir, eu a levarei. Porém, homem não, é proibido, a deusa o proíbe.
— Tolice! — exclamou Bard. — Como ousa afirmar que sabe o que os imortais desejam, mesmo reconhecendo que existam deuses, ou deusas? E se as sacerdotisas não gostarem, ora, nada poderão fazer a respeito.
— Não serei a responsável por sua morte, vai dom.
— Não seja idiota, velha senhora! Entre nesse barco e leve-me até lá, já!
— Não diga palavras como idiota, senhor; não sabe sobre o que está falando. Este barco não o conduzirá até a outra praia. Eu, sim; a senhora, sim; porém não o levará, de modo algum.
Bard resolveu achar que a mulher era uma mentecapta. Provavelmente, as sacerdotisas tinham-lhe entregue a tarefa de cuidar da travessia de barco, além de ser uma caridade para com ela, mas sua principal obrigação era assustar as pessoas que até ali chegassem. Muito bem, ele não se apavorava. Sacou o punhal.
— Está vendo isto? Entre no barco! Já!
— Não posso — choramingou ela. — Na verdade, não posso! As águas não são seguras, a não ser quando a sacerdotisa assim o quer! Nunca vou até lá, a não ser que me chamem do outro lado!
Com o semblante irado, Bard recordou-se da vau encantada perto de Moray's Mill, onde uma corrente calma e rasa, subitamente, se transformara num rio caudaloso. Porém, fez um gesto ameaçador com o punhal.
— O barco!
Ela deu um passo, depois outro, tremendo, em seguida caiu ao chão, uma trouxa de farrapos balofos.
— Não posso — lamuriava-se —, não posso!
Bard sentiu vontade de chutá-la. Mas ao invés disto, passou por cima dela, daquele corpo encolhido, e entrou no barco, pegando o remo e conduzindo-o, com algumas remadas longas e fortes, para dentro d'água.
As águas do lago estavam agitadas, com um violento recuo de ondas como Bard nunca tinha visto antes, atirando o barco de um lado para o outro como se fosse uma rolha; mas Bard era muito forte e tinha aprendido a lidar com barcos nas águas revoltas do lago Mirion. Ele conduziu o barco através das águas com remadas firmes...
...e descobriu, para seu assombro, que ele tinha sido desviado, de algum jeito, e ao invés de estar indo para a praia da Ilha do Silêncio, o barco rumava direto para a praia arenosa onde se localizava a cabana da velha!
Impotente, Bard praguejou ao sentir que o barco estava sendo carregado pela corrente violenta, diretamente de volta para a praia de onde acabara de partir. Introduziu o remo na água, colocando mais uma vez o barco na corrente. Teve que usar toda a sua força para mantê-lo no canal, porém, por mais que tentasse, não conseguia levá-lo na direção da ilha. Lenta, inexoravelmente, o barco descrevia círculos, derivava, por mais vigor que pusesse nas remadas. A velha se colocara sobre os joelhos e o observava, estourando de tanto rir. O barco rumava para a praia, apesar do seu esforço, escapulia para cima, arranhava a areia no fundo e sua última remada levou-o direto para a areia.
A velha sacudia-se de tanto rir.
— Eu o avisei, senhor. Ainda que o senhor o tentasse durante todo um dia e toda uma noite, este barco aí não vai até a ilha, a não ser que as sacerdotisas o chamem até lá.
Bard teve a impressão de ter surpreendido alguns de seus homens sorrindo. Olhou a sua volta com tanta raiva, que eles logo se mostraram impassíveis. Deu um passo ameaçador na direção da velha senhora. Sentia-se disposto e pronto a lhe torcer o pescoço. Porém ela, no final das contas, não passava de uma velha simplória.
Começou a refletir, de pé ao lado dela. A vau em Moray's Mill tinha sido enfeitiçada. Evidentemente, o barco, aqui, também tinha sido colocado sob magia. De qualquer modo, se as sacerdotisas pretendiam de fato manter Carlina afastada dele, e estava bastante claro que a intenção delas era esta, um homem sozinho só iria se deparar cada vez mais com encantamentos e bruxarias.
Talvez uma leronis pudesse acalmar as águas, como Melora tinha feito em Moray's Mill; e seus homens puderam fazer seus cavalos atravessarem a nado.
— Melisendra!
Ela se aproximou calma. Ele ficou se perguntando se ela não teria se divertido às suas custas enquanto ele lutava com o barco.
— Se as sacerdotisas puseram algum encanto nas águas, você pode acalmá-las e anulá-lo!
Ela o fitou dentro dos olhos e sacudiu a cabeça:
— Não, meu senhor. Não ouso provocar a ira de Avarra.
— É ela a deusa com quem tagarela? — perguntou ele.
— Ela é a deusa de todas as mulheres, e não vou enfurecê-la.
— Melisendra, advirto-a... — ergueu a mão pronto para golpeá-la. Ela o olhou com total indiferença:
— Não pode me fazer nada pior do que aquilo que já me fez. Depois do que me aconteceu, acha que algumas pancadas me farão obedecer à sua vontade?
— Se realmente me detesta tanto assim, creio que deveria ficar contente em me ajudar a recuperar minha mulher! Então ficará livre de mim, já que lhe sou tão detestável!
— Às custas de trair uma outra mulher e atirá-la em suas mãos?
— Está com ciúmes, e não deseja me ver com outra mulher em meus braços!
Ela não desviou o olhar dele:
— Se sua mulher estivesse sendo mantida prisioneira naquela ilha e quisesse voltar para seu lado, eu correria o risco de despertar a fúria de Avarra a fim de ajudá-la a voltar para seus braços. No entanto, ela não parece estar muito ansiosa para abandonar seu refúgio e vir para o seu lado. E se tiver juízo, Bard, abandonará este lugar imediatamente, antes que algo pior aconteça.
— É esta a Visão? — A frustração tornava suas palavras sarcásticas.
Ela inclinou a cabeça. Falou, e Bard viu que ela chorava em silêncio:
— Não, meu senhor. Isto... já não tenho mais este poder e nunca mais o terei. Contudo, sei que a deusa não pode ser desafiada impunemente. É melhor você desistir, Bard.
— Ficaria triste se algum destino terrível me aguardasse? — perguntou, revoltado, porém ela não lhe deu resposta, limitou-se a virar o seu cavalo e, lentamente afastou-se do lago.
— Amaldiçoada mulher! Malditas sejam todas as mulheres e a deusa delas também!
— Vamos, homens — ordenou ele. — Façam os cavalos nadar; o encanto é apenas para o barco!
Obrigou seu cavalo a aproximar-se da beira d'água embora ele relutasse, mostrando-se nervoso e recuando, ao sentir a água sob os cascos. Virou seu animal e viu que não estava sendo seguido.
— Ora, vamos! O que há com vocês? Acompanhem-me, homens! Naquela ilha há mulheres e elas me desafiaram, logo deixo-os livres para todas elas! Vamos, homens, despojos e mulheres... não estão com medo da tagarelice de uma velha bruxa, estão? Vamos!
Metade dos homens deixou-se ficar onde estava, resmungando amedrontados.
— Nay, dom Lobo, é perigoso, é proibido!
— A deusa o proíbe, senhor! Não, não faça isto!
— Blasfêmia!
Porém um ou dois deles forçaram seus cavalos a se adiantarem, ansiosos, puxando as rédeas, obrigando os animais relutantes a entrarem na água.
A neblina começou a se levantar outra vez, mais espessa, cada vez mais espessa; e desta feita tinha uma tonalidade esverdeada, estranha e fantasmagórica. Parecia haver rostos dentro dela, faces que faziam caretas, olhavam de soslaio e ameaçavam-no, e lentamente, muito lentamente, os rostos estavam chegando à praia. Um dos homens que ficara para trás, recusando-se a se aproximar da água, inesperadamente soltou um berro desvairado e gritou:
— Não, não! Mãe Avarra, tenha piedade! Piedade de nós! — Ele deu um puxão nas rédeas com violência, e Bard ouviu os cascos de seu cavalo afundando e saindo da lama quando deu meia-volta e voltou a toda brida por onde tinha vindo. Um depois do outro, embora Bard se erguesse sobre os estribos e gritasse xingando todos eles, seus homens deram-lhe as costas e incitaram os animais de volta trilha acima, até Bard se ver sozinho na beira d'água. Para o inferno todos eles! Apavorados como uns sapinhos! Covardes, haveria de dominá-los, rebaixá-los de posto, se não os enforcasse, um a um, por covardia!
Sentou-se desafiando a neblina:
— Venha! — disse em voz alta, estalou a língua para o cavalo, porém este não se moveu, tremendo sob ele como se estivesse exposto ao frio de um geada. Ficou imaginando se o animal podia ver aqueles rostos horrendos, aproximando-se cada vez mais da praia.
E de repente, um terror cego enregelou Bard também, até os ossos Ele sabia, com cada uma de suas fibras, que se uma daquelas faces o tocasse através da neblina, toda a coragem e vida que havia nele desapareceriam, frias, e ele morreria, a neblina se assenhoraria de todo o seu ser e haveria de cair da sela, sem forças e berrando, e nunca mais se ergueria. Deu um puxão nas rédeas e procurou galopar atrás de Melisendra e de seus homens em fuga, porém estava imobilizado e a água tremia sob ele e não se movia. Certa vez ouvira falar que a Grande Mãe podia assumir a forma de uma égua... Teria ela enfeitiçado a sua montaria?
Os rostos flutuavam aproximando-se mais e mais, horrendos e desfigurados, semblantes de homens mortos, mulheres estupradas, cadáveres com a carne pendente dos ossos, e Bard, de algum modo, sabia que todos eles eram homens que ele tinha conduzido à batalha e à morte, todos homens que ele tinha matado, todas as mulheres que violentara, destroçara ou queimara e afastara de suas casas, o semblante de uma mulher berrando durante o saque a Scaravel, quando ele tinha arrancado o filho de seus braços e atirado-o de encontro à parede para se espatifar junto às pedras do chão... uma mulher que tinha possuído durante a pilhagem de Scathfell, o marido jazendo morto ao lado dela... uma criança, machucada e sangrando, por causa de 12 homens que dela tinham se aproveitado... Lisarda, chorando em seus braços... Beltran, com toda a carne arrancada dos ossos... os rostos estavam agora tão próximos que não tinham formas, saltavam aos seus pés, sobre seus joelhos, rodopiando para cima, cada vez mais para cima. Eles se enrolaram em torno de suas virilhas, chupando, mordendo e sentiu, sob suas roupas seus órgãos genitais encolherem-se e desaparecerem, deixando-o sem sua masculinidade, sentiu a gélida ascensão na sua barriga; quando se levantaram para morder sua garganta, sua respiração iria falhar e ele cairia, sufocando-se, morrendo...
Bard berrou, e o som deu-lhe de algum jeito vida suficiente para agarrar-se às rédeas, esporear freneticamente seu cavalo. Este empinou e pulou. Ele se agarrou à vida, deixando-o correr, deixando-o levar para onde quisesse, para qualquer lugar longe dali. Perdeu os estribos, soltou as rédeas quando a montaria saltou, porém o pânico deu-lhe forças para se agarrar ao pescoço do animal; finalmente, sentiu que o cavalo começava a se acalmar, a caminhar, e voltou a si, tonto, descobrindo que estava cavalgando atrás de seus homens, ao lado de Melisendra.
Se ela pronunciasse uma única palavra, se falasse uma sílaba avisando que o tinha advertido, ou que deveria ter aceito o seu conselho, ele a espancaria! Seja como for, aquela mulher infernal parecia se sair sempre melhor quando discordavam! Sentia-se muito mal por sabê-la ao seu lado para zombar dele! Se ela dissesse uma palavra sobre como ele lhe parecera uma figura gozada, fugindo, agarrado ao seu cavalo...
— Se você se julga tão tocada pela devoção e castidade — disse enfurecido para ela — e sente-se tão contente com a minha derrota, por que não volta e fica por lá?
Mas ela não escarnecia dele. Nem sequer olhava para ele. Estava com o rosto coberto pelo véu e chorava baixinho por trás daquela proteção.
— Bem que eu iria — disse ela, num sussurro. — Iria mesmo, com muito prazer! Porém, elas não me receberiam — e baixou a cabeça sem tornar a erguer os olhos para ele.
Bard continuou a cavalgar, sentindo-se mal de tanta raiva. Mais uma vez, Carlina conseguira escapar dele! Tinha-o feito de bobo novamente, quando tinha se sentido tão seguro a respeito dela! E ele ainda estava ligado a Melisendra, a quem começava a odiar! Enquanto subiam a trilha íngreme ele se virou para trás e brandiu o punho fechado, revoltado, contra o lago que jazia silencioso, diáfano no lusco-fusco atrás deles.
Ele haveria de voltar. As mulheres da ilha tinham-no derrotado uma vez, porém ele arranjaria algum meio de voltar, e dessa feita não seria afastado de lá por suas bruxarias! Elas que se cuidassem!
E se Carlina estava se escondendo ali, ela que se cuidasse também!
O verão tinha chegado nas colinas de Kilghard, trazendo junto a época dos incêndios, quando as árvores resinosas explodiam em chamas e cada homem disponível era convocado para prevenir possíveis incêndios. Num dia do final do verão, Bard di Asturien cavalgava lentamente rumo ao Sul, com um pequeno grupo de homens escolhidos e uma guarda pessoal...
[1] Doppelganger: sósia fantasmagórico de uma pessoa viva. (N. da T.)
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