Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOM QUIXOTE – V.II / Miguel de Cervantes
DOM QUIXOTE – V.II / Miguel de Cervantes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DOM QUIXOTE DE LA MANCHA

 

VOLUME II

Primeira Parte

DEDICATÓRIA

AO CONDE DE LEMOS

Enviando há dias a V. Exa. as minhas comédias impressas antes de representadas, se bem me recordo, disse que D. Quixote ficava de esporas calçadas para ir beijar as mãos de V. Ex.; e agora digo que as calçou e se pôs a caminho, e, se ele lá chegar, parece-me que algum serviço terei prestado a V. Exa., porque são muitas as instâncias que de imensas partes me fazem para que lho envie, afim de tirar a náusea causada por outro D. Quixote que, com o nome de segunda parte, se disfarçou e correu pelo orbe; e quem mais mostrou desejá-lo foi o grande imperador da China, pois haverá um mês que me escreveu uma carta em língua chinesa, por um próprio, pedindo-me, ou, para melhor dizer, suplicando-me que lho enviasse, porque queria fundar um colégio onde se ensinasse a língua castelhana, e desejava que o livro, que se lesse, fosse o da história de D. Quixote; juntamente com isso me dizia que fosse eu ser o reitor de tal colégio. Perguntei ao portador se Sua Majestade lhe dera para mim uma ajuda de custo. Respondeu-me que nem por pensamentos.

- Pois, irmão - tornei eu -, podeis voltar para a vossa China, às dez, ou às vinte, ou às que vos tiverem marcado, porque eu não estou com saúde para empreender tão larga viagem; demais, além de enfermo, estou muito falto de dinheiros, e, imperador por imperador, e monarca por monarca, em Nápoles tenho eu o grande conde de Lemos, que, sem tantos titulozinhos de colégios, nem de reitorias, me sustenta, me ampara, e me faz maior mercê do que as que posso desejar. Com isto o despedi, e com isto me despeço, oferecendo a V. Ex. os trabalhos de Pérsiles y Sigismunda, livro a que porei remate dentro de quatro meses, Deo volente; que há-de ser, ou o pior ou o melhor que em nossa língua se tenha composto; falo nos de entretenimento; e parece-me que me arrependo de ter dito o pior, porque, segundo a opinião dos meus amigos, tocará as raias da possível perfeição. Venha V. Ex. com a saúde com que é desejado, que já cá estará Pérsiles para lhe beijar as mãos, e eu os pés, como criado que sou de V. Ex.

Madrid, último de Outubro de mil e seiscentos e quinze.

Criado de V. Ex.,

MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA.

 

Valha-me Deus, com quanta vontade deves de estar esperando agora, leitor ilustre, ou plebeu, este prólogo, julgando achar nele vinganças, pugnas e vitupérios contra o autor do segundo D. Quixote; quero dizer, contra aquele que dizem que se gerou em Tordesilhas e nasceu em Tarragona. Pois em verdade te digo, que te não hei-de dar esse contentamento, que, ainda que os agravos despertam a cólera nos mais humildes peitos, no meu há-de ter excepção esta regra. Quererias que eu lhe chamasse asno, atrevido e mentecapto; mas tal me não passa pelo pensamento; castigue-o o seu pecado, e trague-o a seu bel-prazer, e que lhe não faça engulhs. O que não pude deixar de sentir foi que me apodasse de manco e de velho, como se estivesse na minha mão demorar o tempo, que parasse para mim, ou como se eu tivesse saído manco de alguma rixa de taberna, e não do mais nobre feito que viram os séculos passados e presentes, e esperam ver os vindouros. Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem onde se ganharam; que o soldado melhor parece morto na batalha, do que livre na fuga:

e tanto sinto isto que digo que, se agora me propusessem e facilitassem um impossível, antes quisera ter estado naquela peleja prodigiosa, do que são das minhas feridas sem lá me ter achado. As cicatrizes que o soldado ostenta no rosto e no peito

são estrelas que guiam os outros ao céu da honra, e ao desejar justo louvor; e convém advertir que se não escreve com as cãs, mas sim com o entendimento, que costuma aperfeiçoar-se com os anos. Senti também que me chamasse invejoso, e me descrevesse, como a um ignorante, que coisa seja a inveja, que, verdade, verdade, de duas que há, eu só conheço a santa, a nobre e a bem-intencionada; e, sendo assim como é, não tenho motivo para perseguir nenhum sacerdote, que, demais a mais, seja também familiar do Santo Ofício; e se ele o disse referindo-se a quem parece de todo em todo se enganou, que, desse tal, adoro eu o engenho, admiro as obras e a ocupação contínua e virtuosa. Mas, efectivamente, agradeço a este senhor autor o dizer que as minhas novelas são mais satíricas do que exemplares, porque isso mostra que são boas, e não o poderiam ser, se não tivessem de tudo. Parece-me que me dizes que ando muito acanhado, e que me mantenho demasiadamente dentro dos limites da minha modéstia, sabendo que se não deve acrescentar mais aflições ao aflito, e as que este senhor deve de ter são grandíssimas, sem dúvida, pois não se atreve a aparecer em campo aberto e com céu claro, encobrindo o seu nome, e fingindo a sua pátria, como se tivesse feito alguma traição de lesa-majestade. Se porventura chegares a conhecê-lo, diz-lhe da minha parte que me não tenho por agravado, que bem sei o que são tentações do Demónio, que uma das maiores é meter-se-lhe a um homem na cabeça que pode compor e imprimir um livro com que ganhe tanta fama como dinheiro, e tanto dinheiro como fama, e para confirmação disto quero que com todo o donaire e graça lhe contes este conto:

Havia em Sevilha um doido, que deu no mais gracioso disparate e teima que nunca se viu. E foi que fez um canudo de cana pontiagudo, e, em apanhando um cão na rua, ou em qualquer outra parte, prendia-lhe uma pata com os pés, com a mão levantava-lhe outra, e, como podia, lá lhe adaptava o canudo em sítio, em que, soprando-lhe, o punha redondo como uma péla, e, quando o apanhava deste modo, dava-lhe duas palmaditas na barriga, e soltava-o, dizendo aos circunstantes (que sempre eram muitos): Pensarão agora Vossas Mercês que é pouco trabalho inchar assim um cão. Pensará Vossa Mercê

agora que é pouco trabalho fazer um livro. E, se este conto lhe não quadrar, diga-lhe, leitor amigo, o seguinte, que também é de orate e de cão:

Havia em Córdova outro doido, que tinha por costume trazer à cabeça um pedaço de mármore, ou um pedregulho não muito ligeiro, e, em topando algum cão descuidado, aproximava-se e deixava cair o peso em cima dele. Magoava-se o cão, e, ladrando e ganindo, não parava nem em três ruas. Sucedeu, pois, que entre os cães, a que fez isto, foi um deles o cão de um chapeleiro, que o estimava muito. Atirou-lhe uma pedra, deu-lhe na cabeça, desatou a ganir o cão moído, viu-o e sentiu-o o dono; agarrou numa vara de medição, veio ter com o doido, e não lhe deixou uma costela sã, e a cada paulada que lhe dava, dizia: Ah! ladrão! ah! perro! Pois não viste, cruel, que o meu cão era podengo? E, repetindo-lhe o nome de podengo muitas vezes, largou o louco, depois de lhe ter posto os ossos num feixe. Escarmentou-se e retirou-se o doido, e em mais de um mês não saiu à praça, e ao cabo desse tempo voltou com a mesma invenção e com maior carga. Chegava-se aos cães, olhava fito para eles por muito tempo, e, sem querer, nem se atrever a descarregar a pedra, dizia: Este é podengo! Cautela! E, efectivamente, quantos cães topava, ainda que fossem alões ou gozos, dizia que eram podengos, e nunca mais disparou o pedregulho. Talvez aconteça o mesmo a este historiador, que não se atreva a tornar a soltar a presa do seu engenho em livros, que, em sendo maus, são mais duros que pedras. Diz-lhe também que da ameaça que me faz, de que me há-de tirar os lucros com o seu livro, nada se me dá, que, acomodando-me ao entremez famoso da Perendenga, lhe respondo que viva para mim o Vinte e Quatro, meu Senhor, e Cristo para todos: viva o grande conde de Lemos, cuja cristandade e liberalidade bem conhecida, contra todos os golpes da minha aziaga fortuna, me conserva de pé; e viva para mim também a suma caridade do ilustríssimo de Toledo, D. Bernardo de Sandoval y Rojas, e pouco me importa que haja ou não haja imprensas no mundo, e que se imprimam ou não contra mim mais livros do que letras têm as coplas de Mingo Revulgo. Estes dois príncipes, sem que a minha adulação os solicite, nem outro género de aplauso, só por sua bondade tomaram a seu cargo fazer-me mercê e favorecer-me, e nisso me tenho por mais ditoso e mais rico do que se a fortuna pêlos caminhos ordinários me tivesse posto no pináculo. A honra pode-a ter o pobre, mas no o vicioso; pobreza pode enublar a fidalguia, mas no escurecê-la de todo; e não lhe digas mais, nem eu quero dizer-te mais a ti, senão advertir-te que esta segunda parte do D. Quixote, que te ofereço, é cortada pelo mesmo oficial e no mesmo pano que a primeira, e que te dou nela D. Quixote dilatado, e, finalmente, morto e sepultado, para que ninguém se atreva a levantar-lhe novos testemunhos, pois já bastam os passados, e basta também que um homem honrado desse notícia destas discretas loucuras, sem querer de novo entrar com elas; que a abundância das coisas, ainda que sejam boas, faz com que se não estimem, e as más, quando são raras, alguma coisa se apreciam. Esquecia-me de te dizer que esperes o Pérsiles, que já estou acabando, e a segunda parte da Galateia.

 

DO QUE PASSARAM O CURA E O BARBEIRO COM D. QUIXOTE ACERCA DA SUA ENFERMIDADE

(Conta Cide Hamet Benengeli, na segunda parte desta história, e terceira saída de D. Quixote, que o cura e o barbeiro estiveram mais de um mês sem o ver, para lhe não renovarem e trazerem à memória as coisas passadas; mas nem por isso deixaram de visitar a sobrinha e a ama, recomendando-lhes que cuidassem de lhe dar bastantes regalos, guisando-lhe manjares confortativos e apropriados para o coração e o cérebro, de onde procedia, segundo o bom discorrer, toda a sua má ventura, e disseram elas que assim o faziam e continuariam a fazer com a melhor vontade e o maior cuidado possível, porque viam que o fidalgo ia dando a cada momento sinais de estar em todo o seu juízo.

Ficaram ambos muito satisfeitos, por lhes parecer que tinham procedido acertadamente em o trazer encantado num carro de bois, como se contou na primeira parte desta grande e verídica história, no último capítulo, e assim resolveram visitá-lo e experimentar se estava curado, ainda que tinham quase por impossível que o estivesse, e deliberaram não lhe falar em coisa alguma de cavalaria andante, para não correrem perigo de lhe abrir de novo a ferida, que ainda estava tão fresca.

Visitaram-no, enfim, e acharam-no sentado na cama, vestido com um roupão de baeta verde, e na cabeça um barrete toledano de cor; e estava tão seco e mirrado, que não parecia senão uma múmia.

Foram por ele muito bem recebidos, perguntaram-lhe pela sua saúde, e ele deu conta de si e dela, com muito juízo, e muito elegantes palavras; e, no decorrer da sua prática, vieram a tratar do que chamam razão de estado e modos de governo, emendando este abuso e condenando aquele reformando um costume e desterrando outro, fazendo-se cada um dos três um legislador, um Licurgo moderno, ou um Sólon flamante.

De tal modo renovaram a república, que não pareceu senão que a tinham metido numa bigorna e tirado outra diversa; e falou D. Quixote com tanta discrição em todos os assuntos que se trataram, que os dois examinadores supuseram, sem a mínima dúvida, que estava de todo bom e em seu perfeito juízo.

Acharam-se presentes à prática a sobrinha e a ama e não se fartavam de dar graças a Deus por ver D. Quixote com tão bom entendimento; mas o cura, alterando o primitivo propósito, que era de lhe não tocar em coisas de cavalarias, quis experimentar se a sanidade de D. Quixote era falsa ou verdadeira, e assim, de lance em lance, veio a contar algumas notícias que tinham vindo da corte, e entre outras disse que corria como certo descer o turco com uma poderosa armada, e que se não sabia qual era o seu desígnio, nem onde iria desabar tão carregada nuvem; e com este temor, que quase todos os anos nos põe alerta, alerta estava a cristandade, e que el-rei mandara abastecer as costas de Nápoles e da Sicília e a ilha de Malta.

A isto respondeu D. Quixote:

- Sua Majestade procedeu como prudentíssimo guerreiro, abastecendo os seus estados com tempo, para que o inimigo o não ache desapercebido; mas, se tomasse o meu parecer, aconselhar-lhe-ia eu que tomasse uma precaução, em que Sua Majestade está a estas horas muito longe de pensar.

Apenas o cura ouviu estas palavras, logo disse entre si:

- Deus te ampare com a Sua mão, meu pobre D. Quixote, que me parece que te despenhas do alto pináculo da tua loucura, no profundo abismo da tua simplicidade.

Mas o barbeiro, que já tivera o mesmo pensamento que o cura, perguntou a D. Quixote que prevenção era essa; tal poderia ela ser, que se pusesse na lista dos muitos conselhos impertinentes que se costumam dar aos príncipes.

- O meu, Senhor Tosquiador - disse D. Quixote -, é pelo contrário muito pertinente.

- Não o digo por outra coisa - redarguiu o barbeiro - senão por ter mostrado a experiência, que todos, ou a maior parte dos arbítrios que se dão a Sua Majestade, ou são impossíveis, ou disparatados, ou danosos ao rei ou ao reino.

- Pois o meu - respondeu D. Quixote - nem é impossível, nem disparatado, mas o mais fácil, o mais justo, o mais maneiro e breve, que pode caber no pensamento de qualquer cavaleiro.

- Já Vossa Mercê tarda em dizê-lo, Sr. D. Quixote – disse o cura.

- Não quereria - tornou D. Quixote - dizê-lo eu agora aqui, e acordar amanhã nos ouvidos dos Senhores Conselheiros, e que levasse outro os agradecimentos e o prémio do meu trabalho.

- Eu por mim - acudiu o barbeiro - dou a minha palavra, aqui e diante de Deus, de não transmitir o que Vossa Mercê me disser, nem a rei, nem a roque, nem a homem algum terreal; juramento que aprendi do romance do cura, que no prefácio disse a el-rei quem fora o ladrão que lhe roubara as cem dobras, mais a mula andarilha.

- Não sei de histórias - disse D. Quixote - mas sei que é bom esse juramento, pois que tenho fé em ser homem de bem o Senhor Barbeiro.

- E que o não fosse - disse o cura -, fico eu por seu abonador e fiador que, neste caso, não falará mais do que um mudo, sob pena de pagar o julgado e sentenciado.

- E a Vossa Mercê quem o fia Senhor Cura? - tornou D. Quixote.

- A minha profissão - respondeu o cura - que é de guardar segredo.

- Corpo de tal - acudiu D. Quixote -, pois que mais é necessário do que mandar Sua Majestade, por público pregão, que num dia certo se juntem na corte todos os cavaleiros andantes que vagueiam por Espanha, que, ainda que não viessem senão meia dúzia, podia aparecer entre eles algum que bastasse só por si para destruir todo o poder do turco? Estejam Vossas Mercês atentos e vão com o que eu lhes digo. Porventura é coisa nova desfazer um só cavaleiro andante um exército de duzentos mil homens, como se todos juntos tivessem uma só garganta ou fossem feitos de alfenim? Senão, digam-me: quantas histórias não há cheias destas maravilhas? Vivesse hoje, em má hora para mim, que não quero dizer para outro, o famoso D. Belianis, ou algum dos da inumerável linhagem de Amadis de Gaula, que se o turco se medisse com algum deles, à fé que lhe não arrendava o ganho, nem por um maravedi; mas Deus olhará pelo seu povo, e algum suscitará que, se não for tão bravo como os antigos paladinos, pelo menos lhes não será inferior no ânimo; e Deus me entende, e mais não digo.

- Ai! - acudiu a sobrinha. - Me matem, se meu tio não quer voltar a ser cavaleiro andante! E D. Quixote respondeu:

- Cavaleiro andante hei-de morrer e suba ou desça o turco quando quiser e quando puder, que outra vez digo que Deus me entende.

E nisto acudiu o barbeiro:

- Peço a Vossas Mercês que me dêem licença para narrar um breve caso que se passou em Sevilha, e que, por vir aqui de molde, sinto vontade de o contar.

Deu D. Quixote a licença, e o cura e os outros prestaram atenção, e mestre Nicolau começou desta maneira:

- Na casa dos doidos de Sevilha, estava um homem a quem os seus parentes tinham metido ali, por falta de juízo: era formado em Cânones por Ossuna; mas, ainda que o fosse por Salamanca, segundo a opinião de muitos, não deixaria de ser louco. Este tal doutor, ao cabo de alguns anos de recolhimento, começou a imaginar que estava são, e em seu perfeito juízo, e, com esta imaginação, escreveu ao arcebispo, suplicando-lhe muito encarecidamente e com mui concertadas razões, que o mandasse tirar daquela miséria em que vivia, pois pela misericórdia de Deus já recobrara o juízo perdido; mas que os seus parentes, para lhe desfrutarem a fazenda, o tinham ali, e contra toda a razão queriam que ele fosse doido até à morte. O arcebispo, persuadido por muitos bilhetes, acerados e discretos, ordenou a um seu capelão que se informasse do reitor da casa,

se era verdade o que aquele licenciado lhe escrevia, e que falasse igualmente com o doido, e, se visse que ele estava em seu juízo, o tirasse para fora e pusesse em liberdade. Assim fez o capelão, e o reitor disse-lhe que esse homem ainda estava doido, que, posto que falava muitas vezes como pessoa de grande entendimento, afinal disparatava, dizendo tantas necedades, que em serem muitas e grandes igualavam os seus primeiros acertos, como se podia experimentar, falando-lhe. Quis o capelão fazer a experiência, e indo ter com o doido, esteve a conversar com ele mais de uma hora, e em todo esse tempo nunca o doido disse uma só coisa torcida ou disparatada, antes discursou tão ajuizadamente, que o capelão foi obrigado a confessar que o doido estava são; e, entre outras coisas que o licenciado lhe disse, foi que o reitor lhe atravessava tudo, para não perder as dádivas com qe o brindavam os seus parentes, para que dissesse que ele estava doido com intervalos lúcidos, e que o maior inimigo, que na sua desgraça tinha, era a sua muita fazenda, pois para a desfrutar os seus inimigos cometiam dolo e duvidavam da mercê que Nosso Senhor lhe fizera, em o mudar de bruto em homem. Finalmente, falou de modo que deu o reitor por suspeito, os seus parentes por cobiçosos e desalmados, e ele por tão discreto que o capelão resolveu-se a levá-lo consigo, para que o arcebispo o visse, e tocasse com a mão a verdade daquele negócio. Nesta boa fé, o honrado capelão pediu ao reitor que mandasse dar o fato com que para ali entrara o licenciado; tornou-lhe o reitor que visse o que fazia, porque sem dúvida alguma o licenciado ainda estava doido. De nada serviram para o capelão as prevenções e avisos do reitor, e não quis deixar de o levar; obedeceu o reitor, vendo que era ordem do arcebispo; vestiram ao licenciado o seu fato, ainda novo e decente; e assim que ele se viu trajado como homem são e despido das vestes de louco, pediu por caridade ao capelão que o deixasse ir despedir dos doidos seus companheiros. Disse-lhe o capelão que o queria acompanhar, para ver os moradores daquela casa. Subiram, com efeito, e com eles alguns outros que estavam presentes; e, chegando o licenciado a uma jaula onde estava um doido furioso, ainda que nesse momento muito sossegado e quieto, disse-lhe:

- Irmão, dê-me as suas ordens, que vou para minha casa, pois que foi Deus servido, por Sua infinita bondade e misericórdia, sem eu o merecer, restituir-me o juízo; já estou são e cordato, que a Deus nada é impossível; tenha grande esperança e confiança nEle, que, se Deus Nosso Senhor me restituiu o entendimento, também lhe restituirá o seu, se n'Ele confiar; eu terei cuidado de lhe mandar alguns mimosos manjares, e vá-os comendo sempre, que lhe faço saber que imagino, como quem por aí passou, que todas as nossas loucuras procedem de termos estômagos vazios e cérebros cheios de ar; anime-se, anime-se, que o desalento nos infortúnios mingua a saúde, e traz consigo a morte.

Todas estas razões do licenciado as esteve escutando outro doido, metido numa jaula fronteira da do furioso, e, levantando-se de uma esteira velha, onde se deitara nu em pêlo, perguntou, com grandes brados, quem é que se ia embora, são e com juízo.

Respondeu o licenciado:

- Sou eu, irmão, que já não tenho necessidade daqui me demorar mais tempo, pelo que dou infinitas graças aos Céus, que tamanha mercê me fizeram.

- Vede o que dizeis, licenciado, não vos engane o Diabo - redarguiu o doido. - Está-vos pulando o pé? Será melhor que fiqueis em vossa casa, para vos poupardes à volta.

- Eu sei que estou bom - tornou o licenciado - e não haverá motivo para eu tomar a correr as estações.

- Estais bem... vós? - disse o louco. - Pois muito bem, ide-vos com Deus; mas voto a Júpiter, cuja majestade eu represento na Terra, que só por este pecado que hoje Sevilha comete em vos tirar desta casa, e em vos ter por homem sensato, tenho de lhe dar tamanho castigo, que fique memória dele por todos os séculos dos séculos, ámen. Não sabes tu, licenciadito minguado, que o poderei fazer, pois, como digo, sou Júpiter Tonante, que tenho nas minhas mãos os raios abrasadores, com que posso e costumo ameaçar e destruir o mundo? Mas só com uma coisa quero castigar este povo ignorante, e é que não há-de chover três anos inteiros em todo o distrito e seus contornos; três anos, que se hão-de contar desde o dia e momento em que proferir esta ameaça. Tu livre, tu são, tu com juízo, e eu amarrado, enfermo e louco! Hei-de pensar tanto em dar chuva à terra, como penso em enforcar-me!

Estiveram os circunstantes atentos a ouvir as vozes e os discursos do louco; mas o nosso licenciado, voltando-se para o capelão, e agarrando-lhe nas mãos, disse-lhe:

- Não se aflija Vossa Mercê, meu Senhor, nem faça caso do que este louco diz, que, se ele é Júpiter, e não quer dar chuva, eu, que sou Neptuno, pai e deus das águas, choverei todas as vezes que me parecer e for necessário.

E a isto respondeu o capelão:

- Em todo o caso Senhor Neptuno, não será bom magoarmos o Senhor Júpiter; fique Vossa Mercê em sua casa, que outro dia, quando houver mais vagar e mais comodidade, voltaremos por Vossa Mercê.

Riu-se o reitor, riram-se os circunstantes, e deste riso ficou meio corrido o capelão; despiram o licenciado, ficou em casa, e acabou-se a história.

- Então é este o conto Senhor Barbeiro - disse D. Quixote -, que por vir de molde, não podia deixar de se narrar? Ah! Senhor Tosquiador, Senhor Tosquiador! Cego é quem não vê por entre os fios de seda! E é possível que Vossa Mercê não saiba que as comparações que se fazem de engenho com engenho, de valor com valor, de formosura com formosura, e de linhagem com linhagem, são sempre odiosas e mal recebidas? Eu, Senhor Barbeiro, não sou Neptuno, deus das águas, nem procuro que ninguém me tenha por discreto, não o sendo; só me canso para fazer perceber ao mundo o erro em que labora, não renovando os tempos em que a ordem da cavalaria andante campeava em toda a pompa; mas não é merecedora a nossa depravada idade de gozar tantos bens como os que gozaram os séculos, em que os cavaleiros andantes tomaram a seu cargo e puseram aos ombros a defesa dos reinos, o amparo das donzelas, o socorro dos órfãos e pupilos, o castigo dos soberbos, e o prémio dos humildes. Os cavaleiros hoje da moda, antes se molestam com os damascos, brocados, e outras ricas telas de que se vestem, do que com a malha com que os armam; já não há cavaleiro que durma nos campos, sujeito ao rigor do céu, armado de ponto em branco; e já não há quem, sem tirar os pés dos estribos, arrimado à sua lança, só procure, no dizer vulgar, passar pelo sono, como faziam os cavaleiros andantes; já não há um só, que saia do bosque para entrar na montanha, e pise em seguida a estéril e deserta praia do mar, as mais das vezes proceloso e alterado, e, encontrando logo ali, à beira, um pequeno batel sem vela, nem remo, nem mastro, nem enxárcia alguma, com intrépido coração se arroje para dentro dele, entregando-se às implacáveis ondas do mar profundo, que ora o levantam ao céu, ora o precipitam num abismo, e ele, pondo o peito à incontrastável borrasca, quando mal se precata acha-se a três mil e tantas léguas distante do lugar onde embarcou, e, saltando em remota e desconhecida terra, sucedem-lhe coisas dignas de ser escritas, não em pergaminho, mas em bronze; agora, porém, já triunfa a preguiça da diligência, o vício da virtude, a ociosidade do trabalho, a arrogância da valentia, e a teoria da prática das armas, que só brilharam e resplandeceram nas idades de ouro e nos cavaleiros andantes. Senão, digam-me: Quem foi mais honesto e mais valente do que o famoso Amadis de Gaula? Quem foi mais discreto do que Palmeirim de Inglaterra? Quem teve mais conciliadoras maneiras do que Tirante el Blanco? Quem foi mais galã do que Lisuarte da Grécia? Quem mais acutilado, nem mais acutilador do que D. Belianis? Quem mais intrépido do que Perion de Gaula? Quem mais cometedor de perigos do que Felix Marte de Hircânia? Mais sincero do que Esplandian? Mais arrojado do que Cirongildo da Trácia? Mais bravo do que Rodamonte? Mais prudente do que el-rei Sobrinho? Mais atrevido do que Reinaldo? Mais invencível do que Roldão? Mais galhardo e mais cortês do que Rogero, de quem hoje descendem os duques de Ferraria, como diz Turpin na sua cosmografia? Todos estes cavaleiros, e outros muitos, que eu poderia dizer Senhor Cura, foram cavaleiros andantes, luz e glória da cavalaria. Destes ou doutros como estes, quisera eu que fossem os do meu arbítrio, que, a sê-lo Sua Majestade se acharia bem servido, e se lhe forraria muita despesa, e o turco depenaria as barbas; e com isto me quero ficar na minha casa, já que o capelão me não tira dela para fora; e se Júpiter, como diz o barbeiro, não chover, aqui estou eu que choverei, quando me aprouver: digo isto, para que saiba o Senhor Navalha que o entendo muito bem.

- Na verdade, Sr. D. Quixote - acudiu o barbeiro -, o que eu disse não foi com má tenção, assim Deus me ajude, e Vossa Mercê não deve sentir-se.

- Se devo sentir-me ou não, eu é que o sei - respondeu D. Quixote.

- Ainda bem - disse o cura - que até agora ainda quase que no dei palavra, e não queria ficar com um escrúpulo que me rói a consciência, nascido do que me disse aqui o Sr. D. Quixote.

- Para outras coisas mais - respondeu D. Quixote - tem o Senhor Cura licença, e assim pode dier o seu escrúpulo, porque não é bom andar uma pessoa com a consciência em ânsias.

- Pois, com esse beneplácito - respondeu o cura - digo que o meu escrúpulo vem a ser que de nenhum modo me posso persuadir de que toda essa caterva de cavaleiros andantes, que Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, referiu, tivessem sido real e verdadeiramente neste mundo pessoas de cae e osso; antes imagino que tudo é ficção, fábula e mentira, e sonhos contados por homens despertos, ou, para melhor dizer, meio adormecidos.

- Isso é outro erro - respondeu D. Quixote - em que têm caído muitos que não acreditam que houvesse tais cavaleiros no mundo, e eu muitas vezes, com diversas gentes e ocasiões, procurei tirar à luz da verdade este quase comum engano; mas algumas vezes não realizei a minha intenção, e outras sim, sustentando-a nos ombros da verdade; verdade que é tão certa, que estou em dizer que vi com meus próprios olhos Amadis de Gaula, que era um homem alto de corpo, branco de rosto, de barba formosa e negra, de olhar entre brando e rigoroso, curto de razões, tardio em se irar, e pronto em depor a ira; e do modo que eu delineei Amadis, poderia, penso eu, pintar e descrever todos quantos cavaleiros andantes se encontram nas histórias do orbe, que, pela ideia que tenho, foram como as suas crónicas narram; e pelas façanhas que praticaram, e condições que tiveram se podem tirar por boa filosofia as suas feições, a sua cor e a sua estatura.

-De que tamanho lhe parece a Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, que seria o gigante Morgante?

- Nisto de gigantes - respondeu D. Quixote - há diferentes opiniões: se os tem havido ou não no mundo; mas a Escritura Santa, que não pode faltar, nem num átomo, à verdade, mostra-nos que os houve, falando-nos naquele filisteu de Golias, que tinha sete côvados e meio de altura, o que é uma grandeza desmarcada. Também na ilha da Sicília se têm encontrado canelas e espáduas tamanhas, que a sua grandeza manifesta que foram gigantes os seus possuidores, e do tamanho de altíssimas torres; que a geometria tira esta verdade de toda a dúvida. Mas, com tudo isso, não saberei dizer com certeza o tamanho que teria Morgante, ainda que imagino que não devia de ser muito alto; e move-me a ser desta opinião encontrar na história, onde se faz menção especial das suas façanhas, que muitas vezes dormia debaixo de telha; e, logo que encontrava casa onde coubesse, claro está que não era desmesurada a sua grandeza.

- Assim é - disse o cura, que, gostando de lhe ouvir dizer tamanhos disparates, lhe perguntou o que pensava dos rostos de Reinaldo de Montalvão e de D. Roldão, e dos outros Doze Pares de França, pois todos tinham sido cavaleiros andantes.

- De Reinaldo - respondeu D. Quixote - atrevo-me a dizer que era de cara larga, cor vermelha, olhos bailadores e um pouco esbugalhados, rixoso e colérico em demasia, amigo de ladrões e de gente perdida. De Roldão, ou Rotolando, ou Orlando (que com todos estes nomes o designam as histórias), sou de parecer, e afirmo que foi de mediana estatura, largo de ombros, moreno de rosto e barbirruivo, cabeludo no corpo, e de vista ameaçadora, curto de razões, mas muito comedido e bem-criado.

- Se não foi Roldão mais gentil-homem do que Vossa Mercê diz - redarguiu o cura -, não maravilha que a formosa Angélica o desdenhasse, trocando-o pela gala, donaire e brio que devia de ter o mourinho imberbe a quem se entregou, e procedeu discretamente afagando antes a brandura de Medoro, do que a aspereza de Roldão.

- Essa Angélica - respondeu D. Quixote - foi uma donzela distraída, vagabunda, e um tanto caprichosa, que deixou o mundo tão cheio das suas leviandades como da sua formosura. Desprezou mil senhores, mil valentes e mil discretos, e contentou-se com um pajenzito louro, sem mais fazenda e nome do que os que lhe pôde granjear a amizade que teve a um agradecido amigo. O grande cantor da formosura de Angélica, o famoso Ariosto, por não se atrever ou não querer contar o que a esta dama sucedeu depois de se ter entregado a tão ruim senhor, que não deviam de ser coisas demasiadamente honestas, largou-a dizendo:

Como empunhou do grão Catai o ceptro, outro virá cantar com melhor plectro.

E foi isto, sem dúvida, profecia, que os poetas também se chamam vates, o que quer dizer adivinhos. Vê-se esta verdade claramente, porque depois um famoso poeta andaluz pranteou e cantou as suas lágrimas, e outro famoso e único poeta castelhano cantou a sua formosura.

- Diga-me, Sr. D. Quixote - acudiu o barbeiro -, não houve poeta algum que fizesse algumas sátiras a essa Sra. Angélica, entre tantos que a louvaram?

- Creio - respondeu D. Quixote - que, se Sacripante e Roldão fossem poetas, teriam vibrado epigramas à donzela, porque é próprio e natural dos poetas desdenhados e maltratados pelas suas damas, vingar-se com sátiras e libelos; vingança decerto indigna de peitos generosos; mas até agora não tive notícia de versos infamatórios contra a sra. Angélica, que trouxe o mundo revolto.

- Milagre! - disse o cura.

E nisto ouviram que a ama e a sobrinha, que já tinham abandonado a prática, davam grandes brados no pátio, e acudiram todos ao ruído.

 

QUE TRATA DA NOTÁVEL PENDÊNCIA QUE SANCHO PANÇA TEVE COM A SOBRINHA E AMA DE D. QUIXOTE, E DE OUTROS SUCESSOS GRACIOSOS

Conta a história que os brados que ouviram D. Quixote, o cura e o barbeiro eram da sobrinha e da ama, dizendo esta a Sancho Pança, que pugnava para entrar e ver D. Quixote, enquanto elas defendiam a porta:

- Que quer este mostrengo nesta casa? Ide-vos para a vossa, irmão, que sois vós e no outrem quem tresvaria e alicia o meu amo, e o arrasta para essas andanças.

A que Sancho respondeu;

- Ó ama de Satanás, o tresvariado e o aliciado e o arrastado sou eu, e no teu amo; ele me levou por esses mundos de Cristo, e vós outras enganais-vos de meio a meio; foi ele quem me tirou da minha casa, com muitas lerias, prometendo-me uma ilha, que ainda hoje estou à espera dela.

- Más ilhas te afoguem - respondeu a sobrinha - Sancho maldito; e que vem a ser isso de ilhas? É coisa de comer, guloso e comilão que tu és?

- Não é de comer - tomou Sancho - mas de reger e governar, melhor do que quatro cidades e quatro alcaidarias da corte.

- Pois com tudo isso - insistiu a ama - não entrareis cá, saco de maldades e costal de malícias, ide-vos governar a vossa casa, e lavrar as vossas leiras, e deixai-vos lá de querer ilhas nem ilhos.

Grande gosto recebiam o cura e o barbeiro de ouvir o colóquio dos três; mas D. Quixote, receoso de que Sancho se descosesse e desembuchasse algum montão de maliciosas necedades, que tocassem nalgum ponto que não fosse muito em crédito seu, chamou-o e disse às duas que se calassem e o deixassem entrar. Entrou Sancho, e o cura e o barbeiro despediram-se de D. Quixote, de cuja saúde desesperaram, vendo como estava embebido nos seus desvairados pensamentos, e engolfado nas suas mal-andantes cavalarias; e o cura disse para o barbeiro:

- Vereis, compadre, que, quando menos o pensemos, o nosso fidalgo sai outra vez a andar à tuna.

- Não ponho dúvida nisso - redarguiu mestre Nicolau - mas não me maravilho tanto da loucura do cavaleiro como da simplicidade do escudeiro, que tão ferrada lá tem a história da ilha, que me parece que lha não tiram dos cascos nem quantos desenganos se possam imaginar.

- Deus lhe dê remédio - tornou o cura - e estejamos à mira; veremos em que pára esta máquina de disparates com semelhante cavaleiro, e semelhante escudeiro, que parece que os tiraram a ambos da mesma pedra, e que as loucuras do amo, sem as necedades do criado, não valeriam coisa alguma.

- Assim é - confirmou o barbeiro - e folgaria muito de saber em que estarão os dois palestrando.

- Tenho a certeza - disse o cura - que a sobrinha ou a ama no-lo contarão depois, que não são elas pessoas que deixem de se pôr à escuta.

Entretanto, D. Quixote fechou-se com Sancho no seu aposento, e, apenas se viu só com ele, disse-lhe:

- Muito me pesa, Sancho, que tenhas dito e continues a dizer que fui eu quem te tirou da tua choupana, sabendo tu muito bem que eu não fiquei em casa. Juntos saímos, juntos nos fomos, e juntos peregrinámos; correu-nos a ambos a mesma fortuna e a mesma sorte; se a ti te mantearam uma vez, a mim derrearam-me cem vezes, e é essa a única vantagem que te levo.

- Isso era de razão - respondeu Sancho - porque, segundo Vossa Mercê diz, mais perseguem as desgraças os cavaleiros andantes, do que os seus escudeiros.

- Enganas-te, Sancho - redarguiu D. Quixote -, porque lá dizem: quando caput dolet, etc.

- Eu cá não entendo outra língua senão a minha - respondeu Sancho.

- Quero dizer - tornou D. Quixote - que, quando nos dói a cabeça, todos os membros nos doem; e assim, sendo eu teu amo e senhor, sou a tua cabeça e tu és parte de mim, visto que és meu criado; e por esse motivo o mal que me toca ou me tocar, há-de-te doer a ti, e a mim o teu.

- Assim devia ser - disse Sancho - mas quando me mantearam estava a minha cabeça, que era Vossa Mercê, alapardada a ver-me voar pêlos ares, sem sentir dor alguma; e, se os membros têm obrigação de se doer dos males da cabeça, devia ela ter obrigação de se doer dos males deles.

- Quererás dizer agora, Sancho - respondeu D. Quixote -, que me no doía quando te mantearam? E se o dizes, não o penses, porque mais dor sentia eu no meu espírito, do que tu no teu corpo. Mas deixemos este aparte por agora, que tempo haverá em que o ponderemos e tiremos a limpo; e conta-me, Sancho amigo: que dizem de mim por esse lugar? Que opinião formam a meu respeito o vulgo, os fidalgos, e os cavaleiros? E que dizem do meu valor? Das minhas façanhas? Da minha cortesia? Que se pensa da missão que tomei de ressuscitar a olvidada ordem cavalheiresca? Quero, finalmente, Sancho, que me narres o que tiver chegado aos teus ouvidos; e hás-de-mo dizer sem amplificar o bem, nem ataviar o mal em coisa alguma; que é de vassalos leais dizer a seus senhores a verdade como ela é, sem que a adulação a acrescente, ou qualquer outro vão respeito a diminua; e quero que saibas, Sancho, que, se aos ouvidos dos príncipes chegasse a verdade nua, sem os vestidos da lisonja, outros séculos correriam, outras idades seriam consideradas mais de ferro que a nossa; sirva-te este aviso, Sancho, para que discreta, e bem-intencionadamente, me digas as coisas verdadeiras que souberes acerca do que te perguntei.

- Isso faço eu de muito boa vontade, meu Senhor - tornou Sancho -, contanto que Vossa Mercê se não enfade com o que eu disser, já que deseja que eu o diga nu e cru, sem o vestir com outras roupas que não sejam aquelas com que chegaram ao meu conhecimento.

- Não me enfado - respondeu D. Quixote -, podes, Sancho, falar livremente e sem rodeios.

- Pois, a primeira coisa que posso e devo afirmar é que o vulgo tem a Vossa Mercê por grandíssimo louco, e a mim por não menos mentecapto. Dizem os fidalgos que, não se contendo Vossa Mercê nos limites da fidalguia, tomou dom, e se fez cavaleiro com quatro cepas e duas jugadas de terra, e com um

trapo atrás e outro adiante. Dizem os cavaleiros que não quereriam que os dalgos se lhes opusessem, principalmente certos fidalgos escudeiros, que defumam os sapatos, e apontoam meias negras com seda verde.

- Isso - disse D. Quixote - nada tem que ver comigo, porque, como sabes, ando sempre bem vestido e nunca arremendado; roto, poderá ser, mais das armas que do tempo.

- No que toca - prosseguiu Sancho - a valor, cortesia, façanhas, e missão de Vossa Mercê, há muitas diversas opiniões: uns dizem - louco, mas gracioso; outros - valente, mas desgraçado; outros - cortês, mas impertinente; e assim vão discorrendo, de tantas formas e feitios, que nem a Vossa Mercê, nem a mim, nos deixam costela inteira.

- Sancho - disse D. Quixote -, onde a virtude estiver em grau eminente, verás que é perseguida; poucos, ou nenhum dos famosos varões que passaram na Terra, deixaram de ser caluniados pela malícia. Júlio César, animosíssimo, prudentíssimo e valentíssimo, foi notado de ambicioso, e de não ser muito limpo, nem no fato, nem nos costumes. Alexandre, a quem as suas façanhas alcançaram renome de Magno, dizem que teve o defeito de se embriagar às vezes. De Hércules, o dos inúmeros trabalhos, se conta que foi lascivo e mole. De D. Galaor, irmão de Amadis de Gaula, murmura-se que foi mais do que nimiamente rixoso; e do próprio D. Amadis, que foi chorão. Por isso, meu Sancho, entre tantas calúnias levantadas aos bons, podem também passar as minhas, se é que não foram mais do que as que disseste.

- Aí é que bate o ponto, corpo de meu pai! - redarguiu Sancho.

- O quê! Pois há mais? - Perguntou D. Quixote.

- Falta ainda o rabo, que é o pior de esfolar - tornou Sancho -; até agora tem sido pão com mel, mas se Vossa Mercê quer saber ao certo tudo o que há acerca das calúnias que lhe levantaram, eu aqui lhe trago logo quem lhas dirá todas, sem lhe faltar nem uma mealha, que esta noite chegou o filho de Bartolomeu Carrasco, que vem de estudar em Salamanca e feito bacharel, e, indo-lhe eu a dar os emboras pela sua chegada, disse-me que já andava em livros a história de Vossa Mercê, com o nome do Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha, e que lá dão conta de mim com o meu próprio nome de Sancho Pança, e da Sra. Dulcineia del Toboso, com outras coisas que passámos a sós, que eu benzi-me de espantado, de como as pôde saber o historiador que as escreveu.

- Asseguro-te, Sancho - tornou D. Quixote -, que deve ser algum sábio nigromante o autor da nossa história, que a esses tais nada se lhes encobre do que querem escrever.

- E, se era sábio o nigromante - redarguiu Sancho - como é que ele se chama, segundo diz o bacharel Sansão Carrasco, Cide Hamet Beringela?

- Isso é nome de mouro - disse D. Quixote.

- Assim será - respondeu Sancho - porque sempre ouvi dizer que os Mouros gostavam de beringelas.

- Suponho, meu Sancho, que erras nesse nome de Cide, que em árabe quer dizer senhor.

- Pode muito bem ser - redarguiu Sancho - mas, se Vossa Mercê quer que eu o traga aqui, é um instante, enquanto o vou buscar.

- Dar-me-ás nisso muito gosto - disse D. Quixote -, que fiquei suspenso com o que me disseste, e não como coisa que bem me saiba, enquanto não for informado de tudo.

- Pois eu vou por ele - respondeu Sancho. E, deixando seu amo, foi procurar o bacharel, com quem voltou daí a pouco, e houve entre todos três um graciosíssimo colóquio.

 

DO DIVERTIDO ARRAZOAMENTO QUE HOUVE ENTRE D. QUIXOTE, SANCHO PANÇA E O BACHAREL SANSãO CARRASCO

Pensativo deveras ficou D. Quixote, enquanto não vinha o bacharel Carrasco, de quem esperava ouvir as notícias de si próprio, postas em livro, como dissera Sancho, e não se podia persuadir que semelhante história existisse, pois ainda não estava enxuto na folha da sua espada o sangue dos inimigos que matara, e já queriam que andassem impressas as suas altas cavalarias. Com tudo isto, imaginou que algum sábio, ou amigo, ou inimigo, por arte de encantamento as haveria dado à estampa: se amigo, para engrandecê-las e levantá-las acima das mais assinaladas de todo e qualquer cavaleiro andante; se inimigo, para as aniquilar e pô-las abaixo das mais vis que de qualquer vil escudeiro se houvessem escrito; ainda que dizia entre si que nunca se escreveram façanhas de escudeiros; e, quando fosse verdade que tal história existisse, sendo de cavaleiro andante, havia de ser grandíloqua, altíssona, insigne, magnífica e verdadeira. Com isto se consolou um tanto ou quanto; mas desgostou-o pensar que o seu autor era mouro, como dava a entender aquele nome de Cide, e dos mouros não se podia esperar verdade alguma, porque todos são embaidores, falsários e mentirosos. Temia que houvesse tratado os seus amores com alguma indecência, que redundasse em menoscabo e desdouro da sua dama Dulcineia del Toboso; desejava que houvesse declarado a sua fidelidade e o decoro que sempre lhe guardara, menosprezando rainhas, imperatrizes e donzelas de toda a qualidade, contendo os ímpetos dos movimentos naturais; e assim, envolto e revolto nessas e noutras muitas imaginações, o vieram encontrar Sancho e Carrasco, a quem D. Quixote recebeu com muita cortesia.

Era o bacharel, apesar de se chamar Sansão, não muito alto nem robusto, magano deveras, de cor macilenta, mas de óptimo entendimento; teria os seus vinte e quatro anos, cara redonda, nariz chato e boca grande, tudo sinais de ser malicioso de condição, e amigo de donaires e de burlas, como mostrou assim que viu D. Quixote, pondo-se de joelhos diante dele, e dizendo-lhe:

- Dê-me Vossa Mercê as suas mãos, Sr. D. Quixote de La Mancha, que, pelo hábito de S. Pedro que visto apesar de não ter outras ordens senão as quatro primeiras, é Vossa Mercê um dos mais famosos cavaleiros andantes que tem havido, ou haverá em toda a redondeza da Terra. Bem-haja Cide Hamet Benengeli, que deixou escrita a história das vossas grandezas, e re-bem-haja o curioso que teve cuidado de a mandar traduzir do árabe no nosso castelhano vulgar, para universal entretenimento das gentes.

  1. Quixote fê-lo levantar, e disse:

- Com que então, é verdade haver uma história dos meus feitos, e ser mouro e sábio quem a compôs?

- É tão verdade Senhor - disse Sansão -, que tenho para mim que no dia de hoje estão impressos mais de doze mil exemplares da tal história; senão, digam-no Portugal, Barcelona e Valência, onde se estamparam, e ainda corre fama que se está imprimindo em Antuérpia, e a mim me transluz que não há-de haver nação em que se não leia, nem língua em que se não traduza.

- Uma das coisas - acudiu D. Quixote -, que maior contentamento deve dar a um homem virtuoso e eminente, é o ver-se andar em vida pelas bocas do mundo, com bom nome, é claro, porque, sendo ao contrário, não há morte que se lhe iguale.

- Lá nisso de bom nome e boa fama - tornou o bacharel - leva Vossa Mercê a palma a todos os cavaleiros andantes, porque o mouro e o cristão, cada qual na sua língua, tiveram o cuidado de nos pintar a galhardia de Vossa Mercê, o ânimo grande em acometer os perigos, a paciência nas adversidades, e o sofrimento, assim nas desgraças como nas feridas; a honestidade e continência nos amores tão platónicos de Vossa Mercê e da muito minha Sra. d. Dulcineia del Toboso.

- Nunca ouvi dar dom à minha Sra. Dulcineia - disse neste momento Sancho - e sempre lhe ouvi chamar só Sra. Dulcineia, e já nesse ponto vai a história errada.

- Objecção pouco importante - respondeu Carrasco.

- Decerto - observou D. Quixote -, mas diga-me Vossa Mercê, Senhor Bacharel, que façanhas minhas são as que mais se ponderam nessa história?

- Nisso - respondeu o bacharel - há diferentes opiniões, como há diversos gostos; uns preferem a aventura dos moinhos de vento, que a Vossa Mercê lhe pareceram briareus e gigantes;

outros a das azenhas; este a descrição dos dois exércitos que depois se viu que eram dois rebanhos de carneiros; aquele encarece a do morto que levavam a enterrar a Segóvia; diz um que a todas se avantaja a da liberdade dos galeotes; outro que nenhuma iguala a dos gigantes frades bentos com a pendência do valoroso biscainho.

- Diga-me, Senhor Bacharel - interrompeu Sancho -, entra aí também a aventura dos arrieiros, quando o nosso bom Rocinante teve a ideia de se fazer reinadio com as éguas?

- Não ficou ao sábio coisa alguma no tinteiro - respondeu Sansão -; diz tudo e tudo aponta, até o caso das cabriolas que este bom Sancho deu na manta.

- Eu não dei cabriolas na manta - observou Sancho -, no ar sim, e ainda mais do que eu queria.

- Segundo imagino - disse D. Quixote - não há história humana em todo o mundo que não tenha os seus altos e baixos, especialmente as que tratam de cavalaria, as quais nunca podem estar cheias de prósperos sucessos.

- Com tudo isso - respondeu o bacharel - dizem alguns que leram a história, que folgariam se se tivessem esquecido os autores de algumas das infinitas pauladas que em diferentes recontros deram no Sr. D. Quixote.

- E a verdade da história? - perguntou Sancho.

- Poderiam deixá-las em silêncio por equidade - notou D. Quixote -, pois as acções que não mudam nem alteram o fundo verdadeiro da história, não há motivo para se escreverem, logo que redundem em menosprezo do protagonista. À fé que não foi tão pio Eneias como Virgílio o pinta, nem tão prudente Ulisses, como refere Homero.

- Assim é - redarguiu Sansão - mas uma coisa é escrever como poeta, e outra como historiador; o poeta pode contar ou cantar as coisas não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há-de escrevê-las, não como deviam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade a mínima coisa.

- Pois se esse Senhor Mouro anda a dizer verdades - disse Sancho -, é bem certo que, entre as pauladas que apanhou meu amo, se contem as minhas também, porque nunca a Sua Mercê lhe tomaram a medida das costas, que ma não tomassem a mim de todo o corpo; mas não há de que maravilhar-me, pois,

como diz o mesmo Senhor meu, da dor da cabeça hão-de participar os membros.

- Sois socarrão, Sancho - acudiu D. Quixote -, e não vos falta memória quando quereis tê-la.

- Se eu quisesse olvidar as bordoadas que me deram - disse Sancho - não o consentiriam as nódoas, que ainda tenho frescas nas costelas.

- Calai-vos, Sancho - tornou D. Quixote -, e não interrompais o Senhor Bacharel, a quem peço que continue a narrar-me o que se diz de mim na referida história.

- E de mim - prosseguiu Sancho - que também dizem que sou uma das principais presonagens.

- Personagens e não presonagens, Sancho amigo - emendou Sansão.

- Ah! temos outro esmiuçador de vocablos? - disse Sancho. - Metam-se nisso que não acabamos a palestra estes anos mais chegados.

- Pois má vida me dê Deus, Sancho - acudiu o bacharel -, se não sois vós a segunda pessoa da história; e há tal, que mais aprecia ouvir-vos falar a vós do que ao mais pintado de toda ela, posto que também há quem diga que vos mostrastes demasiadamente crédulo em se vos meter na cabeça que podia ser verdade o governo daquela ilha que vos prometeu o Sr. D. Quixote, que presente está.

- Ainda luz sol no mundo - disse D. Quixote - e quanto mais entrado em anos for Sancho, mais idóneo e mais hábil ficará, com a experiência que traz a idade, para ser governador.

- Por Deus, Senhor meu amo - respondeu Sancho -, ilha que eu não governasse com os anos que tenho, não a governarei nem com a idade de Matusalém; o pior é que a tal ilha pára não sei onde, que lá bestunto para governar não me falta a mim.

- Encomendai o caso' a Deus, Sancho - tornou D. Quixote

-, que tudo se fará bem, e talvez melhor do que pensais, que não bole folha nas árvores sem a vontade de Deus.

- Assim é - disse Sansão - que, se Deus quiser, não faltarão a Sancho mil ilhas que governar, quanto mais uma.

- Governadores tenho visto por aí - observou Sancho - que, no meu entender, nem me chegam às solas dos sapatos, e com tudo isso servem-se com prata, e são tratados por senhoria.

- Esses não são governadores de ilhas - tornou Carrasco

- mas de outros governos de menos consideração; que os que governam ilhas, pelo menos, têm de saber gramática.

- Lá com o gramar entendia-me eu - tornou Sancho -, com ticas é que não; mas, deixando isso do governo nas mãos de Deus, que Ele de mim fará o que for servido, digo Senhor Bacharel Sansão Carrasco, que me deu infinito gosto saber que o autor da história fala de mim de modo que não enfadem as coisas que refere; porque, à fé de bom escudeiro, se ele dissesse de mim coisas que não fossem de cristão-velho como eu sou, havíamos de ter tamanha bulha, que os surdos nos ouviriam.

- Isso seria milagre - tornou Carrasco.

- Milagre ou não - continuou Sancho -, veja cada qual como escreve, e não ponha a trouxe-mouxe quanto lhe vem a cabeça.

- Uma das máculas que se notam na tal história - continuou o bacharel - é o ter-lhe intercalado o autor uma novela intitulada O Curioso Impertinente, não por ser má, ou mal arrazoada, mas por não estar ali no seu lugar, nem ter que ver com a história de Sua Mercê, o Sr. D. Quixote.

- Aposto - observou Sancho - que misturou esse filho de um perro alhos com bugalhos.

- Agora digo eu - acudiu D. Quixote - que não foi um sábio o autor da minha história, mas algum falador ignorante, que, sem ter tento nem juízo, se pôs a escrevê-la, saia o que sair, como fez Orbaneja, o pintor de Úbeda, que, perguntando-se-lhe o que pintava, respondeu: o que calhar. E às vezes pintava um galo, de tal feitio e tão pouco parecido, que era necessário escrever-se-lhe ao pé em letras góticas: são é um galo; e assim acontecerá com a minha história, que precisará talvez de comentário para se entender.

- Isso não - respondeu Carrasco - porque é tão clara, que não tem dificuldades; manuseiam-na os meninos, lêem-na os moços, entendem-na os homens, e os velhos celebram-na; e, finalmente, é tão repisada e lida e sabida por toda a casta de gentes, que, apenas se vê algum rocim magro, diz-se logo: ali vai Rocinante; e os que mais se entregaram à sua leitura foram os pajens: não há antecâmara de fidalgo onde se não encontre o D. Quixote; apenas um o larga, logo outro lhe pega; uns pedem-no, outros arrancam-no. Finalmente, a tal história é o mais saboroso e menos prejudicial entretenimento que até agora se tem visto, porque em toda ela se não encontra nem por sombras uma palavra desonesta, ou um pensamento menos católico.

- Se de outra forma a escrevessem - disse D. Quixote -, não escreveriam verdades, mas sim mentiras, e os historiadores que de mentiras se valem deviam de ser queimados, como os que fazem moeda falsa; e não sei por que motivo recorreu o autor a novelas e contos alheios, havendo tanto que dizer de mim; sem dúvida, atendeu ao rifão: de palha e de feno, etc. Pois na verdade, só em manifestar os meus pensamentos, os meus suspiros, as minhas lágrimas, os meus bons desejos e os meus cometimentos, podia fazer um volume maior do que todas as obras do Tostado. Efectivamente, o que eu vejo Senhor Bacharel, é que para compor histórias e livros, de qualquer género que sejam, é mister grande juízo e maduro entendimento; dizer graças e escrever donaires é de altíssimos engenhos. A mais discreta figura da comédia é a do parvo, porque precisa de o não ser quem quer fingir de tolo. A história é como que uma coisa sagrada, porque tem de ser verdadeira, e onde está a verdade está Deus; mas, não obstante, há pessoas que compõem e produzem livros, como quem dá pilritos.

- Não há livro, por mau que seja - observou o bacharel -, que não tenha alguma coisa boa.

- Sem dúvida - replicou D. Quixote -, mas muitas vezes acontece que os que tinham merecidamente ganho e granjeado grande fama pêlos seus escritos, a perderam toda, logo que os imprimiram, ou a menoscabaram pelo menos.

- O motivo disso - tornou Sansão - é que, lendo-se com vagar as obras impressas, facilmente se lhes descobrem os erros, e tanto mais se esquadrinham, quanto maior é a fama de

quem os compôs. Os homens famosos pelo seu engenho, os grandes poetas, os ilustres historiadores, sempre a maior parte das vezes são invejados por aqueles que têm por gosto e particular entretenimento julgar os escritos alheios, sem ter dado um só à luz do mundo.

- Não admira - disse D. Quixote -, porque muitos teólogos há, que não são bons no púlpito, e são óptimos para conhecer os erros ou acertos dos que pregam.

- Tudo isso assim é, Sr. D. Quixote - tornou Carrasco -, mas quereria eu que os tais censores fossem mais compassivos e menos escrupulosos, sem fazerem reparo nos átomos que podem enodoar o sol claríssimo da obra de que murmuram, porque si alicfuando bónus dormita Homerus, considerem o muito que esteve desperto para dar a luz da sua obra com a menos sombra que pudesse; e talvez possa muito bem ser que o que lhes parece mau sejam apenas sinais, que às vezes aumentam a formosura do rosto que os tem, e assim digo que é grandíssimo o risco a que se expõe quem imprime um livro, sendo completamente impossível compô-lo de tal forma que satisfaça e contente a todos os que o lerem.

- O que de mim trata - disse D. Quixote - a poucos contentaria.

- Pois foi exactamente o contrário, porque como stultorum infinitus est numerus, infinitos são os que gostaram da tal história; e alguns culparam de falta e de dolo a memória do autor, pois se esquece de contar quem foi o ladrão que furtou o ruço a Sancho, coisa que ali se não declara, e só do que está escrito se infere que lho tiraram, e dali a pouco vemo-lo montado no mesmo jumento, sem se saber como; também dizem que se esqueceu de dizer o que Sancho fez aos cem escudos que encontrou na maleta na serra Morena, que nunca mais falou neles, e há muitos que desejam saber em que os gastou, que é um dos pontos essenciais que faltam na obra.

Sancho respondeu:

- Eu, Sr. Sansão, não estou agora para contas; deu-me uma fraqueza no estômago, que, se lhe não acudo com uma pinga, é capaz de me pôr na espinha; tenho-a em casa, onde me espera,

e, em acabando de jantar, por aí estou de volta para o satisfazer a Vossa Mercê e a todo o mundo que me quiser dirigir perguntas; tanto a respeito da perda do jumento como do gasto dos cem escudos.

E, sem esperar resposta, nem dizer mais palavra, foi para casa. D. Quixote pediu ao bacharel que ficasse para fazer penitência com ele. O bacharel aceitou o convite. Acrescentou-se um prato ao jantar de cada dia, falou-se em cavalarias à mesa, Sansão deu améns às manias do Sancho e renovou-se a prática.

 

EM QUE SANCHO PANÇA SATISFAZ AO BACHAREL CARRASCO, ACERCA DAS SUAS DÚVIDAS E PERGUNTAS, COM OUTROS SUCESSOS DIGNOS DE SE SABER E DE SE CONTAR

Voltou Sancho a casa de D. Quixote, e, tornando à mesma palestra:

- Visto que o Sr. Sansão disse desejar saber quem me furtou o jumento, e como e quando, respondo que na mesma noite em que, fugindo à Santa Irmandade, nos internámos na serra Morena; depois da desventurada aventura dos galeotes e da do defunto que levavam a Segovia, eu e meu amo metemo-nos por uma espessura, onde meu amo, arrimado à sua lança, e eu em cima do meu ruço, moídos e cansados das passadas refregas, nos pusemos a dormir como se estivéssemos em cima de quatro colchões de plumas, eu especialmente com sono tão pesado, que quem quer que foi pôde chegar-se a mim, amesendar-me em cima de quatro estacas, que pôs aos quatro cantos da albarda, de forma que me deixou a cavalo nelas, e tirou debaixo de mim o burro, sem eu sentir

- Isso é coisa fácil de acontecer, e não caso novo, que o mesmo sucedeu a Sacripanta, quando, estando no cerco de Aibraca, o famoso ladrão Brunelo, com essa mesma invenção, lhe tirou o cavalo debaixo das pernas.

- Amanheceu - prosseguiu Sancho - e apenas acordei, logo, escapando-me as estacas, dei comigo no chão. Procurei o jumento e não o vi. Vieram-me as lágrimas aos olhos, fiz uma lamentação, que, se a não pôs no livro o autor da nossa história, pode-se gabar de que lhe faltou uma coisa boa deveras. Ao cabo de não sei quantos dias, vindo eu com a Senhora Princesa Micomicoa, conheci o jumento, e que vinha montado nele, vestido de cigano, aquele Gines de Passa-Monte, aquele embusteiro e grandíssimo patife, que eu e meu amo tirámos da grilheta.

- Não está aí o erro - tornou Sansão - mas sim em que, antes de ter aparecido o jumento, diz o autor que ia Sancho montado no mesmo ruço.

- A isso - disse Sancho - não sei que hei-de responder, senão que o historiador se enganou, ou talvez fosse descuido do impressor.

- Sem dúvida assim é - tornou Sansão - mas, dizei-me:

que foi feito dos cem escudos?

- Desfizeram-se - respondeu Sancho -; gastei-os em prol da minha pessoa, e da de minha mulher e dos meus filhos, e foi por causa deles que minha mulher engoliu as caminhadas que dei em serviço de meu amo o Sr. D. Quixote, que, se ao cabo de tanto tempo eu voltasse para casa a tinir, e sem o jumento, negra sorte me esperava; e, se querem mais saber de mim, aqui estou para responder ao próprio rei em pessoa, e ninguém tem nada com o eu ter trazido ou não ter trazido, ter gasto ou não ter gasto; se as pauladas que apanhei nessas viagens se houvessem de pagar a dinheiro, ainda que só se taxassem a quatro maravedis cada uma, estou convencido que nem com outros tantos escudos me pagariam metade, e metam a mão na sua consciência, e no comecem a chamar preto ao branco, e branco ao preto; cada qual é como Deus o fez, e muitas vezes ainda pior.

- Eu terei cuidado - disse Carrasco - de acusar ao autor da história, que, se outra vez a imprimir, não lhe esqueça isto que disse o bom do Sancho, que será realçá-la bastante acima do que está.

- Há mais alguma coisa que precise de emenda nesse livro? - perguntou D. Quixote.

- Sim, deve haver - respondeu o bacharel -, mas nenhuma decerto da importância das referidas.

- E porventura - disse D. Quixote - promete o autor dar à luz uma segunda parte?

- Sim, promete - respondeu Sansão -, mas diz que não a encontrou nem sabe quem a tem, e assim estamos em dúvida se sairá ou não. E por isto, e porque dizem alguns que nunca saíram boas as segundas partes, e outros que das coisas de D. Quixote bastam as que estão escritas, suspeita-se que não se escreverá, apesar de haver gente jovial que diz: Venham as quixotadas! Invista D. Quixote, e fale Sancho Pança, e seja o que for, que com isso nos contentamos.

- E o autor o que resolve? - perguntou D. Quixote.

- Que em encontrando a história, que procura com extraordinária diligência, logo a dará à estampa, levado mais pelo interesse, que disso lhe resulta, do que pela esperança de quaisquer louvores.

- Ao dinheiro e ao interesse mira o autor - disse Sancho -; será maravilha que acerte, porque não fará senão alinhavar alinhavar, como alfaiate em véspera da Páscoa, e obras aldrabadas à pressa nunca se acabam com a perfeição que requerem. Veja o que faz esse Senhor Mouro, ou quem é, que eu e meu amo lhe daremos tanta obra em matéria de aventuras e de sucessos diferentes, que possa compor não só segunda parte, mas mais cem. Deve pensar o bom do homem, sem dúvida, que estamos a dormir; pois venha bater-nos os cravos na ferradura, e verá se temos cócegas. O que sei dizer é que, se meu amo tomasse o meu conselho, já devíamos de estar por esses campos, desfazendo agravos e tortos, como é uso e costume dos bons cavaleiros andantes.

Ainda Sancho não acabara bem de dizer estas razões, quando chegaram aos seus ouvidos relinchos de Rocinante, o que tomou D. Quixote por felicíssimo agouro, e resolveu fazer daí a três ou quatro dias outra saída; declarando o seu intento ao bacharel, pediu-lhe que lhe aconselhasse por onde havia de começar a sua jornada, e o bacharel respondeu-lhe que era de parecer que fosse ao reino de Aragão, à cidade de Saragoça,

onde, daí a poucos dias, se haviam de fazer umas soleníssimas justas para a festa de S. Jorge, nas quais poderia ganhar fama sobre todos os cavaleiros aragoneses, que seria ganhá-la sobre todos os cavaleiros do mundo.

Louvou-lhe a sua resolução, como valentíssima e honradíssima, e advertiu-lhe que andasse mais atento no acometer dos perigos, porque a sua vida não lhe pertencia, mas sim aos que dele haviam mister, para que os amparasse e socorresse nas aventuras.

- Disso é que eu arrenego, Sr. Sansão - disse então Sancho -, que meu amo acometa com cem homens armados, como um rapaz guloso com meia dúzia de pêras. Corpo do mundo Senhor Bacharel, há ocasiões para acometer e ocasiões para retirar, e não é lá estar sempre com Sant'lago cerra, e Espanha! E demais, ouvi dizer, creio até que ao meu Senhor, se bem me lembro, que entre os extremos de cobarde e de temerário está o meio termo da valentia, e, se isto assim é, não quero que fuja sem haver de que, nem que acometa quando a boa razão outra coisa pede, mas sobretudo, aviso a meu amo que, se tenciona levar-me consigo, é com a condição de que há-de ele combater, e eu não serei obrigado a outra coisa senão a cuidar da sua pessoa, no que tocar ao seu asseio e ao seu regalo, que lá nisso eu lhe deitarei água às mãos; mas pensar que hei-de desembainhar a espada, ainda que seja contra vilãos malandrins, é completamente escusado. Eu, Sr. Sansão, não cuido em granjear fama de valente, mas sim do melhor e mais leal escudeiro que nunca serviu a um cavaleiro andante, e se meu amo, o Sr. D. Quixote, obrigado pêlos meus largos e bons serviços, me quiser dar alguma ilha das muitas que Sua Mercê diz que há-de topar por aí, receberei nisso grande mercê, e se não ma der, paciência! E demais, talvez melhor ainda me saiba o pão, sendo desgovernado, que sendo governador; sei lá porventura se nesses governos não me tem aparelhada o Diabo alguma armadilha em que eu tropece e caia, e quebre os queixos? Sancho nasci, e Sancho hei-de morrer. Mas se, com tudo isso, às boas, sem cuidado nem risco, me deparasse o céu alguma ilha, ou outra coisa semelhante, não sou tão néscio que a largue, que também se diz: a cavalo dado não se olha o dente, e mais vale um pássaro na mão que dois a voar.

- Falastes, Sancho mano - disse Sansão -, como um catedrático; confiai em Deus e no Sr. D. Quixote, que vos há-de dar um reino, e no uma ilha.

- Tanto é o de mais como o de menos - respondeu Sancho -, ainda que sei dizer ao Senhor Carrasco que não deitaria em saco roto meu amo o reino que me desse, que eu tomei o pulso a mim próprio, e acho-me com saúde para reger reinos e governar ilhas; e isto já por outras vezes lho tenho dito a ele.

- Reparai, Sancho - tornou Sansão -, que os ofícios mudam os costumes, e poderia ser que, vendo-vos governador, não conhecêsseis a mãe que vos deu à luz.

- Isso é bom para os que nasceram filhos das ervas - respondeu Sancho - e não para os que têm na alma quatro dedos de enxúndia de cristão-velho, como eu tenho; nada, eu cá não sou desagradecido.

- Nosso Senhor dirá quando o governo há-de vir - tornou D. Quixote - que já me parece que o trago diante dos olhos.

Dito isto, rogou ao bacharel que, se era poeta, lhe fizesse mercê de lhe compor uns versos que tratassem da despedida que tencionava fazer à sua dama Dulcineia del Toboso, e que reparasse que no princípio de cada verso havia de pôr uma letra do seu nome, de modo que, no fim dos versos, juntando-se as primeiras letras, se lesse Dulcineia del Toboso.

O bacharel respondeu que, ainda que não era dos famosos poetas que havia em Espanha, que diziam que eram só três e meio, não deixaria de compor os tais metros, apesar de não serem fáceis, porque as letras que formavam o nome eram dezassete, e se fizesse quatro quadras sobrava uma letra e se fossem quatro redondilhas em cinco versos, faltavam três; contudo isso, procuraria sumir uma letra o melhor que pudesse, de modo que nas quatro quadras castelhanas se incluísse o nome de Dulcineia del Toboso.

- Assim há-de ser em todo o caso - disse D. Quixote - que, se o nome não for patente e manifesto, não é mulher que acredite que para ela se fizessem os versos.

Nisto ficaram, e em que a partida seria dali a oito dias. Pediu D. Quixote ao bacharel que a conservasse em segredo, especialmente para o cura, para mestre Nicolau, para sua sobrinha e para a ama, a fim de que não estorvassem a sua honrada e valorosa determinação. Carrasco tudo prometeu, e com isto se despediu, pedindo a D. Quixote que lhe desse conta, sempre que lhe fosse possível, de tudo quanto lhe sucedesse, bom ou mau.

E assim se despediram, e Sancho foi pôr em ordem tudo o que era necessário para a sua jornada.

 

DA DISCRETA E GRACIOSA PRÁTICA QUE HOUVE ENTRE SANCHO PANÇA E SUA MULHER TERESA PANÇA, E OUTROS SUCESSOS DIGNOS DE FELIZ RECORDAÇÃO

(Chegando o tradutor desta história ao quinto capítulo, diz que o tem por apócrifo, porque nele fala Sancho Pança com um estilo diverso do que se podia esperar do seu curto engenho, e profere coisas tão subtis, que não julga possível que ele as soubesse; mas que não deixou de traduzi-lo, para cumprir o que devia ao seu ofício, e assim prosseguiu, dizendo:

Chegou Sancho a sua casa, com tanto júbilo e regozijo, que sua mulher conheceu-lhe a alegria a tiro de besta, tanto que a obrigou a perguntar-lhe:

- Que tendes, Sancho amigo, que tão alegre vindes? Ao que ele respondeu:

- Mulher minha, se Deus quisesse bem folgaria eu de não estar tão contente como pareço.

- Não percebo, homem de Deus - redarguiu ela -, e não sei o que quereis dizer com isso. Quem há que receba gosto de o não ter?

- Ouve, Teresa - respondeu Sancho -, estou alegre, porque resolvi tornar ao serviço de meu amo D. Quixote, que pela

terceira vez vai sair à busca de aventuras. Eu volto a sair com ele, porque assim o quer a minha necessidade, com a esperança de ver se encontro outros cem escudos, como os que já gastei; e ao mesmo tempo entristece-me ter de me apartar de ti e de meus filhos. Se Deus quisesse dar-me de comer, a pé e enxuto, e em minha casa, sem nadar comigo por bosques e encruzilhadas, o que podia perfeitamente fazer com pouquíssimo custo, pois Lhe bastava querê-lo, claro está que a minha alegria seria mais firme e sã, que a que eu tenho está mesclada com a tristeza de te deixar; foi por isso que eu disse o que tu não entendeste.

- Olha, Sancho - observou Teresa -, depois que te fizeste perna de cavaleiro andante, falas de um modo tão atrapalhado, que não há quem te perceba.

- Basta que Deus me entenda, mulher - respondeu Sancho -, que Ele é que é o entendedor de tudo, e fiquemos por aqui, e olha que é necessário que tenhas conta por estes três dias, no ruço, de modo que esteja pronto a pegar em armas. Dobra-lhe a ração, arranja-lhe a albarda, e o resto do aparelho, porque nós não vamos a bodas, mas a dar volta ao mundo, e a ter dares e tomares com gigantes, endriagos e outras aventesmas, e a ouvir silvos, rugidos, e bramidos e o diabo a quatro, e ainda tudo isto seria pão com mel, se não tivéssemos que entender com arrieiros e mouros encantados.

- O que eu creio, marido - replicou Teresa -, é que os escudeiros andantes não comem debalde o pão, e assim cá ficarei, rogando a Deus Nosso Senhor que depressa te livre de tanta má ventura.

- Eu te digo, mulher - respondeu Sancho -, que, se não pensasse ver-me em pouco tempo governador de uma ilha, cairia aqui morto.

- Isso não, marido - disse Teresa -, viva a galinha com a sua pevide; vive tu e leve o Diabo quantos governos houver por esse mundo; sem governo saíste do ventre de tua mãe, sem governo viveste até agora, e sem governo irás ou te levarão à sepultura, quando Deus for servido; vivem muitos por esse mundo sem governo, e nem por isso deixam de viver e de ser contados no número das gentes. Não há melhor mostarda do que a fome, e, como esta não falta aos pobres, sempre comem com gosto. Mas olha, Sancho, se porventura te vires com algum governo, não te esqueças de mim nem dos teus filhos. Lembra-te que o Sanchito já tem quinze anos feitos, e precisa de ir à escola, visto que o Tio Abade quer fazer dele homem da igreja. Vê também que tua filha Maria Sancha não desgostará que a casemos, porque vou tendo uns barruntos de que ela deseja tanto ter um marido, como tu desejas ter um governo; e, enfim, melhor parece filha malcasada que bem amancebada.

- Por minha fé - respondeu Sancho - que, se Deus me chega a dar algum governo, hei-de casar Maria Sancha tal altamente, que todos lhe hão-de dar senhoria.

- Isso não, Sancho - respondeu Teresa -, casa-a com um seu igual, que se a tiras dos socos para os chapins, da saia parda de burel para as sedas e veludos, do tratamento de Maricas e do tu para o de dona tal e senhoria, não sabe a cachopa como se há-de haver, e a cada passo há-de cair em mil erros, descobrindo o fio do pano forte e grosseiro.

- Cala-te, tola - disse Sancho -, basta que o use dois ou três anos, que depois lhe virão como de molde o senhorio e a gravidade; e, se assim não for, que importa? Seja ela senhora e venha o que vier.

- Contenta-te com o teu estado, Sancho - respondeu Teresa -, e não te queiras levantar a outros maiores, e lembra-te do rifão que diz: lê com lê e cré com cré. Olha que seria bonito casar a nossa Maria com um condaço ou com um cavalheirote, que, assim que lhe parecesse, a pusesse com dono, chamando-

-lhe vilã, filha do estorroador dos campos, e da depenadora das rocas; tal não há-de acontecer, enquanto eu tiver o olho aberto, que não foi para isso que eu criei a minha filha; traz tu dinheiro, Sancho, e deixa a meu cargo o casá-la, que aí está Lopo Tocho, filho de João Tocho, moço enxuto de carnes e são, e muito conhecido nosso, e que sei perfeitamente que não vê com maus olhos a rapariga; e com este, que é nosso igual, estará bem casada, e sempre a teremos aqui debaixo das nossas vistas, e seremos todos uns, pais e filhos, netos e genros, e andará entre nós a paz e a bênção de Deus, o que vale mais do que ires tu casar-

-ma aí nessas cortes e palácios grandes, onde nem a entendem, nem ela se entende.

- Vem cá, besta e mulher de Barrabás - replicou Sancho , porque queres tu agora, sem mais nem mais, estorvar-me que eu case a minha filha com quem me dê netos que me tratem por senhoria? Olha, Teresa, sempre ouvi dizer aos meus maiores, que quem não sabe gozar da ventura, quando a tem, não se deve queixar se ela lhe fugir; e não seria bem, agora que ela está chamando à nossa porta, que lha fechemos na cara;

deixemo-nos ir com este vento favorável que nos sopra.

(Por este modo de falar, e pelo que mais abaixo disse Sancho, alegou o tradutor que tinha por apócrifo este capítulo.)

- Não te parece, alimária - continuou Sancho -, que será bom dar comigo nalgum governo proveitoso, que nos tire o pé do lodo, e casar a Maria Sancha com quem eu quiser, e verás como te chamam a ti D. Teresa Pança, e te sentas na igreja em alcatifas, a despeito de todas as dalgas da povoação? Pois a gente há-de estar sempre sem crescer nem minguar, como figura de paramento? E nisto não mais falemos, que Sanchita será condessa, por mais que me digas.

- Vê o que fazes, marido! - respondeu Teresa. - Temo que esse condado de minha filha venha a ser a sua perdição: fá-

-la lá duquesa ou princesa, mas sem vontade nem consentimento meu. Sempre fui amiga da igualdade, mano, e não posso ver bazófias; Teresa me chamaram na pia do baptismo, nome escorreito e curto, sem mais arrebiques. Carcajo se chamou meu pai, e a mim por ser tua mulher me chamam Teresa Pança, que por boa razão me haviam de chamar Teresa Carcajo: mas lá vão reis aonde querem leis, e com este nome me contento, sem que me ponham um dom por cima, que pese tanto que eu não possa com ele, e não quero dar que falar aos que me virem andar vestida à moda de condessa ou governadora, que logo dirão: olhem como vai inchada a porqueira; ontem não fazia senão fiar a sua estopa, e, quando ia à missa, punha a saia por cima da cabeça, à moda de mantéu, e já hoje arrasta sedas, e anda tão emproada como se a não conhecêssemos. Se Deus me guardar os meus sete ou os meus cinco sentidos, ou quantos são os que eu tenho, espero não dar ocasião de me ver em semelhante aperto;

tu, mano, vai-te ser governo ou ilho, e emproa-te à vontade, que nem eu nem minha filha nos arredamos um passo da nossa aldeia: mulher honrada em casa de perna quebrada; donzela honesta ter que fazer é a sua festa; ide-vos com o vosso D. Quixote às vossas aventuras, e deixai-nos a nós com as nossas más venturas, que Deus as melhorará se formos boas; que eu não sei quem lhe deu a ele o dom, que o não tiveram seus pais nem seus avós.

- Agora digo - redarguiu Sancho - que tens algum demónio metido no corpo. Valha-te Deus, mulher, que coisas enfiaste umas nas outras, sem pés nem cabeça! Que tem que ver o Carcajo, os veludos, os rifões, e a proa com o que eu digo? Vem cá, mentecapta e ignorante (que assim te posso chamar, visto que não entendes as minhas razões, e vais fugindo da fortuna), se eu mostrasse desejo de que a minha filha se deitasse de uma torre abaixo, ou fosse por esses mundos fora, como quis ir a infanta D. Urraca, tinhas razão em não estar de acordo; mas, se do pé para a mão, e enquanto o Diabo esfrega um olho, lhe ponho às costas um dom e uma senhoria, se a tiro da choupana e a ponho debaixo de um dossel, e num estrado, com mais almofadas de veludo do que de mouros tiveram na sua linhagem os Aimóadas de Marrocos, porque não hás-de consentir e querer o que eu quero?

- Sabes porquê, marido? - respondeu Teresa. - Por causa do rifão que diz: quem te cobre que te descubra; para a pobre todos olham de corrida, mas nos ricos demora-se a vista, e, se o rico foi pobre em tempos, aí vem o murmurar e o teimar dos maldizentes, que os há por essas ruas aos montes, como enxames de abelhas.

- Olha, Teresa - respondeu Sancho -, e escuta o que te digo; talvez nunca o tivesses ouvido em todos os dias da tua vida; não é meu, mas tudo são sentenças do padre, que pregou a Quaresma passada neste povo, o qual, se bem me lembro, disse que todas as coisas presentes, que os olhos estão mirando, assistem na nossa memória muito melhor, e com mais veemência do que as coisas passadas.

(Todas estas razões que Sancho aqui vai apresentando, também são alegadas pelo tradutor para considerar apócrifo este capítulo, porque excedem a capacidade de Sancho, que prosseguiu, dizendo):

- De onde nasce que, quando vemos alguma pessoa, bem ajaezada, ricamente vestida, e com grande pompa de criados, parece que à viva força nos move e convida a que lhe tenhamos respeito, ainda que a memória nesse momento nos lembre alguma baixeza em que a tivéssemos visto, e essa ignomínia, ou venha da indigência ou da linhagem, como já passou, não existe, e o que existe é o que vemos presente; e se este que a fortuna tirou da pobreza (que por estas mesmas razões assim o disse o padre), para o levantar à altura da sua prosperidade, for bem-criado, liberal, e cortês com todos, e não se quiser igualar com aqueles que por antiguidades são nobres, tem por certo, Teresa, que não haverá quem se recorde do que foi, mas reverenciará o que é, a não serem os invejosos, contra os quais não está segura nenhuma próspera fortuna.

- Não vos entendo, marido - replicou Teresa -; fazei o que quiserdes, e não me quebreis mais a cabeça com as vossas arengas e retóricas, e se revolvestes fazer o que dissestes...

- Resolvestes é que tu queres dizer, e não revolvestes.

- Não entreis a disputar comigo, marido - respondeu Teresa -; eu falo como Deus é servido, e não me meto lá em debuxos; e digo que, se embirrais em ter governo, levai então convosco o vosso filho Sancho, para já lhe irdes ensinando a ser governador, porque é bom que os filhos herdem e aprendam os ofícios dos pais.

- Em tendo governo - disse Sancho - eu o mandarei buscar pela posta, e enviar-te-ei dinheiros, que me não faltarão, porque nunca falta quem os empreste aos governadores, quando eles os não têm, e veste-o de forma que disfarce o que é e pareça o que há-de ser.

- Manda tu dinheiro - disse Teresa - que eu to porei como um palmito.

- E então ficamos de acordo - tornou Sancho - que a nossa filha há-de ser condessa.

- No dia em que eu a vir condessa - acudiu Teresa - farei de conta que a enterro; mas outra vez te digo que faças dela o que tiveres na vontade, que com esta obrigação nasceram as mulheres de ser obedientes a seus maridos, sejam eles como forem.

E nisto começou a chorar tão deveras, como se já visse morta e enterrada a Sanchita. Sancho consolou-a, dizendo-lhe que, ainda que tivesse de a fazer condessa, a faria o mais tarde possível. Assim acabou a prática, e Sancho foi ter com D. Quixote, para darem ordem à sua partida.

 

DO QUE PASSOU D. QUIXOTE COM A SUA SOBRINHA E A SUA AMA, CAPÍTULO DOS MAIS IMPORTANTES DESTA HISTÓRIA TODA

Enquanto Sancho Pança e sua mulher Teresa Pança estiveram na prática impertinente que referimos, não estavam ociosas a sobrinha e a ama, que por mil sinais iam coligindo que D. Quixote queria desgarrar-se pela terceira vez, e voltar ao exercício da sua, para elas mal-andante, cavalaria. Procuravam, por todos os modos possíveis, apartá-lo de tão mau pensamento, mas tudo era pregar no deserto e malhar em ferro frio; com tudo isso, entre outras muitas razões que com ele tiveram, disse-lhe a ama:

- Na verdade, meu Senhor, se Vossa Mercê não fica de quedo em sua casa, e não se deixa de andar por montes e vales como alma penada, procurando essas que diz que se chamam aventuras, e a que eu antes chamarei desgraças, tenho de me queixar, voz em grita, a Deus e a el-rei, que dê remédio a isto.

E D. Quixote respondeu-lhe:

- Ama, o que Deus responderá às tuas queixas, não sei; e ainda menos o que dirá Sua Majestade; e sei apenas, que, se eu fosse rei, me dispensaria de responder a tanta infinidade de memoriais impertinentes, como os que todos os dias lhe dão;

que um dos maiores trabalhos que os reis têm entre outros muitos, é o de estarem obrigados a escutar a todos, e a todos responder; e assim não desejaria eu que coisas minhas o molestassem.

A isto respondeu a ama:

- Diga-me, Senhor: na corte de Sua Majestade no há cavaleiros?

- Decerto que há - respondeu D. Quixote -, e muitos, e é de razão que os haja, para adorno da grandeza dos príncipes e ostentação da Majestade Real.

- Porque não há-de ser Vossa Mercê - replicou ela - um dos que a pé quedo servem ao seu rei e senhor, estando na corte?

- Olha, amiga minha - respondeu D. Quixote -, nem todos os cavaleiros podem ser cortesãos, nem todos os cortesãos podem nem devem ser cavaleiros: de tudo tem de haver no mundo; cavaleiros todos somos, mas vai muita diferença de uns a outros; porque os cortesãos, sem saírem dos seus aposentos, nem dos umbrais da corte, passeiam por todo o mundo, olhando para um mapa, sem lhes custar mealha, nem padecer calor, nem frio, nem fome, nem sede; mas nós outros, os cavaleiros andantes verdadeiros, ao sol, ao frio, ao ar, às inclemências do Céu, de noite e de dia, a pé e a cavalo, lustramos toda a Terra;

e não conhecemos só os inimigos pintados, conhecemo-los no seu próprio ser, e a todo o transe e em todas as ocasiões os acometemos, sem olhar a ninharias nem a leis de desafios, se tem ou não tem mais curta a lança ou a espada, se traz consigo relíquias ou algum engano encoberto, como outras cerimónias deste jaez, que se usam nos desafios particulares, que tu não sabes e eu sei; e o bom cavaleiro andante, ainda que veja dez gigantes, que com as cabeças não só toquem nas nuvens, mas passem para cima delas, e que a cada um lhe sirvam de pernas duas enormes torres, e que os braços semelham mastros de grandes e alterosos navios, com cada olho como uma grande roda de moinho e mais ardente que um forno de vidraça, não tem por isso que se espantar; antes com gentil porte e intrépido coração os deve acometer e investir; e, se for possível, vencê-los e desbaratá-los num grave momento, ainda que venham armados de umas conchas que dizem que são mais duras que os diamantes, e em vez de espadas tragam cutelos de aço damasquino, ou cacetes ferrados com ponteiras de aço também, como eu vi mais de duas vezes. Tudo isto disse, ama, para que vejas a diferença que vai entre uns e outros cavaleiros; e seria razão que não houvesse príncipe que não estimasse em mais esta segunda, ou para melhor dizer, primeira espécie de cavaleiros, que houve tal, entre eles, que foi a salvação não só de um reino mas de muitos.

- Ah! Senhor meu - acudiu a sobrinha. - Repare Vossa Mercê que tudo isso que diz dos cavaleiros andantes é fábula e mentira, e as suas histórias, a não serem queimadas, mereciam que se lhe pusesse a cada uma um sambenito, ou algum outro sinal, para que fosse conhecida por infame e destruidora dos bons costumes.

- Pelo Deus que me sustenta - disse D. Quixote - se não fosses minha sobrinha direita, como filha de minha própria irmã, havia de fazer em ti tal castigo, pela blasfémia que disseste, que soaria em todo o mundo. Pois quê! É possível que uma rapariga, que apenas sabe mexer uns bilros, se atreva a pôr a boca nas histórias dos cavaleiros andantes, e a censurá-las? O que diria o Sr. Amadis, se tal ouvisse? Com certeza te perdoaria, porque foi o mais humilde e cortês cavaleiro do seu tempo, e sobretudo grande amparo de donzelas; mas poderia outro ouvir-te que não te tratasse com a mesma brandura, porque nem todos são corteses e bem-assombrados; alguns há descomedidos e refeces; nem todos os que se chamam cavaleiros o são deveras, porque os há de ouro e de pechisbeque; muitos que parecem verdadeiros, e não podem ir seguros ao toque da pedra da verdade: há homens de baixa condição que estouram por parecer cavaleiros, há outros nobilíssimos que morrem por parecer gente baixa; àqueles levanta-os, ou a ambição ou a virtude; a estes rebaixa-os, ou a frouxidão ou o vício; e é mister aproveitarmo-nos do conhecimento discreto para distinguir estas duas espécies de cavaleiros, tão parecidos nos nomes, e tão distantes nas acções.

- Valha-me Deus! - disse a sobrinha. - Saber Vossa Mercê tanto que, se fosse mister, podia numa urgência subir ao púlpito ou ir a pregar por essas ruas, e com tudo isso cair numa insensatez tão óbvia, que dê a entender que é valente, sendo velho, que tem forças, estando enfermo, e que endireita tortos, estando derreado pela idade, e sobretudo que é cavaleiro, não o sendo, porque, ainda que o possam ser os fidalgos, nunca o são os pobres!

- Tens muita razão, sobrinha - respondeu D. Quixote -, e a respeito de linhagens, poderia eu dizer-te coisas que te fariam espanto; mas, para não misturar o divino com o profano, não as digo. Olhai, queridas, a quatro espécies de linhagens (atendam bem) se podem reduzir todas as que há no mundo, e vem a ser: umas, que tiveram humildes princípios, e se foram estendendo e ampliando até chegar à suma grandeza; outras, que tiveram princípios grandes, e os foram conservando, e conservam e mantêm no mesmo pé em que começaram; outras, apesar de haverem tido grandes princípios, acabaram em ponta, como uma pirâmide, que, em comparação da base, nada é; outras há, e são estas as mais numerosas, que nem tiveram bom princípio, nem meio razoável, e terão dessa forma o fim sem brilho, como a linhagem de gente plebeia e ordinária. Das primeiras, que tiveram princípios humildes e subiram à grandeza que conservam agora, sirva de exemplo a casa otomana, que de um humilde pastor, que lhe deu origem, está no auge em que a vemos; da segunda, que teve princípio em grandeza e a conserva sem a aumentar, dou para exemplo muitos príncipes, que o são por herança, e a conservam, contendo-se pacificamente nos limites dos seus estados; e dos que principiaram grandes e acabaram em ponta, há inúmeros exemplos, porque todos os Faraós e Ptolemeus do Egipto, os Césares de Roma, com toda a caterva (se assim se lhe pode chamar) de infinitos príncipes, monarcas, senhores, medos, assírios, gregos e bárbaros, todas estas linhagens e todos estes senhores se aniquilaram, porque não será possível encontrar agora nenhum dos seus descendentes, e, se os encontrássemos, seria em baixo e humilde estado. Da linhagem plebeia não tenho que dizer, senão que serve unicamente para acrescentar o número dos que vivem, sem que mereçam outra fama nem outro elogio as suas grandezas. De tudo isto quero que infirais, minhas tolas, que há muita confusão entre as linhagens, e que só parecem grandes e ilustres as que o mostram ser na virtude, na riqueza e liberalidade dos seus representantes. Disse virtudes, riquezas e liberalidades, porque o grande que for vicioso será um grande vicioso, e o opulento não liberal será um avarento mendigo, que ao possuidor das riquezas não o faz feliz o possuí-las, mas sim despendê-las, e não o gastá-las como quiser, mas saber empregá-las bem. Ao cavaleiro pobre não lhe fica outro caminho para mostrar que é cavaleiro, senão o da virtude, sendo afável, cortês, comedido e serviçal, não soberbo, nem murmurador, nem arrogante, e, sobretudo, caritativo, que com dois maravedis que ele dê, com ânimo alegre, se mostrará tão liberal, como o que dá esmola com toque de sinos, e não haverá quem o veja adornado das referidas virtudes, que, ainda que o não conheça, deixe de o considerar homem de boa casta, e sempre o louvor foi prémio da virtude. Há dois caminhos, por onde os homens podem chegar a ser ricos e considerados: um é o das letras, o outro o das armas. Eu, pela inclinação que tenho para as armas, vejo que nasci debaixo do influxo do planeta Marte, de forma que me é forçoso seguir por esse caminho; por ele hei-de ir, mau grado a toda a gente, e debalde vos cansareis em persuadir-me a que não queira o que os Céus querem, o que a fortuna ordena, o que pede a razão, e, sobretudo, o que a minha vontade deseja;

pois sabendo, como sei, os inúmeros trabalhos que tem a cavalaria andante, sei também os bens infinitos que com ela se alcançam, e sei que a senda da virtude é muito estreita, e o caminho do vício largo e espaçoso, que os seus fins e paradeiros são diferentes, porque o do vício, dilatado e espaçoso, acaba na morte, e o da virtude, apertado e íngreme, acaba em vida, e não em vida que tenha termo, mas na vida eterna, e sei como disse o nosso grande poeta castelhano:

Conduz-nos esta aspérrima vereda da imortalidade ao alto assento, aonde não chega quem dali se arreda.

- Ai! desditosa de mim - disse a sobrinha - que também meu tio é poeta; tudo sabe e tudo alcança, e aposto que, se imaginar ser alvenel, fabricará uma casa como ninguém.

- Juro-te, sobrinha - respondeu D. Quixote -, que se estes pensamentos cavalheirescos me não arrebatassem os sentidos todos, não haveria coisa que eu não fizesse, nem curiosidade que me não saísse das mãos.

A este tempo bateram à porta, e, perguntando-se quem era, respondeu Sancho Pança; apenas a ama o conheceu, tratou de se ir embora, para o não ver, tal era o ódio que lhe votara.

Foi abrir a sobrinha, saiu a recebê-lo de braços abertos seu amo D. Quixote, e encerraram-se ambos no seu aposento, onde tiveram outro colóquio, não menos interessante que o anterior.

 

DO QUE PASSOU D. QUIXOTE COM O SEU ESCUDEIRO, E OUTROS SUCESSOS FAMOSÍSSIMOS

Apenas viu a ama que Sancho Pança se encerrava com D. Quixote, logo imaginou o que eles iriam tratar; e, percebendo que daquela prática resultaria terceira saída, com grande mágoa e aflição foi procurar o bacharel Sansão Carrasco, parecendo-lhe que, sendo bem-falante, o novo amigo de seu amo lhe podia persuadir que deixasse tão desvairado propósito. Achou-o a passear no pátio da sua casa, e, assim que o viu, caiu-lhe aos pés, toda suada e aflita.

Vendo-a Carrasco to sobressaltada e queixosa, disse-lhe:

- Que é isso Senhora Ama? Que lhe aconteceu, que parece que se lha arranca a alma?

- Não é nada, Sr. Sansão, é que meu amo vai-se, vai-se sem dúvida alguma.

- Vai-se por onde? - perguntou Sansão. - Sangraram-no?

- Vai-se pela porta da sua loucura; o que digo Senhor Bacharel da minha alma, é que quer sair outra vez, e com esta será

Já a terceira a procurar por esse mundo o que ele chama aventuras, que não sei como lhes pode dar semelhante nome. Da primeira vez trouxeram-no para casa atravessado em cima de uma carreta, moído de pauladas; da segunda veio num carro de bois, metido dentro de uma gaiola, onde ele dizia que estava encantado; e o triste do homem vinha de tal maneira, que no o conheceria a mãe que o deu à luz - fraco, amarelo, com os olhos encovados nas profundas da cara; e para o fazer tornar a ser o que era, gastei mais de seiscentos ovos, como sabem Deus e todo o mundo, e as minhas galinhas, que me não deixarão mentir.

- Isso creio eu - respondeu o bacharel -, que elas são tão boas, tão gordas e tão bem criadas, que não diriam uma coisa por outra, nem que rebentassem. Então, Senhora Ama, não há mais nada de novo, nem sucedeu outra coisa ao Sr. D. Quixote, senão o que se teme que ele queira fazer?

- Mais nada - redarguiu ela.

- Pois não se aflija - tornou o bacharel -; vá para casa, arranje-me para o almoço alguma coisa quente, e de caminho reze a oração de Santa Apolónia, se a sabe, que eu não tardo, e verá então maravilhas. '

- Coitada de mim! - retrucou a ama. - Diz-me Vossa Mercê que reze a oração de Santa Apolónia! Isso era bom se meu amo padecesse da espinhela, mas do que ele padece é dos cascos.

- Sei o que digo Senhora Ama; vá e não comece com disputas, bem sabe que sou bacharel por Salamanca, que não há maior bacharelice.

E com isto se foi a ama, e o bacharel tratou logo de ir combinar com o cura o que a seu tempo se dirá.

Entretanto, passavam-se entre D. Quixote e Sancho Pança os arrazoados que a história conta com muita pontualidade e verdadeira relação.

- Afinal reluzi minha mulher a que me deixe ir com Vossa Mercê, aonde me quiser levar

- Diz redui e não relui, Sancho - observou D. Quixote.

- Já uma ou duas vezes - respondeu Sancho -, se bem me lembro, supliquei a Vossa Mercê que me não emende os vocábulos, logo que entenda o que eu quero dizer, e, em não os

entendendo, diga assim: Sancho ou diabo, não te percebo. E, se eu me não explicar, então emende, que eu sou muito fóssil.

- Não te percebo, Sancho - disse logo D. Quixote -, não sei o que quer dizer: sou muito fóssil.

- Muito fóssil quer dizer sou muita coisa.

- Agora ainda te entendo menos - tornou D. Quixote.

- Pois se não me entende eu é que já não sei como hei-de dizer; não estou para mais, e Deus seja comigo.

- Ai! ai! agora é que eu caio no que tu querias explicar - acudiu D. Quixote -; que eras muito dócil.

- Aposto - tornou Sancho - que logo desde o princípio me entendeu, mas quis atrapalhar-me, para me ouvir dizer duzentos disparates.

- É possível - redarguiu D. Quixote -, mas vamos ao caso:

o que disse Teresa?

- Teresa disse que ponha Vossa Mercê o preto no branco, que joguemos com cartas na mesa, que pelo falar é que a gente se entende, que mais vale um toma que dois te darei; e eu acrescento que o conselho da mulher é pouco, e quem o toma é louco.

- Digo o mesmo também - respondeu D. Quixote -, mas continua, Sancho, que falas hoje como um livro.

- O caso vem a ser o seguinte - tornou Sancho. - Como Vossa Mercê sabe, todos havemos de morrer; nunca se pode contar com o dia de amanhã; tão depressa morre o cordeiro como o carneiro; a gente neste mundo está nas mãos de Deus; a morte é surda, e vem-nos bater à porta quando menos a esperamos, e não a detêm nem rogos nem súplicas, nem mitras e ceptros, como é fama, e como nos dizem por esses púlpitos.

- Tudo isso é a pura verdade - acudiu D. Quixote -, mas o que eu não sei é aonde queres chegar.

- Quero chegar ao seguinte: que Vossa Mercê me arbitre um salário certo, dizendo o que me há-de dar por cada mês que o servir, e mandando-mo pagar pela sua fazenda, e que não hei-de estar à mercê de que ele venha tarde ou nunca; ajude-me Deus com o que é meu. Enfim, quero saber o que ganho, pouco ou muito que seja, que grão a grão enche a galinha o papo, muitos poucos fazem muitos, e quem ganha alguma coisa não

perde coisa alguma. É verdade que se Vossa Mercê (o que eu já não creio, nem espero) me viesse a dar a ilha que me prometeu, nem sou tão ingrato, nem levo as coisas tanto à risca, que não queira que se avaliem as rendas da tal ilha, para se fazer um gateio no meu salário.

- Sancho amigo, não é gateio, é rateio.

- Vossa Mercê entendeu-me, e é o que basta.

- Entendi, sim - respondeu D. Quixote -, e de tal forma, que penetrei no íntimo dos teus pensamentos, e percebi o alvo a que miram as inúmeras setas dos teus rifões. Olha, Sancho, eu não teria dúvida em te marcar salário, se houvesse encontrado nalgumas histórias de cavaleiros andantes exemplo que me descobrisse e mostrasse, por qualquer pequeno resquício, o que era que costumavam ganhar, por mês ou por ano, os escudeiros; mas li todas ou a maior parte das suas histórias, e não me recordo de ter visto que qualquer cavaleiro andante desse ao seu escudeiro salário certo; sei apenas que todos serviam à mercê, e que, quando menos pensavam, se correra a seus senhores próspera fortuna, achavam-se premiados com alguma ilha ou outra coisa equivalente, e pelo menos ficavam com título e senhoria; se com estas esperanças e adiantamentos, quiseres, Sancho, tornar a servir-me, seja em muito boa hora, que lá tirar eu dos seus termos e dos seus eixos a antiga usança da cavalaria andante, nunca o farei; assim, pois, meu Sancho, volta para casa, e declara à tua Teresa a minha intenção, e, se ela quiser, e tu quiseres também, bene quidem, e se não quiserem, amigos como dantes, que se no pombal houver milho, pombas não faltarão, e repara, filho, que mais vale esperança boa que pensão ruim, e boa queixa que mau pago. Falo deste modo, Sancho, para te dar a entender que também eu sei, como tu, despejar uma saraivada de rifões. Finalmente, digo, que se não queres vir à mercê, e correr a mesma sorte Deus seja contigo e te faça um santo, que me não faltarão escudeiros mais obedientes, mais solícitos, e menos faladores e empachados do que tu.

Quando Sancho ouviu estas firmes palavras, anuvearam-se-lhe os olhos, e enegreceu-se-lhe o coração, porque supunha que seu amo não iria com ele, nem a troco de todos os haveres deste mundo, e, estando assim suspenso e pensativo, entrara Sansão Carrasco e a ama e a sobrinha, desejosas de ouvir com que razões persuadiria ele a D. Quixote que não tornasse a procurar aventuras.

Chegou Sansão, famoso magano, e, abraçando D. Quixote como da primeira vez, disse-lhe:

- Ó flor da cavalaria andante! Ó luz resplandecente das armas! Ó honra e espelho da nação espanhola! Praza a Deus Omnipotente, que a pessoa ou pessoas que puserem impedimento à tua terceira saída, não a encontrem no labirinto dos seus desejos, nem nunca se lhes cumpra o que mal desejarem.

E, voltando-se para a ama, disse-lhe:

- Bem pode a Senhora Ama deixar de rezar a oração de Santa Apolónia, que eu sei que é determinação rigorosa das esferas, que o Sr. D. Quixote volte a executar os seus altos e novos pensamentos; e eu muito encarregaria a minha consciência, se não intimasse e persuadisse a este cavaleiro que não tenha por mais tempo encolhida e presa a força do seu valoroso braço, e a bondade do seu ânimo valentíssimo, porque defrauda com a sua tardança o amparo dos órfãos, a honra das donzelas, o favor das viúvas, o arrimo das casadas, e outras coisas deste jaez, que tocam e andam anexas à ordem da cavalaria. Meu Sr. D. Quixote, formoso e bravo, ponha-se Vossa Mercê a caminho, mais a sua grandeza, antes hoje que amanhã; e, se alguma coisa faltar para a execução da sua saída, aqui estou eu para a suprir com a minha pessoa e fazenda; e, se for necessário servir a sua magnificência de escudeiro, tê-lo-ei por felicíssima ventura.

- Não te disse eu - interrompeu D. Quixote, voltando-se para Sancho - que haviam de sobrar-me escudeiros? Vê quem se oferece para o ser, o inaudito bacharel Sansão Carrasco, o gárrulo regozijador dos pátios das escolas de Salamanca, sadio, ágil, calado e sofredor do calor, do frio, da fome e da sede, com todas as partes que se requerem para se ser escudeiro de um cavaleiro andante; mas não permita o Céu que em proveito meu decapite e quebre a coluna das letras e o vaso das ciências, e corte a eminente palma das boas artes liberais: fique-se o novo Sansão na sua pátria, e, honrando-a, honre juntamente as cãs de seus velhos pais, que eu com qualquer escudeiro ficarei satisfeito, e já que Sancho se não digna vir comigo...

- Digno, sim - respondeu Sancho, enternecido e com os olhos cheios de lágrimas. E prosseguiu:

- Não se dirá de mim: comida feita, companhia desfeita; que eu não descendo de gente desagradecida, e sabe todo o mundo, e especialmente a minha terra, quem foram os Panças meus ascendentes, tanto mais que tenho conhecido, por boas palavras, o desejo que Vossa Mercê tem de me agraciar, e se estive com contas de tantos e quantos a respeito do meu salário, foi por comprazer com minha mulher, que, em se lhe metendo na cabeça persuadir uma coisa, não há cunha que tanto aperte uma tranca, como ela aperta para que se faça o que deseja; mas, efectivamente, um homem é um homem, e um gato é um bicho, e se eu sou homem em toda a parte, hei-de-o ser também em minha casa, pese a quem pesar, e assim não há mais que fazer, senão ordenar Vossa Mercê o seu testamento com o seu codicilo, de forma que não possa ser evolcado, e ponhamo-nos a caminho, para que não padeça a alma do Sr. Sansão, que diz que a sua consciência lhe lita persuadir a Vossa Mercê que saia pela terceira vez por esse mundo, e eu de povo me ofereço a servi-lo fiel e lealmente, tão bem e melhor do que quantos escudeiros serviram a cavaleiros andantes, em tempos passados e presentes.

Ficou admirado o bacharel de ouvir os termos e modo de falar de Sancho Pança, pois, apesar de ter lido a primeira história de seu amo, nunca julgou que fossem tão graciosos como ali se pintam; mas, ouvindo-lhe falar agora em testamento e codicilo que não possa ser revolcado, em vez de revogado, acreditou em tudo o que lera, e considerou-o um dos mais solenes mentecaptos do nosso século, e disse de si para si que dois doidos como amo e criado nunca se tinham visto no mundo.

Finalmente, D. Quixote e Sancho abraçaram-se, e ficaram amigos; e com parecer e beneplácito de Carrasco, que estava sendo o seu oráculo, ordenou-se que partissem daí a três dias, empregando esse tempo em preparar o necessário para a sua viagem, e em procurar uma celada de encaixe, que, por todos os modos, disse D. Quixote que havia de levar.

Ofereceu-lha Sansão, contando que lha não negaria um amigo seu que tinha uma, ainda que mais escura pela ferrugem do que limpa e clara pelo aço luzente.

As maldições, que a ama e a sobrinha arrojaram ao bacharel, foram sem conto; arrepelaram os cabelos, arranharam a cara, e, à moda das carpideiras que então se usavam, deploravam a partida, como se fosse a morte de seu amo e tio.

O desígnio que teve Sansão, persuadindo-lhe que saísse outra vez, foi o que a história adiante refere, tudo por conselho do cura e do barbeiro, com quem anteriormente se combinara.

Enfim, naqueles três dias, D. Quixote e Sancho muniram-se de tudo o que lhes conveio, e, tendo Sancho aplacado sua mulher, e D. Quixote sua sobrinha e sua ama, ao anoitecer, sem que ninguém os visse, a não ser o bacharel, que os acompanhou a meia légua do lugar, puseram-se a caminho de Toboso - D. Quixote montado no seu bom Rocinante, e Sancho no seu antigo ruço, com os alforges providos de coisas tocantes à bucólica, e a bolsa de dinheiros que D. Quixote lhe deu para o que necessário fosse.

Abraçou-o Sansão, e suplicou-lhe que lhe comunicasse a boa ou má sorte que tivesse, para se alegrar com uma e entristecer-se com outra, como pediam as leis da boa amizade.

Prometeu-lho D. Quixote; voltou Sansão para a sua terra, e ambos tomaram o caminho da grande cidade de Toboso.

 

ONDE SE CONTA O QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE, INDO VER A SUA DAMA DULCiNEIA del TOBOSO

Bendito seja o bondoso Alá! diz Hamet Benengeli no princípio deste oitavo capítulo; bendito seja Alá! repete três vezes, e diz que dá estas bênçãos por ver já em campanha D. Quixote e Sancho, e que os leitores desta agradável história podem contar que deste ponto em diante começam as façanhas e donaires de D. Quixote e do seu escudeiro: persuade-lhes que esqueçam as passadas cavalarias do engenhoso fidalgo, e ponham os olhos nas que estão para vir, que principiam desde agora no caminho de Toboso, como as outras principiaram nos campos de Montiel; e não é muito o que pede para tanto como o que promete; e assim prossegue, dizendo:

Ficaram sós D. Quixote e Sancho, e, apenas Sansão se apartou, começou a relinchar o Rocinante e a suspirar o ruço, coincidência que, tanto pelo cavaleiro como pelo escudeiro, foi tida por bom sinal, ainda que, se se há-de contar a verdade, mais foram os suspiros e os zurros do ruço, do que os relinchos do rocim, de onde coligiu Sancho que a sua ventura havia de sobrepujar e passar para cima da de seu senhor, fundando-se não sei se na astrologia judiciária que ele sabia, posto que a história o não declare; só lhe ouviram dizer que, quando tropeçava ou caía, desejava não ter saído de casa, porque, do tropeçar ou cair, não se tirava outra coisa senão sapatos rotos ou costelas quebradas; e, apesar de tolo, não andava nisto muito fora da razão.

Disse-lhe D. Quixote:

- Sancho amigo, a noite vai entrando rápida e escura, quando nós precisávamos de chegar de dia ao Toboso, aonde resolvi, antes de começar novas aventuras, ir tomar a bênção e a licença da sem par Dulcineia, com a qual tenho por certo que hei-de acabar felizmente com todos os perigosos lances, porque nada há nesta vida que faça mais valentes os cavaleiros andantes do que o verem-se favorecidos pelas suas damas.

- Assim creio - respondeu Sancho - mas tenho por difícil que Vossa Mercê lhe fale ou a veja, pelo menos em sítio onde possa receber a sua bênção, a não ser que ela lha deite pelas frestas do curral, onde a vi pela primeira vez, quando lhe levei a carta que dava a notícia das sandices e loucuras que Vossa Mercê ficava fazendo na serra Morena.

- Pareceu-te, Sancho, que foi pela fresta de um curral que viste aquela nunca assaz louvada gentileza e formosura? Havia de ser varanda ou galeria de rico e régio palácio.

- Pode ser - respondeu Sancho -, a num pareceu-me fresta, se me não falha a memória.

- Veja-a eu, Sancho - tornou D. Quixote -, tanto se me dá que seja na fresta de um curral, como na sacada de um palácio, ou no mirante de um jardim, que todo e qualquer raio do sol da sua beleza, logo que chegue aos meus olhos, alumiará o meu entendimento e fortalecerá o meu coração, de modo que fique único e sem igual na discrição e na valentia.

- Pois na verdade Senhor - redarguiu Sancho -, quando eu vi esse sol da Sra. Dulcineia del Toboso, não estava ele tão claro que pudesse deitar quaisquer raios de luz; naturalmente, como Sua Mercê peneirava o trigo que eu disse, o muito pó que deitava pôs-se como uma nuvem diante do rosto, e lho escureceu.

- Porque teimas tu, Sancho - insistiu D. Quixote -, em dizer e pensar que Dulcineia, muito senhora minha, estava peneirando trigo, mister e exercício esse que fica muito desviado de todos os que fazem e devem fazer as pessoas principais, guardadas para outras ocupações e entretenimentos, que a tiro de besta revelam a sua jerarquia? Mal te lembras, Sancho, daqueles versos do nosso poeta, quando nos pinta os lavores que faziam nos seus palácios de cristal as quatro ninfas que saíram de dentro do Tejo dilectíssimo, e se sentaram a lavar no verde prado aquelas ricas telas, que ali o engenhoso poeta nos descreve, que eram todas de ouro, seda e pérolas tecidas e formadas; e assim devia ser o lavor da minha dama, quando a viste, se a inveja que algum mau nigromante deve ter a tudo quanto é meu, não muda as coisas que me hão-de dar gosto em figuras diversas das que elas têm; e, assim, temo que nessa história que dizem que anda impressa das minhas façanhas, se porventura foi seu autor algum sábio meu inimigo, metesse umas coisas por outras, mesclando com uma verdade mil mentiras, divertindo-se a contar outras acções fora do que manda a verdade. Ó inveja, raiz de infinitos males, que não fazes senão carcomer virtudes! Todos os vícios, Sancho, trazem não sei que deleite consigo; mas o da inveja não traz senão desgostos, rancores e raivas.

- É o que eu digo também - respondeu Sancho - e penso que nessa lenda ou história, que nos disse o bacharel Carrasco que de nós outros vira, há-de andar a minha honra tem-te não caias, e, como diz o outro, ao estricote, varrendo as ruas; pois por minha fé que eu não disse mal de nenhum nigromante, nem tenho tantos haveres que possa ser invejado; é verdade que sou alguma coisa malicioso, e que não deixo de ter a minha velhacaria; mas tudo cobre e esconde a grande capa da minha simpleza, sempre natural e nunca artificiosa; e, quando outra coisa não tivesse que não fosse o crer, como sempre creio firme e verdadeiramente, em Deus, e em tudo o que manda acreditar a Santa Igreja Católica Romana, e ser inimigo mortal, como sou, dos Judeus, deviam os historiadores ter misericórdia de mim, e tratar-me bem nos seus escritos; mas digam o que quiserem, que sozinho nasci, sozinho me acho, não perco nem ganho apesar de me ver posto em livro, e andar por esse mundo de mão em mão, e de tudo o mais pouco se me dá.

- Isso assemelha-se, Sancho - tornou D. Quixote -, ao que sucedeu a um famoso poeta do nosso tempo, o qual, tendo feito uma maliciosa sátira contra todas as damas loureiras, nem incluiu nem nomeou uma, de quem se podia duvidar se o era ou não, a qual, vendo que não estava na lista das damas, queixou-se ao poeta, perguntando-lhe que motivo tivera para a não meter entre as outras, acrescentando que ampliasse a sátira, e a introduzisse, senão que tivesse tento em si. Obedeceu o poeta, e pô-la pelas ruas da amargura, e ela ficou satisfeita por se ver afamada e infamada. Também vem à colecção o que contam daquele pintor que deitou fogo ao Templo de Diana, considerado uma das sete maravilhas do mundo, só para que se imortalizasse nos séculos vindouros, e, ainda que se mandou que ninguém fizesse, de viva voz nem por escrito, menção do seu nome, para que não conseguisse o fim do seu desejo, soube-se todavia que se chamava Eróstato. Também se parece com isto o que sucedeu ao grande imperador Carlos V com um cavaleiro, em Roma. Quis ver o imperador aquele famoso Templo da Rotunda, que na Antiguidade se chamou o templo de todos os deuses, e agora com melhor invocação se chama de todos os santos, e é o edifício que mais inteiro ficou dos que foram levantados pela gentilidade em Roma, e o que mais conserva a fama da grandiosa magnificência dos seus fundadores: é do feitio de meia-laranja, muitíssimo grande, e muito claro, sem lhe entrar mais luz senão a que lhe concede uma janela, ou, para melhor dizer, clarabóia, que está no tecto, de onde o imperador contemplou o edifício; tinha ele ao seu lado um cavaleiro romano, que lhe dizia os primores e as subtilezas daquela grande máquina e memorável arquitectura, e, tendo-se tirado enfim dali, disse ao imperador: «Mil vezes, meu Senhor, me veio o desejo de me abraçar com Vossa Sacra Majestade, e atirar-me dali abaixo, para deixar eterna fama no mundo.” «Agradeço-vos, respondeu o imperador, não terdes levado a efeito tão mau pensamento, e daqui por diante não vos porei mais em ocasião de poderdes dar prova da vossa lealdade, e assim vos mando que nunca me faleis, nem estejais onde eu estiver.” E, ditas estas palavras, fez-lhe uma grande mercê. Quero dizer com isto, Sancho, que o desejo de alcançar fama é activíssimo. Quem pensas tu que atirou com Horácio Codes da ponte abaixo, armado com todas as armas, nas profundidades do Tibre? Quem abrasou a mão e o braço de Cévola? Quem impeliu Cúrcio a arrojar-se ao ardente vórtice que apareceu no meio de Roma? Quem, contra todos os agouros, fez passar a Júlio César o Rubicão? E com exemplos mais modernos, quem afundou os navios e deixou em terra e isolados os valorosos espanhóis, que o grande Cortês guiava à conquista do Novo Mundo? Todas estas e outras façanhas são, foram e hão-de ser obras da fama, que os mortais desejam como prémio e antegosto da imortalidade que os seus feitos merecem, ainda que os católicos e cavaleiros andantes mais havemos de atender à glória dos séculos vindouros, que é eterna nas siderais regiões, do que à vaidade da fama, que neste presente e mortal século se alcança, a qual, por muito que dure, enfim há-de acabar com o próprio mundo, que tem o seu fim marcado. Assim, ó Sancho, não saiam as nossas obras dos limites que nos impõe a religião cristã que professamos. Matando os gigantes, matemos o orgulho; combatamos a inveja com a generosidade; a ira com a placidez de um ânimo tranquilo; a gula e o sono com as curtas refeições e as longas vigílias; a luxúria e a lascívia com a lealdade que guardamos às que fizermos senhoras dos nossos pensamentos; a preguiça com o andar por todas as partes do mundo, procurando as ocasiões que nos possam fazer e nos façam, além de cristãos, gloriosos cavaleiros. Vês aqui, Sancho, os meios por onde se alcançam os extremos de louvor que traz consigo a boa fama?

- Entendi muito bem - tornou Sancho - tudo o que Vossa Mercê até aqui me tem dito; mas, com tudo isso, desejaria que Vossa Mercê me sorvesse uma dúvida, que neste ponto me acudiu.

- Resolvesse é o que tu queres dizer, Sancho - disse D. Quixote -; pois fala, que eu responderei ao que souber.

- Diga-me, Senhor - prosseguiu Sancho -, esses Julhos ou Agostos, e todos esses cavaleiros façanhudos, que diz que morreram, onde estão eles agora?

- Os gentios - respondeu D. Quixote - decerto que estão no Inferno; os cristãos, se foram bons cristãos, ou no Purgatório ou no Céu.

- Está bem! - disse Sancho. - Mas agora saibamos uma coisa: essas sepulturas, onde estão os corpos desses senhoraços todos, têm diante de si alâmpadas de prata, ou nas paredes das suas capelas mortalhas, muletas, pernas e olhos de cera? E, se não têm tudo isso, de que é que estão adornadas?

- Os sepulcros dos gentios - respondeu D. Quixote - foram pela maior parte sumptuosos templos; as cinzas do corpo de Júlio César puseram-se numa pirâmide de desmedida grandeza, a que chamam hoje em Roma Agulha de S. Pedro. Ao imperador Adriano serviu-lhe de sepultura um castelo tamanho como uma boa aldeia, a que chamaram Moles Hadriani, que é agora o Castelo de Santo Angelo, em Roma. A rainha Artemísia sepultou seu marido Mausolo num sepulcro, que se considerou uma das sete maravilhas do mundo; mas nenhuma destas sepulturas, nem de outras muitas que tiveram os gentios, se adornaram com mortalhas nem com outras oferendas e sinais, que mostrassem ser santos os que estavam dentro delas.

- Lá vou, lá vou - tornou Sancho - e diga-me agora: o que é mais, ressuscitar um morto, ou matar um gigante?

- A resposta é clara - observou D. Quixote -: é mais ressuscitar um morto.

- Apanhei-o - disse Sancho -; logo, a fama de quem ressuscita mortos, endireita coxos, dá vista aos cegos e saúde aos enfermos, e diante de cujas sepulturas ardem alâmpadas de prata, ou tem as suas capelas cheias de gente devota, que de joelhos adora as suas relíquias, sempre será melhor fama para este século e para os séculos vindouros, do que a que deixaram ou hão-de deixar quantos imperadores gentios e cavaleiros andantes tem havido no mundo.

- Também confesso essa verdade - respondeu D. Quixote.

- Pois essa fama, essas graças, essas prerrogativas, como se diz, alcançam os corpos e as relíquias dos santos, que, com aprovação e licença da Santa Madre Igreja, têm alâmpadas, velas, mortalhas, muletas, pinturas, cabelos e olhos. Os reis levam às costas os corpos dos santos ou as suas relíquias, beijam os pedaços dos seus ossos, adornam e enriquecem com eles os seus oratórios e os seus mais apreciados altares.

- Que queres que se infira, Sancho, de tudo o que disseste?

- perguntou D. Quixote.

- Quero dizer - tornou Sancho - que nos apliquemos a ser santos e alcançaremos muito brevemente a boa fama que pretendemos, e advirto Senhor, que ontem ou anteontem, assim se pode dizer, canonizaram ou beatificaram dois fraditos descalços, e as cadeias de ferro com que cingiam e atormentavam os seus corpos, considera-se agora grande ventura beijá-las e tocá-las, e são mais veneradas do que a espada de Roldão, na armaria de el-rei nosso Senhor, que Deus guarde. Assim, meu amo, vale mais ser humilde fradito de qualquer ordem que seja, do que valente e andante cavaleiro; mais alcançam de Deus duas dúzias de açoites, do que duas mil lançadas, ainda que se dêem em gigantes e endriagos.

- Tudo isso assim é - redarguiu D. Quixote - mas nem todos podemos ser frades, e muitos são os caminhos por onde se vai ao Céu: a cavalaria é uma religião, e há cavaleiros santos na glória.

- Pois sim - insistiu Sancho - mas tenho ouvido dizer que há mais frades no Céu que cavaleiros andantes.

- É claro - tornou D. Quixote -, porque há mais religiosos que cavaleiros.

- Os andantes são muitos - disse Sancho.

- Muitos - respondeu D. Quixote - mas poucos os que merecem o nome de cavaleiros.

Nestas e noutras práticas se passou a noite e o dia seguinte, sem lhes acontecer coisa digna de se contar, com bastante pena de D. Quixote. Enfim, no outro dia, ao anoitecer, descobriram a grande cidade de Toboso, e com essa vista se alegrou o espírito de D. Quixote, e se entristeceu o de Sancho, porque não sabia onde era a casa de Dulcineia, nem nunca a vira em toda a sua vida, e seu amo também não; de modo que, um por ir vê-la, e o outro por não a ter visto, estavam alvoroçados, e Sancho no imaginava o que havia de fazer quando seu amo o enviasse a Toboso. Finalmente, determinou D. Quixote entrar de noite na cidade, e, enquanto não eram horas, pousaram num carvalhal, próximo de Toboso, e, chegada a ocasião própria, entraram na cidade, onde lhes sucederam coisas dignas de menção.

 

ONDE SE CONTA O QUE NELE SE VERÁ

Era meia-noite, pouco mais ou menos, quando D. Quixote e Sancho saíram do monte e entraram em Toboso. Estava o povo em sossegado silêncio, porque todos os seus vizinhos dormiam e repousavam de perna estendida, como se costuma dizer. A noite não era muito clara, mas desejaria Sancho que fosse escuríssima, para achar nas trevas uma desculpa para a sua ignorância. Não se ouviam em todo o lugar senão ladridos de cães, que ensurdeciam D. Quixote e turbavam Sancho. De quando em quando, zurrava um jumento, miavam gatos, grunhiam porcos; esses sons pareciam ampliar-se com o silêncio da noite, e tudo isso considerou como de mau agouro o enamorado cavaleiro, mas sempre foi dizendo:

- Sancho filho, guia-me ao palácio de Dulcineia, que é possível que a encontremos acordada.

- Como o hei-de guiar a um palácio, corpo de tal - retrucou Sancho -, se a casa em que eu vi Sua Grandeza era pequeníssima?

- Sinal é de que estava muito retirada - acudiu D. Quixote

-, consolando-se a sós, nalgum pequeno aposento do seu alcácer, como é costume de altas senhoras e princesas.

- Senhor - disse Sancho -, já que Vossa Mercê quer à viva força que seja alcácer a casa da minha Sra. Dulcineia, seja muito embora; mas isto são horas de se encontrar a porta aberta? Havemos de começar às aldrabadas, para que nos ouçam e nos façam entrar, pondo em alvoroço e barulho toda a gente? Aquilo é casa de barregã, aonde se bate e se entra, a qualquer hora que seja?

- Vamos nós a ver se damos com o alcácer - disse D. Quixote - que depois te direi o que havemos de fazer; e repara, Sancho, que eu ou vejo pouco ou aquela grande sombra que daqui se descobre é do palácio de Dulcineia.

- Pois então guie-me Vossa Mercê - respondeu Sancho - e pode ser que assim seja, que eu hei-de vê-lo com os olhos e tocá-lo com as mãos, e acreditar tanto que é ele, como acredito que é dia agora.

Seguiu D. Quixote para diante, e, tendo andado coisa de duzentos passos, deu com o vulto que fazia a sombra, viu uma grande torre, logo conheceu que o edifício não era alcácer, mas sim a igreja principal da povoação, e disse:

- Demos com a igreja, Sancho.

- Bem vejo - respondeu Sancho -, e praza a Deus que não dêmos com a nossa sepultura, que não é de bom agouro andar pêlos cemitérios a estas horas, demais a mais tendo eu dito a Vossa Mercê, se bem me lembro, que a casa dessa senhora há-de estar num beco sem saída.

- Amaldiçoado sejas, mentecapto! - respondeu D. Quixote.

- Onde é que tu viste que os alcáceres e paços reais fiquem em becos sem saída?

- Meu Senhor - tornou Sancho -, cada terra com seu uso;

talvez se use aqui no Toboso edificar nos becos os palácios e

casas grandes; e, assim, peço a Vossa Mercê que me deixe procurar por estas vielas e travessas, que talvez tope aí nalgum canto esse alcácer de uma figa, que tão corridos e empandeirados nos traz.

- Fala com respeito, Sancho - disse D. Quixote -, do que à minha dama se refere; vamos com a festa em paz, e não dêmos por paus e por pedras.

- Eu terei conta em num - respondeu Sancho -, mas como posso aturar o querer Vossa Mercê que eu, que só vi uma vez a casa da nossa ama, dê com ela à meia-noite, não a encontrando Vossa Mercê, que a deve ter visto milhares de vezes?

- Fazes-me desesperar, Sancho - tornou D. Quixote -, vem cá, herege: não te tenho dito mil vezes que em todos os dias da minha vida nunca vi a sem par Dulcineia, e nunca franqueei os umbrais do seu palácio, e que só estou enamorado de outiva e da grande fama que tem de formosa e discreta?

- Agora o fico sabendo - respondeu Sancho - e digo que, se Vossa Mercê nunca a viu, eu ainda menos.

- Não pode ser - redarguiu D. Quixote -; pelo menos disseste-me tu que a viste peneirando trigo, quando me trouxeste a resposta da carta que por ti lhe enviei.

- Não quebre a cabeça com isso, meu Senhor - tornou Sancho -, porque lhe faço saber que lá o eu vê-la e trazer-lhe a resposta, foi também tudo de outiva, que tanto sei quem é a Sra. Dulcineia, como sei dar murros no céu.

- Sancho, Sancho - acudiu D. Quixote -, há tempo para brincar, e tempo em que não caem bem os brinquedos; lá porque eu digo que nunca vi nem conversei a senhora da minha alma, não hás-de tu dizer também que nunca a viste nem lhe falaste, quando sabes que é exactamente o contrário.

Estando eles nestas práticas, sentiram o ruído de um arado, e viram um lavrador com duas mulas, que madrugava para ir para a lavoura, e vinha cantando o romance que diz:

Mal vos saístes, franceses, da caça de Roncesvales.

- Aposto a vida, Sancho - disse D. Quixote -, que nos não pode suceder coisa boa esta noite. Não ouves o que este vilão canta?

- Ouço - respondeu Sancho -, mas que tem com o nosso propósito a caçada de Roncesvales? Podia cantar o romance de Calaínos, que vinha a dar na mesma, e daí nos não resultaria nem bem nem mal.

Nisto chegou o lavrador, a quem D. Quixote disse:

- Sabereis dizer-me, bom amigo, boa ventura vos dê Deus, onde são por aqui os paços da incomparável princesa D. Dulcineia del Toboso?

- Senhor - respondeu o moço -, eu sou forasteiro, e há poucos dias que estou nesta povoação, servindo na lavra dos campos um rico fazendeiro; mas nessa casa, aí defronte, vivem o cura e o sacristão da freguesia, e qualquer deles saberá dar a Vossa Mercê notícia dessa Senhora Princesa, porque têm a lista de todos os vizinhos de Toboso, ainda que eu estou em dizer que em todo o lugar não vive princesa alguma, a não querer chamar assim a muitas senhoras principais, que cada uma delas é princesa em sua casa.

- Pois alguma dessas - disse D. Quixote - há-de ser a que eu procuro.

- Pode ser - respondeu o moço - e adeus, que vem aí o romper de alva.

E, fustigando as mulas, não atendeu a mais perguntas. Sancho, que viu seu amo suspenso e descontente, disse-lhe:

- Meu Senhor, o dia não tarda por aí, e não é bom que nos encontre o Sol na rua; será melhor que saiamos para fora da cidade, e que Vossa Mercê se embosque nalguma floresta aqui próxima, e eu voltarei de dia e não deixarei recanto no lugar, onde no procure a casa, alcácer ou palácio da minha senhora, e muito desgraçado havia de ser se o não encontrasse, e encontrando-o falarei com a Sra. Dulcineia, e dir-lhe-ei onde Vossa Mercê fica esperando, que ela lhe dê traça para se poderem ver, sem menoscabo da sua honra e fama.

- Disseste, Sancho - observou D. Quixote -, mil sentenças, encerradas no círculo de breves palavras; o conselho que

me deste agora, aplaudo-o e recebo-o de boníssima vontade;

anda cá, filho, e vamos saber onde me hei-de emboscar, e depois tu irás, como dizes, ver se encontras a minha senhora, de cuja discrição e cortesia espero mais do que milagrosos favores.

Ardia Sancho por tirar seu amo da povoação, para que não averiguasse o caso da resposta que da parte de Dulcineia lhe levara à serra Morena, e assim deu pressa à saída, que foi logo, e a duas milhas do lugar encontraram uma floresta, onde D. Quixote se emboscou, enquanto Sancho voltava à cidade a falar a Dulcineia, embaixada em que lhe sucederam coisas que pedem novo capítulo.

 

ONDE SE CONTA A INDÚSTRIA QUE SANCHO TEVE PARA ENCANTAR A SRA. DULCINEIA, E OUTROS SUCESSOS TãO RIDÍCULOS

COMO VERDADEIROS

Chegando o autor desta grande história ao que neste capítulo conta, diz que desejaria passá-lo em silêncio, receoso de não ser acreditado, porque as loucuras de D. Quixote ultrapassaram aqui o termo de quantas se podem imaginar, e foram dois tiros de besta para diante das maiores. Finalmente, ainda que com este medo e receio, escreveu-as, tais como ele as praticou, sem acrescentar nem tirar à história um só átomo da verdade, sem se importar para nada com as objecções que lhe podiam pôr de mentiroso; e teve razão, porque a verdade torce, mas não quebra, e anda sempre ao de cima da mentira, como o azeite ao de cima de água; e assim, prosseguindo na sua história, diz que, apenas D. Quixote se emboscou dentro da mata, ao pé do grande Toboso, mandou a Sancho que tomasse à cidade, e que não volvesse à sua presença sem ter primeiro falado da sua parte com a sua senhora, pedindo-lhe que fosse servida de se deixar ver pelo seu cativo cavaleiro, e se dignasse deitar-lhe a

sua bênção, para que ele pudesse esperar felicíssimo êxito de todos os seus cometimentos e difíceis empresas.

Encarregou-se Sancho de fazer o que ele lhe mandava e de lhe trazer tão boa resposta como lhe trouxera da primeira vez.

- Anda, filho - replicou D. Quixote -, e não te atrapalhes quando te vires perante a luz do sol da formosura que vais procurar. Ditoso és tu sobre todos os escudeiros do mundo! Conserva bem de memória o modo como ela te recebe: se muda de cor quando lhe estiveres dando a minha embaixada; se se desassossega ou perturba, ouvindo o meu nome; se não pára na almofada, no caso de estar sentada no rico estrado da sua autoridade, e, no caso de estar erguida, vê bem se ora se segura num pé ora noutro; se te repete duas ou três vezes a resposta que te der; se a varia de branda para áspera, de azeda para amorosa;

se leva a mão ao cabelo para o compor, ainda que não esteja desordenado; finalmente, filho, vê todas as suas acções e movimentos, porque, se mós relatares como eles foram, poderei eu perceber o que ela tem escondido no íntimo do coração com respeito aos meus amores; que hás-de saber, Sancho, se o não sabes já, que entre os amantes, as acções e movimentos exteriores que fazem, quando do seu afecto se trata, são certíssimos correios que trazem notícia do que se passa no âmago do peito. Vai, amigo, e guie-te melhor ventura que a minha, e volta com melhor êxito do que o que eu fico temendo e esperando nesta amarga soledade em que me deixas.

- Irei e presto volverei - disse Sancho - e deite às largas, meu Senhor, esse coração, que o tem agora decerto mais pequeno que uma avelã; e considere que se costuma dizer, que bom coração uebranta má ventura, e também se diz, de onde se não cuida salta a lebre: digo isto, porque se esta noite não achamos os paços ou alcáceres da minha senhora, agora que é de dia espero encontrá-los quando menos o pense, e logo que os encontrar deixem-me com ela.

Dito isto, Sancho voltou as costas e fustigou o ruço, e D. Quixote ficou a cavalo, descansado nos estribos e arrimado à sua lança, cheio de tristes e confusas imaginações, em que o deixaremos imerso, indo-nos com Sancho Pança, que se apartou de seu amo não menos confuso e pensativo do que ele ficava, e tanto que, apenas saiu do bosque, voltando a cabeça e não vendo já D. Quixote, apeou-se do jumento, e, sentando-se à sombra de uma árvore, começou a falar consigo, e a dizer:

- Saibamos agora, Sancho mano: aonde vai Vossa Mercê? Vai à busca de algum jumento que se lhe perdesse? Não, por certo. Então que vai procurar? Vou procurar uma princesa e com ela o sol da formosura, e todo o céu junto. E onde pensais encontrar o que dizeis, Sancho? Onde? Na grande cidade de Toboso. E da parte de quem ides? Da parte do famoso cavalheiro D. Quixote de La Mancha, que desfaz os tortos, e dá de comer a quem tem sede, e de beber a quem tem fome. Tudo isso é muito " bom. E sabeis onde é a casa dela, Sancho? Meu amo diz que hão-de ser uns régios paços ou um soberbo alcácer. E já a vistes algum dia, porventura? Nem eu nem meu amo nunca lhe pusemos a vista em cima. E parece-vos que seria acertado e bem feito que, se a gente de Toboso soubesse que estais aqui na firme tenção de lhes irdes roubar as suas princesas, e desinquietar-lhes as suas damas, viessem ter convosco e vos desancassem as costelas, e não vos deixassem um osso inteiro? E certo que teriam muita razão, quando não considerassem que sou mandado, e que mensageiro sois amigo, não tendes, pois, culpa, não. Não vos fieis nisso, Sancho, porque a gente manchega é tão honrada como colérica, e não consente que lhe façam cócegas. Viva Deus, que se lhes dá o faro de que estais aqui, má ventura tereis. Leve a breca a mensagem, não estou para passar trabalhos por prazer alheio, tanto mais que procurar Dulcineia no Toboso, é o mesmo que procurar agulha em palheiro, ou bacharel em Salamanca. Foi o Diabo em pessoa que me meteu nestas danças.

Acabado este solilóquio, Sancho resolveu o que se verá da seguinte continuação do seu monólogo:

- Ora muito bem! Tudo tem remédio, menos a morte, que a todos nos há-de levar no fim da vida. Este meu amo, já tenho visto que é um louco de pedras, e eu também não lhe fico atrás, que até sou ainda mais mentecapto do que ele, pois que o sirvo e sigo, se é verdadeiro o rifão: Diz-me com quem andas, dir-te-ei as manhas que tens. Sendo assim tão doido, dando-lhe a loucura para tomar a maior parte das vezes uma coisa por outra, o branco pelo preto e o preto pelo branco, moinhos de vento por gigantes, mulas de religiosos por dromedários, rebanhos de carneiros por exércitos de inimigos, e outras deste jaez, não me será difícil fazer-lhe crer que a primeira lavradeira que eu por aí topar é a Sra. Dulcineia; e, quando ele o não acredite, eu juro, e se ele jurar também, juro outra vez, e se teimar, eu ainda mais teimo, de forma que fique sempre na minha, venha o que vier. Talvez com esta porfia conseguirei que me não torne a incumbir de semelhantes mensagens, vendo que dou tão má conta do recado, ou talvez pense, como imagino, que algum mau nigromante, dos que ele diz que lhe querem mal, lhe mudou a figura de Dulcineia, para lhe fazer dano.

E com isto ficou Sancho de espírito sossegado, e deu por findo o seu negócio, demorando-se ali até à tarde, para que D. Quixote supusesse que ele efectivamente fora a Toboso; e saiu-lhe tudo tão bem que, quando se levantou para montar no burro, viu que saíam do Toboso três lavradeiras montadas em burros ou em burras, o que o autor não explica bem, devendo acreditar antes que seriam burricas, por serem essas as cavalgaduras habituais das aldeãs; mas, como o caso não é importante, não vale a pena demorarmo-nos a averiguá-lo. Assim que Sancho viu as lavradeiras, foi logo ter com D. Quixote, e achou-o suspirando e repetindo mil amorosas lamentações.

- Que há de novo, Sancho amigo? - perguntou-lhe D. Quixote assim que o viu. - Poderei marcar este dia com pedra branca ou pedra negra?

- Será melhor - respondeu Sancho - que Vossa Mercê o marque com almagre, para se ver bem de longe.

- Então - redarguiu D. Quixote - trazes boas notícias.

- Tão boas - respondeu Sancho - que não tem Vossa Mercê mais que fazer que picar as esporas a Rocinante e sair à estrada para ver a Sra. Dulcineia del Toboso, que com duas damas suas vem ver Vossa Mercê.

- Santo Deus! Que estás dizendo, Sancho amigo? Não me enganes, nem queiras com falsos júbilos alegrar as minhas verdadeiras tristezas.

- Que aproveitava eu em o enganar - tornou Sancho -, podendo Vossa Mercê tão depressa descobrir a verdade? Pique as esporas, e venha ver a princesa, nossa ama, que aí temos adornada e vestida como quem é. Ela e as suas damas todas são ouro, pérolas, diamantes, rubins, telas de brocado; os cabelos soltos nos ombros, que parecem outros tantos raios do Sol que andam brincando com o vento; e, sobretudo, vêm a cavalo em três calafréns, que não se pode ver coisa melhor.

- Palafréns é que tu queres dizer, Sancho.

- Vem a dar na mesma; mas, seja lá como for, o que é certo é que vêm o mais garbosas que se podem imaginar, principalmente a princesa Dulcineia, senhora minha, que arrebata os sentidos.

- Vamos, Sancho filho - tornou D. Quixote -, e, em alvíssaras destas boas e inesperadas novas, te darei o maior despojo que eu ganhar na primeira aventura que tiver; e, se isto te não agradar, dou-te as crias que tiverem este ano as minhas três éguas, que sabes que ficaram cheias.

- Prefiro as crias - respondeu Sancho - porque não é lá muito certo que sejam grande coisa os despojos da primeira aventura.

E nisto saíram do bosque e descobriram ali perto as três aldeãs. Explorou D. Quixote com a vista o caminho todo de Toboso, e, como não visse senão as três lavradeiras, turvou-se, e perguntou a Sancho se as deixara fora da cidade.

- Como! Fora da ddade! - respondeu Sancho. - Porventura tem Vossa Mercê os olhos abotoados, que não vê que são estas que aqui vêm, resplandecentes como o próprio Sol ao meio-dia?

- Eu não vejo - tomou D. Quixote - senão três lavradeiras montadas em três burricos.

- Livre-me Deus do inimigo! Cruzes! - tornou Sancho. - E possível que três palafréns, ou como é que se lhes chama, brancos de neve, pareçam burricos a Vossa Mercê? Eu, se assim fosse, era capaz até de arrancar as barbas.

- Pois o que eu te digo, Sancho - tornou D. Quixote -, é que é tão verdade o serem burricos ou burricas, como ser eu D. Quixote e tu Sancho Pança. Pelo menos assim me parecem.

- Cale-se, Senhor - tornou Sancho -, não diga semelhante coisa; vamos, esfregue esses olhos, e venha cortejar a dama dos seus pensamentos, que já vem aqui ao pé.

E, dizendo isto, adiantou-se para receber as três aldeãs, e, apeando-se do ruço agarrou no cabresto do jumento de uma das três lavradeiras, e, pondo o joelho em terra, disse:

- Rainha, princesa e duquesa da formosura, seja Vossa Altivez servida de receber com boa graça e boa vontade o vosso cativo cavaleio, que está ali feito de mármore, todo turbado e sem pulso, por se ver na vossa magnífica presença; eu sou Sancho Pança, seu escudeiro, e ele o afamado cavaleiro D. Quixote de La Mancha, conhecido pelo nome de Cavaleiro da riste Figura.

A este tempo já D. Quixote se pusera de joelhos ao pé de Sancho, e mirava com olhos pasmados, e vista turva, aquela a quem Sancho dava o nome de rainha e senhora, e, como não via senão uma moça aldeã, de cara larga e feia, estava suspenso, sem ousar descerrar os lábios. As outras lavradeiras tinham ficado atónitas, vendo aqueles dois homens tão diferentes, ambos de joelhos, e sem deixarem passar a sua companheira; mas a suposta Dulcineia quebrou o silêncio, dizendo com muito mau modo:

- Tirem-se do caminho Senhores, e deixem-nos passar, que vamos com pressa.

- Ó princesa e Senhora Universal de Toboso - respondeu Sancho -, como é que o vosso magnânimo coração não se enternece, vendo ajoelhado na vossa sublime presença a coluna e sustentáculo da cavalaria andante!

Ouvindo isto, disse uma das outras duas:

- Chó, que te estraego, burra de meu sogro! Ora vejam estes senhores vir mangar com as proves aldeãs, como se não soubéssemos também o que são pulhas; sigam o seu caminho, e deixem-nos ir para diante, que é melhor.

- Levanta-te, Sancho - acudiu D. Quixote -, que eu já vejo que a fortuna, não se fartando de me perseguir, tomou todos os caminhos por onde pode vir alguma satisfação a este mísero e mesquinho espírito. E tu, extremo de perfeição, último

termo da gentileza humana, remédio único deste aflito coração que te adora, já que um maligno nigromante pôs nuvens e cataratas nos meus olhos, e só para eles e não para outros mudou e transformou o teu rosto formoso no de uma pobre lavradeira, se já não transformou também o meu no de algum vampiro, para me tornar odioso aos teus olhos, não deixes de me contemplar branda e amorosamente, vendo nesta submissão a cortesia que faço à tua disfarçada formosura, a humildade com que a minha alma te venera.

- Toma, que te dou eu! - respondeu a aldeã. - Eu gosto de ouvir requebros, mas apartem-se e deixem-nos seguir para diante, que nos fazem muito favor.

Afastou-se Sancho, e deixou-a ir, contentíssimo por se ter saído bem do seu enredo. Apenas se viu livre a aldeã, que havia representado, sem o saber, o papel de Dulcineia, picou o seu palafrém com um aguilhão, e deitou a correr pelo campo fora; e, como a burrica sentia a ponta do aguilhão, que a picava mais que de costume, começou aos corcovos e aos pulos, de forma que deu com a Sra. Dulcineia em terra. Vendo isto, D. Quixote correu a levantá-la, e Sancho a compor e apertar a albarda, que se tinha virado para a barriga da burra.

Arranjada a albarda, e querendo D. Quixote levantar a sua encantada senhora nos braços, para a pôr em cima da jumenta, ela, erguendo-se logo, tirou-lhe esse trabalho, porque deu uma corrida, e, pondo as mãos ambas nas ancas da burra, saltou, mais ligeira que um falcão, para cima da albarda, e ficou escarranchada como se fosse homem.

- Viva S. Roque! - disse Sancho. - A nossa Senhora Ama é ligeira como um gamo, e pode ensinar a montar à gineta ao mais destro cordovês ou mexicano; saltou de um pulo o arção traseiro, e sem esporas faz correr a jumenta, que parece uma zebra, e não lhe ficam atrás as suas damas, que todas correm como o vento.

E era verdade, porque, logo que viram Dulcineia a cavalo, todas deitaram a correr, sem voltar a cabeça, por espaço de mais de meia légua. Seguiu-as D. Quixote com a vista, e, quando elas desapareceram, voltando-se para Sancho, lhe disse:

- Sancho, que te parece? Que malquisto que eu sou dos nigromantes! E vê até onde se estende a sua malícia e o ódio que me têm, pois me quiseram privar do contentamento que me poderia dar ver a minha dama na plenitude da sua formosura! Com efeito, nasci para exemplo de desditosos, e para ser alvo a que mirem e se vibrem as setas da má fortuna; e hás-de reparar também, Sancho, que esses traidores logo transformaram a minha Dulcineia em mulher de tão vil condição e tão feia, como aquela aldeã, e juntamente lhe tiraram o que é tanto de pessoa principal, a saber: o perfume que rescendem, por sempre andarem entre âmbares e flores; porque te devo dizer, Sancho, que, quando me aproximei para sentar Dulcineia no seu palafrém (como tu dizes, que a mim pareceu-me jerico), deu-me um cheiro de alhos crus, que me chegou a agoniar.

- Ó canalha! - exclamou Sancho. - Ó aziagos e mal-intencionados nigromantes! Quando hei-de eu ter o gosto de vos ver espetados como uns mexilhões! Muito sabeis, muito podeis e muito mal fazeis! Devia-vos bastar, velhacos, o terdes transformado as pérolas dos olhos da minha Sra. Dulcineia em cebolas remelosas, os seus cabelos de ouro pussimo em cerdas de rabo de boi ruivo, e mudado, enfim, as suas formosas feições em feições disformes, sem lhe tocardes no cheiro, que por ele ao menos adivinhássemos o que estava escondido naquela feia cortiça, ainda que, para dizer a verdade, eu sempre a vi formosa, dandolhe realce à beleza um lunar que tinha sobre o lábio do lado direito, à moda de bigode, com sete ou oito cabelos louros, como fios dourados, e da largura de mais de um palmo.

- Acho grandes de mais para lunares - observou D. Quixote.

- O que sei dizer a Vossa Mercê - respondeu Sancho - é que pareciam nascidos ali.

- Creio, creio, amigo - tornou D. Quixote -, porque nenhuma coisa pôs a Natureza em Dulcineia que não fosse perfeita e bem acabada; mas ainda que tivesse cem lunares como tu dizes, nela não seriam lunares, mas sim luas e estrelas resplandecentes. Mas diz-me lá, Sancho: aquilo que me pareceu albarda, e que tu arranjaste, era selim raso ou de cadeirinha?

- Era sela à gineta - respondeu Sancho - e com um xairel tão rico que vale bem metade de um reino.

- E não ver eu tudo isso! - tornou D. Quixote. - Agora digo, e direi mil vezes que sou o mais desgraçado de todos os homens.

Muito custava ao socarrão do Sancho disfarçar o riso, ao ouvir as sandices de seu amo, tão finamente enganado. Depois de outras muitas razões que houve entre eles ambos, tornaram a montar nas cavalgaduras e seguiram caminho de Saragoça, aonde cuidavam chegar a tempo de se poderem achar numas festas solenes, que todos os anos se costumam fazer naquela insigne cidade; mas, antes de lá chegarem, sucederam-lhes coisas, que, por serem grandes, muitas e novas, merecem ser escritas e lidas como adiante se verá.

 

DA ESTRANHA AVENTURA QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE COM O CARRO OU CARRETA DAS CORTES DA MORTE

Extremamente pensativo ia D. Quixote seguindo o seu caminho, e considerando na burla que lhe tinham pregado os nigromantes, com o transformarem a sua Sra. Dulcineia na desastrada figura de uma aldeã, e não imaginava que remédio se podia empregar para que voltasse ao seu primeiro ser; e estes pensamentos punham-no tão fora de si que, sem dar por isso, soltou as rédeas a Rocinante, o qual, sentindo a liberdade que lhe concediam, a cada passo se detinha para pastar a verde relva que por aqueles campos abundava. Tirou-o Sancho Pança da sua distracção, dizendo-lhe:

- Senhor, as tristezas não se fizeram para os brutos, e sim para os homens; mas se os homens sentem demasiadamente, embrutecem; Vossa Mercê tenha conta em si e colha as rédeas a Rocinante, reviva e desperte, e mostre aquela galhardia que costumam ter os cavaleiros andantes. Que diabo é isso? Que

descaimento é esse? Estamos aqui ou em França? Diabos levem quantas Dulcineias houver no mundo, pois vale mais a saúde só de um cavaleiro andante, que todos os encantamentos e transformações da Terra.

- Cala-te, Sancho - tornou D. Quixote, com voz muito desmaiada -, cala-te, repito, e no digas blasfémias contra aquela infeliz senhora, que da sua desgraça e desventura só eu tenho culpa; da inveja que os maus me têm proveio o seu infortúnio.

- O mesmo digo eu - respondeu Sancho -, quem a viu e quem a vê! Qual é o coração que não chora com transformação semelhante?

- Isso não podes tu dizer, Sancho - redarguiu D. Quixote , pois que a contemplaste na cabal plenitude da sua formosura, que o encanto não se estendeu a turbar-te a vista, nem a encobrir-te os seus atractivos; contra mim só e contra os meus olhos se dirige a força do seu veneno; mas, com tudo isso, reparei, Sancho, numa coisa, e é que me pintaste mal a sua beleza, porque, se bem me lembra, disseste-me que tinha os olhos de pérolas, e os olhos que parecem pérolas são mais de besugo que de dama; e, segundo creio, os de Dulcineia devem ser de verde-

-esmeralda, rasgados, com dois arcos celestiais que lhes servem de pestanas; e essas pérolas tira-as dos olhos e passa-as para os dentes, que sem dúvida tomaste uma coisa por outra.

- Pode ser - respondeu Sancho - porque fiquei tão turbado com a sua formosura, como Vossa Mercê com a sua lealdade; mas encomendemos tudo a Deus, que Ele é que é o sabedor das coisas que hão-de suceder neste vale de lágrimas, neste desgraçado mundo em que estamos onde mal se encontram objectos que não tenham mescla de maldade, embuste, ou velhacaria. Uma coisa me pesa Senhor meu, mais do que todas as outras, e é pensar o que se há-de fazer quando Vossa Mercê derrotar algum gigante, ou outro cavaleiro, e lhe mandar que se apresente diante da formosura da Sra. Dulcineia; onde a há-de encontrar esse pobre gigante ou esse mísero cavaleiro vencido? Parece-me que os estou a ver a andar por esse Toboso, feitos uns basbaques, procurando a Sra. Dulcineia, e, ainda que a encontrem no meio da rua, conhecendo-a tanto como conheceriam meu pai.

- Talvez, Sancho - respondeu D. Quixote -, o encantamento não chegue a ponto de fazer com que os gigantes e cavaleiros rendidos não vejam a Dulcineia; e, com o primeiro que eu vencer, faremos a experiência, ordenando-lhe que volte a dar-me notícia do que a esse respeito lhe houver sucedido.

- Parece-me muito bem o que Vossa Mercê diz - redarguiu Sancho - e com esse artifício conheceremos o que desejamos; e se ela só a Vossa Mercê se encobre, será a desgraça mais para Vossa Mercê do que para ela; mas tenha a Sra. Dulcineia saúde e contentamento, nós por cá passaremos o melhor que pudermos, buscando as nossas aventuras e deixando que o tempo faça das suas, que ele é o melhor médico de enfermidades ainda maiores.

Queria D. Quixote responder a Sancho, mas estorvou-lho uma carreta que se atravessou no caminho, cheia das pessoas e figuras mais estranhas e diversas que imaginar se podem. O que guiava as mulas e servia de carreiro era um feio demónio. A carreta era descoberta, sem toldo. A primeira figura que D. Quixote viu foi a da própria morte, com rosto humano; junto dela, vinha um anjo com grandes e pintadas asas; de um lado, estava um imperador, com uma coroa, que parecia de ouro, na cabeça; aos pés da morte, vinha o deus que chamam Cupido, sem venda nos olhos, mas com o seu arco, aljava e setas; vinha também um cavaleiro armado de ponto em branco, mas sem morrião, nem celada, e em vez disso um chapéu cheio de plumas de diversas cores; vinham com estas outras pessoas de diferentes rostos e trajes. Tudo isto, aparecendo de repente, alvoroçou até certo ponto D. Quixote e assustou Sancho; mas logo D. Quixote se alegrou, julgando que se lhe oferecia nova e perigosa aventura; e com este pensamento e ânimo, disposto a acometer qualquer perigo, pôs-se diante da carreta, e disse em voz alta e ameaçadora:

- Carreiro, ou cocheiro ou diabo, diz-me já quem és, para onde vais, e quem é essa gente que levas no teu coche, que mai parece a barca de Carnte, do que uma carreta destas que no mundo se usam.

O diabo, fazendo parar a carreta, respondeu mansamente:

- Senhor, somos comediantes da Companhia de Angulo, o Mau; representamos naquele lugar que fica além, por trás da serra, esta manhã por ser oitava do Corpo de Deus, o auto das Cortes da Morte, e havemos de o representar esta tarde naquela outra aldeia que daqui se avista; por estar tão próxima, e pouparmos o trabalho de nos despirmos e de nos tomarmos a vestir, vamos com os mesmos fatos com que havemos de entrar em cena. Aquele moço faz o papel de Morte; o outro de anjo; aquela mulher, casada com o autor, de rainha; aqueloutro de soldado; o imediato de imperador, e eu de demónio; e sou uma das principais figuras do auto, porque represento nesta Companhia os primeiros papéis. Se Vossa Mercê deseja saber de nós mais alguma coisa, queira perguntá-lo, que eu lhe responderei com toda a pontualidade, porque sei tudo, como demónio que sou.

- Por minha fé - respondeu D. Quixote - quando vi este carro imaginei que se me oferecia alguma grande aventura, e agora digo que para uma pessoa se desenganar precisa de tocar com a mão nas aparências. Ide com Deus, boa gente, para a vossa festa, e vede se mandais alguma coisa em que possa servir-vos, que o farei de bom ânimo e de boa vontade, porque desde criança que fui afeiçoado a comédias, e iam-se-me os olhos atrás das danças.

Estando-se nesta palestra, quis a sorte que viesse um da Companhia, vestido de truão com muitos guizos, trazendo na ponta de um pau três bexigas cheias de ar, e, chegando-se a D. Quixote, começou a esgrimir o pau, a bater com as bexigas no chão, e a dar muitos saltos, fazendo tilintar os guizos; esta visão tanto sobressaltou Rocinante, que, sem D. Quixote o poder suster, tomou o freio nos dentes, e partiu de corrida pêlos campos fora, com mais ligeireza do que nunca o prometeram os ossos da sua anatomia. Sancho, que viu o perigo em que estava seu amo de ser deitado ao chão, apeou-se do ruço e foi a toda a pressa acudir-lhe, mas, quando chegou ao pé dele, já o encontrou estirado, juntamente com o cavalo, que era este o fim habitual das louçanias e atrevimentos de Rocinante. Mas, apenas Sancho se apeou, o demónio do bailador das bexigas saltou para cima do ruço, fustigando-o com elas. O medo e a bulha, mais do que a dor das pancadas, fizeram voar o burro pela campina até ao lugar onde iam fazer a festa. Olhava Sancho para a corrida do seu jumento e para a queda de D. Quixote, e não sabia para onde se havia de virar; mas, enfim, como fosse escudeiro e bem-criado, pôde mais com ele o afecto a seu amo do que o cuidado do jumento; posto que, de cada vez que via levantarem-se no ar as bexigas e caírem nas ancas do seu ruço, tinha sustos e aflições mortais, e antes queria que lhe dessem essas pancadas nas meninas dos olhos do que no mínimo pêlo do rabo do burro. Nesta atribulada perplexidade, chegou ao sítio onde estava D. Quixote bastante maltratado, e, ajudando-o a montar em Rocinante, disse-lhe:

- Senhor, o diabo levou o ruço!

- Qual diabo?

- O das bexigas.

- Pois eu o recobrarei - tornou D. Quixote - ainda que se esconda com ele nos mais profundos e escuros calabouços do Inferno. Segue-me, Sancho, que a carreta vai devagar, e com as mulas que a puxam eu te compensarei a perda.

- Não há necessidade de se fazer essa diligência - respondeu Sancho -; modere Vossa Mercê a sua cólera, que, segundo me parece, já o diabo largou o ruço.

E assim era, porque, tendo o diabo caído com o burro, para imitar D. Quixote, foi a pé para a aldeia, e o jumento voltou para seu amo.

- Apesar disso - continuou D. Quixote - será bom castigar o descomedimento do demónio nalgum dos da carreta, ainda que seja no próprio imperador.

- Deixe-se Vossa Mercê disso - tornou Sancho - e tome o meu conselho, que é, que nunca se meta com farsantes, gente muito protegida; comediante vi eu estar preso por duas mortes e sair livre e sem custas; saiba Vossa Mercê que, como são alegres e divertidos, todos os favorecem, amparam, ajudam e estimam, principalmente sendo daqueles das companhias reais e de títulos, que todos, ou pela maior parte, pelo traje e compostura, parecem uns príncipes.

- Pois o demónio farsante é que se não há-de ir gabando - observou D. Quixote - ainda que o proteja todo o género humano.

E, dizendo isto, correu para a carreta, que já estava próxima da povoação, bradando:

- Detendo-vos, esperai, turba alegre e folgazã, que vos quero ensinar como se tratam os jumentos e alimárias que servem de cavalgaduras aos escudeiros dos cavaleiros andantes.

Tão altos eram os gritos de D. Quixote que os ouviram e entenderam os da carreta, e, avaliando logo pelas palavras a intenção de quem as dizia, saltou num momento abaixo do carro a Morte, e atrás dela o imperador, e o diabo carreiro, e o anjo, e até a rainha e Cupido; agarraram em pedras e prepararam-se para receber D. Quixote em som de guerra. D. Quixote, que os viu formados em to galhardo esquadrão, com os braços erguidos como para despedir com ânsia as pedras, sofreou as rédeas a Rocinante e pôs-se a pensar de que modo os acometeria, com menos perigo da sua pessoa. Nisto, chegou Sancho, e, vendo-o disposto a acometer o bem formado esquadrão, disse-lhe:

- Seria loucura tentar semelhante empresa! Considere Vossa Mercê, que, para amêndoas de rio não há arma defensiva a não ser a gente embutir-se e encerrar-se num sino de bronze; e também se há-de considerar que é mais temeridade que valentia acometer um homem só um exército, onde está a Morte, onde pelejam em pessoa imperadores, e a quem ajudam os anjos bons e os anjos maus; e se esta consideração o não move a estar quedo, mova-o saber com certeza que entre todos os que ali vê, ainda que pareçam reis, príncipes e imperadores, não há nem um só cavaleiro andante.

- Agora sim - disse D. Quixote -, agora é que bateste no ponto que pode e deve dissuadir-me do meu já resolvido intento. Não posso nem devo tirar a espada, como outras muitas vezes te tenho dito, contra quem não for armado cavaleiro; a ti, Sancho, toca, se quiseres, tirar vingança do agravo que ao teu ruço se fez, que eu daqui te ajudarei com brados e salutares avisos.

- Ó Senhor, não há motivo para me vingar de ninguém - respondeu Sancho - nem isso é de bons cristãos; eu conseguirei do meu burro que ponha a sua ofensa nas mãos da mnha vontade, que é viver pacificamente os dias que os Céus me derem de vida.

- Pois se é essa a tua determinação - redarguiu D. Quixote -, Sancho bom, Sancho discreto, Sancho cristão e Sancho sincero, deixemos estes fantasmas e vamos procurar melhores e mais qualificadas aventuras, que eu vejo que nesta terra não hão-de faltar muitas e muitas milagrosas.

Voltou logo as rédeas, Sancho foi buscar o ruço, a Morte e todo o seu esquadrão volante voltaram à carreta, e prosseguiram na sua viagem, e este feliz desenlace teve a temerosa aventura da carreta da Morte, graças ao salutar conselho que Sancho Pança deu a seu amo, ao qual no dia seguinte aconteceu com um cavaleiro andante e enamorado outra aventura de não menos suspensão que a anterior.

 

DA ESTRANHA AVENTURA QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE COM O BRAVO CAVALEIRO DOS ESPELHOS

A noite que se seguiu ao dia do encontro da Morte, passaram-na D. Quixote e o seu escudeiro debaixo de umas altas e umbrosas árvores, tendo, por persuasão de Sancho, comido D. Quixote o que vinha nos alforges do ruço; e no meio da ceia disse Sancho a seu amo:

- Senhor meu amo, que tolo que eu era se tivesse escolhido para alvíssaras os despojos da primeira aventura que Vossa Mercê topasse, em vez das crias das três éguas! Efectivamente, mais vale um pássaro na mo que dois a voar.

- Todavia - respondeu D. Quixote - se tu, Sancho, me deixasses acometer como eu tencionava, ter-te-iam cabido em despojos, pelo menos, a coroa de ouro do imperador e as pintadas asas de Cupido, que eu lhas arrancaria e tas poria nas mãos.

- Nunca foram de ouro puro os ceptros e coroas de imperadores farsantes, mas sim de ouropel ou de lata - respondeu Sancho Pança.

- É verdade - tornou D. Quixote -, nem seria acertado que fossem finos os atavios da comédia mas sim fingidos, como é a própria comédia, que eu quero Sancho, que tu estimes, e que por conseguinte estimes igualmente os que as representam e os que as compõem, porque todos são instrumentos de grande bem para a república, pondo-nos diante a cada passo um espelho, onde se vêem ao vivo as acções da vida humana, e nenhuma comparação há que tão bem nos represente o que somos, e o que havemos de ser, como a comédia e os comediantes. Senão, diz-me: não viste representar alguma peça onde entrem reis, imperadores e pontífices, cavaleiros, damas e outras personagens? Uma faz de rufião, outra de embusteiro, este de mercador, aquele de soldado, outro de simples discreto, outro de namorado simples, e, acabada a comédia, e despindo-se os seus trajes, ficam todos os representantes iguais?

- Tenho visto, sim - respondeu Sancho.

- Pois o mesmo - disse D. Quixote - acontece no trato deste mundo, onde uns fazem de imperadores, outros de pontífices, e, finalmente, todos os papéis que podem aparecer numa comédia; mas, em chegando ao fim, que é quando se acaba a vida, a todos lhes tira a morte as roupas que os diferençam, e ficam iguais na sepultura.

- Óptima comparação! - disse Sancho. - Apesar de não ser tão nova que eu não a ouvisse já muitas e diversas vezes, como a do jogo de xadrez, no qual, enquanto dura, cada peça desempenha o seu papel especial, e, quando acaba, todas se misturam, se juntam e se baralham, e se metem num saco, que é o mesmo que dar com a vida no sepulcro.

- Cada dia, Sancho - disse D. Quixote -, te vais fazendo menos simplório e mais discreto.

- Pudera; alguma coisa se me há-de pegar da discrição de Vossa Mercê - respondeu Sancho -, que as terras de si estéreis e secas, em se estrumando, vêm a dar bons frutos; quero dizer, que a conversação de Vossa Mercê tem sido como um estrume deitado na terra estéril do meu seco engenho, e a cultura o tempo em que o tenho servido e tratado; e com isto espero dar frutos de bênção, tais que não desdigam nem deslizem da boa lavoura que Vossa Mercê fez no meu acanhado entendimento.

Riu-se D. Quixote, e achou-lhe razão, porque Sancho, de quando em quando, falava de modo que lhe fazia pasmo, ainda que todas as vezes, ou a maior parte das vezes que Sancho queria falar à corte, acabava por se despenhar do monte da sua simpleza no abismo da sua ignorância; e em que ele se mostrava mais elegante e memoriado, era em trazer rifões, viessem ou não viessem a propósito, como se terá visto e notado no decurso desta história.

Nestas e noutras práticas passaram grande parte da noite, e Sancho teve vontade de cerrar as janelas dos olhos, como ele dizia, quando queria dormir, e, desaparelhando o ruço, deu-lhe pasto abundante e livre. Não tirou a sela a Rocinante, por ser ordem expressa de seu amo, que, enquanto andassem em campanha, ou não dormissem debaixo de telha, não desaparelhasse Rocinante, usança antiga estabelecida e guardada pêlos cavaleiros andantes. Tirar o freio e pendurá-lo do arção da sela, muito bem, mas tirar a sela ao cavalo, nunca; assim fez Sancho e deu-lhe a mesma liberdade que ao ruço. A amizade do burro e de Rocinante foi tão íntima e tão singular, que é fama, por tradição de pais a filhos, que o autor desta verdadeira história lhe consagrou capítulos especiais; mas que, para guardar a decência e decoro que a tão heróca narrativa se deve, os não chegou a inserir, ainda que às vezes se descuida do seu propósito, e conta que, assim que os dois animais se juntavam, Rocinante punha o pescoço por cima do pescoço do burro, de forma que lhe ficava do outro lado mais de meia vara, e, olhando ambos atentamente para o chão, costumavam estar daquele modo três dias, pelo menos todo o tempo que os deixavam e a fome os não compelia a procurar alimento. Afirma-se que o autor chegara a comparar a sua amizade à que tiveram Niso e Euríalo, Pílades e Orestes, e assim não devia deixar de se mostrar a firme amizade destes dois pacíficos animais, para admiração universal, e confusão dos homens que não sabem guardar amizade uns aos outros. Por isto se diz:

No há amigo pra amigo: as canas voltam-se em lanças.

E não pareça a alguém que o autor andou menos acertadamente em comparar a amizade destes animais com a dos homens, que dos brutos receberam os homens muitos avisos e aprenderam muitas coisas de importância, como o cristel da cegonha, dos cães o vómito e o agradecimento, dos gansos a vigilância, das formigas a previdência, do elefante a honestidade, e a lealdade do cavalo. Finalmente, Sancho adormeceu e D. Quixote também; mas pouco tempo passara, quando o despertou um ruído, que sentiu por trás de si, e, levantando-se com sobressalto, pôs-se a mirar e a escutar de onde vinha o som, e viu que eram dois homens a cavalo, e que um, deixando-se cair da sela, disse para o outro:

- Apeia-te, amigo, e tira os freios aos cavalos, que me parece que neste sítio abunda pasto para eles, e para mim a solidão e o silêncio de que precisam os meus amorosos pensamentos.

Dizer isto e estender-se no chão foi uma e a mesma coisa, e, ao deitar-se, fizeram bulha as armas de que vinha vestido, manifesto sinal por onde D. Quixote conheceu que era cavaleiro andante; e, chegando-se a Sancho, que dormia, travou-lhe do braço, e com bastante trabalho o acordou, e disse-lhe em voz baixa:

- Sancho mano, temos aventura.

- Deus no-la dê boa - respondeu Sancho -, e onde está Sua Mercê, a senhora aventura, meu Senhor?

- Onde, Sancho? - redarguiu D. Quixote. - Volta os olhos e verás ali estendido um cavaleiro andante, que, pelo que me transluz, não deve estar demasiadamente alegre, porque o vi saltar do cavalo e estender-se no chão com sinais de desgosto, e, ao cair, tiniram-lhe as armas.

- Então, como é que Vossa Mercê entende que isto seja aventura?

- Não quero dizer - tornou D. Quixote - que seja completa, mas é preliminar, que por aqui principiam as aventuras. Ouve, que, segundo parece, está afinando um alaúde ou viola, e, como escarra e alivia o peito, é porque se prepara para cantar alguma coisa.

- E assim mesmo - tornou Sancho - e deve ser cavaleiro enamorado.

- Não há nenhum dos cavaleiros andantes que o não seja - tornou D. Quixote -; escutemo-lo, que pelo cantar lhe conheceremos os pensamentos, porque, quando o coração trasborda, a língua fala.

Sancho queria replicar, mas a voz do cavaleiro da Selva, que não era nem má nem boa, o estorvou, cantando o seguinte

SONETO

Dai-me um roteiro que eu, senhora, siga, a vosso bel-prazer feito e cortado, que por mim há-de ser tão respeitado, que nem num ponto só dele desdiga.

Se vos apraz que eu morra, e que a fadiga, que me punge, a não conte, eis-me finado! Se preferis que em modo desusado vo-la narre, eu farei que Amor a diga.

De substâncias contrárias eu sou feito, de mole cera e diamante duro;

às leis do amor curvar esta alma posso.

Brando ou rijo, aqui tendes o meu peito, engastai, imprimi a saber vosso! Tudo guardar eternamente eu juro.

Com um ai, que parecia arrancado do íntimo do coração, deu fim ao seu canto o cavaleiro da Selva, e daí a pouco disse, com voz dolorida e plangente:

- O mulher, a mais formosa e a mais ingrata do orbe! Como será possível, sereníssima Cassildeia de Vandália, o consentires que se consuma e acabe, em contínuas peregrinações e em ásperos e duros trabalhos, este teu cativo cavaleiro? Não basta já ter obrigado a confessarem que eras a mais formosa do mundo todos os cavaleiros da Navarra, todos os leoneses, todos os tartéssios, todos os castelhanos, e, finalmente, todos os cavaleiros da Mancha?

- Isso não - bradou D. Quixote - que eu sou da Mancha, e nunca tal confessei, nem podia nem devia confessar coisa tão prejudicial à beleza da minha dama, e este cavaleiro, Sancho, já vês tu que tresvaria. Mas escutemos, talvez se declare mais.

- Ah! isso decerto - redarguiu Sancho - que leva termos de se estar a queixar um mês a fio.

Mas não foi assim, porque, tendo entreouvido o cavalheiro da Selva que falavam perto dele, sem passar adiante na sua lamentação, pôs-se de pé, e disse com voz sonora e comedida:

- Quem está aí? Que gente é? Pertence ao número dos contentes ou dos aflitos?

- Dos aflitos - respondeu D. Quixote.

- Pois chegue-se a mim - redarguiu o da Selva - e pode fazer de conta que se chega à própria tristeza e a própria aflição.

  1. Quixote, que ouviu tão terna e comedida resposta, chegou-se logo, e Sancho também. O cavaleiro lamentador travou do braço a D. Quixote, dizendo:

- Sentai-vos aqui Senhor Cavaleiro, que para atender que o sois, e dos que professam a cavalaria andante, basta-me ter-vos encontrado neste lugar, onde a solidão e o sereno nos fazem companhia, naturais leitos e próprias estâncias dos cavaleiros andantes.

A isto respondeu D. Quixote:

- Cavaleiro sou da profissão que dizeis, e ainda que na minha alma têm próprio assento as tristezas, as desgraças e as aventuras, nem por isso dela fugiu a compaixão das desditas

alheias: do que cantastes há pouco, coligi que as vossas são enamoradas, quero dizer, do amor que tendes àquela formosa ingrata que nas vossas lamentações nomeastes.

Já a este tempo estavam sentados ambos na dura terra, em boa paz e companhia, como se ao romper da manhã não tivessem de quebrar a cabeça um ao outro.

- Porventura, Senhor Cavaleiro - perguntou o da Selva a D. Quixote -, sois enamorado?

- Por desventura o sou - redarguiu D. Quixote -, ainda que os danos que nascem de bem empregados pensamentos mais se devem considerar mercês que desditas.

- Seria assim - redarguiu o da Selva - se não nos turbassem a razão e o entendimento os desdéns, que, sendo muitos, parecem vinganças.

- Nunca fui desdenhado pela minha dama - respondeu D. Quixote.

- Não, decerto - acudiu Sancho, que estava próximo -, a minha Senhora é mansa como uma borrega, e mais branda que a manteiga.

- Este é o vosso escudeiro? - perguntou o da Selva.

- É - respondeu D. Quixote.

- Nunca vi - redarguiu o da Selva - escudeiro que se atrevesse a falar em sítio onde seu amo esteja falando; pelo menos aí está esse meu, que nunca descerra os lábios quando eu falo.

- Pois por minha fé - torno Sancho - falei eu, e posso falar diante de quem quiser, e até... mas fiquemos por aqui, que quanto mais se lhe mexe...

O escudeiro do da Selva travou do braço a Sancho, dizendo-lhe:

- Vamos nós ambos para onde possamos falar escudeirilmente à nossa vontade, e deixemos estes nossos amos falar pêlos cotovelos nos seus amores, que decerto que os apanha o dia sem eles terem acabado.

- Em boa hora seja - tornou Sancho - e eu direi a Vossa Mercê quem sou, para que veja se posso entrar na conta dos mais faladores.

Nisto se apartaram os dois escudeiros, entre os quais houve colóquio tão gracioso, como foi grave o que travaram os amos.

 

ONDE PROSSEGUE A AVENTURA DO CAVALEIRO DA SELVA, COM O DISCRETO, NOVO E SUAVE COLÓQUIO QUE HOUVE ENTRE OS DOIS ESCUDEIROS

Estavam separados cavaleiros e escudeiros: estes contando a sua vida, e aqueles os seus amores; mas a história refere primeiro a palestra dos criados e logo segue com a dos amos; e assim nota que, apartando-se um pouco, disse o da Selva a Sancho:

- Trabalhosa vida é a que passamos e vivemos Senhor meu, os que somos escudeiros de cavaleiros andantes; pode-se dizer, na verdade, que comemos o pão ganho com o suor do nosso rosto, que foi uma das maldições que Deus deitou aos nossos primeiros pais.

- Também se pode dizer - acrescentou Sancho - que o comemos com o gelo dos nossos corpos, porque, quem é que tem mais calor e mais frio do que os míseros escudeiros da cavalaria andante? E ainda não era mau se comêssemos, pois que lágrimas com pão passageiras são; mas às vezes passam-se dois dias sem nós quebrarmos o jejum, a não ser com o vento que sopra.

- Tudo se pode levar - disse o da Selva - com a esperança que temos do prémio, porque, se o cavaleiro andante que um escudeiro serve não for demasiadamente desgraçado, não tardará este a ver-se premiado com um formoso governo de qualquer ilha, ou com um condado de boa aparência.

- Eu - redarguiu Sancho - já disse a meu amo que me contento com o governo, e ele é tão nobre e tão liberal que uma e muitas vezes mo prometeu.

- Eu - tornou o da Selva - com um canonicato ficarei satisfeito.

- Seu amo, nesse caso - tornou Sancho -, deve ser cavaleiro eclesiástico, e poderá fazer essas mercês aos seus bons escudeiros; mas o meu é meramente leigo, ainda que me lembre que uma vez lhe quiseram aconselhar pessoas discretas, mas no meu entender mal-intencionadas, que procurasse ser arcebispo;

ele não quis senão ser imperador, e eu estava então tremendo se lhe dava na veneta ser da igreja, porque me não acho suficiente para ter benefícios por ela; devo dizer a Vossa Mercê que, ainda que pareço homem, lá para entrar na igreja sou uma besta.

- Pois, na verdade, parece-me que Vossa Mercê anda enganado, porque os governos insulanos nem todos são grande coisa; há uns pobres, outros melancólicos, e, finalmente, o mais alto e melhor disposto sempre traz consigo pesada carga de pensamento e de incómodos, que põe aos ombros o desditoso a quem coube em sorte. Muito melhor seria que os que professamos esta maldita servidão nos retirássemos para nossas casas, e ali nos entretivéssemos com exercícios mais suaves, pescando ou caçando; que escudeiro há tão pobre por esse mundo, que não tenha um rocim, dois galgos ou uma cana de pescador, para se entreter na sua aldeia?

- A mim nada disso me falta - respondeu Sancho -; é verdade que não tenho rocim, mas tenho um burro que vale o dobro do cavalo de meu amo; mas raios me partam se eu o troco pelo cavalo, nem que me dêem de tornas quatro fanegas de cevada; talvez Vossa Mercê não acredite no valor do meu ruço, que ruça é a cor do meu jumento; galgos não me haviam de faltar, que os há de sobra na minha terra, e a caça é mais saborosa, quando é à custa alheia.

- Pois real e verdadeiramente Senhor Escudeiro - tomou o da Selva -, estou determinado a deixar estas borracheiras de cavalaria e a retirar-me para a minha aldeia a criar os meus filhitos, que tenho três que parecem mesmo três pérolas orientais.

- Dois tenho eu - tornou Sancho - que se podem apresentar ao papa em pessoa, especialmente uma cachopa a quem crio para condessa, se Deus for servido, apesar que a mãe não quer.

- E que idade tem essa senhora que se cria para condessa? - perguntou o da Selva.

- Quinze anos, pouco mais ou menos - respondeu Sancho -, mas é alta como uma lança e fresca como manhã de Abril, e tem força como um trabalhador.

- Isso são partes - respondeu o da Selva - não só para condessa, mas até para ninfa do verde bosque. Oh! que grande patifa que ela há-de ser!

E Sancho respondeu um pouco enxofrado:

- Nem é patifa, nem nunca o será, querendo Deus, enquanto eu vivo for; fale mais comedidamente, que para pessoa criada como Vossa Mercê com cavaleiros andantes, que são a própria cortesia, não me parecem muito concertadas essas palavras.

- Oh! como Vossa Mercê entende pouco de louvores Senhor Escudeiro! Pois não sabe Vossa Mercê que quando um cavaleiro mete uma boa farpa num touro na praça, ou quando alguém faz alguma coisa bem feita, costuma dizer o vulgo: oh! grande patife, como ele faz aquilo! O que parece vitupério nos termos, é notável louvor, e renegue Vossa Mercê de quem não merecer semelhantes elogios!

- Pois então renego - tornou Sancho - e nesse caso chame a todos os meus patifões à vontade; a cada instante fazem coisas dignas desses extremos; e tomara eu torná-los a ver; por isso peço a Deus que me tire deste pecado mortal de escudeiro, em que incorri por causa de uma bolsa de cem ducados, encontrada por mim uma vez no coração da serra Morena, e que me põe a cada instante diante dos olhos um saquitel de dobrões, que abraço, que beijo, que levo para casa, que me dá vida de príncipe, e que me leva a suportar com paciência todos os trabalhos padecidos com este mentecapto de meu amo que já me vai parecendo mais doido que cavaleiro.

- Por isso - respondeu o da Selva - dizem que a cobiça rompe o saco; e, se vamos a isso, não há louco maior no mundo do que o meu amo, porque é daqueles que dizem: cuidados alheios matam o asno; e, para que outro cavaleiro recupere o juízo, se fez ele doido, e anda procurando aventuras, que, se as encontrar, talvez lhe façam torcer a orelha.

- E é porventura enamorado?

- Sim - tornou o da Selva -, de uma ta Cassildeia de Vandália, a mais crua e desenvolta senhora que em todo o orbe se pode encontrar; mas não é aí que lhe aperta a albarda; outros negócios o ocupam, que ele dirá daqui a pouco.

- Não há caminho tão plano que não tenha algum barranco - redarguiu Sancho -; quem vai cozer favas a casa dos outros, na sua tem caldeirada, e mais companheiros e apaniguados deve ter a loucura que a discrição; mas, se é verdade o que vulgarmente se diz, que o ter companheiros nos trabalhos costuma servir de alívio, com Vossa Mercê me poderei consolar, pois serve a outro amo tão doido como o meu.

- Doido, mas valente, e ainda mais manhoso que doido e que valente - observou o da Selva.

- Isso é que o meu não é; no tem nada de manhoso; pelo contrário, não sabe fazer mal a ninguém, mas bem a todos, e não malícia alguma; qualquer criança lhe persuadirá que é noite ao meio-dia, e por esta simplicidade lhe quero como às meninas dos meus olhos, e me não amanho a deixá-lo, por mais disparates que faça.

- Com tudo isso, mano e Senhor, se o cego guia o cego, correm ambos perigo de cair no fojo. O melhor é passarmos as palhetas, e irmãos tratar da nossa vida, que quem procura aventuras, nem sempre as encontra boas.

Cuspia Sancho a miúdo, e cuspia seco, e, tendo reparado nisto o caritativo selvático escudeiro, disse-lhe:

- Parece-me que do que temos dito pegam-se-nos as línguas ao céu da boca; mas trago pendurado do arção do meu cavalo um despegador, que é bom de lei.

E, levantando-se, voltou daí a pedaço com uma grande borracha de vinho, e uma empada de meia vara.

- Vossa Mercê traz isto consigo Senhor? - perguntou Sancho.

- Pois que pensava? - respondeu o outro. - Tomava-me por algum escudeiro de pão e água? Trago melhor repasto nas ancas do meu cavalo do que um general em viagem.

Comeu Sancho sem se fazer rogado, e, como estava às escuras, engolia cada bocado que era de embatocar.

- Vossa Mercê sim, que é escudeiro fiel e leal - disse ele -, magnífico e grande, que, se não veio aqui por artes de encantamento, parece-o pelo menos, e não como eu, mesqunho e desventurado, que só trago nos meus alforges um pedaço de queijo tão duro, que podem escalavrar com ele a um gigante, e fazem-lhe companhia quatro dúzias de alfarrobas, e outras tantas de avelãs e nozes, graças à estreiteza de meu amo, e à opinião que tem e sistema que segue, de que os cavaleiros andantes só se hão-

-de manter e sustentar de frutas secas e ervas do campo.

- Por minha fé, irmão - redarguiu o da Selva -, eu não tenho o estômago afeito a essas comidas singelas; sigam nossos amos as suas opiniões e leis cavalheirescas, e comam o que elas mandarem; eu cá por mim trago fiambres e borrachas penduradas do arção da sela, pelo sim pelo não; e sou tão devoto seu, e quero-lhe tanto, que a cada instante lhe estou a dar mil beijos e abraços.

E, dizendo isto, pôs a borracha na mão de Sancho, que, empinando-a e pondo-a à boca, esteve contemplando as estrelas um bom quarto de hora; quando acabou de beber, deixou cair a cabeça para o lado, e, dando um grande suspiro, disse:

- Ó grande patife! Que católico que ele é!

- Vede como louvastes o vinho, chamando-lhe patife! - observou o da Selva.

- Confesso - disse Sancho - que não é desonra chamar patife a ninguém, quando é com ideias de o louvar. Mas diga-me Senhor, por tudo a que mais quer, este vinho é de Cidade Real?

- Isso é que se chama ser entendedor - respondeu o da Selva -, exactamente daí é que é, e tem alguns anos de antiguidade!

- Ah! tenho bom faro - tornou Sancho - nisto de vinhos, basta que eu cheire qualquer, e logo lhe acerto com a pátria, com a linhagem, com o sabor, com a duração, e com as contas que há-de dar. Mas não admira, que eu tive na minha linhagem, por parte de meu pai, os dois maiores entendedores que tem havido na Mancha; e como prova, eu lhe vou dizer o que lhes sucedeu. Deram-lhes a provar o vinho de um tonel, perguntando-lhes o seu parecer a respeito do estado, qualidade, bondade ou maldade do vinho. Um provou-o com a ponta da língua, o outro só o chegou ao nariz. O primeiro disse que o vinho sabia a ferro, o segundo que sabia a couro. Respondeu o dono que o tonel estava limpo, e que o tal vinho não tinha adubo algum de onde lhe viesse o gosto do couro, ou do ferro. Com tudo isto, os dois famosos provadores afirmaram o que tinham dito. Correu o tempo, vendeu-se o vinho, e, ao limpar-se o tonel, acharam dentro uma pequena chave, pendente de uma correia: veja Vossa Mercê se quem descende desta raleia poderá ou não dar o seu parecer em semelhantes coisas.

- Por isso digo - tornou o da Selva - que nos deixemos de ir à cata de aventuras, e já que temos sardinha não andemos à busca de peru, e voltemos para as nossas choças, que lá nos encontrará Deus, se quiser.

- Enquanto meu amo não chega a Saragoça, hei-de servi-lo; depois nos entenderemos a esse respeito.

Enfim, tanto falaram e tanto beberam os bons dos escudeiros, que foi preciso que o sono lhes atasse as línguas, e lhes acalmasse a sede, que lá matar-lha era impossível, e assim, segurando ambos abraçada a borracha quase vazia, com os bocados meio mastigados na boca, adormeceram, e a dormir os deixaremos por agora, para contar o que o cavaleiro da Selva passou com o da Triste Figura.

 

ONDE PROSSEGUE A AVENTURA DO CAVALEIRO DA SELVA

Entre muitas coisas em que falaram o cavaleiro da Selva e D. Quixote, afirma a história que disse o primeiro:

- Finalmente, Senhor Cavaleiro, quero que saibais que o meu destino, ou, para melhor dizer, a minha escolha, me levou a enamorar-me da incomparável Cassildeia de Vandália; chamo-lhe incomparável, porque não há com quem se compare,

tanto na grandeza do corpo, como no extremo do estado e da formosura. Esta tal Cassildeia, pois, pagou os meus bons pensamentos e comedidos desejos com o fazer-me correr, como Juno a Hércules, muitos e diversos perigos, prometendo-me no fim de cada ano, que no fim do imediato alcançaria a minha esperança; mas assim se foram ampliando os meus trabalhos, que já não têm conta, e não sei ainda qual será o último que dê princípio ao cumprimento dos meus anelos. Uma vez, ordenou-me que fosse desafiar aquela famosa giganta de Sevilha, chamada Giralda, que é tão valente e forte como se fosse feita de bronze, e, sem se mexer do sítio onde está, é a mais volteira e móvel que há no mundo. Cheguei, via-a e venci-a, e obriguei-a a estar queda (porque em mais de uma semana nunca soprou senão vento norte). Outra vez, mandou-me que fosse tomar em peso as antigas pedras dos bravos touros de Guisando, empresa mais para se encomendar a homens de pau e corda do que a cavaleiros. Em seguida, ordenou-me que me precipitasse no abismo de Cabra, perigo inaudito e temeroso! E que lhe levasse relação particular do que se encerra naquela profundidade. Pois bem! Detive o movmento da Giralda, levantei em peso os touros de Guisando, despenhei-me no abismo de Cabra e saquei à luz os seus arcanos, e as minhas esperanças sempre mortas, e os seus desdéns sempre vivos. Enfim, mandou-me ultimamente percorrer todas as províncias de Espanha, para fazer confessar a todos os cavaleiros andantes que ela é a mais avantajada em formosura a todas que hoje vivem, e que eu sou o mais valente e o mais enamorado do orbe, demanda em que tenho andado pela maior parte de Espanha, vencendo muitos cavaleiros, que se atreveram a contradizer-me; mas a façanha de que mais me ufano é a de ter rendido, em combate singular, o famosíssimo cavaleiro D. Quixote de La Mancha, e ter-lhe feito confessar que a minha Cassildeia é mais formosa do que a sua Dulcineia, e só nesta vitória faço de conta que venci todos os cavaleiros do mundo, porque o tal D. Quixote os venceu a todos, e, tendo-o eu vencido a ele, a sua glória, a sua fama e a sua honra transferiram-se e passaram para a minha pessoa.

E o vencedor é tanto mais honrado quanto mais o vencido é reputado; de forma que já correm por minha conta e são minhas as façanhas inumeráveis do referido D. Quixote.

Ficou D. Quixote admirado de ouvir o cavaleiro do Bosque, e esteve mil vezes para lhe dizer que mentia, e teve o mente na ponta da língua, mas reportou-se o mehor que pôde, para lhe fazer confessar a mentira pela própria boca, e assim lhe disse sossegadamente:

- Que Vossa Mercê vencesse os outros cavaleiros andantes de Espanha e até de todo o mundo, não digo o contrário, mas que vencesse D. Quixote de La Mancha, ponho-o em dúvida;

pode ser que fosse algum que se parecesse com ele, ainda que há poucos que se lhe assemelhem.

- Ora essa! - respondeu o do Bosque. - Pelo céu que nos cobre, juro que pelejei com D. Quixote, e que o venci e rendi, e é um homem alto, de rosto seco, de braços e pernas compridos e magros, grisalho de cabelo, de nariz aquilino e um pouco recurvado, de bigodes grandes, negros e caídos; campeia com o nome de Cavaleiro da Triste Figura; traz como escudeiro um lavrador chamado Sancho Pança; oprime o lombo e rege o freio de um famoso cavalo chamado Rocinante; enfim, tem como dama do seu pensamento uma tal Dulcineia del Toboso, chamada em tempo Aldonza Lorenzo, como a minha se chamava Cassilda, e é da Andaluzia, e por isso lhe chamo Cassildeia de Vandália; se todos estes sinais não bastam para fazer acreditar a minha verdade, aqui tenho uma espada que há-de tapar a boca aos incrédulos.

- Sossegai, Senhor Cavaleiro - disse D. Quixote -, e escutai o que vou dizer-vos. Haveis de saber que esse D. Quixote é o melhor amigo que tenho neste mundo, e tanto que posso dizer que é outro eu, e que pêlos sinais que dele me destes, tão certos e pontuais, não posso pensar senão ser o mesmo que vencestes; por outro lado, vejo com os meus olhos e toco com as minhas mãos a impossibilidade do que afirmais, e isso só se pode explicar pelo facto de que, tendo ele muitos inimigos

nigromantes, e especialmente um que ordinariamente o persegue, tomasse algum deles a sua figura, e se deixasse vencer, para o defraudar da fama que as suas altas cavalarias lhe têm granjeado e adquirido em toda a terra conhecida; e para confirmação do que vos digo, quero também que saibais, que os tais nigromantes seus contrários ainda há dois dias transformaram a fisionomia e a pessoa da famosa Dulcineia del Toboso numa aldeã vil e soez, e desse modo terão transformado D. Quixote; e, se tudo isto ainda não basta para vos inteirar da verdade que digo, aqui está o próprio D. Quixote, que a sustentará com as suas armas, a pé ou a cavalo, como vos aprouver.

E, dizendo isto, levantou-se, esperando a resolução que houvesse de tomar o cavaleiro da Selva, o qual, com voz sossegada, respondeu:

- Ao bom pagador não dói o dar penhores; quem uma vez pôde vencer-vos transformado, pode ter bem fundada esperança de vos prostrar no vosso próprio ser. Mas, porque não é bom que os cavaleiros pratiquem os seus feitos de armas às escuras, como os salteadores e os rufiões, esperemos o dia, para que o Sol veja as nossas obras, e há-de ser condição da nossa batalha que o vencido fique à mercê do vencedor, e faça tudo o que este quiser, contanto que seja decoroso a um cavaleiro o que se lhe ordenar.

- Satisfaz-me essa condição - respondeu D. Quixote.

E, dizendo isto, foram aonde estavam os seus escudeiros, e encontraram-nos a ressonar, na mesma posição em que os surpreendera o sono. Acordaram-nos e ordenaram-lhes que aprontassem os cavalos, que, assim que rompesse o Sol, haviam de travar os dois cavaleiros uma sangrenta e singular batalha.

Com estas novas ficou Sancho atónito e pasmado, receoso da salvação de seu amo, por causa das valentias que ouvira contar do cavaleiro do Bosque; mas, sem dizer palavra, foram os dois escudeiros buscar o gado, que já os três cavalos e o ruço se tinham cheirado e pastavam juntos.

No caminho, disse o do Bosque para Sancho:

- Saberá, mano, que têm costume os pelejantes de Andaluzia, quando são padrinhos de alguma pendência, não estar ociosos, de mãos a abanar, enquanto os afilhados se batem; digo isto para que fique avisado de que, enquanto os nossos amos pelejarem, também nós havemos de combater.

- Esse costume Senhor Escudeiro - respondeu Sancho -, pode correr e passar entre os rufiões e pelejantes andaluzes, mas entre os escudeiros de cavaleiros andantes nem por pensamentos: pelo menos, nunca ouvi dizer a meu amo que houvesse semelhante costume, apesar de saber de cor todas as ordenanças da cavalaria andante; demais, eu quero que seja verdade e ordenança expressa pelejarem os escudeiros, enquanto seus amos pelejam; mas não a quero cumprir, e prefiro pagar a multa que for imposta aos tais escudeiros pacatos, que eu tenho a certeza que não pode passar de dois arráteis de cera, e antes quero pagar isso, que sempre me há-de custar menos do que os fios que terei de pôr na cabeça, que já considero rachada; e, demais, impossibilita-me de pelejar o não trazer espada, pois em minha vida nunca a cingi.

- Conheço para isso bom remédio - disse o do Bosque -; trago aqui dois sacos de pano do mesmo tamanho; agarre num, que eu agarro noutro, e bater-nos-emos a saco, e com armas iguais.

- Desse modo acho bem - respondeu Sancho - porque tal combate mais servirá para nos sacudir o pó, que para nos tirar o sangue.

- Não - respondeu o outro -, metem-se dentro dos sacos, para que o vento os não leve, meia dúzia de boas pedras, que pesem tanto umas como outras, e deste modo nos poderemos desancar, sem nos fazermos mal nem dano.

- Olhem que chumaços! Corpo de meu pai! - redarguiu Sancho. - Mas, ainda que se enchessem os sacos de novelos de seda, saiba Senhor Mano, que não quero pelejar; pelejem os nossos amos, bebamos e vivamos nós, que o tempo tem o cuidado de nos tirar as vidas, sem que andemos à cata de apetites para que elas acabem antes de cair de maduras.

- Pois havemos de pelejar, ainda que não seja senão meia hora - tornou o outro.

- Qual história! - respondeu Sancho. - Não serei tão descortês e desagradecido que trave questões com uma pessoa com quem comi e bebi, tanto mais que, estando sem cólera e sem zanga, quem diabo há-de ter vontade de combater a seco?

- Para isso - tornou o do Bosque - darei ainda remédio suficiente, e vem a ser que, antes de começarmos a peleja, chegarei ao pé de Vossa Mercê, e lhe arrumarei três ou quatro bofetadas que o virem, e com isso lhe despertarei a cólera, ainda que esteja com mais sono que uma toupeira.

- Contra esse golpe sei outro, que lhe não fica a dever nada - respondeu Sancho -; agarrarei num pau, e, antes que Vossa Mercê se chegue para me despertar a cólera, eu adormecerei a sua à bordoada, e de tal forma que só despertará no outro mundo, onde se sabe que não sou homem que se deixe esbofetear por ninguém; e cada qual veja como despede o virote, e o mais acertado é deixar dormir a cólera dos outros, que a gente não sabe com quem se mete, e pode-se ir buscar lã e voltar-se tosquiado, e Deus abençoou a paz e amaldiçoou as rixas, porque se um gato, acossado, fechado e apertado, se muda em leão, eu, que sou homem Deus sabe em que poderei mudar-me; e assim, desde já intimo a Vossa Mercê, Senhor Escudeiro, que fica responsável por todo o mal e dano que da nossa pendência resultar.

- Está bom - redarguiu o da Selva -, em amanhecendo falaremos.

Já principiavam a gorjear nas árvores mil pintalgados passarinhos, e com seus variados e alegres cantos parecia que saudavam a fresca aurora, que já pelas portas e balcões do Oriente ia descobrindo a formosura do seu rosto, sacudindo dos seus cabelos um número infinito de líquidas pérolas, cuja suave humidade, banhando as ervas, fazia parecer que eram elas que se desentranhavam em branco e miúdo aljôfar; os salgueiros destilavam saboroso maná, riam-se as fontes, murmuravam os arroios, alegravam-se as relvas e enriqueciam-se os prados com a vinda da madrugada.

Mas, apenas a claridade do dia permitiu ver e diferençar as coisas, a primeira que deu na vista a Sancho Pança foi o nariz do escudeiro da Selva, tamanho que fazia sombra a todo o corpo. Conta-se que, efectivamente, era de demasiada grandeza, recurvado no meio, todo cheio de verrugas, e a modo cor de beringela; descia-lhe coisa de dois dedos para baixo da boca, e ; a cor, o tamanho, as verrugas e a curvatura tanto lhe afeavam o rosto, que, ao vê-lo, Sancho começou a tremer todo, como se tivesse terçãs, e deliberou desde logo antes consentir que lhe:

dessem duzentas bofetadas, do que excitar-se para se bater com semelhante aventesma.!

  1. Quixote olhou para o seu contendor e já o achou de elmo na cabeça e viseira calada, de modo que lhe não pôde ver o rosto; mas notou bem que era homem membrudo e não muito alto.

Trazia sobre as armas uma sobreveste ou casaco de pano, que parecia ser de finíssima lhama de ouro, matizada de inúmeros espelhos resplandecentes, que o tomavam muito galã e vistoso; ondeavam-lhe no elmo uma grande quantidade de plumas verdes, amarelas e brancas; a lança que tinha encostada a uma árvore, era grandíssima e grossa, e com um ferro afiado, de mais de j; um palmo de comprimento. Tudo mirou e notou D. Quixote, e, pelo que viu e observou entendeu que o dito cavaleiro devia ser de grandes forças, mas nem por isso tremeu, como Sancho Pança; antes, com gentil denodo, disse para o cavaleiro dos Espelhos:

- Se a muita vontade de pelejar Senhor Cavaleiro, vos não ' desgasta a cortesia, por ela vos peço que alceis um pouco a viseira, para que eu veja se a galhardia do vosso rosto corresponde à vossa disposição.

- Ou eu saia vencido ou vencedor desta empresa Senhor Cavaleiro - respondeu o dos Espelhos -, ficar-vos-á tempo e espaço demasiado para me ver; e se agora não cumpro o vosso desejo é por me parecer que faço notável agravo à famosa Cassildeia de Vandália, se dilatar, com o tempo que despender erguendo a viseira, a empresa de vos fazer confessar o que já sabeis que pretendo.

- Mas, enquanto montamos a cavalo - tornou D. Quixote - podeis ao menos declarar-me se sou eu aquele D. Quixote que dizeis haver vencido.

- A isso vos responderei - acudiu o dos Espelhos - que vos pareceis com o cavaleiro que venci, como um ovo se parece com outro; mas, visto que dizeis que o perseguem nigromantes, não ouso afirmar se sois o mesmo ou não.

- Isso me basta - respondeu D. Quixote - para que eu creia no vosso engano; entretanto, para dele vos tirar completamente, venham os nossos cavalos, que em menos tempo do que o que levaríeis a alçar a viseira, se Deus e a minha dama e o valor do meu braço me ajudarem, verei eu o vosso rosto, e vereis que não sou eu o vencido D. Quixote que pensais.

Com isto, para encurtarmos razões, montaram a cavalo, e D. Quixote voltou as rédeas a Rocinante, para tomar o campo conveniente, a fim de se encontrar de novo com o seu contrário, e o mesmo fez este; mas não se apartara D. Quixote vinte passos, quando ouviu que ele o chamava, e, indo ao encontro um do outro, disse o dos Espelhos:

- Lembrai-vos, Senhor Cavaleiro, que a condição da nossa batalha é, como já disse, que o vencido há-de ficar à mercê do vencedor.

- Bem sei - respondeu D. Quixote -, contanto que o vencedor não ordene nem imponha coisas que saiam dos limites da cavalaria.

- E claro - tornou o dos Espelhos.

Nisto, deu na vista de D. Quixote o estranho nariz do escudeiro, e não se admirou menos de o ver que Sancho, tanto que julgou que era algum monstro, ou algum homem novo, dos que se não usam no mundo.

Sancho, que viu partir seu amo para tomar campo, não quis ficar sozinho com o narigudo, receando que só com uma narigada se acabasse a sua pendência, ficando ele estendido no chão, com o golpe ou com o medo, e foi atrás de seu amo, agarrado ao arção de Rocinante, e, quando lhe pareceu que já era tempo de voltar, disse-lhe:

- Suplico a Vossa Mercê, Senhor meu, que, antes de voltar à peleja, me ajude a subir para aquela árvore, de onde poderei ver mais a meu sabor, e melhor que do chão, o galhardo encontro que Vossa Mercê vai ter com este cavaleiro.

- O que me parece, Sancho - tornou D. Quixote -, é que te queres encarrapitar e subir ao palanque, para ver os touros sem perigo.

- A verdade manda Deus que se diga - respondeu Sancho -; o desaforado nariz daquele escudeiro deixou-me atónito e cheio de espanto, e não me atrevo a estar junto dele.

- É tal, efectivamente, o nariz - acudiu D. Quixote - que, a no ser eu quem sou, também me assombrara; e então, Sancho, vem daí, que eu te ajudarei a subir para onde dizes.

Enquanto D. Quixote se demorava a ajudar Sancho a trepar à árvore, tomou o dos Espelhos o campo que lhe pareceu necessário; e, julgando que o mesmo teria feito D. Quixote, sem esperar som de trombeta nem outro sinal que os avisasse, voltou as rédeas ao cavalo, nem mais ligeiro, nem de melhor aparência que Rocinante, e a todo o seu correr, que era um meio trote, ia a encontrar o inimigo; mas, vendo-o ocupado com a subida de Sancho, sofreou as rédeas, e parou a meio caminho, ficando o cavalo agradecidíssimo, porque já se não podia mover.

  1. Quixote, que imaginou que o seu inimigo vinha por aí fora voando, enterrou com alma as esporas nos magros ilhais de Rocinante, e de tal maneira o espicaçou, que diz a história que foi esta a única vez que ele galopou em toda a sua vida, porque o mais que dava era um trote declarado.

Com esta nunca vista fúria, chegou ao sítio onde estava o dos Espelhos cravando no seu cavalo as esporas todas, sem conseguir, ainda assim, arrancá-lo do sítio em que estacara.

Nesta excelente conjuntura achou D. Quixote o seu contrário, embaraçado com o cavalo e tão atrapalhado com a lança, que não conseguiu pôr em riste, ou por falta de jeito ou por falta de tempo.

  1. Quixote, que não atendia a estes inconvenientes, a são e salvo esbarrou no dos Espelhos, com tão estranha força, que o atirou do cavalo abaixo pelas ancas, dando tal queda, que ficou estendido, sem mover mão nem pé, e dando todos os sinais de que morrera.

Apenas Sancho o viu caído, deixou-se escorregar da árvore, e a toda a pressa veio ao sítio onde parara seu amo, que, apeando-se de Rocinante, foi sobre o dos Espelhos, e, desatando-lhe as laçadas do elmo, para ver se estava morto, e para o fazer respirar, no caso contrário, viu - quem poderá dizer o que ele

viu, sem causar maravilha, espanto e admiração aos que o ouvirem? - viu, diz a história, o rosto, a figura, o aspecto, a fisionomia, a efígie, a perspectiva do bacharel Sansão Carrasco! E, assim que o viu, com altas vozes bradou:

- Acode, Sancho, e vem ver o que não hás-de acreditar; anda, filho, e adverte o que pode a magia, o que podem os feiticeiros e os nigromantes!

Chegou Sancho, e, assim que deu com o rosto do bacharel Carrasco, principiou a persignar-se e a benzer-se vezes sem conta.

Em tudo isto não dava mostras de estar vivo o derribado cavaleiro, e Sancho disse para D. Quixote:

- Sou de parecer, meu Senhor, que, pelo sim pelo não Vossa Mercê meta a espada pela boca dentro a este que parece o bacharel Sansão Carrasco, e talvez assim dê cabo de algum dos seus inimigos nigromantes.

- Não dizes mal - observou D. Quixote - porque de inimigos sempre o menos que puder ser.

E, tirando a espada, ia pôr por obra o aviso e conselho de Sancho, quando chegou o escudeiro do dos Espelhos, já sem o nariz, que tão feio o fizera, e com grandes vozes bradou:

- Veja Vossa Mercê o que faz, Sr. D. Quixote, que esse que aí tem a seus pés é o bacharel Sansão Carrasco, seu amigo, e eu sou o seu escudeiro.

E Sancho, vendo-o sem a sua primitiva fealdade, disae-lhe:

- E o nariz?

Ao que ele respondeu:

- Aqui o tenho na algibeira.

E tirou da algibeira direita um nariz postiço de pasta; e Sancho, olhando para ele cada vez mais pasmado, exclamou em voz alta:

- Valha-me Santa Maria! Este não é Tomé Cecial, meu vizinho e meu bom compadre?

- Já se vê que sou - respondeu o desnarigado escudeiro -; sou Tomé Cecial, compadre e amigo Sancho; e logo vos direi os embustes e enredos que aqui me trouxeram, e, entanto, pedi e suplicai ao senhor vosso amo que não mate, nem fira, nem maltrate, nem toque no cavaleiro dos Espelhos, que tem a seus pés, porque é, sem dúvida alguma, o atrevido e mal aconselhado patrício nosso, o bacharel Sansão Carrasco.

Nisto, voltou a si o dos Espelhos, e D. Quixote vendo isso, pôs-lhe no rosto a ponta da espada nua, e disse-lhe:

- Estais morto, cavaleiro, se não confessais que a sem par Dulcineia del Toboso se avantaja à vossa Cassildeia de Vandália; e, além disso, haveis de prometer, se desta contenda e queda sairdes com vida, ir à cidade de Toboso, e apresentar-vos da minha parte perante a dama de meus pensamentos, para que de vós faça o que tiver na vontade; e, se ela vos deixar o livre alvedrio, imediatamente voltareis a procurar-me, que o rasto das minhas façanhas vos servirá de guia, que vos leve aonde eu estiver, e a dizer-me o que tiverdes passado com ela: condições que, em conformidade das que pusemos antes da nossa batalha, não saem dos termos da cavalaria andante.

- Confesso - disse o rendido cavaleiro - que vale mais o sapato descosido e sujo da Sra. Dulcineia del Toboso do que as barbas mal penteadas, ainda que limpas, de Cassildeia, e prometo ir e voltar da sua à vossa presença, e dar-vos conta particular e inteira do que me pedis.

- Também haveis de confessar e crer - acrescentou D. Quixote - que o tal cavaleiro, que vencestes, não era nem podia ser D. Quixote de La Mancha, apesar de se parecer com ele como eu confesso e creio que vós, apesar de parecerdes o bacharel Sansão Carrasco, não o sois, mas outro que se lhe assemelha e que na sua figura aqui me puseram os meus inimigos, para deterem e temperarem o ímpeto da minha cólera, e para me fazerem usar brandamente da glória do vencimento.

- Tudo confesso, julgo e sinto, como vós acreditais, iulgais e sentis - respondeu o derrancado cavaleiro. - Deixai-me levantar, peço-vos, se o permite a dor da minha queda, que bastante me maltratou.

Ajudaram-no a levantar-se D. Quixote e Tomé Cecial de quem Sancho não apartava os olhos, perguntando-lhe várias coisas, tendo pelas respostas sinais manifestos de que ele era verdadeiramente o Tomé Cecial que dizia; mas a apreensão que em Sancho produzira o que seu amo dissera, de que os nigromantes tinham mudado a figura do cavaleiro dos Espelhos na do bacharel Carrasco, fazia com que ele mal pudesse dar crédito ao que estava vendo com os seus olhos.

Finalmente, ficaram-se neste engano amo e criado, e o dos Espelhos e o seu escudeiro, mofinos e mal-andantes, se apartaram de D. Quixote e de Sancho, com intenção de procurar algum sítio, onde o dos Espelhos se pudesse tratar.

  1. Quixote e Sancho prosseguiram no caminho de Saragoça, onde a história os deixa, para dar conta de quem era o cavaleiro dos Espelhos e o seu narigudo escudeiro.

 

ONDE SE CONTA E DÁ NOTÍCIA DE QUEM ERA O CAVALEIRO DOS ESPELHOS E O SEU ESCUDEIRO

Em extremo contente, satisfeito e vanglorioso ia D. Quixote, por ter alcançado vitória de tão valente cavaleiro, como ele imaginava que era o dos Espelhos, de cuja cavalheiresca palavra esperava saber se o encantamento da sua dama continuava, pois que era forçoso que o tal cavaleiro, sob pena de o não ser, voltasse a referir-lhe o que lhe tivesse com ela sucedido. Mas uma coisa pensava D. Quixote e outra o dos Espelhos, ainda que este por então só cuidava em procurar sítio onde curar-se, como já se disse. Conta, pois, a história que, quando o bacharel Sansão Carrasco aconselhou a D. Quixote que voltasse a prosseguir nas suas abandonadas cavalarias, foi por ter combinado com o cura e o barbeiro o meio de que se haviam de servir para obrigar D. Quixote a estar em sua casa, quieto e sossegado, sem o alvoroçarem as suas mal procuradas aventuras; de cujo conselho saiu, por voto comum de todos e parecer particular de Sansão, que deixassem partir D. Quixote, pois que parecia impossível sustê-lo, e que o bacharel Carrasco lhe saísse ao caminho como cavaleiro andante, e travasse batalha com ele, que não faltaria pretexto, e o vencesse, tendo isso por coisa fácil, e que se pactuasse e combinasse que o vencido ficasse à mercê do vencedor; e o bacharel cavaleiro ordenaria ao vencido D. Quixote que voltasse para a sua terra e casa e ali se demorasse durante dois anos ou até nova ordem, o que era claro que D. Quixote, vencido, cumpriria indubitavelmente, por não faltar às leis da cavalaria, e podia ser que, durante o tempo da sua reclusão, se esquecesse das suas vaidades, ou se pudesse procurar para a sua loucura algum remédio conveniente. Aceitou isso Carrasco, e ofereceu-se-lhe para escudeiro Tomé Cecial, compadre e vizinho de Sancho Pança, homem alegre e de cabeça desempoeirada. Armou-se Sansão como fica referido, e Tomé Cecial pôs por cima do seu próprio nariz o nariz postiço já indicado, para não ser conhecido pelo seu compadre quando se vissem; seguiram o mesmo caminho que D. Quixote levara, chegaram quase a encontrar-se na aventura do carro da Morte, e, finalmente, deram consigo no bosque, onde lhes sucedeu tudo o que viu o prudente leitor; e, se não fossem os extraordinários pensamentos de D. Quixote, que imaginou que o bacharel não era o bacharel, este bacharel ficaria impossibilitado para sempre de tomar grau de licenciado, por não ter encontrado ninhos onde supôs encontrar pássaros. Tomé Cecial, que viu o mal que lograra os seus desejos, e o mau paradeiro que o seu caminho tivera, disse ao bacharel:

- Temos decerto, Sr. Sansão Carrasco, o que merecemos; com facilidade se pensa e se acomete uma empresa, mas com dificuldade se sai a gente dela, pela maior parte das vezes. D. Quixote é doido e nós somos ajuizados; ele vai-se rindo, são e salvo; Vossa Mercê fica moído e triste. Saibamos, pois, agora, quem é mais doido: quem o é porque se não conhece, ou quem o é por sua vontade?

- A diferença que há entre esses dois doidos - respondeu Carrasco - é que o doido a valer há-de sê-lo sempre, e o que o é por vontade deixará de o ser logo que o queira.

- Perfeitamente - respondeu Tomé Cecial -; eu fui doido por vontade, quando me quis fazer escudeiro de Vossa Mercê; pois agora, por vontade também, quero deixar de o ser, e voltar para minha casa.

- Fazeis muito bem - respondeu Sansão -; mas lá pensar que eu hei-de voltar para a minha, sem ter desancado D. Quixote, é escusado; e não me levará agora a procurá-lo o desejo de que recupere o juízo, mas o da vingança, que a grande dor das minhas costelas não me deixa fazer mais piedosos discursos.

Nisto foram arrazoando os dois, até que chegaram a um povo, onde felizmente encontraram um curandeiro, que tratou o desgraçado Sansão. Tomé Cecial voltou para casa e deixou-o, e o bacharel ficou imaginando a sua vingança, e a história a seu tempo volta a falar nele, para não deixar agora de se regozijar com D. Quixote.

 

DO QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE COM UM DISCRETO CAVALEIRO DA MANCHA

Com a alegria, contentamento e ufania que se disse, seguiu D. Quixote a sua jornada, imaginando, pela passada vitória, ser o cavaleiro andante mais valente que tinha o mundo naquele tempo; dava por acabadas e levadas a bom termo quantas aventuras lhe pudessem suceder daí por diante; tinha em pouco os encantamentos e nigromantes, não se recordava das inumeráveis pauladas, que no decurso das suas cavalarias lhe tinham dado, nem da pedrada que lhe deitou abaixo metade dos dentes, nem do desagradecimento dos galeotes, nem do atrevimento e chuva de bordoadas dos arrieiros; finalmente, dizia entre si que, se achasse arte, modo ou maneira de desencantar a Sra. Dulcineia, não teria inveja à maior ventura que alcançou ou pôde alcançar o mais venturoso cavaleiro andante dos séculos passados. Ia todo ocupado nestas imaginações, quando Sancho lhe disse:

- Então, meu Senhor, não trago eu ainda diante dos olhos o desmesurado e desmarcado nariz do meu compadre Cecial?

- E tu acreditas, porventura, Sancho, que o cavaleiro dos Espelhos era o bacharel Carrasco e o seu escudeiro o teu compadre Cecial?

- Não sei que hei-de dizer a isso - respondeu Sancho -, o que sei é que os sinais da minha casa, de minha mulher e de meus filhos, não mós podia dar outro senão ele mesmo, e a cara, tirando o nariz, era a própria de Tomé Cecial, como eu a vi muitas vezes na minha terra e paredes meias da minha casa, e o tom da fala era o mesmo.

- Raciocinemos, Sancho - redarguiu D. Quixote -, anda cá: como pode alguém supor que o bacharel Carrasco viesse como cavaleiro andante, armado de armas ofensivas e defensivas, pelejar comigo? Fui seu contrário, porventura? Dei-lhe jamais ocasião para me ter ódio? Sou seu rival ou segue ele a profissão das armas, para criar inveja à fama que por elas tenho ganho?

- Pois como explicaremos Senhor - respondeu Sancho -, parecer-se tanto aquele cavaleiro, seja ele quem for, com o bacharel Carrasco, e o seu escudeiro com Tomé Cecial, meu compadre? E se é encantamento, como Vossa Mercê disse, não haveria no mundo outros dois com quem se parecessem?

- Tudo é artifício e traça - respondeu D. Quixote - dos malignos magos que me perseguem, os quais, prevendo que eu havia de ficar vencedor na contenda, deram ao cavaleiro vencido o rosto do meu amigo bacharel, para que a amizade que lhe tenho se interpusesse aos fios da minha espada e ao vigor do meu braço, e atenuasse a justa ira do meu coração, e deste modo ficasse com vida aquele que com falsidades e embelecos me procurava tirar a minha. Para prova, Sancho, já sabes por experiência, que te não deixará nem mentir nem enganar, quão fácil é aos nigromantes mudar uns rostos noutros, fazendo do formoso feio e do feio formoso, pois ainda não há dois dias que viste com teus próprios olhos a formosura e galhardia da sem par Dulcineia, em toda a sua inteireza e natural conformidade, e eu vi-a na fealdade e baixeza de uma rústica lavradeira, com cataratas nos olhos e mau cheiro na boca; e, se o perverso nigromante se atreveu a fazer tão maldosa transformação, não é muito que fizesse a de Sansão Carrasco e a do teu compadre, para me tirar das mãos a glória do vencimento; mas isso não me importa, porque, enfim, fosse qual fosse a figura que ele tomasse, fiquei vencedor do meu inimigo.

- Deus sabe a verdade de tudo - respondeu Sancho. E, como ele sabia que a transformação de Dulcineia fora traça e patranha sua, não o satisfaziam as quimeras de seu amo; mas não lhe quis replicar, para não dizer alguma palavra que descobrisse o seu embuste. Nestas razões estavam, quando os alcançou um homem, que vinha atrás deles pelo mesmo caminho, montado numa formosa égua baia, com um gabão de fino pano verde, com bandas de veludo leonado, e trazendo na cabeça um gorro do mesmo veludo; os arreios da égua eram à campina e à gineta, também de iguais cores; pendia-lhe um alfange mourisco de um largo talim verde e ouro, e os borzeguins tinham os lavores do talim; as esporas não eram douradas, mas envernizadas de verde, tão tersas e brunidas, que, por dizerem bem com o resto do vestuário, pareciam melhor do que se fossem de ouro puro. Quando se aproximou deles o caminhante, saudou-os cortesmente, e, picando as esporas à égua, passava de largo, mas D. Quixote disse:

- Cavalheiro, se Vossa Mercê leva o mesmo caminho que nós levamos, e não vai com muita pressa, grande honra eu teria em que fôssemos juntos.

- Na verdade - respondeu o da égua - não passaria tão de largo, se não fosse por temer que, com a companhia da minha égua, se alvoroçasse esse cavalo.

- Bem pode Senhor - acudiu Sancho -, sofrear as rédeas à égua, porque o nosso cavalo é o mais honesto e composto que se pode imaginar; nunca em semelhantes ocasiões praticou a mínima vileza, e a única vez que se desmandou, pagámo-lo caro eu e meu amo; assim, demore-se Vossa Mercê o tempo que quiser, que o cavalo, ainda que lhe sirvam a égua num prato, não é capaz de a afrontar.

Sofreou as rédeas o caminhante, admirando-se da figura e fisionomia de D. Quixote, que ia sem elmo, levando-lho Sancho, como se fosse mala, no arção dianteiro da albarda do ruço; e se o de Verde muito olhava para D. Quixote, muito mais o contemplava este, parecendo-lhe homem de grande respeito: a idade mostrava ser de cinquenta anos, poucas as cãs, o rosto

aquilino, a vista entre grave e alegre; finalmente, no traje e figura, dava a entender ser homem de boas prendas. O que julgou de D. Quixote de La Mancha foi que nunca vira um homem assim: admirou o comprimento do cavalo, a grandeza do corpo do cavaleiro, a magreza e amarelidão do seu rosto, as suas armas, o adea, copostura, figura e fisionomia, que nunca topara outros semelhantes. Notou bem D. Quixote a atenção do caminhante, e leu-lhe na suspensão a curiosidade; e como era tão cortês, e tão amigo de agradar a todos, antes que ele lhe perguntasse coisa alguma, foi-lhe ao encontro, dizendo-lhe:

- Esta figura que Vossa Mercê está vendo, por ser tão nova e tão diversa das que se usam vulgarmente, não me maravilho que o espante; mas deixará Vossa Mercê de se espantar, em eu lhe dizendo que sou cavaleiro, destes que dizem as gentes que vão às aventuras. Saí da minha pátria, empenhei a minha fazenda, deixei os meus regalos, e entreguei-me nos braços da fortuna, que me levasse aonde fosse servida. Quis ressuscitar a já morta cavalaria andante, e há muitos dias que, tropeçando, caindo, despenhando-me aqui, levantando-me acolá, cumpro, em grande parte, o meu desejo, socorrendo viúvas, amparando donzelas e favorecendo casadas, órfãos e pupilas, ofício próprio e natural de cavaleiro andante; e, assim, pelas minhas façanhas, muitas, valorosas e cristãs, merecia andar já impresso em quase todas, ou na maior parte das línguas do mundo. Estamparam-se trinta mil exemplares da minha história, e parece-me que ainda se hão-de imprimir mais trinta mil milhares, se o Céu lhe não acudir. Finalmente, para tudo resumir em breves palavras, ou numa só, digo que sou D. Quixote de La Mancha, por outro nome chamado o Cavaleiro da Triste Figura; e, ainda que o louvor em boca própria é vitupério, é-me forçoso dizer eu talvez os meus, já se vê, quando não estiver presente quem os diga em meu lugar. Portanto, Senhor Fidalgo, nem este cavalo, nem esta lança, nem este escudo, nem este escudeiro, nem estas armas todas juntas, nem a palidez do meu rosto, nem a minha magreza extrema vos poderão admirar doravante, visto que já sabeis quem sou e a profissão que sigo.

Calou-se D. Quixote, e o de Verde, pela demora da resposta, parecia que não atinava com a que lhe havia de dar; mas daí a bom pedaço lhe disse:

- Acertastes, Senhor Cavaleiro, no motivo da minha suspensão e curiosidade, mas não acertastes supondo dissipar o espanto que me inspira o ter-vos visto, que, ainda que dizeis que o saber já quem sois mo poderia tirar, não foi assim, antes agora, que o sei, fico mais supenso e maravilhado. Como! E possível que haja histórias impressas de verdadeiras cavalarias! Não me posso persuadir que exista na Terra quem favoreça viúvas, ampare donzelas, respeite casadas, socorra órfãos; e não o acreditaria, se em Vossa Mercê o não tivesse visto com os meus próprios olhos. Bendito seja o Céu que com essa história que Vossa Mercê diz que está impressa, das suas altas e verdadeiras cavalarias, se terão posto em esquecimento as inumeráveis dos fingidos cavaleiros andantes, de que estava cheio o mundo, tanto em dano dos bons costumes, e tanto em prejuízo e descrédito das boas histórias.

- Há muito que dizer - respondeu D. Quixote - a respeito de serem fingidas ou não as histórias dos cavaleiros andantes.

- Pois há quem duvide - tornou o de Verde - de que tais histórias sejam falsas?

- Duvido eu - redarguiu D. Quixote - porque, se a nossa jornada durar, espero em Deus fazer perceber a Vossa Mercê que fez mal em ir na corrente dos que têm por certo que não são verdadeiras.

Por esta última observação de D. Quixote, suspeitou o viandante que ele seria algum mentecapto, e aguardava que o confirmasse com outras; mas, antes de prosseguirem na conversação, pediu-lhe D. Quixote que lhe dissesse quem era, visto que ele por si já lhe dera parte da sua condição e da sua vida. A isto respondeu o do Verde Gabão:

- Eu, Senhor Cavaleiro da Triste Figura, sou um fidalgo de uma aldeia, aonde iremos jantar hoje, se Deus for servido; sou mais do que medianamente rico e chamo-me D. Diogo de Miranda; passo a vida com minha mulher e meus filhos e com os meus amigos; os meus exercícios são a caça e a pesca; mas não sustento falcões nem galgos, apenas algum perdigueiro manso ou algum furão atrevido; tenho por aí umas seis dúzias de livros, latinos e espanhóis, uns de história, outros de devoção; os de cavalaria ainda me não entraram das portas para dentro; folheio mais os profanos, do que os devotos, contanto que sejam de honesto entretenimento, que deleitem com a linguagem e suspendam com a invenção, posto que destes há pouquíssimos em Espanha. Algumas vezes janto com os meus amigos e vizinhos, e muitas vezes os convido; os meus jantares são limpos, asseados e fartos; nem gosto de murmurar, nem consinto que diante de mim se murmure; não esquadrinho as vidas alheias, nem sou lince dos feitos dos outros; ouço missa todos os dias, reparto os meus bens com os pobres, sem fazer alarde das boas obras, para não dar entrada no meu coração à hipocrisia e vanglória, inimigos que brandamente se apoderam do coração mais recatado; procuro fazer as pazes entre os que sei que estão desavindos, sou devoto da Virgem, e confio sempre na misericórdia de Deus Nosso Senhor.

Esteve Sancho a escutar atentíssimo a relação da vida e entretenimentos do fidalgo; e, entendendo que homem de tão boa e santa existência devia fazer milagres, saltou do burro abaixo, e com muita pressa foi-lhe agarrar no estribo direito, e com devoto coração e quase lágrimas lhe beijou os pés uma e muitas vezes. Vendo isto o fidalgo, perguntou-lhe:

- Que fazeis, irmão? Que beijos são esses?

- Deixem-me beijar - respondeu Sancho - porque me parece Vossa Mercê o primeiro santo a cavalo que tenho visto nos dias da minha vida.

- Não sou santo - respondeu o fidalgo - mas grande pecador; vós sim, irmão, é que deveis ser bom, como se mostra pela vossa grande simpleza.

Voltou Sancho a montar no burro, depois de ter arrancado gargalhadas à profunda melancolia de seu amo, e causado novo espanto a D. Diogo de Miranda.

Perguntou D. Quixote a D. Diogo quantos filhos tinha, e disse-lhe que uma das coisas, em que punham o sumo bem os filósofos antigos que careceram do verdadeiro conhecimento de Deus, foi nos bens da Natureza, nos da fortuna, em ter muitos amigos, e em ter muitos e bons filhos.

- Eu, Sr. D. Quixote - respondeu o fidalgo -, tenho um filho, e, se o não tivesse, talvez me julgasse mais ditoso; no porque ele seja mau, mas porque não é tão bom como eu queria. Terá dezoito anos de idade: esteve seis em Salamanca, aprendendo a língua latina e grega, e, quando quis que passasse a estudar outras ciências, achei-o tão embebido na da poesia (se se pode chamar ciência), que não é possível fazer-lhe arrostar a das leis, que eu quereria que estudasse, nem a rainha de todas, a teologia. Quereria eu que fosse coroa de sua linhagem, pois que vivemos num século em que os nossos reis premeiam altamente as boas e virtuosas letras, porque letras sem virtude são pérolas no tremedal. Passa o dia todo a averiguar se disse bem ou mal Homero neste verso da Ilíada, se Marcial foi ou não desonesto naquele epigrama, se se hão-de entender de uma maneira ou de outra tais e tais versos de Virgílio; enfim, todas as suas conversações são com os livros dos referidos poetas e com os de Horácio, Pérsio, Juvenal e Tibulo; que dos modernos não faz muito caso; e, apesar de ter tanto desdém pela moderna poesia espanhola, está agora todo empenhado em glosar quatro versos que lhe mandaram de Salamanca, e suponho que é coisa de justa literária.

- Os filhos Senhor - respondeu D. Quixote -, são pedaços das entranhas de seus pais, e, sejam bons ou maus, sempre se lhes há-de querer como às almas que nos dão vida; aos pais cumpre encaminhá-los desde pequenos pela senda da virtude, da boa criação e dos bons e cristãos costumes, para que sejam bordão da velhice de seus pais e glória da sua posteridade, quando forem crescidos; e, quanto a forçá-los que estudem esta ou aquela ciência, não o tenho por acertado, ainda que o persuadir-lho não será danoso; e, quando não se tem de estudar para pane lucrando, sendo o estudante tão venturoso, que recebesse do Céu pais que lhe deixem haveres, seria eu de parecer que o não impedissem de seguir a ciência para que se inclina, e, ainda que a da poesia é menos útil do que deleitosa, não é das que desonram os que a possuem. A poesia, no meu entender Senhor Fidalgo, é como uma donzela meiga, juvenil e formosíssima, que se desvela em enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e todas com ela se hão-de autorizar; mas esta donzela não quer ser manuseada, nem arrastada pelas ruas, nem publicada nas esquinas das praças, nem pêlos desvãos dos palácios. É feita por uma alquimia de tamanha virtude, que quem souber tratá-la pode mudá-la em ouro puríssimo; não a há-de deixar correr quem a tiver por torpes sátiras e desalmados sonetos; não se há-de vender de nenhum modo, a não ser em poemas heróicos, em lamentáveis tragédias, ou em comédias alegres e artificiosas; não se há-de deixar tratar pêlos truões, nem pelo vulgo ignorante, incapaz de conhecer nem de estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis Senhor, que chamo aqui vulgo somente à gente plebeia e humilde, que todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve ser contado entre o vulgo; e, assim, quem cuidar a poesia com estes requisitos terá fama e nome estimado em todas as nações civilizadas do mundo. E, quanto ao que dizeis Senhor, de vosso filho não ter em grande estima a poesia castelhana, entendo que não anda nisso com muito acerto, e a razão é esta: o grande Homero não escreveu em latim, porque era grego; nem Virgílio escreveu em grego, porque era latino. Enfim, todos os poetas antigos escreveram na língua que beberam com o leite, e não foram procurar os idiomas estrangeiros para manifestar a alteza dos seus conceitos; e, sendo isto assim, era razoável que este costume se estendesse por todas as nações, e que se não menosprezasse o poeta alemão que escreve na sua língua, nem o castelhano, nem o próprio biscainho que escreve na sua; mas vosso filho Senhor, ao que imagino, não estará de mal com a poesia moderna, mas sim com os poetas que são meros versejadores castelhanos, sem saberem outras línguas, nem outras ciências, que adornem, despertem e auxiliem o seu natural impulso; e ainda nisto pode haver erro, porque, segundo opiniões sensatas, o poeta nasce poeta, e, com essa inclinação que o Céu lhe deu, sem mais estudo nem artifício, compe coisas que fazem verdadeiro quem disse: st Deus in nobis. Também digo que o poeta natural, que se auxiliar com a Arte, se avantajará muito ao poeta, que só por saber a Arte o quiser ser. O motivo disto é que a Arte não vence a Natureza, mas aperfeiçoa-a; de forma que a Natureza e a Arte, mescladas, produzirão um perfeitíssimo poeta. Em conclusão, Senhor Fidalgo, entendo que Vossa Mercê deve deixar seguir seu filho a estrela que o chama, que, sendo ele tão bom escolar como deve de ser, e tendo já subido felizmente o primeiro degrau das ciências, que é o das línguas, com elas subirá por si ao cúmulo das letras humanas, que tão bem parecem num cavaleiro de capa e espada, e o adornam, honram e engrandecem, como as mitras aos bispos, ou como as garnachas aos jurisconsultos peritos. Ralhe Vossa Mercê com seu filho, se fizer sátiras que prejudiquem as honras alheias, e castigue-o, e rasgue-lhas; mas, se fizer prédicas à moda de Horácio, em que repreenda os vícios em geral, como ele tão elegantemente o fez, louveo, porque é lícito ao poeta escrever contra a inveja, e dizer nos seus versos mal dos invejosos, e contra os outros vícios, sem designar pessoa alguma; mas há poetas que, para dizerem uma malícia, se arriscam a ser degredados para as ilhas do Ponto. Se o poeta for casto nos seus costumes, sê-lo-á também nos seus versos; a pena é a língua da alma: como forem os conceitos que nela se gerarem, assim serão os seus escritos; e, quando os reis ou príncipes vêem a milagrosa ciência da poesia em sujeitos prudentes, virtuosos e graves, honramnos, estimam-nos e enriquecem-nos, e ainda os coroam com as folhas da árvore que o raio não ofende, como em sinal de que por ninguém hão-de ser ofendidos os que virem com os seus lauréis honrada e adornada a sua fronte.

Pasmou o do Verde Gabão do raciocinar de D. Quixote, e tanto que principiou a desvanecer-se-lhe a opinião, que tinha, de que ele era mentecapto. Mas, no meio desta prática, Sancho, que se aborrecia com ela, desviara-se do caminho, a pedir um pouco de leite a uns pastores, que estavam ali perto ordenhando umas ovelhas; e já o fidalgo ia renovar a prática, de satisfeito que ficara com a discrição e bom discorrer de D. Quixote, quando este, erguendo a cabeça, viu que vinha pela estrada, por

onde eles iam, um carro cheio de bandeiras reais; e, julgando que seria alguma nova aventura, chamou a grandes brados por Sancho, para que lhe desse o elmo. Sancho, ouvindo-o chamar, largou os pastores, e a toda a pressa picou o ruço, e chegou ao sítio onde estava seu amo, a quem sucedeu uma espantosa e desatinada aventura.

 

ONDE SE DECLARA O ÚLTIMO PONTO A QUE CHEGOU E PODIA CHEGAR O INAUDITO ÂNIMO DE D. QUIXOTE, COM A AVENTURA DOS LEÕES, TãO FELIZMENTE ACABADA

Conta a história que, quando D. Quixote bradava por Sancho que lhe trouxesse o elmo, estava ele comprando uns requeijões, que os pastores lhe vendiam; e, acossado pela muita pressa de seu amo, não soube o que lhes havia de fazer, nem como havia de trazê-los, e, para os não perder, porque os tinha já pago, lembrou-se de os deitar no elmo de seu amo, e com este bom recato voltou a ver o que lhe queria D. Quixote, que, assim que o viu, lhe disse:

- Amigo, dá-me esse elmo, que, ou pouco sei de aventuras, ou o que ali descubro é alguma, que me há-de obrigar a pegar em armas.

O do Verde Gabão, que isto ouviu, estendeu a vista por todas as partes, e não descobriu outra coisa senão um carro que para eles vinha, com duas ou três bandeiras pequenas, que lhe fizeram supor que o tal carro devia trazer dinheiro de Sua Majestade, e assim o disse a D. Quixote; mas este não lhe deu ouvidos, acreditando sempre e pensando que tudo o que lhe sucedesse haviam de ser aventuras e mais aventuras; e, portanto, respondeu ao fidalgo:

- Homem apercebido vale por dois; não se perde nada em eu me aperceber, que sei por experiência que tenho inimigos visíveis e invisíveis, e não sei quando, nem onde, nem em que tempo, nem em que figura me hão-de atacar.

E, voltando-se para Sancho, pediu-lhe o elmo; e Sancho, não tendo ensejo de tirar os requeijões, deu-lho como estava. Pegou-lhe D. Quixote, e, sem ver o que vinha dentro, encaixou-o a toda a pressa na cabeça; e, como os requeijões se espremeram e apertaram, começou a correr o soro por todo o rosto e barbas de D. Quixote, o que o assustou por tal forma, que disse para Sancho:

- Que será isto, Sancho? Parece que me amoleceram os cascos, e se derreteram os miolos, ou que suo dos pés até à cabeça;

e, se suo, não é de medo; decerto, será terrível a aventura que me vai suceder: dá-me, se tens, alguma coisa com que me limpe, que o copioso suor já me cega os olhos.

Calou-se Sancho, e deu-lhe um lenço, dando ao mesmo tempo graças a Deus por seu amo não ter descoberto a marosca. Limpou-se D. Quixote, tirou o elmo para ver o que era que lhe esfriava a cabeça, e, vendo aquelas coisas brancas, chegou-as ao nariz, e, ao cheirá-las, disse:

- Por vida da minha Sra. Dulcineia del Toboso, são requeijões que aqui me puseste, traidor, bargante, e maldito escudeiro!

Ao que Sancho respondeu, com grande fleuma e dissimulação:

- Se são requeijões, dê-mos Vossa Mercê, que eu os comerei, ou antes coma-os o Diabo, que foi ele decerto quem aí os pôs. Pois eu havia de me atrever a sujar a cabeça de Vossa Mercê? À fé Senhor, pelo que vejo, também eu devo ter nigromantes que me perseguem, como a criatura e membro de Vossa Mercê; e puseram talvez aí essa imundície para irritar a sua paciência, e fazer com que me derreie as costelas; mas desta vez enganaram-se, que eu confio no bom discorrer de Vossa Mercê, que deve considerar que eu nem tenho requeijões, nem leite, nem coisa que o valha; e, se os tivera, mais depressa os metia no meu estômago do que no elmo.

- Pode ser - respondeu D. Quixote.

Pasmava o fidalgo de tudo isto, e ainda mais pasmou, quando, depois de D. Quixote haver limpado a cabeça, o rosto, as barbas e o elmo, o encaixou na cabeça, e, firmando-se nos estribos, verificando se a espada saía bem da bainha, e, erguendo a lança, disse:

- Agora, venha o que vier, que aqui estou eu com ânimo de me bater com Satanás em pessoa.

Nisto, chegou o carro das bandeiras, em que vinha só o carreiro montado numa das mulas, e um homem sentado na dianteira do carro. D. Quixote atravessou-se-lhes na frente e disse:

- Aonde ides, irmãos? Que carro é este? O que levais nele? e que bandeiras são estas ?

- O carro é meu - respondeu o carreiro. - O que vai dentro dele são dois bravos leões engaiolados, que o governador de Orão envia à corte, de presente a Sua Majestade; as bandeiras são de el-rei nosso Senhor, em sinal de que vai aqui coisa sua.

- E são grandes os leões? - perguntou D. Quixote.

- Tamanhos - respondeu o homem que ia sentado no carro -, que nunca vieram de África para Espanha outros assim;

eu tenho passado muitos, mas como estes nenhum; são macho e fêmea: o macho vai nesta primeira jaula, a fêmea na outra de trás; e agora estão famintos, porque ainda hoje não comeram; e assim, desvie-se Vossa Mercê, que precisamos de chegar depressa ao sítio onde lhes havemos de dar a ração.

- Leões a mim? - disse D. Quixote com leve sorriso. - Leões a mim a tais horas? Pois, por Deus, hão-de ver esses senhores que cá os mandam, se me arreceio de leões. Apeai-vos, bom homem, e, visto que sois o guarda, abri essas jaulas, e largai-me estas feras, que, no meio deste campo, lhes mostrarei quem é D. Quixote de La Mancha, a despeito e a pesar dos nigromantes que mós enviam.

- Ta, ta! - disse para si o fidalgo. - O nosso bom cavaleiro deu sinal do que é; os requeijões sem dúvida lhe amoleceram os cascos e lhe diluíram os miolos.

- Senhor - disse-lhe Sancho, chegando-se a ele -, por Deus, proceda Vossa Mercê de modo que o meu Sr. D. Quixote não se meta com estes leões, que, se o faz, aqui nos despedaçam a todos.

- Pois tão louco é vosso amo - respondeu o fidalgo - que chegueis a temer e a acreditar que ele se meta com tão ferozes animais?

- Não é louco - tornou Sancho - mas é atrevido.

- Eu farei com que o não seja - replicou o fidalgo. E, chegando-se a D. Quixote, que estava insistindo com o guarda para que abrisse as jaulas, disse-lhe:

- Senhor Cavaleiro, os cavaleiros andantes hão-de empreender as aventuras que dão esperança de se poder alguém sair bem delas, e não as que a tiram de todo em todo, porque a valentia que entra por temeridade é mais loucura que fortaleza, tanto mais que estes leões não vêm contra Vossa Mercê, nem sonham semelhante coisa; vão de presente a Sua Majestade, e não será bem detê-los, nem impedir-lhes a viagem.

- Vá Vossa Mercê, Senhor Fidalgo - respondeu D. Quixote -, tratar do seu perdigueiro manso e do seu furão atrevido, e deixe cada qual cumprir a sua obrigação; esta é a minha, e eu é que sei se vêm ou não contra num estes senhores leões. E, voltando-se para o guarda, disse-lhe:

- Voto a tal, D. Velhaco, que se não abris imediatamente as jaulas, com esta lança vos hei-de pregar no carro.

O carreiro, que viu a determinação daquele armado fantasma, disse-lhe:

- Senhor meu Vossa Mercê seja servido, por caridade, deixar-me tirar as mulas, e ir pô-las a salvo, antes de se soltarem os leões, porque, se me dão cabo delas, fico arruinado para toda a vida, que não tenho outra fazenda senão este carro e estas mulas.

- Homem de pouca fé - respondeu D. Quixote. - Apeia-

-te e desatrela, e faz o que quiseres, que depressa verás que trabalhaste em vão, e que te poderias ter poupado a essa diligência.

Apeou-se o carreiro, e tirou as mulas a toda a pressa, e o guarda das jaulas disse em altos brados:

- Sejam boas testemunhas, todos quantos aqui estão, de que, contra minha vontade, e forçado, abro as jaulas e solto os leões, e de que protesto a este Senhor, que todo o mal e dano que as feras fizerem corre por conta dele, juntamente com os meus direitos e salários. Vossas Mercês, Senhores, ponham-se a salvamento antes de eu abrir, que a mim sei eu que não fazem eles mal.

De novo lhe persuadiu o fidalgo que não fizesse semelhante loucura, que era tentar a Deus cometer tal disparate. Respondeu D. Quixote que bem sabia o que fazia. Insistia o fidalgo, dizendo-lhe que se enganava.

- Agora, Senhor - tornou D. Quixote -, se Vossa Mercê não quer assistir a esta, no seu entender, tragédia, pique a égua e ponha-se a salvo.

Sancho, ouvindo isto, suplicou-lhe com as lágrimas nos olhos que desistisse de semelhante empresa, em comparação da qual tinham sido pão com mel a dos moinhos, e todas as façanhas que praticara em todos os dias da sua vida.

- Olhe, Senhor - dizia Sancho -, que aqui não há encantamento nem coisa que o valha, que eu vi pelas grades da jaula uma garra de leão verdadeiro, e a julgar pela garra o leão deve ser maior que uma montanha.

- O medo, pelo menos - respondeu D. Quixote -, faz-to parecer maior que meio mundo. Retira-te, Sancho, e deixa-me, e, se eu aqui morrer, já sabes a nossa antiga combinação: acudirás a Dulcineia; e não te digo mais nada.

A estas acrescentou outras razões, com que tirou as esperanças de que deixaria de prosseguir no seu desvairado intento. Quereria opor-se-lhe, até pela força, o do Verde Gabão; mas viu-se desigual em armas, e não lhe pareceu grande cordura travar peleja com um doido, que já assim lhe parecera D. Quixote, o qual, tornando a apressar o guarda e a reiterar as ameaças, deu ocasião a que o fidalgo picasse a égua e Sancho o ruço, e o carreiro as mulas, procurando todos afastar-se do carro o mais depressa possível, antes que os leões se desembestassem. Chorava Sancho a morte de seu amo, que daquela vez é que a supunha segura nas garras dos leões; maldizia a sua fortuna, e chamava minguada a hora em que se lembrou de o tornar a servir; mas, apesar dos choros e dos lamentos, não deixava de ir verdascando o burro, para se desviar do carro. Vendo o guarda já bastante afastados os que iam fugindo, tornou a requerer e a intimar a D. Quixote o que já lhe requererá e intimara, mas D. Quixote respondeu que o ouvira perfeitamente, que não tratasse de mais intimações nem requerimentos, que tudo seria de pouco fruto, e que se apressasse. No espaço que se demorou o guarda a abrir a primeira jaula, esteve considerando D. Quixote se não seria melhor dar batalha a pé do que a cavalo, e por fim resolveu dá-la a pé, receando que Rocinante se espantasse com a vista dos leões; por isso, saltou do cavalo abaixo, arrojou a lança, embraçou o escudo, e, desembainhando a espada, foi a passos contados, com maravilhoso denodo e ânimo valente, colocar-se diante do carro, encomendando-se a Deus de todo o coração, e logo depois à sua Sra. Dulcineia. E é de saber que, chegando a este ponto, o autor desta verdadeira história exclama e diz:

«Ó forte e sobre todo o encarecimento animoso D. Quixote de La Mancha, espelho em que se podem mirar todos os valentes do mundo, novo D. Manuel de Leão, que foi glória e honra dos cavaleiros espanhóis! Com que palavras contarei tão pasmosa façanha, e com que argumentos a farei acreditar dos séculos vindouros? Que louvores haverá que te não convenham e quadrem, ainda que sejam hipérboles sobre todas as hipérboles? Tu a pé, tu só, tu intrépido, tu magnânimo, só com uma espada, e não cortadora como as de Persflio, com um escudo, e não de aço muito límpido nem muito luzente, estás aguardando os dois mais feros leões que nunca criaram as selvas africanas! Sejam os teus próprios feitos que te louvem, valoroso manchego, que os deixo aqui, por me faltarem palavras para os encarecer.”

Terminada esta invocação, o autor prossegue na história, dizendo que, ao ver o guarda D. Quixote a postos, e que não podia deixar de soltar o leão, sob pena de ser maltratado pelo colérico e atrevido cavaleiro, abriu a primeira jaula, onde estava, como se disse, o macho, que pareceu de grandeza extraordinária, e de espantosa e feia catadura. A primeira coisa que fez foi revolver-se na jaula onde vinha metido, e estender a garra e espreguiçar-se todo; bocejou um pedaço, e, deitando para fora dois palmos de língua, esteve a lamber o rosto e os olhos; feito isto, pôs a cabeça fora da jaula e olhou para todos os lados, com os olhos em brasa, vista e adea capazes de causar espanto à própria temeridade. Só D. Quixote o mirava atentamente, desejando vê-lo saltar para fora do carro, e deliberando despedaçá-lo com as suas mãos.

Até aqui chegou o extremo da sua nunca vista loucura; mas o generoso leão, mais comedido do que arrogante, não fazendo caso de ninharias, nem de bravatas, depois de olhar para um e para outro lado, voltou os quartos traseiros para D. Quixote, e com grande fleuma e remanso tornou a deitar-se na jaula; vendo isto, D. Quixote ordenou ao guarda que o irritasse com pauladas, para o fazer sair.

- Isso não faço eu - respondeu o guarda - porque, se o instigo, o primeiro a quem despedaça é a mim. Vossa Mercê, Senhor Cavaleiro, contente-se com o que praticou, que é o mais que se pode dizer em género de valentia, e não queira tentar fortuna segunda vez; o leão tem a porta aberta, está na sua mão sair ou não sair; pois se não saiu agora, não sai nem que estejamos aqui o dia todo; a grandeza de ânimo de Vossa Mercê está já bem declarada; nenhum bravo pelejador, parece-me a mim, é obrigado a mais do que a desafiar o seu inimigo e esperá-lo em campina rasa; e, se o contrário não acode, com ele fica a infâmia, e o que espera ganha a coroa do vencimento

- E verdade - disse D. Quixote -; pois fecha a porta, amigo, e dá-me testemunho, da melhor forma que puderes, do que aqui me viste fazer; convém a saber: de como abriste a porta ao leão, de como eu o esperei, e ele não saiu; tornei-o a esperar, tornou a não sair; e, finalmente, deitou-se. Não devo mais, e fora com as nigromancias, e ajude Deus a razão e a verdade, e fecha, como disse, enquanto eu faço sinal aos fugitivos e ausentes, para que saibam da tua boca esta façanha.

Assim fez o guarda, e D. Quixote, pondo na ponta da lança o lenço com que limpara o rosto da chuva dos requeijões, começou a chamar os que não deixavam de fugir e de voltar a cabeça a cada passo; vendo, porém, Sancho o sinal do lenço branco, disse:

- Que me matem, se não é meu amo que venceu as feras e que nos está a chamar.

Pararam todos e conheceram que era D. Quixote quem fazia os sinais; e, perdendo parte do medo, a pouco e pouco vieram aproximando-se, até que ouviram claramente a voz de D. Quixote. Finalmente, voltaram para o carro, e, quando chegaram, disse D. Quixote para o carreiro:

- Tornai, irmão, a atrelar as vossas mulas e a prosseguir na viagem; e tu, Sancho, dá-lhe dois escudos de ouro, para ele e para o guarda, em recompensa do tempo que por minha causa se demoraram.

- Isso dou eu de muito boa vontade - respondeu Sancho -, mas que é feito dos leões? Estão mortos ou estão vivos?

Então o guarda, minuciosa e pausadamente, contou o fim da contenda, exagerando, como melhor pôde e soube, o valor de D. Quixote, cujo aspecto acobardara o leão, de forma que não quis nem ousou sair da jaula, apesar de ter tido a porta aberta por um bom pedaço; e dizendo ele ao cavaleiro que era tentar a Deus irritar o leão para sair à força, como ele queria que o irritasse, mau grado seu e muito contra sua vontade permitira que se fechasse a porta.

- Que te parece isto, Sancho - disse D. Quixote -; há nigromancias que valham contra a verdadeira valentia? Podem os nigromantes roubar-me a ventura, mas não o ânimo, nem o esforço.

Deu Sancho os escudos, o carreiro pôs as mulas ao carro, o guarda beijou as mãos a D. Quixote, pela mercê recebida, e prometeu-lhe contar aquela façanha ao próprio rei, quando chegasse à corte.

- Pois se acaso Sua Majestade perguntar quem a praticou, dir-lhe-eis que foi o CAVALEIRO DOS LEÕES, que daqui por diante quero mudar nesta denominação a que tive até aqui de Cavaleiro da Triste Figura; e nisto sigo a antiga usança dos cavaleiros andantes, que mudavam de nomes quando queriam, ou quando vinha a propósito.

Seguiu o carro o seu caminho, e D. Quixote, Sancho e o do Verde Gabão continuaram no seu. Em todo este tempo, D. Diogo de Miranda não dissera uma só palavra, atento a contemplar e a notar as falas e gestos de D. Quixote, parecendo-lhe um doido

ajuizado, e um ajuizado que tinha um tanto ou quanto de doido. Não lera ainda a primeira parte da sua história, e se a tivesse lido cessaria o seu pasmo, pois já conheceria o género da sua loucura; mas, como o não sabia, ora o tinha por doido, ora por homem de juízo, porque o que dizia era concertado, elegante e sensato, e o que fazia era disparatado, temerário e tonto; e pensava consigo: Que mais loucura pode haver do que pôr na cabeça um elmo cheio de requeijões, e imaginar que foram os nigromantes que lhe amoleceram o crânio? Que maior temeridade e disparate do que, por força, querer pelejar com leões? Destas imaginações, e deste solilóquio, tirou-o D. Quixote, dizendo-lhe:

- Sem dúvida, Sr. D. Diogo de Miranda, tem-me Vossa Mercê na sua opinião por homem disparatado e louco; e não admira, porque as minhas obras não dão testemunho de outra coisa; mas, com tudo isso, quero que Vossa Mercê advirta que não sou tão doido como pareço. Fica bem a um galhardo cavaleiro, à vista do seu rei, dar numa praça uma lançada feliz num touro bravo; fica bem a um cavaleiro, armado de armas resplandecentes, entrar na liça de alegres justas, diante das damas; e fica bem a todos os cavaleiros, em exercícios militares ou que o pareçam, entreter, alegrar, e, se assim se pode dizer, honrar a corte dos seus príncipes; mas, acima de todos estes, melhor parece um cavaleiro andante, que, pêlos desertos, pelas soledades, pelas encruzilhadas, pelas selvas e pêlos montes, anda procurando perigosas aventuras, com intenção de lhes dar ditoso e afortunado termo, só para alcançar gloriosa e perdurável fama. Melhor parece, digo, um cavaleiro andante socorrendo uma viúva num despovoado, do que um cavaleiro cortesão requestando as donzelas nas cidades. Todos os cavaleiros têm as suas ocupações especiais: o cortesão que sirva as damas, pompeie com ricas librés na corte do seu rei, sustente os cavaleiros pobres com os esplêndidos pratos da sua mesa, combine justas, mantenha torneios, e mostre-se grande, liberal e magnífico, e bom cristão sobretudo, e deste modo cumprirá as suas rigorosas obrigações; mas devasse o cavaleiro andante todos os cantos do mundo, entre nos mais intrincados labirintos, acometa o impossível a cada passo, resista nos ermos paramos aos ardentes raios do Sol de um pleno Estio, e no Inverno áspero ao influxo dos ventos e dos gelos; no o assombrem leões, nem o espantem abantesmas, nem o atemorizem endriagos, que procurar estes, acometer aqueles, e vencê-los a todos, são os seus principais e verdadeiros exercícios. Eu, pois, como me coube em sorte pertencer ao número da cavalaria andante, não posso deixar de empreender tudo aquilo, que me parece que fica debaixo da jurisdição dos meus exercícios; e, assim, o acometer os lees que ainda agora acometi, directamente me tocava, apesar de eu conhecer que era uma temeridade exorbitante; mas não será tão mau que aquele que é valente se exalte a ponto de ser temerário, como que se rebaixe a cobarde; que, assim como é mais fácil vir o pródigo a ser liberal do que o avaro, assim mais fácil é dar o temerário em verdadeiro valente do que o fraco; e nisto de tentar aventuras, creia-me Vossa Mercê, Sr. D. Diogo, antes se perca por carta de mais que por carta de menos; porque soa melhor aos ouvidos de todos: Fulano é temerário, do que Fulano é tímido e medroso.

- Digo, Sr. D. Quixote - respondeu D. Diogo -, que tudo quanto Vossa Mercê diz é nivelado pelo fiel da própria razão, e que entendo que, se as ordenanças e leis da cavalaria andante se perdessem, se encontrariam no peito de Vossa Mercê, como num arquivo e num sacrário; e apressemo-nos, que se faz tarde, e cheguemos à minha aldeia e casa, onde Vossa Mercê descansará do passado trabalho, que, se não foi do corpo, foi do espírito, o que costuma às vezes redundar em cansaço do corpo.

- Tenho esse oferecimento na conta de grande favor e mercê - respondeu D. Quixote.

E, picando mais as esporas, chegaram pelas duas da tarde à aldeia e casa de D. Diogo, a quem D. Quixote chamava o Cavaleiro do Verde Gabão.

 

DO QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE NO CASTELO OU CASA DO CAVALEIRO DO VERDE GABÃO, COM OUTRAS COISAS EXTRAVAGANTES

A casa de D. Diogo de Miranda era vasta, como são sempre as casas da aldeia, com armas esculpidas por cima da porta da rua; a adega era no pátio, e havia muitos cântaros que, por serem de Toboso, acordaram em D. Quixote a memória da encantada e transformada Dulcineia; e, suspirando, sem atender ao que dizia nem ver diante de quem estava, exclamou:

- Ó doces prendas, por meu mal achadas, doces e alegres quando Deus queria.

Ó cântaros tobosinos, que me trouxestes à memória a doce prenda da minha maior amargura!

Ouviu-lhe dizer isto o estudante poeta, filho de D. Diogo, que com sua mãe saíra a recebê-lo, e mãe e filho ficaram suspensos de ver a estranha figura de D. Quixote, que, apeando-se de Rocinante, se dirigiu com muita cortesia à dona da casa a pedir-lhe as mãos para lhas beijar, e D. Diogo disse:

- Recebei, Senhora, com o vosso habitual agrado, o Sr. D. Quixote de La Mancha, que é esse que aí tendes diante de vós, cavaleiro andante, e o mais valente e discreto que o mundo tem.

A senhora, que se chamava D. Cristina, recebeu-o com demonstrações de muito afecto e cortesia, e D. Quixote lhe fez os seus cumprimentos, com razões comedidas e acertadas. Passou-se quase o mesmo com o estudante, a quem D. Quixote, ouvindo-o falar, teve logo por discreto e agudo. Aqui descreve o autor todas as circunstâncias da casa de D. Diogo, pintando-nos o que encerra uma casa de cavaleiro lavrador e rico; mas o tradutor da história entendeu que devia passar em silêncio estas e outras minudências porque não diziam bem com o propósito principal da história, que mais tira a sua força da verdade que das frias digressões. Introduziram D. Quixote numa sala, desarmou-o Sancho, e o nosso herói ficou de calças à valona, e gibão de camurça todo besuntado com a ferrugem das suas armas velhas; cabeção singelo à moda dos estudantes, borzeguins amarelos, e sapatos engraxados. Cingiu a sua boa espada, que lhe pendia de um talim de pele de lobo-marinho, e pôs aos ombros uma capa de bom pano pardo; mas, antes de tudo, lavou-se em cinco ou seis alguidares de água, e a última ainda ficou da cor do soro, graças à guloseima de Sancho, e à compra dos seus negros requeijões, que tão branco puseram a seu amo. Com os referidos atavios, e com gentil donaire e presença, saiu D. Quixote para a sala onde o estudante o estava esperando para o entreter, enquanto se punha a mesa; que, pela vinda de tão nobre hóspede, queria a Sra. d. Cristina mostrar que sabia e podia regalar os que entrassem em sua casa. Enquanto D. Quixote se esteve desarmando, teve D. Lourenço (que assim se chamava o filho de D. Diogo) ocasião de perguntar a seu pai:

- Quem é este cavaleiro Senhor, que Vossa Mercê nos trouxe a casa, que o nome, a figura, e o dizer que é cavaleiro andante, nos tem suspensos a minha mãe e a mim?

- Não sei como te responda, filho - redarguiu D. Diogo -; o que te sei dizer é que o vi fazer grandes coisas de grande doido, e dizer coisas tão discretas que apagam e destroem os seus actos; fala-lhe tu, e toma o pulso ao que sabe, e, já que és discreto, avalia a sua discrição ou a sua loucura, que eu, a dizer a verdade, mais o tenho na conta de doido que de ajuizado.

Com isto, foi D. Lourenço entreter D. Quixote, como já se disse, e, entre outras práticas que os dois tiveram, disse D. Quixote para D. Lourenço:

- O Sr. D. Diogo de Miranda, pai de Vossa Mercê, deu-me notícia da rara habilidade e subtil engenho que Vossa Mercê tem; e, sobretudo, de que é um grande poeta.

- Poeta pode ser - respondeu D. Lourenço - mas grande nem por pensamentos: é verdade que sou um pouco afeiçoado à poesia e a ler os bons autores; mas não se me pode dar o epíteto de grande.

- Parece-me bem essa modéstia - respondeu D. Quxote

- porque é raro o poeta que não seja arrogante, e que se não suponha o maior do mundo.

- Não há regra sem excepção - tornou D. Lourenço - e algum haverá que o seja e o não pense.

- Poucos - respondeu D. Quixote -; mas diga-me Vossa Mercê: que versos traz agora entre mãos, que me disse o Senhor seu Pai que o vê preocupado e pensativo? E se é alguma glosa, eu em glosas sou um pouco entendido, e folgarei de os saber; e, se são de justa literária, procure Vossa Mercê alcançar o segundo prémio, porque o primeiro sempre o conquistam os empenhs e a posição do concorrente; o segundo, esse dá-o simplesmente a justiça; e o terceiro vem a ser segundo, de forma que o primeiro passa a ser terceiro como sucede nas universidades com as cartas de licenciado.

- Até agora - disse consigo D. Lourenço - não te posso ter por doido; vamos adiante. E disse-lhe:

- Parece que Vossa Mercê cursou as escolas? Que ciências estudou?

- A da cavalaria andante - respondeu D. Quixote - que é tão boa como a da poesia, e ainda uns deditos mais.

- Não sei que ciência é essa - replicou D. Lourenço - e não tenho notícia dela.

- É uma ciência - tornou D. Quixote - que encerra em si todas ou a maior parte das ciências do mundo, porque aquele que a professa há-de ser jurisperito, e conhecer as leis da justiça distributiva e comutativa, para dar a cada qual o que é seu e o que lhe pertence; há-de ser teólogo, para saber dar razão da lei cristã que professa, clara e distintamente, sempre que lha pedirem; tem de ser médico, e principalmente ervanário, para conhecer, no meio dos despovoados e desertos, as ervas que têm a virtude de sarar as feridas, que não há-de estar o cavaleiro andante a cada arranhadura a procurar quem lha cure; tem de ser astrólogo, para ver, pelas estrelas, quantas horas da noite passaram, e em que parte do mundo está; tem de saber matemática, porque a cada instante se lhe oferecerá ensejo de lhe ser necessária; e pondo de parte o precisar de ser adornado de todas as virtudes teologais e cardeais, descendo a outras minudências, deve saber nadar, como dizem que nadava o peixe Nicolau; tem de saber ferrar um cavalo e consertar a sela ou o freio; além disso, falando em coisas mais altas, há-de guardar fidelidade a Deus e à sua dama; deve ser casto nos pensamentos, honesto nas palavras, liberal nas obras, valente nos feitos, sofrido nos trabalhos, caritativo com os necessitados, e, finalmente, mantenedor da verdade, ainda que o defendê-la custe a vida. De todas estas grandes e mínimas partes se compõe um cavaleiro andante; e veja Vossa Mercê, Sr. D. Lourenço, que importante ciência é a que eles estudam, e se se lhe podem comparar as mais estimadas que se aprendem nos ginásios ou nas escolas.

- Se assim é - replicou D. Lourenço -, digo que essa ciência a todas se avantaja.

- Se assim é?! - perguntou D. Quixote.

- Quero dizer - tornou D. Lourenço - que duvido de que houvesse e de que haja agora cavaleiros andantes adornados de tantas virtudes.

- Muitas vezes disse - respondeu D. Quixote - o que torno a dizer agora: que a maior parte da gente imagina que não houve cavaleiros andantes; e por me parecer que, se o Céu lhes não dá a entender milagrosamente que os houve e que os há, qualquer trabalho que se faça será baldado, como muitas vezes a experiência mo demonstrou, não quero demorar-me agora em dissipar o seu erro, que é erro de outros muitos, e limito-me a rogar ao Céu que dele o tire, e lhe mostre quão proveitosos e necessários foram ao mundo os cavaleiros andantes, nos séculos passados, e quão úteis seriam no presente, se se usassem; mas triunfam agora, por pecado das gentes, a preguiça, a ociosidade, a gula e os regalos.

- Lá se nos escapou o nosso hóspede - pensou D. Lourenço - mas, com tudo isso, é um louco esquisito.

Aqui deram fim à sua prática, porque os chamaram para jantar.

Perguntou D. Diogo a seu filho o que tirara a limpo do engenho do seu hóspede.

- E um louco cheio de intervalos lúcidos - respondeu D. Lourenço.

Foram para o jantar, que foi como D. Diogo dissera no caminho que o costumava dar aos seus convidados: limpo saboroso e farto; mas o que mais encantou D. Quixote foi o maravilhoso silêncio que havia em toda a casa, que não parecia senão um convento de Cartuxos. Levantada a mesa, dadas graças a Deus, e água às mãos, D. Quixote pediu afincadamente a D. Lourenço que dissesse os versos da justa literária; ao que ele respondeu:

- Por não parecer que sou daqueles poetas, que, quando lhes pedem que recitem os seus versos os negam, e quando lhos não pedem os vomitam, direi a minha glosa, de que não espero prémio algum, que só fiz para exercitar o meu engenho.

- Um discreto amigo - observou D. Quixote - era de opinião que se não cansasse ninguém em glosar versos, e a razão dizia ele que era, que nunca podia a glosa chegar ao mote, e que a maior parte das vezes ia a glosa fora da intenção e do propósito do que pedia o que se glosava; e, além disso, que as leis da glosa eram demasiadamente estreitas, e que não sorriam interrogações, nem diz nem direi, nem substantivar verbos, nem mudar o sentido, com outros atilhos e enleios, que amarram o que glosa, como Vossa Mercê deve saber.

- Realmente, Sr. D. Quixote - acudiu D. Lourenço -, quando julgo apanhar Vossa Mercê num mau latim continuado, escorrega-me nas mãos como uma enguia.

- Não entendo - respondeu D. Quixote.

- Eu me explicarei; e por agora ouça Vossa Mercê o mote e a glosa, que dizem desta maneira:

Se o meu «foi” tornasse a ser, sem eu ter que esp'rar «será”, ou viesse o tempo já do que está pra acontecer...

Alfim, como tudo passa,

passou o bem que me deu

a fortuna nada escassa,

mas que nunca me volveu,

por mais que eu peça, ou que faça.

Fortuna, bem podes ver

que já é longo o meu sofrer;

faz-me outra vez ditoso, que eu seria venturoso se o meu «foi” tornasse a ser.

Só quero um gosto, uma glória, uma palma, um vencimento, um triunfo, uma vitória,

tornar ao contentamento

que me é pesar na memória. Fortuna, leva-me já, e temperado estará todo o rigor do teu fogo, sobretudo sendo logo, sem eu ter cfue esp'rar «será”.

Sei que sou indeferido, pois tornar o tempo a ser, depois de uma vez ter sido, não há na Terra poder que a tanto se haja estendido. Corre o tempo; leve dá seu voo, e não voltará, e erraria quem pedisse, ou que o tempo já partisse, ou viesse o tempo já.

Viver em perplexa vida, ora esperando, ora temendo, é morte mui conhecida, e é muito melhor morrendo buscar para a dor saída. Eu preferia morrer, mas não o devo querer, pois com discurso melhor me dá a vida o temor do ue está pra acontecer.

Acabando D. Lourenço de dizer a sua glosa, D. Quixote ergueu-se, e com um grande brado, travando da mão direita de D. Lourenço, exclamou:

- Vivam os altos Céus! Generoso mancebo, sois o melhor poeta do orbe, e merecíeis ser laureado, não por Chipre ou Gaeta, como disse um vate, benza-o Deus, mas pelas academias de Atenas, se existissem, e pelas que hoje existem de Paris, Bolonha e Estrasburgo. Praza ao Céu que aos juizes que vos tirarem o primeiro prémio, Febo os asseteie, e as musas nunca lhes franqueiem os umbrais das casas! Dizei-me, Senhor, peço-vos, alguns versos maiores, que quero tomar de todo em todo o pulso ao vosso admirável engenho.

Não é bom dizer o autor que muito folgou D. Lourenço com os elogios de D. Quixote, apesar de o ter por louco? O força da adulação, aonde te estendes, e que dilatados limites tem a tua jurisdição agradável! Confirmou D. Lourenço esta verdade, pois condescendeu com o desejo de D. Quixote, recitando-lhe um soneto, feito à fábula ou história de Píramo e Tisbe.

SONETO

Rompe o muro a donzela tão formosa, que abriu de Píramo o galhardo peito:

parte o Amor de Chipre, e vai direito a ver a quebra estreita e prodigiosa.

Fala o silêncio ali, porque não ousa entrar a voz em tão estreito estreito;

as almas sim, que amor soe com efeito facilitar a mais difícil cousa.

Desvairou-se o desejo, e o amor tamanho

da imprudente virgem solicita

a morte por seu gosto: olhai que história!

Que a ambos num só ponto, ó caso estranho! os mata, e os sepulta e os ressuscita uma espada, um sepulcro, uma memória.

- Bendito seja Deus - disse D. Quixote, depois de ter ouvido o soneto de D. Lourenço - que afinal vi, entre os infinitos poetas consumidos, que por aí há, um poeta consumado, como é Vossa Mercê, Senhor meu, que assim mo revela o artifício deste soneto.

Quatro dias esteve D. Quixote regaladíssimo em casa de D. Diogo, ao fim dos quais lhe pediu licença para se ir embora, dizendo-lhe que lhe agradecia a mercê e o bom tratamento que em sua casa recebera; mas que, por não parecer bem darem os cavaleiros andantes muitas horas ao ócio e ao regalo, queria ir cumprir o seu ofício, procurando as aventuras, em que abundava, segundo lhe diziam, aquela terra; e assim esperava entreter o tempo até chegar o dia das justas de Saragoça, que era o seu rumo direito; e que primeiro havia de entrar na cova de Montesinos, de que se contavam tantas e tão admiráveis coisas por aqueles contornos, sabendo e inquirindo o nascimento e verdadeiro manancial das sete lagoas, chamadas vulgarmente de Ruidera. D. Diogo e seu filho louvaram-lhe a honrosa determinação, e disseram-lhe que levasse da sua casa e fazenda o que lhe aprouvesse, que a isso os obrigava o seu valor e honroso mister.

Chegou, enfim, o dia da partida, tão alegre para D. Quixote como triste e aziago para Sancho Pança, que se dava muito bem com a fartura da casa de D. Diogo, e recusava tornar para a fome que se usa nas florestas e despovoados, e à estreiteza dos seus mal providos alforges; com tudo isso, encheu-os e atochou-

-os do mais necessário que lhe pareceu, e, ao despedir-se, disse D. Quixote a D. Lourenço:

- Não sei se lembrei já a Vossa Mercê, e se lembrei, torno-o a lembrar, que, quando Vossa Mercê quiser poupar caminhos e trabalhos para chegar ao inacessível cume do templo da Fama, não tem mais que fazer senão deixar de parte a senda da poesia, um pouco estreita, e tomar a estreitíssima da cavalaria andante, que basta para o elevar a imperador, enquanto o Diabo esfrega um olho.

Com estas razões acabou D. Quixote de fechar o processo da sua loucura, e mais com as que juntou, dizendo:

- Sabe Deus se eu quereria levar comigo o Sr. D. Lourenço, para lhe mostrar como se perdoa aos humildes, e se derrubam e se flagelam os soberbos, virtudes inerentes à profissão que eu sigo; mas, visto que o não pede a sua pouca idade, nem o consentem os seus louváveis exercícios, limito-me a advertir a Vossa Mercê, que, sendo poeta, poderá ser famoso, se se guiar mais pelo parecer alheio do que pela própria opinião; porque não há pai nem mãe a quem pareçam feios os filhos, e nos que são filhos do entendimento ainda mais corre este engano.

De novo se admiraram o pai e o filho dos contraditórios discursos de D. Quixote, ora discretos, ora disparatados, e da teima enérgica em que estava de ir procurar as suas desventuradas aventuras, que considerava como alvo e fim dos seus desejos. Reiteraram-se os oferecimentos, e tomada a devida vénia à senhora do castelo, partiram D. Quixote e Sancho, montados no Rocinante e no ruço.

 

ONDE SE CONTA A AVENTURA DO PASTOR ENAMORADO, COM OUTROS

SUCESSOS NA VERDADE GRACIOSOS

Pouco se afastara D. Quixote da aldeia de D. Diogo, quando se encontrou com dois estudantes e dois lavradores, que vinham todos quatro montados em jumentos. Um dos estudantes trazia em feitio de mala um lenço de bocaxim, em que embrulhara uma pouca de roupa branca e dois pares de meias de burel negro: o outro, só duas espadas pretas de esgrima, emboladas. Os lavradores levavam para a sua aldeia vários objectos, que davam indício e sinal de virem de alguma grande povoação, onde os tinham comprado; e tanto estudantes como lavradores caíram na mesma admiração em que caíam todos os que viam pela primeira vez D. Quixote, e morriam por saber que homem seria aquele, tão fora do uso dos outros. D. Quixote, depois de saber o caminho que levavam, que era o mesmo que o seu, ofereceu-se para os acompanhar, e pediu-lhes que demorassem o passo, porque mais andavam os jumentos do que o seu cavalo; e, para os obrigar, em breves razões lhes disse quem era, e o seu ofício e profissão de cavaleiro andante, que ia à cata de aventuras por todas as partes do mundo. Contou-lhes que se chamava D. Quixote de La Mancha, por apelido o Cavaleiro dos Leões; tudo isto para os lavradores era grego ou gerigonça, mas não para os estudantes; apesar disso, contemplavam-no com admiração e respeito, e um deles disse-lhe:

- Se Vossa Mercê, Senhor Cavaleiro, não leva caminho determinado, como não costumam levar os que buscam aventuras, venha Vossa Mercê connosco, e verá uma das melhores e mais ricas bodas, que até hoje se têm celebrado na Mancha e em muitas léguas ao redor.

Perguntou-lhe D. Quixote se eram de algum príncipe.

- Não, não - respondeu o estudante -; são de um lavrador e de uma lavradeira; ele o mais rico de toda esta terra, ela a mais formosa que os homens têm visto; e o aparato com que se hão-de fazer é extraordinário e novo, porque se celebram num prado que fica junto da aldeia da noiva, a quem chamam por excelência Quitéria, a formosa, e o desposado chama-se Camacho, o rico; ela de idade de dezoito anos, e ele de vinte e dois, ambos iguais em tudo, ainda que alguns curiosos, que sabem de cor a linhagem de toda a gente, querem dizer que a da formosa Quitéria se avantaja à de Camacho; mas já se não olha a isso, que as riquezas podem soldar muitas quebras. Efectivamente, o tal Camacho é generoso, e lembrou-se de enramar e toldar todo o prado por ali arriba, de forma que o Sol há-de-se ver em trabalhos, se quiser visitar a verde relva, de que está recoberto o cho. Haverá muitas danças, tanto de espadas como de castanholas, que há no povo gente muito perita nesses exercícios; de sapateadores nada digo, que nesse género juntou ele o poder do mundo; mas nenhuma das coisas referidas, nem das que deixei de referir, há-de tornar tão memoráveis estas bodas, como as que imagino que nelas fará o despeitado Basílio. Esse Basílio é um zagal, vizinho do mesmo povo, que morava paredes meias com os pais de Quitéria, o que deu ensejo ao Amor de renovar no mundo os já olvidados afectos de Píramo e Tisbe, porque Basílio namorou-se de Quitéria, desde os seus tenros e primeiros anos, e ela foi correspondendo ao seu desejo, tanto que muita gente se entretinha na aldeia em falar nos amores das duas crianças. Foi crescendo a idade, e o pai de Quitéria resolveu-se enfim a proibir a Basílio a entrada em sua casa, e para se livrar de receios e suspeitas, tratou de casar sua filha com o opulento Camacho, porque lhe não parecia bem casá-la com Basílio, menos favorecido da fortuna que da natureza, pois, para se dizer a verdade sem assomos de inveja, é ele o mais ágil mancebo que conhecemos, atirando a barra como ninguém, grande jogador de péla, lutador extremado, corre como um gamo, salta mais que uma cabra; canta como uma calhandra, toca guitarra que parece que a faz falar, e sobretudo joga a espada como o mais pintado.

- Lá por essa prenda - observou D. Quixote - merecia esse mancebo não só casar com a formosa Quitéria, mas com a própria rainha Genebra, se hoje fosse viva, apesar de Lançarote, e de todos os que o quisessem estorvar.

- Vão lá falar nisso a minha mulher - acudiu Sancho Pança, que até aí fora calado -; quer ela que cada um case com a sua igual, agarrando-se ao rifão que diz: cada ovelha com a sua parelha. Eu então não desejava senão que o bom desse Basílio, a quem já me vou afeiçoando, casasse com a Sra. Quitéria, e má peste mate os que estorvam que se casem os que se querem bem.

- Se casassem todos os que se querem - acudiu D. Quixote - tirava-se aos pais a escolha e a jurisdição de casarem os seus filhos com quem devem e quando querem, e, se ficasse à vontade das filhas escolher os maridos, haveria tal que escolheria o criado do pai, e outra o que viu passar na rua, no seu entender bizarro e jeitoso mancebo, ainda que fosse um espadachim valdevinos: que o amor e a afeição facilmente cegam os olhos do entendimento, tão necessários para escolher estado; e no do matrimónio é muito perigoso o erro, e é mister grande tento, e particular favor do Céu para acertar. Quer uma pessoa empreender uma larga viagem, e, se é prudente, antes de se pôr a caminho busca alguma companhia segura e aprazível. Pois porque não fará o mesmo o que há-de caminhar toda a vida até ao paradeiro da morte, quando demais a mais a pessoa escolhida tem de ser sua companheira de cama e mesa, como acontece à mulher com seu marido? Uma esposa não é mercadoria que, depois de comprada, ainda se pode trocar ou rejeitar; é um acidente inseparável, que dura a vida toda; é um laço que, uma vez atado ao pescoço, se transforma em nó górdio, que, se não for cortado pela garra da morte, não há meio de desatar. Muitas mais coisas poderia dizer neste assunto, se o não estorvara o desejo que tenho de saber se o Senhor Licenciado tem mais alguma coisa que narrar da história de Basílio.

- Não tenho mais que dizer - acudiu o estudante, bacharel, ou licenciado, como D. Quixote lhe chamou - senão que, desde que Basílio soube que a formosa Quitéria casava com o opulento Camacho nunca mais o viram rir, nem dizer coisa com coisa, e anda sempre triste e pensativo, falando sozinho, dando assim claros e certos sinais de que se lhe ourou o juízo. Come pouco, e pouco dorme, e o que come são frutas, e dorme no campo, se dorme, em cima da terra dura, como animal bravio; olha, de quando em quando, para o céu, e outras vezes crava os olhos no chão, com tal embevecimento, que não parece senão estátua vestida, a que o ar move a roupa. Enfim, dá tais mostras de angustiado, que receamos todos os que o conhecemos, que proferir a formosa Quitéria amanhã o sim fatal, seja o sinal da sua morte.

- Deus o fará melhor - acudiu Sancho -, quem dá o mal, dá o remédio; ninguém sabe o que está para vir: de hoje até amanhã não me doa a cabeça, e numa hora cai a casa; tenho visto chover e fazer sol ao mesmo tempo; a gente deita-se sã e acorda doente; e digam-me se há porventura quem se gabe de ter travado a roda da fortuna; entre o sim e o não da mulher não me atrevia eu a meter uma ponta de alfinete, porque não caberia; queira Quitéria de coração e deveras a Basílio, e pode este contar com um saco de ventura, que o amor, pelo que tenho ouvido dizer, olha de tal maneira, que o cobre lhe parece ouro.

- Aonde vais parar, Sancho, amaldiçoado sejas - disse D. Quixote -, que em tu começando a enfiar provérbios e contos, só te pode apanhar o Diabo que te leve! Diz-me, animal, que sabes tu de rodas, e de alfinetes, nem de coisa nenhuma?

- Pois se me não entendem - respondeu Sancho -, não admira que as minhas sentenças sejam tidas por disparates; mas, não importa, eu cá me entendo, e sei que não disse asneira; mas Vossa Mercê, Senhor meu, é sempre friscal dos meus ditos e das minhas acções.

- Fiscal é que tu queres dizer - acudiu D. Quixote - e não friscal, prevaricador de boa linguagem, que Deus te confunda!

- Não se agonie Vossa Mercê comigo - tornou Sancho - que me não criei na corte, nem estudei em Salamanca, para saber se aumento ou tiro alguma letra aos meus vocábulos. Valha-me Deus! Como se há-de obrigar a um saiaguês a falar como um toledano, se há toledanos que falam como Deus é servido?

- Sem dúvida - acudiu o licenciado -, não podem falar tão bem os que se criam nas lojas de Zocodober, como os que passeiam todo o santíssimo dia no Claustro da Sé, e contudo são toledanos todos. A linguagem pura e clara falam-na só os cortesãos discretos, ainda que tenham nascido em Majalaonda;

disse discretos, porque nem todos o são, e a discrição é a gramática da boa linguagem, que se aprende com o uso. Eu, Senhores, por meus pecados, estudei Cânones em Salamanca, e gabo-me de dizer as minhas razões em frase clara, chã e apropriada.

- Se não vos gabásseis mais de saber manejar a espada preta do que a língua - acudiu o outro estudante -, serieis o primeiro nos actos, em vez de terdes sido o último.

- Olhai, bacharel - respondeu o licenciado -, que tendes erradíssima opinião a respeito da destreza na espada, supondo-a uma prenda inútil.

- Não é opinião, é verdade assente - redarguiu o bacharel, que se chamava Corchuelo - e se quereis que vo-lo mostre com a experiência, trazeis espada, o sítio é cómodo, eu tenho pulso e força, que, juntos ao meu ânimo, que não é pouco, vos farão confessar que me não engano. Apeai-vos, e usai dos vossos círculos, dos vossos ângulos, e da vossa ciência, que eu conto fazer-vos ver estrelas ao meio-dia, com a minha destreza, e espero em Deus que ainda esteja para nascer o homem que me faça voltar as costas, e que não há ninguém que eu não deite ao chão.

- Lá nisso de voltar costas no me meto - redarguiu o esgrimidor - mas o que pode suceder é que, onde puserdes o pé, vos cavem a sepultura.

- Vamos a ver isso - respondeu Corchuelo. E, apeando-se com presteza do burro, tirou com fúria uma das espadas que o licenciado levava.

- Não há-de ser assim - acudiu D. Quixote -, que eu quero ser mestre desta esgrima e juiz desta questão, há muito tempo pendente.

E, apeando-se de Rocinante, e agarrando na lança, pôs-se no meio do caminho, quando já o licenciado, com gentil donaire de corpo, e em posição de esgrima, ia contra Corchuelo, que veio para ele, lançando, como se diz, chamas pêlos olhos. Os outros dois lavradores, que iam na companhia, sem se apearem dos jericos, serviam de espectadores da mortal tragédia. As estocadas e cutiladas de Corchuelo eram inúmeras; pareciam um granizo de golpes. Arremetia como um leão furioso, mas saía-lhe ao encontro o licenciado com a ponta embolada do florete, fazendo-lha beijar como se fosse relíquia, porém com menos devoção.

Finalmente, o licenciado contou-lhe a estocadas todos os botões da batina que trazia vestida, fazendo-lhe em tiras o pano; tirou-lhe o chapéu duas vezes, e cansou-o de forma que o bacharel, de despeito, cólera e raiva, agarrou na espada pêlos copos, e atirou-a para longe com tanta fúria, que a arrojou a três quartos de légua, como afirmou depois um dos lavradores assistentes que a foi buscar. Sentou-se Corchuelo fatigadíssimo, e Sancho disse-lhe, chegando-se a ele:

- Por minha fé Senhor Bacharel, se Vossa Mercê quer tomar o meu conselho, daqui por diante não desafie ninguém para esgrimir, mas sim para lutar ou atirar a barra, pois para isso tem idade e forças, e destes a que chamam destros esgrimidores ouvi dizer que metem a ponta de um espadim pelo fundo de uma agulha.

- Contento-me - respondeu Corchuelo - com o ter caído da minha burra, e ter-me mostrado a experiência a verdade de que tão longe estava.

E, levantando-se, abraçou o licenciado, e ficaram ainda mais amigos do que dantes, e não quiseram esperar o lavrador que tinha ido à busca da espada, por lhes parecer que se demoraria muito, e resolveram seguir o seu caminho, para chegarem cedo à aldeia de Quitéria, de onde todos eram.

Foi-lhes descrevendo o licenciado as excelências do jogo da espada, com tantas razões, e com tantas figuras e demonstrações matemáticas, que todos ficaram convencidos da utilidade da ciência, e Corchuelo reduzido da sua pertinácia.

Anoitecera; mas, antes que chegassem, pareceu-lhes ver diante da povoação um céu cheio de inúmeras e resplandecentes estrelas. Ouviram também confusos e suaves sons de instrumentos, como de flautas, pandeiros, saltérios, pífaros; e, quando chegaram perto, notaram que as árvores de uma ramada, que tinham posto à mão, à entrada da aldeia, estavam cheias de luminárias, que o vento não ofendia, porque soprava tão manso, que nem força tinha para agitar as folhas do arvoredo. Os músicos eram os que deviam regozijar a boda, que andavam em diversas quadrilhas por aquele agradável sítio, uns bailando, outros cantando, e outros tocando a variedade dos referidos instrumentos.

Efectivamente, não parecia senão que por todo aquele prado pulava o contentamento e a alegria.

Outros muitos se ocupavam em levantar andaimes, de onde pudessem ver comodamente ao outro dia as representações e danças que se haviam de fazer naquele sítio, consagrado à solenização das bodas do opulento Camacho e das exéquias de Basílio. Não quis entrar na aldeia D. Quixote, apesar de lho pedirem, tanto o lavrador como o bacharel; mas deu por desculpa, no seu entender mais que bastante, ser costume dos cavaleiros andantes dormirem nos campos e florestas, antes que nos povoados, ainda que fosse debaixo de áureos tectos; e com isto, afastou-se um pouco do caminho, muito contra vontade de Sancho, que se lembrava do bom alojamento que tivera no castelo ou casa de D. Diogo.

 

ONDE SE CONTAM AS BODAS DE CAMACHO, O RICO, E O SUCESSO DE BASíLiO, O POBRE

Apenas a branca Aurora dera lugar a que o lúcido Febo, com o ardor dos seus quentes raios, enxugasse as líquidas pérolas dos seus cabelos de ouro D. Quixote, sacudindo o torpor dos seus membros, pôs-se a pé e chamou o seu escudeiro Sancho, que ainda ressonava, e, antes de o despertar, exclamou:

- Ó tu, bem-aventurado mais do que todos os que vivem na face da Terra, pois, sem teres inveja, nem seres invejado, dormes com tranquilo espírito, sem te perseguirem nigromantes, nem sobressaltarem nigromandas. Dorme repito, e repetirei cem vezes, sem te inspirarem continuada vigília zelos da tua dama, nem te desvelarem pensamentos de pagar dívidas, nem do que hás-de fazer para comer no dia seguinte, tu e a tua pequena e angustiada família, nem a ambição te inquieta, nem a vã pompa do mundo te fatiga, pois os limites dos teus desejos não se estendem além do teu jumento que o da tua pessoa carrega nos meus ombros, contrapeso e carga que puseram a natureza e o costume aos amos. Dorme o criado, está o amo de vela, pensando como o há-de sustentar e melhorar, e fazer-lhe mercês. A angústia de ver que o céu se faz de bronze, sem acudir à terra com o conveniente orvalho, não aflige o criado, aflige o amo, que há-de sustentar na esterilidade e na fome o que o serviu na fertilidade e na fartura.

A nada disto respondeu Sancho, porque dormia; nem tão cedo despertaria, se D. Quixote com o conto da lança o não acordasse.

Despertou, enfim, sonolento e pesaroso, e, voltando o rosto para todos os lados, disse:

- De acolá daquela ramada, se me não engano, sai um cheiro mais de torresmos que de juncos e de tomilhos; bodas que por tais cheiros começam, benza-me Deus, que me parece que hão-de ser fartas e generosas.

- Acaba com isso, glutão - tornou D. Quixote -; vem daí, e vamos assistir a esses desposórios, para ver o que faz o desdenhado Basílio.

- Que faça o que quiser - respondeu Sancho -; não fosse ele pobre e veria como desposava logo Quitéria. Então isto é só não ter nem um chavo, e querer casar nas nuvens! Por minha fé, Senhor, sou de parecer que o pobre deve contentar-se com o que topar, e não andar à procura de pérolas nos vinhedos. Eu aposto um braço em como Camacho pode sepultar Basílio debaixo de montes de dinheiro; e se isto assim é, como deve ser, bem tola seria Quitéria em largar as jóias e galas, que lhe deve ter dado e lhe pode dar Camacho, para escolher o atirar a barra e o jogar da espada preta de Basílio. Por um bom tiro de barra, ou por uma gentil estocada, não dão na taberna nem um quartilho de vinho. Habilidades e prendas que não são vendáveis, tenha-as o conde Dirlos; mas, quando as tais prendas caem em quem tem bom dinheiro, queria eu que a minha vida fosse como elas parecem. Com bom cimento se pode levantar um bom edifício, e o melhor cimento do mundo é o dinheiro.

- Por Deus, Sancho - acudiu D. Quixote -, acaba a tua arenga, que tenho para mim que, se te deixassem concluir todos os aranzéis que a cada passo começas, não te ficaria tempo nem para comer, nem para dormir, que o gastarias todo em falar.

- Se Vossa Mercê tivesse boa memória - replicou Sancho - deveria lembrar-se dos capítulos do nosso contrato, antes de sairmos de casa esta última vez; um deles foi que me havia de deixar falar à minha vontade, contanto que não fosse contra o próximo, nem contra a autoridade de Vossa Mercê, e até agora parece-me que o não violei.

- Não me recordo de semelhante capítulo, Sancho - respondeu D. Quixote - e, ainda que assim seja, quero que te cales e que venhas, que já os instrumentos que esta noite ouvimos voltam a alegrar os vales, e sem dúvida os desposórios hão-de celebrar-se na frescura da manhã, e não no calor da tarde.

Fez Sancho o que seu amo lhe mandava, e, pondo a sela em Rocinante e a albarda no ruço, montaram ambos, e passo a passo foram entrando pela ramada. A primeira coisa que Sancho viu foi uma vitela inteira, metida num espeto que era um tronco de árvore, e no fogo onde se havia de assar ardia um monte de lenha, e seis olhas que estavam à roda da fogueira não se tinham feito na panela comum das outras olhas, mas em seis tinas, que em cada uma cabia uma imensidade de carne; por isso, também dentro delas havia carneiros inteiros, que nem se viam, exactamente como se fossem uns borrachos; as lebres esfoladas, e as galinhas depenadas que estavam suspensas das árvores, para irem para o caldo, não tinham conta; as aves e caça de vário género eram infinitas, penduradas também das árvores, para esfriar. Contou Sancho mais de sessenta odres, de mais de duas arrobas cada um, e todos cheios, como depois se viu, de vinhos generosos; havia rumas de pão alvíssimo, como costuma haver montes de trigo nas eiras; os queijos, postos como ladrilhos empilhados, formavam uma muralha, e duas caldeiras de azeite, maiores que as de uma tinturaria, serviam para frigir coisas de massa, que com duas valentes pás se tiravam para fora e iam para dentro de outra caldeira de mel preparado, que ficava próxima. Os cozinheiros e cozinheiras passavam de cinquenta, todos asseados, diligentes e satisfeitos. No dilatado ventre da vitela estavam doze pequenos leitões, que, cozidos por cima, serviam para lhe dar sabor e fazê-la tenra; as várias especiarias parecia que se não tinham comprado aos arráteis, mas às arrobas, e estavam francas numa grande arca.

Finalmente, o aparato da boda era rústico, mas tão abundante, que podia sustentar um exército.

Para tudo Sancho Pança olhava, e afeiçoava-se a tudo. Primeiro renderam-no e cativaram-lhe o desejo as olhas de que ele tomaria uma malga de muito bom grado; depois prenderam-lhe a vontade os odres; e ultimamente as massas e doces; afinal, sem poder mais, chegou-se a um dos solícitos cozinheiros, e, com razões corteses e famintas, rogou-lhe que lhe deixasse molhar um pedaço de pão numa daquelas olhas.

- Irmão - respondeu-lhe o cozinheiro -, neste dia, graças ao opulento Camacho, não tem a fome jurisdição; apeai-vos, vede se há por aí uma concha, escumai uma ou duas galinhas, e que vos faça muito bom proveito.

- Não vejo nenhuma - respondeu Sancho.

- Esperai! - tornou o cozinheiro. - Mal pecado! Que melindroso e acanhado que vós sois!

E, dizendo isto, agarrou numa caçarola, e, metendo-a numa das tinas, tirou para fora três galinhas e dois patos, e disse para Sancho:

- Aqui tendes, amigo, e almoçai, enquanto não chega hora de jantar.

- Não tenho onde a despejar - respondeu Sancho.

- Pois levai a caçarola - tornou o cozinheiro -, que a riqueza e satisfação de Camacho a tudo suprem.

Enquanto se passava isto com Sancho, estava D. Quixote vendo entrar pela ramada doze lavradores, montados em doze formosíssimas éguas, com ricos e formosos jaezes campestres e muitos guizos nos peitorais, e todos vestidos de gala e de festa, que em concertado tropel deram muitas carreiras pelo prado, com alegre algazarra e gritaria, dizendo:

- Vivam Camacho e Quitéria, ele tão rico como ela é formosa, e ela a mais formosa do mundo. Ouvindo isto, disse D. Quixote consigo:

- Bem se mostra que estes não viram Dulcineia del Toboso, que, se a tivessem visto, teriam mais tento nos louvores desta sua Quitéria.

Dali a pouco, principiaram a entrar, por várias partes da ramada, muitas e diferentes danças, entre as quais vinha uma de espadas, de vinte e quatro zagais, de galhardo parecer e brio, todos vestidos de fino e alvíssimo pano, tendo na cabeça lenços de seda, lavrados de várias cores; e ao que os guiava, que era um ágil mancebo, perguntou um dos das éguas se se tinha ferido algum dos dançarinos.

- Por agora, bendito seja Deus, ninguém se feriu; todos estamos sãos.

E logo principiou a enredar-se com os outros companheiros em tantas voltas, e com tanta destreza, que, ainda que D. Quixote estava acostumado a ver semelhantes danças, nenhuma lhe parecera tão bem como aquela. Também lhe agradou outra, que entrou, de donzelas formosíssimas, de catorze a dezoito anos, todas vestidas de uma fazenda verde, com os cabelos em parte entrançados, e em parte soltos, mas todos tão louros, que podiam competir com os raios do Sol, e engrinaldados de jasmins, rosas, amaranto, e madressilva. Guiava-as um velho venerável, e uma matrona anciã: mas mais ligeiros e desembaraçados do que prometiam os seus anos. Ao som de uma gaita de Zamora, dançavam, mostrando-se as melhores bailarinas do mundo, com a ligeireza nos pés e a honestidade nos olhos. Em seguida, entrou outra dança de artifício, destas a que chamam faladas. Era de oito ninfas, repartidas em duas fileiras, uma guiada pelo deus Cupido, e a outra pelo Interesse: aquele com asas, arco, setas e aljava; este vestido de ouro e seda de ricas e diversas cores. As ninfas que seguiam o Amor traziam os seus nomes escritos nas costas, em pergaminho branco e letras maiúsculas. Poesia era o título da primeira, da segunda Discrição, da terceira Boa linhagem, da quarta Valentia. Do mesmo modo vinham designadas as que seguiam o Interesse, sendo Liberalidade a primeira Dádiva a segunda Tesouro a terceira, e a quarta Posse pacífica. Adiante de todos vinha um castelo de madeira, puxado por quatro selvagens, todos vestidos de hera e de linho verde tanto ao natural, que iam assustando Sancho. Na frontaria do castelo, e em todas as quatro fachadas, lia-se: Castelo do bom recato. A música era composta de quatro destros tangedores de tamboril e flauta. Dava princípio à dança Cupido, e, depois de dois passos, erguia os olhos e frechava o arco contra uma donzela que aparecia nas ameias do castelo, e a quem dizia desta maneira:

Eu sou o deus poderoso

no firmamento e na Terra,

e no vasto mar undoso

e em tudo o que o abismo encerra

no seu báratro espantoso.

Nunca soube o que era medo:

tenho o mágico segredo de conquistar o impossível, e em tudo quanto é possível mando, tiro, ponho e vedo.

Acabou a copla, disparou uma frecha para o alto do castelo, e retirou-se para o seu posto.

Saiu logo o Interesse, e dançou outros dois passos; calaram-se os tamboris e ele disse:

Sou quem pode mais que Amor, mas é o Amor que me guia. Eu sou da estirpe maior, que o Céu cá no mundo cria, mais conhecida e melhor.

Sou o Int'resse, com quem poucos soem obrar bem;

é milagre o dispensar-me, e a ti venho consagrar-me pra sempre jamais, ámen!

Retirou-se o Interesse, e deu um passo em frente a Poesia, que, depois de ter dançado como os outros, pondo os olhos na donzela do castelo, disse:

Em mil conceitos discretos a dulcíssima Poesia a alma cheia de afectos, vivos, suaves, te envia, envolta entre mil sonetos.

Se acaso te não enfado com meu porfiar, teu fado, que de inveja a muitos dana, levantarei de Diana sobre o disco prateado.

Afastou-se a Poesia.

Do lado do Interesse saiu a Liberalidade, que, depois de dançados os seus passos, disse:

Chamam Liberalidade ao dar, quando se recusa a ser prodigalidade e ao contrário ser, que acusa tíbia e tímida vontade.

Mas eu, por te engrandecer, hoje pródiga hei-de ser, que, se é vício, é vício honrado, e de peito enamorado que no dar se deixa ver.

Deste modo saíram e se retiraram todas as figuras das duas esquadras, e cada uma dançou os seus passos, e disse os seus versos, alguns elegantes e alguns ridículos, e D. Quixote só ficou de memória (que a tinha grande) com os já referidos, e logo se mesclaram todos, fazendo e desfazendo laços, com gentil donaire e desenvoltura; e, quando passava o Amor por diante do castelo, disparava por alto as suas frechas, mas o Interesse arrojava-lhe alcanzias douradas.

Finalmente, depois de ter dançado um grande espaço, o Interesse tirou uma bolsa, feita da pele de um enorme gato romano, que parecia estar cheia de dinheiro, e, arrojando-a ao castelo, desconjuntaram-se as tábuas com o golpe, e caíram, deixando a donzela sem defesa alguma.

Chegou o Interesse com a sua comitiva, e, deitando-lhe uma grande cadeia de ouro ao pescoço, deram mostras de a prender, rendê-la e cativá-la; vendo isto o Amor e os seus companheiros, quiseram tirar-lha, e todas as demonstrações que se faziam eram ao som dos tamboris, bailando e cantando concertadamente.

Puseram-nos em paz os selvagens, que com muita presteza voltaram ao castelo, e a donzela de novo se encerrou dentro dele; e nisto acabou a dança, com grande contentamento dos espectadores. Perguntou D. Quixote a uma ninfa quem a compusera e ordenara. Respondeu-lhe que fora um beneficiado daquele povo, que tinha grande cabeça para essas invenções.

- Aposto - disse D. Quixote - que é mais amigo de Camacho que de Basílio, e mais dado a sátiras que a ladainhas;

encaixou bem na dança as habilidades de Basílio, e as riquezas de Camacho.

Sancho Pança, que ouvia tudo, disse:

- Cá o meu rei é quem me dá de comer; e por isso, viva Camacho!

- Afinal - acudiu D. Quixote - bem se mostra que és vilão, e daqueles que dizem: Viva quem vencer.

- Não sei de quem sou, nem de quem não sou - respondeu Sancho -; mas o que sei, é que nunca de olhas de Basílio tirarei tão boa escuma como tirei das de Camacho.

E mostrou-lhe a caçarola cheia de patos e de galinhas; e, agarrando numa das aves, começou a comer, dizendo:

- Lá vai nas barbas das habilidades de Basílio, que tanto tens, tanto vales. Só há duas linhagens no mundo, como dizia minha avó, que são ter e não ter, e ela ao ter é que se pegava; e, hoje em dia, Sr. D. Quixote, mais se toma o pulso ao haver que ao saber; um burro coberto de ouro parece melhor que um cavalo albardado. Assim, torno a dizer: viva Camacho, que tem por fartas escumas nas suas olhas patos e galinhas, coelhos e lebres, e as de Basílio não têm senão água chilra.

- Acabaste a tua arenga, Sancho? - perguntou D. Quixote.

- Acabo - respondeu Sancho - porque vejo que Vossa Mercê se aflige com ela, que, se isso não se pusesse de permeio, tinha obra cortada para três dias.

- Praza a Deus, Sancho - tornou D. Quixote -, que eu antes de morrer te veja mudo.

- Pelo caminho que levamos - redarguiu Sancho -, quando Vossa Mercê morrer, já eu estarei comendo barro, e então poderá ser que esteja tão mudo que não dê palavra até ao fim do mundo, ou pelo menos até ao dia de Juízo.

- Ainda que isso assim suceda, Sancho - tornou D. Quixote -, nunca chegará o teu silêncio ao que chegou o que falaste, falas e hás-de falar na tua vida; e demais, é do curso natural das coisas vir primeiro o dia da minha morte que o da tua; e assim, suponho que nunca te verei mudo, nem quando estiveres bebendo ou dormindo, que é o mais que posso encarecer.

- Por minha fé Senhor - respondeu Sancho -, não há que fiar na descarnada, quero dizer, na morte, que tanto come cordeiro como carneiro, e ao nosso cura ouvi eu dizer que pisa com igual pé as altas torres dos reis e as humildes choças dos pobres. Tem esta senhora mais poder que melindre, não é de má boca, de tudo come, e enche os alforges com toda a casta de gentes, de idades e de preeminências.

Não é segador que durma a sesta, porque a toda a hora corta e ceifa, tanto a erva verde como a seca, e não parece que mastiga, mas que traga e engole tudo quanto se lhe põe diante, porque tem fome canina, que nunca se farta; e, ainda que não tem barriga, dá a entender que está hidrópica e sedenta de beber todas as vidas de quantos vivem como quem bebe um jarro de água fria.

- Basta, Sancho - acudiu D. Quixote -, e fica-te por aí, e não te deixes cair, que na verdade o que disseste da morte, em teus rústicos termos, é o que poderia dizer um bom pregador. Digo-te, Sancho, que, assim como tens boa índole, se tivesses discrição, poderias tomar um púlpito e ir por esse mundo pregando lindezas.

- Prega bem quem vive bem - respondeu Sancho - e eu não sei de outras tologias.

- Nem precisas - redarguiu D. Quixote -, mas o que eu não percebo é como, sendo o temor de Deus o princípio de toda a sabedoria, tu, que tens mais medo de um lagarto do que d'Ele, sabes tanto.

- Julgue Vossa Mercê, Senhor, as suas cavalarias - respondeu Sancho - e não se meta em julgar de temores e de valentia alheias, que eu temo tanto a Deus como qualquer vizinho, e deixe-me Vossa Mercê a contas com estas aves, que o mais tudo são palavras ociosas, de que nos hão-de pedir contas na outra vida.

E, dizendo isto, principiou de novo a dar assalto à caçarola, com tamanho apetite, que despertou o de D. Quixote, o qual sem dúvida o ajudaria, se o não impedisse o que é forçoso que adiante se diga.

 

EM QUE PROSSEGUEM AS BODAS DE CAMACHO, COM OUTROS SABOROSOS SUCESSOS

Enquanto estavam D. Quixote e Sancho com as razões referidas no capítulo antecedente, ouviram-se grandes brados e grande ruído, originados pêlos das éguas, que, em grande carreira e com grande algazarra, iam receber os noivos, os quais, rodeados de mil géneros de invenções, vinham acompanhados pelo cura e pela parentela, e por toda a gente mais luzida dos lugares circunvizinhos, todos vestidos de gala. E, quando Sancho viu a noiva, disse:

- Por minha fé, não vem vestida de lavradeira, mas sim de garrida palaciana. Por Deus, que, segundo diviso, são corais que traz ao pescoço, o vestido é do mais rico veludo, e as guarnições de cetim! Vejam-me aquelas mãos, todas cheias de anéis de ouro, e de bom ouro, com pérolas brancas como leite, que deve cada uma valer um olho da cara. E que cabelos, que, se não são postiços, nunca os vi na minha vida mais compridos, nem mais louros! Na figura não se lhe pode pôr nem o mais leve senão, e só se compara a uma palmeira que se move, carregada com fartos cachos de tâmaras, que a tâmaras se assemelham os dixes que traz pendentes dos cabelos e da garganta! Juro, pela salvação da minha alma, que é uma moça de truz, e que pode passar os bancos da Flandres.

Riu-se D. Quixote dos rústicos louvores de Sancho Pança, e pareceu-lhe que, pondo de parte a sua adorada Dulcineia del Toboso, nunca vira mulher mais formosa. Vinha a linda Quitéria um pouco descorada, e isso devia ser pela má noite que sempre passam as noivas a arranjar-se para a festa das suas bodas.

Iam-se aproximando de um teatro, que estava para um lado do campo, adornado de alfombras e ramos, onde se haviam de celebrar os esponsais, e de onde haviam de ver as danças e as invenções. Quando eles chegavam a esse sítio, ouviram de repente por trás de si muitas vozes, e uma que dizia:

- Esperai um pouco, gentes inconsideradas e pressurosas. A estas voes e a estas palavras, todos voltaram a cabeça, e viram que as dava um homem vestido com um saio negro, matizado de chamas escarlates. Vinha coroado de funéreo cipreste, empunhava um grande cajado; quando mais se aproximava, conheceram todos que era o galhardo Basílio, e ficaram suspensos, esperando em que viriam a dar as suas vozes e as suas palavras, receando que tivesse mau resultado a sua vinda nessa ocasião. Chegou, enfim, cansado e sem alento, e, pondo-se diante dos desposados, fincando o cajado no chão, porque tinha no conto uma ponta de aço, de cor mudada e com os olhos postos em Quitéria, com voz tremenda e rouca, disse:

- Bem sabes, ingrata Quitéria, que, conforme a santa lei que professamos, vivendo eu, não podes tomar esposo, e também não ignoras que por eu esperar que o tempo e a minha diligência melhorassem os meus bens de fortuna, não quis deixar de guardar o decoro que à tua honra cumpria; mas tu, deitando para trás das costas todas as obrigações que deves ao meu bom desejo, queres dar o que é meu a outro, a quem as riquezas dão boníssima ventura; e para que a tenha no seu auge (não como eu entendo que a merece, mas como os Céus lha querem dar), por minhas mãos desfarei o impossível, ou o obstáculo que pode estorvar-lha, tirando-me de permeio. Viva! Viva o opulento Camacho, com a ingrata Quitéria, largos e felizes séculos, e morra, morra o pobre Basílio, a quem a pobreza cortou as asas da sua dita, e o pôs na sepultura!

Dizendo isto, arrancou do cajado que encravara no chão, e de dentro dele desembainhou um curto estoque, nesse cajado oculto; e, encostando ao solo o que se podiam chamar os copos, com leve desenfado e resoluto propósito, arrojou-se para cima dele, e num momento lhe saiu pelas costas metade da lâmina afiada e ensanguentada, ficando o triste banhado em sangue e estendido no chão, traspassado pelas suas próprias armas. Acudiram logo os seus amigos a valer-lhe, condoídos da sua miséria e lastimosa desgraça, e, deixando D. Quixote a Rocinante, correu a socorrê-lo, e tomou-o nos braços, e viu que ainda não expirara. Quiseram-lhe tirar o estoque, mas o cura, que estava presente, foi de parecer que lho não tirassem antes de ele se confessar, porque o tirar-lho seria o sinal da sua morte. Mas, voltando um pouco a si, Basílio, com voz plangente e frouxa, disse:

- Se quisésseis, cruel Quitéria, dar-me neste último e horrível transe a mão de esposa, ainda eu pensaria que podia desculpar-se a minha temeridade, pois com ela alcançava o bem de ser teu.

O cura, ouvindo isto, disse-lhe que atendesse à salvação da alma, antes que aos prazeres do corpo, e que pedisse a Deus perdão dos seus pecados, e da sua desesperada resolução. A isto respondeu Basílio que se não confessaria por caso algum, se primeiro Quitéria lhe não desse a mão de esposa; que esse contentamento lhe robusteceria a vontade e lhe daria ânimo para se confessar. Ouvindo D. Quixote a petição do ferido, disse que Basílio pedia uma coisa muito justa e razoável, e, além disso, muito fácil de realizar, e que o Sr. Camacho tão honrado ficaria casando com a Sra. Quitéria, viúva do valoroso Basílio, como se a recebesse das mãos de seu pai; que não haveria mais que um sim, que não teria outro efeito senão o de ser pronunciado, pois que o tálamo destas bodas tinha de ser a sepultura. Tudo isto ouviu Camacho, suspenso e confuso, sem saber o que havia de fazer, nem o que havia de dizer, mas os brados dos amigos de Basílio foram tantos, a pedirem-lhe que consentisse no casamento de Quitéria, para que Basílio não perdesse a sua alma, que o moveram e forçaram a dizer que, se Quitéria queria dar-lhe a mão de esposa, ele não se oporia, pois tudo se cifrava em dilatar por pouco tempo o cumprimento dos seus desejos. Correram logo todos a Quitéria, e uns com rogos, outros com lágrimas, outros com eficazes razões, lhe persuadiram que desposasse o pobre Basílio; e ela, mais dura do que o mármore, fria como uma estátua, mostrava não saber, nem poder, nem querer responder uma só palavra, nem responderia, se o cura lhe não dissesse que resolvesse depressa o que havia de fazer, porque Basílio tinha a alma nos dentes, e não podia esperar determinações irresolutas. Então a formosa Quitéria, sem dizer palavra, turbada, e, segundo parecia, triste e pesarosa, chegou ao sítio onde Basílio estava, já com os olhos revirados, a respiração curta e precipitada, murmurando o nome de Quitéria, dando mostras de morrer como gentio e não como cristão. Aproximou-se, enfim, Quitéria, e, ajoelhando, pediu-lhe a mão por gestos, e não por palavras. Voltou os olhos para ela Basílio, e, mirando-a atentamente, disse-lhe:

- Ó Quitéria! Vieste a ser piedosa no momento em que a tua piedade há-de ser o punhal que acabe de me tirar a vida, pois já não tenho forças para poder com a glória que me dás, escolhendo-me para teu noivo, nem para suspender a dor, que

tão apressadamente me vai velando os olhos com a sombra espantosa da morte. O que eu te peço, ó minha fatal estrela, é que este enlace não seja por cumprimento, nem para me enganar de novo, mas que confesses e digas que, sem forçares a tua vontade, me entregas e me dás a tua mão como a teu legítimo esposo, pois não é razão que mesmo num transe como este me iludas, ou uses de fingimento com quem sempre contigo tratou lealmente.

E, dizendo isto, desmaiava de modo que todos os presentes pensavam que em cada desmaio lhe fugiria a alma. Quitéria, toda honesta e vergonhosa, agarrando com a mão direita na mão de Basílio, disse-lhe:

- Não haveria força que pudesse torcer a minha vontade, e assim com meu livre alvedrio te dou a mão de legítima esposa, e recebo a tua, se ma dás de livre vontade, sem que a turbe nem a contraste a calamidade produzida pela tua precipitada resolução.

- Dou, sim - respondeu Basílio -, não turbado nem confuso, mas com o claro entendimento que o Céu me concedeu, e assim me entrego por teu esposo.

- Eu por tua esposa - respondeu Quitéria - quer vivas por largos anos, quer te arranquem dos meus braços para a sepultura.

- Este moço, para os ferimentos que tem, muito fala - acudiu Sancho Pança -; digam-lhe que atenda à sua alma, que, ao que me parece, tem-na mais na língua que nos dentes.

Estando, pois, de mãos dadas Basílio e Quitéria, o cura, comovido e choroso, deitou-lhes a bênção, e pediu ao Céu que salvasse a alma do novo esposo, o qual, assim que recebeu a bênção, com grande ligeireza se pôs de pé, e com pasmosa desenvoltura arrancou o estoque, a que o seu corpo servia de bainha.

Ficaram todos os circunstantes admirados, e alguns deles, mais simples do que curiosos, em altas vozes começaram a bradar:

- Milagre! Milagre! Mas Basílio respondeu:

- Não é milagre, milagre, mas indústria, indústria!

O cura, atónito e desnorteado, correu com ambas as mãos a apalpar a ferida, e viu que o estoque atravessara não a carne, nem as costelas de Basílio, mas um tubo oco de ferro que ele tinha ali perfeitamente acomodado, como depois se soube. Finalmente, o cura e Camacho, com todos os mais circunstantes, consideraram-se burlados e escarnecidos. A esposa não deu mostras de ter pena da burla, antes, ouvindo dizer que aquele casamento, por ter sido enganoso, não tinha validade, asseverou que de novo o confirmava, do que todos coligiram que fora com seu consentimento e conhecimento que aquele caso se planeara, do que tão corridos ficaram Camacho e os seus amigos, que confiaram das suas mãos a sua vingança, e, desembainhando as espadas, arremeteram a Basílio, a favor do qual imediatamente se desembainharam também outras muitas, e, tomando a dianteira a todos D. Quixote, a cavalo, com a lança em riste, e bem coberto o seu escudo, abria caminho. Sancho, a quem nunca aprouveram nem consolaram semelhantes feitos, acolheu-se às tinas, de onde tirara a sua agradável ração, parecendo-lhe que aquele lugar, como sagrado, o haviam todos de respeitar. D. Quixote dizia em altos brados:

- Tende-vos, Senhores! Tende-vos! Que não é razão que tireis vingança dos agravos que o amor nos faz, e adverti que o amor e a guerra são a mesma coisa: e assim como na guerra é coisa lícita e costumada usar de ardis e estratagemas para vencer o inimigo, também nas contendas e competências amorosas se não estranham os embustes, que se põem por obra para conseguir o fim a que se aspira, contanto que não seja em menoscabo e desabono do objecto amado. Quitéria pertencia a Basílio e Basílio a Quitéria, por justa e favorável disposição do Céu. Camacho é rico, e poderá comprar o seu gosto onde, como e quando quiser. Basílio não tem mais do que esta ovelha, e ninguém lha há-de tirar, por muito poderoso que seja, que os que Deus junta não os pode o homem separar; e quem o intente passará primeiro pela ponta desta lança.

E nisto, manejou-a com tanta força e destreza que infundiu pavor em todos os que o não conheciam; e tão intensamente se fixou na imaginação de Camacho o desdém de Quitéria, que num instante lha afastou da memória, e assim se rendeu às persuasões do cura, varão prudente e bem-intencionado, ficando assim Camacho e os da sua parcialidade pacíficos e sossegados, e embainharam as espadas, culpando mais a facilidade de Quitéria do que a indústria de Basflio, discorrendo Camacho que, se Quitéria em solteira amava Basüio, continuaria a amá-lo depois de casada, e que devia dar graças ao Céu, mais por lha ter tirado do que por lha ter dado. Consolados, pois, e tranquilos Camacho e os do seu bando, todos os de Basílio sossegaram também, e o opulento Camacho, para mostrar que não sentia a burla, nem fazia caso dela, quis que as festas prosseguissem como se realmente casasse; mas não quiseram assistir a elas nem Basílio, nem sua esposa, nem os seus sequazes, que também os pobres, virtuosos e discretos têm quem os siga, honre e ampare, como os ricos têm quem os lisonjeie e acompanhe. Levaram consigo D. Quixote, considerando-o homem de valor. Só a Sancho se lhe escureceu a alma, por se ver impossibilitado de aguardar o jantar esplêndido, e as festas de Camacho, que duraram até à noite; e, assim, macambúzio e triste, seguiu seu amo, que ia com os companheiros de Basílio, e teve de abandonar as olhas do Egipto, ainda que as levava na alma, e a já quase consumida e acabada escuma da caçarola representava-lhe a abundância do bem que perdia; e assim acabrunhado e pensativo, mas sem fome, seguiu, sem se apear do ruço, as pisadas de Rocinante.

 

ONDE SE DÁ CONTA DA GRANDE AVENTURA DA COVA DE MONTESINOS, QUE ESTÁ NO CORAÇÃO DA MANCHA, E A QUE PÔS FELIZ TERMO O VALOROSO D. QUIXOTE

Grandes e muitos foram os regalos com que os noivos serviram a D. Quixote, obrigados pelas demonstrações que ele fizera para defender a sua causa, e, a par da valentia, gabaram-lhe a discrição, tendo-o por um Cid nas armas e por um Cícero na

eloquência. O bom Sancho refocilou-se três dias à custa dos noivos, dos quais se soube, que não foi traça combinada com a formosa Quitéria o ferir-se fingidamente Basílio, mas sim indústria deste, esperando o feliz resultado que se vira; é verdade que confessou que dera parte do seu pensamento a alguns dos seus amigos, para que, logo que fosse necessário, favorecessem a sua intenção e auxiliassem o seu engano.

- Não se podem, nem se devem chamar enganos - disse D. Quixote - os que miram a virtuosos fins; e o de casarem dois namorados não podia ser fim mais excelente, advertindo que o amor não tem maior contrário que a fome, porque o amor é todo alegria, regozijo, contentamento, principalmente quando o amante está de posse do objecto amado, de que são inimigas declaradas a necessidade e a pobreza.

Acrescentou que dizia tudo isto com intenção de que se deixasse o Sr. Basílio de exercitar as habilidades que sabe, que lhe davam mais fama que proveito, e que atendesse a granjear fazenda, por meios lícitos e industriosos, que nunca faltam aos prudentes e trabalhadores. O pobre honrado (se pode ser honrado o pobre) arrisca-se, em ter mulher formosa, que, se lha tiram, lhe tiram a honra. Mulher honrada e formosa, com marido pobre, merece ser coroada com os lauréis e palmas do vencimento e do triunfo. A formosura, só por si, atrai as vontades de todos os que a vêem e conhecem, e, como a cordeirinho gostoso, procuram empolgá-la as águias e os pássaros altaneiros; mas, se à formosura se juntam o aperto e a necessidade, também a investem os corvos, os milhafres e as outras aves de rapina, e a que resiste a tantos ataques bem merece chamar-se coroa de seu marido.

- Olhai, discreto Basílio - acrescentou D. Quixote -, foi opinião de não sei que sábio, que só havia em todo o mundo uma mulher boa, e dava por conselho que todos pensassem e acreditassem que a sua era essa, e assim viveriam contentes. Eu não sou casado, e até agora não pensei em casar, e, contudo, atrever-me-ia a aconselhar, a quem o desejasse, o modo como havia de procurar esposa. Primeiro aconselhar-lhe-ia que olhasse mais à fama que a fazenda, porque a mulher boa não alcança

boa fama só com o ser boa, mas também com parecê-lo, que muito mais prejudicam a honra das mulheres as desenvolturas e liberdades públicas, do que as maldades secretas. Se levas mulher já de si boa para tua casa, não será difícil conservá-la assim e até melhorá-la; mas se a levas má, meter-te-ás em trabalhos, querendo emendá-la, que não é muito fácil passar de um para outro extremo. Não digo que seja impossível, mas tenho-o por dificultoso.

Ouvia tudo isto Sancho, e disse de si para si:

- Este meu amo, quando eu digo coisas de substância e de acerto, costuma asseverar que eu podia tomar um púlpito, e ir por esse mundo fora pregando lindezas. Eu então sustento que, em ele principiando a encadear sentenças, e a dar conselhos, não só pode tomar um púlpito, mas uns poucos, e andar por essas praças a pregar sermões, que seja só pedir por boca. Valha-te o Diabo, cavaleiro andante, que tantas coisas sabes: eu pensava cá no meu bestunto que ele só podia saber o que dizia respeito às suas cavalarias, mas não há nada em que não debique e em que não meta a sua colherada.

Sancho dizia isto a meia voz; entreouviu-o seu amo, e perguntou-lhe:

- Que estás para aí a resmungar, Sancho?

- Eu não estou a resmungar - tornou Sancho -; o que estava era a dizer comigo que bem quisera ter ouvido a Vossa Mercê antes de me casar, que talvez eu agora dissesse: o boi solto lambe-se todo.

- Tão má é a tua Teresa, Sancho! - observou D. Quixote.

- Não é muito má, mas também não é muito boa; pelo menos, não é tão boa como eu queria - respondeu Sancho.

- Não fazes bem, Sancho, em dizeres mal de tua mulher, que, afinal de contas, é mãe de teus filhos.

- Não ficamos a dever nada um ao outro - tornou Sancho - que também ela diz mal de mim quando se lhe oferece ocasião, principalmente em tendo ciúmes, que então nem Satanás a atura.

Finalmente, estiveram três dias em casa dos noivos, onde foram amimados e servidos como reis. Pediu D. Quixote ao destro licenciado que lhe desse um guia que o encaminhasse à cova de Montesinos, porque tinha grandes desejos de penetrar lá dentro, e de ver com os seus olhos se eram verdadeiras as maravilhas que a esse respeito se referiam por todos aqueles contornos. O licenciado disse-lhe que lhe daria um primo seu, famoso estudante e muito afeiçoado à leitura de livros de cavalaria, que de muito boa vontade o conduziria à entrada da cova, e lhe mostraria as lagoas de Ruidera, famosas em toda a Mancha e até em toda a Espanha, e que ele lhe daria agradável entretenimento, porque era moço que sabia fazer livros para imprimir e para dedicar a príncipes. Enfim, o primo veio com uma burra prenhe, cuja albarda era coberta por um vistoso xairel.

Selou Sancho Rocinante, aparelhou o ruço, recheou os alforges, o mesmo fez o primo do licenciado, e, encomendando-se a Deus, e despedindo-se de todos, tomaram o rumo da famosa cova de Montesinos.

De caminho perguntou D. Quixote ao primo do licenciado quais eram a sua profissão e estudos; ao que ele respondeu que a sua profissão era a de literato, os seus estudos compor livros para dar à estampa, todos de grande proveito e não menor entretenimento: um intitulava-se Dos Trajos, em que pintava setecentos e tantos trajes, com as suas cores, divisas e motes, onde podiam os cavaleiros cortesãos, em tempo de festa, procurar os que lhes agradassem, sem os andar pedindo a ninguém, nem quebrar a cabeça para os arranjar conformes com os seus desejos e intenções, porque davam ao olvidado, ao amante, ao zeloso, ao desdenhado, os que melhor lhes coubessem. «Tenho outro livro também que hei-de chamar Metamorfoses, ou Ovídio Espanhol, de invenção nova e rara, porque nele, parodiando Ovídio, pinto quem foram a Giralda de Sevilha e o anjo da Madalena, o cano de Vecinguerra em Córdova, os touros de Guisando, a serra Morena, as fontes de Leganito, e de Lava-Pés em Madrid, sem esquecer a do Piolho, a do Cano Dourado, a da Prioreza; isto com as suas alegorias, metáforas e translações, de modo que alegram, suspendem e ensinam ao mesmo tempo. Tenho outro livro que chamo Suplemento a Virgílio Polidor, que trata da invenção das coisas, e que é de grande erudição e estudo, porque as que deixou de dizer Polidoro, averiguo-as eu e declaro-as em gracioso estilo. Esqueceu-se Virgílio de nos dizer quem foi a primeira pessoa que teve catarro no mundo; declaro-o eu ao pé da letra, e fundamento-o com mais de vinte e cinco autores; veja Vossa Mercê se trabalhei ou não trabalhei para ser útil a toda a gente.”

Sancho, que ouvira muito atento a narração do primo, acudiu:

- Diga-me, Senhor, poder-me-á dizer, já que sabe tudo, quem foi o primeiro homem que coçou a cabeça, que eu entendo que devia ser nosso pai Adão?

- Seria, seria - respondeu o primo -, porque não há dúvida que Adão teve cabelo e cabeça, e, sendo ele o primeiro homem do mundo, alguma vez se havia de coçar.

- Também creio - retrucou Sancho -, mas diga-me agora: quem foi o primeiro volteador do mundo?

- Na verdade, irmão - respondeu o primo -, agora não saberei responder de pronto, mas eu estudarei o caso quando voltar para o sítio onde tenho os meus livros, e lhe responderei, quando nos encontrarmos outra vez, que não há-de ser esta a última.

- Pois, meu Senhor - tornou Sancho -, não se dê a esse trabalho, que me parece que já me ocorre uma resposta. Saiba que o primeiro volteador do mundo foi Lucifer, quando o arrojaram do Céu, que veio às voltas e reviravoltas desabar nos abismos.

- Tens razão, amigo - respondeu o primo.

- Esta pergunta e essa resposta não são tuas - acudiu D. Quixote -; a alguém as ouviste dizer.

- Cale-se, Senhor - replicou Sancho -, que se eu me meto a fazer perguntas e respostas, não acabo nem amanhã. Para perguntar tolices e responder disparates não preciso de andar a pedir o auxílio dos vizinhos.

- Mais disseste do que sabes - tornou D. Quixote -, que há pessoas que se cansam em averiguar coisas que, depois de averiguadas, nada valem, nem para o entendimento nem para a memória.

Nestas e noutras saborosas práticas se passou aquele dia, e à noite albergaram-se numa pequena aldeia, onde o primo do licenciado disse a D. Quixote que, dali à cova de Montesinos, eram só duas léguas, e que, se estava resolvido a entrar lá dentro, se fornecesse de cordas para se amarrar e engolfar-se na sua profundidade. D. Quixote disse que, ainda que chegasse ao abismo, havia de ver aonde ia ter, e assim compraram quase cem braças de corda, e, no dia seguinte, às duas da tarde, chegaram à caverna, cuja boca é espaçosa e larga, mas cheia de urzes, de tojos e de sarças e silvas, tão espessas e intrincadas, que de todo em todo a cegam e encobrem.

Ao vê-la, apearam-se o guia, Sancho, e D. Quixote, a quem os outros dois amarraram logo fortissimamente com as cordas;

e, enquanto o cingiam, disse-lhe Sancho:

- Veja Vossa Mercê, meu Senhor, o que vai fazer; não se queira sepultar em vida, de modo que pareça garrafa que se põe a esfriar dentro de um poço, tanto mais que a Vossa Mercê não lhe compete esquadrinhar esta cova, que deve ser pior que uma masmorra.

- Ata e cala-te - respondeu D. Quixote - que empresa como esta, para mim estava guardada. E então disse o guia:

- Suplico a Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, que veja bem, e espreite com cem olhos o que há lá dentro; talvez encontre coisas que eu possa inserir no livro das transformações.

- Está em boas mãos o pandeiro; verá como o tocam - respondeu Sancho Pança.

Dito isto, e bem amarrado D. Quixote (que não foi sobre as armas, mas sobre o gibão), disse o cavaleiro:

- Andámos pouco advertidos em não nos termos provido de alguma campainha, cujo som vos indicaria que eu continuava a descer e estava vivo; mas já que não tem remédio, nas mãos de Deus me entrego.

E pôs-se de joelhos imediatamente, e fez em voz baixa uma oração ao Céu, pedindo a Deus que o ajudasse e lhe desse bom êxito naquela aventura, tão nova e tão perigosa; e em voz alta continuou:

- Ó senhora das minhas acções, caríssima e incomparável Dulcineia del Toboso, se é possível que cheguem aos teus ouvidos as preces e rogos deste teu venturoso amante, por tua inaudita beleza te peço que os escutes, pois cifram-se apenas em implorar-te que te não recuses a dar-me o teu favor e amparo, agora que tanto deles preciso. Vou despenhar-me, sepultar-me e sumir-me no abismo, que aqui se me escancara, só para que o mundo conheça que, se tu me favoreceres, não haverá impossível que eu não cometa e alcance.

E, dizendo isto, acercou-se da cova, e, vendo que era impossível abrir caminho, a não ser à força de braços e à cutilada, desembainhando a espada, começou a derribar e a cortar as silvas que estavam na boca da caverna, a cujo ruído e estrondo saíram da espessura grande número de corvos e de gralhas, tão densos e apressados, que atiraram com D. Quixote ao meio do chão, e, se ele fosse mais supersticioso do que bom católico, teria isto por mau agouro, e não se meteria em semelhante lugar. Finalmente, levantou-se, e, vendo que não saíam mais corvos, nem outras aves nocturnas, como morcegos, que vieram entre os corvos, dando-lhe corda o primo do licenciado e Sancho, deixaram-no deslizar para o fundo da espantosa caverna, e benzendo-o Sancho mil vezes, disse:

- Deus te guie, e a Penha de França e a Trindade de Gaeta, flor, nata e espuma da cavalaria andante. Vai, valentão do mundo, coração de aço, braços de bronze; Deus te guie e te traga são e sem cautela à luz desta vida, que deixas para te enterrares nessa escuridão que procuras.

Iguais preces e invocações fez o guia.

Ia D. Quixote bradando que lhe dessem corda e mais corda, e eles iam-lha dando a pouco e pouco; e, quando as vozes, que saíam canalizadas, deixaram de ouvir-se, já eles tinham largado as cem braças.

Foram de parecer que puxassem D. Quixote, visto que lhe não podiam dar mais corda; ainda assim, demoraram-se a sua meia hora, e, passado esse tempo, tornaram a puxar a corda com muita facilidade e sem o menor peso, sinal que lhes fez crer que D. Quixote ficava lá dentro; e Sancho, supondo isso, chorava amargamente e puxava com muita pressa; mas, chegando, pêlos seus cálculos, a pouco mais de oitenta braças, sentiram peso, e com isso muito se alegraram; finalmente, quando faltavam só dez braças, viram distintamente D. Quixote, a quem Sancho bradou, dizendo:

- Seja Vossa Mercê muito bem-vindo, que já pensávamos que ficava lá dentro para fazer geração.

Mas D. Quixote não respondia palavra, e, tirando-o de todo para fora, viram que trazia os olhos fechados, parecendo adormecido. Estenderam-no no chão, e desligaram-no; e, com tudo isso, no despertava. Mas tanto o viraram e reviraram, tanto o sacudiram e menearam, que, ao cabo de muito tempo, voltou a si, espreguiçando-se, como se despertasse de grande e profundo sono; e, olhando para todas as partes, como espantado, disse:

- Deus vos perdoe, amigos, que me tiraste a mais saborosa e agradável vida e vista, que nenhum humano nunca viu nem passou. Efectivamente, agora acabo de conhecer que todos os contentamentos desta existência passam como sombra e sonho, ou murcham como a flor do campo. O desditoso Montesinos! O malferido Durandarte! Ó desventurada Belerma! Ó choroso Guadiana, e vós outras infelizes filhas de Ruidera, que mostrais nas vossas águas as que choraram os vossos formosos olhos!

Com grande atenção escutavam Sancho e o primo do licenciado as palavras de D. Quixote, que as dizia como se as arrancasse com dor imensa das entranhas. Suplicaram-lhe que lhes explicasse o que dizia, e lhes narrasse o que vira naquele inferno.

- Chamais-lhe inferno! - disse D. Quixote. - Não lhe chameis assim, que o não merece, como vereis logo.

Pediu que lhe dessem alguma coisa de comer, que trazia muitíssima fome.

Estenderam o xairel do jumento do guia sobre a verde relva, foram à despensa dos alforges, e, sentados todos três em boa companhia, merendaram e cearam ao mesmo tempo. Levantada a improvisada mesa, disse D. Quixote de La Mancha:

- Não se levante ninguém, e ouçam-me com atenção.

 

DAS ADMIRÁVEIS COISAS QUE O EXTREMADO D. QUIXOTE CONTOU QUE VIRA NA PROFUNDA COVA DE MONTESINOS, COISAS QUE, PELA IMPOSSIBILIDADE E GRANDEZA, FAZEM QUE SE CONSIDERE APÓCRIFA ESTA AVENTURA

Seriam quatro horas da tarde, quando o Sol, encoberto e entre nuvens, com escassa luz e temperados raios permitiu a D. Quixote contar, sem calor nem incómodo, aos seus dois claríssimos ouvintes, o que vira na cova de Montesinos; e começou do seguinte modo:

- A coisa de doze ou catorze estádios, nas entranhas desta caverna, fica à mão direita uma concavidade espaçosa, capaz de caber dentro dela um grande carro com as suas mulas. Entra ali, coada por algumas fendas, que, abertas na superfície, bem longe ficam, uma tenuíssima luz. Esta concavidade vi eu, quando já ia mofino e cansado de me sentir suspenso e de caminhar preso à corda por aquela escura região abaixo, sem levar certo nem determinado rumo, e assim resolvi entrar e descansar um pouco. Bradei, pedindo-vos que não largásseis mais corda, até que eu vo-lo dissesse; mas creio que me não ouvísteis. Fui juntando a corda que mandáveis e arranjando com ela um rolo, em que me sentei, muito pensativo, considerando o que havia de fazer para chegar ao fundo, não tendo quem me segurasse; estando eu neste cismar e nesta confusão, de repente salteou-me um sono profundíssimo, e, quando menos o pensava, sem saber como, nem como não, despertei e achei-me no meio do mais deleitoso prado, que pôde criar a Natureza, ou fantasiar a mais discreta imaginação humana. Arregalei os olhos, esfreguei-os, e vi que não dormia, mas que estava perfeitamente desperto. Contudo, sempre tenteei a cabeça e o peito, para me certificar se era eu mesmo que ali estava, ou algum fantasma vão; mas o tacto, o sentimento, os discursos concertados que fazia entre mim, me certificaram que era eu ali então o mesmo que sou agora aqui. Ofereceu-se-me logo à vista um verdadeiro e sumptuoso palácio ou alcácer, cujos muros pareciam fabricados de claro e transparente cristal, de onde saiu, ao abrirem-se duas grandes portas, e veio direito a mim, um ancião venerável, coberto com um capote de baeta roxa, que arrastava pelo chão. Vestia por baixo uma batina de cetim verde, trazia uma negra gorra milanesa, e a barba alvíssima descia-lhe abaixo da cintura; não tinha armas, tinha apenas na mão um rosário de contas maiores que nozes, e os padre-nossos eram do tamanho de ovos de avestruz; o porte, o andar, a gravidade e a majestade da presença suspenderam-me e assombraram-me. Chegou-se a mim, e a primeira coisa que fez foi abraçar-me estreitamente e dizer logo:

- Há largos tempos, valoroso D. Quixote de La Mancha, que todos os que estamos encantados nesta soledade esperamos ver-te, para que dês notícia ao mundo do que encerra e cobre a profunda cova por onde entraste, chamada a cova de Montesinos, façanha só guardada para ser cometida por teu invencível coração, e pelo teu ânimo estupendo. Vem comigo, claríssimo Senhor, que te quero mostrar as maravilhas solapadas neste transparente alcácer, de que eu sou alcaide e guarda-mor perpétuo, porque sou o próprio Montesinos, que dá nome à cova.

Apenas ele me disse que era Montesinos, logo lhe perguntei se era verdade o que no mundo cá de cima se contava, que ele tirara, com uma pequena adaga, o coração do seu grande amigo Durandarte, para o levar à Sra. Belerma, como Durandarte ordenara quando morrera. Respondeu-me que em tudo diziam verdade, e que a adaga era buída e agudíssima.

- Devia ser - disse Sancho neste ponto - de Ramón de Hoces, o Sevilhano.

- Não sei - prosseguiu D. Quixote - mas parece-me que não seria, porque Ramón de Hoces viveu ontem, por assim dizer, e a batalha de Roncesvales, onde sucedera esta desgraça, feriu-se há muitos anos; e essa averiguação é pouco importante, e não turba nem altera a verdade e contexto da história.

- Assim é - respondeu o primo do licenciado -; prossiga Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, que o estou ouvindo com o maior gosto que se pode imaginar.

- Não pode ser mais do que aquele com que o estou contando - respondeu D. Quixote - e, assim, digo que o venerável Montesinos introduziu-me no cristalino palácio, onde, numa sala baixa e fresquíssima, havia um sepulcro de mármore, fabricado com grande primor, sobre o qual vi um cavaleiro estendido em todo o seu comprimento, não de bronze, nem de mármore, nem de jaspe, como os costuma haver nos nossos sepulcros, mas de carne e osso. Tinha a mão direita (que me pareceu cabeluda e nervosa: sinal de grandes forças) posta sobre o lado do coração; e, antes de eu perguntar coisa alguma, Montesinos, vendo-me suspenso a contemplar o do sepulcro, disse-me:

- É este o meu amigo Durandarte, flor e espelho dos cavaleiros enamorados e valentes do seu tempo. Tem-no aqui encantado, como me tem a mim e a muitos outros e outras, Merlim, aquele nigromante francês, que dizem que foi filho do Diabo, e o que eu creio é que não foi filho do Diabo, mas que soube, como dizem, ainda mais do que ele. O motivo por que nos encantou ninguém o sabe, e ele o dirá, em chegando os tempos marcados, que imagino que não estão muito longe. O que me admira é que seja tão certo, como ser dia agora, o acabar Durandarte a sua vida nos meus braços, e que, depois de morto, lhe arranquei o coração com as minhas próprias mãos, coração que não devia pesar menos de dois arráteis, porque se afirma, que quanto maior é o coração de um homem, maior é a sua valentia. Pois, sendo isto assim, e tendo realmente morrido este cavaleiro, porque é que se queixa e suspira agora, de quando em quando, como se estivesse vivo?

Nisto, o mísero Durandarte, com um grande brado, disse:

- O meu primo Montesinos, uma coisa vos pedia: que, em eu dando a Deus minh'alma, e meu corpo à terra fria; meu coração a Belerma leveis, sem tardar um dia, arrancando-mo do peito com a adaga luzidia.

Ao ouvir estas palavras, o venerável Montesinos pôs-se de joelhos ante o triste cavaleiro, e exclamou:

- Sr. Durandarte, meu caríssimo primo, fiz o que mandaste no aziago dia da nossa perda; arranquei-vos o coração o melhor que pude, sem vos deixar no peito a mínima parte dele, limpei-o com um lenço de rendas, parti de carreira para França, tendo-vos entranhado primeiro no seio da terra, com tantas lágrimas, que bastaram para me lavar as mãos, e limpar o sangue que as tingia; e, por sinal, primo da minha alma, no primeiro sítio que topei, ao sair de Roncesvales, salguei o vosso coração, para que não cheirasse mal, e fosse, senão fresco, pelo menos de salmoira, à presença da Sra. Belerma, a qual, convosco e comigo, e com Guadiana vosso escudeiro, e com a Dona Ruidera e suas sete filhas e duas sobrinhas, e com outros muitos dos vossos conhecidos e amigos, estamos aqui encantados pelo sábio Merlim, há mais de quinhentos anos; e, apesar disso, nenhum de nós morre; só nos faltam Ruidera, suas filhas e sobrinhas, que, compadecendo-se Merlim das suas lágrimas, foram convertidas em outras tantas lagoas, que no mundo dos vivos, e na província da Mancha, se chamam lagoas de Ruidera; as sete pertencem aos reis de Espanha, e as duas sobrinhas aos cavaleiros de uma Ordem Santíssima, que chamam de S. João. Guadiana, vosso escudeiro, chorando a vossa desgraça, foi convertido num rio, a que deu o nome, que, apenas chegou à superfície da Terra e viu o Sol do outro Céu, tamanho pesar sentiu de ver que vos deixava, que se submergiu nas entranhas da terra; mas, como não é possível deixar de acudir à sua natural corrente, de quando em quando sai, e mostra-se onde o Sol e a gente o vejam. Vão-no fornecendo das suas águas as referidas lagoas, e com essas e outras muitas entra pomposo e grande em Portugal. Mas, por onde vai, revela a sua tristeza e melancolia, e não se orgulha de criar nas suas águas peixes de regalo e de estimação, mas sim grosseiros e dessaborosos, muito diferentes dos peixes do áureo Tejo; isto que vos disse agora, meu primo, muitas vezes vo-lo tenho dito, e, como me não respondeis, imagino que me não acreditais nem ouvis; e Deus sabe o que me pesa. Umas novas vos quero dar agora, que, ainda que não sirvam de alívio à vossa dor, pelo menos não a aumentarão de modo algum. Sabei que tendes aqui, na vossa presença (abri os olhos, e vê-lo-eis), aquele grande cavaleiro, de quem tantas coisas profetizou o sábio Merlim, aquele D. Quixote de La Mancha, que de novo, e com maiores vantagens que nos passados séculos, ressuscitou a já olvidada cavalaria andante, por cujo meio e favor poderia ser que nós outros fôssemos desencantados; que as grandes façanhas para os grandes homens estão guardadas.

- E quando assim não seja - respondeu o triste Durandarte, com voz desmaiada e baixa -, quando assim não seja, paciência, e toca a baralhar as cartas.

E, voltando-se para o outro lado, tomou ao seu habitual silêncio.

Ouviram-se nisto grandes alaridos e prantos, acompanhados de profundos suspiros e angustiados soluços. Voltei a cabeça, e pelas paredes de cristal vi que passava por outra sala uma procissão de duas fileiras de formosíssimas donzelas, todas vestidas de luto, com turbantes brancos ao modo turco. No coice da procissão, vinha uma senhora, grave e vestida de preto, com touca branca tão estendida e larga que beijava o chão. O seu turbante era o dobro do maior de qualquer outra; tinha os sobrolhos muito unidos, o nariz um tanto esborrachado, a boca grande, e os lábios corados; os dentes, que de vez em quando mostrava, eram ralos e mal postos, ainda que alvos como amêndoas sem casca; trazia nas mãos um lenço finíssimo, e dentro dele um coração tão seco, que parecia mumificado. Disse-me Montesinos que toda aquela gente eram servidores de Durandarte e de Belerma, que estavam encantados com os seus amos, e que a última, que trazia o coração no lenço e nas mãos, era a Sra. Belerma que fazia quatro dias por semana aquela procissão com as suas damas, cantando ou, para melhor dizer, chorando endechas sobre o corpo e sobre o coração de seu primo; e que, se me parecera feia, ou pelo menos não tão formosa como dizia a fama, eram causa disso as más noites e piores dias que passava naquele encantamento, como podia ver nas suas grandes olheiras, e na sua palidez; e não vem esse estado de incómodos femininos, que é coisa que ela não tem desde que aqui está, mas da dor que o seu coração sente, que lhe renova e lhe traz à memória a cada momento o outro coração que tem nas mãos, e que lhe é inspirada pela desgraça do seu malogrado amante; que, se não fosse isso, apenas a igualaria em formosura, donaire e brio a grande Dulcineia de Toboso, tão celebrada em todos estes contornos e até em todo o mundo.

- Alto lá, Sr. D. Montesinos - disse eu então -, conte Vossa Mercê a história como deve, que bem sabe que tudo quanto são comparações é odioso; a sem par Dulcineia é quem é, e a Sra. Belerma é quem é e quem foi, e fiquemos por aqui.

- Sr. D. Quixote - respondeu-me ele -, perdoe Vossa Mercê, que eu confesso que andei mal em comparar a Sra. Belerma com a Sra. Dulcineia, porque soube que esta era a sua dama, e isso me devia bastar para eu morder a língua, e não a comparar senão com o próprio Céu.

Com esta satisfação que me deu o grande Montesinos, aquietou-se o meu coração do sobressalto que teve, quando ouvi comparar a minha Sra. Dulcineia com Belerma.

- E ainda me espanto - redarguiu Sancho - de Vossa Mercê não trepar pelo velhote, não lhe moer os ossos a pontapés, e não lhe arrepelar as barbas, sem lhe deixar um cabelo.

- Não, Sancho - respondeu D. Quixote -, não me ficava bem fazer isso, porque todos somos obrigados a respeitar os anciãos, ainda que não sejam cavaleiros, e muito mais os que o são e estão encantados; mas olha que não ficámos a dever nada um ao outro nas perguntas e respostas que houve entre nós.

- O que eu não sei, Sr. D. Quixote - observou o primo do licenciado -, foi como Vossa Mercê em tão curto espaço de tempo viu tanta coisa, e falou e respondeu tanto.

- Quanto tempo estive eu lá em baixo? - perguntou D. Quixote.

- Cerca de uma hora - respondeu Sancho.

- Isso não pode ser - redarguiu D. Quixote - porque lá me anoiteceu e amanheceu três vezes, de forma que pelas minhas contas estive três dias naquelas partes remotas e escondidas à vista humana.

- Deve ser verdade o que meu amo diz - acudiu Sancho

- porque como tudo lhe sucedeu por obra de encantamento, talvez nos parecesse uma hora o que lá deve parecer três dias com três noites.

- E Vossa Mercê não comeu em todo esse tempo, meu Senhor? - perguntou o primo do licenciado.

- Não meti na boca nem uma hóstia de pão, e não tive nem sombra de fome.

- E os encantados comem? - tornou o guia.

- Não comem, nem descomem - dsse D. Quixote - ainda que muita gente é de opinião que lhes crescem as barbas e os cabelos.

- E dormem? - perguntou Sancho.

- Não, por certo - respondeu D. Quixote -, pelo menos, nestes três dias em que estive com eles, nenhum pregou olho, nem eu tão-pouco.

- Aqui é que vem de molde o rifão: Diz-me com quem andas, dir-te-d as manhas que tens. Anda Vossa Mercê com encantados que jejuam e velam, já se vê que não dorme nem come; mas, perdoe-

-me Vossa Mercê, leve-me S. Pedro, ia a dizer o Diabo, se acredito uma só palavra de tudo quanto Vossa Mercê disse.

- Como não acredita! - acudiu o guia. - Pois o Sr. D. Quixote havia de mentir, quando, demais a mais, ainda que o quisesse, não teve tempo nem ocasião para compor e imaginar tanto milhão de patranhas!

- Eu não suponho que meu amo minta.

- Então o que é que supões? - perguntou D. Quixote.

- Suponho - respondeu Sancho - que aquele Merlim, ou aqueles nigromantes que Vossa Mercê viu lá em baixo, lhe encasquetaram na cachimónia ou na memória toda essa manivérsia que nos contou, e tudo o que lhe fica por contar.

- Podia muito bem ser, Sancho - replicou D. Quixote -, mas não foi, porque o que contei vi-o com os meus olhos e toquei-o com as minhas mãos. Mas que dirás tu em eu te referindo que entre outras mil coisas e maravilhas que Montesinos me mostrou (que devagar e a seu tempo te irei contando no decurso da nossa viagem), me apresentou três lavradeiras, que por

aqueles ameníssimos campos brincavam e pulavam como cabras, e, apenas as vi, conheci logo que uma delas era a incomparável Dulcineia, e que as outras duas eram as lavradeiras que vinham com ela e a quem falámos à saída do Toboso? Perguntei a Montesinos se as conhecia; respondeu-me que não, mas que supunha que seriam algumas damas principais encantadas, que havia poucos dias que tinham aparecido naqueles prados;

e que me não espantasse disso, porque ali estavam muitas outras damas das eras passadas e presentes, encantadas em diferentes e estranhas figuras, entre as quais conhecia ele a rainha Genebra e a sua Dona Quintanhona, que deitara vinho a Lançarote, na sua volta da Bretanha.

Quando Sancho Pança ouviu dizer isto a seu amo, pensou em morrer de riso, porque, sabendo a verdade do fingido encantamento de Dulcineia, a quem ele levantara esse falso testemunho, acabou de conhecer indubitavelmente que seu amo estava doido varrido, e assim lhe disse:

- Em má conjuntura e em aziago dia desceu Vossa Mercê, meu caro patrão, ao outro mundo, e em má ocasião se encontrou com o Sr. Montesinos, que tal nos voltou. Muito bem estava Vossa Mercê cá em cima, com todo o seu juízo, como Deus lho dera, dizendo sentenças e dando conselhos a cada passo, e não agora contando os maiores disparates que se podem imaginar.

- Como te conheço, Sancho - respondeu D. Quixote -, não faço caso das tuas palavras.

- Nem eu das de Vossa Mercê - replicou Sancho - ainda que me fira ou me mate pelas que lhe digo, e pelas que lhe tenciono dizer, se nas suas se não corrigir e emendar. Mas diga-me Vossa Mercê agora, que estamos em paz, como é que conheceu a nossa Senhora Ama? E, se lhe falou, que é que lhe disse, e o que é que ela lhe respondeu?

- Conheci-a - tornou D. Quixote - por vestir o mesmo fato que trazia, quando tu ma mostraste. Falei-lhe, mas não me respondeu palavra; antes, pelo contrário, voltou-me as costas, e foi fugindo com tanta pressa que a não alcançaria nem uma seta. Quis segui-la, e tê-lo-ia feito, se Montesinos me não aconselhasse que me não cansasse com semelhante corrida, que seria baldada, e tanto mais que se aproximava a hora em que me cumpria sair da caverna. Disse-me também que, pelo tempo adiante, eu seria avisado do modo como os poderia desencantar a ele, a Belerma, a Durandarte e a todos os outros que ali estavam; mas o que mais me penalizou de tudo o que vi e notei, foi que, estando Montesinos a dizer-me tudo isto, chegou-se a mim, sem eu dar pela sua aproximação, uma das duas companheiras da desventurada Dulcineia, e com os olhos rasos de água e com voz turbada e baixa, disse-me:

- Dulcineia del Toboso, minha ama, beija as mãos a Vossa Mercê, e pede-lhe que lhe mande dizer como está, e por ter de acudir a uma grande urgência, suplica a Vossa Mercê, o mais encarecidamente que pode, seja servido emprestar-lhe sobre esta saia de algodão nova, que aqui trago, meia dúzia de réis, ou os que Vossa Mercê trouxer, que lhe dá a sua palavra de lhos restituir em breve.

Pasmei com este recado, e, voltando-me para Montesinos, perguntei-lhe:

- É possível, Sr. Montesinos, que encantados tão principais padeçam necessidades?

- Creia-me Vossa Mercê, Sr. D. Quixote de La Mancha - respondeu-me ele -, que isso a que chamam necessidade, em toda a parte se usa, a tudo se estende e tudo alcança, e nem aos encantados perdoa; e se a Sra. Dulcineia del Toboso lhe manda pedir esses seis réis, e o penhor é bom, ao que parece, não há remédio senão dar-lhos, que ela está sem dúvida nalgum grande aperto.

- Penhor não lho tomo eu - respondi -, mas também lhe não dou o que me pede, porque só tenho comigo quatro réis.

E dei-lhos, que foram os que tu me passaste para a mão, Sancho, para eu dar de esmola aos pobres que topasse pêlos caminhos; e acrescentei:

- Dizei, amiga minha, a vossa ama, que muito me pesa dos seus trabalhos; que desejaria ser um Fúcar para os remediar, e que lhe faço saber que não tenho nem devo ter saúde, carecendo da sua agradável presença e discreta conversação, e que lhe suplico, o mais encarecidamente que posso, seja Sua Mercê servida deixar-se ver e tratar por este seu cativo servidor, e desvairado cavaleiro. Dir-lhe-eis também, que, quando menos o pensar, ouvirá dizer que fiz um juramento e um voto, como o que fez o marquês de Mântua de vingar seu sobrinho Baldovino, quando deu com ele a expirar no meio da serra, que consistiu em não comer pão em toalha, e outras trapalhadas, enquanto o não vingasse; e eu também jurarei não ter sossego e andar as sete partidas do mundo, como o infante D. edro de Portugal, enquanto a não desencantar.

- Tudo isso, e muito mais, deve Vossa Mercê a minha ama - respondeu a donzela.

E, pegando nos meus quatro réis, em vez de me fazer uma mesura, deu uma cabriola que a ergueu duas varas no ar.

- O Senhor Deus! - exclamou Sancho, com um grande brado. - E possível que haja no mundo, e que tanta força tenham, nigromantes e encantamentos, que assim trocaram o bom juízo de meu amo em tão disparatada loucura?! Ó Senhor, Senhor, em nome de Deus, olhe Vossa Mercê para si, cuide na sua honra, e não dê crédito a essas asneiras que lhe dão volta ao miolo.

- Como me queres bem, Sancho - tornou D. Quixote - falas dessa maneira, e como não és experimentado nas coisas do mundo, tudo o que é um pouco difícil te parece impossível;

mas o tempo correrá, como disse ainda agora, e eu te contarei outras coisas que lá em baixo vi, e que te farão acreditar nas que te refiro, cuja verdade não admite nem réplica nem disputa.

 

ONDE SE CONTAM MIL TRAPALHADAS, TÃO IMPERTINENTES COMO NECESSÁRIAS AO VERDADEIRO ENTENDIMENTO DESTA GRANDE HISTÓRIA

Diz o tradutor desta grande história que, chegando ao capítulo da aventura da cova de Montesinos, viu que estavam escritas à margem, pelo próprio punho de Cide Hamet Benengeli, as seguintes razões:

«Não me posso persuadir que D. Quixote passasse exactamente tudo o que se refere no anterior capítulo, porque todas as aventuras, sucedidas até agora, têm sido verosímeis, mas à desta cova não lhe acho caminho para a considerar verdadeira, por ir tão fora dos termos razoáveis. Pensar eu que D. Quixote mentisse, sendo o mais verídico fidalgo e o mais nobre cavaleiro do seu tempo, não é possível; que D. Quixote não diria uma mentira nem que o asseteassem. Por outra parte, considero que ele a contou e a disse com todas as circunstâncias mencionadas, e que não pôde fabricar em tão breve espaço tão grande máquina de disparates; e, se esta aventura parece apócrifa, não tenho culpa; e, assim, sem afirmar que seja falsa ou verdadeira, a escrevo. Tu, leitor, como és prudente, julga o que te parecer, que eu não devo, nem posso mais, ainda que se tem por certo que à hora da morte D. Quixote se retractou neste ponto, e confessou que o inventara, por lhe parecer que quadrava bem com as aventuras que lera nas histórias de cavalaria.”

E logo prossegue, dizendo:

Espantou-se o primo do licenciado, tanto do atrevimento de Sancho Pança, como da paciência de seu amo, e julgou que da alegria que lhe dera o ver a Sra. Dulcineia, ainda que encantada, lhe nascia aquela brandura de condição que então mostrava; porque, se assim não fosse, palavras e razoes lhe disse Sancho que mereciam uma boa sova, porque realmente lhe pareceu que andara atrevidito com seu amo; e disse:

- Eu, Sr. D. Quixote, dou por muitíssimo bem empregada a jornada que fiz com Vossa Mercê, porque nela granjeei quatro coisas. Primeira, haver conhecido a Vossa Mercê, o que tenho por grande felicidade. Segunda, ter sabido o que se encerra nesta cova de Montesinos, com as transformações do Guadiana, e das lagoas de Ruidera, que me servirão para o Ovídio Espanhol, que trago entre mãos. Terceira, conhecer a antiguidade das cartas de jogar, que pelo menos já se usavam no tempo do imperador Carlos Magno, como se pode coligir das palavras que Vossa Mercê conta, que disse Durandarte, quando, depois da grande fala que lhe fez Montesinos, ele despertou, dizendo: paciência, e baralhemos as cartas. E este modo de falar, decerto que o não aprendeu depois de encantado, mas sim em França e no tempo do imperador Carlos Magno. Esta averiguação vem mesmo ao pintar para outro livro que estou compondo, é que é Suplemento de Virgílio Polidor na Invenção das Antiguidades; e creio que Polidoro não se lembrou de pôr a invenção das cartas, como eu a porei agora, o que será de muita importância, principalmente alegando eu autor tão verdadeiro e grave, como é o Sr. Durandarte. A quarta, é ter sabido com certeza onde fica a nascente do rio Guadiana, até agora ignorada das gentes.

- Tem Vossa Mercê razão - disse D. Quixote - mas eu desejaria saber, se lhe derem licença de imprimir esses livros, do que duvido, a quem tenciona dedicá-los.

- Há muitos e grandes fidalgos em Espanha, a quem se podem dedicar - tornou o primo do licenciado.

- Não há muitos - respondeu D. Quixote -, não porque não mereçam dedicatórias, mas porque não as querem aceitar, para não se obrigarem à satisfação que parece dever-se ao trabalho e cortesia dos seus autores. Um príncipe conheço eu, que pode suprir a falta dos outros, com tantas vantagens, que, se eu ousasse dizê-las, talvez despertasse a inveja em mais de quatro peitos generosos; mas fique isto para outra ocasião mais cómoda, e vamos procurar sítio onde nos recolhamos esta noite.

- Não longe daqui - respondeu o guia - está uma ermida, onde reside um anacoreta, que dizem que foi soldado, e tem fama de ser bom cristão, discreto e caritativo. Junto da ermida, tem uma pequena casa, que mandou fazer à sua custa, mas que, apesar de pequena, ainda chega para receber hóspedes.

- Terá galinhas o tal ermitão? - perguntou Sancho.

- Poucos ermitães as deixam de ter - acudiu D. Quixote - porque os de agora já não são como os dos desertos do Egipto, que se vestiam de folhas de palmeira, e comiam raízes da terra. E não se imagine que, por louvar uns, não louvo os outros, mas quero dizer que ao rigor e estreiteza dos antigos não chegam as forças dos modernos; mas por isso não deixam de ser todos bons, e eu, pelo menos, como tais os considero; e, ainda que tudo corra turvo, menos mal faz o hipócrita do que o público pecador.

Estando nesta conversação, viram vir um homem a pé, caminhando apressado e dando verdascadas num macho carregado de lanças e de alabardas. Quando chegou perto deles, cumprimentou-os e passou de largo. D. Quixote disse-lhe:

- Detende-vos, honrado homem, que parece que ides com mais diligência do que esse macho comporta.

- Não me posso demorar Senhor - respondeu o homem -, porque as armas, que aqui levo, como vedes, hão-de servir amanhã, e assim é forçoso que me não demore, e adeus. Mas, se quiserdes saber para que as levo, eu tenciono esta noite ir dormir à venda que fica acima da ermida; e, se seguis o mesmo caminho, ali me encontrareis, e eu vos contarei maravilhas.

E por tal forma verdascou o macho que D. Quixote não pôde perguntar-lhe que maravilhas eram essas que tencionava contar-lhes; e, como era curioso e o perseguiam sempre desejos de saber coisas novas, determinou ir passar a noite na venda, sem parar na ermida, onde o primo do licenciado queria que ficassem. Assim se fez, montaram a cavalo, e seguiram todos três direitos à venda, onde chegaram pouco antes de anoitecer. Dissera o primo do licenciado a D. Quixote que entrassem na ermida para beber uma pinga.

Apenas Sancho Pança ouviu isto, logo para lá dirigiu o ruço, e o mesmo fizeram D. Quixote e o guia; mas a má sorte de Sancho ordenou que o ermitão não estivesse em casa, que assim lho disse um sota-ermitão que encontraram. Pediram-lhe vinho para o pagar. Respondeu-lhes que era coisa que lá não havia, mas que se queriam água de graça, lha daria de muito boa vontade.

- Se eu tivesse vontade de beber água - respondeu Sancho - há no caminho muitos poços, onde a teria satisfeito! Ah! bodas de Camacho! Farturas da casa de D. Diogo! Quantas vezes hei-

de ter saudades vossas!

Nisto, saíram da ermida e seguiram para a venda, e daí a pedaço toparam um rapazito, que ia caminhando adiante deles, mas sem grande pressa, e por isso logo o apanharam. Levava a espada ao ombro, e suspensa da espada uma troixa, que provavelmente havia de ser do fato, porque vestia só roupas

muito ligeiras, mas as meias eram de seda, e os sapatos quadrados à moda da corte.

Seria moço de dezoito a dezanove anos, ágil, de fisionomia alegre, e cantava seguidilhas para entreter o caminho.

Quando se aproximaram, ia ele cantando uma que dizia assim:

A guerra me levam, mas não por vontade. Tivesse eu dinheiro, não fora, em verdade.

O primeiro que lhe falou foi D. Quixote, dizendo-lhe:

- Muito à ligeira caminha Vossa Mercê, Senhor Galã, e para onde vai? Saibamo-lo, se não tem dúvida em o dizer. A isto respondeu o moço:

- O caminhar vestido tanto à ligeira, motivam-no o calor e a pobreza, e para onde vou é para a guerra.

- A pobreza como? - perguntou D. Quixote. - Lá o calor entendo eu.

- Senhor - tornou o mancebo -, levo nesta troixa uns calções de veludo; se os gasto, não me posso honrar com eles na cidade, e não tenho dinheiro para comprar outros; e tanto por isso, como para me arejar, vou desta maneira, até alcançar umas companhias de infantaria, que estão a umas doze léguas daqui;

nessas companhias assentarei praça, e não faltarão mulas de bagagens que me levem até ao sítio do embarque, que dizem que há-de ser em Cartagena; antes quero servir na guerra el-rei, e tê-lo por amo e Senhor, do que a qualquer figurão da corte.

- E Vossa Mercê, porventura, leva algum posto? - perguntou o primo do licenciado.

- Se eu tivesse servido um grande de Espanha, ou qualquer personagem principal, decerto que o levaria - respondeu o moço -, que isso se lucra em servir os grandes; passa-se do tinelo a ser-se alferes ou capitão, ou a ter um bom emprego;

mas eu, desventurado, servi sempre a uns pelintras, de rendimentos tão minguados, que se lhes ia metade em pagar o engomado de um cabeção, e seria milagre que um pajem aventureiro alcançasse alguma coisa que razoável fosse.

- Mas diga-me lá, amigo - tornou D. Quixote -, é possível que nenhum dos amos que serviu lhe desse ao menos uma libré?

- Houve dois que ma deram - respondeu o pajem -, mas assim como àquele que sai de uma Ordem religiosa antes de professar, lhe tiram o hábito, e lhe restituem o fato secular, assim me faziam os meus amos, que, acabados os negócios que os traziam à corte, voltavam para suas casas, e levavam as librés, que só por ostentação me tinham dado.

- Insigne vileza! - redarguiu D. Quixote. - Mas felicite-se por ter saído da corte com tão boa intenção, como essa que leva, porque não há outra coisa na Terra, de mais honra e mais proveito, do que servir a Deus primeiramente, e logo em seguida ao seu rei e Senhor natural, especialmente no exercício das armas, pelas quais se alcança, senão mais riquezas, pelo menos mais honra do que pelas letras, como eu tenho dito muitas vezes; que ainda que as letras têm fundado mais morgados do que as armas, há nestas, contudo, mais esplendor, que lhes dá vantagem. E isto que lhe quero dizer agora, leve-o na memória, que lhe será de muito proveito e alívio nos seus trabalhos, e é que aparte a imaginação dos sucessos adversos que lhe puderem acontecer, que o pior de todos é a morte. Perguntaram a Júlio César - o valoroso imperador romano - qual era a melhor morte. Respondeu que era a impensada, a súbita e imprevista; e, ainda que respondeu como gentio e bem alheio ao conhecimento do verdadeiro Deus, com tudo isso não disse mal, para se poupar ao sentimento humano. Ainda que vos matem, na primeira facção ou refrega, ou com um tiro de peça, ou indo pêlos ares com a explosão de uma mina, que importa? Tudo é morrer; e, segundo diz Terêncio, melhor parece o soldado morto na batalha, do que vivo e salvo na fuga; e tanto maior fama alcança o bom soldado, quanto maior é a sua obediência aos capitães e aos que o podem mandar; e, reparai, filho, que fica melhor ao soldado cheirar a pólvora que a âmbar; e se a velhice vos colher nesse honroso exercício, ainda que seja cheio de feridas, estropiado e coxo, pelo menos não vos poderá colher sem honra, e tal, que a pobreza vo-la não poderá menoscabar; tanto mais que já se vai tratando de alimentar e remediar os soldados velhos e estropiados, porque não é bem que se faça com eles o que fazem os que resgatam os seus negros quando já são velhos e não podem servir, e, pondo-os fora de casa com o título de forros, os fazem escravos da fome, escravidão de que só podem resgatar-se com a morte; por agora, nada mais vos digo senão que monteis na anca do meu cavalo até à venda, e ali ceareis comigo; pela manhã, seguireis vosso caminho, e Deus vo-lo dê tão bom como os vossos bons desejos merecem.

O pajem não aceitou o convite para montar a cavalo, mas aceitou o da ceia; e Sancho, entretanto, dizia de si para si:

- Valha-te Deus, que pode; como é que um homem que sabe tais, tantas e tão boas coisas como as que acaba de proferir, afirma também que viu os impossíveis disparates que conta da cova de Montesinos? Ele o dirá.

Nisto, chegaram à venda, quando já ia a anoitecer, e Sancho ficou muito satisfeito por ver que seu amo a tomou por verdadeira venda, e não por castelo, como costumava. Apenas entraram, logo D. Quixote perguntou ao vendeiro pelo homem das lanças e das alabardas, e o vendeiro disse-lhe que estava na cavalariça a acomodar o macho; o mesmo fizeram Sancho e o guia aos seus jumentos, dando a Rocinante o melhor lugar da estrebaria.

 

ONDE SE CONTA A AVENTURA DOS ZURROS, E O GRACIOSO CASO DO HOMEM DOS TTERES, COM AS MEMORÁVEIS ADIVINHAÇÕES DO MACACO

ão descansou D. Quixote enquanto não pôde ouvir e saber as maravilhas prometidas pelo almocreve das armas. Foi-o buscar ao sítio onde o vendeiro lhe dissera que ele estava; encontrou-o e instou-o para que lhe dissesse logo o que lhe havia de dizer depois, acerca do que lhe perguntara no caminho.

O homem respondeu-lhe:

- Mais devagar, e sem ser de pé, hei-de contar as minhas maravilhas; deixe-me Vossa Mercê, meu bom Senhor, acabar de tratar do macho, que eu lhe direi coisas que o espantem.

- Lá nisso não esteja a dúvida - respondeu D. Quixote - que eu vos ajudarei em tudo.

E assim o fez, começando logo a tratar da ração do animal, e da limpeza da manjedoura, humildade que obrigou o homem a contar-lhe com muito boa vontade o que ele lhe pedia; e, sentando-se num poial, e D. Quixote junto dele, tendo por senado e auditório o primo do licenciado, o pajem, Sancho Pança e o vendeiro, principiou a dizer desta maneira:

- Saberão Vossas Mercês, que num lugar, que fica a quatro léguas e meia desta venda, sucedeu que a um regedor, por indústria e engano de uma rapariga sua criada (e isto são contos largos), lhe faltou um burro; e, apesar de o tal regedor fazer as possíveis diligências para o encontrar, não o conseguiu. Teriam passado quinze dias, segundo é pública voz e fama, quando uma vez, estando ele na praça, outro regedor do mesmo povo lhe disse:

- Dai-me alvíssaras, compadre, que o vosso jumento apareceu.

- Eu vo-las mandarei, e boas, compadre - respondeu o primeiro -, mas saibamos onde é que ele está.

- No monte o vi eu esta manhã - tornou o outro - sem albarda nem aparelho de espécie alguma, e tão magro, que era uma compaixão; quis ver se o apanhava, e se vo-lo trazia; mas está já tão bravio e montês, que apenas me cheguei a ele fugiu a sete pés, e sumiu-se; se quereis que vamos ambos procurá-lo, deixai-me pôr esta burrica lá em casa, que eu já volto.

- Grande favor me fareis - tornou o dono do burro - e eu procurarei pagar-vo-lo na mesma moeda.

Com estas circunstâncias todas, e do modo que eu vou contando, o referem os que estão inteirados da verdade deste caso. Enfim, os dois regedores foram a pé até ao monte, e, chegando ao sítio onde supuseram encontrar o jumento; não o acharam, nem apareceu em todos aqueles contornos, por mais que o procurassem. Vendo, pois, que não aparecia, disse o regedor, que o encontrara, para o outro:

- Olhai, compadre, lembrei-me agora de uma traça, com a qual sem dúvida alguma poderemos descobrir o maldito animal, ainda que esteja metido nas entranhas da terra; e é que eu sei zurrar admiravelmente, e se vós também sabeis alguma coisa, está tudo concluído.

- Alguma coisa, dizeis vós, compadre? - tornou o dono do burro. - Por Deus, que nisso ninguém se me avantaja, nem os próprios jumentos.

- Agora o veremos - redarguiu o segundo regedor -; ide vós por um lado e eu por outro, de modo que rodeemos todo o monte, e, de espaço a espaço, zurrareis vós e zurrarei eu, e, se o jumento por cá estiver, decerto nos ouve e nos responde.

- Digo, compadre, que a traça é excelente e digna do vosso grande engenho.

Separaram-se os dois, conforme o combinado, e sucedeu que zurraram quase ao mesmo tempo, e, enganado cada um pelo zurro do outro, correram julgando que aparecera o jumento, e, ao encontrarem-se, disse o dono:

- E possível, compadre, que não fosse o meu burro que orneou?

- Fui eu - respondeu o outro.

- Agora digo - tornou o dono - que em zurrar sois um asno perfeito, porque nunca ouvi na minha vida coisa mais própria.

- Esses louvores e encarecimentos - respondeu o inventor da traça - melhor vos cabem a vós do que a mim, compadre; que, pelo Deus que me criou, podeis dar dois zurros de partido ao maior e mais perito zurrador deste mundo; porque o som que tendes é alto, o sustenido da voz a tempo e compasso, os zurros muito encadeados, e, enfim, dou-me por vencido, entrego-vos a palma, e a bandeira desta rara habilidade.

- Agora digo - respondeu o dono - que me terei em maior conta daqui por diante, e entenderei que valho mais alguma coisa, porque, ainda que sempre supus que zurrava bem, nunca pensei que chegasse ao extremo que alegais.

- Também direi agora - acudiu o outro - que há habilidades raras perdidas no mundo, e que são mal empregadas nos que não sabem aproveitá-las.

- As nossas - respondeu o dono -, a não ser no caso que temos entre mãos, para nada nos podem servir, e ainda neste, praza a Deus que nos aproveitem.

Dito isto, tornaram a separar-se e a zurrar outra vez, e a cada instante se enganavam, e corriam um para o outro, até que combinaram, que para entender que eram eles e não o burro, zurrassem duas vezes, uma atrás da outra. Com isto, dobrando a cada passo os zurros, rodearam todo o monte, sem que o perdido jumento respondesse nem por sombras. Mas como havia de responder o pobre e malogrado animal, se o encontraram no sítio mais recôndito do monte, comido dos lobos? E, ao vê-lo, disse o dono:

- Eu já me espantava de que ele não respondesse, pois, a não estar morto, ou zurraria se nos ouvisse, ou não seria burro;

mas, a troco de vos ter ouvido zurrar com tanta graça, compadre, dou por bem empregado o trabalho que tive em procurá-lo, apesar de o ter encontrado morto.

- O mesmo digo eu, compadre - respondeu o outro -, se bem canta o abade, não lhe fica atrás o noviço.

Com tudo isto, voltaram desconsolados e roucos para a sua aldeia, onde contaram aos seus amigos, vizinhos e conhecidos, tudo o que lhes acontecera na busca do jumento, exagerando cada um a graça do outro no zurrar; soube-se o caso, espalhou-se pêlos lugares circunvizinhos, e o Diabo, que não dorme, como é amigo de semear bulhas e discórdias por toda a parte, e faz castelos do vento e grandes quimeras de nada, fez com que a gente das outras povoações, em vendo algum da nossa aldeia, zurrasse, como para lhes lançar em rosto o zurro dos nossos regedores. Deram com o caso os rapazes, que foi o mesmo que cair nas mãos e nas bocas dos demónios do Inferno, e tanto foi rendendo o zurro, que os da minha aldeia são conhecidos e diferençados como os negros dos brancos; e a tanto chegou a desgraça desta zombaria, que muitas vezes, com mão armada e esquadrão formado, saíram os caçoados contra os caçoantes, a darem batalha, sem o poder remediar nem rei, nem roque, nem temor, nem vergonha. Creio que amanhã ou depois hão-de sair em campanha os da minha aldeia, contra outro lugar que fica a duas léguas do nosso, que é um dos que mais nos perseguem; e, para sairmos bem apercebidos, fui comprar as lanças e alabardas que vistes. E são estas as maravilhas que disse que vos havia de contar, e se tais vos não pareceram, outras não as sei.

Com isto dava fim à sua prática o narrador, quando entrou pela porta da venda um homem todo vestido de camurça, meias, calções e gibão, e disse em voz alta:

- Senhor Hospedeiro, há pousada? Vem aqui o macaco adivinho e o retábulo da liberdade de Melisendra.

- Corpo de tal - acudiu o vendeiro -, aqui temos o Senhor Mestre Pedro: alegre noite se nos prepara!

Esquecia-me dizer que o tal mestre Pedro trazia tapado o olho esquerdo, e quase meio carão, com um parche de tafetá verde, sinal de que todo aquele lado devia de estar enfermo; e o vendeiro prosseguiu, dizendo:

- Seja bem-vindo Senhor Mestre Pedro; mas onde estão o macaco e o retábulo, que os não vejo?

- Aí vêm já - respondeu Pedro -; eu é que me adiantei a saber se há pousada.

- Ao próprio duque de Alba a tiraria para vo-la dar Senhor Mestre Pedro - respondeu o vendeiro -, venham o macaco e o retábulo, que esta noite há gente na venda, que pagará para os ver e ouvir.

- Seja em muito boa hora - respondeu o do parche -, que eu estipularei preços moderados, e contentar-me-ei com que me paguem o custo da pousada; vou apressar a vinda da carreta, que traz o macaco e o retábulo.

E logo saiu da venda. Perguntou D. Quixote ao vendeiro que mestre Pedro era aquele, e que retábulo e que macaco trazia.

- É um famoso mostrador de títeres - respondeu o vendeiro - que há muitos dias que anda por esta Mancha do Aragão, mostrando um retábulo da liberdade de Melisendra, dada pelo famoso D. Gaifeiros, que é uma das melhores e mais bem representadas histórias, que há muitos anos a esta parte se tem visto neste reino; traz também consigo um macaco, da mais rara habilidade, que se viu em macacos, ou se imaginou em homens; porque, se lhe perguntam alguma coisa, está com muita atenção, e logo em seguida salta para os ombros de seu amo, e, chegando-se-lhe ao ouvido, lhe diz a resposta do que lhe perguntam, e mestre Pedro declara-a imediatamente; e das coisas passadas diz muito mais que das futuras, e, ainda que nem sempre em todas acerta, a maior parte das vezes não erra, de forma que nos faz crer que tem o Diabo no corpo. Leva mestre Pedro dois réis por cada pergunta se o macaco responde, quer dizer, se depois de ter falado ao ouvido do amo, este responde por ele, e assim imagina-se que o tal mestre Pedro está riquíssimo, e é um bom companheiro, e passa a vida regalada; fala mais do que seis, e bebe mais do que doze, tudo à custa da sua língua, do seu macaco, e do seu retábulo.

Nisto, voltou mestre Pedro, trazendo numa carreta o retábulo e o macaco, grande e sem rabo, com as pousadeiras peladas, mas de focinho alegre; e apenas D. Quixote o viu, perguntou-lhe:

- Diga-me Vossa Mercê, Senhor Adivinho: que mouro temos na costa? E que há-de ser de nós outros? Aqui estão já os meus dois réis.

E mandou a Sancho que os desse a mestre Pedro, que respondeu pelo macaco:

- Senhor, este animal não dá notícia das coisas futuras; sabe um pouco das passadas, e um tanto das presentes.

- Diabos me levassem - disse Sancho - se eu desse um ceitil para me dizerem o que se passou comigo, porque lá isso quem o pode saber melhor do que eu próprio? E pagar para que me digam o que sei, seria uma grande asneira; mas, se sabe as coisas presentes, aqui estão dois réis: diga-me o Senhor Macacão, o que está fazendo agora minha mulher Teresa Pança, e em que é que se entretém?

Não quis mestre Pedro receber o dinheiro, dizendo:

- Não costumo receber adiantados os prémios, sem os terem precedido os serviços; e, dando com a mão direita duas pancadas no ombro esquerdo, num trinque saltou para ali o macaco, e, chegando-lhe a boca ao ouvido, batia a dentuça muito depressa; e, tendo feito este adea por espaço de um credo, noutro trinque saltou para o chão, e logo com grandíssima pressa foi mestre Pedro pôr-se de joelhos diante de D. Quixote, e, abraçando-lhe as pernas, disse:

- Abraço estas pernas, como se abraçasse as duas colunas de Hércules, ó ressuscitador insigne da já olvidada cavalaria andante! Ó nunca assaz louvado cavaleiro D. Quixote de La Mancha, ânimo dos desmaiados, arrimo dos que vão a cair, braço dos caídos, báculo e consolação de todos os desditosos!

Picou pasmado D. Quixote, absorto Sancho, suspenso o guia, atónito o pajem, aparvalhado o do zurro, confuso o vendeiro, e, finalmente, espantados todos os que ouviram as razões do homem dos títeres, que prosseguiu, dizendo:

- E tu, ó bom Sancho Pança, o melhor dos escudeiros do melhor dos cavaleiros do mundo, alegra-te, que a tua mulher Teresa vai de saúde, e a estas horas está ela fiando na sua roca, e por sinal tem à esquerda um canjiro, cheio de boa pinga, com que se entretém no seu trabalho.

- Isso acredito eu - respondeu Sancho - porque ela é uma bem-aventurada, e, se não fosse ciumenta, não a trocaria pela própria giganta Andanhona, que, segundo diz meu amo, foi mulher de prol; e a minha Teresa é daquelas que não se deixam passar mal, ainda que seja à custa dos seus herdeiros.

- Agora digo eu - interrompeu D. Quixote - que quem lê muito e viaja muito, muito vê e muito sabe. Digo isto, porque ninguém seria capaz de persuadir-me que houvesse macacos no mundo que adivinham, como agora vi com os meus olhos;

porque sou, efectivamente, o D. Quixote de La Mancha, que esse bom animal disse, ainda que exagerou um pouco os meus louvores; mas, seja eu quem for, dou graças ao Céu, que me dotou de um ânimo brando e compassivo, inclinado sempre a fazer bem a todos e mal a ninguém.

- Se eu tivesse dinheiro - disse o pajem - perguntaria ao Senhor Macaco o que me há-de suceder nesta peregrinação que eu levo.

A isso respondeu mestre Pedro, que acabara de se levantar:

- Já disse que este animalejo a respeito do futuro não responde coisa alguma, que, se respondesse, não importaria que não tivesse dinheiro, que, por serviço do Sr. D. Quixote, que se acha presente, deixaria eu todos os interesses do mundo; e agora, porque lho devo, e para lhe ser agradável, vou armar o meu retábulo e divertir todos os que estão na venda, sem receber a mínima paga.

Ouvindo isto, o vendeiro, sobremaneira alegre, indicou o sítio onde se podia pôr o retábulo, que num momento se armou. D. Quixote não estava muito satisfeito com as adivinhações do macaco, por lhe parecer que não era muito corrente que um macaco adivinhasse nem coisas futuras, nem passadas; e assim, enquanto mestre Pedro acomodava o retábulo, retirou-se D. Quixote com Sancho para um canto da cavalariça, onde lhe disse em voz baixa:

- Olha, Sancho, que eu reflecti bem na extrema habilidade deste macaco, e entendo que sem dúvida mestre Pedro deve ter feito pacto expresso ou tácito com o Demónio:

- Se o pátio é espesso, e do Demónio ainda por cima - respondeu Sancho -, há-de sem dúvida ser muito sujo; mas que proveito tira mestre Pedro de ter esses pátios?

- Não me entendes, Sancho; quero dizer que ele tem por força algum contrato com o Demónio, para que infunda no macaco essa habilidade que lhe dê de comer, e depois de estar rico lhe dará a sua alma, que é o que pretende este universal inimigo; e faz-me crer isso mesmo não responder o macaco senão a respeito de coisas passadas e presentes, porque a sabedoria do Diabo também se não estende a mais, que as do porvir não as sabe senão por conjectura, e nem sempre, que só a Deus está reservado o conhecer os tempos e os momentos, e para Ele não há passado, nem futuro, que tudo é presente; e, sendo isto assim, como é, está claro que este macaco fala com o estilo do Diabo, e admira-me como o não acusaram ainda ao Santo Ofício, como o não examinaram, e não o obrigaram a dizer por virtude de quem adivinha; porque é certo que não é astrólogo este macaco, e que nem ele, nem o seu dono, levantam, nem sabem levantar essas figuras a que chamam judiciárias, tão usadas agora na Espanha, que não há mulherzinha, nem pajem, nem remendão que não tenha presunções de levantar uma figura, como quem levanta do chão uma sota de qualquer naipe, deitando a perder com as suas mentiras e a sua ignorância a verdade maravilhosa da ciência. De uma senhora sei eu que perguntou a um destes figureiros, se uma cadelinha sua pariria, e quantos, e de que cor seriam os cachorrinhos. E o tal Senhor Judiciário, depois de ter levantado a figura, respondeu que a cadelita havia de parir três cachorrinhos: um verde, outro vermelho, outro malhado, contanto que fosse coberta entre as onze e a meia-noite, numa segunda-feira, ou num sábado; e daí a dois dias a cadela morreu, mas nem por isso o tal figurão deixou de passar por acertadíssimo judiciário, como passam todos ou a maior parte deles.

- Apesar de tudo, eu quereria - disse Sancho - que Vossa Mercê dissesse a mestre Pedro que perguntasse ao seu macaco se é verdade o que Vossa Mercê passou na cova de Montesinos; que eu tenho para mim, com perdão de Vossa Mercê, que tudo foi patranha, ou sonho, pelo menos.

- Pode ser - respondeu D. Quixote -, mas sempre farei o que me aconselhas, apesar de ter nisso um certo escrúpulo.

Estavam nisto, quando chegou mestre Pedro à procura de D. Quixote, para lhe dizer que já estava em ordem o retábulo, e Sua Mercê que o viesse ver, porque o merecia. D. Quixote comunicou-lhe o seu pensamento, e rogou-lhe que perguntasse logo ao macaco se certas coisas que se tinham passado na cova de Montesinos tinham sido sonhadas ou verdadeiras, porque lhe parecia a ele que tinham de tudo. Mestre Pedro, sem responder palavra, foi buscar o macaco, e, pondo-se diante de D. Quixote e de Sancho, disse:

- Olhai, Senhor Macaco, que este cavaleiro quer saber se certas coisas, que se passaram com ele numa cova chamada de Montesinos, foram falsas ou verdadeiras.

E, fazendo-lhe o sinal costumado, o macaco trepou-lhe para o ombro esquerdo, pareceu que lhe falava ao ouvido, e mestre Pedro disse logo:

- Diz o macaco, que parte das coisas que Vossa Mercê viu ou passou na dita cova, são falsas e outras verosímeis; e que mais nada sabe a esse respeito, e que, se Vossa Mercê quiser saber mais, na próxima sexta-feira responderá a tudo o que lhe perguntar.

- Não lhe dizia eu - acudiu Sancho - que se me não podia meter na cabeça que tudo o que Vossa Mercê disse da cova fosse verdadeiro, nem metade sequer?

- Os sucessos o dirão, Sancho - respondeu D. Quixote -, que o tempo, descobridor de todas as coisas, não deixa nenhuma que não tire à luz do Sol, ainda que esteja escondida nas entranhas da Terra; e por agora basta, e vamos ver o retábulo do bom mestre Pedro, que imagino que deve ter alguma novidade.

- Alguma? - respondeu mestre Pedro. - Sessenta mil encerra este meu retábulo: digo-lhe a Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, que é uma das coisas mais dignas de se verem que há hoje no mundo: operibus credite et non verbis, e mãos à obra, que se faz tarde; temos muito que fazer, que dizer e que mostrar.

Obedeceram-lhe D. Quixote e Sancho, e foram aonde estava o retábulo posto e descoberto, cheio por todos os lados de velinhas de cera, acesas, que o faziam vistoso e resplandecente. Mestre Pedro, que era quem havia de mexer as figuras, meteu-se para dentro, e ficou de fora um rapaz seu criado, para servir de intérprete e revelador dos mistérios do retábulo; tinha uma varinha na mão, com que apontava para as figuras que iam saindo. Reunidas, pois, todas as pessoas que estavam na venda, algumas de pé, defronte do retábulo, e sentados D. Quixote, Sancho, o pajem e o guia nos melhores lugares, o trugimão começou a dizer o que ouvirá ou verá quem ouvir ou ler o capítulo seguinte.

 

ONDE CONTINUA A GRACIOSA AVENTURA DO HOMEM DOS TÍTERES, COM OUTRAS COISAS NA VERDADE BONíSSIMAS

Calaram-se todos, tírios e troianos: quero dizer, estavam suspensos, todos os que contemplavam o retábulo, da boca do narrador das suas maravilhas, quando se ouviu tocar lá dentro uma grande quantidade de atabales e trombetas, e disparar-se muita artilharia, cujo rumor passou em tempo breve, e logo o rapaz levantou a voz, e disse:

- Esta verdadeira história, que aqui a Vossas Mercês se representa, é tirada ao pé da letra das crónicas francesas, e dos romances espanhóis, que andam na boca das gentes, e até na dos rapazes por essas ruas. Trata da liberdade que deu o Sr. D. Gaifeiros a sua esposa Melisendra, que estava cativa em Espanha, em poder dos mouros na cidade de Sansuena, que hoje se chama Saragoça; e vejam Vossas Mercês D. Gaieiros jogando as távolas, segundo o que se canta:

Jogando está D. Gaifeiros, de Melisendra esquecido.

E aquela personagem, que ali assoma, com a sua coroa na cabeça e ceptro nas mãos, é o imperador Carlos Magno, pai putativo da tal Melisendra, que, amofinado por ver o ócio e o descuido do seu genro, sai a ralhar com ele; e reparem no afinco e veemência com que o repreende, que não parece senão que lhe quer dar com o ceptro meia dúzia de carolos, e até há autores que dizem que lhos deu, e muito bem dados; e, depois de lhe ter dito muitas coisas, acerca do perigo que corria a sua honra com o não procurar a liberdade de sua esposa, afirmam que acrescentou:

Olhai que assaz eu vos disse.

Vejam Vossas Mercês também como o imperador volta costas, e deixa despeitado D. Gaieiros, que, já vêem, arroja impaciente de cólera, para longe de si, o tabuleiro e as távolas, e reclama a toda a pressa as armas, e a D. Roldão, seu primo, pede emprestada a sua espada Durindana, e como D. Roldão a não quer emprestar, oferecendo-lhe a sua companhia na difícil empresa em que se mete, o valoroso arrojado não a aceita, antes diz que só ele basta para salvar sua esposa, ainda que estivesse

metida no mais profundo centro da Terra; e com isto entra a armar-se, para se pôr logo a caminho. Voltem Vossas Mercês os olhos para aquela torre que ali se vê, que se pressupõe ser uma das torres do alcácer de Saragoça, a que chamam agora a Aljaferia, e a dama, que nesta sacada aparece vestida à mourisca, é a sem par Melisendra, que dali muitas vezes contemplava o caminho de França, e, posta a imaginação em Paris e no seu esposo, consolava-se no seu cativeiro. Reparem também num caso novo que sucede agora, nunca jamais acontecido. Não vêem aquele mouro, que às caladas, e pé ante pé, com o dedo nos lábios, chega por trás de Melisendra? Vejam como lhe dá um beijo na boca, e ela principia a cuspir, e a limpar-se com a branca manga da camisa; e lamenta-se, e arranca, de pesar, os seus formosos cabelos, como se eles tivessem culpa do malefício. Vejam também aquele mouro grave, que passeia nos corredores, que é o rei Marcílio de Sansuena, o qual, por ter visto a insolência do mouro, apesar de ser parente seu e grande seu privado, mandou logo que o prendessem, e lhe dessem duzentos açoites, depois de o terem passeado à vergonha pelas ruas da cidade; e aqui saem a executar a sentença, quase logo depois de praticada a culpa, porque entre os Mouros não há confrontações, e agravos, e apelações, como entre nós.

- Menino, menino - disse em voz alta D. Quixote -, segui com a vossa história em linha recta, e não vos metais por transversais e curvas, que para se tirar uma verdade a limpo são necessárias muitas confrontações e agravos.

- Rapaz - acudiu lá de dentro mestre Pedro -, não te metas em floreados, mas faz o que esse senhor te manda, que é o mais acertado; segue com o cantochão e deixa-te de contrapontos, que muitas vezes, à força de finos, quebram.

- Assim farei - respondeu o rapaz. E prosseguiu, dizendo:

- Esta figura, que aqui aparece a cavalo, coberta com uma capa gascã, é a de D. Gaieiros, que sua esposa esperava, e, já vingada do atrevimento do mouro enamorado, com melhor e mais sossegado semblante foi para o mirante da torre, e dali fala com seu marido, supondo que é algum viandante, com quem teve todos aqueles colóquios e arrazoados do romance, que diz:

Se a França ides cavaleiro, por Gaifeiros perguntai.

Não digo os versos agora, porque da prolixidade costuma gerar-se o fastio; basta ver como D. Gaifeiros se descobre, e pêlos ademanes alegres de Melisendra mostra-se que o conheceu, agora principalmente que vemos que salta da sacada para montar na anca do cavalo de seu bom esposo. Mas ai! Sem ventura! Prendeu-se-lhe a saia do vestido a uma das grades da sacada, e ei-la suspensa no ar. Vede, porém, como o piedoso Céu vale sempre aos aflitos, pois chega D. Gaifeiros, e sem lhe importar que a saia riquíssima se rasgue, puxa por Melisendra, escarrancha-a como um homem nas ancas do cavalo, monta ele também, e diz-lhe que o enlace com força nos braços para não cair, porque a sra. Melisendra não estava costumada a semelhantes cavalarias. Vede também como os relinchos do cavalo dão sinal de que vai contente com a valente e formosa carga do seu senhor e da sua senhora. Vede como saem da cidade, e alegres e satisfeitos tomam o caminho de Paris. Ide tranquilos, ó par sem par de verdadeiros amantes; chegai a salvamento à vossa desejada pátria, sem que a fortuna ponha estorvo à vossa feliz viagem; vejam-vos os olhos dos vossos amigos e parentes gozar em paz os dias de vida que vos restam, e que esses dias sejam tantos como os de Nestor.

Aqui levantou outra vez mestre Pedro a voz, para dizer:

- Simplicidade, rapaz; tudo quanto é afectado é mau. O intérprete, sem responder, prosseguiu, dizendo:

- Não faltaram olhos ociosos, que tudo costumam ver, e que deram pela descida de Melisendra, participando o caso ao rei Marcílio, que mandou logo tocar a rebate; e vejam com que pressa ressoam por toda a cidade os sinos de todas as torres das mesquitas.

- Isso não - acudiu D. Quixote -, lá nos sinos anda com muita impropriedade mestre Pedro, porque entre mouros não se usam: usam-se atabales, e um género de doçainas que parecem as nossas charamelas; e o tocarem sinos em Sansuena é sem dúvida um grande disparate.

Ouvindo isto, mestre Pedro deixou de tocar e disse:

- Não repare Vossa Mercê em ninharias, Sr. D. Quixote, nem queira levar as coisas tanto à risca. Não se representam todos os dias por aí mil comédias cheias de impropriedades e de disparates, e com tudo isso percorrem felicissimamente a sua carreira, e são escutadas não só com aplausos, mas até com admiração? Anda para diante, rapaz, e deixa dizer, que, em eu enchendo o saco, pouco importa que represente mais impropriedades do que de átomos tem o Sol.

- Isso é verdade - tornou D. Quixote.

- Vejam - continuou o rapaz - quanta e quão luzida cavalaria sai em seguimento dos dois católicos amantes; quantas trombetas soam, quantas doçainas tocam, e quantos atabales e tambores retumbam; receio bem que os alcancem, e que os tragam atados à causa do seu próprio cavalo, o que seria um horrendo espectáculo.

Vendo e ouvindo tanta mourisma e tanto estrondo, D. Quixote entendeu que era bem dar auxílio aos que fugiam, e, pondo-se em pé, disse:

- Não consentirei eu que nos meus dias, e diante de mim, se faça violência a tão famoso cavaleiro e a tão atrevido enamorado, como foi D. Gaieiros; detende-vos, torpe canalha, não o sigais nem o persigais, senão comigo vos havereis.

E, dizendo e fazendo, desembainhou a espada, num momento se aproximou do retábulo, e com acelerada e nunca vista fúria, começou a descarregar cutiladas sobre a mourisma titereira, derribando uns, descabeçando outros, estropiando este, destroçando aquele, e, entre muitas outras, atirou uma cutilada de alto a baixo, que, se mestre Pedro se não encolhe e acachapa, cerceava-lhe a cabeça, com mais facilidade do que se fosse de maçapão.

Gritava mestre Pedro, dizendo:

- Detenha-se Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, e advirta que esses que derriba, destroça e mata, não são verdadeiros mouros.

Mas nem por isso D. Quixote deixava de amiudar as cutiladas, talhos e reveses, que pareciam uma saraivada.

Finalmente, em menos de dois credos, deu com todo o retábulo no chão, com todas as figuras e pertences escavacados, o rei Marcílio malferido, e o imperador Carlos Magno com a coroa partida e a cabeça rachada de meio a meio.

Alvoroçou-se o senado dos ouvintes, fugiu para os telhados da venda o macaco; assustou-se o guia, acobardou-se o pajem, e o próprio Sancho Pança teve grandíssimo pavor, porque, como jurou depois de passada a borrasca, nunca vira seu amo com tão desatinada cólera.

Acabado o destroço geral do retábulo de mestre Pedro, sossegou um pouco D. Quixote, e disse:

- O que eu queria era ter agora na minha presença todos os que supõem que não servem de nada no mundo os cavaleiros andantes: vejam se eu aqui não estivesse presente, o que seria do bom D. Gaieiros e da formosa Melisendra; com certeza que a estas horas já os teriam apanhado estes cães, e lhes teriam feito algum desaguisado. Portanto, viva a cavalaria andante sobre todas as coisas que hoje vivem na Terra!

- Viva, muito embora - acudiu com vo plangente mestre Pedro - morra eu, pois sou tão desditoso, que posso dizer como el-rei Rodrigo:

Ontem era rei de Espanha, Hoje nem de pobre alfoz.

Ainda não há meia hora, nem meio instante, que eu me via senhor de reis e de imperadores, com as minhas cavalariças e os meus cofres e sacos cheios de infinitos cavalos e de inumeráveis galas, e agora vejo-me desolado e abatido, pobre e mendigo, e sobretudo sem o meu macaco, que por minha fé, primeiro que ele torne ao meu poder, hão-de-me suar os dentes, e tudo pela desconsiderada fúria deste Senhor Cavaleiro, de quem se diz que ampara pupilos e desfaz agravos, e pratica outras obras caritativas, e só comigo lhe falhou a sua intenção generosa, benditos e adorados sejam os altos Céus!

Enfim, tinha de ser o Cavaleiro da Triste Figura que me havia de desfigurar as minhas.

Entemeceu-se Sancho Pança com as razões de mestre Pedro, e disse-lhe:

- Não chores, mestre Pedro, nem te lamentes, que me despedaças o coração, e meu amo D. Quixote é por tal forma católico e escrupuloso, que, se reparar que te fez algum agravo, to saberá e quererá pagar com grandes vantagens.

- Se o Sr. D. Quixote me pagasse uma parte das coisas que me desfez, já eu ficaria satisfeito, e Sua Mercê sossegaria a sua consciência, porque se não pode salvar quem mete em si o alheio contra a vontade do seu dono, e não lho restitue.

- Assim é - acudiu D. Quixote - mas até agora não me consta que eu metesse em mim nada que vosso seja, mestre Pedro.

- Ora essa! - exclamou o titereiro. - E estas relíquias que estão espalhadas por esse duro e estéril solo, quem as espargiu e aniquilou senão a força invencível desse poderoso braço? E de quem eram os seus corpos, senão meus? E quem é que me dava de comer, se não eram eles?

- Agora acabo de crer - disse D. Quixote - que esses malditos nigromantes que me perseguem não fazem senão pôr-me diante dos olhos as figuras como elas são, e logo mas trocam e mudam nas que eles querem. Real e verdadeiramente vos digo Senhores que me ouvis, que me pareceu que tudo o que aqui se passou sucedia na verdade; que Melisendra era Melisendra; D. Gaieiros, D. Gaieiros; Marcílio, Marcílio; e Carlos Magno, Carlos Magno: por isso acendeu-se-me a cólera, e para cumprir o meu dever de cavaleiro andante, quis ajudar e favorecer os que fugiam, e com este bom propósito fiz o que vistes. Se me saiu tudo às avessas, a culpa não é minha, mas sim dos maus, que me perseguem, e, contudo, por este meu erro, ainda que não procedesse da malícia, quero eu mesmo condenar-me nas custas; veja, mestre Pedro, o que quer pelas figuras escavacadas, que me ofereço a pagar-lho imediatamente em boa e corrente moeda castelhana.

Inclinou-se mestre Pedro, dizendo-lhe:

- Não esperava eu menos da inaudita cristandade do valoroso D. Quixote de La Mancha, verdadeiro amparo de todos os necessitados e vagabundos; e aqui o Senhor Vendeiro, e o grande Sancho, serão medianeiros entre mim e Vossa Mercê, e apreciadores do que valem e podiam valer as escangalhadas figuras.

O vendeiro e Sancho acederam, e logo mestre Pedro levantou do chão o descabeçado Marcílio, rei de Saragoça:

- Vê-se bem que é impossível fazer voltar este rei ao seu primeiro ser; e assim, parece-me, salvo melhor juízo, que se me dêem por sua morte, fim e acabamento, quatro réis e meio.

- Adiante! - acudiu D. Quixote.

- Pois por esta fenda de cima a baixo - prosseguiu mestre Pedro, tomando nas mãos o despedaçado imperador Carlos Magno - não seria muito pedir eu cinco réis e um quarto.

- Não é pouco - disse Sancho.

- Nem muito - observou o vendeiro -; parta-se a contenda ao meio, e dão-se-lhe cinco réis.

- Dêem-se-lhe os cinco réis e um quarto - acudiu D. Quixote - que não está num quarto mais, ou num quarto menos, a conta desta notável desgraça; e acabe depressa, mestre Pedro, que já são horas de cear, e eu tenho certos rebates de fome.

- Por esta figura, que está sem nariz, e com um olho de menos - disse mestre Pedro - que é a da formosa Melisendra, quero dois réis e doze maravedis, e é o menos.

- Isso seria bom - acudiu D. Quixote - se D. Melisendra não estivesse já com seu esposo, pelo menos na raia da França, porque o cavalo que a levava pareceu-me que antes voava que corria; e assim, não me queira impingir gato por lebre, apresentando-me aqui Melisendra desnarigada, quando a verdadeira está a estas horas muito regalada em França, com seu esposo, de perna estendida; Deus ajude a cada qual com o que é seu, Senhor Mestre Pedro; caminhemos todos com pé direito e boa intenção, e prossiga.

Mestre Pedro, que viu que D. Quixote principiava a variar, e tornava ao primeiro tema, não quis que ele lhe escapasse, e disse-lhe:

- Não será esta então Melisendra, mas alguma das donzelas que a serviam; e assim, com sessenta maravedis que por ela me dêem, ficarei satisfeito e bem pago.

Desta maneira foi pondo preço a outras muitas figuras destroçadas, preços moderados depois pêlos dois árbitros, com satisfação das duas partes, e que chegaram a quarenta réis e três quartos; e, além desta soma, que logo Sancho desembolsou, pediu mestre Pedro dois réis pelo trabalho de apanhar o macaco.

- Dá-lhos, Sancho - disse D. Quixote. - Duzentos daria eu agora em alvíssaras a quem me dissesse com certeza se a sra. D. Melisendra e o Sr. D. Gaieiros já estão em França, e entre os seus.

- Ninguém no-lo poderá dizer melhor que o meu macaco - tornou mestre Pedro -; mas não haverá Diabo que seja agora capaz de o apanhar, ainda que imagino que a fome e o afecto o hão-de obrigar a vir ter comigo esta noite; e quando amanhecer nós veremos.

Enfim, acabou a borrasca do retábulo, e todos cearam em paz e boa companhia, à custa de D. Quixote, que era liberal em extremo. Antes de amanhecer, foi-se embora o que levava as lanças e as alabardas, e, já depois de manhã clara, vieram despedir-se de D. Quixote o primo do licenciado e o pajem - aquele para voltar para a sua terra, e este para seguir o seu caminho; e para o ajudar, deu-lhe D. Quixote uma dúzia de réis. Mestre Pedro não quis mais dares e tomares com D. Quixote, que ele conhecia perfeitamente; e assim, madrugou antes do Sol, e, juntando o macaco e as relíquias do seu retábulo, partiu também à cata de aventuras. O vendeiro, que não conhecia D. Quixote, estava tão pasmado com as suas loucuras como com a sua liberalidade. Finalmente, Sancho pagou-lhe à larga, por ordem de seu amo, e, despedindo-se dele, saíram da venda quase às oito horas da manhã, e puseram-se a caminho.

Deixemo-los ir, que assim é necessário, para se contarem outras coisas pertencentes à explicação desta famosa história.

 

ONDE SE DÁ CONTA DE QUEM ERAM MESTRE PEDRO E O SEU MACACO, E TAMBÉM DO mau RESULTADO QUE TIROU D. QUIXOTE DA AVENTURA DO ZURRO, A QUE NãO PÔS O TERMO QUE DESEjAVA E PENSAVA

Entra Cide Hamet, cronista desta grande história, neste capítulo com as seguintes palavras:

«Juro, como cristão católico”, segundo diz o seu tradutor, que jurar Cide Hamet como católico cristão, sendo ele mouro, não quer dizer outra coisa senão que, assim como o católico cristão, quando jura, diz ou deve dizer a verdade, assim ele a diria no que de D. Quixote queria escrever, mormente em referir quem era mestre Pedro, e o macaco adivinho, que trazia pasmados todos aqueles povos; diz, pois, que bem se recordará quem tiver lido a primeira parte desta história, daquele Gines de Passa-Monte, a quem, juntamente com os outros galeotes, deu liberdade D. Quixote na serra Morena, benefício que depois lhe foi mal agradecido e mal pago por aquela gente maligna e mal costumada. Este Gines de Passa-Monte, a quem D. Quixote chamava Ginesillo de Parapilia, foi quem furtou o ruço a Sancho Pança, que até por se não ter contado na primeira parte, por culpa dos impressores, nem como nem quando esse furto se fizera, deu que entender a muitos, que atribuíam à pouca memória do autor o erro da imprensa. Mas, em conclusão, Gines furtou o burro estando Sancho Pança montado, a dormir, usando do estratagema que usou Brunelo, quando, estando Sacripanta montado em Aibraca, lhe tirou o cavalo de entre as pernas; e Sancho depois recuperou o jumento, como já se contou. Este Gines, pois, com medo de ser apanhado pela justiça, que o procurava para o castigar pelas suas infinitas malfeitorias, velhacarias, e delitos, que foram tantos e tais, que ele mesmo compôs um grande volume, em que os narrava, resolveu passar para o reino de Aragão, e tapar o olho esquerdo, empregando-se no ofício de titereiro, que em habilidades de mãos ninguém o excedia. Sucedeu, pois, que a uns cristãos já libertos, que vinham da Barbaria, comprou aquele macaco, a quem ensinou o

saltar-lhe para o ombro, em ele lhe fazendo certos sinais, e o murmurar-lhe ou o fingir que lhe murmurava ao ouvido. Feito isto, antes de entrar em qualquer sítio com o seu retábulo e o seu macaco, informava-se no lugar mais próximo, ou com quem podia, a respeito de quaisquer particularidades que houvessem acontecido no tal sítio, ou das pessoas que lá estivessem; e, levando essas informações bem de memória, a primeira coisa que fazia era mostrar o seu retábulo, em que representava diversas histórias, mas todas alegres, divertidas e conhecidas; acabado o espectáculo, propunha as habilidades do macaco, dizendo ao povo que adivinhava o passado e o presente, mas que do futuro nada sabia.

Pela resposta a cada pergunta pedia dois réis, e às vezes levava mais barato, conforme tomava o pulso aos perguntadores; e, quando chegava a casas, onde morava gente a quem tinham sucedido coisas que ele sabia, ainda que nada lhe perguntassem, para lhe não pagarem, fazia snal ao macaco, e logo bradava que ele lhe dissera tais e tais coisas, que vinham de molde com acontecido. Assim alcançava crédito, e andavam todos atrás dele; outras vezes, como era muito discreto, respondia de modo que as respostas se acomodassem às perguntas, e como ninguém o apertava para ele dizer como era que o macaco adivinhava, a todos burlava, e ia enchendo as algibeiras. Logo que entrou na venda, reconheceu D. Quixote e Sancho, e esse reconhecimento tornou-lhe fácil causar-lhes a ambos grande admiração, e a todos os que estavam na venda; mas esteve para lhe sair cara a brincadeira, se D. Quixote abaixasse mais a mão, e lhe destruísse toda a sua cavalaria, como fica dito no antecedente capítulo. É isto o que há a dizer de mestre Pedro e do seu macaco.

Voltando a D. Quixote de La Mancha, referirei que, depois de ter saído da venda, resolvera ir ver primeiro as margens do rio Ebro, e todos aqueles contornos, antes de entrar na cidade de Saragoça, porque lhe dava tempo para tudo o muito que faltava ainda para começarem as justas. Com esta intenção, seguiu o seu caminho, em que andou dois dias, sem lhe acontecer coisa digna de se contar; até que ao terceiro dia, ao subir uma

encosta, ouviu grande estrondo de tambores, trombetas, e de arcabuzes. Primeiro pensou que passava por aquele sítio algum terço de soldados, e, para os ver, picou as esporas a Rocinante, e subiu a encosta; e, quando chegou ao cimo, viu na falda do outeiro mais de duzentos homens armados com diversas armas, tais como lanças, partasanas, bestas, alabardas, piques, alguns arcabuzes, e muitas rodelas. Desceu o outeiro, e acercou-se do esquadrão, até ver distintamente as bandeiras, e as cores, e as empresas, especialmente uma de cetim branco, em que se pintara ao vivo um burro, de cabeça levantada, boca aberta, língua de fora, como se estivesse a zurrar; ao redor liam-se, escritos em letras grandes, estes dois versos:

Não ornearam em vão Os alcaides da questão.

Por esta insígnia entendeu D. Quixote que aquela gente era o povo do zurro, e assim o disse a Sancho, declarando-lhe o que vinha escrito no estandarte. Disse-lhe também que o homem, que lhes contara aquele caso, enganara-se quando afirmara que tinham sido regedores os que zurraram, ao passo que os versos do estandarte mostravam que tinham sido alcaides.

- Senhor meu amo - respondeu Sancho Pança -, não há que reparar, que pode muito bem ser que os regedores que então zurraram viessem com o tempo a ser alcaides do seu povo, e assim podem-se designar por ambos os títulos; tanto mais que isso não faz nada ao caso, nem altera a verdade da história serem os zurradores regedores ou alcaides, contanto que eles zurrassem; porque tão a pique está de zurrar um alcaide como um regedor.

Finalmente, conheceram e souberam que o povo chacoteado saía a pelejar com o outro que o chacoteava em demasia. Chegou-se para eles D. Quixote, com grande desgosto de Sancho, que nunca foi amigo de se achar metido nessas danças. Os do esquadrão abriram-lhe campo, julgando que era algum dos da sua parcialidade. D. Quixote, alçando a viseira com gentil brio e porte, chegou ao pé do estandarte do burro, e ali o

rodearam os mais principais do exército para o verem, cheios do costumado pasmo que sentiam todos os que o divisavam pela primeira vez. D. Quixote, que os viu tão atentos a contemplarem-no, sem que nenhum deles lhe falasse, nem lhe perguntasse coisa alguma, quis aproveitar-se daquele silêncio, e, levantando a voz, disse:

- Meus bons Senhores, o mais encarecidamente que posso, vos suplico que não interrompais o discurso que vos quero fazer, até verdes se vos desgosta e enfada; e, se isso acontecer, ao mais leve sinal porei um selo na boca, e uma mordaça nos dentes.

Todos lhe afirmaram que podia dizer o que quisesse, que de bom grado o escutariam. D. Quixote, com esta licença, prosseguiu, dizendo:

- Eu, meus Senhores, sou cavaleiro andante, cujo exercício é o das armas, e cuja profissão é a de favorecer os que de favor precisam, e acudir aos que de socorro hão mister. Há dias que soube da vossa desgraça, e da causa que vos move a pegar em armas, para vos vingardes dos vossos inimigos; e, tendo pensado maduramente no vosso negóco, entendo, segundo as leis do duelo, que andais erradamente, supondo-vos afrontados, porque nenhum particular pode afrontar um povo inteiro, senão arrojando a todos juntos o epíteto de traidores, por não saber qual deles foi que cometeu a traição. Temos exemplo disto em D. Diogo Ordonez de Lara, que desafiou todo o povo de Samora, porque ignorava que só Velido Dolfos fora o traidor que matara o seu rei, e por isso a todos reptou, e a todos tocava a vingança, e a resposta; e, ainda assim, não pode deixar de se dizer que o Sr. D. Diogo andou com certa precipitação, e passou muito adiante dos limites do repto, porque no tinha motivo para reptar os mortos, as águas, e os pães, e os que ainda não tinham nascido, nem as outras minudências que no desafio se declaram; mas, enfim, passe! Porque, quando a cólera se apodera impetuosamente de um homem, não há quem lhe segure a língua, nem há freio que a corrija. Sendo, pois, isto assim, que um homem só não pode afrontar nem reino, nem província nem cidade, nem república, nem povo algum inteiro, é claro que não há motivo para sairdes a vingar-vos de semelhante afronta, que o não é, porque seria curioso que a cada passo se matassem os habitantes de diferentes povoações, que têm diversas alcunhas, e os que lhas puseram ou que por elas os chamem; seria estranho, decerto, que todos os povos insignes, que têm alcunhas, se chacoteassem e se vingassem, e andassem continuamente de espada desembainhada em qualquer pendência, por pequena que fosse. Não, não, nem Deus tal permita, nem queira; os varões prudentes, as repúblicas bem concertadas, por quatro coisas hão-de pegar em armas, e arriscar as suas pessoas, vidas e fazendas. Primeira, para defender a fé católica; segunda, para defender a vida, que é de lei natural e divina; terceira, em defesa da sua honra, da sua família e da sua fazenda; quarta, em serviço do seu rei em guerra justa; e, se lhe quisermos ainda acrescentar uma quinta causa, para defender a sua pátria. A estes cinco motivos capitais se podem acrescentar alguns outros justos e razoáveis, que obriguem a tomar as armas; toma-las, porém, por ninharias, e por causas que são antes de riso e passatempo, que de afronta, não parece de gente razoável; tanto mais que o tirar vingança injusta (que justa não a pode haver) vai directamente contra a Santa Lei que professamos, em que se nos manda que façamos bem aos nossos inimigos, e amemos a quem nos aborrece; mandamento que, ainda que pareça um tanto dificultoso de cumprir, não o é senão para aqueles que tem menos de Deus que do mundo, e mais de carne que de espírito, porque Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, que nunca mentiu, nem pôde nem pode mentir, sendo nosso legislador, disse que o seu jugo era suave, e leve a sua carga; e assim, não nos podia ordenar coisas que fossem impossíveis de executar. Portanto, meus Senhores, Vossas Mercês são obrigados, pelas leis divinas e humanas, a desistir da luta.

- Diabos me levem se este meu amo não é tólogo, e se o não é, parece-o - resmungou Sancho.

Parou um pedaço para respirar D. Quixote, e, notando que ainda lhe prestavam atenção, quis continuar com a sua prática, como continuaria, se não se metesse no meio a agudez de Sancho, que, vendo que seu amo se detinha, tomou a mão por ele, dizendo:

- Meu amo, D. Quixote de La Mancha, que em tempo se chamou o Cavaleiro da Triste Figura, e se chama agora o Cavaleiro dos Leões, é um fidalgo de muita esperteza, que sabe latim e espanhol como um bacharel; e em tudo quanto aconselha e trata procede como bom soldado, e traz de cor e salteadas todas as leis e ordenanças do que chamam duelo; e assim, não têm mais que fazer senão deixarem-se levar pelo que ele disser; tanto mais que ele diz muito bem, alegando que é asneira agoniar-se qualquer só por ouvir um zurro, que eu lembro-me que zurrava, quando era pequeno, sempre que me parecia, sem que ninguém me fosse à mão, e com tanta graça e propriedade que, em eu zurrando, zurravam todos os burros da povoação; e eu nem por isso deixava de ser filho de meus pais, que eram honradíssimos;

e, apesar de ser invejado por causa dessa prenda por mais de quatro, não se me dava disso; e, para que se veja que falo verdade, esperem e escutem, que esta ciência é como a de nadar:

em se aprendendo, nunca mais se esquece.

E, apertando o nariz com a mão, começou a zurrar com tamanho estrondo, que retumbaram todos os vales dos arredores; mas um dos que estavam ali ao pé, julgando que ele os chasqueava, levantou um varapau que tinha na mão, e arrumou-lhe tamanha bordoada, que deu com Sancho Pança em terra. D. Quixote, que viu Sancho tão malparado, arremeteu ao que lhe batera, mas foram tantos os que se meteram no meio, que não foi possível vingá-lo; antes, vendo que chovia sobre ele uma nuvem de pedras, e que o ameaçavam mil bestas retesadas, e não menor quantidade de arcabuzes, voltou as rédeas a Rocinante, e a todo o galope saiu do meio deles, encomendando-se de todo o coração a Deus, para que o livrasse de tamanho perigo, temendo a cada passo que lhe entrasse uma bala pelas costas e lhe saísse pelo peito, e a cada momento tomava a respiração para ver se lhe faltava; mas os do esquadrão contentaram-se em vê-lo fugir sem lhe atirarem. A Sancho, apenas tomou a si, puseram-no em cima do jumento, e deixaram-no ir atrás de seu amo, não que ele tivesse tino para o guiar, mas o ruço seguiu, como de costume, as pisadas de Rocinante. Quando D. Quixote se julgou a boa distância, voltou a cabeça e viu Sancho, e esperou-o, depois de observar que ninguém o seguia. Os do esquadrão estiveram ali até à noite e, por não terem saído a dar batalha os seus contrários, voltaram para a sua aldeia muito alegres, e, se soubessem o costume antigo dos Gregos, levantariam naquele lugar um trofeu.

 

DAS COISAS QUE DIZ BENENGELI, QUE SABERÁ QUEM AS LER, SE AS LER COM ATENÇãO

Quando o valente foge, é que está descoberta a cilada; e os varões prudentes devem guardar-se para melhor ocasião.

Afirmou-se essa verdade com D. Quixote, que, largando o campo à fúria do povo e às más tenções daquele indignado esquadrão, pôs os pés em polvorosa, e, sem se lembrar de Sancho, nem do perigo em que o deixava, apartou-se o espaço que lhe pareceu bastante para se ver em segurança. Seguia-o Sancho, atravessado em cima do jumento, como fica referido.

Chegou o pobre escudeiro, enfim, já recuperado do desmaio; e, ao chegar, deixou-se cair do ruço aos pés de Rocinante, ansioso, moído e desancado.

Apeou-se D. Quixote para lhe procurar as feridas; mas, como o encontrasse são dos pés até à cabeça, com bastante cólera lhe disse:

- Em má hora te lembraste de zurrar, Sancho; e quem te disse que era bom falar de corda em casa de enforcado? Para música de zurros, que compasso se havia de encontrar, que não fosse de varapaus? E dá graças a Deus, Sancho, que se te benzeram com um cacete, ao menos não te persignaram com um alfange.

- Não estou para responder - tornou Sancho - porque me parece que falo com as costas; montemos a cavalo, e afastemo-nos deste sítio, que eu deixarei para sempre de zurrar, mas não de dizer que os cavaleiros andantes fogem e deixam os seus escudeiros moídos como pimenta em poder dos seus inimigos.

- Não foge quem se retira - respondeu D. Quixote -, porque hás-de saber, Sancho, que a valentia, que se não baseia na prudência, chama-se temeridade, e as façanhas do temerário mais se atribuem a boa fortuna, que ao seu ânimo; e assim, confesso que me retirei, mas que não fugi; e nisto imitei muitos valentes, que se guardaram para tempos melhores; e estão disto cheias as histórias, que por te não aproveitarem, nem me divertirem a mim, te não refiro agora.

Quando isto dizia, já Sancho montara no burro, ajudado por D. Quixote, que também logo depois montou em Rocinante, e devagarinho se foram meter numa alameda, que ficava dali a um quarto de légua. De quando em quando, dava Sancho ais profundíssimos e uns gemidos dolorosos; e, perguntando-lhe D. Quixote a causa de tão amargo sentimento, respondeu que desde o extremo do espinhaço até à nuca, tudo lhe doía.

- A causa dessa dor - disse D. Quixote - é sem dúvida, que, como te bateram com um pau largo e comprido, apanhou-te as espáduas todas, onde entram essas partes que te doem, e, se mais te apanhasse, mais te doera.

- Por Deus - disse Sancho -, Vossa Mercê tirou-me realmente de uma grande dúvida e explicou-ma em lindos termos! Corpo de tal; tão encoberta estava a causa da minha dor, que fosse necessário dizer-me que me dói tudo quanto o varapau apanhou? Se me doessem os dentes, ainda se percebia que se cismasse no motivo por que me doíam; mas doerem-me os sítios que me desancaram, não é caso de pasmar. Por minha fé, Senhor meu amo, pouco dói o mal alheio, e eu todos os dias vou vendo o pouco que devo esperar da companhia em que tenho andado; porque, se desta vez me deixou espancar, outras vezes voltaremos aos manteamentos, e a outras brincadeiras, que hoje foram pagas pelas costelas e amanhã o serão pêlos olhos. Muito melhor faria eu (se não quiser ser um bárbaro toda a minha vida), muito melhor faria eu, torno a dizer, se voltasse para minha casa, para minha mulher e para os meus filhos, para a sustentar e para os criar com o que Deus for servido dar-me, em vez de andar atrás de Vossa Mercê por caminhos e encruzilhadas, bebendo mal e comendo pior. Pois quanto ao dormir? Tomai aí, escudeiro mano, sete palmos de terra, e, se quiserdes mais, tomai outros tantos, que isso está na vossa mão, e estiraçai-vos à vossa vontade! Queimado veja eu e feito em pó o primeiro que deu começo à cavalaria andante, ou pelo menos o primeiro que quis ser escudeiro de semelhantes tontos, como haviam de ser os tais passados cavaleiros; dos presentes não digo nada, que por ser Vossa Mercê um deles, tendo-lhes respeito, e porque sei que Vossa Mercê ainda sabe mais do que o Diabo, em tudo o que diz e pensa.

- Eu era capaz de fazer uma aposta contigo, Sancho - disse D. Quixote -, em como te não dói nada em todo o corpo, agora que estás falando sem que ninguém te vá à mão. Diz, meu filho, tudo o que te vier ao pensamento e à boca, que só para te não doer nada terei eu gosto em suportar o enfado que me dão as tuas impertinências; e, se desejas, voltar para tua casa, para tua mulher e teus filhos, não serei eu que to empeça; tens dinheiros meus; vê há quanto tempo saímos da nossa aldeia desta terceira vez, vê o que deves ganhar mensalmente, e paga-te da tua mão.

- Quando eu servia Tomé Carrasco, o pai do bacharel Sansão Carrasco, que Vossa Mercê muito bem conhece, ganhava dois ducados cada mês, fora a comida; com Vossa Mercê não sei o que posso ganhar, mas o que sei, é que tem muito mais trabalho o escudeiro de um cavaleiro andante, do que o que serve a um lavrador; que, enfim, os que servimos a lavradores, por muito que trabalhemos no dia, ainda que as coisas nos corram mal, à noite ceamos o nosso caldo e dormimos na nossa cama, coisa que eu não faço desde que sirvo a Vossa Mercê, a não ser o breve tempo que estivemos em casa de D. Diogo de Miranda, e o regalo que tive com a escuma que tirei das olhas de Camacho, e o que comi, bebi e dormi em casa de Basílio; o mais tenho sempre dormido em terra dura e ao sereno, sujeito às inclemências do Céu, sustentando-me com raspas de queijo e nacos de pão, e bebendo água, ora dos arroios, ora das fontes que topamos por esses caminhos.

- Admito - disse D. Quixote - que seja verdade tudo o que dizes; quanto te parece que te devo dar a mais do que te dava Tomé Carrasco?

- Parece-me - disse Sancho - que com dois réis que Vossa Mercê acrescentasse em cada mês, me daria por bem pago, isto quanto ao salário do meu trabalho; mas, para me satisfazer da palavra que Vossa Mercê me deu, e da promessa que me fez do governo de uma ilha, seria justo que se me acrescentassem mais seis réis, o que ao todo faria trinta.

- Pois muito bem; conforme o salário que tu mesmo arbitraste - redarguiu D. Quixote -, há vinte e cinco dias que saímos do nosso povo; faz a conta, vê o que te devo, e paga-te pela tua mão.

- Coitado de mim! - disse Sancho - Vossa Mercê erra muito a soma, porque, no que respeita à promessa da ilha, há-de-se contar desde o dia em que Vossa Mercê ma prometeu até à hora presente em que estamos.

- Então, há quanto tempo ta prometi eu, Sancho? - disse D. Quixote.

- Se bem me recordo - tornou Sancho - há-de haver vinte anos, pouco mais ou menos.

  1. Quixote deu uma grande palmada na testa, e desatou a rir com vontade, dizendo:

- Eu, na serra Morena, e em todo o decurso das nossas saídas, não andei mais que dois meses; e dizes tu, Sancho, que há vinte anos que te prometi a ilha? Agora vejo eu que queres que se gaste, nos teus salários, todo o dinheiro meu que tens em teu poder; e, se assim é, e se isso te apraz, já te declaro que to dou e que te faça muito bom proveito, que, a troco de me ver livre de tão mau escudeiro, folgaria de ficar pobre e sem mealha. Mas, diz-me, prevaricador das ordenanças escudeiris da cavalaria andante, onde é que viste ou leste que nenhum escudeiro se pusesse com o seu Senhor à contenda, para saber quanto se lhe há-de dar por cada mês que o serviu? Entra, malandrino revel e vampiro insaciável, entra, repito, nesse mare magnum das suas histórias, e, se encontrares notícias de que algum escudeiro dissesse ou pensasse o que tu acabas de dizer, consinto que mo

estampes na testa e que me esbofeteies o rosto; volta as rédeas ou o cabresto ao asno, e torna para tua casa, porque não quero que dês nem mais um passo na minha companhia! O pão mal reconhecido! Ó promessas mal empregadas! Ó homem que tens mais de bruto que de pessoa de juízo! Agora, que eu pensava em te dar estado, e tal que, apesar de tua mulher, te tratassem por Senhoria, agora é que te despedes? Vais-te embora, quando eu tinha a intenção firme e sincera de te fazer Senhor da melhor ilha deste mundo? Enfim, como tens dito muitas vezes, não é o mel, etc. Asno és, e asno hás-de ser, e como asno hás-de morrer, quando se te acabar o curso da vida, que tenho para mim que mais cedo chegará ela ao seu último termo, do que tu percebes que és uma besta.

Olhava Sancho para D. Quixote muito frio, enquanto ele lhe dizia estes vitupérios, e compungiu-se de tal maneira, que se lhe arrasaram os olhos de água, e, com voz dolorida e plangente, disse-lhe:

- Senhor meu, confesso que para ser asno de todo, só me falta o rabo; se Vossa Mercê mo quiser pôr, dá-lo-ei por muito bem posto, e servi-lo-ei como um jumento em todos os dias de vida que me restam. Perdoe-me Vossa Mercê, e compadeça-se da minha mocidade, e advirta que eu sei pouco, e que, se falo muito, isso procede mais de enfermidade, que de malícia; mas, como Vossa Mercê muito bem sabe, quem erra e se emenda, a Deus se encomenda.

- Maravilhar-me-ia eu, Sancho, se não misturasses no colóquio algum rifãozito. Ora bem, perdoo-te, contanto que te emendes, e que te não mostres daqui por diante tão amigo dos teus interesses; mas que procures deitar o coração à larga, e te alentes e animes a esperar o cumprimento das minhas promessas, que, ainda que se demora, não se impossibilita.

Sancho respondeu que assim procederia, ainda que tivesse de fazer das fraquezas forças.

Nisto meteram-se na alameda, e D. Quixote acomodou-se ao pé de um olmo, e Sancho ao pé de uma faia.

Sancho passou a noite penosamente, porque as dores das pancadas faziam-se sentir mais com o sereno.

  1. Quixote passou-a embebido nas suas contínuas memórias; mas, com tudo isso, veio o sono fechar-lhe os olhos, e ao romper de alva seguiram o seu caminho, procurando as margens do famoso Ebro, onde lhes sucedeu o que se contará no próximo capítulo.

 

DA FAMOSA AVENTURA DO BARCO ENCANTADO

Dois dias depois de saírem da alameda, chegaram D. Quixote e Sancho ao rio Ebro, e o vê-lo foi uma coisa que deu grande gosto a D. Quixote, porque contemplou a amenidade das suas margens, a lucidez das suas águas, o sossego da sua corrente, e a abundância dos seus líquidos cristais, cuja alegre vista renovou na sua memória mil amorosos pensamentos; especialmente, cismou no que vira na cova de Montesinos; que, ainda que o macaco de mestre Pedro lhe dissera que parte daquelas coisas eram verdade, e parte mentira, ele contentava-se com o dizer-se-lhe que algumas eram verdadeiras, para as considerar todas assim, às avessas de Sancho, que as tinha a todas por igual patranha. Caminhando, pois, deste modo, ofereceu-se-lhe à vista uma pequena barca, sem remos nem velas, que estava amarrada na praia a um tronco de uma árvore. Olhou D. Quixote para todos os lados e não viu pessoa alguma, e logo sem mais nem menos apeou-se de Rocinante, e mandou a Sancho que fizesse o mesmo ao ruço, e que a ambos os animais os amarrasse, muito bem amarrados, ao tronco de um álamo ou salgueiro que ali estava.

Perguntou-lhe Sancho o motivo daquele súbito apear e de semelhante amarração. Respondeu-lhe D. Quixote:

- Hás-de saber, Sancho, que este barco que aqui está não tem outro fim senão chamar-me e convidar-me a que entre nele, e vá socorrer algum cavaleiro, ou outra pessoa principal e necessitada, que deve de estar posta nalguma grande aflição; porque este é o estilo dos livros das histórias cavaleirescas, e dos nigromantes que nelas se intrometem; e, quando algum cavaleiro está metido nalguns trabalhos, que não possa ser libertado deles senão por mão de outro cavaleiro, ainda que os separem duas ou três mil léguas, ou ainda mais, costumam, ou arrebatá-

-lo numa nuvem, ou deparar-lhe um barco em que se meta, e, em menos de um abrir e fechar de olhos, levam-no, ou pêlos ares, ou pelo mar, aonde querem e aonde é necessário o seu auxílio; de forma que, ó Sancho, este barco está posto aqui para o mesmo efeito; e isto é tão verdade, como ser agora dia, e antes que o dia acabe prende juntos o ruço e Rocinante, e a mão de Deus nos proteja, que não deixarei de embarcar-me, nem que mo peçam frades descalços.

- Pois se assim é, e se Vossa Mercê quer cair a cada passo nestes que não sei se lhes chame disparates, não tenho remédio senão obedecer e abaixar a cabeça, atendendo ao rifão, que diz:

Faz o que manda teu amo, e senta-te com ele à mesa; mas, com tudo isso, pelo que toca ao descargo da minha consciência, quero advertir a Vossa Mercê que me parece que este barco não é dos encantados, mas de alguns pescadores deste rio, porque nele se pescam as melhores bogas do mundo.

Isto dizia Sancho, enquanto prendia os animais, deixando-

-os entregues à protecção dos nigromantes, com grande dor da sua alma. Disse-lhe D. Quixote que não tivesse pena do desamparo dos animais, que aquele que a eles os levasse por tão longínquos caminhos e regiões, trataria de os sustentar.

- Não entendo isso de lóicos - disse Sancho - e nunca ouvi esse vocábulo em todos os dias da minha vida.

- Longínquos - respondeu D. Quixote - quer dizer apartados, e não é maravilha que o não entendas, porque não és obrigado a saber latim, como alguns que presumem sabê-lo e afinal o ignoram.

- Já estão amarrados - respondeu Sancho -; agora que havemos de fazer?

- O quê? - respondeu D. Quixote. - Benzer-nos e levantar ferro; quero dizer, embarcar e soltar a amarra que prende este barco à terra.

E, dando um pulo para dentro dele, e seguindo-o Sancho, cortou o cordel, e o barco foi-se apartando a pouco e pouco da praia; e, quando Sancho se viu a obra de duas varas pelo rio dentro, começou a tremer, receando ver-se perdido; mas nada lhe deu mais pena do que ouvir ornear o ruço, e ver que Rocinante procurava soltar-se; e disse para seu amo:

- O ruço zurra, condoído da nossa ausência, e Rocinante procura soltar-se, para correr atrás de nós. Ó caríssimos amigos, ficai-vos em paz, e a loucura, que nos aparta de vós outros, convertida em desengano nos volva à vossa presença.

E nisto, começou a chorar tão amargamente, que D. Quixote, mofino e colérico, lhe disse:

- De que tens tu medo, cobarde criatura? Porque choras, coração de manteiga? Quem te persegue ou quem te acossa, alma de rato caseiro? O que é que te falta, necessitado nas entranhas da abundância? Vais por acaso caminhando a pé e descalço pelas montanhas Rífeas, ou vais sentado numa tábua como um arquiduque, deslizando pela tranquila corrente deste plácido rio, de onde em breve espaço sairemos para o alto mar? Mas isso até já devemos ter saído, e devemos ter caminhado, pelo menos, setecentas ou oitocentas léguas; e, se eu tivesse aqui um astrolábio para tomar a altura do pólo, eu te diria as que andámos, ainda que, ou pouco sei, ou já passámos, ou estaremos quase a passar a Unha equinocial, que divide e corta os dois contrapostos pólos em igual distância.

- E, quando chegarmos a essa lenha que Vossa Mercê diz - perguntou Sancho -, quanto teremos andado?

- Muito - replicou D. Quixote -, porque, de trezentos e sessenta graus que o globo contém de água e de terra, segundo o cálculo de Ptolemeu, que foi o maior cosmógrafo, teremos andado metade desses trezentos e sessenta graus, em chegando à linha que eu te disse.

- Por Deus - disse Sancho -, Vossa Mercê sempre traz para testemunha uma fresca pessoa, a quem chama tolo meu, e de quem diz que mofa

Riu-se D. Quixote da interpretação que Sancho dera ao nome de Ptolemeu e à designação de cosmógrafo, e disse-lhe:

- Saberás, Sancho, que os Espanhóis, e os que embarcam em Cádis para ir às Índias Ocidentais, um dos sinais que têm para saber que passaram a linha equinocial que eu te disse é que a todos que vão no navio morrem os piolhos, sem que fique um só, que não se encontrará em todo o baixel, nem que se pese a ouro, e assim podes, Sancho, verificar o caso. Se encontrares coisa viva, sairemos com certeza desta dúvida.

- Não creio nada disso - respondeu Sancho -; contudo, farei o que Vossa Mercê manda, ainda que não sei que necessidade haja de se fazerem essas experiências, porque não nos apartamos da margem nem cinco varas, nem nos afastamos duas varas do sítio onde ficaram as alimárias; ainda vejo perfeitamente Rocinante e o ruço no sítio onde os deixei, e aposto que não andámos nem um passo de formiga.

- Faz a averiguação que eu te disse, Sancho, e não trates de mais nada, porque tu não sabes o que são linhas, paralelos, zodíacos, eclípticas, pólos, solstícios, equinócios, planetas, signos, pontos, medidas de que se compõe a esfera celeste e terrestre, que, se soubesses todas estas coisas ou parte delas, verias claramente os paralelos que cortamos, que signos vimos e que imagens deixámos atrás de nós, e vamos deixando agora, e torno-te a dizer que te cates, que aposto que estás mais limpo que um pedaço de papel liso e branco.

Catou-se Sancho, e, pondo a mão na barriga da perna esquerda, levantou a cabeça, olhou para seu amo, e disse:

- Ou a experiência é falsa, ou ainda não chegámos aonde Vossa Mercê diz, nem estamos a poucas léguas do tal sítio.

- Pois quê! - perguntou D. Quixote. - Encontraste algum?

- Alguns, diga Vossa Mercê - respondeu Sancho. E, sacudindo os dedos, lavou a mão toda no rio, por onde sossegadamente deslizava o barco, seguindo a corrente, sem que o impelisse inteligência alguma secreta, ou qualquer nigromante escondido, a não ser o próprio correr da água, então brando e suave. Nisto, descobriram umas grandes azenhas, que estavam no meio do rio, e, apenas D. Quixote as viu, bradou em voz alta para Sancho:

- Vês, amigo, ali se descobre a cidade, castelo ou fortaleza, onde deve de estar algum cavaleiro oprimido, ou alguma rainha, infanta, ou princesa malparada, para socorrer a qual aqui sou chamado.

- Que diabo de cidade, fortaleza, ou castelo diz Vossa Mercê? - perguntou Sancho. - Pois não vê claramente que aquilo são azenhas, que estão no rio, onde se mói o trigo?

- Cala-te, Sancho - disse D. Quixote -, que, ainda que parecem azenhas, não acredito que o sejam. Já te disse que todas as coisas se mudam do seu ser natural com os encantamentos. Não quero dizer que se mudam realmente, mas que assim o parece, como o mostrou a experiência na transformação de Dulcineia, único refúgio das minhas esperanças.

Nisto, o barco, entrado no meio da corrente do rio, começou a caminhar menos vagarosamente do que até ali.

Os moleiros das azenhas, que viram vir aquele barco pela água abaixo, e que se ia a meter no redemoinho das rodas, saíram com presteza muitos deles com varas largas a demorá-lo.

Como vinham enfarinhados, apresentavam um estranho aspecto, e davam grandes brados, dizendo:

- Demónios de homens, aonde ides? Vindes desesperados e quereis afogar-vos e despedaçar-vos nestas rodas?

- Não te disse eu, Sancho - acudiu D. Quixote -, que tínhamos chegado a sítio onde hei-de mostrar até onde chega a força do meu braço? Vê quantos malandrinos me saem ao encontro; vê quantos vampiros se me opõem; vê que de feias cataduras nos querem assustar. Pois agora vereis, velhacos.

E, pondo-se em pé no barco, principiou a ameaçar com grandes brados os moleiros, dizendo-lhes:

- Canalha malvada e pior aconselhada, deixai na sua liberdade a pessoa que na vossa fortaleza ou prisão tendes oprimida, alta ou baixa, de qualquer categoria que seja, que eu sou D. Quixote de La Mancha, denominado o Cavaleiro dos Leões, a quem está reservado, por ordem expressa dos altos Céus, o dar termo feliz a esta aventura.

E, dizendo isto, deitou mão à espada, e começou-a a esgrimir no ar contra os moleiros, os quais, ouvindo e não entendendo semelhantes sandices, pusera-se com as suas varas a desviar o barco, que já ia entrando no redemoinho formado pelas rodas. Pôs-se Sancho de joelhos, pedindo devotamente ao Céu que o livrasse de tão manifesto perigo, como efectivamente o livrou pela indústria e presteza dos moleiros, que, opondo-se com as suas varas ao andamento do barco, o detiveram, mas não de modo que não virassem o batel, dando com D. Quixote e com Sancho na água; serviu de muito a D. Quixote o saber nadar como um pato, ainda que o peso das armas por duas vezes o levou ao fundo; mas, se não fossem os moleiros, que se deitaram à água e os salvaram a ambos, ali, para eles, teria sido Tróia.

Tirados, pois, para terra, mais ensopados que mortos de sede, o bom do Sancho, ajoelhado, de mãos-postas, e com os olhos cravados no céu, pediu a Deus, em larga e muito devota oraço, que daí por diante o livrasse dos atrevidos cometimentos de seu amo.

Nisto, chegaram os pescadores, donos do barco, que as rodas da azenha tinham despedaçado, e, vendo-o em fanicos, principiaram a despir Sancho, e a pedir a D. Quixote que lho pagasse.

  1. Quixote, com grande sossego, como se não se tivesse passado nada de extraordinário, disse aos moleiros e pescadores que pagaria o barco da melhor vontade, com a condição de lhe entregarem livres completamente a pessoa ou pessoas que naquele seu castelo estavam oprimidas.

- Que pessoas e que castelo são esses? - tornou um dos moleiros. - Homem sem juízo, queres levar por ventura os fregueses que vêm moer trigo a esta azenha?

- Basta - disse consigo D. Quixote -, aqui era o mesmo que pregar no deserto querer reduzir esta canalha a praticar um acto virtuoso, por pedidos; e nesta aventura devem ter-se encontrado dois valentes nigromantes, um dos quais estorva o que o outro intenta: um deparou-me o barco, outro deu comigo na água; Deus o remedeie, que todo este mundo se compõe de máquinas e de traças contrárias umas às outras. Eu não posso mais.

E, levantando a voz, prosseguiu, dizendo e olhando para a azenha:

- Amigos, quem quer que sejais, que nessa prisão ficais encerrados, perdoai-me, que, por minha desgraça, e por desgraça vossa, não vos posso tirar dessa aflição. Para outro cavaleiro deve de estar guardada e reservada esta aventura.

Dizendo isto, concertou-se com os pescadores, e pagou pelo barco cinquenta réis, que Sancho entregou de muito má vontade, dizendo:

- Com duas barcadas como esta, damos com todo o cabedal no fundo.

Os pescadores e moleiros estavam admirados, contemplando aquelas duas figuras tão estranhas, e não eram capazes de perceber as perguntas de D. Quixote; e, tendo-os por loucos, deixaram-nos, e recolheram-se os moleiros para a sua azenha, e os pescadores para as suas choças.

Voltaram para os seus animalejos D. Quixote e Sancho, e este fim teve a aventura do barco encantado.

 

DO QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE COM UMA BELA CAÇADORA

Muito tristes e muito constrangidos se chegaram às suas alimárias cavaleiro e escudeiro, especialmente Sancho, a quem doía o coração de ter de tocar no dinheiro, parecendo-lhe que todo o que se tirava se lhe arrancava das meninas dos olhos. Finalmente, sem dizer palavra um ao outro, montaram a cavalo e apartaram-se do famoso rio: D. Quixote imerso nos pensamentos dos seus amores, e Sancho nos do seu acrescentamento, que por então lhe parecia que estava bem longe de se realizar, porque, apesar de ser tonto, percebia que as acções de seu amo, ou todas ou a maior parte, eram disparates, e procurava ocasião de se safar e voltar para casa, sem estar com despedidas nem contas; mas a fortuna ordenou as coisas muito ao invés do que ele receava. Sucedeu, pois, que, no outro dia, ao pôr do Sol, e ao sair de uma selva, espraiou D. Quixote a vista por uma verde campina, e lá ao fim viu gente, e, aproximando-se, conheceu

que eram caçadores de altanaria. Chegou-se mais, e viu entre eles ura galharda senhora, montada num palafrém, ou hacaneia branquíssima, com arreios verdes e uma cadeirinha de prata. Vinha a esbelta dama vestida de verde, tão bizarra e opulentamente, que parecia a personalização da própria bizarria.

Na mão esquerda, trazia um gerifalte, e por isso viu D. Quixote que seria alguma grande senhora, a quem obedeceriam todos aqueles caçadores, como era na verdade; e assim, disse a Sancho:

- Corre, Sancho filho, e diz àquela senhora do palafrém e do gerifalte, que eu, o Cavaleiro dos Leões, beijo as mãos à sua grande formosura; e que, se Sua Grandeza me der licença, eu mesmo lhas irei beijar, e servi-la em tudo o que as minhas forças puderem e ordenar Sua Alteza; e vê, Sancho, não vás tu encaixar algum rifão dos teus na tua embaixada.

- Olha a quem fala - respondeu Sancho Pança -, venha-me dizer isso a mim, que não é a primeira vez que levo embaixadas nesta vida a mui altas e importantes damas.

- A não ser a da Sra. Dulcineia - redarguiu D. Quixote - não me consta que levasses outra, pelo menos estando ao meu serviço.

- É verdade - respondeu Sancho -, mas ao bom pagador não custa dar penhor, e em casa cheia depressa se guisa a ceia:

quero dizer, que não precisa de me advertir de coisa alguma, que para tudo tenho, e de tudo sei um poucochinho.

- Isso creio eu, Sancho - disse D. Quixote -, vai em muito boa hora, e Deus te guie.

Partiu Sancho Pança de carreira, obrigando o ruço a sair do seu passo habitual, e chegou ao sítio onde estava a bela caçadora, e, apeando-se, ajoelhado diante dela, disse-lhe:

- Formosa Senhora, aquele cavaleiro, que acolá aparece, chamado o Cavaleiro dos Leões, é meu amo, e eu sou um seu escudeiro, a quem chamam em sua casa Sancho Pança. Este tal Cavaleiro dos Leões, que não há muito que se chamava o Cavaleiro da Triste Figura, manda-me dizer a Vossa Grandeza que seja servida dar-lhe licença que venha, com seu propósito, beneplácito e consentimento, pôr em obra o seu desejo, que não é outro, segundo ele diz e eu creio, senão o de servir a vossa consumada altanaria e formosura, e, dando-lhe essa licença Vossa Senhoria fará uma coisa que redundará muito em seu prol, e ele receberá assinalada mercê e satisfação.

- Não há dúvida, bom escudeiro - respondeu a senhora

-, que destes a vossa embaixada com todas as circunstâncias que tais embaixadas pedem; levantai-vos, que escudeiro de tamanho cavaleiro, como é o da Triste Figura, de quem já por cá temos muita notícia, não é justo que esteja de joelhos; levantai-

-vos, amigo, e dizei a vosso amo: que venha muito embora honrar-nos a mim e ao duque, meu marido, numa casa de recreio que aqui temos.

Levantou-se Sancho, admirado, tanto da formosura da boa senhora, como da sua muita afabilidade e cortesia, e ainda mais de lhe haver dito que tinha notícia de seu amo, o Cavaleiro da Triste Figura; e que, se lhe não chamara o aos Leões, devia ser por ele ter adoptado esse nome há tão pouco tempo. Perguntou-lhe a duquesa (cujo título ainda hoje se não sabe):

- Dizei-me, bom escudeiro: este vosso amo não é um de quem anda impressa uma história, que se chama do Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha, e que tem por dama dos seus pensamentos uma tal Dulcineia del Toboso?

- É o mesmo Senhora - respondeu Sancho -, e aquele seu escudeiro, que anda ou deve andar na tal história, e a quem chamam Sancho Pança, sou eu, a não ser que me trocassem no berço, quero dizer, que me trocassem na imprensa.

- Com tudo isso muito folgo - disse a duquesa. - Ide, bom Pança, e dizei a vosso amo que seja muito bem chegado e muito bem-vindo aos meus estados, e que nenhuma coisa poderia haver que mais contentamento me desse.

Sancho, portador de tão agradável resposta, com imenso gosto voltou para seu amo, a quem contou minuciosamente tudo o que a nobre senhora lhe dissera, levantando ao céu, com os seus rústicos termos, a sua muita formosura, o seu grande donaire e cortesia.

  1. Quixote aprumou-se na sela com toda a galhardia, firmou-se nos estribos, ajustou a viseira, picou as esporas a Rocinante, e com gentil denodo foi beijar as mãos à duquesa, a qual, mandando chamar o duque, seu marido, enquanto D. Quixote se aproximava, lhe contou a sua embaixada toda, e ambos, por terem lido a primeira parte desta história, e terem sabido por ela a disparatada índole de D. Quixote, com imenso gosto e desejo de o conhecer o esperavam, no firme propósito de o não contrariar, de concordar com tudo o que ele dissesse, tratando-o como a cavaleiro andante, no tempo que com eles se demorasse, com todas as cerimónias costumadas nos livros de cavalaria que tinham lido, e a que ainda eram muito afeiçoados. Nisto, chegou D. Quixote, e, dando mostras de querer apear-se, acudiu Sancho a segurar-lhe no estribo; mas, com tanta desgraça, que, ao saltar, embrulhou-se-lhe um pé de tal modo numa das silhas da albarda, que não lhe foi possível desenredá-lo, e ficou pendurado, com a boca e o peito no chão.
  2. Quixote, que não costumava apear-se sem lhe segurarem no estribo, supondo que Sancho estava já no seu posto, largou o corpo de golpe, e levou consigo a sela de Rocinante, que por força estava mal apertada, e ele e a sela caíram ao chão, não sem grande vergonha sua e sem muitas maldições, que atirou por entre dentes ao desditoso Sancho, que ainda estava com o pé preso. O duque mandou aos seus monteiros que acudissem ao cavaleiro e ao escudeiro, e eles correram logo a levantar a D. Quixote, que, maltratado da queda, coxeando, e como pôde, foi ajoelhar diante dos duques; mas o nobre fidalgo não lho consentiu de modo algum; antes, apeando-se do cavalo, abraçou D. Quixote, dizendo-lhe:

- Pesa-me, Senhor Cavaleiro da Triste Figura, que a primeira que Vossa Mercê fez nas minhas terras fosse tão má como se viu; mas descuidos de escudeiros costumam ser causa de sucessos ainda piores.

- O acontecimento que me proporcionou a honra de vos ver, valoroso príncipe - respondeu D. Quixote -, nunca podia ser mau, ainda que a minha queda só parasse nas profundas dos abismos, pois dali me levantaria e me tiraria a glória de vos ter visto. O meu escudeiro, que Deus maldiga, desata melhor a língua para dizer malícias, do que ata e aperta uma sela

para ficar firme; mas, esteja eu como estiver, caído ou levantado, a pé ou a cavalo, sempre estarei ao vosso serviço e ao da duquesa, muito minha Senhora, digna consorte vossa, e digna senhora da formosura, e universal princesa da cortesia.

- Devagar, devagar, meu Senhor D. Quixote, que onde está Dulcineia del Toboso, Senhora minha, não é razo que se louvem outras formosuras.

Já a este tempo Sancho Pança, livre do laço, e achando-se ali próximo, antes que seu amo respondesse, disse:

- Não se pode negar que é muito formosa a minha Sra. Dulcineia del Toboso, mas, onde menos se pensa, se levanta a lebre, que eu tenho ouvido dizer que isto da Natureza é como um oleiro que faz vasos de barro, e quem faz um formoso pode fazer dois ou três, ou um cento; digo isto, porque a duquesa, minha Senhora, decerto que não fica atrás de minha ama, a Sra. Dulcineia del Toboso.

Voltou-se D. Quixote para a duquesa, e disse:

- Imagine Vossa Grandeza que nunca teve um cavaleiro andante, neste mundo, escudeiro mais falador nem mais divertido do que eu tenho, e ele me não deixará por mentiroso, se alguns dias me conceder a Vossa Excelsa Grandeza empregar-me no seu serviço.

- Que Sancho, o Bom, seja divertido - respondeu a duquesa - muito estimo, porque é sinal de ser discreto, que as graças e os donaires, como Vossa Mercê bem sabe, Sr. D. Quixote, não assentam em rudes engenhos; e visto que o bom Sancho é gracioso e donairoso, desde já o confirmo por discreto.

- E falador - acrescentou D. Quixote.

- Tanto melhor - observou o duque - porque muitas graças não se podem dizer com poucas palavras, e para que se nos não vá o tempo com elas, venha o grande Cavaleiro da Triste Figura...

- Dos Leões, há-de dizer Vossa Alteza - interrompeu Sancho - que já não há Triste Fiura.

- Venha, pois, o Senhor Cavaleiro dos Leões - prosseguiu o duque - a um castelo meu, que está aqui próximo, onde se lhe fará o acolhimento que a tão excelsa pessoa justamente se

deve, e o que eu e a duquesa costumamos fazer a todos os cavaleiros andantes que ali chegam.

Entretanto, já Sancho arranjara e apertara bem a sela a Rocinante, em que montou D. Quixote; e, montando o duque num formoso cavalo, puseram a duquesa no meio, e encaminharam-se para o castelo.

Ordenou a duquesa a Sancho que fosse junto dela, porque gostava imenso de ouvir os seus ditos.

Não se fez rogar Sancho; meteu-se entre os três, e fez de parceiro na conversação, com grande gosto do duque e da duquesa, que tiveram por alta ventura o acolher no seu castelo tal cavaleiro andante, e tal escudeiro falante.

 

                                                                                            CONTINUA  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades