Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOMINIO SOMBRIO / Val McDermid
DOMINIO SOMBRIO / Val McDermid

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Christie. Uma dívida que não é pequena.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss
A voz é suave, como a escuridão que os cerca.
- Está preparado?
- Mais preparado do que nunca.
- Você disse a ela o que fazer? - As palavras agora rolam, tropeçando umas nas outras num emaranhado único de sons.
- Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabilizado se isto der errado. - Palavras ásperas, num tom áspero. - Não é com ela que estou
preocupado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. - As palavras possuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. - Vamos, terminemos logo com isto.
Assim é como tudo começa.

 

 

 

 

 

 

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziam uma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas. Parecia alguém com
uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conforme ela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a
mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras informações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmente ignorados por aqueles
que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhão de sua determinação.
Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não era feia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali, não estava em seus melhores
dias. Ela poderia ter colocado um pouquinho mais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algo que lhe caísse melhor do que jeans e blusa
de capuz. David Cruickshank assumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se preparando para defesa.
- Quero informar o desaparecimento de uma pessoa.
Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desaparecidas. Aquela ali estava
calma demais para que se tratasse de um filho pequeno, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga com o namorado, era disso que se tratava.
Ou um avô senil perdido. A mesma perda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo balcão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta.
Nem chegou a destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondida antes que ele anotasse quaisquer detalhes.
- E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?
- Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, para ser exata. - Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seu semblante. -
Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?
O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a tela do computador.
- Vou te dizer uma coisa - ele falou -, se existe uma época excelente para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.
A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo que estava atualizando.
- Como assim?
- Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, na Downing Street,
10, com a patroa a tiracolo. - Ele se levantou num salto e foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. - O que você prefere fazer? Solucionar casos arquivados
e receber os louros por isso, ou tentar prevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?
- Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministro faz de Fife um alvo? - Karen marcou onde estava no documento com o dedo indicador e dirigiu
toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou de que tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não considerara as possibilidades atuais. - Nunca
se incomodaram com o distrito eleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.
- Isso é verdade. - Phil espiou para dentro da geladeira, decidindo entre um refrigerante Im Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e ele ainda não
se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer em sua infância. - Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, e Gordon é filho de um pastor
presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugar do chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja do pai dele.
Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio.
- Não sei como você consegue beber isso aí - ela disse. - Nunca reparou que o nome é um anagrama de "vomit"?
Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.
- Faz crescer cabelo no peito - ele disse.
- É melhor você tomar duas latas, então. - Havia uma ponta de inveja na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gorduras saturadas,
mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os dois eram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suas medidas aumentando. Isso, definitivamente,
não era justo.
Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.
- Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um pouco mais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaça agora é maior.
Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.
- Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon aja de um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?
Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojava a Equipe de Revisão
de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alterado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquer telefone que tocasse perto dela.
- Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando - ela disse distraidamente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, no fundo, ele não
sentia saudade de estar envolvido com a ação.
- Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com uma pessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. - Cruickshank parecia um tanto inseguro.
Aquilo era incomum o bastante para chamar a atenção de Karen.
- Do que se trata?
- De uma pessoa desaparecida - ele disse.
- É um dos nossos?
- Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.
Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por tempo suficiente.
- Então ela precisa falar com o Departamento de Investigações Criminais, Dave.
- Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este caso está um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor que passasse por
você primeiro, entendeu?
Vá logo ao que interessa.
- Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com investigações recentes. - Karen girou os olhos para Phil, que devolveu um sorriso falso
diante da óbvia frustração dela.
- Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vinte e dois anos.
Karen se endireitou na cadeira.
- Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?
- Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?
Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar a mulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre se sentia atraída por coisas
que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros no escuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazido duas promoções em três anos, superando
alguns colegas de igual posição e deixando muitos outros incomodados.
- Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela.
Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.
- Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o desaparecimento de uma pessoa? - ela perguntou, mais para si mesma do que para Phil, vasculhando
a mesa à procura de um caderno vazio e de uma caneta.
Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.
- Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.
- E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. - O sorriso de Karen
era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse o Gato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.
Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do elevador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatlética da Gap. Modelos
e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos e sem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro na altura do quadril. O cabelo castanho-médio
tinha um bom corte chanel longo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava, portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social.
Tampouco, provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulher agradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantos anos, olhos azuis
com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima de maquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um. Ao perceber a avaliação de Karen,
a pele ao redor de seus olhos se apertou.
- Sou a inspetora Pirie - ela disse, abreviando o impasse em potencial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. - Karen Pirie.
Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gorducha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio
precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, caso fosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen se descrevia daquela
maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela era lindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela não concordava. Tinha uma opinião
razoavelmente boa sobre si mesma. Mas, quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, no entanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.
Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu mais segura.
- Graças a Deus por isso - ela disse. O sotaque de Fife era claro, embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela distância.
- Perdão?
A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes de leite de uma criança.
- Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enrolando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.
- Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo chá - Karen disse secamente. - Por acaso, fui a pessoa que atendeu ao telefone. - Ela deu
meia-volta, olhou para trás e disse: - Você me acompanha?
Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma salinha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, para o verde artificialmente
uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofadas de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfície de cerejeira fora polida até adquirir
um brilho opaco. A única indicação do propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas na parede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda
vez que usava aquele local, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhido fotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algo
muito ruim acontece.
A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou uma cadeira e lhe indicou que sentasse.
- Não é assim na televisão - ela disse.
- Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão - Karen respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em
relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição, menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entrevista de testemunha.
- Cadê o gravador? - A mulher se sentou, sem aproximar a cadeira nem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.
Karen sorriu.
- Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interrogatório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interrogada sobre um
crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável e olhar pela janela. - Ela abriu seu bloco de anotações. - Creio que está aqui para informar sobre uma pessoa
desaparecida.
- Isso mesmo. O nome dele é...
- Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para começar, qual é seu nome?
- Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobrenome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha.
- Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone.
Misha informou todos os detalhes.
- Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome dela, se é que você me entende.
Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus mineiros de carvão, numa
época em que estes lhe pertenciam tanto quanto as minas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquer ligação com o lugar ou seu passado.
- Mesmo assim - ela disse -, preciso de seus dados também.
As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então, ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujo conhecimento da geografia
social da capital, a apenas cinquenta quilômetros de distância, era provincianamente escasso.
- E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa - ela disse.
Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.
- Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser exata.
- E quando foi que seu pai desapareceu? - Ali, pensou Karen, era onde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.
- Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio. Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. - As sobrancelhas
de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.
- É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desaparecimento - disse Karen.
Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.
- Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente.
- Não estou entendendo. O que quer dizer com "não exatamente"?
Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.
- Você fala como alguém desta região.
Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:
- Cresci em Methil.
- Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984.
- A greve dos mineiros?
Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.
- Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pessoas costumavam dizer
por aqui: que ninguém era mais militante do que os mineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro, depois de nove meses de greve, em que meia
dúzia deles desapareceu. Bem, eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eles haviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. - Seu rosto
se franziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. - Com relação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo. Mas,
segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu pai tinha ido com eles. Inclusive ela. - Lançou a Karen um olhar defensivo. - Eu era pequena demais
para me lembrar. Mas todos dizem que ele era um sindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.
- Ela balançou a cabeça. - Porém, o que mais ela iria pensar?
Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia ter significado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a solidariedade era reservada
apenas para aqueles que aguentavam o tranco. A atitude de Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.
- Não deve ter sido nada fácil para sua mãe - ela disse.
- Em um aspecto, foi muito fácil. - Misha disse com amargura. - Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria mais saber dele.
Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergência. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para a Assistência Social dos Mineiros. Fui
criada numa casa em que o nome do meu pai jamais era pronunciado.
Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.
- Ele nunca entrou em contato com vocês?
- Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o carimbo do correio de Nottingham.
- Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai seja uma pessoa desaparecida. - Karen tentou fazer sua voz soar o mais gentil possível.
- Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim, inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. É preciso que o encontrem.
O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela, aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.
- Por quê? - ela perguntou.
Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo
Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquela sensação de ultraje pelo
fato de que o mundo seguia seu caminho, a despeito do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara em contar porque nunca havia se permitido acreditar
que aquela poderia ser a última vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polegares deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadas
por suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de alguma forma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviam atirado contra
sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicção tinha, finalmente, sido testada ao extremo.
Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol, desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda
não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e um apartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso. John não
estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia saber sobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido no trabalho alguma questão
complexa com que só ele pudesse lidar.
Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de arenito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, o pulmão verde do centro sul
da cidade, onde ela adorava caminhar com Luke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia também checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma
bola de rúgbi rodeada de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam a bola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pela
superfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha. Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a caminhar ali com Luke.
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, era disso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em perspectiva. Uma caminhada
rápida através do Meadows e, daí, atravessaria a Ponte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou um restaurante.
Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa de fundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Ela não permitiria que fosse
o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outra chance a Luke.
Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que o segurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelo trabalho de parto, ela
soubera. John estava em estado de negação, recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho, ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo
havia agarrado o coração de Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão em sua mente, então, fora: quão diferente?
O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorte era o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do Hospital Real para Crianças
Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nas histórias "milagrosas" que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito
para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem para explicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.
Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano; ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encantadora das palavras disfarçava
seu conteúdo letal. Escondidos no DNA de ambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado para criar uma condição rara que condenaria seu filho
a uma vida curta e dolorosa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que certamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula
óssea que, no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatível. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medula óssea,
Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.
Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que, sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria de algum membro da família;
era o que os médicos chamavam de doador aparentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Ela havia lido sobre os registros de transplante de
medula e deduzido que sua melhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, de acordo com o especialista, a doação de um membro da família não compatível,
que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um risco menor de complicações do que a de um doador compatível que não tivesse qualquer parentesco com o paciente.
Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos dois lados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e até mesmo oferecendo recompensas
a primos distantes e tias idosas. Aquilo havia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária. John se fechara atrás de uma muralha de otimismo
pouco realista. Haveria um avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar, descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes compartilhados.
Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro. John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à procura de casos que provassem
que os médicos estavam errados. Aparecia semanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis. E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura
incessante de Misha. Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de negação era olímpica.
Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo.
Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seu último beco sem saída
apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrível julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamente aquela que havia rezado para não ter de
levar em conta.
Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquele caminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pronta para ser agressiva com
quem quer que estivesse invadindo seu espaço.
- John - ela disse, com cansaço.
- Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento
- ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamente até ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para que se tocassem,
se algum deles quisesse.
- Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.
- Não, isso eu posso ver. O que eles disseram?
Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do veredito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filho era invencível,
de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reação dela.
Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto o consolo.
- Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. - Sua voz parecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. A emoção derreteria
seu estado congelado e ali não era o lugar para demonstrações de pesar ou amor.
John apertou os dedos dela com força.
- Talvez não seja tarde demais - ele disse. - Talvez eles...
- Por favor, John. Agora não.
Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensionava conforme ele controlava sua discordância.
- Então - ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que outra coisa -, imagino que você vá procurar o filho da puta?
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen coçou a cabeça com a caneta. Por que eu sempre pego os melhores?
- Por que você deixou passar tanto tempo, antes de tentar rastrear seu pai?
Ela captou uma expressão fugaz de irritação em volta dos olhos e da boca de Misha.
- Porque eu havia crescido achando que meu pai fosse um filho da puta fura-greve e egoísta. O que ele fez alijou minha mãe de sua própria comunidade. Fez
com que eu fosse maltratada no parque e na escola. Não achei que um homem que houvesse abandonado a família na merda fosse se incomodar com o neto.
- Ele mandava dinheiro - disse Karen.
- Uns trocados aqui e ali. Dinheiro maldito - disse Misha. - Como eu disse, minha mãe se recusava a usá-lo. Ela o doava. Nunca tirei proveito dele.
- Talvez ele tenha tentado compensar a sua mãe. Os pais nem sempre nos contam as verdades incômodas.
Misha balançou a cabeça.
- Você não conhece a minha mãe. Mesmo com a vida de Luke em jogo, ela não ficou nada contente que eu estivesse tentando encontrar meu pai.
Para Karen, aquele parecia um motivo insuficiente para evitar o homem que poderia fornecer a chave para o futuro de um garoto. Mas ela sabia como os sentimentos
eram profundos nas velhas comunidades mineiras, deixou estar, portanto.
- Você diz que ele não estava onde se supunha. O que aconteceu, quando você foi procurar por ele?
Quinta-feira, 21 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Jenny Prentice tirou um saco de batatas da prateleira de verduras e se pôs a descascá-las, o corpo inclinado sobre a pia e as costas voltadas para a filha. A pergunta
de Misha pairou sem resposta entre as duas, lembrando ambas da barreira que a ausência do pai havia colocado entre elas desde o início. Misha tentou novamente.
- Eu perguntei...
- Eu te ouvi muito bem. Não há nada de errado com a minha audição - disse Jenny. - E a resposta é: não tenho a menor ideia. Como eu saberia onde começar
a procurar por aquele merda de fura-greve egoísta? Nós nos viramos muito bem sem ele nos últimos vinte e dois anos. Nunca houve razão para procurá-lo.
- Bem, existe uma razão agora.
Misha olhou para os ombros curvados da mãe. A luz fraca que entrava pela pequena janela da cozinha acentuava o branco de seus cabelos não pintados. Ela mal havia
completado cinquenta anos, mas parecia ter pulado a meia-idade e adquirido logo o encurvamento vulnerável de uma anciã. Era como se ela soubesse que o ataque um
dia chegaria e houvesse optado por se defender tornando-se patética.
- Ele não irá ajudar - Jenny zombou. - Ele deixou claro o que pensava de nós, quando nos abandonou para que nos virássemos sozinhas. Ele só pensava em si
mesmo.
- Pode ser. Mas mesmo assim tenho que tentar, pelo bem de Luke - Misha disse. - Havia algum endereço de remetente nos envelopes em que vinha o dinheiro?
Jenny cortou uma batata descascada ao meio e deixou cair numa panela com água salgada.
- Não. Ele nem sequer se dava ao trabalho de colocar uma cartinha no envelope. Apenas um punhado de cédulas sujas, só isso.
- E os caras com quem ele foi embora?
Jenny lançou um olhar rápido e desdenhoso para Misha.
- O que têm eles? Não dão as caras por aqui.
- Mas alguns ainda devem ter família aqui, ou em East Wemyss. Irmãos, primos. Eles podem saber alguma coisa sobre o meu pai.
Jenny sacudiu a cabeça com firmeza.
- Nunca mais ouvi falar dele, desde o dia em que se foi. Nem um pio, bom ou ruim. Os outros homens com quem ele foi embora não eram seus amigos. A única razão
pela qual ele pegou carona com eles foi porque não tinha dinheiro para ir sozinho para o sul. Ele deve ter usado os caras assim como usou a gente e, depois, deve
ter seguido seu próprio caminho, quando chegou aonde queria. - Ela deixou cair outra batata na panela e disse sem qualquer entusiasmo: - Você vai ficar para a janta?
- Não, tenho algumas coisas para resolver - Misha disse, impaciente com a recusa da mãe em levar a sério sua busca. - Deve haver alguém com quem ele tenha
mantido contato. Com quem ele poderia ter falado? A quem ele teria contado o que estava planejando fazer?
Jenny se empertigou e colocou a panela no velho fogão a gás. Misha e John se ofereciam para trocar o fogão desconjuntado toda vez que se sentavam para aquele ato
teatral que era o jantar de domingo, mas Jenny sempre recusava, com o ar de martírio frustrado com que normalmente respondia às ofertas de gentileza.
- Nisso você também deu azar. - Ela se acomodou numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa minúscula na cozinha apertada. - Ele só tinha um amigo
de verdade. Andy Kerr. Era um comunista fervoroso, o Andy. Te digo uma coisa: em 1984 não eram muitos os que ainda erguiam a bandeira vermelha, mas Andy era um deles.
Ele já era sindicalista bem antes da greve. Ele e seu pai eram amigos desde a escola. - Seu rosto se suavizou por um momento, e Misha quase pôde ver a jovem que
ela havia sido. - Eles estavam sempre aprontando alguma, aqueles dois.
- Então, onde é que encontro esse tal de Andy Kerr? - Misha se sentou em frente à mãe, seu desejo de ir embora temporariamente abandonado.
O rosto da mãe se contorceu em uma expressão irônica.
- Coitada. Se você conseguir encontrar Andy, será uma detetive e tanto. - Ela se inclinou para a frente e deu um tapinha na mão de Misha. - Ele é mais
uma das vítimas do seu pai.
- Como assim?
- Andy adorava seu pai. Para ele, era Deus no céu e seu pai na terra. Pobre Andy. A greve o colocou sob uma enorme pressão. Ele acreditava na greve, acreditava
na luta. Mas ficou arrasado ao ver as dificuldades pelas quais seus homens estavam passando. Ele estava à beira de um ataque de nervos, e o diretor local o obrigou
a tirar uma licença médica, não muito antes de seu pai dar o fora. Ninguém o viu depois disso. Ele vivia lá nos cafundós, então ninguém percebeu que ele havia partido.
- Ela soltou um suspiro longo e cansado. - Ele mandou um cartão-postal para o seu pai, de algum lugar no norte. Mas, é claro, seu pai já tinha fugido da greve e,
portanto, nunca o recebeu. Mais tarde, quando Andy voltou, deixou um bilhete para a irmã dele dizendo que não suportava mais. O pobre coitado se matou.
- E o que isso tem a ver com o meu pai? - perguntou Misha.
- Sempre achei que o fato de seu pai ter furado a greve foi a gota d'água. - A expressão de Jenny era uma mistura de piedade e convencimento. - Foi o que
condenou Andy.
- Você não tem como saber isso. - Misha se afastou, aborrecida.
- Não sou a única por aqui que pensa assim. Se seu pai tivesse confiado em alguém, teria sido em Andy. E isso deve ter sido demais para aquela pobre alma
fragilizada. Ele tirou a própria vida, sabendo que seu único amigo de verdade havia traído tudo aquilo que ele defendia.
Naquele tom melodramático, Jenny se levantou e pegou um saco de cenouras da prateleira. Estava claro que ela dera por encerrado o assunto Mick Prentice.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen deu uma espiada no relógio. Quaisquer que fossem as qualidades de Misha Gibson, a brevidade não era uma delas.
- Então Andy Kerr provou ser, literalmente, um caso morto e enterrado?
- Minha mãe acha que sim. Mas parece que nunca encontraram o corpo. Talvez ele não tenha se matado, afinal - disse Misha.
- Eles nem sempre aparecem - Karen disse. - Às vezes, o mar os reivindica. Ou a floresta, que seja. Ainda existe muito espaço vazio nesta terra.
A resignação tomou conta do rosto de Misha. Karen percebeu que ela era uma mulher inclinada a acreditar no que lhe diziam. Se havia alguém que sabia disso, era sua
mãe. Talvez as coisas não fossem tão preto no branco quanto Jenny Prentice queria que sua filha pensasse.
- Isso é verdade - disse Misha. - E minha mãe falou mesmo que ele havia deixado um bilhete. Será que a polícia ainda o tem?
Karen balançou a cabeça.
- Duvido. Se em algum momento esteve com a gente, foi devolvido à família dele.
- Não teria havido um inquérito? Não teriam precisado do bilhete para isso?
- Você se refere a uma Investigação de Acidente Fatal - disse Karen.
- Não sem um corpo. Se existir um arquivo desse caso, é a respeito de pessoa desaparecida.
- Mas ele não está desaparecido. A irmã dele conseguiu que ele fosse declarado morto. Seus pais morreram no acidente da balsa de Zeebrugge, mas parece que
o pai sempre se recusou a acreditar que Andy tivesse morrido; então, não alterou o testamento para deixar a casa para a filha. Ela teve que ir ao tribunal e pedir
que declarassem Andy morto, para que ela pudesse herdá-la. De qualquer modo, foi o que minha mãe me contou. - Nenhum sinal de dúvida perturbava a expressão de Misha.
Karen anotou irmã de Andy Kerr e acrescentou um pequeno asterisco à observação.
- Portanto, se Andy se matou, voltamos a ter como única explicação racional para seu pai ter desaparecido o fato de ele querer furar a greve. Você fez alguma
tentativa de contatar os caras com quem se supõe que ele tenha fugido?
Segunda-feira, 25 de junho de 2007; Edimburgo
Nove e dez da manhã de uma segunda-feira e Misha já se sentia exausta. Ela já deveria estar com Luke no hospital. Brincando com ele, lendo para ele, bajulando os
terapeutas para que ampliassem seus procedimentos, discutindo planos de tratamento com a equipe médica e usando toda a sua energia para contagiá-los com a sua convicção
de que era possível salvar o filho. E, se era possível, todos eles tinham a obrigação de lhe proporcionar até a última gota de intervenção médica.
Mas, em vez disso, Misha estava sentada no chão, com as costas contra a parede, os joelhos dobrados, o telefone no colo e o bloco de anotações a seu lado. Ela disse
a si mesma que estava tomando coragem para dar um telefonema, mas no fundo sabia que a exaustão era o verdadeiro motivo por trás da inatividade.
Outras famílias aproveitavam os fins de semana para relaxar, recarregar as baterias. Mas não os Gibson. Para começar, havia menos funcionários trabalhando no hospital,
então Misha e John se sentiam obrigados a dedicar
mais energia que o habitual a Luke. Tampouco havia descanso quando eles voltavam para casa. O fato de Misha acreditar que a última esperança para o filho era encontrar
seu pai havia simplesmente agravado o conflito entre seu ardor missionário e o otimismo passivo de John.
Esse fim de semana havia sido mais difícil que o normal. Ter um limite de tempo definido para a vida de Luke impregnava de valor e intensidade cada momento que compartilhavam.
Era difícil evitar uma espécie de sentimentalismo melodramático. Assim que saíram do hospital no domingo, Misha retomou o refrão que vinha repetindo desde que visitara
a mãe:
- Eu tenho que ir a Nottingham, John. Você sabe disso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta impermeável e curvou a cabeça para a frente, como se estivesse lutando contra um vento forte.
- Telefone para o cara - John falou. - Se ele tiver alguma coisa a dizer, dirá pelo telefone.
- Talvez não. - Ela correu um pouco para acertar o passo com ele. - As pessoas sempre contam mais coisas cara a cara. Talvez possa me dar alguma informação
sobre os outros que foram para lá com ele. Pode ser que eles saibam de alguma coisa.
John bufou.
- E como é que a sua mãe só se lembra do nome de um cara? Por que ela não pode te dar informações a respeito dos outros?
- Eu já disse. Ela apagou da memória tudo sobre aquela época. Tive que pressioná-la muito até ela me dar o nome de Logan Laidlaw.
- E você não acha incrível que o único cara de quem ela se lembra não tenha nenhum parente na região? Nenhuma maneira óbvia de ser rastreado?
Misha enganchou seu braço no dele, em parte para fazê-lo ir mais devagar.
- Mas eu o rastreei, não foi? Você é desconfiado demais.
- Não sou, não. Sua mãe não conhece o poder da Internet. Ela não sabe dos cadastros eleitorais on-line nem do site 192.com. Ela acha que, se não houver nenhum
ser humano a quem perguntar, você está ferrada. Pensou que não estava lhe dando nada que você pudesse usar. Ela não quer ver você bisbilhotando a respeito desse
assunto, ela não vai te ajudar.
- Então você e ela podem dar as mãos. - Misha soltou o braço do dele e caminhou rapidamente à sua frente.
John a alcançou na esquina da rua deles.
- Isso não é justo - ele disse. - Eu só não quero que você se machuque à toa.
- Você acha que ver meu filho morrer sem fazer nada para salvá-lo não está me machucando?
Misha sentiu o calor da raiva em seu rosto, soube que as lágrimas de ira estavam à espreita. Virou o rosto, piscando desesperadamente para os prédios altos de arenito.
- Encontraremos um doador. Ou eles encontrarão um tratamento. Toda essa pesquisa com células-tronco está avançando muito rápido.
- Não rápido o bastante para Luke - Misha disse, a familiar sensação de peso no estômago desacelerando seus passos. - John, por favor. Preciso ir a Nottingham.
Preciso que você tire uns dias de folga do trabalho para ficar com Luke.
- Você não precisa ir. Pode falar com o cara pelo telefone.
- Não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você não negocia com clientes pelo telefone. Não quando é alguma coisa importante. Você vai até eles pessoalmente.
Quer olhar em seus olhos. Tudo que estou pedindo é que você tire uns dias de folga para passar um tempo com seu filho.
Os olhos dele brilharam perigosamente, e ela soube que tinha ido longe demais. John balançou a cabeça com teimosia.
- Telefone para ele, Misha.
E isso foi tudo. Sua longa experiência com o marido havia lhe ensinado que, quando John assumia uma postura que acreditava estar certa, insistir no mesmo ponto
apenas lhe dava a oportunidade de construir defesas mais fortes. Ela não tinha argumentos novos que pudessem mudar sua decisão. Portanto, ali estava ela, sentada
no chão, tentando formular frases capazes de convencer Logan Laidlaw a lhe dizer o que havia acontecido com seu pai desde que ele a abandonara, havia mais de vinte
anos.
Sua mãe não lhe dera muita coisa para criar uma estratégia. Laidlaw era um esbanjador, um mulherengo, um homem que, aos trinta anos, ainda agia como um adolescente.
Aos vinte e cinco anos, já se divorciara com a péssima reputação de ser um homem habilidoso demais com os punhos quando perto das mulheres. A imagem que Misha guardava
do pai era incompleta e parcial, mas, mesmo com a visão imposta pela mãe, Mick Prentice não
parecia ser o tipo de homem que tivesse tempo a perder com Logan Laidlaw. Ainda assim, tempos difíceis criam os companheiros mais estranhos.
Finalmente, Misha pegou o telefone e digitou os números que ela havia encontrado através de buscas na Internet e em listas telefônicas. Provavelmente ele saíra para
trabalhar, ela pensou no quarto toque. Ou então estava dormindo.
O sexto toque foi interrompido abruptamente. Uma voz rouca grunhiu algo parecido com alô.
- É Logan Laidlaw? - Misha perguntou, lutando para manter a voz sob controle.
- Já tenho uma cozinha montada e não quero nenhum seguro. - O sotaque de Fife ainda era forte, as palavras se atropelando com o familiar sobe e desce.
- Não quero lhe vender nada, Sr. Laidlaw. Só preciso falar com o senhor um instante.
- É, sei. E eu sou o primeiro-ministro.
Ela podia sentir que ele estava a ponto de desligar.
- Sou a filha de Mick Prentice - ela revelou, sua estratégia tinha ido por água abaixo. Através da distância, ela podia ouvir o chiado líquido da respiração
dele. - Mick Prentice, de Newton of Wemyss - ela tentou.
- Eu sei de onde Mick Prentice é. Só não sei o que Mick Prentice tem a ver comigo.
- Olhe, sei que vocês dois não se veem muito, ultimamente, mas eu agradeceria qualquer informação que o senhor pudesse me dar. Realmente preciso encontrá-lo.
- O sotaque de Misha pulou algumas marchas até voltar à pronúncia carregada.
Uma pausa. Então, com um tom desconcertado:
- Por que você está me ligando? Não vejo Mick Prentice desde que saí de Newton of Wemyss, em 1984.
- Tudo bem, mas mesmo que vocês tenham se separado logo que chegaram a Nottingham, o senhor deve ter uma ideia de onde ele foi parar, aonde ele estava indo.
- Escuta aqui, docinho, não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim, nos separamos logo que chegamos a Nottingham? - ele parecia irritado,
a pouca paciência que tinha evaporava com as perguntas dela.
Misha engoliu um suspiro profundo e, então, disse lentamente:
- Só quero saber o que aconteceu com meu pai depois que vocês chegaram a Nottingham. Preciso encontrá-lo.
- Por acaso, você tem algum problema na cabeça, menina? Não faço a menor ideia do que aconteceu com seu pai depois que vim para Nottingham e sabe por quê?
Porque eu estava em Nottingham e ele, em Newton of Wemyss. E mesmo quando nós dois estávamos na mesma cidade, não éramos o que se pode chamar de compadres.
As palavras a atingiram como um balde de água fria. Será que havia algo errado com a memória de Logan Laidlaw? Estaria se esquecendo do passado?
- Não, isso não está certo - ela disse. - Ele foi para Nottingham com você.
Uma explosão de risadas, então uma tosse seca.
- Alguém está te enrolando, menina - ele ofegou. - Trotsky teria furado um piquete de greve antes do Mick Prentice que eu conheci. O que te faz pensar que
ele veio para Nottingham?
- Não sou só eu. Todo mundo pensa que ele foi para Nottingham com você e com os outros homens.
- Isso é loucura. Por que iriam pensar isso? Você não conhece a história da sua própria família?
- O que você quer dizer?
- Por Deus, menina, o seu bisavô. O avô do seu pai. Você não sabe a respeito dele?
Misha não fazia a mínima ideia de onde aquilo iria parar, mas pelo menos ele não tinha desligado na cara dela, como havia temido que fizesse.
- Ele morreu antes de eu nascer. Não sei nada sobre ele, a não ser que também era mineiro.
- Jackie Prentice - disse Laidlaw com algo que se aproximava à satisfação. - Ele foi um fura-greve em 1926. Depois do acordo sindical, ele teve de ser transferido
para um posto na superfície. Quando sua vida depende dos homens da sua equipe, você não quer ser um fura-greve no subterrâneo. A não ser que todo mundo esteja no
mesmo barco, como era nosso caso. Só Deus sabe por que Jackie permaneceu na cidade. Ele tinha que tomar um ônibus até Dysart só para conseguir uma bebida. Não havia
um só bar, em nenhum dos vilarejos de Wemyss, que o servisse. Então, seu pai e seu avô tiveram que trabalhar duas vezes mais que qualquer outra pessoa para serem
aceitos na mina. Nem morto Mick Prentice jogaria fora esse respeito. Ele preferiria morrer de fome. Isso mesmo, e deixar que você morresse junto com ele. Onde quer
que você tenha conseguido essa informação, eles não sabem de que diabos estão falando.
- Minha mãe me contou. É o que todos dizem em Newton. - O impacto das palavras dele a fizeram sentir como se todo ar houvesse sido sugado de seus pulmões.
- Bem, eles estão errados. Por que iriam pensar isso?
- Porque a noite em que você foi para Nottingham foi a última noite em que alguém em Newton o viu ou ouviu falar dele. E porque minha mãe, ocasionalmente,
recebe dinheiro pelo correio, com o carimbo de Nottingham.
Laidlaw respirou com dificuldade, uma exalação de sanfona no ouvido dela.
- Jesus, isso é espantoso. Bem, querida, sinto muito decepcioná-la. Cinco de nós partiram de Newton of Wemyss naquela noite de dezembro. Mas seu pai não estava
entre a gente.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen parou na lanchonete para comprar um sanduíche de salpicão de frango, quando voltava para sua mesa. Criminosos e testemunhas raramente conseguiam enganar Karen,
mas, quando se tratava de comida, ela podia enganar a si mesma dezessete vezes antes do café da manhã. O sanduíche, por exemplo. Pão integral, um pedaço de alface
murcha, algumas fatias de tomate e pepino e, pronto: passava a ser um alimento saudável. Esqueça a manteiga e a maionese. Na sua cabeça, as calorias eram canceladas
pelo benefício. Ela enfiou o caderno embaixo do braço e rasgou a embalagem plástica do sanduíche enquanto caminhava.
Phil Parhatka levantou os olhos quando Karen se deixou cair, pesadamente, na cadeira. Não pela primeira vez, o ângulo da cabeça dele a lembrou de que ele parecia
uma versão mais morena e mais magra de Matt Damon. Havia o mesmo nariz e queixo protuberantes, as sobrancelhas retas, o corte de cabelo à la Identidade Boume, e
a expressão que podia variar, de aberta a resguardada, num segundo. Só as cores eram diferentes.
A ascendência polonesa de Phil era responsável por seus cabelos escuros, os olhos castanhos e a pele intensamente branca; sua personalidade contribuíra com o minúsculo
furo em sua orelha esquerda, que geralmente acomodava um brinco de diamante, quando ele não estava de serviço.
- Como foi? - ele perguntou.
- Mais interessante do que eu esperava - ela admitiu, levantando-se novamente para pegar uma Coca Diet.
Entre mordidas e goles, ela fez um resumo conciso da história de Misha Gibson.
- E ela acredita no que esse velho caduco de Nottingham lhe contou? - ele perguntou, recostando-se na cadeira e entrelaçando os dedos atrás da cabeça.
- Acho que ela é o tipo de mulher que normalmente acredita no que as pessoas lhe dizem - disse Karen.
- Ela seria uma péssima policial, então. Portanto, imagino que você irá passar o caso para a Divisão Central investigar.
Karen deu uma dentada no sanduíche e mastigou vigorosamente, os músculos da mandíbula e têmpora se projetavam e contraíam como uma bola antiestresse sob pressão.
Ela engoliu antes de ter terminado de mastigar direito, empurrando o que sobrou com um gole de Coca Diet.
- Não tenho certeza - ela disse. - É um caso interessante.
Phil lançou um olhar cauteloso.
- Karen, não se trata de um caso arquivado. Não é nossa praia.
- Se eu passá-lo para a Central, vai acabar não dando em nada. Ninguém dé lá vai se incomodar com um caso em que as pistas esfriaram há vinte e dois anos.
- Ela se recusou a encarar o olhar desaprovador dele. - Você sabe disso tão bem quanto eu. E, segundo Misha Gibson, essa seria a última chance do filho dela.
- Ainda não faz com que seja um caso arquivado.
- Só porque não foi aberto em 1984 não significa que agora não esteja arquivado. - Karen sacudiu o resto de seu sanduíche apontando para arquivos sobre sua
mesa. - E nenhum destes aqui irá a qualquer lugar, a curto prazo. Darren Anderson: não há nada que eu possa fazer até que os policiais nas Canárias se mexam e descubram
em que bar a ex-namorada dele está trabalhando. Ishbel Mackindoe: aguardo que o laboratório me
diga se eles podem obter amostras viáveis de DNA das cartas anônimas. Patsy Millar: não posso seguir adiante com esse caso até que a Polícia Metropolitana de Londres
termine de cavar aquele jardim no bairro de Heringey e faça as análises criminais.
- Há testemunhas no caso de Patsy Millar com quem poderíamos falar novamente.
Karen deu de ombros. Ela sabia que podia usar a hierarquia para calar a boca de Phil, mas precisava demais da tranquilidade que havia entre eles.
- Elas não irão a lugar algum. Ou, senão, você pode pegar um dos detetives e lhe dar um pouco de treinamento em ação.
- Se você acha que eles precisam de treinamento em ação, deveria lhes dar esse caso arquivadíssimo de pessoa desaparecida. Você é uma inspetora agora, Karen.
Não se espera que saia investigando esse tipo de coisa. - Ele indicou com a mão os dois detetives sentados frente a seus computadores. - Isso é para gente como eles.
O que acontece é que você está entediada. - Karen tentou protestar, mas Phil continuou, sem lhe dar atenção. - Eu lhe disse, quando você aceitou essa promoção, que
iria ficar louca, sentada atrás de uma mesa. E agora, olhe só. Surrupiando os casos dos agentes da Central. O próximo passo é você sair para fazer pessoalmente os
interrogatórios.
- E daí? - Karen amassou a embalagem do sanduíche com mais força que o necessário e a atirou no lixo. - É bom manter a mão na massa. E vou garantir que tudo
seja feito de forma honesta. Levarei o detetive Murray comigo.
- O Novo em Folha? - O tom da voz de Phil era de incredulidade, seu semblante estava ofendido. - Você preferiria o Novo em Folha a mim?
Karen sorriu com doçura.
- Você agora é sargento, Phil. Um sargento com ambições. Ficar no escritório e esquentar minha cadeira ajudará suas aspirações a se tornarem realidade. Além
disso, o Novo em Folha não é tão ruim quanto você pensa. Ele faz aquilo que o mandam fazer.
- Isso um cachorro collie também faz. Só que o cão mostraria mais iniciativa.
- A vida de uma criança está em jogo, Phil. Eu tenho bastante iniciativa para nós dois. Isso deve ser feito da maneira correta e vou garantir que
seja. - Ela se virou para o computador com um ar de ter terminado a conversa.
Phil abriu a boca para falar mais, então, pensou melhor, ao ver o olhar repressivo que Karen lançou em sua direção. Eles se sentiram atraídos um pelo outro desde
o começo da carreira, reconhecendo a tendência comum de não se conformar. O fato de haverem galgado postos juntos lhes havia conferido uma amizade capaz de sobreviver
ao desafio da mudança de cargo. Mas ele sabia que havia um limite até onde podia pressionar Karen, e tinha a sensação de haver acabado de atingi-lo.
- Então, eu lhe darei cobertura por aqui - ele disse.
- Por mim, está ótimo - Karen disse, enquanto seus dedos voavam pelas teclas. - Marque a minha saída para amanhã de manhã. Tenho a impressão de que Jenny
Prentice será um pouquinho mais receptiva a uma dupla de policiais do que foi com a filha.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Aprender a esperar era uma das lições do jornalismo que as faculdades não ensinavam. Quando Bel Richmond tivera um emprego de tempo integral, em um jornal dominical,
sempre defendera que era paga não por uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, e sim pelos cinco minutos em que conseguia, com sua lábia, passar por uma
porta que ninguém antes conseguira cruzar. O que deixava bastante tempo livre para esperar. Esperar que alguém retornasse um telefonema. Esperar que o passo seguinte
da história acontecesse. Esperar que um contato se transformasse em informante. Bel havia passado por várias esperas e, embora tivesse se tornado habilidosa na atividade,
nunca havia aprendido a apreciá-la.
Tinha de admitir que já precisara esperar em ambientes muito menos salubres que aquele. Ali, havia o conforto do café, biscoitos e jornais. E a sala na qual havia
sido deixada oferecia a vista panorâmica que já enfeitara um milhão de latas de biscoitos amanteigados. Ocupando toda a extensão da Princess Street, exibia um punhado
de atrações turísticas: o castelo, o Scott Monument, a National Gallery e o parque Prince Street Gardens. Bel notou outra beleza arquitetônica significativa, mas
não sabia o suficiente sobre a cidade para identificá-la. Ela só visitara a capital escocesa algumas
vezes e não fora escolha sua realizar aquela reunião ali. Teria preferido Londres; porém, a relutância em mostrar seus trunfos antecipadamente a havia deslocado
do assento do motorista para o posto de suplicante.
De forma um tanto incomum para uma jornalista freelance, ela contava com um assistente de pesquisa. Jonathan era estudante de jornalismo na City University e pedira
a seu orientador que o indicasse para estagiar com Bel. Aparentemente, ele gostava do estilo dela. Bel ficara levemente agradecida pelo elogio, mas profundamente
maravilhada com a perspectiva de ter oito semanas livres de todo trabalho pesado. Sendo assim, Jonathan fizera o primeiro contato com a Maclennan Grant Enterprises.
Voltou com uma resposta bem simples: se a Srta. Richmond não estava preparada para declarar seu motivo para querer um encontro com Sir Broderick Maclennan Grant,
Sir Broderick não estava preparado para se encontrar com ela. Sir Broderick não dava entrevistas. Após algumas negociações adicionais a distância, ela chegara ao
presente acordo.
E agora, pensou Bel, ela estava sendo colocada em seu lugar. Obrigada a ficar esperando numa sala de reuniões de hotel. Forçada a entender que alguém tão importante
quanto a assistente pessoal do presidente e acionista principal da décima segunda empresa mais valiosa do país tinha compromissos mais urgentes em sua agenda do
que fazer sala para uma escritorazinha de Londres.
Gostaria de se levantar e caminhar um pouco, mas não queria revelar qualquer falta de compostura. Ceder terreno nunca fora natural para ela. Em vez disso, ajeitou
a jaqueta, verificou se a blusa estava adequadamente arrumada e tirou uma sujeirinha dos sapatos de camurça verde-esmeralda.
Afinal, precisamente quinze minutos depois da hora marcada, a porta se abriu. A mulher que entrou, num turbilhão de lã e caxemira, lembrava uma professora de colégio,
de idade indeterminada, mas acostumada a impor disciplina aos alunos. Por um momento insano, Bel quase se levantou de um pulo, num reflexo pavloviano às suas recordações
adolescentes de freiras terroristas. No entanto, conseguiu se conter e se levantou de forma mais lenta.
- Susan Charleson - disse a mulher, estendendo a mão. - Desculpe-me por tê-la feito esperar. Como Harold Macmillan disse uma vez: "Acontecimentos, caro rapaz.
Acontecimentos."
Bel decidiu não ressaltar que Harold Macmillan referia-se ao trabalho de primeiro-ministro, e não à função de babá de um líder industrial. Segurou os dedos mornos
e secos, em um aperto rápido e rígido, e, então, teve a mão liberada.
- Annabel Richmond.
Susan Charleson ignorou a poltrona em frente a Bel e dirigiu-se à mesa perto da janela. Pega de surpresa, Bel apanhou a bolsa e a pasta de couro e a seguiu. Sentaram-se
em lados opostos e Susan sorriu, os dentes pareciam uma linha de creme dental calcária em meio ao batom rosa-escuro.
- Você queria ver Sir Broderick - ela disse. Sem preâmbulos, sem conversa fiada sobre a vista. Simplesmente direta. Era uma técnica que Bel havia utilizado
algumas vezes, o que não queria dizer que a apreciasse quando a situação era inversa.
- Exatamente.
Susan balançou a cabeça.
- Sir Broderick não fala com a imprensa. Temo que você tenha desperdiçado seu tempo. Expliquei tudo isso a seu assistente, mas ele se recusou a aceitar uma
resposta negativa.
Foi a vez de Bel sorrir com frieza.
- E fez muito bem. Eu, obviamente, lhe dei um bom treinamento. Mas parece haver um mal-entendido. Não estou aqui para implorar por uma entrevista. Estou aqui
porque acho que tenho algo em que Sir Broderick ficará interessado. - Ela ergueu a pasta até a mesa e abriu o zíper. De dentro, retirou uma única folha de papel
A3 grosso, virada para baixo. Estava manchada e exalava um cheiro sutil, uma mistura curiosa de poeira, urina e lavanda. Bel não resistiu a lançar uma olhadela provocadora
para Susan Charleson. - Você gostaria de ver? - ela perguntou, virando o papel.
Susan tirou um estojo de couro do bolso da saia e extraiu dele uns óculos de aro de casco de tartaruga. Equilibrou-os no nariz, calmamente, mas sem tirar os olhos
das imagens em preto e branco à sua frente. O silêncio entre as mulheres pareceu crescer, e Bel sentiu-se sem ar enquanto esperava por uma resposta.
- Onde você encontrou isto? - Susan perguntou, seu tom de voz estava tão afetado quanto o de uma professora de latim.
Segunda-feira, 18 de junho de 2007; Campora, Toscana, Itália
Às sete da manhã era quase possível acreditar que o calor intenso dos últimos dez dias não fosse dar as caras. A luz perolada do dia cintilava entre a abóbada de
folhas de carvalho e castanheira, deixando visíveis as partículas de poeira que espiralavam, emitidas pelos pés de Bel. Ela se movia devagar o bastante para notá-las
porque a trilha destruída que descia em meio às árvores era sulcada e esburacada, coberta com pedras irregulares o bastante para conscientizar qualquer corredor
da fragilidade de seus tornozelos.
Apenas mais duas daquelas corridas matinais tão apreciadas antes de retornar às sufocantes ruas de Londres. O pensamento provocou uma ferroada de arrependimento.
Bel adorava escapulir da villa enquanto todos ainda estavam dormindo. Ela podia andar descalça pelo chão frio de mármore, fingindo ser a castelã do lugar, e não
simplesmente outra arrendatária tentando tirar uma casquinha da elegância toscana.
Ela vinha tirando férias com o mesmo grupo de cinco amigas desde que dividiram uma casa, em seu último ano na universidade de Durham. Naquela primeira vez, elas
estavam estudando arduamente para os exames finais. Os pais de uma delas tinham uma casa de campo na Comualha, que elas ocuparam por uma semana. Haviam chamado aquilo
de pausa nos estudos; na verdade, foram umas férias em que descansaram e relaxaram, ficando em melhores condições para prestar os exames do que se tivessem se exaurido
com livros e artigos. E, apesar de serem jovens modernas e nem um pouco dadas a superstições, todas sentiram que a semana que haviam passado juntas tinha, de alguma
forma, sido responsável por suas boas notas. Desde então, vinham se reunindo todos os anos, em junho, com o compromisso de se divertir.
Ao longo dos anos, seus hábitos alcoólicos haviam se tornado mais apurados; os alimentícios, mais epicuristas; e as conversas, mais escandalosas. Os lugares haviam
se tornado cada vez mais luxuosos. Amantes jamais eram convidados para compartilhar aquela semana das garotas. Ocasionalmente, uma delas hesitava, alegando muita
pressão no trabalho ou obrigações familiares, mas, geralmente, era ameaçada e mudava de ideia rapidamente e sem dar muito trabalho.
Para Bel, aquele era um elemento significativo de sua vida. Todas aquelas mulheres eram bem-sucedidas, todas eram fontes com as quais podia
contar para suavizar seu caminho, de tempos em tempos. Mas, apesar disso, não era essa a razão principal de suas férias serem tão importantes. Parceiros haviam chegado
e partido, mas aquelas amigas sempre foram uma constante. Em um mundo no qual se era julgado de acordo com sua última manchete, era agradável ter um refúgio onde
nada disso importava. Onde ela era apreciada simplesmente porque o grupo se divertia mais quando ela estava presente. Elas se conheciam havia muito tempo para perdoar
os defeitos umas das outras, para aceitar as opiniões políticas umas das outras e para dizer aquilo que seria impronunciável diante de qualquer outra pessoa. Essas
férias faziam parte da fortaleza que ela constantemente levantava contra suas próprias inseguranças. Além disso, atualmente, eram as únicas férias que ela tirava
que estavam de acordo com o que ela queria fazer. Nos últimos seis anos, ela estivera presa à sua irmã viúva, Vivianne, e seu filho Harry. A morte repentina do marido
de Vivianne, vítima de um ataque cardíaco, a deixara emocionalmente abalada e muito carente. Bel não hesitara em unir seu destino ao da irmã e do sobrinho. No final,
tinha sido uma boa decisão, mas, ainda assim, ela valorizava muito a pausa anual daquela vida familiar que nunca imaginou que viveria. Principalmente agora, quando
Harry se encontrava à beira da crise existencial da adolescência. Este ano, portanto, mais ainda do que no passado, as férias tinham de ser especiais, precisavam
superar tudo que já havia existido.
Era difícil imaginar como elas superariam isso, ela pensou, enquanto emergia das árvores e virava num campo de girassóis que se preparavam para florescer. Ela se
apressou um pouco ao percorrer seu caminho pela margem, o-nariz franzindo com o aromático perfume da vegetação. Não havia nada que ela desejasse mudar naquele lugar,
nenhum defeito que pudesse encontrar nos jardins e nas árvores frutíferas que rodeavam a varanda e a piscina. A vista do Val d'Eisa era deslumbrante, com as cidadezinhas
de Volterra e San Gimignano no horizonte distante.
E havia o bônus adicional da culinária de Grazia. Quando elas descobriram que a "chef local" descrita no site da Internet era a esposa do criador de porcos que vivia
ali perto, desistiram de chamá-la até a villa para preparar uma refeição tipicamente toscana. Na tarde do terceiro dia, no entanto, todas estavam incomodadas demais
com o calor para se dar ao trabalho de cozinhar; então, chamaram Grazia. O marido, Maurizio, a levou até a villa
num Fiat Panda caindo aos pedaços, que parecia se manter inteiro à custa de barbantes e fé. Ele descarregou caixas de comida cobertas de musselina. Num inglês macarrônico,
Grazia as expulsou da cozinha e mandou que fossem relaxar na varanda com um drinque.
A comida foi uma revelação: salames com frutas secas e prosciutto feito dos raros porcos Cinta di Siena que Maurizio criava, combinados com figos perfumados colhidos
em seu pomar; espaguete ao pesto de estragão e manjericão; codornas assadas com os vegetais cultivados por Maurizio e tiras compridas de batata temperadas com alecrim
e alho; queijos produzidos em fazendas da região e, finalmente, um delicioso bolo de amêndoas embebido com limoncello.
As mulheres nunca mais cozinharam.
A culinária de Grazia fez com que as corridas matinais de Bel se tornassem ainda mais necessárias. Ao aproximar-se dos quarenta, ela lutava cada vez mais para manter
o que pensava ser seu peso ideal. Naquela manhã, seu estômago ainda parecia uma bola rígida, após as suaves e deliciosas berinjelas alia parmigiana que a haviam
tentado a repetir generosamente o prato. Iria correr um pouco mais longe do que o normal, decidiu. Em vez de fazer o circuito do campo de girassóis e subir de volta
à villa, tomaria uma trilha que ia da extremidade mais distante e cruzava o terreno coberto de vegetação de uma casa colonica em ruínas, que ela avistara ao passar
de carro. Desde que vira a casa, na primeira manhã, tinha alimentado a fantasia de comprar a ruína e transformá-la no melhor dos refúgios toscanos, com direito
a piscina e jardim de oliveiras. E, é claro, com Grazia à disposição para cozinhar. Bel não tinha muitos escrúpulos com relação à invasão de propriedades, em fantasia
ou na realidade.
Mas ela se conhecia o suficiente para saber que aquilo nunca passaria de um sonho. Ser proprietária de um refúgio implicava o desejo, que ela não tinha, de abandonar
seu universo de trabalho. Talvez, quando estivesse pronta para se aposentar, pudesse considerar a possibilidade de devotar-se a um projeto de restauração como aquele.
A não ser pelo fato de admitir que esse era outro sonho pouco realista. Jornalistas jamais se aposentavam de verdade. Sempre havia outra história no horizonte, outro
alvo a perseguir. Sem falar do horror de ser esquecido. Todos motivos pelos quais seus relacionamentos passados não haviam durado, todos motivos pelos quais seu
futuro provavelmente reservasse as mesmas imperfeições. Ainda assim,
seria divertido dar uma olhada mais de perto na velha casa para ver seu estado. Quando mencionara a ideia a Grazia, ela fizera uma careta e a chamara de rovina.
Bel, cujo italiano era fluente, havia traduzido para as demais: "ruína". Hora de descobrir se Grazia estava dizendo a verdade ou apenas tentando desviar o interesse
de algumas ricaças inglesas.
O caminho através da grama alta ainda estava surpreendentemente limpo, o solo nu endurecido por anos de pisadas. Bel aproveitou a oportunidade para ir mais rápido,
até diminuir a velocidade ao chegar ao pátio fechado por portões, em frente à velha fazenda. Os portões estavam dilapidados, pendendo frouxamente das dobradiças
que mal se apegavam aos pilares de pedra. Uma corrente pesada e um cadeado os mantinham fechados. Mais além, o pavimento quebrado do pátio estava demarcado por tufos
rasteiros de tomilho, camomila e mato. Bel sacudiu os portões sem muita esperança. Mas foi o suficiente para revelar que o canto inferior do portão direito havia
se soltado completamente do suporte. Poderia ser facilmente afastado para que um adulto passasse pela abertura. Bel deslizou por ali e soltou o portão, que rangeu
suavemente ao voltar para sua posição de origem, aparentemente fechado.
De perto, ela pôde entender a descrição de Grazia. Qualquer um que assumisse a restauração ficaria escravo dos pedreiros por um longo, longo tempo. A casa rodeava
o pátio em três lados, uma ala central delimitada por dois braços iguais. Havia dois andares, com uma varanda percorrendo todo o segundo andar, na qual se abriam
portas e janelas, conferindo aos quartos fácil acesso ao ar livre e ao espaço de uso comum. Mas o chão da varanda havia cedido, as portas que restavam estavam tortas
e as vergas sobre as janelas estavam rachadas, pendendo em ângulos estranhos. As vidraças, em ambos os andares, estavam imundas, rachadas ou haviam desaparecido.
Mas as linhas sólidas da atraente arquitetura local ainda eram visíveis, e as pedras ásperas brilhavam calorosamente ao sol da manhã.
Bel não teria conseguido explicar por que, mas a casa a atraía. Tinha o charme desgastado de uma beldade suficientemente segura de si para permitir-se envelhecer
sem luta. Buganvílias sem poda estendiam-se sobre o estuque ocre descascado e cobriam a parede inferior da varanda. Se ninguém decidisse se apaixonar logo pela casa,
muito em breve ela estaria tomada pela vegetação. Em algumas gerações, não seria nada além de um
aterro inexplicável na ladeira da colina. Mas, naquele instante, ela ainda tinha o poder de enfeitiçar.
Bel atravessou o pátio que se esfarelava, passando por vasos de terracota rachados e tombados; as ervas que estes um dia haviam contido agora se espalhavam e brotavam
livremente, condimentando o ar com suas fragrâncias. Ela empurrou uma porta pesada, feita de tábuas de madeira que pendiam de uma única dobradiça. A madeira raspou
ruidosamente contra o piso desnivelado, de tijolos assentados em ziguezague, mas se abriu o suficiente para que Bel entrasse na sala ampla sem ter de se espremer.
Sua primeira impressão foi de sujeira e abandono. Teias de aranha se entrelaçavam num emaranhado que ia de parede a parede. As janelas estavam manchadas de poeira.
Um ruído de algo rastejando, a distância, fez com que Bel olhasse em volta, em pânico. Ela não tinha medo dos editores de jornais, mas ratos de quatro patas a enchiam
de repulsa.
Conforme ia se acostumando à obscuridade, Bel percebeu que a sala não estava completamente vazia. Havia uma mesa comprida contra uma parede. No lado oposto, um sofá
com o assento afundado. A julgar pelo resto do lugar, deveria estar podre e imundo, mas o tecido vermelho-escuro que o forrava ainda se mantinha relativamente limpo.
Ela arquivou aquele dado estranho para posterior consideração.
Bel hesitou por um instante. Tinha certeza de que nenhuma de suas amigas a encorajaria a prosseguir na exploração daquela estranha casa deserta. Mas ela havia construído
sua carreira com base em uma reputação de audácia. Só ela sabia com que frequência sua aparência ocultava níveis de ansiedade e incerteza que a haviam feito vomitar
em sarjetas e banheiros nos lugares mais estranhos. Depois de tudo que ela já havia enfrentado, em sua determinação de conseguir uma boa história, até que ponto
uma ruína deserta poderia ser assustadora?
Uma porta na extremidade mais distante conduzia a um corredor apertado, com uma escadaria gasta de pedra que levava à varanda. Mais à frente, ela podia ver outra
sala escura e suja. Espiou lá dentro, surpresa em ver um varal pendurado a um canto, com meia dúzia de cabides de metal. Pendurado em um dos cabides, havia um cachecol
de tricô. Por baixo, uma pilha amarrotada de roupa de camuflagem. Parecia uma daquelas jaquetas de caça, geralmente à venda na caminhonete que ficava no estacionamento
em frente ao café, na estrada principal de Colle di Val d'Eisa. As mulheres tinham rido daquilo uns dias atrás, se perguntando quando é que tinha virado moda os
italianos de todas as idades vestirem-se como recém-saídos do serviço militar nos Bálcãs. Estranho, ela pensou. Bel subiu cautelosamente as escadas até a varanda,
esperando encontrar a mesma sensação de lugar havia muito desabitado.
Porém, assim que emergiu da escadaria, percebeu que penetrara em algo muito diferente. Quando se virou para a esquerda e espiou pela primeira porta, entendeu que
aquela casa não era o que parecia. O bolor úmido do andar térreo era infinitamente menor ali, e o ar estava quase tão fresco quanto lá fora. O cômodo havia, obviamente,
sido um quarto, e não fazia muito tempo. Havia um colchão no chão com uma colcha atirada casualmente por cima, da metade para os pés. Estava empoeirado, mas não
havia nada comparável à sujeira impregnada do andar de baixo. De novo, havia um varal no canto. Tinha uma dúzia de cabides vazios, mas os últimos três seguravam
camisas levemente amarrotadas. Mesmo a distância, ela podia ver que não estavam em seu melhor estado, desbotadas nas mangas e nos colarinhos.
Um par de caixotes de tomate funcionava como criados-mudos. Sobre um deles, um toco de vela num pires. Uma edição amarelada do jornal Frankfurter AUgemeine Zeitung
jazia no chão, ao lado do colchão. Bel o apanhou, notando que a data era de menos de quatro meses atrás. Teve então uma ideia de quando o lugar havia sido abandonado
pela última vez. Ela ergueu a manga de uma das camisas e a pressionou contra o nariz. Alecrim e maconha. Suave, mas inconfundível.
Voltou para a varanda e verificou os demais quartos. O padrão era semelhante. Mais três quartos contendo uma porção de restos: algumas camisetas, livros e revistas
em inglês, italiano e alemão, meia garrafa de vinho, um resto de batom, uma sandália de couro cuja sola havia se soltado da parte de cima - o tipo de coisa que alguém
deixaria para trás, caso estivesse se mudando sem a mínima ideia de quem viria em seguida. Em um dos quartos, um buquê de flores enfiado num pote de azeitonas havia
secado a ponto de se desfazer.
O último quarto no lado oeste era o maior, até agora. Suas janelas haviam sido limpas mais recentemente do que as dos outros, as persianas
tinham sido reformadas e as paredes, caiadas. No meio do quarto, no chão, havia uma tela de silk-screen. Sobre mesas de cavaletes, encostadas numa parede, havia
copos plásticos manchados com pigmentos ressecados e pincéis endurecidos de forma negligente. Manchas e borrões espalhados marcavam o piso. Bel estava intrigada,
sua curiosidade superava qualquer vestígio de nervosismo por estar sozinha naquele lugar tão peculiar. Quem quer que houvesse estado ali, devia ter partido apressadamente.
Deixar uma sólida tela de silk-screen para trás não era algo que se fizesse, numa partida planejada.
Ela retornou à varanda e dirigiu-se à ala oposta. Teve o cuidado de permanecer próximo à parede, não confiando que o piso ondulado de tijolos suportasse seu peso.
Passou pelas portas dos quartos, sentindo-se como uma intrusa no Mary Celeste*. Um silêncio que não era quebrado nem mesmo por cantos de pássaros acentuava aquela
impressão. O último cômodo antes do canto era um banheiro cuja mescla nauseante de odores ainda pairava no ar. Um rolo de mangueira estava no chão, uma das extremidades
desaparecia através de um buraco perto da janela. Eles haviam, portanto, improvisado um pouco de água corrente, embora não o suficiente para deixar o vaso sanitário
menos asqueroso. Ela franziu o nariz e retrocedeu.
Bel virou a esquina da varanda no instante em que o sol se elevava acima das árvores, banhando-a num repentino calor. Fez com que sua entrada no último quarto fosse
ainda mais assustadora. Estremecendo com o ar úmido, ela se aventurou lá dentro. As persianas estavam bem fechadas, deixando o interior escuro demais para enxergar
qualquer coisa. Mas, conforme seus olhos se ajustaram, ela obteve uma impressão do quarto. Tinha as mesmas dimensões do estúdio, mas sua função era bem diferente.
Ela o atravessou até a janela mais próxima e forçou até finalmente abrir a persiana pela metade. Era o suficiente para confirmar sua primeira impressão. Aquele havia
sido o centro da ocupação da casa rovina. Havia um velho fogão desgastado, conectado a um botijão de gás, ao lado da pia de pedra. A mesa de jantar estava arranhada
e era de madeira nua, porém sólida, e com pernas lindamente esculpidas. Havia sete cadeiras díspares ao redor, e uma oitava encontrava-se tombada, a alguns metros
de distância. Contra as
* Barco encontrado à deriva, em 1872, no estreito de Gibraltar, cuja tripulação desapareceu. (N.E.)
paredes, uma cadeira de balanço e alguns sofás. Peças avulsas de louça e talheres estavam espalhadas, como se os moradores não se tivessem dado ao trabalho de recolhê-las
de onde haviam deixado.
Quando Bel se afastou da janela, uma mesa bamba chamou sua atenção. Como estava atrás da porta, era fácil não percebê-la. Uma coleção do que pareciam ser pôsteres
se espalhava sobre ela. Fascinada, ela foi em direção à mesa. Dois passos e parou, sua respiração ofegante ecoava no ar poeirento.
Diante dela, no piso de pedra calcária, havia uma mancha irregular, de talvez noventa por quarenta e cinco centímetros. Marrom-ferrugem, bordas arredondadas e lisas,
como se houvesse escorrido e empoçado, em vez de espirrado. Era densa o bastante para obscurecer o piso de pedra sob ela. Uma porção, na extremidade mais distante,
parecia borrada e diluída, como se alguém houvesse tentado limpar, esfregando-a, para logo desistir. Bel já havia feito coberturas de histórias de violência doméstica
e de homicídio sexual o suficiente para reconhecer uma mancha de sangue relevante quando a via.
Assustada, deu um passo atrás, sentia-se tonta, o coração batia com tanta força que achou que fosse sufocá-la. Que diabos havia acontecido ali? Ela olhou em volta
de forma desordenada, percebendo outras manchas escuras marcando o piso além da mesa. Hora de sair daqui, gritava a parte sensata de sua mente. Mas o demônio da
curiosidade sussurrava em seu ouvido. Há meses não há ninguém aqui. Olhe para a poeira. Já faz tempo que se foram. Não vão voltar num futuro próximo. Seja o que
for que tenha acontecido aqui, foi motivo suficiente para que dessem o fora. Dê uma olhada nos pôsteres...
Bel rodeou a mancha, passando o mais longe possível para não tocar em nenhum móvel. De repente, ela sentiu o ar pesado. Sabia que era só imaginação, mas, ainda assim,
parecia real. De costas para o quarto e com o rosto voltado para a porta, ela foi andando de lado até a mesa e olhou para baixo, para os pôsteres que a cobriam.
O segundo choque foi quase tão forte quanto o primeiro.
Bel sabia que estava correndo rápido demais morro acima, mas não podia diminuir o passo. Podia sentir o suor da mão cobrir o papel de boa qualidade do pôster enrolado.
Por fim, a trilha emergiu do meio das árvores e ficou menos traiçoeira, ao aproximar-se de sua villa de férias. A estrada descia
quase imperceptivelmente, mas a gravidade era suficiente para dar a suas pernas cansadas um impulso extra, e ela ainda ia rápido ao virar a curva da casa e encontrar
Lisa Martyn deitada à sombra, no terraço, em uma espreguiçadeira e com a edição de sexta-feira do Guardian como companhia. Bel ficou aliviada. Precisava falar com
alguém e, de todas as suas companheiras, era menos provável que Lisa transformasse suas revelações em fofocas da hora do jantar. Lisa, como advogada de direitos
humanos, cuja compaixão e feminismo pareciam tão inevitáveis quanto o ato de respirar, entenderia o potencial da descoberta que Bel pensava ter feito. Assim como
seu direito de lidar com aquilo do jeito que achasse melhor.
Lisa afastou lentamente os olhos do jornal, perturbada pelo arfar incomum da respiração de Bel.
- Meu Deus - ela disse. - Você parece a ponto de infartar.
Bel colocou o pôster numa cadeira e se curvou, as mãos apoiadas nos joelhos, puxando o ar para dentro dos pulmões, arrependida dos cigarros surrupiados em segredo.
- Ficarei... bem... num minuto.
Lisa se levantou desajeitadamente da espreguiçadeira e correu até a cozinha, voltando com uma toalha e uma garrafa de água. Bel se empertigou, pegou a água e derramou
metade sobre a cabeça, fungando ao inalar um pouco acidentalmente. Então, esfregou a cabeça com a toalha e se deixou cair numa cadeira. Tomou um gole comprido de
água enquanto Lisa voltava para a espreguiçadeira.
- O que aconteceu? - Lisa perguntou. - Você é a corredora mais digna que eu conheço. Nunca vi uma Bel sem fôlego na vida. O que foi que a deixou neste estado?
- Encontrei uma coisa - Bel disse. Seu peito ainda lutava, mas ela conseguiu emitir alguns sopros de fala. - Pelo menos, acho que encontrei. E se estiver
certa, será a história da minha carreira. - Ela estendeu a mão para apanhar o pôster. - Espero que você possa me dizer se perdi completamente a cabeça.
Intrigada, Lisa jogou o jornal no chão e se endireitou.
- Então, o que é... essa coisa que pode ser alguma coisa?
Bel desenrolou o papel grosso, prendendo-o nos cantos com um moedor de pimenta, uma caneca de café e dois cinzeiros sujos. A imagem na folha
A3 era impressionante. Havia sido desenhada para que parecesse uma simples xilogravura em preto e branco, no estilo impressionista alemão. No alto da página, um
homem barbado, com um topete de cabelo duro, se inclinava por cima de uma tela, e suas mãos seguravam cruzes de madeira, das quais pendiam três marionetes. Mas não
eram marionetes comuns. Uma era um esqueleto, a segunda era um bode, e a terceira, uma representação da Morte, com o manto encapuzado e a foice. Havia algo indiscutivelmente
sinistro na imagem. Abaixo, contornada por uma borda negra funesta, havia uma área em branco, de aproximadamente oito centímetros de profundidade. Era o tipo de
espaço onde se poderia colocar um aviso anunciando uma apresentação teatral.
- Puta que me pariu! - disse Lisa. Finalmente, ela ergueu os olhos. - Catriona Maclennan Grant - ela disse. Havia espanto em sua voz. - Bel... onde diabos
você encontrou isto?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Bel sorriu.
- Antes de responder a isso, quero deixar algumas coisas claras.
Susan Charleson revirou os olhos.
- Você não pode estar achando que é a primeira pessoa que passa por esta porta com uma cópia falsificada do pôster de resgate. Vou lhe dizer o mesmo que disse
a todos os outros. A recompensa está condicionada à localização do neto de Sir Broderick vivo, ou à demonstração, de forma conclusiva, de que ele esteja morto. Sem
falar em levar os assassinos de Catriona Maclennan Grant à Justiça.
- Você não está me entendendo - Bel disse, com um sorriso provocador, mas sem ceder um só milímetro. - Srta. Charleson, não estou nem um pouco interessada
no dinheiro de Sir Broderick. Mas tenho uma condição.
- Você está cometendo um erro. - A voz de Susan Charleson havia adquirido um toque ácido. - Este assunto é um caso policial. Você não está em posição de impor
condições.
Bel colocou a mão firmemente sobre o pôster.
- Posso sair agora mesmo por aquela porta com este pôster e esquecer que o vi. Não teria qualquer dificuldade em mentir para a polícia. Sou uma
jornalista, afinal. - Ela estava começando a se divertir muito mais do que havia previsto. - É a sua palavra contra a minha, Srta. Charleson. E eu sei que você não
quer que eu vá embora. Uma das habilidades que um jornalista bem-sucedido deve aprender é como ler as pessoas. E vi a forma como você reagiu ao olhar para isto.
Você sabe que é verdadeiro, e não uma cópia falsificada.
- Você tem uma postura bem agressiva - Susan Charleson parecia quase indiferente.
- Prefiro dizer que sou assertiva. Não vim aqui para discutir com você, Srta. Charleson. Quero ajudar. Mas não de graça. Pela minha experiência, os ricos
não dão valor a nada daquilo por que não tenham de pagar.
- Você disse que não estava interessada em dinheiro.
- É verdade. Não estou. No entanto, estou interessada em reputação. E a minha reputação está construída sobre o fato de não ser, simplesmente, a primeira
a aparecer com a história, mas em obter a história por trás da história. Acho que existem áreas em que posso ajudar a desvendar isso com mais eficácia do que os
canais oficiais. Tenho certeza de que você irá concordar, quando eu explicar de onde veio este pôster. Tudo o que peço é que você não me impeça de investigar o caso.
E, além disso, que você e seu chefe cooperem compartilhando informações sobre o que estava acontecendo na época em que Catriona foi sequestrada.
- Esse é um pedido bastante significativo. Sir Broderick não é um homem que aceite abrir mão facilmente de sua privacidade. Você há de convir que não tenho
autoridade para lhe garantir o que está pedindo.
Bel ergueu um ombro delicadamente.
- Então, podemos nos encontrar novamente quando você tiver uma resposta. - Ela deslizou o pôster pela mesa, abrindo a pasta para guardá-lo novamente.
Susan Charleson se levantou.
- Se você puder me dar alguns minutos, pode ser que eu consiga lhe dar uma resposta agora.
Bel soube, neste ponto, que havia ganhado. Susan Charleson queria demais aquilo. Ela convenceria o chefe a aceitar o acordo. Fazia anos que Bel não se sentia tão
excitada. Não significava simplesmente uma enxurrada de notícias e colunas jornalísticas, embora não houvesse um só jornal no
mundo que não fosse ficar interessado. Principalmente depois do caso Madeleine McCain. Com acesso ao misterioso Brodie Grant, mais a chance de descobrir o paradeiro
de seu neto, aquilo era um best-seller em potencial. O A Sangue Frio do novo milênio. Seria sua porta de entrada para o mundo do dinheiro fácil.
Bel sorriu. Talvez ela pudesse usar os ganhos na compra da casa ravina e assim completar o círculo. Era difícil imaginar algo mais perfeito.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Já fazia alguns anos desde a última vez que Karen tomara a estrada de mão única que conduzia a Newton of Wemyss. Mas era óbvio que o vilarejo tinha passado pelas
mesmas transformações que as vilas vizinhas, que margeavam a estrada principal. Aqueles que trabalhavam nas cidades próximas tinham atacado avidamente as quatro
vilas de Wemyss, enxergando possíveis casas rústicas no que um dia foram tristes casebres de mineiros. Cabanas de um quarto tinham sido demolidas para que se construíssem
amplas casas de campo, quintais transformados por estufas de plantas que enchiam de luz as cozinhas obscuras. Vilarejos que tinham fenecido e morrido após o desastre
na mina Michael, em 1967, e devido aos fechamentos que se seguiram à greve de 1984, haviam renascido como cidades-dormitório, cuja ideia de comunidade se restringia
às noites de jogos no pub local. Nas lojinhas da vila se podia comprar uma vela perfumada, mas não um litro de leite. A única forma de saber que já houvera uma comunidade
mineira ali era através de uma maquete do sistema de elevador do poço da mina, que se erguia sobre o ponto em que a ferrovia particular a vapor havia, no passado,
cruzado com a estrada principal, carregada com vagões abertos de carvão destinados ao fim da linha, em Thomton Junction. Agora, as casas caiadas dos mineiros pareciam
uma opção deliberada do arquiteto, como uma vila típica deveria parecer. O passado tinha sido superado por um presente de design.
Desde sua última visita, Newton of Wemyss havia melhorado muito. O modesto memorial de guerra ficava num triângulo de grama aparada no centro. Floreiros de madeira
o circulavam a intervalos perfeitos. Imaculadas casas de campo térreas bordejavam o parque da cidade, e a única exceção à baixa linha de construção era o imponente
volume do pub local, o Laird
o' Wemyss. Antigamente, havia sido propriedade coletiva da comunidade local sob o sistema Gothenburg*, mas os tempos difíceis nos anos oitenta o haviam obrigado
a fechar as portas. Agora, era um restaurante, e sua "cozinha de fusão escocesa" era capaz de atrair à cidade visitantes de lugares tão remotos quanto Dundee e Edimburgo,
e seus preços se elevavam bem acima do orçamento. Ela se perguntou quanto Mick Prentice teria de se deslocar para uma simples cerveja, se houvesse permanecido em
Newton.
Consultou as orientações que havia imprimido do site Mapquest e indicou uma estrada no ápice do triângulo a seu motorista, o detetive Jason "Novo em Folha" Murray.
- Você tem que descer esta rua aqui - ela disse. - Em direção ao mar. Onde ficava a mina.
Logo deixaram o centro da vila para trás. Arbustos desgrenhados bordejavam um exuberante campo de trigo verde à direita.
- Toda essa chuva, está fazendo tudo crescer de forma desenfreada - disse o Novo em Folha. Ele levara os 25 minutos do escritório até ali para produzir aquele
comentário.
Karen não estava interessada em conversar sobre o clima. O que havia para dizer? Tinha chovido o maldito verão inteiro, até agora. Só porque não estava chovendo
naquele exato instante, não significava que não choveria no fim do dia. Ela olhou à sua esquerda, onde os prédios da mina de carvão haviam estado. Tinha uma vaga
lembrança de haver escritórios, banheiros e uma cantina. Agora, tudo se reduzia ao alicerce de concreto, com o mato abrindo caminho entre as rachaduras irregulares
para reivindicar o terreno. Mais adiante, havia uma série de casebres intactos dos mineiros; oito casas deterioradas, no meio do nada devido à demolição dos prédios
que um dia deram razão à sua existência. Além delas havia um denso grupo de sicômoros e faias, um compacto quebra-vento entre as casas e a borda do penhasco, que
descia nove metros até a faixa costeira.
- Era ali que ficava a Lady Charlotte - ela disse.
- Hã? - o Novo em Folha pareceu espantado.
- A mina, Jason.
- Ah. Certo. Claro. Não é do meu tempo. - Ele espiou pelo para-brisa, fazendo-a se perguntar, com certa irritação, se ele precisaria de óculos. - Qual é a
casa, chefe?
* Aplicava-se ao controle do consumo e da comercialização de bebidas alcoólicas. (N.E.)
Ela apontou para a penúltima. O Novo em Folha desviou o carro dos buracos com tanto cuidado quanto se fosse seu e parou no final da rua de Jenny Prentice.
Apesar do telefonema de Karen marcando o encontro, Jenny não teve pressa em abrir a porta, o que deu a eles tempo suficiente para examinar as lajotas de concreto
rachadas e a deprimente entrada de cascalhos cheia de mato.
- Se esta casa fosse minha... - começou o Novo em Folha e, então, abandonou o pensamento, como se fosse algo grande demais para considerar.
A mulher que atendeu à porta tinha o ar de alguém que passava seus dias deitada para que a vida pudesse pisoteá-la mais facilmente. Seu cabelo escorrido e grisalho
estava preso atrás com descuido, mechas escapando dos dois lados. A pele era enrugada, com veias irregulares mapeando as bochechas. Usava um jaleco de náilon que
vinha até o meio das coxas, por cima de uma calça preta barata cujo tecido estava repleto de bolinhas. O jaleco era de um tom de lavanda impossível de se encontrar
na natureza. Os pais de Karen ainda viviam em uma rua habitada por ex-mineiros e suas famílias, na ultrapassada cidade de Methil, mas até o mais desequilibrado de
seus vizinhos teria tido um pouco mais de trabalho com a aparência, ao saber que receberia uma visita oficial. Karen nem tentou não julgar Jenny Prentice pela aparência.
- Bom dia, Sra. Prentice - ela disse energicamente. - Sou a inspetora Pirie. Conversamos pelo telefone. Este é o detetive Murray.
Jenny balançou a cabeça e fungou.
- É melhor vocês entrarem.
A sala era apertada, mas limpa. Os móveis, assim como o carpete, estavam fora de moda, mas nem um pouco surrados. Era uma sala para ocasiões especiais, pensou Karen,
em uma vida na qual não havia muitas.
Jenny acenou para que eles se sentassem no sofá e se postou na beirada da poltrona, no lado oposto. Estava claro que não lhes ofereceria nada para beber.
- Então, vocês estão aqui por causa da nossa Misha. Pensei que tivessem mais o que fazer, com todas essas coisas horríveis que sempre leio nos jornais.
- Um marido e um pai desaparecido é algo bastante horrível, a senhora não acha? - disse Karen.
Os lábios de Jenny se apertaram, como se ela sentisse a queimação de uma azia.
- Depende do homem, inspetora. O tipo de cara com quem a senhora costuma se deparar no seu trabalho... não creio que muitas esposas e filhos se incomodem,
quando eles são levados embora.
- A senhora ficaria surpresa. A maioria das famílias fica inconsolável. E pelo menos elas sabem onde o homem delas está. Não precisam viver com a incerteza.
- Não pensei que estivesse vivendo com a incerteza. Achava que sabia muito bem onde Mick estava, até que a nossa Misha começasse a fuçar por aí tentando encontrá-lo.
Karen assentiu.
- A senhora achava que ele estivesse em Nottingham.
- Isso. Achava que ele tivesse ido furar greve. Para ser sincera, não fiquei muito chateada de vê-lo pelas costas. Mas fiquei furiosa por ele ter colocado
aquele rótulo na gente. Preferiria que ele estivesse morto a que fosse um fura-greve, se é o que você quer saber. - Ela apontou para Karen.
- Você fala com sotaque da região. Deve saber como é ficar marcada desse jeito.
Karen assentiu.
- Pior então é saber agora que parece que ele não furou greve nenhuma.
Jenny desviou o olhar.
- Não sei de nada disso. Tudo que sei é que ele não foi para Nottingham naquela noite com aquele grupo de fura-greves.
- Bem, estamos aqui para desvendar o que realmente aconteceu. Meu colega fará algumas anotações, apenas para garantir que eu me lembre direitinho de tudo
o que a senhora me disser. - O Novo em Folha, apressadamente, pegou o caderno, folheando-o com nervosismo. Talvez Phil estivesse certo a respeito das deficiências
dele, pensou Karen. - Agora, preciso do nome completo dele e sua data de nascimento.
- Michael James Prentice. Nascido em 20 de janeiro de 1955.
- E vocês todos moravam aqui na época? A senhora, Michael e Misha?
- Isso. Morei aqui durante toda a minha vida de casada. Nunca tive escolha quanto a isso.
- A senhora tem uma foto de Mick que possa nos dar? Sei que já faz muito tempo, mas poderia ser útil.
- Vocês podem colocar no computador e envelhecer, não podem? - Jenny foi até um aparador e abriu uma gaveta.
- Às vezes, é possível. - Mas caro demais, a não ser que houvesse um motivo mais urgente que a leucemia do seu neto.
Jenny pegou um álbum de couro preto e o trouxe até a poltrona. Quando o abriu, a capa rangeu. Mesmo de cabeça para baixo e do outro lado da sala, Karen podia ver
que era um álbum de casamento. Jenny rapidamente passou pelas fotos formais de casamento até chegar a um envelope na parte de trás, repleto de fotografias avulsas.
Pegou um maço de fotos e as examinou. Parou em algumas e, então, finalmente optou por uma. Entregou a Karen uma fotografia retangular. Mostrava a cabeça e os ombros
de dois jovens, sorrindo para a câmera, o topo dos copos de cerveja aparecendo na imagem ao brindarem o fotógrafo.
- Este é o Mick, à esquerda - disse Jenny. - O bonitão.
Ela não estava mentindo. Mick Prentice tinha cabelo louro-escuro despenteado, cortado mais ou menos como o mullet que George Michael ostentara em sua fase com o
Wham. Mick tinha olhos azuis, cílios ridiculamente longos e um sorriso perigoso. Uma tatuagem de carvão, em forma de foice, atravessava sua sobrancelha direita,
impedindo-o de parecer bonito demais. Karen podia ver exatamente por que Jenny Prentice havia se apaixonado pelo marido.
- Obrigada - ela disse. - Quem é o outro cara?
Um tufo áspero de cabelo castanho, rosto comprido e ossudo, algumas cicatrizes de acne esburacando as bochechas fundas, olhos vivos e um sorriso triangular, como
o do Coringa dos quadrinhos do Batman. Não era bonito como seu companheiro, mas, mesmo assim, havia algo de sedutor nele.
- Seu melhor amigo. Andy Kerr.
O melhor amigo que se matou, segundo Misha.
- Misha me contou que seu marido desapareceu na sexta-feira, 14 de dezembro de 1984. É essa sua lembrança?
- Isso mesmo. Ele saiu de manhã com suas malditas tintas e disse que voltaria para o jantar. Foi a última vez que o vi.
- Tintas? Ele estava fazendo trabalhos extras?
Jenny emitiu um som de desdém.
- Até parece. Bem que precisávamos do dinheiro. Que nada, Mick pintava aquarelas. Pode acreditar? Dá para imaginar uma coisa mais inútil durante a greve de
1984 do que um mineiro pintando aquarelas?
- Ele não poderia vendê-las? - intrometeu-se o Novo em Folha, inclinando-se para a frente e parecendo perspicaz.
- Para quem? Todo mundo aqui estava duro e não havia dinheiro para que ele se arriscasse a tentar ir vender em outro lugar. - Jenny indicou a parede atrás
deles. - Ele teria tido sorte se conseguisse algumas libras por peça.
Karen se virou e olhou para as três pinturas pobremente emolduradas na parede. West Wemyss, Macduff Castle e a Lady's Rock. A seus olhos leigos, as pinturas pareciam
vívidas e expressivas. Ela as teria levado para casa, embora não soubesse quanto estaria disposta a pagar pelo privilégio, nos idos de 1984.
- Como foi que ele começou com isso? - Karen perguntou, virando-se para Jenny.
- Ele fez um curso no Serviço Social dos Mineiros, no ano em que Misha nasceu. A professora disse que ele tinha jeito para aquilo. Acho que ela dizia a mesma
coisa para qualquer um que fosse bonitinho.
- Mas ele deu continuidade?
- Permitia a ele sair de casa. Ficar longe das fraldas sujas e do barulho.
A amargura parecia emanar de Jenny Prentice em ondas. Era curioso, embora animador, que parecesse não ter contaminado a filha. Talvez aquilo tivesse alguma coisa
a ver com o padrasto de quem ela havia falado. Karen lembrou a si mesma de perguntar sobre o outro homem da vida de Jenny, que também parecia fazer-se notar pela
ausência.
- Ele pintou muito, durante a greve?
- Todo dia ele saía com sua sacola e o cavalete. Se estivesse chovendo, ele descia às cavernas com seus companheiros da Sociedade de Preservação.
- A senhora se refere às cavernas de Wemyss?
Karen conhecia as cavernas que retrocediam a partir da costa, afundando-se nos penhascos de pedra calcária entre East Wemyss e Buckhaven. Ela havia brincado ali
algumas vezes, quando criança, inconsciente de sua
importância histórica como um dos principais sítios pictos. As crianças locais as haviam tratado como áreas de diversão, uma das razões pelas quais se havia estabelecido
a Sociedade de Preservação. Agora, havia grades fechando as seções mais profundas e perigosas da rede de salões das cavernas, e historiadores e arqueólogos amadores
as haviam preservado como parque de diversões para adultos.
- Mick estava envolvido com as cavernas?
- Mick estava envolvido em tudo. Ele jogava futebol, pintava seus quadros, fuçava nas cavernas, estava metido até os dentes no sindicato. Tudo e qualquer
coisa era mais importante do que passar tempo com sua família.
- Jenny cruzou uma perna por cima da outra e os braços sobre o peito. - Ele dizia que isso o mantinha mentalmente são durante a greve. Acho que simplesmente
o mantinha longe de suas responsabilidades.
Karen sabia que aquele era um solo fértil para suas investigações, mas podia se dar ao luxo de deixar para mais tarde. A raiva reprimida de Jenny permanecia após
vinte e dois anos. Não iria a lugar algum. Havia algo muito mais imediato que a interessava.
- Então, durante a greve, onde Mick conseguia dinheiro para as tintas? Não conheço muito de arte, porém sei que papel e tintas adequados custam uma grana.
Ela não podia imaginar um mineiro em greve gastando com materiais artísticos quando não havia dinheiro para comida nem aquecimento.
- Não quero deixar ninguém em apuros - ela disse.
Sei.
- Foi há vinte e dois anos - Karen disse sem rodeios. - Não estou interessada em contrabando em pequena escala da época da greve dos mineiros.
- Um dos professores de arte da escola secundária vivia lá em Coaltown. Era um carinha bem esquisito. Uma perna mais curta que a outra e corcunda. Mick costumava
limpar o jardim para ele. O cara o pagava com tintas. - Ela deu uma fungada. - Perguntei se ele não podia pagar com dinheiro ou comida. Mas parece que o cara estava
dando todo o seu salário para a ex-mulher. As tintas ele podia surrupiar da escola. - Ela cruzou novamente os braços. - De qualquer jeito, ele já morreu.
Karen tentou afastar a sua aversão pela mulher, tão diferente da filha que a havia seduzido a entrar no caso.
- Então, como estavam as coisas entre vocês antes de Mick desaparecer?
- Eu culpo a greve. Tudo bem, nós tínhamos nossos altos e baixos. Mas foi a greve que colocou uma barreira entre nós. E não sou a única mulher nesta parte
do mundo que diz isso.
Karen sabia que aquilo era verdade. Naquela época, as terríveis privações da greve haviam deixado suas marcas em praticamente todo casal que ela conhecia. A violência
doméstica havia irrompido nos lugares mais improváveis; os índices de suicídio aumentaram; casamentos haviam se despedaçado diante da pobreza implacável. Ela não
compreendera isso na época, mas agora sim.
- Pode ser. Mas cada um tem uma história diferente. Eu gostaria de ouvir a sua.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
- Volto para o jantar - disse Mick Prentice, pendurando a grande bolsa de pano atravessada no corpo e pegando o pacote estreito com o cavalete dobrado.
- Jantar? Que jantar? Não tem nada nesta casa para comer. Você precisa sair para arranjar comida para sua família, não para pintar o maldito mar pela enésima
vez -Jenny gritou, tentando obrigá-lo a parar a caminho da porta.
Ele se virou, o rosto magro contorcido pela vergonha e pela dor.
- Você acha que não sei disso? Você acha que somos os únicos? Você acha que se eu tivesse alguma ideia de como melhorar as coisas, eu não estaria fazendo?
Ninguém tem porra nenhuma de comida. Ninguém tem porra nenhuma de dinheiro. - Sua voz entalou na garganta como um soluço. Ele fechou os olhos e respirou fundo. -
Ontem à noite, lá no Serviço Social, Sam Thomson disse que falaram de uma entrega de comida, vinda da Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas. Se você
for até lá, parece que vai chegar às duas horas. - Estava tão frio na cozinha que suas palavras formavam uma nuvem diante dos lábios.
- Mais esmolas. Não consigo me lembrar da última vez que, de fato, escolhi o que iria preparar para o jantar. - Jenny, repentinamente, se
sentou em uma das cadeiras da cozinha. Ergueu os olhos para ele. - Será que algum dia vamos superar isso?
- Só temos que aguentar mais um pouco. Já chegamos até aqui. Podemos vencer. - Ele parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a ela.
- Eles estão voltando a trabalhar, Mick. O tempo todo, estão voltando. Deu no noticiário na outra noite. Mais de um quarto das minas voltou a funcionar. Seja
o que for que digam Arthur Scargill e o resto da diretoria do sindicato, não há forma de ganharmos. É só uma questão de quanto aquela vaca da Thatcher nos fará perder.
Ele balançou a cabeça com veemência.
- Não diga isso, Jenny. Só há alguns focos lá no sul em que os mineiros cederam. Aqui no norte, estamos firmes como rochas. Em Yorkshire também. E em Gales
do Sul. E nós somos quem realmente importa.
Suas palavras soaram vazias e não havia convicção em seu rosto. Todos eles, pensou ela, estavam derrotados. Apenas não sabiam quando cair ao chão.
- Se você diz... - ela murmurou, virando-se.
Esperou até ouvir a porta se fechar atrás dele e, então, levantou-se lentamente e vestiu o casaco. Apanhou uma bolsa de plástico resistente e deixou o frio congelante
da cozinha para sair para o frio úmido da manhã. Essa era sua rotina, atualmente. Levantar-se e levar Misha à escola. No portão da escola, a pequena receberia uma
maçã ou uma laranja, um saco de batatas fritas e um biscoito de chocolate da associação Amigos de Lady Charlotte, um grupo desorganizado de estudantes e funcionários
públicos de Kirkcaldy, que garantiam que nenhuma criança começasse o dia de estômago vazio. Pelo menos os dias úteis.
E então, voltava para casa. Eles já haviam desistido de tomar leite junto com o chá, quando tinham chá. Em algumas manhãs, uma xícara de água quente era tudo o que
Mick e Jenny tinham para começar o dia. Aquilo não havia acontecido com frequência, mas uma só vez já era suficiente para lembrar como era fácil cair no abismo.
Depois de uma bebida quente, Jenny geralmente ia com a sacola até o bosque e tentava catar lenha suficiente para garantir algumas horas de calor à noite. Entre os
membros executivos do sindicato, sempre os chamando de
"camaradas", e a coleta de lenha, ela se sentia uma camponesa da Sibéria. Pelo menos eles tinham a sorte de viver perto de uma fonte de combustível. Ela sabia que
era muito mais difícil para outras pessoas. Tiveram a sorte de manter a lareira, graças ao benefício do carvão barato para os mineiros.
Ela cumpria aquela tarefa de forma mecânica, sem prestar muita atenção aos arredores, relembrando a última discussão entre ela e Mick. Às vezes, parecia que era
só a dificuldade que os mantinha unidos, só a necessidade de calor que os mantinha na mesma cama. A greve tinha aproximado alguns casais, mas muitos outros haviam
se separado como uma tora de madeira sob o fio do machado, após os primeiros meses, quando suas reservas de dinheiro se esgotaram.
Não havia sido tão ruim no começo. Desde a última onda de greves nos anos setenta, os mineiros tinham ganhado bastante dinheiro. Eles eram os reis do movimento sindicalista:
bem remunerados, organizados e confiantes. Afinal, haviam derrubado o governo de Ted Heath, na época. Eram intocáveis. E tinham dinheiro para provar.
Alguns haviam gastado até o último centavo: férias no exterior em que podiam expor ao sol a pele branca como leite e as tatuagens de carvão, carros exuberantes com
rádios caros, casas novas que pareciam ótimas quando eles se mudaram, mas que começaram a se deteriorar quase que imediatamente. Mas a maioria deles, cautelosa devido
à história passada, havia guardado um pouco do dinheiro. O bastante para cobrir o aluguel ou a hipoteca, o bastante para alimentar a família e pagar as contas de
combustíveis durante alguns meses. Foi a velocidade com que aquelas parcas economias desapareceram que os deixou aterrorizados. No início, o sindicato pagara salários
decentes aos homens que se amontoassem em carros, vans e microônibus para se unir a piquetes móveis, nas minas em funcionamento, usinas e plantas de coqueificação.
Mas a polícia tornara-se cada vez mais opressora para garantir que os grevistas itinerantes nunca chegassem ao destino, e não havia muito entusiasmo em pagar homens
para não atingir os objetivos. Além disso, nesses dias, os líderes sindicais estavam ocupados demais tentando esconder seus milhões dos confiscadores do governo
para se importar em desperdiçar dinheiro numa briga que deviam saber que estava fadada ao fracasso. Portanto, até mesmo aquela pequena fonte de renda havia se esgotado,
e a única coisa que as comunidades mineiras tinham para engolir era seu orgulho.
Jenny já havia engolido muito do seu durante os últimos nove meses. Havia começado logo de cara, quando ela ouvira que os mineiros escoceses iriam apoiar a região
carbonífera de Yorkshire na convocação de uma greve nacional, não da boca de Mick, mas de Arthur Scargill, presidente do Sindicato Nacional dos Mineradores. Não
pessoalmente, claro. Apenas sua conversa mole no noticiário da TV. Em vez de voltar direto da reunião no Serviço Social dos Mineiros para lhe contar, Mick havia
ficado com Andy e os outros colegas do sindicato, bebendo no bar como se dinheiro não fosse problema. Comemorando com a forma consagrada no grito de batalha do Rei
Arthur: Mineiros unidos jamais serão vencidos.
Desde o começo, as esposas sabiam bem que tudo aquilo era inútil. Uma greve de carvão deve ser feita no começo do inverno, quando a procura, por parte das usinas
elétricas, está no auge. Não na primavera, quando todos começam a desligar a calefação. E quando se parte para uma intensa ação industrial contra uma vaca como Margaret
Thatcher, deve-se proteger a retaguarda. Devem-se cumprir as leis trabalhistas. Devem-se cumprir suas próprias regras. Estipula-se uma eleição nacional. Não se deve
confiar numa interpretação dúbia de uma resolução aprovada três anos antes para um propósito distinto. Ah, sim, as esposas souberam que não daria em nada. Mas haviam
ficado de boca fechada e, pela primeira vez na vida, haviam formado sua própria organização para apoiar seus homens. Lealdade - era isso que contava nas vilas e
nas comunidades mineradoras.
E, portanto, Mick e Jenny ainda estavam juntos. Jenny às vezes se perguntava se a única razão pela qual Mick ainda estava com ela e Misha era porque não tinha aonde
ir. Pais falecidos, nenhum irmão ou irmã, não havia nenhum refúgio óbvio para ele. Ela havia lhe perguntado, uma vez, e ele ficara imóvel como uma estátua, por um
momento. Então, caçoara dela, negando que quisesse ir embora, lembrando-a de que Andy sempre o acolheria em seu sítio, se ele quisesse se afastar. Portanto, não
havia motivo para que ela imaginasse que aquela sexta-feira seria diferente de qualquer outra.
Quinta-feira; 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Então, aquela não foi a primeira vez que ele saiu com suas tintas para passar o dia fora? - perguntou Karen. O que quer que estivesse passando
pela cabeça de Jenny Prentice, claramente era muito mais que os fatos básicos que ela estava entregando.
- Quatro ou cinco vezes por semana.
- E a senhora? O que fazia no resto do dia?
- Ia até o bosque buscar gravetos, então voltava e assistia ao noticiário na TV. Foi um dia bastante especial, aquela sexta-feira. O Rei Arthur estava no
tribunal por obstrução da polícia, na Batalha de Orgreave. O Band Aid* chegou ao topo da parada de sucesso. Te digo uma coisa, eu poderia cuspir na cara deles. Todo
aquele esforço para arrecadar dinheiro para crianças a milhares de quilômetros, enquanto havia crianças famintas bem na porta deles. Onde estavam Bono e Bob Geldof,
quando nossos filhos despertaram na manhã de Natal e não havia nada em suas meias?
- Deve ter sido duro de encarar - Karen comentou.
- Foi como um tapa na cara. Não havia nenhum glamour em ajudar os mineiros, havia? - Um sorrisinho amargo iluminou seu rosto. - Mas poderia ter sido pior.
Poderíamos ter sido obrigados a aturar aquele merda hipócrita do Sting. Sem falar naquele maldito alaúde dele.
- Isso é verdade. - Karen estava se divertindo, dava para ver. Rir da própria desgraça era uma constante naquelas comunidades mineradoras. - E então, o que
a senhora fez depois do noticiário?
- Desci até o Serviço Social. Mick tinha falado alguma coisa sobre uma distribuição de comida. Entrei na fila e voltei para casa com um pacote de macarrão,
uma lata de tomates e duas cebolas. E um pacote de sopa desidratada. Lembro que fiquei bastante satisfeita. Peguei Misha na escola e achei que decorar a casa para
o Natal poderia nos animar um pouco, então, foi isso que fizemos.
- Quando a senhora percebeu que já era tarde para que Mick voltasse para casa?
Jenny fez uma pausa, a mão remexendo num botão do jaleco.
- Naquela época do ano, fica escuro cedo. Geralmente, ele voltaria não muito depois de mim e Misha. Mas como ficamos montando os enfeites de Natal, não percebi
o tempo passar.
Ela estava mentindo, Karen pensou. Mas por quê? E sobre o quê?
* Grupo criado por Bob Geldof, em 1984, que reuniu os mais conhecidos artistas do Reino Unido com a finalidade de arrecadar fundos para combater a fome na
Etiópia. A música-tema era "Do they know it's Christmas" (N.T.)
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Jenny tinha sido uma das primeiras na fila do Serviço Social dos Mineradores e havia voltado rapidamente para casa com sua lamentável comida, determinada a cozinhar
uma panela de sopa para que tivessem alguma coisa saborosa para o jantar. Ela contornou o prédio dos banheiros da mina, notando que todas as casas dos vizinhos estavam
no escuro. Naqueles dias, ninguém deixava uma luz acesa acolhedora quando saía. Cada centavo contava, quando chegavam as contas de combustível.
Quando ela chegou ao portão de sua casa, quase morreu de susto. Uma figura indefinida saiu da escuridão, parecendo agigantar-se na sua imaginação. Ela emitiu um
ruído que era em parte ofego, em parte gemido.
- Jenny, Jenny, acalme-se. Sou eu. Tom. Tom Campbell. Me desculpe, não quis te assustar. - A figura tomou forma, e ela reconheceu o homenzarrão, próximo à
porta da frente.
- Cristo, Tom, você quase me matou de susto - ela reclamou, passando por ele e abrindo a porta. Ciente do frio assombroso na casa, ela seguiu até a cozinha.
Sem hesitação, encheu a panela de água e a colocou no fogão, o anel de gás emitia um pouco de calor. Então, ela se virou para encará-lo na penumbra da luz da tarde.
- Como você está?
Tom Campbell ergueu os grandes ombros e deu um sorriso desanimado.
- Mais ou menos - ele disse. - É irônico. A única vez na vida em que realmente preciso dos meus amigos e acontece esta greve.
- Pelo menos você tem a mim e a Mick - Jenny disse, indicando-lhe uma cadeira.
- Bem, tenho a você, de qualquer jeito. Não acho que esteja na lista de cartões de Natal do Mick, supondo que alguém envie cartões este ano. Não depois de
outubro. Ele não falou mais comigo, desde então.
- Isso passa - ela disse, sem um pingo de convicção.
Mick sempre tivera certas reservas no que se referia à extensão da amizade escolar entre Jenny e a esposa de Tom, Moira. As mulheres eram amigas desde sempre, e
Moira fora dama de honra no casamento de Jenny e Mick. Quando chegou a vez de retribuir o favor, Jenny estava grávida de Misha. Mick havia ressaltado que seu aumento
de peso era a desculpa perfeita para recusar o convite de Moira, já que o vestido de dama de honra
tinha de ser comprado com antecedência. Não era uma sugestão, e sim uma ordem. Isso porque embora Tom Campbell fosse, sem dúvida alguma, um homem decente, bem-apessoado
e honesto, ele não era mineiro. Verdade, ele trabalhava na Lady Charlotte. Descia até a mina no subsolo, naquela gaiola de revirar o estômago. Às vezes, até mesmo
sujava as mãos. Mas não era mineiro. Era um auxiliar de minas. Membro de um sindicato diferente. Um homem da administração, que estava ali para verificar o cumprimento
das regras de saúde e segurança, e que os rapazes fizessem o que deviam fazer. Os mineiros tinham um termo para se referir à parte mais fácil de qualquer tarefa:
"a parte do auxiliar". Parecia bastante inocente, mas num ambiente em que cada membro do grupo sabia que sua vida dependia dos colegas, aquilo expressava um desdém
enorme. E, portanto, Mick Prentice sempre tivera certa reserva no que se referia à sua relação com Tom Campbell.
Ele havia se ofendido com os convites para jantar em sua casa afastada em West Wemyss. Desconfiava dos convites de Tom para que fosse jogar futebol com ele. Tinha
até mesmo se ressentido das horas que Jenny passara ao lado da cama de Moira, durante sua morte pouco digna, porém rápida, de câncer, alguns anos atrás. E, quando
o sindicato de Tom havia hesitado e ficado indeciso com relação a se unir à greve, alguns meses antes, Mick se enfurecera como uma criança mimada, quando eles finalmente
se colocaram do lado dos patrões.
Jenny desconfiava que parte do motivo de sua raiva era a bondade que Tom havia lhes demonstrado desde que a greve começara a afetá-los. Ele criara o hábito de passar
por sua casa com presentinhos: uma sacola de maçãs, um saco de batatas, um brinquedo de pelúcia para Misha. Sempre vinham acompanhados de desculpas plausíveis: a
árvore do vizinho estava carregada, vieram mais batatas na sua porção do que ele iria precisar, um prêmio ganho na rifa do clube de boliche. Mick sempre reclamava
depois.
- Idiota condescendente - ele dizia.
- Ele está tentando ajudar sem nos envergonhar - Jenny respondia.
Tampouco era ruim o fato de que a presença de Tom sempre a fazia se lembrar de tempos mais felizes. De alguma forma, quando ele estava ali, ela tinha novamente a
sensação de novas possibilidades. Ela via a si mesma refletida em seus olhos, como se fosse uma mulher jovem, uma mulher que tinha ambições de uma vida diferente.
Então, embora soubesse que irritaria Mick, Jenny ficava feliz quando Tom se sentava em sua cozinha e conversava com ela.
Ele tirou um pacote meio mole, mas pesado, do bolso.
- Você aproveitaria uns gramas extras de toucinho? - ele disse, a sobrancelha se franzindo de ansiedade. - Minha cunhada trouxe da fazenda de sua família
na Irlanda. Mas é defumado, sabe, e eu não consigo comer toucinho defumado. Tenho aversão. Então pensei que, melhor do que jogar fora... - Ele o entregou a ela.
Jenny pegou o pacote sem hesitar um só segundo. Suspirou desanimada.
- Olhe só para mim. Meu coração disparou por causa de um pedaço de toucinho. Foi isso que Margaret Thatcher e Arthur Scargill conseguiram fazer com a gente.
- Ela balançou a cabeça. - Obrigada, Tom. Você é um bom homem.
Ele desviou o olhar, incerto do que falar ou fazer. Seus olhos se fixaram no relógio.
- Você não tem que ir buscar a menina? Me desculpe, nem me liguei na hora, quando estava te esperando. Só queria... - ele se levantou, o rosto enrubescido.
- Volto depois.
Ela ouviu suas botas tropeçarem no corredor e, então, o ruído do trinco. Jogou o toucinho sobre a pia e desligou o fogo da panela de água. Agora, seria uma sopa
diferente.
Moira sempre tinha sido a sortuda.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Os olhos de Jenny voltaram da distância e se fixaram em Karen.
- Imagino que fossem umas sete horas, quando percebi que Mick não havia voltado para casa. Eu estava furiosa, porque tinha conseguido um jantar razoável para
pôr na mesa. Então, coloquei a pequena na cama, pedi à vizinha para cuidar dela para que eu pudesse correr até o Serviço e ver se Mick estava lá. - Ela balançou
a cabeça, ainda surpresa após tantos anos.
- E, é claro, ele não estava.
- Alguém o havia visto?
- Aparentemente, não.
- A senhora deve ter ficado preocupada - disse Karen.
Jenny ergueu um ombro.
- Não muito. Como eu disse, nós não tínhamos nos despedido no melhor dos ânimos. Simplesmente pensei que ele tivesse ficado irritado e ido para a casa do
Andy.
- O cara da foto?
- Isso. Andy Kerr. Era funcionário do sindicato. Mas estava de licença médica do trabalho. Estresse, disseram. E estavam certos. Ele se matou um mês depois.
Sempre achei que o fato de Mick decidir furar a greve foi a última gota para Andy. Ele idolatrava Mick. Aquilo teria acabado com ele.
- Então foi lá que a senhora deduziu que ele estivesse? - Karen a provocou.
- Isso mesmo. Andy tinha um sítio no bosque, no meio do nada. Ele dizia que gostava da paz e do silêncio. Mick me levou lá uma vez. Me deu arrepios. Era como
a casa da bruxa de um dos contos de fada de Misha; não se via a casa até que, de repente, você dava de cara com ela, bem na sua frente. Eu é que não moraria lá.
- A senhora não podia ter telefonado para confirmar? - intrometeu-se o Novo em Folha. As duas mulheres olharam para ele com uma mistura de diversão e indulgência.
- Nosso telefone tinha sido cortado meses antes, filho - disse Jenny, trocando um olhar com Karen. - E isso foi muito antes dos celulares.
Naquele ponto, Karen já estava seca por uma xícara de chá, mas nem morta iria se colocar em dívida com Jenny Prentice. Ela pigarreou e prosseguiu:
- Quando foi que a senhora começou a se preocupar?
- Quando a menina me acordou de manhã e ele ainda não estava em casa. Ele nunca tinha feito isso. Não havia sido uma briga de verdade, na sexta-feira. Foram
só umas palavras ásperas. Já tínhamos tido piores, acredite. Quando vi que ele não estava ali de manhã, comecei realmente a pensar que havia alguma coisa terrivelmente
errada.
- O que a senhora fez?
- Dei comida a Misha, troquei sua roupa e a levei até a casa de Lauren, uma amiguinha dela. Daí, atravessei o bosque até a casa de Andy. Mas não havia ninguém
lá. Então, me lembrei que Mick dissera que talvez Andy subisse até as Highlands para passar uns dias, já que estava de licença. Afastar-se de tudo. Pôr a cabeça
no lugar. Então, é lógico que ele não estava lá. Nesse ponto eu já estava bastante assustada. E se houvesse acontecido um acidente? E se ele tivesse ficado doente?
A lembrança ainda tinha o poder de perturbar Jenny. Seus dedos cutucavam sem parar a barra do jaleco.
- Subi até o Serviço Social para ver os representantes do sindicato. Pensei que se alguém soubesse onde Mick estava, seriam eles. Ou que, pelo menos, eles
saberiam onde começar a procurar. - Ela olhou fixamente para o chão, as mãos entrelaçadas no colo. - Foi então que as coisas começaram a degringolar na minha vida.
Sábado, 15 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Mesmo pela manhã, sem a presença de pessoas para elevar a temperatura, o Instituto do Serviço Social dos Mineradores estava mais quente do que sua casa, notou Jenny
ao entrar. Não muito, mas o suficiente para ser perceptível. Não era algo que geralmente chamava sua atenção, mas hoje ela tentava pensar em qualquer coisa que não
fosse a ausência do marido. Parou por um momento, hesitante, no hall de entrada, tentando decidir aonde ir. Os escritórios do Sindicato Nacional dos Mineradores
ficavam no andar de cima, ela se lembrava vagamente; caminhou, portanto, até a escadaria extravagantemente esculpida. Chegando ao primeiro andar, tudo ficou mais
fácil. Era só seguir o burburinho das vozes e a fumaça de cigarro.
Mais adiante no corredor, havia uma porta entreaberta, de onde vinham o som e o cheiro. Jenny bateu nervosamente, e a sala ficou em silêncio. Por fim, uma voz cautelosa
disse:
- Entre.
Ela esgueirou-se pela porta como se fosse uma pedinte. A sala era tomada por uma mesa em forma de U coberta por um oleado axadrezado. Alguns homens estavam sentados
em torno dela, demonstrando níveis variados de desânimo. Jenny vacilou quando percebeu que o homem na ponta mais distante era alguém que ela reconhecia, mas que
não conhecia pessoalmente. Mick McGahey, ex-comunista, líder dos mineiros escoceses. O único homem, dizia-se, que podia enfrentar o Rei Arthur e fazer-se ouvir.
O homem que fora mantido deliberadamente longe do primeiro posto por seu antecessor. Se Jenny ganhasse uma libra cada vez que ouvia alguém dizer que tudo teria sido
muito diferente se McGahey estivesse no comando, sua família teria sido a mais bem alimentada e mais bem-vestida em Newton of Wemyss.
- Me desculpem - ela gaguejou. - Eu só queria dar uma palavrinha... - Seus olhos passearam pela sala, em dúvida sobre em qual dos homens que conhecia
seria melhor fixar a atenção.
- Tudo bem, Jenny - disse Ben Reekie. - Era só uma reuniãozinha. Já terminamos, não é, rapazes? - Houve um murmúrio descontente de assentimento. Mas Reekie,
o secretário local, era habilidoso em avaliar o andamento de uma reunião e fazer as coisas avançarem. - Então, Jenny, como podemos te ajudar?
Ela gostaria de ficar a sós com ele, mas não tinha coragem de pedir. As mulheres tinham aprendido muito no processo de apoiar seus homens, mas, cara a cara, sua
assertividade ainda tendia a se esvair. Mas tudo ficaria bem, ela disse a si mesma. Vivera nesse universo encasulado durante toda a vida adulta, um mundo que se
centrava na mina e na Associação, no qual não havia segredos e onde o sindicato era sua mãe e seu pai.
- Estou preocupada com Mick - ela disse. Não adiantava fazer rodeios. - Ele saiu ontem de manhã e não voltou. Eu estava pensando se, talvez...?
Reekie apoiou a testa nos dedos, esfregando-a com tanta força que deixou marcas alternadas em vermelho e branco no centro.
- Deus do céu - ele sibilou entre os dentes cerrados.
- E você espera que acreditemos que você não sabe onde ele está?
A acusação veio de Ezra Macafferty, o último sobrevivente na vila das greves dos mineiros e das greves patronais da década de vinte.
- É claro que não sei onde ele está. - A voz soou melancólica, mas um medo sombrio começara a espalhar seu gelo pelo peito dela. - Pensei que talvez ele tivesse
passado por aqui. Achei que alguém pudesse saber.
- Isso eleva o número a seis - disse McGahey. Ela reconheceu o tom grave e áspero de sua voz das entrevistas na TV e comícios ao ar livre. Era estranho estar
na mesma sala que ele.
- Não entendo - ela disse. - Seis o quê? O que está acontecendo? - Todos os olhos estavam voltados para ela, perfurando-a. Podia sentir seu desprezo, mas
não entendia o motivo. - Aconteceu alguma coisa com Mick? Um acidente?
- Aconteceu uma coisa, sim - disse McGahey. - Parece que o seu marido furou a greve e fugiu para Nottingham.
Suas palavras pareceram sugar todo o ar dos pulmões dela. Jenny parou de respirar, deixando que se formasse uma bolha ao seu redor para protegê-la. Não podia ser
verdade. Não o Mick. Muda, ela sacudiu a cabeça com força. As palavras começaram a penetrar a barreira, mas ainda não faziam sentido.
- Sabíamos de cinco... pensamos que haveria mais... sempre um traidor no grupo... decepcionados... sempre um do sindicato.
- Não - ela disse. - Ele não faria isso.
- De que outra forma você explica o fato de ele não estar aqui? - disse Reekie. - Foi você que veio até nós procurando por ele. Sabemos que uma van cheia
deles foi embora ontem à noite. E ao menos um deles é amigo do seu Mick. Onde mais ele poderia estar?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu não teria me sentido pior se eles tivessem me chamado de prostituta - disse Jenny. - Imagino que, aos olhos deles, era exatamente isso que eu era. Meu
marido fugindo da greve, não demoraria nada até que eu começasse a viver de forma imoral.
- A senhora nunca duvidou de que eles estivessem certos?
Jenny afastou o cabelo do rosto, removendo momentaneamente um pouco de sua idade e docilidade.
- Na verdade, não. Mick era amigo de Iain Maclean, um dos que foram para Nottingham. Isso eu não discutia. E não se esqueça de como era, naquela épóca. Os
homens controlavam o jogo, e o sindicato controlava os homens. Quando as mulheres quiseram participar da greve, a primeira batalha que tivemos que travar foi contra
o sindicato. Tivemos que implorar que nos deixassem entrar. Eles nos queriam onde sempre havíamos estado: no cômodo dos fundos, cuidando do fogão. Não ao lado da
fogueira, nas linhas de piquete. Mas embora tivéssemos conseguido formar a Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas, ainda conhecíamos bem nosso lugar.
Teríamos que ser muito fortes, ou muito burras, para tentar ir contra a corrente por aqui.
Não era a primeira vez que Karen ouvia uma versão daquela verdade. Ela se perguntou se teria feito diferente, na mesma situação. Era bom pensar
que teria ficado ao lado de seu homem com um pouco mais de firmeza. Mas, diante da hostilidade que Jenny Prentice devia ter enfrentado por parte da comunidade, Karen
achava que também teria cedido.
- Entendo - ela disse. - Mas agora que parece que, afinal, Mick pode não ter fugido da greve, a senhora tem alguma ideia do que pode ter acontecido com ele?
Jenny balançou a cabeça.
- Nenhuma? Ainda que eu não pudesse acreditar, a fuga fazia algum sentido. Então, nunca considerei outra possibilidade.
- A senhora acha que ele pode ter simplesmente se enchido? Simplesmente caiu fora?
Ela franziu a testa.
- Olha, isso não seria do feitio de Mick. Ir embora sem falar nada? Acho que não. Ele faria questão que eu soubesse que tinha sido por minha culpa. - Ela
soltou uma risada amarga.
- A senhora não acha que ele pode ter ido embora sem dizer nada como uma forma de fazer com que a senhora sofresse ainda mais?
Jenny levantou a cabeça.
- Isso é asqueroso demais - ela protestou. - Você o faz parecer um sádico. Ele não era um homem cruel, inspetora. Apenas insensível e egoísta, como todos
eles.
Karen fez uma pausa. Aquela era sempre a parte mais difícil, quando se entrevistava os parentes de um desaparecido.
- Ele havia discutido com alguém? Tinha algum inimigo, Sra. Prentice?
Jenny a olhou como se Karen tivesse, de repente, passado a falar grego.
- Inimigo? Tipo, alguém que quisesse matá-lo?
- Talvez não matá-lo. Apenas brigar com ele.
Dessa vez, a risada de Jenny tinha um calor genuíno.
- Meu Jesus, isso é engraçado, vindo de você. - Ela balançou a cabeça. - As únicas brigas físicas em que Mick se meteu, durante todos os anos em que estivemos
casados, foi com o seu pessoal. Nas linhas de piquete. Nas manifestações. Se ele tinha inimigos? Claro, os de uniforme azul. Mas aqui não é a América Latina e não
me lembro de ouvir falar de desaparecidos nas greves dos mineiros. Portanto, a resposta para sua pergunta é não, ele não tinha o tipo de inimigo com quem teria uma
briga séria.
Karen observou o carpete por um longo tempo. A violência exagerada da polícia, contra os grevistas, havia envenenado os relacionamentos nas comunidades por mais
de uma geração. Não importava que os piores transgressores viessem de forças externas, trazidos ali para aumentar os números, e a quem se pagavam quantias obscenas
de dinheiro para oprimir seus concidadãos de formas que a maioria das pessoas preferia nem saber. O resultado de sua ignorância e arrogância havia afetado a todos
os policiais, em todas as corporações das cidades mineradoras. Ainda afetava, pensou Karen. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
- Sinto muito - ela disse. - A forma como trataram os mineiros foi imperdoável. Prefiro pensar que não agiríamos dessa maneira hoje em dia, mas é provável
que esteja enganada. A senhora tem certeza de que não havia ninguém com quem ele houvesse se desentendido?
Jenny nem sequer parou para pensar.
- Não que eu soubesse. Ele não era encrenqueiro. Tinha seus princípios, mas não os usava para provocar brigas. Defendia aquilo em que acreditava, mas era
só de falar, não de partir para a briga.
- E se falar não adiantasse? Ele retrocederia?
- Não tenho certeza se entendi a pergunta.
Karen falou vagarosamente, tateando a ideia.
- Estou pensando se ele não topou com esse tal de Iain Maclean naquele dia e tentou convencê-lo a não ir para Nottingham. E se Iain se recusou a mudar de
ideia, e talvez tivesse seus amigos para apoiá-lo... Será que Mick entraria numa briga com eles?
Jenny balançou firmemente a cabeça.
- De jeito nenhum. Ele diria o que pensava e, se não adiantasse, se afastaria.
Karen se sentiu frustrada. Mesmo depois de tanto tempo, os casos arquivados geralmente ofereciam um ou dois fios soltos por onde começar. Mas, até agora, parecia
não haver nada ali. Uma última pergunta e, depois, ela iria embora.
- A senhora tem alguma ideia de aonde Mick pode ter ido para pintar naquele dia?
- Ele não disse. A única coisa que posso dizer é que, no inverno, ele geralmente seguia pelo litoral até East Wemyss. Assim, se começasse a
chover, ele poderia descer até as cavernas e se abrigar lá. Os caras do grupo de preservação tinham uma cabaninha no fundo de uma das cavernas, com um fogareiro
onde podiam fazer chá. Ele tinha as chaves, podia ficar à vontade - ela acrescentou, a acidez de volta à sua voz. - Mas não tenho ideia se ele esteve ali nesse dia
ou não. Ele poderia estar em qualquer lugar entre Dysart e Buckhaven. - Ela olhou para o relógio. - Isso é tudo que sei.
Karen se levantou.
- Agradeço muito por seu tempo, Sra. Prentice. Continuaremos fazendo nossas investigações e a manteremos informada.
Novo em Folha se levantou desajeitadamente e seguiu Karen e Jenny até a porta da frente.
- Não estou preocupada por mim, entende? - Jenny disse, quando eles estavam a meio caminho da rua. - Mas veja se você consegue encontrá-lo pelo bem da criança.
Aquele era, pensou Karen, o primeiro sinal de emoção que ela demonstrava durante toda a manhã.
- Pegue seu caderno - ela disse a Novo em Folha, quando entraram no carro. - Próximos passos. Falar com a vizinha. Ver se ela se lembra de alguma coisa sobre
o dia em que Mick Prentice desapareceu. Falar com alguém do grupo da caverna, ver quem ainda está lá desde 1984. Obter outra visão de como realmente era Mick Prentice.
Procurar nos arquivos alguma coisa a respeito desse Andy Kerr, funcionário do Sindicato dos Mineiros, que supostamente cometeu suicídio na época em que Mick desapareceu.
Como é essa história? E precisamos rastrear esses cinco fura-greves e pedir que a polícia fale com eles em Nottingham. - Ela abriu a porta do passageiro novamente,
enquanto Novo em Folha terminava de escrever. - E já que estamos aqui, vamos dar uma olhada nessa vizinha.
Ela mal se afastara dois passos do carro quando seu telefone tocou.
- Phil - ela disse.
Nenhuma piadinha, ele simplesmente foi direto aos fatos:
- Você precisa voltar aqui agora mesmo.
- Por quê?
- O Biscoito está furioso. Quer saber por que diabos você não está na sua mesa.
Simon Lees, subchefe de Polícia (Criminal), tinha um temperamento muito diferente do de Karen. Ela estava convencida de que, antes de dormir, ele lia o Código de
Polícia, Ordem Pública e Justiça Criminal de 2006 (da Escócia). Sabia que ele era casado e tinha dois filhos adolescentes, mas não fazia ideia de como aquilo podia
ter acontecido com um homem tão obsessivamente organizado. Era Lei de Murphy que, na primeira manhã, em meses, que ela estava fazendo algo fora das normas, o Biscoito
viesse procurá-la. Ele parecia acreditar que tinha o direito divino de saber o paradeiro de qualquer oficial sob seu comando, quer estivesse ou não de serviço. Karen
se perguntou o quão próximo de um derrame ele teria chegado ao descobrir que ela não estava ocupando a mesa onde esperava encontrá-la. Pelo jeito, não próximo o
bastante.
- O que você disse a ele?
- Disse que você estava numa reunião com a equipe de armazenamento de provas, discutindo uma forma de agilizar o procedimento de catalogação deles - disse
Phil. - Ele gostou da ideia, mas não do fato de que isto não estivesse registrado em sua lista eletrônica de compromissos.
- Estou a caminho - Karen disse, confundindo Novo em Folha ao entrar novamente no carro. - Ele disse por que estava me procurando?
- Para mim? Um mero sargento? Dá um tempo, Karen. Ele apenas disse que era "muito importante". Alguém provavelmente roubou os biscoitinhos digestivos dele.
Karen gesticulou impacientemente para Novo em Folha.
- Para casa, James, e não poupe os cavalos. - Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido, mas deu partida no carro e saiu dirigindo. - Estou indo - ela
disse. - Ponha a água para ferver.
Glenrothes
A dupla hélice de frustração e irritação se retorceu nas entranhas de Simon Lees. Ele se mexeu na cadeira e rearrumou as fotos da família sobre a mesa. Qual era
o problema dessa gente? Quando fora procurar a inspetora Pirie e não a encontrara onde deveria estar, o sargento Parhatka agira como se aquilo estivesse perfeitamente
bem. Havia algo fundamentalmente indiferente nos detetives de Fife. Ele havia percebido aquilo dias após ter chegado de Glasgow. Surpreendia-se que eles houvessem
conseguido colocar
alguém atrás das grades, antes que ele chegasse com seus métodos analíticos, suas investigações eficientes, análises sofisticadas de vínculos criminais e o inevitável
aumento nos níveis de detecção.
O que o irritava ainda mais era o fato de que eles pareciam não ter qualquer gratidão pelos métodos modernos que ele trouxera para o trabalho. Ele até mesmo suspeitava
que riam dele. Seu apelido, por exemplo. Todo mundo no prédio parecia ter um apelido, a maioria deles podendo ser interpretados como levemente carinhosos. Mas não
ele. Logo descobrira que fora apelidado de Biscoito, porque compartilhava o sobrenome com uma fábrica de doces; seu produto mais famoso ficara conhecido devido a
um antiquíssimo jingle de propaganda, cujo racismo brincalhão causaria tumulto nas ruas se fosse veiculado na Escócia do século XXI. Ele culpava Karen Pirie; não
era coincidência que o apelido houvesse surgido após seu primeiro desentendimento com ela. Algo que se tornaria comum na maioria de seus encontros. Ele não tinha
certeza de como acontecia, mas ela sempre parecia confundi-lo.
Lees ainda se ressentia com aquela primeira lembrança. Mal havia chegado, já começara a dar as ordens, promovendo uma série de treinamentos. Não os de praxe, numa
postura machista, nem a tediosa revisão das regras de comportamento, mas abordagens originais de temas referentes ao policiamento moderno. A primeira leva de oficiais
tinha se reunido na sala de treinamento e Lees dera início a seu prólogo, explicando como eles passariam o dia desenvolvendo estratégias para o policiamento em uma
sociedade multicultural. Seus espectadores pareceram rebeldes, e Karen Pirie liderara o ataque:
- Senhor, posso fazer uma observação?
- É claro, inspetora Pirie. - Seu sorriso havia sido cordial, ocultando a irritação de ser interrompido antes de sequer ter revelado o programa.
- Bem, senhor, Fife não é realmente o que se poderia chamar de multicultural. Não temos muitas pessoas aqui que não sejam britânicas nativas. À exceção dos
italianos e poloneses, quero dizer, e eles já estão aqui há tanto tempo que nos esquecemos que não são daqui.
- Então o racismo parece estar bem para você; é isso, inspetora Pirie?
Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas ele fora levado àquilo pela atitude aparentemente retrógrada expressada por ela. Sem falar daquela
cara de bolacha impassível que ostentava sempre que dizia alguma coisa que pudesse ser interpretada como provocadora.
- Em absoluto, senhor. - Ela sorrira, de forma quase piedosa. - O que eu queria dizer é que, já que temos um orçamento limitado para treinamentos, pode fazer
mais sentido lidar primeiro com o tipo de situação que é mais provável que encontremos no dia a dia.
- Tais como?... Com quanta força devemos bater nas pessoas, quando as prendemos?
- Eu estava pensando em estratégias para lidar com a violência doméstica. É um tipo de chamada frequente e que pode facilmente se agravar. Gente demais ainda
morre todos os anos porque uma briga doméstica escapa ao controle. E nem sempre sabemos lidar com elas, sem piorar a situação. Eu diria que essa seria minha prioridade
número um no momento, senhor.
E com aquele discurso, ela havia tirado o chão dele. Não tinha volta. Poderia seguir adiante com o treinamento planejado, sabendo que todos na sala estariam rindo
dele. Ou poderia adiá-lo, organizando algo relacionado à sugestão da inspetora Pirie, e então perderia completamente a moral. No fim, ele disse a eles para passarem
o resto do dia pesquisando sobre o assunto da violência doméstica, preparando-se para outro dia de treinamento.
Dois dias depois, ouviu sem querer alguém se referindo a ele como o Biscoito. Ah, sim, ele sabia a quem culpar. Mas assim como em tudo que ela fazia para sabotá-lo,
não havia nada que ele pudesse atribuir diretamente a ela. Ela simplesmente ficaria ali, tão desgrenhada, impassível e inescrutável quanto uma vaca escocesa das
Highlands, nunca dizendo ou fazendo nada de que ele pudesse se queixar. E ela estabeleceu o padrão para todos os demais, mesmo estando isolada nos cafundós, na Equipe
de Revisão de Casos Arquivados, onde não deveria ser capaz de exercer nenhuma espécie de influência. Mas, de alguma forma, graças a Pirie, lidar com os detetives
das três divisões era como pastorear gatos.
Ele tentava evitá-la, tentava desviar-se dela através de suas diretrizes operacionais. Até então pensava que estava funcionando. Mas aí o telefone tinha tocado.
- Subchefe de Polícia Lees - anunciara ao atender. - Em que posso ajudar?
- Bom dia, subchefe Lees. Meu nome é Susan Charleson. Sou assistente pessoal de Sir Broderick Maclennan Grant. Meu chefe gostaria de falar com o senhor. Agora
seria um bom momento?
Lees se endireitou na cadeira, alinhando os ombros. Broderick Maclennan Grant era conhecido por três coisas: sua fortuna, seu isolamento misantrópico e pelo sequestro
e assassinato da filha Catriona, há vinte e poucos anos. Por mais improvável que pudesse parecer, um telefonema de sua assistente para o subchefe criminal só poderia
significar que havia ocorrido algum tipo de mudança no caso.
- Sim, claro, o momento perfeito, não poderia ser melhor.
Ele escavou a memória em busca de detalhes, ouvindo apenas em parte à mulher no telefone. Filha e neto sequestrados, tinha sido isso. Filha morta durante uma entrega
de resgate que deu errado, neto nunca mais visto. E, agora, ele parecia ter a chance de, finalmente, solucionar o caso. Concentrou-se novamente na voz da mulher.
- Se o senhor puder fazer a gentileza de aguardar, colocarei Sir Broderick na linha agora mesmo - ela disse.
O som oco de uma interrupção e, então, uma voz soturna e pesada disse:
- Aqui fala Broderick Maclennan Grant. Você é o subchefe de Polícia?
- Exatamente, Sir Broderick. Subchefe de Polícia Lees. Simon Lees.
- Você está ciente do assassinato não solucionado da minha filha, Catriona? E do sequestro do meu neto, Adam?
- É claro, naturalmente, não existe um só policial na região que não...
- Achamos que surgiu uma prova nova. Eu ficaria agradecido se você tomasse todas as providências para que a inspetora Pirie venha até a minha casa amanhã
cedo, para discutir o assunto comigo.
Lees literalmente afastou o telefone do rosto e ficou olhando para o aparelho. Seria algum trote sofisticado?
- Inspetora Pirie? Eu não... eu poderia ir - ele balbuciou.
- Você é um funcionário administrativo. Não preciso de um funcionário administrativo. - O tom de Brodie Grant era desdenhoso. - A inspetora Pirie é detetive.
Gostei da forma como ela lidou com o caso Lawson.
- Mas... mas, para tratar disso, deveria ser um oficial mais graduado - protestou Lees.
- Não é a inspetora Pirie quem está no comando da sua Equipe de Revisão de Casos Arquivados? - Grant começava a parecer impaciente. - Isso é graduação suficiente
para mim. Não me importo com postos, me importo com eficiência. É por isso que quero a inspetora Pirie na minha casa amanhã às dez. Isso deve lhe dar tempo suficiente
para se familiarizar com as informações básicas do caso. Tenha um bom dia, Sr. Lees. - A linha emudeceu e Simon Lees ficou sozinho, com seu mau humor e a pressão
arterial que se elevava.
Por mais que aquilo o angustiasse, ele não tinha escolha senão encontrar a inspetora Pirie e lhe dar as ordens. Pelo menos, poderia fazer com que aquilo parecesse
ter sido ideia dele. Embora não houvesse nenhum compromisso marcado no sistema de agendamento eletrônico que ele instituíra para seus detetives mais antigos, ela
não estava em sua mesa. Tudo bem que os policiais fizessem coisas por iniciativa própria, mas tinham de aprender a deixar um registro de seus movimentos.
Ele estava prestes a voltar para a sala da Revisão de Casos Arquivados para descobrir por que a inspetora Pirie ainda não havia aparecido quando uma batida incisiva
na porta foi seguida, sem qualquer intervalo, pela entrada dela.
- Eu disse que poderia entrar? - perguntou Lees, olhando-a com raiva do outro lado da sala.
- Pensei que fosse urgente, senhor. - Ela continuou andando e se sentou na cadeira do outro lado da mesa dele. - O sargento Parhatka me deu a impressão de
que, qualquer que fosse o motivo pelo qual o senhor estivesse me procurando, não podia esperar.
Que referência para o serviço policial, ele pensou, irritado. Cabelo desgrenhado caindo sobre os olhos, pouquíssima maquiagem e dentes que precisavam seriamente
de um aparelho ortodôntico. Ele supunha que ela fosse lésbica, dada sua atração por terninhos de calça comprida, o que era realmente um erro, devido à largura de
seus quadris. Não que ele tivesse qualquer coisa contra lésbicas, lembrou-lhe seu censor interno. Apenas achava que dava às pessoas a impressão errada sobre o serviço
policial de hoje.
- Sir Broderick Maclennan Grant me telefonou hoje de manhã - ele disse. O único sinal de interesse foi um ligeiro entreabrir dos lábios. - Suponho que saiba
quem é Broderick Maclennan Grant.
Karen pareceu surpresa com a pergunta. Ela se reclinou na cadeira e recitou:
- Terceiro homem mais rico da Escócia, é dono de metade da porção rentável das Highlands. Ganhou seu dinheiro construindo estradas e casas, e administrando
os sistemas de transporte que as servem. Possui uma ilha nas Hébridas, mas passa a maior parte do tempo no Castelo de Rotheswell, perto de Falkland. A maioria das
terras entre lá e o mar pertence a ele ou a Wemyss. Sua filha Cat e o filhinho dela, Adam, foram sequestrados por um grupo anarquista em 1985. Cat foi morta com
um tiro quando a entrega do resgate deu errado. Ninguém sabe o que aconteceu com Adam. A esposa de Grant suicidou-se alguns anos depois. Ele se casou novamente há
cerca de dez anos. Tem um filho pequeno que deve estar com cinco ou seis anos. - Ela riu. - Como fui?
- Não é um concurso, inspetora. - Lees sentiu que cerrou os punhos e os manteve embaixo da mesa. - Parece que há novas provas. E já que você está no comando
dos casos arquivados achei que deveria cuidar deste.
- Que tipo de provas? - Ela se reclinou sobre o braço da cadeira, numa postura relaxada.
- Achei melhor que você conversasse diretamente com Sir Broderick. Assim, não haverá qualquer possibilidade de confusão.
- Então, ele realmente não lhe disse nada a respeito?
Lees poderia jurar que ela estava gostando daquilo.
- Marquei de você se encontrar com ele no Castelo de Rotheswell amanhã de manhã às dez. Não preciso lhe dizer o quanto é importante que fique bem claro que
estamos levando isso a sério. Quero que Sir Broderick entenda que este assunto receberá toda a nossa atenção.
Karen se levantou abruptamente, os olhos repentinamente frios.
- Ele receberá exatamente a mesma atenção que todos os outros pais enlutados com quem trato. Não faço distinção entre os mortos, senhor. Agora, se isso é
tudo, tenho um arquivo para estudar até amanhã cedo.
Ela não esperou por uma dispensa. Apenas virou nos calcanhares e saiu, deixando Lees com a sensação de que ela tampouco fazia distinção entre os vivos.
Mais uma vez, Karen Pirie o havia feito se sentir um idiota.
Castelo de Rotheswell
Bel Richmond deu uma última olhada em seu arquivo sobre Catriona Maclennan Grant, certificando-se de que sua lista de perguntas cobria todos os ângulos. A intolerância
a bobagens por parte de Broderick Maclennan Grant era tão notória quanto sua aversão à publicidade. Bel suspeitava de que ele fosse atacar ao primeiro sinal de falta
de preparo de sua parte e usá-la como desculpa para romper o acordo que ela havia negociado com Susan Charleson.
Para dizer a verdade, ela ainda estava surpresa por haver conseguido. Levantou-se, fechou o laptop e deu uma olhada no espelho. Vestida para matar. Afinal, a primeira
impressão é a que fica. Fim de semana no campo. Era esse o look que ela havia adotado. Sempre fora boa em camuflagem. Mais uma das muitas razões pelas quais ela
era tão boa naquilo que fazia. Integrar-se, tornar-se "parte do grupo", qualquer que fosse ele, era um mal necessário. Portanto, se ela iria dormir sob o teto aristocrático
de Brodie Grant, precisava se vestir a caráter. Alisou o vestido axadrezado Black Watch que havia tomado emprestado de Vivianne, conferiu se não havia arranhões
nos sapatos de salto sabrina, ajeitou o cabelo, negro como um corvo, para trás da orelha e entreabriu os lábios rubros num sorriso. Uma olhada em seu relógio confirmou
que estava na hora de descer as escadas e descobrir o que a formidável Susan Charleson havia preparado.
Ao virar uma curva da ampla escadaria, teve de se desviar para evitar um garotinho que subia a toda velocidade. Ele conseguiu controlar os gestos desgovernados no
patamar entre dois lances, ofegou um "Desculpe", e voou escada acima. Bel piscou e ergueu as sobrancelhas. Já fazia algum tempo que não esbarrava assim num garotinho
e não havia sentido a menor falta. Continuou descendo, mas, antes de chegar ao pé da escada, uma mulher com calças de veludo bege e uma blusa vermelho-escura circulou
a coluna da escadaria e parou de repente, pega de surpresa.
- Oh, me desculpe, não quis assustá-la - ela disse. - Viu um garotinho passar por aqui?
Bel apontou com o polegar por sobre o ombro.
- Ele foi por ali.
A mulher assentiu. Agora que estava mais próxima, Bel podia ver que era uns dez anos mais velha do que pensara de início, trinta e tantos, no mínimo. A pele tratada,
o cabelo castanho grosso e o porte elegante ajudavam a confundir.
- Monstrinho - disse a mulher. Elas se encontraram a alguns degraus do patamar. - Você deve ser Annabel Richmond - ela disse, estendendo a mão delgada que
estava fria, apesar da temperatura agradável dentro das grossas paredes do castelo. - Sou Judith. Esposa de Brodie.
Claro que sim. Como Bel poderia ter imaginado uma babá tão bem arrumada?
- Lady Grant - ela disse, estremecendo por dentro.
- Judith, por favor. Mesmo depois de todos esses anos casada com Brodie, ainda tenho vontade de olhar para trás quando alguém me chama de Lady Grant. - Ela
não parecia dizer aquilo apenas por falsa modéstia.
- E eu sou Bel. Vamos deixar para lá o nome que uso profissionalmente.
Lady Grant sorriu, os olhos já examinando os degraus acima.
- Bel então. Olhe, não posso parar agora, tenho de capturar aquele monstrinho. Vejo você no jantar. - E lá foi ela, subindo dois degraus de cada vez.
Sentindo que havia exagerado ao se vestir, em comparação à castelã de Rotheswell, Bel seguiu pelos corredores de lajotas de pedra até o escritório de Susan Charleson.
A porta estava aberta e Susan, que falava ao telefone, acenou para que ela entrasse.
- Muito bem. Obrigada por arranjar tudo, Sr. Lees. - Ela recolocou o fone no gancho e contornou a mesa, conduzindo Bel de volta à porta. - Bem na hora - ela
disse. - Ele aprecia a pontualidade. Gostou do quarto? Tem tudo de que precisa? O acesso wi-fi está funcionando?
- Tudo está perfeito - disse Bel. - A vista também é linda.
Sentindo-se como se tivesse entrado num drama da BBC2 escrito por Stephen Poliakoff, ela deixou-se conduzir pelo labirinto de corredores, cujas
paredes estavam forradas de fotografias de paisagens escocesas enormes impressas em telas para parecerem quadros pintados. Ficou surpresa de tudo lhe parecer tão
aconchegante. Mas, também, aquela não era a ideia que fazia de um castelo. Esperara algo como Windsor ou Alnwick. Em vez disso, Rotheswell parecia-se mais a uma
mansão fortificada e com torres. O interior lembrava mais uma casa de campo do que um salão de banquetes medieval. Sólido, mas não tão intimidador quanto ela temera.
Quando finalmente pararam diante de uma porta dupla de mogno alta e abobadada, Bel já estava começando a se arrepender de não ter deixado uma trilha de migalhas
de pão.
- Chegamos - disse Susan, abrindo uma das portas e conduzindo Bel para o interior de uma sala de bilhar, forrada de painéis de madeira escura e com persianas
nas janelas. A única luz provinha de uma série de lustres sobre a mesa de bilhar de tamanho oficial. Quando elas entraram, Broderick Maclennan Grant levantou os
olhos do taco que posicionava para a jogada. Uma massa densa de cabelo impressionantemente grisalho caía jovialmente sobre a testa ampla, sobrancelhas como um par
de muralhas prateadas sobre olhos tão fundos que sua cor só podia ser adivinhada, nariz como o bico de um papagaio, e uma boca ampla e fina sobre um queixo quadrado,
eram características que o tornavam instantaneamente reconhecível. A iluminação do lugar dava um ar dramático a sua figura.
Por conta de fotografias, Bel sabia o que esperar, mas ficou surpresa com a eletricidade crepitante que sentiu em sua presença. Já estivera na presença de homens
e mulheres poderosos antes, mas poucas vezes sentira aquele carisma instantâneo. Entendeu, de imediato, como Brodie Grant havia construído seu império do nada.
Ele se endireitou e apoiou-se no taco.
- Srta. Richmond, suponho. - Sua voz era profunda e quase relutante, como se não a usasse muito.
- Exatamente, Sir Broderick. - Bel não tinha certeza se deveria avançar ou permanecer onde estava.
- Obrigado, Susan - disse Grant. Quando a porta se fechou atrás dela, ele acenou na direção de um par de poltronas de couro desgastadas ao lado de uma lareira
de mármore entalhado. - Sente-se. Posso jogar e conversar
ao mesmo tempo. - Ele voltou a estudar a tacada enquanto Bel deslocava uma das poltronas para que pudesse observá-lo de forma mais direta.
Ela esperou enquanto ele fez mais algumas jogadas, o silêncio se erguia entre eles como uma maré ameaçadora.
- É uma linda casa - ela disse afinal.
Ele resmungou:
- Não sou de papo furado, Srta. Richmond. - Deu uma tacada rápida e duas bolas colidiram num estalo que pareceu um tiro. Passou giz no taco e a observou por
um longo momento. - Você provavelmente está se perguntando como conseguiu isso. Acesso direto a um homem famoso por sua aversão à exposição na mídia. Que conquista,
hein? Bem, sinto muito em decepcioná-la, mas você apenas teve sorte. - Ele circulou a mesa, franzindo a testa diante da posição das bolas, movendo-se como um homem
vinte anos mais jovem.
- Foi assim que consegui algumas das minhas melhores histórias - Bel disse calmamente. - Grande parte do jornalismo de sucesso deve-se a isso: a habilidade
de estar no lugar certo, na hora certa. Não tenho problema algum com relação à sorte.
- Que seja. - Ele estudou as bolas, inclinando a cabeça para obter um ângulo diferente. - Então, você não está se perguntando por que escolhi romper meu silêncio,
após todos esses anos?
- Sim, é claro que estou. Mas, para ser honesta, não acho que suas razões para falar agora terão muito a ver com o que acabarei escrevendo. Portanto, é mais
uma curiosidade pessoal do que profissional.
Ele parou a meio caminho de sua preparação para uma tacada e empertigou-se, encarando-a com uma expressão que ela não podia decifrar. Ele poderia estar furioso ou
curioso.
- Você não é como eu esperava - ele disse. - É mais durona. Isso é bom.
Bel estava acostumada a ser subestimada pelos homens, em seu universo. Estava menos acostumada, porém, a que eles admitissem seu erro.
- Pode ter certeza de que sou durona. Não confio a mais ninguém as minhas batalhas.
Ele se virou para olhá-la, apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o taco.
- Não gosto de ficar exposto ao público - ele disse. - Mas sou realista. Em 1985 era possível que alguém como eu exercesse um determinado grau de influência
sobre a mídia. Quando Catriona e Adam foram sequestrados, controlamos em grande parte o que foi impresso e transmitido. A polícia também cooperou conosco. - Ele
suspirou e balançou a cabeça. - Olhe só de que adiantou. - Deixou o taco na mesa e veio se sentar de frente para Bel.
Sentou-se na posição clássica do macho dominante: joelhos bem abertos, mãos sobre as coxas, ombros para trás.
- O mundo é um lugar diferente agora - ele disse. - Eu vi o que vocês fazem com pais que perderam seus filhos. Mohamed Al Fayed, retratado como um palhaço
paranoico. Kate McCann, transformada em uma Medeia moderna. Dê um passo em falso e eles o enterram. Bem, não vou deixar que isso aconteça. Sou um homem muito bem-sucedido,
Srta. Richmond. E cheguei até aqui aceitando que existem coisas que eu não sei e entendendo que a forma de superar isso é contratando especialistas e ouvindo-os.
No que se refere a esse ramo de negócios, você é minha especialista. Quando souber que existem novas provas, a mídia enlouquecerá. Mas não falarei com ninguém além
de você. Tudo passará por você. Portanto, qualquer que seja a imagem que chegue ao público, será a que você gerar. Este lugar foi construído para resistir a um cerco,
e meu sistema de segurança é o melhor que existe. Nenhum dos répteis chega perto de mim, de Judith ou de Alec.
Bel sentiu um sorriso repuxar os cantos da boca. Acesso exclusivo era o sonho erótico de todo redator. Geralmente, tinha de se matar para conseguir algo assim. Mas,
ali estava, numa bandeja e de graça. Contudo, deixou-o continuar pensando que era ela quem estava lhe fazendo um favor.
- E o que eu ganho com isso? Além de me tornar a jornalista que todo mundo adora odiar?
A linha estreita dos lábios de Grant se comprimiu ainda mais, e o peito se ergueu numa respiração profunda.
- Eu falarei com você. -As palavras saíram como se tivessem sido trituradas entre duas pedras de moinho. Claramente, sua intenção era que aquele fosse um
momento comparado a quando Moisés desceu do Monte Sinai.
Bel estava determinada a não se deixar impressionar.
- Excelente. Podemos começar, então? - Enfiou a mão dentro da bolsa e tirou um gravador digital. - Sei que isto não será fácil para o senhor, mas preciso
que me conte sobre Catriona. Chegaremos ao sequestro e suas consequências, mas teremos que voltar um pouco antes disso. Quero ter um panorama de como ela era e de
como vivia.
Ele olhou para o nada e, pela primeira vez, Bel viu um homem que parecia ter setenta e dois anos.
- Não tenho certeza se sou a pessoa mais adequada para isso - ele disse. - Éramos parecidos demais. Sempre foi uma disputa, entre mim e Catriona. - Ele se
levantou da poltrona e voltou à mesa de bilhar. - Ela sempre foi voluntariosa, mesmo quando pequena. Tinha ataques de fúria que podiam balançar as paredes deste
lugar. Ela cresceu e deixou os ataques para trás, mas não o temperamento. Contudo, sempre conseguia reconquistar a boa vontade das pessoas. Quando ela queria. -
Ergueu os olhos para Bel e sorriu. - Ela sabia bem o que queria. E não era possível fazê-la mudar de ideia, uma vez que estivesse decidida sobre algo.
Grant se moveu em torno da mesa, estudando as bolas, alinhando sua próxima jogada.
- E tinha talento. Quando criança, nunca estava sem um lápis ou um pincel nas mãos. Desenho, pintura, modelagem em argila. Ela nunca parava. Não deixou de
fazer isso com o tempo, como a maioria das crianças. Simplesmente se aprimorou. Então, ela descobriu o vidro. - Ele se inclinou sobre a mesa e acertou a bola vermelha
com a bola da vez, encaçapando-a no buraco do meio. Então, reposicionou a vermelha e estudou os ângulos.
- O senhor disse que sempre houve disputa entre vocês. Quais eram os pontos críticos? - Bel perguntou, quando ele não demonstrou sinais de que continuaria
com suas reminiscências.
Grant deu uma risadinha irônica.
- Tudo e qualquer coisa. Política. Religião. Se a comida italiana era melhor do que a indiana. Se Mozart era melhor do que Beethoven. Se a arte abstrata tinha
algum significado. Se deveríamos plantar faia, bétula ou pinho escocês no bosque de Check Bar. - Ele se endireitou lentamente. - Por que ela não queria assumir a
companhia. Esse era o ponto mais crítico. Eu não tinha um filho homem, naquela época. E nunca tive problemas para
aceitar mulheres nos negócios. Não via razão alguma para que ela não pudesse assumir a MGE, desde que aprendesse como tudo funcionava. Ela dizia que preferiria furar
os próprios olhos com uma agulha.
- Ela não aprovava a MGE? - perguntou Bel.
- Não, não tinha nada a ver com a companhia ou com sua política. Ela queria era ser uma artista do vidro. Esculpir, soprar, modelar... tudo que fosse possível
fazer com vidro, ela queria ser a melhor. E isso não deixava espaço para a construção de rodovias ou casas.
- Deve ter sido uma grande decepção.
- Fiquei arrasado. - Grant pigarreou. - Fiz tudo o que podia para convencê-la a desistir daquilo. Mas ela não me dava ouvidos. Agiu à minha revelia e se candidatou
a uma vaga na universidade Goldsmiths, em Londres. E conseguiu. - Ele balançou a cabeça. - Eu queria cortar qualquer ajuda financeira a ela, mas Mary, minha esposa,
mãe de Cat, me compeliu a concordar em sustentá-la. Ela disse que, para alguém que detestava se expor ao público, eu estava dando uma imensa colher de chá para os
tabloides. Então, deixei-me convencer. - Ele deu um sorriso amargo. - Quase me conformei com tudo, também. Então, descobri o que realmente estava acontecendo.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1978; Castelo de Rotheswell
Brodie Grant girou o Land Rover numa curva que espalhou cascalho para os lados e freou a metros da porta da cozinha do Castelo de Rotheswell. Entrou pisando forte
na casa, com um labrador chocolate nos calcanhares. Atravessou a cozinha, deixando um redemoinho de ar gelado à sua passagem, e gritou para o cão ficar ali. Moveu-se
pela casa com a velocidade e a segurança de um homem que sabe precisamente aonde está indo.
Finalmente, irrompeu na sala belamente decorada onde a esposa se entregava à sua paixão pela costura de colchas de retalhos.
- Você sabia disto? - ele indagou. Mary ergueu os olhos, assustada. Podia ouvir a intensidade de sua respiração, do outro lado da sala.
- Disto o quê, Brodie? - perguntou. Ela estava casada com uma força da natureza havia tempo suficiente para não se espantar com uma entrada dramática.
- Foi você que me convenceu a isto. - Ele se jogou numa poltrona baixa, lutando para ajeitar as pernas. - "É o que ela quer, Brodie. Ela jamais o perdoará
se você ficar no caminho dela. Você seguiu seus sonhos, Brodie. Deixe-a seguir os dela." Foi o que você disse. Então, foi o que fiz. Contrariando o que achava certo,
eu disse que iria apoiá-la. Financiar seu maldito diploma. Ficar de boca fechada sobre a maldita perda de tempo que é tudo isso. Parar de lembrá-la que são pouquíssimos
os artistas que conseguem se sustentar com essa bobajada indulgente. Não enquanto estão vivos, pelo menos. - Ele bateu o punho fechado no braço da poltrona.
Mary continuou a enfiar a agulha no tecido e sorriu.
- Você fez isso mesmo, Brodie. E estou orgulhosa de você.
- E olhe só aonde isso nos levou. Olhe só o que realmente está acontecendo!
- Brodie, não tenho ideia do que está falando. Você poderia explicar? E não se esqueça da sua pressão.
Ela tinha o dom de provocá-lo gentilmente e demovê-lo de suas posturas tão extremas. Mas, naquele dia, não estava dando certo. A irritação de Brodie estava no auge,
e seria necessária mais que uma dose de racionalidade amável para fazê-lo voltar a seu humor normal.
- Saí com Sinclair. Fomos verificar as trilhas para a caçada na sexta-feira.
- E como estavam as trilhas?
- Ótimas. Sempre ótimas. Ele é um bom caseiro. Mas não é essa a questão, Mary. - Sua voz se elevou novamente, incompatível com o ambiente aconchegante, cheio
de tecidos nas prateleiras.
- Claro que não, Brodie. Percebi isso. Qual é exatamente a questão?
- Aquele maldito do Fergus Sinclair. Eu disse ao Sinclair. No verão passado, quando seu maldito filho estava farejando atrás da Cat. Eu disse a ele para manter
o garoto longe da minha filha, e achei que ele tivesse me ouvido. E agora, isto! - Sacudiu as mãos como se estivesse jogando uma pilha de feno para o ar.
Mary finalmente abaixou seu trabalho.
- Qual é o problema, Brodie? O que aconteceu?
- É o que vai acontecer. Você se lembra de como respiramos aliviados quando ele se matriculou no maldito curso de administração de propriedades
em Edimburgo? Bem, acontece que essa não era sua única opção. Ele simplesmente aceitou uma vaga na Universidade de Londres. Vai estar na mesma droga de cidade que
a nossa filha. Vai ficar em cima dela o tempo todo, como uma sarna. Maldito caipira oportunista. - Fechou a cara e socou novamente a poltrona. - Vou acabar com a
raça dele, você vai ver.
Para espanto dele, Mary desandou a rir em sua mesinha de trabalho, com lágrimas cintilando nos cantos dos olhos.
- Ai, Brodie - ela ofegou. - Nem consigo lhe dizer como isso é engraçado.
- Engraçado? - ele berrou. - Aquele garoto dos infernos vai arruinar a vida de Cat e você acha engraçado?
Mary se levantou de um salto e cruzou a sala até o marido. Ignorando seus protestos, sentou-se no colo dele e passou os dedos por seu cabelo grosso.
- Está tudo bem, Brodie. Tudo ficará bem.
- Não vejo como. - Ele se afastou da mão dela.
- Durante a última semana, eu e a Cat tentávamos arranjar uma forma de lhe contar.
- Contar o quê, mulher?
- Ela não vai para Londres, Brodie.
Ele se endireitou, quase derrubando Mary no chão.
- O que você quer dizer com não vai para Londres? Ela vai desistir dessa idiotice? Virá trabalhar comigo?
Mary suspirou.
- Não Seja bobo. Você sabe, no fundo do seu coração, que ela está fazendo o que deveria fazer. Não, ela recebeu a oferta de uma bolsa de estudos. É uma combinação
de formação acadêmica e trabalho em uma fábrica de vidro artístico. Brodie, é simplesmente a melhor escola do mundo. E eles querem a nossa Catriona.
Por um longo momento, ele se permitiu ficar dividido entre o orgulho e o medo.
- E onde é isso? - disse, por fim.
- Não é muito longe, Brodie. - Mary passou as costas da mão pelo rosto dele. - É na Suécia.
- Suécia? Na maldita Suécia? Por Deus, Mary. Suécia?
- Você fala como se fosse o fim do mundo. Pode-se voar para lá de Edimburgo, sabe? Leva menos de duas horas. Sinceramente, Brodie. Escute o que está dizendo.
Isso é maravilhoso. É o melhor começo possível para ela. E você não terá de se preocupar com o fato de Fergus estar no mesmo lugar. Não é provável que ele apareça
numa cidadezinha perdida entre Estocolmo e Uppsala, é?
Grant passou os braços em volta da esposa e descansou o queixo sobre sua cabeça.
- Só você mesmo para encontrar o lado bom disso. - Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. - Com certeza, isso irá colocar o maldito do Fergus Sinclair
no lugar dele.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
- Então o senhor também discutia com Cat a respeito de namorados? - Bel perguntou. - Era com relação a todos eles, ou apenas no caso de Fergus Sinclair?
- Ela não teve tantos namorados assim. Estava concentrada demais no trabalho. Saiu durante alguns meses com um dos escultores da fábrica de vidro. Eu o encontrei
algumas vezes. Sueco, mas mesmo assim um rapaz bastante sensato. Eu podia ver que ela não estava levando muito a sério; então não havia necessidade de discutirmos
sobre ele. Mas Fergus Sinclair era outra história. - Ele contornou a mesa, e sua raiva era óbvia.
- A polícia nunca o considerou suspeito, mas questionei, na época, se ele poderia estar por trás do que aconteceu com Cat e Adam. Ele, logicamente, não havia
aceitado, quando ela finalmente rompeu os laços entre eles. E não aceitava que ela não o reconhecesse como pai de Adam. Na época, pensei que era possível que ele
tivesse feito justiça com as próprias mãos. Embora fosse difícil imaginar que tivesse inteligência para armar algo tão complicado.
- Mas Cat continuou o relacionamento com Fergus, depois de ir para a Suécia?
Subitamente o cansaço pareceu dominá-lo, e Grant se deixou cair na poltrona, de frente para Bel.
- Eles eram muito próximos. Haviam brincado juntos quando crianças. Eu deveria ter colocado um ponto final naquilo, mas nunca passou pela minha cabeça que
se transformaria em alguma coisa. Eles eram muito diferentes. Cat, com sua arte, e Sinclair, sem outra ambição a não ser a de seguir os passos do pai e ser caseiro.
Classes sociais diferentes, aspirações diferentes. A única coisa que os aproximava era o fato de a vida os ter colocado no mesmo lugar. Portanto, sim, quando ela
voltava, nas férias, e ele estava por perto, eles se juntavam novamente. Ela não fazia segredo sobre isso, ainda que soubesse minha opinião a respeito de Sinclair.
Eu continuava com a esperança de que ela conhecesse alguém que fosse digno dela, mas isso nunca aconteceu. Ela continuava voltando para Sinclair.
- E, apesar disso, o senhor não despediu o pai dele. Não o retirou da propriedade.
Grant pareceu chocado.
- Meu Deus, claro que não. Você tem ideia de como é difícil encontrar um caseiro tão bom quanto Willie Sinclair? Você poderia entrevistar cem homens antes
de encontrar alguém com os instintos que ele tem sobre pássaros e sobre as terras. E também é um sujeito decente. Ele sabia que o filho não estava à altura de Cat.
Sentia vergonha por não conseguir impedir que Fergus andasse atrás dela. Queria proibi-lo de frequentar a casa deles, mas sua esposa não permitiu. - Ele deu de ombros.
- Não posso culpá-la. As mulheres são sempre moles com os filhos.
Bel tentou ocultar sua surpresa. Ela havia presumido que Grant não respeitaria qualquer limite para que tudo fosse como ele queria, no que dizia respeito à filha.
Aparentemente, ele era mais complexo do que ela havia imaginado.
- O que aconteceu quando ela voltou da Suécia?
Grant esfregou o rosto com as mãos.
- Não foi nada agradável. Ela queria se mudar. Montar um estúdio onde pudesse trabalhar e vender suas coisas, um lugar onde também houvesse um espaço separado
para ela morar. Ela estava de olho numas propriedades nas minhas terras. Eu disse que o preço da minha ajuda era que ela parasse de se encontrar com Sinclair. -
Pela primeira vez, Bel viu tristeza se infiltrando através da raiva fervilhante. - Foi burrice da minha parte. Mary disse isso, na época, e ela estava com a razão.
As duas ficaram
furiosas comigo, mas eu não quis ceder. Então, Cat seguiu seu próprio caminho. Ela entrou em contato com a corretora da propriedade rural de Wemyss e alugou um imóvel
deles. Uma velha casa, próxima à entrada da propriedade, juntamente com o que havia sido um depósito de lenha, entrando pela estrada principal. Perfeito para atrair
a clientela. Área para estacionamento na frente dos antigos portões, um estúdio e espaço para exposição, além de dependências para ela morar, por trás dos muros.
Toda a privacidade que ela poderia desejar. E todo mundo ficou sabendo que Catriona Maclennan Grant fora morar em Wemyss só para contrariar seu velho pai.
- Se ela dependia do senhor, como é que pôde pagar por tudo isso? - perguntou Bel.
- A mãe dela equipou o estúdio, pagou o aluguel referente ao primeiro ano e encheu a despensa de Cat até ela começar a vender suas peças. - Ele não conseguiu
evitar um sorriso. - O que não demorou muito. Ela era boa, sabe? Muito boa. E a mãe cuidou que todos os seus amigos fossem até lá para comprar presentes de casamento
e de aniversário. Nunca fiquei tão bravo com Mary quanto naquela época. Estava ultrajado. Sentia-me frustrado e desrespeitado, e a situação só piorou quando o desgraçado
do Sinclair voltou da universidade e retornou de onde havia parado.
- Eles moravam juntos?
- Não. Cat tinha bom-senso o bastante para não fazer isso. Agora eu olho para trás e, às vezes, penso que ela só continuava se encontrando com ele para me
irritar. Não durou muito, depois que ela abriu o estúdio. Estava praticamente terminado cerca de um ano e meio antes que... que ela morresse.
Bel fez as contas mentalmente e concluiu que havia algo errado.
- Mas Adam só tinha seis meses quando eles foram sequestrados. Então, como Fergus Sinclair podia ser o pai, se ele se separou de Cat um ano e meio antes?
Grant suspirou.
- De acordo com Mary, não foi um rompimento definitivo. Cat ficava repetindo para Sinclair que tudo havia terminado, mas ele não queria aceitar. Hoje em dia,
isso se chama assédio. Parece que ele vivia aparecendo com aquela cara de cão sem dono, e Cat nem sempre tinha forças para
mandá-lo embora. E daí, ela ficou grávida. - Ele olhou para o chão. - Sempre imaginei como seria ser avô. Ver a família continuar. Mas, quando Cat nos contou, tudo
o que senti foi raiva. Aquele filho da puta do Sinclair havia arruinado o futuro dela. Ele a sobrecarregou com seu bebê, destruiu suas chances de ter a carreira
que ela havia sonhado. A única coisa boa que ela fez foi se recusar a manter qualquer contato com ele. Não quis reconhecê-lo como pai da criança, não queria vê-lo
nem falar com ele. Deixou muito claro que, daquela vez, estava realmente tudo acabado entre eles.
- Como ele reagiu a isso?
- Mais uma vez, eu soube indiretamente. Dessa vez por Willie Sinclair. Ele disse que o garoto estava devastado. Mas só o que me importava era que ele finalmente
tivesse entendido o recado de que nunca faria parte da nossa família. Willie aconselhou-o a manter distância de Cat e, pela primeira vez na vida, ele ouviu. Em poucas
semanas, arranjou um emprego na Áustria para trabalhar numa propriedade de caça perto de Salzburg. Desde então ele trabalha na Europa.
- E hoje? O senhor ainda acha que ele pode ter sido responsável pelo que aconteceu?
Grant fez uma careta.
- Se é para ser honesto, não. Acho que não. Não creio que ele tivesse inteligência suficiente para criar um plano tão complicado. Tenho certeza de que ele
adoraria ter colocado as mãos no filho e ao mesmo tempo se vingar de Cat, mas é muito mais provável que tenham sido alguns filhos da puta com motivos políticos que
pensaram que seria muito inteligente me fazer financiar sua revolução. - Fatigado, ele se levantou. - Agora estou cansado. A polícia virá amanhã de manhã e teremos
que repassar tudo. Nós a veremos no jantar, Srta. Richmond.
Ele saiu da sala, deixando Bel cheia de coisas a considerar. E anotar. Quando Brodie Grant dissera que falaria com ela, não havia imaginado, nem por um minuto, que
ele lhe entregaria esse precioso filão de informações. Ela teria de pensar com muito cuidado em como apresentá-lo à mídia mundial. Um passo em falso e sabia que
a mina seria fechada. Agora que tivera um gostinho do que jazia adiante, isso era, definitivamente, a última coisa que ela queria.
Glenrothes
Novo em Folha olhava fixamente para a tela do computador, como se fosse um artefato alienígena, quando Karen voltou a seu escritório.
- O que você tem aí para mim? - ela perguntou. -Já conseguiu ras-trear os cinco fura-greves?
- Nenhum deles tem registro criminal - ele disse.
- E?
- Eu não sabia onde mais procurar.
Karen revirou os olhos. Sua convicção de que Novo em Folha havia sido imposto a ela por Biscoito como uma forma de sabotagem se intensificava a cada dia.
- Google. Registro eleitoral. O site 192.com. Registro de carteiras de habilitação. Comece por aí, Jason. E depois marque para mim uma visita, em terreno,
com o responsável pela preservação de cavernas. É melhor deixar o dia de amanhã livre; veja se você consegue que ele me receba no sábado cedo.
- Nós geralmente não trabalhamos aos sábados - disse Novo em Folha.
- Você é que está dizendo - Karen murmurou, lembrando-se de pedir a Phil que fosse com ela. A insistência da lei escocesa na corroboração para todo tipo de
prova fazia com que ficasse difícil dar uma de justiceiro solitário.
Ela despertou seu computador da hibernação e rastreou as informações de contato de seu equivalente em Nottingham. Para seu alívio, o inspetor Des Mottram estava
em sua mesa e foi receptivo a seu pedido.
- Acho provável que seja um beco sem saída, mas é algo que precisa ser verificado - ela disse.
- E não lhe atrai nem um pouco uma viagem até Costa dei Trent - ele disse, com uma resignação divertida na voz.
- Não é isso. Tive um caso importantíssimo reaberto hoje e não tenho como desperdiçar pessoas com algo que, provavelmente, não nos trará qualquer avanço,
exceto num caminho negativo.
- Não se preocupe. Eu sei como é isso. Hoje é seu dia de sorte, Karen. Teremos dois novos assistentes no Departamento de Investigação Criminal na segunda-feira
e isso é exatamente o tipo de coisa que posso usar para treiná-los. Nada muito complicado, não exige muita manha.
Karen passou para ele os nomes dos homens.
- Um dos meus rapazes está procurando pelos últimos endereços conhecidos. Assim que ele achar alguma coisa, pedirei que lhe mande um e-mail. - Mais alguns
detalhes e ela terminou. Bem naquele instante, Phil Parhatka voltou a entrar na sala, com um enrolado de bacon que transmitiu uma mensagem diretamente para os centros
de prazer do cérebro de Karen. - Hummm - ela gemeu. - Deus, isto está com um cheiro delicioso.
- Se eu soubesse que você havia voltado, teria lhe trazido um. Bom, vamos dividir esse.
Ele pegou uma faca em sua gaveta e cortou o enrolado na metade, espirrando molho de tomate nos dedos. Passou a ela sua metade e, então, lambeu os dedos. O que mais,
pensou Karen, uma mulher poderia querer de um homem?
- O que o Biscoito queria? - perguntou Phil.
Karen deu uma mordida no enrolado e falou com a boca cheia da massa adocicada com bacon salgado.
- Novos desdobramentos no caso Catriona Maclennan Grant.
- É mesmo? O que aconteceu?
Karen sorriu.
- Não sei. O Rei Brodie não se preocupou em dizer ao Biscoito. Só disse a ele para me mandar lá amanhã de manhã. Então, preciso me atualizar rapidinho. Já
mandei buscar os arquivos, mas vou checar on-line primeiro. Olhe só... - Ela o puxou para um lado. - O assunto Mick Prentice. Preciso falar com alguém no sábado
e é óbvio que o Novo em Folha não trabalha aos sábados. Existe alguma chance de eu convencer você a ir comigo?
- Ir aonde?
- Às cavernas de Wemyss.
- Sério? - Phil se animou. - Poderemos passar para o outro lado das grades?
- Imagino que sim - disse Karen. - Não sabia que você se interessava por cavernas.
- Karen, eu já fui garoto um dia.
Ela revirou os olhos.
- Isso é bem verdade.
- Além disso, as cavernas têm coisas realmente legais. Inscrições e desenhos pictos. Entalhes da Idade do Ferro. Gosto da ideia de ser um
esquilo-agente-secreto e poder dar uma espiada nas coisas que geralmente não podem ser vistas. Claro que irei com você. Você já fez os registros do
caso?
Karen pareceu envergonhada.
- Quero ver aonde vai dar. Foi uma época difícil por aqui. Se alguma coisa ruim aconteceu a Mick Prentice, quero ir até o fundo. E você sabe como a mídia
está sempre se metendo no que fazemos no setor de Casos Arquivados. Tenho a sensação de que esse é um caso em que temos mais chance de descobrir o que aconteceu
se mantivermos segredo por um tempo.
Phil terminou seu enrolado e limpou a boca com as costas da mão.
- Parece justo. Você é a chefe. Só se assegure de que o Biscoito não possa usar isso contra você.
- Vou tomar cuidado. Escute, você está ocupado agora?
Ele atirou o saco de papel vazio na lixeira com uma jogada por cima da cabeça, comemorando quando acertou.
- Nada que eu não possa adiar.
- Veja o que você consegue descobrir sobre um cara chamado Andy Kerr. Ele era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores durante a greve. Morava num
sítio no meio do bosque de Wemyss. Estava de licença médica, com depressão, na época em que Mick desapareceu. Dizem que deu fim à própria vida, mas nunca encontraram
o corpo.
Phil assentiu.
- Verei o que consigo descobrir.
Enquanto ele voltava à própria mesa, Karen procurava Catriona Maclennan Grant no Google. O primeiro resultado a levou a uma publicação em formato de jornal, de dois
anos antes, marcando o vigésimo aniversário da morte da jovem escultora. Depois de ler três parágrafos, Karen sentiu um golpe no meio de seu peito. "É incrível como
são poucas as pessoas que se dispõem a falar sobre este caso", ela leu. "O pai de Cat Grant jamais falou com a imprensa sobre o que aconteceu. Sua mãe se matou dois
anos após a morte da filha. Seu ex-namorado, Fergus Sinclair, se recusa a dar entrevistas. E o policial encarregado do caso também está fora do nosso alcance, já
que ele mesmo cumpre pena por assassinato."
- Ai, Jesus - ela gemeu. Nem sequer tinha visto o arquivo do caso e aquela já estava se transformando numa missão dos infernos.
Kirkcaldy
Já passava das dez quando Karen entrou em casa com um pacote de arquivos e uma porção de peixe para o jantar. A ideia de que estava brincando de casinha nunca a
tinha abandonado. Talvez tivesse algo a ver com a casa em si, uma caixa pré-fabricada num empreendimento imobiliário popular de 1960, no norte de Kirkcaldy. O tipo
de lugar no qual as pessoas começavam a vida, aferrando-se à esperança de que não a terminariam ali. Um subúrbio com baixos índices de criminalidade, onde se podia
deixar as crianças brincar na rua, desde que não se morasse em uma das estradas. Acidentes de trânsito, e não sequestros, eram o que os pais mais temiam por ali.
Karen nunca se lembrava ao certo por que havia comprado a casa, embora, na época, tivesse parecido uma boa ideia. Suspeitava que o apelo estivera no fato de ela
vir completamente mobiliada, provavelmente por alguém que havia tirado a ideia de um programa de TV sobre decoração. Comprara a mobília junto com a casa, até mesmo
os quadros nas paredes. Não ligava para o fato de não ter sido ela a escolher as coisas entre as quais vivia. De qualquer maneira, era o tipo de coisa que ela provavelmente
teria escolhido, e aquilo lhe havia economizado o trabalho de passar um domingo numa loja da IKEA. E ninguém podia negar que era um milhão de vezes mais agradável
do que a confusão floral desbotada em que viviam seus pais. Sua mãe continuava esperando que ela se tornasse como todo mundo, mas isso não iria acontecer. Quando
tinha um fim de semana livre, Karen não desejava nada além de um prato de carne e legumes com curry com os amigos e passar um bom tempo estirada no sofá, assistindo
a jogos de futebol e a filmes antigos. Nada de arrumar a casa.
Ela colocou tudo sobre a mesa de jantar e foi à procura de um prato e talheres. Ainda conservava alguns padrões, pelo amor de Deus. Atirou o casaco sobre uma cadeira
e sentou-se com a refeição, abrindo um dos arquivos para ler enquanto comia. Ela já havia estudado os arquivos do caso Grant antes e tomado nota das perguntas para
as quais queria respostas. Agora, finalmente, tinha a chance de analisar o material que Phil compilara para ela.
Como havia esperado, o relatório de pessoa desaparecida original não poderia estar mais incompleto. Naquela época, o desaparecimento de um homem adulto, solteiro
e sem filhos, com histórico de depressão clínica, não teria muita atenção da polícia. Não tinha nada a ver com o fato de que a greve dos mineiros houvesse sobrecarregado
a força policial até o limite, e tudo a ver com o fato de que, naquele tempo, pessoas desaparecidas não eram prioridade. A não ser que fossem crianças pequenas ou
mulheres jovens e atraentes. Mesmo nos dias atuais, somente os problemas clínicos de Andy Kerr teriam garantido um leve interesse.
Seu desaparecimento havia sido informado por sua irmã, Angie, na véspera do Natal. Ele não aparecera na casa dos pais para a tradicional comemoração em família.
Angie, em casa de férias do curso de pedagogia, havia deixado alguns recados na secretária eletrônica dele na semana anterior, tentando marcar um encontro para um
drinque. Andy não respondera, mas aquilo não era incomum. Ele sempre fora dedicado ao trabalho, mas, desde que a greve havia começado, tornara-se um verdadeiro workaholic.
Então, na tarde da véspera de Natal, a Sra. Kerr admitira que Andy estava de licença por depressão. Angie convenceu o pai a levá-la de carro até o sítio de Andy,
no bosque de Wemyss. O lugar estava frio e deserto, sem qualquer comida fresca na geladeira. Havia um bilhete encostado no açucareiro sobre a mesa da cozinha. Incrivelmente,
o bilhete havia sido embalado e incluído no arquivo. Se você estiver lendo isto, provavelmente é porque está preocupado comigo. Não fique. Já aguentei o suficiente.
É uma coisa depois da outra, e não suporto mais. Fui embora para tentar colocar a cabeça no lugar. Andy.
Não era exatamente um bilhete de suicídio, mas, se você encontrasse um corpo ao lado de uma mensagem dessas, não esperaria que fosse uma vítima de assassinato. E
a irmã dissera que Andy gostava de fazer caminhada pela montanha. Ela podia entender por que o oficial que investigara o sítio e o bosque ao redor houvesse recomendado
que não se tomassem outras medidas além de fazer a informação circular entre as demais forças da Escócia. Uma anotação no arquivo, escrito com caligrafia diferente,
atestava que Angie Kerr havia entrado com um pedido para que seu irmão fosse declarado legalmente morto em 1992 e que o pedido fora concedido.
A última página estava na caligrafia familiar de Phil. "Os pais de Kerr morreram no desastre de balsa de Zeebrugge, em 1987. Angie não poderia reclamar sua herança
enquanto Andy não fosse declarado morto. Quando ela, finalmente, conseguiu legitimar a sucessão, em 1993, vendeu tudo e emigrou para a Nova Zelândia. Ela ensina
piano em Nelson, em South Island; trabalha em casa." Seguiam o endereço completo e o número de telefone de Angie Kerr.
Ela havia sofrido bastante com tudo aquilo, pensou Karen. Perder o irmão e os pais no espaço de alguns anos já era duro, e ainda por cima ter de passar pelo processo
de obter a declaração de morte legal para Andy. Não era de admirar que ela tivesse desejado se mudar para o outro lado do mundo. Onde, ela notou, seriam onze e meia
da manhã. Uma hora perfeitamente civilizada para se ligar para alguém.
Uma das poucas coisas que Karen havia comprado para sua casa era uma secretária eletrônica que lhe permitia gravar digitalmente as ligações telefônicas, que ela,
então, podia transferir via conexão USB para seu computador. Tentara convencer Biscoito a comprar algumas para o escritório, mas ele não se interessava. Provavelmente
porque não tinha sido ideia dele. Karen podia apostar que, muito em breve, algo parecido surgiria no escritório principal do Departamento de Investigação Criminal,
uma invenção do próprio subchefe Lees. Tudo bem. Pelo menos ela podia usar o sistema em casa e pedir ressarcimento pelas ligações.
Uma mulher atendeu no terceiro toque, o sotaque escocês evidente até mesmo nas duas sílabas de "Alô?".
Karen se apresentou e, então, disse:
- É Angie Kerr?
- Antes era Kerr. Agora é Mackenzie. É a respeito do meu irmão? Vocês o encontraram? - Ela parecia ansiosa, quase satisfeita.
- Não. Infelizmente, não.
- Ele não se matou, sabe? Sempre achei que sofreu um acidente. Caiu de alguma montanha, em algum lugar. Por mais deprimido que estivesse, Andy jamais se mataria.
Ele não era covarde. - O tom de desafio era claro em sua voz.
- Sinto muito - disse Karen. - Realmente não tenho respostas para você. Mas estamos examinando novamente os fatos da época em que ele
desapareceu. Estamos investigando o desaparecimento de Mick Prentice, e o nome do seu irmão veio à tona.
- Mick Prentice. - Angie parecia enojada. - Que belo amigo ele se revelou.
- O que você quer dizer?
- Não acho que seja coincidência que ele tenha fugido da greve justamente antes de Andy partir.
- Por que você diz isso?
Uma pausa curta, então Angie continuou:
- Porque seria o pior tipo de traição. Aqueles caras eram amigos desde o primeiro dia de escola. O fato de Mick ter furado a greve arrasaria Andy. E eu acho
que ele previu que isso aconteceria.
- O que a faz dizer isso?
- A última vez que o vi, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo com Mick.
Domingo, 2 de dezembro de 1984; Bosque de Wemyss
Nenhuma visita à casa de sua família seria completa, para Angie, se não passasse algum tempo com o irmão. Ela tentava vir pelo menos uma vez por semestre, mas, embora
a viagem de ônibus de Edimburgo levasse apenas uma hora, às vezes parecia demais para suportar. Ela sabia que o problema era o diferente tipo de distância que estava
crescendo entre ela e os pais, conforme se movimentava com maior liberdade num universo que era estranho para eles: palestras, sociedades estudantis, festas nas
quais as drogas eram tão comuns quanto um drinque, e uma gama de assuntos que ultrapassava tudo que ela já houvesse encontrado em Fife. Não que não existissem oportunidades
para ampliar os horizontes intelectuais por lá. Mas as salas de leitura, os cursos da WEA e os Bums Clubs eram para os homens. As mulheres nunca tiveram acesso nem
tempo para eles. Os homens cumpriam seus turnos no subterrâneo e, depois, seu tempo era só deles. Mas o trabalho das mulheres nunca terminava de verdade, principalmente
para aquelas cujos senhorios eram as antigas empresas carboníferas ou a comissão nacional do carvão. A própria avó de Angie não tivera água quente corrente nem um
banheiro em sua casa até já ter mais de sessenta
anos. Portanto, os homens não se sentiam facilmente atraídos por mulheres com formação escolar.
Andy era uma exceção. Sua mudança da frente mineira para o trabalho no sindicato o havia exposto às políticas igualitárias aspiradas pelo movimento sindicalista.
Ainda que não existissem mulheres trabalhando nas minas, o contato com outros sindicatos havia convencido Andy de que o mundo não acabaria se as mulheres fossem
tratadas como companheiras igualitárias da raça humana. E, assim, irmão e irmã tornaram-se mais próximos, substituindo as brigas da infância por discussões legítimas.
Agora, Angie esperava com ansiedade pelas tardes de domingo passadas com o irmão, passeando pelo bosque ou segurando canecas de chocolate quente diante da lareira.
Naquela tarde, Andy a esperara na parada de ônibus no final da estrada que descia até seu sítio, adentrando o bosque. Eles haviam planejado contornar o bosque e
caminhar até a orla, mas o céu ameaçava chuva, então optaram por voltar ao sítio.
- Acendi a lareira para a sua chegada - Andy dissera quando começaram a caminhada. - Me sinto culpado por ter dinheiro para o carvão, então, geralmente, não
a acendo. Simplesmente visto mais um suéter.
- Isso é uma tolice. Ninguém o culpa por ainda receber um salário.
Andy balançou a cabeça.
- É aí que você se engana. Tem um monte de gente que acha que deveríamos devolver nosso salário para o fundo do sindicato.
- E a quem isso beneficia? Você está fazendo um trabalho. Está apoiando os homens em greve. Merece ser remunerado. - Ela passou o braço pelo de Andy, compreendendo
como ele devia estar se sentindo acuado.
- Pois é, e muitos dos grevistas acham que também deveriam receber alguma coisa do sindicato. Ouvi alguns deles, lá no Serviço Social, dizendo que, se o sindicato
estivesse pagando salário-greve, não teriam que estar trabalhando tanto para manter os fundos a salvo das mãos dos confiscadores. Eles questionam para que servem
os fundos do sindicato se não é para ajudar seus membros quando há uma greve. - Ele suspirou, a cabeça baixa como se estivesse caminhando contra um vento forte.
- E eles têm razão, sabe?
- Imagino que sim. Mas se você delega a tomada de decisões a seus líderes, que foi o que eles fizeram ao concordar com a greve sem uma votação
nacional, então não pode começar a reclamar quando eles tomam decisões com as quais você não concorda muito. - Angie olhou atentamente para o irmão, observando como
as linhas de tensão ao redor de seus olhos haviam se aprofundado, desde a última vez que o vira. Sua pele parecia pálida e pouco saudável, como a de um homem que
viesse passando tempo demais em ambientes fechados e sem suplementos vitamínicos. - E se você se deixar intimidar a esse respeito, não ajudará a ninguém.
- Não sinto que esteja sendo de muita ajuda no momento - ele disse, tão baixinho que a fala quase se perdeu no ruído das folhas mortas sob seus pés.
- Isso é uma bobagem - Angie protestou, sabendo que não era suficiente, mas sem saber o que mais poderia dizer.
- Não, é a verdade. A vida dos homens que eu represento está desmoronando. Eles estão perdendo a casa porque não conseguem pagar a hipoteca. A esposa já vendeu
o anel de casamento. Os filhos vão para a escola com fome. Têm furos nos sapatos. Aqui mais parece um maldito país de Terceiro Mundo, só que não temos nenhuma instituição
de caridade arrecadando dinheiro para nos ajudar com nosso desastre. E não posso fazer nada a respeito. Como você acha que me sinto com isso?
- Bem mal - disse Angie, agarrando seu braço com mais força. Não havia resistência; era como abraçar o protetor estofado contra correntes de ar que sua mãe
usava para manter a sala o mais abafada possível. - Mas você pode fazer apenas o melhor que conseguir. Ninguém espera que você solucione todos os problemas da greve.
- Eu sei - ele suspirou. - Mas me sentia parte desta comunidade. Pertenci a ela minha vida inteira. Agora, parece que os caras em greve estão num lado da
cerca e todos os demais estão no outro. Funcionários do sindicato, auxiliares das minas, gerentes, a porra do governo Toiy... somos todos inimigos.
- Agora é que você está realmente dizendo bobagens. De jeito nenhum estamos no mesmo lado que os Tories. Todo mundo sabe disso. - Eles caminharam em silêncio,
apressando o passo quando a promessa de chuva se tornou realidade. Caiu torrencialmente em gotas frias e duras. Os galhos nus acima de sua cabeça ofereciam pouca
proteção contra o aguaceiro penetrante. Angie soltou o braço dele e começou a correr. - Vamos apostar uma corrida? - ela disse, animada, de alguma forma, pelo aguaceiro
gelado.
Não olhou para verificar se ele a estava seguindo. Apenas correu de forma desordenada em meio às árvores, seguindo a trilha sinuosa. Como sempre, emergir na clareira
onde o sítio se incrustava era incrivelmente repentino. A casa aparecia como algo saído dos contos dos Irmãos Grimm, uma construção baixa sem qualquer outro charme
além do seu isolamento. O teto de ardósia, o estuque cinza, a porta e as janelas pretas levariam qualquer criança que passasse por ali a identificá-la como a casa
da bruxa malvada. Um alpendre de madeira abrigava um recipiente para carvão, uma pilha de madeira e a motocicleta com sidecar de Andy.
Angie correu até a varanda e se virou, ofegante. Não havia sinal de Andy. Alguns minutos se passaram antes que ele surgisse entre as árvores, caminhando com dificuldade,
o cabelo castanho-claro grudado à cabeça. Angie sentiu-se murchar diante do fracasso de sua tentativa de animá-lo um pouco. Ele não disse nada ao entrar primeiro
na casa, tão organizada e espartana quanto um quartel. A única decoração era uma série de pôsteres de animais selvagens que haviam sido dados como brinde junto com
um dos jornais dominicais escoceses. Um conjunto de prateleiras estava lotado de livros sobre história natural e política; outro, de LPs. Não poderia ser mais diferente
dos quartos que ela frequentava em Edimburgo, mas Angie gostava mais dali do que de qualquer um deles. Ela sacudiu a cabeça como um cachorro para tirar as gotas
de chuva do cabelo louro-escuro, atirou o casaco sobre uma cadeira e se encolheu em uma das poltronas de segunda mão que estavam ao lado da lareira. Andy foi direto
até a cozinha para preparar o chocolate quente.
Enquanto esperava que ele se juntasse a ela, Angie tentava imaginar uma forma de animá-lo. Geralmente, ela o fazia rir com as histórias de seus colegas da universidade
e suas travessuras, mas sentia que isso não iria funcionar naquele dia. Iriam parecer histórias insensíveis sobre os privilegiados. Talvez a solução fosse lembrá-lo
das pessoas que ainda acreditavam nele.
Ele voltou com duas canecas fumegantes numa bandeja. Geralmente, eles comiam biscoitos, mas qualquer coisa que cheirasse a luxo estava fora do cardápio daquele dia.
- Tenho doado a maior parte do meu salário para o fundo de emergência - ele disse, percebendo que ela havia notado. - Só guardo o suficiente para o aluguel
e as coisas básicas.
Sentaram-se de frente um para o outro, aferrando-se à bebida quente para deixar que o calor penetrasse em suas mãos geladas. Angie falou primeiro.
- Você não deveria dar atenção a eles. As pessoas que realmente o conhecem não acham que você seja um dos inimigos. Você deveria ouvir gente como Mick, que
sabe quem você é. O que você é.
- Você acha mesmo? - Sua boca se retorceu numa expressão amargurada. - Como é que pessoas da laia de Mick podem saber quem eu sou, se nem sequer sabem mais
quem elas mesmas são?
- O que você quer dizer com não saber mais quem é Mick? Vocês são amigos há mais de vinte anos. Não acredito que a greve tenha mudado nenhum de vocês tanto
assim.
- É o que se poderia pensar, não? - Andy olhou fixamente para o fogo com os olhos embotados e os ombros caídos. - Os homens daqui... não é comum a gente conversar
sobre nossos sentimentos. Vivemos nesta atmosfera de camaradagem, lealdade e dependência mútua, mas nunca falamos sobre o que acontece dentro da gente. Mas eu e
o Mick, nós não éramos assim. Costumávamos contar tudo um ao outro. Não havia nada sobre o que não pudéssemos conversar. - Ele afastou o cabelo molhado da testa
alta e estreita. - Mas, ultimamente, algo mudou. Sinto que ele está escondendo alguma coisa. Parece que há alguma questão realmente importante sobre a qual ele não
consegue se obrigar a falar.
- Mas pode ser qualquer coisa - disse Angie. - Algo entre ele e Jenny, talvez. Algo que não seria certo discutir com você.
Andy fungou.
- Você acha que ele não fala sobre Jenny? Eu sei tudo sobre aquele casamento, pode acreditar. Poderia desenhar um mapa das falhas geológicas entre aqueles
dois. Não, não é Jenny. A única coisa que posso pensar é que ele concorda com os outros. Que ache que eu não esteja servindo de nada para eles, no momento.
- Tem certeza de que não é sua imaginação? Isso não parece coisa do Mick.
- Bem que eu gostaria. Mas não é imaginação. Nem mesmo meu melhor amigo acha que eu mereça confiança. Só não sei quanto tempo conseguirei fazer meu trabalho,
me sentindo deste jeito.
Angie começou a se preocupar de verdade. O desespero de Andy estava claramente além de qualquer coisa com a qual ela soubesse lidar.
- Andy, não me leve a mal, mas você precisa ir ao médico.
Ele emitiu um som que parecia o de uma risada sufocada antes mesmo de se formar.
- Quem? O Dr. Aspirina e o Dr. Melhorai, os gêmeos analgésicos? Você acha que estou perdendo o juízo? Acha que esses dois saberiam o que fazer a respeito,
se eu estivesse mesmo? Acha que preciso de temazepam, como a porra da metade das mulheres daqui? Pílulas da felicidade, para fazer com que nada mais importe?
- Eu quero ajudar você, Andy. E não tenho competência para isso. Você precisa conversar com alguém que saiba o que fazer, e os médicos são um bom começo.
Até mesmo o Aspirina e o Melhoral sabem mais do que eu sobre depressão. Acho que você está deprimido, Andy. Uma depressão clínica mesmo, e não apenas tristeza.
Ele pareceu que ia chorar.
- Sabe o que é o pior de tudo isso que você acabou de falar? Que eu acho que você pode ter razão.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Kirkcaldy
Parecia plausível. Andy Kerr havia sentido que Mick Prentice escondia alguma coisa dele. Quando pareceu que Mick havia se unido aos fura-greves e ido para Nottingham,
deve ter sido o suficiente para empurrar alguém já fragilizado para o abismo. Mas aparentemente Mick Prentice, afinal, não havia ido para Nottingham. A questão,
pensou Karen, era se Andy Kerr sabia o que realmente havia acontecido com seu melhor amigo. E se ele estava envolvido no desaparecimento dele.
- E você nunca mais falou com Andy, depois daquele domingo? - ela perguntou.
- Não. Tentei telefonar para ele algumas vezes, mas só caía na secretária eletrônica. Eu não tinha telefone onde estava morando, então ele não tinha como
me ligar de volta. Minha mãe me disse que o médico lhe dera uma licença do trabalho, por causa da depressão, mas isso foi tudo que eu soube.
- Você acha que é possível que ele e Mick tenham ido a algum lugar juntos?
- O quê? Você quer dizer que tenham dado as costas para todo mundo e ido em direção ao pôr do sol, como Butch Cassidy e Sundance Kid?
Karen recuou.
- Não exatamente assim. Mas como se os dois tivessem se fartado e não conseguissem ver outra saída. Não há dúvida de que Andy estava com problemas. E você
sugeriu que Mick e Jenny também não estavam se entendendo. Talvez eles tenham se decidido por um rompimento limpo.
Ela podia ouvir Angie respirando, no outro lado do mundo.
- Andy não faria isso conosco. Ele jamais teria nos magoado dessa forma.
- Mick poderia tê-lo convencido? Você disse que eles eram amigos desde a escola. Quem era o líder? Quem era o seguidor? Sempre há um que lidera e outro que
segue. Você sabe disso, Angie. Mick era o líder? - Ninguém conseguia ser mais insistente do que Karen, quando estava inspirada.
- Acho que sim. Mick era o extrovertido, Andy era muito mais quieto. Mas eles formavam uma dupla. Estavam sempre metidos em problemas, mas não de forma negativa.
Não com a polícia. Apenas enrolados na escola. Eles sabotavam as experiências de química com fogos de artifício. Grudavam a tampa da mesa da professora. Andy era
bom com as palavras, e Mick era artístico, então eles imprimiam pôsteres com anúncios falsos da escola. Ou Mick falsificava bilhetes dos professores, dando aos dois
permissão para sair das aulas de que eles não gostavam. Ou bagunçavam a biblioteca, trocando as capas dos livros. Eu teria um ataque de nervos se tivesse alunos
como eles. Mas eles amadureceram. Na época da greve, os dois já estavam assentados na vida. - Havia mais do que um toque de pesar em sua voz. - Portanto, sim, teoricamente,
Mick poderia ter convencido Andy a dar no pé. Mas não teria sido por muito tempo. Eles teriam voltado. Não poderiam ficar longe. Tinham raízes profundas demais.
- Você cortou as suas - Karen observou.
- Eu me apaixonei por um neozelandês, e minha família inteira estava morta - Angie disse, simplesmente. - Eu não estava deixando para trás ninguém para chorar
por mim.
- É justo. Podemos voltar para o Mick? Você disse que Andy sugerira que havia problemas no casamento dele.
- Ela o obrigou a casar, sabe? Andy sempre achou que ela ficara grávida de propósito. Ela deveria estar tomando pílula, mas, incrivelmente, não funcionou
e, em seguida, Misha estava a caminho. Ela sabia que Mick vinha de uma família decente, o tipo de gente que não foge das responsabilidades. Então, é claro que ele
se casou com ela.
Havia um toque de amargura em seu tom de voz que fez Karen se perguntar se ela havia sido apaixonada por Mick Prentice antes que seu neozelandês aparecesse.
- Não foi o melhor dos começos, então.
- No início, eles pareciam bem felizes. - A admissão rancorosa de Angie custou a vir. - Mick a tratava como uma princesinha, e ela se aproveitava disso. Mas
não gostou nada quando chegaram os tempos difíceis. Achei, na época, que ela o havia forçado a furar a greve porque tinha se cansado de viver na miséria.
- Mas ela sofreu muito, depois que ele foi embora - disse Karen. - Foi um estigma terrível ser a esposa de um fura-greve. Ela não teria permitido que ele
a deixasse enfrentar aquilo sozinha.
Angie emitiu um ruído de desdém.
- Ela não tinha ideia de como seria, até que aconteceu. Ela não entendia. Não era das nossas, sabe? As pessoas falam da classe trabalhadora como se fosse
um bolo só, mas as linhas demarcatórias são tão bem definidas quanto em qualquer outra classe. Ela nasceu e foi criada em East Wemyss, mas não era uma de nós. Seu
pai não sujava as mãos. Ele trabalhava na cooperativa. Ficava atrás de um balcão de loja. Vestia camisa e gravata para trabalhar. Aposto que ele nunca votou no Partido
Trabalhista na vida. Então, não tenho certeza de que ela entendesse bem o que iria acontecer com ela, se Mick entrasse em greve.
Fazia sentido. Karen compreendia visceralmente o que Angie estava dizendo. Ela conhecia pessoas assim em sua própria comunidade. Pessoas que não se encaixavam em
lugar algum, que tinham a bunda calejada de tanto ficarem sentadas em cima do muro. Acrescentava peso à ideia de que Mick Prentice poderia ter fugido da greve. Exceto
pelo fato de ele não ter feito isso.
- O negócio, Angie, é que parece que Mick não fugiu da greve, naquela noite. Nossos inquéritos preliminares indicam que ele não se uniu àqueles cinco homens
que foram para Nottingham.
Um silêncio chocado. Então, Angie disse:
- Ele poderia ter ido para outro lugar, sozinho.
- Ele não tinha dinheiro. Nem um meio de transporte. Não levou nada consigo quando saiu naquela manhã, além de seu material de pintura. Seja o que for que
aconteceu com ele, não acho que ele tenha fugido da greve.
- Então, o que aconteceu com ele?
- Ainda não sei - disse Karen. - Mas planejo descobrir. E esta é a pergunta que preciso começar a fazer: vamos supor que Mick não tenha furado a greve. Quem
poderia ter motivos para querê-lo fora do caminho?
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Nottingham
Femi Otitoju digitou o quarto endereço no Google Earth e estudou o resultado.
- Vamos, Fem - resmungou Mark Hall. - O inspetor-chefe está de olho na gente. Ele está se perguntando que diabo você está fazendo, brincando com o computador,
depois de ele ter nos mandado numa missão.
- Estou calculando a ordem mais eficiente para fazer as entrevistas, assim não teremos que perder a metade do dia voltando aos lugares. - Ela olhou para os
quatro nomes e endereços fornecidos por um detetive de Fife e os numerou de acordo com sua lógica. - E eu já falei: não me chame de Fem. - Ela imprimiu a lista e
a dobrou com esmero, guardando-a em sua impecável bolsa de mão. - Meu nome é Femi.
Mark girou os olhos e a seguiu, saindo do escritório de Revisão de Casos Arquivados, lançando um sorriso nervoso para o inspetor-chefe Mottram no caminho. Ele havia
esperado ansiosamente por sua transferência para o Departamento de Investigações Criminais, mas, se tivesse sido avisado de que isso significaria trabalhar com Femi
Otitoju, ele poderia ter reconsiderado a questão. O comentário na delegacia, quando ambos ainda usavam uniformes, era que, no caso de Otitoju, a sigla AP (agente
policial) queria dizer Além da Perfeição. Seu uniforme sempre fora imaculado e os sapatos, lustrados no padrão militar. Suas roupas civis seguiam o mesmo estilo:
um discreto
terninho cinza impecavelmente passado, camisa de um branco ofuscante, cabelo impecável. E sapatos mais polidos que um espelho. Tudo que ela fazia era dentro das
regras;
tudo era preciso. Não que Mark tivesse algo contra as coisas serem feitas adequadamente. Mas ele sempre acreditara que havia espaço para a espontaneidade, principalmente
numa entrevista. Se a pessoa com quem você estivesse falando saísse pela tangente, não havia mal algum em segui-la por um tempo. Às vezes, era entre as tangentes
que a verdade estava oculta.
- Então, esses quatro eram mineiros de Fife que furaram a greve para vir trabalhar nas minas daqui? - ele perguntou.
- Exatamente. Originalmente, havia cinco, mas um deles, Stuart McAdam, morreu há dois anos, de câncer de pulmão.
Como é que ela se lembrava daquelas coisas? E por que se importava em memorizá-las?
- E quem você vai ver primeiro?
- William John Fraser. Conhecido como Billy. Cinquenta e três anos, casado, dois filhos adultos, um na Universidade de Leeds, o outro em Loughborough. Ele
é eletricista autônomo agora. - Ela pendurou a bolsa no ombro. - Eu dirijo; sei aonde estamos indo.
Saíram para o estacionamento descoberto atrás da delegacia e se dirigiram para um carro sem identificação de uso comum do DIC (Departamento de Investigação Criminal).
Mark sabia que o carro estaria cheio de lixo deixado por outros policiais. Conforme descobria, o DIC e os carros eram como cães e postes.
- Ele não vai estar no trabalho agora?
Ele abriu a porta do passageiro e constatou que o assoalho do carro estava coberto de embalagens de sanduíches, latas de Coca-Cola vazias e cinco papéis de chocolate
Snickers. Algo branco esvoaçou no canto de sua visão periférica. Otitoju sacudia uma sacolinha plástica vazia.
- Tome - ela disse. - Enfie o lixo aqui para eu jogar na lixeira.
Mark pensou que, afinal, ela servia para alguma coisa. Seguiram pela
estrada principal, ainda movimentada mesmo depois da hora do rush matinal, e foram na direção oeste. A estrada era margeada por casas de tijolos vermelhos sujos
e pelo tipo de comércio que mal conseguia sobreviver, devido às opções mais sofisticadas em outros lugares. Lojas de conveniência,
salões de manicure, lojas de ferramentas, lavanderias, lanchonetes de fast-food e cabeleireiros. Era deprimente passar por ali. Mark ficou agradecido por seu apartamento
no centro da cidade, em uma fábrica de rendas que fora reformada. Podia ser pequeno, mas ele não tinha de lidar com essa pobreza em sua vida pessoal. E havia um
excelente restaurante chinês bem na esquina, que entregava em domicílio.
Quinze minutos percorrendo a estrada que contornava a cidade e eles viraram para um enclave de casinhas geminadas. Pareciam ter sido construídas na década de 1930;
sólidas, despretensiosas e de boa proporção. A casa de Billy Fraser ficava num terreno de esquina, com um jardim considerável e bem cuidado.
- Morei nesta cidade a vida toda e nem sequer sabia que este lugar existia - comentou Mark.
Ele seguiu Otitoju pela entrada da casa. A porta foi aberta por uma mulher que não podia ter mais de um metro e cinquenta de altura. Tinha a aparência de alguém
que já perdera sua melhor forma: mechas grisalhas no chanel castanho-claro, o queixo começando a ficar flácido, e alguns quilos a mais do que o ideal. Mark achou
que ela até que estava bem para a idade. Sua abordagem foi direta, antes que Otitoju tivesse a chance de assustá-la.
- Sra. Fraser?
A mulher assentiu, parecendo ansiosa.
- Sim, sou eu. - Sotaque local, notou Mark. Então, ele não havia trazido uma esposa de Fife. - E vocês são...?
- Sou Mark Hall, e esta é minha colega, Femi Otitoju. Somos policiais e precisamos conversar com Billy. Não é nada para se preocupar - acrescentou rapidamente,
ao ver o olhar de pânico no rosto da Sra. Fraser. - Uma pessoa que ele conhecia, lá em Fife, foi dada como desaparecida, e nós precisamos fazer algumas perguntas
a Billy.
A mulher balançou a cabeça.
- Você vai perder seu tempo, meu bem. Billy não manteve contato com ninguém de Fife a não ser os rapazes que vieram com ele para cá. E isso já faz mais de
vinte anos.
- O homem no qual estamos interessados desapareceu há mais de vinte anos - Otitoju disse, asperamente. - Então, precisamos falar com seu marido. Ele está
em casa?
Mark sentiu vontade de chutá-la, ao ver o rosto da Sra. Fraser se fechar para eles. Otitoju, definitivamente, não havia entrado na fila da simpatia.
- Ele está no trabalho.
- Você poderia nos dizer onde ele está trabalhando, minha flor? - perguntou Mark, tentando recuperar o rumo da conversa.
Ele quase podia enxergar o debate mental no rosto da mulher.
- Espere um pouco - ela disse, enfim. Voltou com uma agenda grande aberta na página daquele dia. Virou-a para que ele a olhasse. - Aqui está.
Otitoju já estava anotando o endereço em sua preciosa folha de papel. A Sra. Fraser viu os nomes.
- Vocês estão com sorte - ela disse. - Johnny Ferguson está trabalhando com ele hoje. Vocês poderão matar dois coelhos com uma cajadada só. - Pela expressão
em seu rosto, ela não estava muito convencida de que fosse apenas uma metáfora.
Os dois ex-mineiros estavam trabalhando a apenas cinco minutos de carro dali, reformando uma loja na rua principal.
- De casa de espetinhos de carne a oficina de molduras de quadros num passe de mágica - disse Mark, lendo as placas.
Fraser e Ferguson trabalhavam duro. Fraser abria um canal para passar os fios elétricos enquanto Ferguson derrubava o banco que havia em uma das paredes para facilitar
os clientes que compravam para viagem. Ambos pararam o que estavam fazendo quando os dois policiais entraram, olhando-os cautelosamente. Era engraçado, pensou Mark,
como algumas pessoas sempre reconheciam policiais instantaneamente, ao passo que outras pareciam ignorar quaisquer sinais que ele e seus colegas pudessem emitir.
Não tinha nada a ver com ser culpado ou inocente, como ele havia pensado, ingenuamente, no começo. Era só um instinto para identificar o caçador.
Otitoju os apresentou e explicou por que estavam ali. Fraser e Ferguson pareceram confusos.
- Por que alguém pensaria que ele veio conosco? - perguntou Ferguson.
- Mais objetivamente, por que alguém pensaria que nós o traríamos?
- Billy Fraser passou as costas da mão pela boca, num gesto de repulsa. -
Mick Prentice achava que nós estávamos abaixo dele. Mesmo antes de nós furarmos a greve, ele desprezava a gente. Achava que era melhor do que nós.
- Por que ele pensaria isso? - Mark perguntou.
Fraser tirou um maço de Bensons do bolso do macacão. Antes que ele pudesse pegar um cigarro, Otitoju já havia colocado a mão macia sobre a aspereza da dele.
- Isso agora é contra a lei, Sr. Fraser. Este é um local de trabalho. O senhor não pode fumar aqui.
- Ah, puta que pariu - Fraser reclamou, virando-se enquanto enfiava os cigarros de volta no bolso.
- Por que Mick Prentice achava que era melhor do que vocês? - Mark perguntou novamente.
Ferguson aceitou o desafio.
- Alguns homens entraram em greve porque o sindicato mandou que fizessem isso. E outros porque estavam convencidos de sua razão e de que sabiam o que era
melhor para o restante de nós. Mick Prentice era um dos que achavam que sabiam mais do que os outros.
- Isso - Fraser concordou, com amargura. - E ele tinha seus amigos do sindicato para cuidarem dele. - Ele esfregou o polegar e o indicador no gesto universal
que representava dinheiro.
- Não entendo - disse Mark. - Sinto muito, companheiro, sou jovem demais para me lembrar da greve. Mas achei que um dos maiores problemas era que vocês não
recebiam salário-greve.
- Você está certo, filho - disse Fraser. - Mas, por algum tempo, os rapazes que participavam dos piquetes móveis recebiam dinheiro vivo. Então, quando havia
qualquer necessidade de ir aos piquetes, eram sempre os mesmos que recebiam autorização. E se você não servisse para aquilo, não havia nada mais para você. Acontece
que o Mick servia mais do que a maioria. Seu melhor amigo era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores, percebe?
- Era mais difícil para uns do que para outros - acrescentou Ferguson. - Imagino que o amiguinho de Prentice lhe dava uma graninha ou um pacote de comida
quando terminava o dinheiro dos piquetes. A maioria de nós não tinha tanta sorte. Portanto, não, Mick Prentice não veio conosco. E Billy tem razão. Nós não o teríamos
aceitado, se ele tivesse pedido para vir.
Otitoju andava pela sala, vistoriando o trabalho deles como se fosse uma inspetora de obras.
- No dia em que vocês partiram... Vocês chegaram a ver Mick Prentice?
Os dois homens trocaram um olhar que pareceu furtivo para Mark. Ferguson, rapidamente, sacudiu a cabeça.
- Mais ou menos - ele disse.
- Como é possível ver alguém "mais ou menos"? - Otitoju inquiriu, virando-se na direção deles.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984
Johnny Ferguson estava no escuro, na janela do quarto, de onde podia ver a estrada principal que atravessava o vilarejo. O quarto não estava frio, mas ele tiritava
um pouco, e a mão que segurava o cigarro enrolado tremia, recortando a elevação suave da fumaça.
- Vamos, Stuart - ele resmungou a meia-voz. Deu outra tragada no cigarro e olhou novamente para o relógio barato em seu pulso. Dez minutos de atraso. Seu
pé direito começou, involuntariamente, a tamborilar no chão.
Nada se movia. Ainda não eram nove horas, mas quase não havia luz. As pessoas não tinham dinheiro para pagar a eletricidade. Elas iam até o Serviço Social para usufruir
um pouco de luz e de aquecimento, ou iam para a cama, esperando dormir o suficiente para que o pesadelo tivesse terminado quando despertassem. Pela primeira vez,
entretanto, o silêncio das ruas não incomodou Ferguson. Quanto menos pessoas testemunhassem o que aconteceria naquela noite, melhor. Ele sabia exatamente o que estava
prestes a fazer, e estava morrendo de medo.
De repente, viu um par de faróis virando a esquina da Main Street. Contra as luzes fracas da rua, Ferguson pôde definir a silhueta de uma van Transit. Modelo antigo,
não o novo, que a polícia usava para transportar as tropas em suas operações contra os mineiros. Conforme a van se aproximou, ele pôde ver que era de cor escura.
Finalmente, Stuart havia chegado.
Ferguson apagou o cigarro. Deu uma última olhada no quarto em que havia dormido nos últimos três anos, desde que alugara aquela casinha minúscula. Estava escuro
demais para ver muita coisa, mas, também, ali
não havia muito o que ver. O que não podia ser vendido tinha sido quebrado para usar como lenha. Agora só havia o colchão no assoalho com um cinzeiro e um livro
rasgado de Sven Hassel ao lado. Nada que se arrependeria de abandonar. Helen já partira havia muito tempo, então, ele podia muito bem dar as costas para aquele bando
de desgraçados.
Desceu ruidosamente as escadas até o andar de baixo e abriu a porta bem no instante em que Stuart ia bater.
- Preparado? - perguntou-lhe Stuart.
Um suspiro profundo:
- Mais preparado, impossível.
Ele empurrou uma bolsa de viagem com o pé na direção de Stuart, agarrou a outra e apanhou também um saco preto de lixo. Dez anos de merda trabalhando na mina de
carvão e aquilo era tudo que tinha.
Deram dois passos, dos quatro que os conduziriam até a van e, de repente, já não estavam mais sozinhos. Uma figura virou a esquina, apressadamente, como alguém que
estivesse numa missão. Alguns metros mais perto, e a forma se definiu como Mick Prentice. Ferguson sentiu como se uma gelada mão lhe apertasse o peito. Era só o
que faltava! Prentice vir atacá-los, gritando insultos e fazendo com que todas as portas da rua se abrissem.
Stuart jogou a bolsa na traseira da van, onde Billy Fraser já estava acomodado sobre uma pilha de sacolas. Ele se virou para encarar Prentice, pronto para agir,
se fosse necessário.
Mas a raiva que tinham esperado que chovesse sobre eles não veio. Em vez disso, Prentice apenas ficou ali parado, parecendo prestes a romper em lágrimas. Olhou para
eles e balançou a cabeça.
- Não, rapazes. Não. Não façam isso - disse.
Ele continuou repetindo aquilo. Ferguson mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que os atormentava, convocando-os e incitando-os para que continuassem
leais ao sindicato. Isso era, pensou ele, uma amostra de como aquela greve os havia derrotado.
Ferguson passou por Prentice, guardou suas bolsas no carro e sentou-se ao lado de Fraser, que puxou as portas para fechá-las atrás dele.
- Inacreditável, porra - disse Fraser.
- Parece que ele acabou de levar um soco no estômago - disse Ferguson. - O cara pirou de vez.
- Dê graças a Deus - disse Fraser. - A última coisa de que precisávamos era que ele explodisse como uma porra de um foguete e fizesse a casa cair para a gente.
- Ele ergueu a voz quando o motor deu a partida. - Vamos, Stu. A vida nova começa agora.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007
- Houve alguma testemunha desse encontro? - perguntou Otitoju.
- Stuart já morreu, então sou a única testemunha que resta - Fraser disse. - Eu estava na van. A porta traseira estava aberta e eu vi tudo. Johnny tem razão:
Prentice parecia devastado. Como se o que estávamos fazendo fosse uma afronta pessoal.
- Poderia ter sido bem diferente se, em vez de você na van, estivesse o Iain - disse Ferguson.
- Por que isso teria feito diferença? - perguntou Mark.
- Iain e ele eram amigos. Prentice talvez sentisse a necessidade de ten tar convencê-lo a mudar de ideia. Mas Iain foi o último a ser apanhado, então achei
que havíamos nos livrado de uma boa. E essa foi a última vez que vimos Prentice - disse Ferguson. - Ainda tenho família por lá. Ouvi dizer que ele tinha dado no
pé, mas supus que ele houvesse ido com aquele amigo dele, o cara do sindicato. Não consigo me lembrar do nome dele...
- Andy alguma coisa - disse Fraser. - Isso mesmo, quando você me disse que os dois estavam na lista de desaparecidos, pensei que tivessem decidido dar o fora
e começar do zero em outro lugar. Vocês têm que entender, a vida das pessoas estava se desfazendo, naquela época. Os homens faziam coisas que jamais imaginaríamos
que fossem capazes. - Ele se virou, caminhou até a porta e saiu, tirando os cigarros do bolso.
- Ele está certo - disse Ferguson. - E, na maioria das vezes, não queríamos pensar muito a respeito. Pensando bem, ainda não queremos. Portanto, a não ser
que haja mais alguma coisa, desejamos a vocês um bom dia. - Ele apanhou o pé de cabra e voltou à sua tarefa.
Incapaz de pensar em mais perguntas, Mark se dirigiu para a porta. Otitoju hesitou um instante, antes de segui-lo até o carro. Ficaram sentados em silêncio por um
momento e, então, Mark disse:
- Deve ter sido horrível.
- Não justifica o desrespeito deles pela lei - disse Otitoju. - A greve dos mineiros provocou um distanciamento entre nós e as pessoas a quem servimos. Eles
nos fizeram parecer brutais, apesar de termos sido provocados. Dizem que até a rainha ficou chocada com a batalha de Orgreave, mas o que as pessoas esperavam? Supostamente,
devemos manter a paz. Se as pessoas não consentem em ser policiadas, o que mais podemos fazer?
Mark a encarou.
- Você me assusta - ele disse.
Ela pareceu surpresa.
- Às vezes me pergunto se você está no trabalho certo - ela retrucou.
Mark olhou para longe.
- Então somos dois, minha flor.
Castelo de Rotheswell
A despeito de sua determinação de lidar com Sir Broderick Maclennan Grant exatamente da mesma forma como lidaria com qualquer outra pessoa, Karen tinha de admitir
que seu estômago não estava colaborando. A ansiedade sempre havia afetado seu sistema digestivo, tirando-lhe o apetite e obrigando-a a fazer visitas urgentes ao
banheiro.
- Se eu tivesse que fazer mais entrevistas assim, não precisaria me preocupar com dieta - disse, quando ela e Phil partiram em direção ao Castelo de Rotheswell.
- Ach, andam valorizando demais as dietas - disse Phil, da confortável posição de um homem cujo peso não se alterara desde que completara dezoito anos, independentemente
do que comesse ou bebesse. - Você está bem assim.
Karen queria acreditar nele, mas não conseguia. Ninguém acharia atraente sua figura gorducha, a não ser que estivesse muito mais necessitado de companhia feminina
do que Phil.
- Ah, sei.
Ela abriu sua maleta e revisou os pontos principais do arquivo do caso, para o bem de Phil. Mal havia chegado ao final de seu resumo quando viraram para tomar a
entrada de Rotheswell. Para além dos galhos secos de um grupo de árvores, podiam avistar o castelo, mas, antes de se aproximarem
mais, sua identidade precisava ser verificada. Tiveram de sair do carro e mostrar a credencial para a câmera do circuito fechado de televisão. Então, os sólidos
portões de madeira se abriram, permitindo que o carro chegasse a uma espécie de antecâmara de segurança. Phil foi dirigindo, enquanto Karen caminhava ao lado do
carro. Os portões de madeira se fecharam atrás deles, deixando-os presos num tipo de curral gigante. Dois guardas saíram de uma guarita e revistaram o exterior e
o interior do carro, a maleta de Karen e os bolsos do casaco esportivo de Phil.
- Ele tem um sistema de segurança melhor que o do primeiro-ministro - disse Karen, quando finalmente puderam seguir de carro até o castelo.
- É mais fácil conseguir um primeiro-ministro novo do que outro Brodie Grant - disse Phil. - De qualquer forma, aposto que é isso que ele pensa.
Ao se aproximarem da casa, um senhor de idade, vestindo um casaco impermeável e um quepe de lã, contornou a torre mais próxima e acenou para que eles seguissem até
o extremo do pátio de cascalho, em frente à casa. Quando eles finalmente estacionaram, ele já havia desaparecido, sem deixar-lhes outra opção senão a de se aproximar
das imensas portas de madeira com tachas de ferro, no centro da fachada.
- Onde está o Mel Gibson quando precisamos dele? - Karen resmungou, levantando uma aldrava pesada de ferro e deixando-a cair com um estrondo considerável.
- Parece um filme ruim.
- E nós ainda nem sabemos por que estamos aqui. - Phil parecia aborrecido. - Difícil entender o que poderia justificar tamanha preparação.
Antes que Karen pudesse responder, a porta se abriu, girando em dobradiças silenciosas. Uma mulher, que lembrara sua professora do primário, disse:
- Bem-vindos a Rotheswell. Sou Susan Charleson, assistente pessoal de Sir Broderick. Entrem.
Eles entraram em um saguão onde, não fosse pela grandiosa escadaria, poderia caber a casa inteira de Karen. Antes que pudessem observar mais do que as cores intensas
e a atmosfera de aconchego, eles foram impelidos a seguir por um amplo corredor, por uma curta distância.
- Suponho que seja a inspetora Pirie - disse Susan Charleson. - Mas não estou a par do nome e do posto do seu colega.
- Sargento detetive Phil Parhatka - ele disse, com toda a pompa de que era capaz diante da formalidade dela.
- Ótimo, agora posso apresentá-los - ela disse, dando um passo para o lado e abrindo uma porta.
Ela acenou para que entrassem em uma sala onde o DIC poderia facilmente realizar seu Bums' Supper* anual. Teriam de empurrar alguns dos móveis para junto das paredes,
só para abrir espaço para as danças tradicionais, mas, ainda assim, não ficariam muito apertados.
Havia três pessoas na sala, mas Karen instantaneamente se concentrou naquela que irradiava carisma. Brodie Grant podia já ter passado dos setenta anos, mas ainda
tinha mais glamour que as duas mulheres que o rodeavam. Ele estava próximo à notável cornija de pedra entalhada da lareira, com a mão esquerda sob o cotovelo direito
e a mão direita segurando casualmente um charuto fino; o rosto estava tão imóvel e impressionante quanto na capa de revista que ela havia encontrado, ao buscar por
imagens dele no Google. Vestia um paletó de tweed cinza e branco cujo caimento sugeria ser de caxemira e seda, em vez do tradicional Harris and Donegal, uma camiseta
polo preta, calça combinando e aquele tipo de sapatos que Karen somente havia visto nos pés de americanos ricos. Ela achava que se chamavam sapatos oxford ou algo
parecido. Assemelhavam-se a alguma coisa que se veria num boneco escocês com traje típico, e não num capitão da indústria. Ela estava tão ocupada observando seus
sapatos estranhos que quase perdeu as apresentações.
Ergueu os olhos a tempo de captar o levíssimo esboço de sorriso nos lábios de Lady Grant, elegante em um terninho de mescla de lã com o clássico colarinho aveludado
que, por alguma razão, Karen sempre associava a dinheiro e classe. O sorriso, porém, parecia estranhamente cúmplice.
Susan Charleson apresentou a outra mulher.
- Esta é Annabel Richmond, uma jornalista freelancer.
Agora, cautelosa, Karen assentiu, expressando reconhecimento. Que diabos fazia uma jornalista ali? Se havia uma coisa que Karen sabia a respeito de Brodie Grant
era que ele era tão alérgico à mídia que poderia entrar em choque anafilático a qualquer momento na presença de alguém da imprensa.
* O aniversário do poeta Robert Bums é comemorado em toda a Escócia com um jantar escocês tradicional, acompanhado por leituras de obras e canções de Bums, no dia 25 de janeiro. (N.T.)
Brodie Grant deu um passo à frente e indicou, com um ondular de seu charuto, que eles deveriam se sentar num sofá, a quilômetros de distância da lareira. Karen se
sentou na beirada, ciente de que aquele era o tipo de sofá que a engoliria, impossibilitando uma saída que não fosse extremamente desastrada.
- A Srta. Richmond está aqui a meu pedido, por dois motivos - disse Grant. - O primeiro deles explicarei em breve. O outro é que ela vai atuar como uma ligação
entre a mídia e a família. Não concederei entrevistas coletivas nem farei apelos sentimentais pela televisão. Ela é, portanto, a primeira a ser procurada se vocês
estiverem atrás de alguma coisa para alimentar os répteis.
Karen inclinou a cabeça.
- Essa é uma prerrogativa sua - ela disse, tentando soar como se estivesse fazendo uma concessão, por pura bondade. Qualquer coisa que lhe garantisse recuperar
um pouco do controle. - O Sr. Lees me comunicou que o senhor acredita que tenham surgido novas provas no que se refere ao sequestro de sua filha e neto. Correto?
- São novas provas, sim. Disso não resta dúvida. Susan?
Ele olhou para a assistente, com expectativa. Suficientemente esperta para antecipar-se às exigências do chefe, ela já avançava na direção deles com uma folha de
compensado de madeira, coberta por um plástico. Ao se aproximar, virou-a de frente para Karen e Phil.
Karen sentiu um lampejo de decepção.
- Esta não é a primeira vez que vemos algo assim - ela disse, estudando a impressão monocromática de um titereiro com suas marionetes sinistras. - Deparci-me
com três ou quatro exemplares, nos arquivos.
- Cinco, na verdade - disse Grant. - Mas nenhum como este. Todos os anteriores foram desconsiderados porque divergiam de alguma maneira dos originais. As
reproduções que o inspetor-chefe Lawson distribuiu para a mídia, na época, foram alteradas sutilmente para que pudéssemos eliminar quaisquer imitadores. Todos os
que apareceram desde então eram cópias das versões alteradas.
- E esta aqui é diferente? - perguntou Karen.
Grant assentiu.
- Exatamente, inspetora. É idêntica em todos os aspectos. Estou ciente de que a recompensa que ofereci seja uma tentação para certas pessoas.
Mantive minha própria cópia do original para que pudesse comparar com qualquer coisa que me fosse trazida diretamente. Como esta. - Ele deu um sorriso cansado. -
Não que eu precise de uma cópia. Jamais me esquecerei de nenhum detalhe. A primeira vez que pus os olhos nesta imagem, ela ficou gravada na minha memória.
Sábado, 19 de janeiro de 1985
Mary Grant serviu uma segunda xícara de café ao marido antes que ele percebesse que havia terminado a primeira. Ela vinha fazendo aquilo havia tantos anos que ainda
o surpreendia o fato de sua xícara precisar ser enchida tantas vezes, quando se hospedava em hotéis. Ele virou a página de seu jornal e resmungou.
- Enfim, uma notícia boa. Lord Wolfenden libertou-se do invólucro mortal.
A expressão de Mary era mais de resignação cansada do que de choque.
- Que coisa horrível de se dizer, Brodie.
Sem levantar os olhos, ele continuou:
- O homem fez do mundo um lugar pior, Mary. Portanto, não fico triste por ele ter partido.
Anos de casamento haviam eliminado a maior parte da beligerância de Mary Grant. Mas, mesmo que ela houvesse pensado em dizer alguma coisa, não teria tido a oportunidade.
Para a surpresa de ambos, a porta da sala de café da manhã se abriu de repente, sem nenhuma batida prévia, e Susan Charleson entrou quase correndo. Brodie deixou
cair o jornal sobre os ovos mexidos, notando-lhe as bochechas rosadas e a respiração ofegante.
- Desculpem-me - ela balbuciou. - Mas o senhor precisa ver isto. - Ela empurrou um grande envelope de papel manilha na direção dele. Na frente, liam-se seu
nome e endereço e as palavras "particular" e "confidencial" escritas em hidrocor preto, acima e abaixo.
- Em nome de Deus, o que é isto que não pode esperar até depois do café? - ele perguntou, enfiando dois dedos sob a aba do envelope, revelando um papel grosso
dobrado em quatro.
- Isto - disse Susan, apontando para o envelope. - Coloquei de volta no envelope porque não quis que mais ninguém visse.
Com um resmungo de impaciência, Grant pegou o papel e o desdobrou. Parecia um pôster de propaganda de um show macabro de marionetes. Totalmente em preto e branco,
um titereiro se inclinava sobre o palco, manipulando um grupo de marionetes que incluíam um esqueleto e um bode. Lembrou-lhe aquele tipo de impressões que ele vira
uma vez, num programa da TV sobre a arte que Hitler odiava. Enquanto pensava isso, seus olhos examinaram a parte inferior do pôster. Onde se esperaria encontrar
detalhes sobre o show de marionetes havia uma mensagem muito diferente.
Seu capitalismo explorador e gerenciado está prestes a ser castigado.
Nós temos uma filha e um neto em nosso poder. Faça exatamente o que
mandarmos se quiser vê-los novamente. Nada de polícia. Apenas siga sua
vida normalmente. Estamos te observando. Entraremos em contato com você
em breve.
Pacto Anarquista da Escócia.
- É alguma brincadeira de mau gosto? - perguntou Grant, atirando-o sobre a mesa e empurrando a cadeira para trás. Quando ele se levantou, Mary apanhou o pôster
e, então, o deixou cair, como se tivesse queimado seus dedos.
- Ah, meu Deus - ela arfou. - Brodie?
- É um trote - ele disse. - Algum filho da puta doente está tentando nos assustar.
- Não - disse Susan. - Tem mais. Ela apanhou o envelope no chão e sacudiu-o pára que uma fotografia Polaroid caísse de dentro dele. Em silêncio, entregou-a
a Grant.
Ele viu sua única filha amarrada a uma cadeira. Um pedaço de fita adesiva cobria-lhe a boca. O cabelo estava despenteado e uma mancha de sujeira, ou um hematoma,
marcava-lhe a face esquerda. Entre ela e a câmera, uma mão enluvada segurava a primeira página do Daily Record do dia anterior para não deixar margem a dúvida. Ele
sentiu as pernas cederem e deixou-se cair na cadeira, as pálpebras tremendo enquanto tentava recuperar o autocontrole. Mary estendeu a mão pedindo a fotografia,
mas ele sacudiu a cabeça e segurou-a de encontro ao peito.
- Não - ele disse. - Não, Mary.
Houve um longo silêncio e, então, Susan disse:
- O que o senhor quer que eu faça?
Grant não conseguia articular as palavras. Não sabia o que estava pensando, o que estava sentindo nem o que queria dizer. Era uma experiência tão estranha e improvável
quanto usar drogas alucinógenas. Ele sempre estava no controle de si mesmo, assim como da maior parte do que acontecia ao seu redor. Sentir-se impotente era algo
que não lhe acontecia havia tanto tempo, que até se esquecera de como era lidar com aquilo.
- O senhor quer que eu telefone para o chefe de polícia? - perguntou Susan.
- Aqui fala para não fazer isso - disse Mary. - Não podemos colocar em risco a vida de Catriona e Adam.
- Ao diabo com isso - disse Grant, numa pálida aproximação à sua voz normal. - Não vou ser manipulado por um bando de anarquistas malditos. - Ele se forçou
a levantar, sua força de vontade superando o medo que já o devorava. - Susan, telefone para o chefe de polícia. Explique a situação. Diga a ele que quero o melhor
agente que tiver, que não se pareça com um policial. Quero que ele esteja no meu escritório dentro de uma hora. E, agora, vou para o escritório. Seguir com minha
vida normal, caso eles estejam realmente observando.
- Brodie, como você pode fazer isso? - Com o rosto lívido, Mary parecia chocada. - Temos que fazer o que eles mandarem.
- Não temos, não. Apenas temos que aparentar estar fazendo. - Agora, sua voz estava mais forte. Ter estabelecido os princípios básicos de um plano lhe dera
forças para se recuperar. Ele poderia lidar com o medo desde que pudesse se obrigar a acreditar que estava fazendo alguma coisa para resolver a situação. - Susan,
comece a tomar as providências. - Ele foi até Mary e lhe deu um tapinha no ombro. - Vai ficar tudo bem, Mary. Eu prometo.
Se ele não visse o rosto dela, não teria de lidar com suas dúvidas ou seu pavor. Já tinha o suficiente com que se preocupar, sem aquela carga extra.
Dysart, Fife
Outros homens teriam caminhado de um lado para o outro, esperando que a polícia chegasse. Brodie Grant nunca fora de desperdiçar energia em
atividades inúteis. Permaneceu sentado em sua cadeira no escritório, virada de costas para a escrivaninha, para que pudesse ver a vista espetacular por cima do estuário
do Forth até Berwick Law, Edimburgo e as montanhas Pentlands. Olhou por sobre a água cinzenta, ordenando seus pensamentos para evitar qualquer perda de tempo quando
a polícia chegasse. Ele detestava desperdiçar qualquer coisa, mesmo aquilo que podia ser facilmente reposto.
Susan, que o havia seguido para o trabalho na hora de costume, entrou pela porta que separava seu escritório do dele.
- A polícia está aqui - ela disse. - Devo fazê-los entrar?
Grant se virou em sua cadeira.
- Sim. Depois, deixe-nos a sós.
Ele notou o olhar de surpresa no rosto dela. Estava acostumada a participar de todos os seus segredos, a conhecer mais coisas do que Mary se daria ao trabalho de
saber. Mas, dessa vez, ele queria que o círculo fosse o menor possível. Até mesmo Susan seria demais.
Ela fez entrar dois homens vestidos com macacão de pintor e, então, fechou dramaticamente a porta atrás de si. Grant ficou satisfeito com o disfarce.
- Obrigado por terem vindo tão rápido. E tão discretamente - ele disse, observando os dois. Pareciam jovens demais para uma tarefa tão importante. O mais
velho, magro e moreno, tinha provavelmente uns trinta e poucos anos, e o outro, louro e avermelhado, uns vinte e tantos.
O moreno falou primeiro. Para surpresa de Grant, sua apresentação atingiu diretamente suas restrições.
- Sou o inspetor James Lawson - ele disse. - E este é o agente Rennie. Fomos instruídos pessoalmente pelo chefe de polícia. Sei que o senhor deve estar pensando
que sou muito novo para comandar uma operação como esta, mas fui escolhido devido à minha experiência. No ano passado, a esposa de um dos jogadores do time de futebol
East Fife foi sequestrada. Conseguimos resolver o assunto sem que ninguém se machucasse.
- Não me lembro de ter ouvido falar sobre isso - disse Grant.
- Fomos muito bem-sucedidos em manter segredo - disse Lawson, com o mais tênue sorriso de orgulho no rosto.
- Não houve julgamento? Como vocês conseguiram manter isso fora dos jornais?
Lawson deu de ombros.
- O sequestrador se confessou culpado. O caso estava resolvido e encerrado antes que a imprensa sequer percebesse. Somos bastante bons em lidar com a imprensa,
aqui em Fife. - De novo, um sorriso ligeiro. - Como pode ver, senhor, tenho uma experiência relevante.
Grant lançou-lhe um olhar demorado e avaliador.
- Fico satisfeito em saber disso. - Tirou uma pinça da gaveta e, delicadamente, deslocou a folha de papel que havia colocado por cima do pôster de resgate.
- Foi isto que chegou pelo correio, hoje de manhã. Acompanhado por isto... - Erguendo-a cuidadosamente pelas extremidades, ele virou a foto Polaroid.
Lawson se aproximou e os analisou atentamente.
- E o senhor tem certeza de que esta é sua filha?
Pela primeira vez, o autocontrole de Grant vacilou por uma fração de segundo.
- Você acha que não conheço minha própria filha?
- Não é isso, senhor. Mas, para que fique registrado, preciso ter certeza de que o senhor tem certeza absoluta.
- Tenho certeza.
- Neste caso, não há qualquer dúvida - disse Lawson. - Quando foi a última vez que o senhor viu ou falou com sua filha?
Grant fez um gesto de impaciência com a mão.
- Não sei. Suponho que a tenha visto pela última vez há umas duas semanas. Ela trouxe Adam para nos visitar. A mãe dela deve ter conversado com ela ou a visto
desde então. Você sabe como são as mulheres.
A culpa repentina que ele sentiu foi mais uma vibração lenta do que uma pontada. Ele não se arrependia de nada do que havia feito ou dito; só se arrependia de que
houvesse provocado uma ruptura entre ele e Cat.
- Falaremos com sua esposa - disse Lawson. - Será útil para nós termos uma ideia de quando isso aconteceu.
- Catriona é dona de seu próprio negócio. Creio que alguém perceberia, se sua galeria estivesse fechada. Deve haver centenas, milhares de pessoas que passam
de carro por ali todos os dias. Ela era bem escrupulosa com relação à placa de aberto e fechado. - Ele deu um sorriso rígido e frio.
- Ela é boa para negócios. - Puxou um bloco de anotações em sua direção e escreveu o endereço e as indicações de como chegar à galeria de Catriona.
- É claro - disse Lawson. - Mas achei que o senhor não quisesse que os seqüestradores soubessem que nos procurou.
Grant foi pego de surpresa por sua própria estupidez.
- Desculpe-me. Você tem razão. Não estou raciocinando direito. Eu...
- Esse é meu dever, não seu. - Havia gentileza no tom de voz de Lawson. - O senhor pode estar certo de que não faremos perguntas que levantem suspeitas. Se
não conseguirmos descobrir nada de forma aparentemente natural, deixaremos de lado. A segurança de Catriona e Adam está acima de tudo. Isso eu prometo ao senhor.
- É uma promessa que espero que cumpra. Agora, qual é o próximo passo? - Grant estava novamente no comando de si mesmo, porém desconcertado pelas emoções
que o desequilibravam.
- Colocaremos uma escuta e um rastreador em suas linhas telefônicas para o caso de eles tentarem entrar em contato com o senhor através do telefone. E vou
precisar que o senhor vá à casa de Catriona. É o que os seqüestradores esperariam. O senhor terá de ser os meus olhos dentro da casa. O senhor deverá registrar qualquer
coisa fora do lugar, qualquer coisa incomum. Terá de levar uma maleta ou algo assim para que, se por exemplo, houver duas canecas sobre a mesa, o senhor possa trazê-las
para nós. Também precisaremos de alguma coisa de Catriona para obtermos suas impressões digitais. Uma escova de cabelo seria ideal, pois teríamos também um pouco
de seu cabelo. - Lawson parecia ansioso.
Grant balançou a cabeça.
- Você terá que pedir à minha esposa para fazer isso. Não sou muito observador. - Não queria admitir que só havia cruzado a porta da casa da filha uma vez
e, mesmo assim, com relutância. - Ela ficará feliz por ter alguma coisa a fazer. Por se sentir útil.
- Muito bem, providenciaremos isso. - Lawson tocou o pôster com uma caneta. - Aparentemente esse é mais um ato político do que pessoal. E vamos verificar
informações a respeito de qualquer grupo que possa ter os recursos e a determinação para planejar algo assim. Preciso lhe perguntar, no entanto... o senhor teve
algum desentendimento com qualquer grupo de interesse específico? Uma organização que pudesse ter alguns caras mais exaltados em suas facções, capazes de achar que
era uma boa ideia fazer isso?
Grant já havia se perguntado aquilo enquanto esperava pela polícia.
- A única coisa em que posso pensar é um problema que tivemos há mais ou menos um ano com uma dessas organizações do tipo "salvem as baleias". Nós tínhamos
um empreendimento imobiliário em Black Isle que eles alegavam que afetaria de forma adversa o habitat de uns golfinhos no Moray Firth. Tudo bobagem, é claro. Eles
tentaram deter nosso pessoal da construção... aquela coisa de sempre, deitando-se em frente às retroescavadeiras. Um deles se machucou. Foi culpa de sua própria
estupidez, como disseram as autoridades. Mas foi apenas isso. Eles se foram, com o rabo entre as pernas, e nós continuamos com o empreendimento. E, a propósito,
os golfinhos estão perfeitamente bem.
Lawson ficou visivelmente animado com a informação de Grant.
- Mesmo assim, teremos que verificar essa possibilidade - ele disse.
- A Srta. Charleson tem todos os arquivos. Ela poderá lhes dizer o que vocês precisarem.
- Obrigado. Também preciso lhe perguntar se existe alguém que possa ter algum motivo de reclamação pessoal contra o senhor. Ou contra alguém de sua família.
Grant balançou a cabeça.
- Já incomodei muita gente nesta vida. Mas não consigo pensar em algo que tenha feito capaz de levar alguém a fazer isso. Certamente isto se relaciona com
dinheiro, não com ódio. Todo mundo sabe que sou um dos homens mais ricos da Escócia. Não é nenhum segredo. Para mim, esse é o motivo óbvio por trás disso. Alguns
filhos da puta tentando pôr as mãos no meu dinheiro suado. E eles acham que é dessa forma que irão conseguir.
- É possível - concordou Lawson.
- É mais do que possível. É o mais provável. E nem morto vou deixar que escapem ilesos dessa. Quero minha família de volta, e quero que eles voltem sem ter
de ceder um milímetro a esses desgraçados! - Grant bateu na mesa com a mão espalmada e os dois policiais deram um pulo com o estrondo repentino.
- É por isso que estamos aqui - disse Lawson. - Faremos tudo que for possível para obter o resultado que o senhor deseja.
Naquele momento, a confiança de Grant ainda estava intacta.
- Não espero nada menos do que isso - ele disse.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
Ao ouvir o relato de Grant sobre aquela primeira manhã depois de o mundo ter mudado, o que mais chamou a atenção de Karen foi a suposição, por parte de todos, de
que tudo tinha a ver com Brodie Grant. Ninguém parecia haver considerado que a pessoa que estava sendo punida não era Grant, e sim sua filha.
- Catriona tinha algum inimigo?
Grant olhou-a, com impaciência.
- Catriona? Como ela poderia ter inimigos? Era uma mãe solteira e uma artesã do vidro. Não levava o tipo de vida que gerasse animosidade pessoal. - Com um
suspiro, ele apertou os lábios.
Karen disse a si mesma que não deveria se intimidar com sua atitude.
- Desculpe-me. Eu me expressei mal. Deveria ter perguntado se o senhor sabe de alguém a quem ela houvesse desagradado.
Grant dirigiu-lhe um pequeno gesto de satisfação, como se ela houvesse passado num teste que nem sequer sabia existir.
- O pai de seu filho. Ele estava, de fato, bastante contrariado. Mas nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim, e os seus colegas da polícia nunca puderam
encontrar nenhuma prova que o conectasse ao crime.
- O senhor está se referindo a Fergus Sinclair? - Karen perguntou.
- E quem mais poderia ser? Pensei que você tivesse se atualizado com relação ao caso - cobrou Grant.
Karen começava a sentir pena de qualquer pessoa que fosse obrigada a suportar o alto nível de irritação de Brodie Grant. Desconfiava que não fosse reservada apenas
para ela.
- Só existe uma menção a Sinclair no arquivo - ela disse. - Nas anotações de uma entrevista com Lady Grant, Sinclair é mencionado como suposto pai de Adam.
Grant bufou.
- Suposto? É claro que ele era o pai do garoto. Eles vinham se encontrando de maneira intermitente havia anos. Mas o que você quer dizer com só existe uma
referência a Sinclair? Deve haver mais. Eles foram até a Áustria para interrogá-lo.
- Áustria?
- Ele trabalhava lá. É formado em administração rural. Trabalhou também na França e na Suíça, mas voltou para a Áustria cerca de quatro anos atrás. Susan
pode lhe dar todos os detalhes.
- O senhor o tem vigiado? - O que não seria nenhuma surpresa, pensou Karen.
- Não, inspetora. Eu já lhe disse: nunca achei que Sinclair tivesse a coragem para fazer algo assim. Então, por que o vigiaria? A única razão pela qual sei
onde Sinclair mora é porque seu pai ainda é meu caseiro. - Grant balançou a cabeça. - Não posso acreditar que tudo isso não esteja nos arquivos.
Karen estava pensando a mesma coisa, mas não quis admitir.
- E, que o senhor saiba, havia mais alguém que Catriona pudesse ter desagradado?
O rosto de Grant estava tão cinzento quanto seu cabelo.
- Só a mim, inspetora. Olhe, é óbvio, pelo lugar onde apareceu esta nova prova, que isso não tem nada a ver pessoalmente com Cat. É obviamente político. O
que faz com que tenha a ver com meus princípios pessoais, e não com quem Cat possa ter incomodado.
- Então, onde foi que este pôster apareceu? - perguntou Phil.
Karen ficou agradecida pela interrupção. Ele era bom em interromper e guiar as entrevistas em direções mais produtivas quando ela estava correndo o risco de estancar.
- Em uma fazenda em ruínas na Toscana. Parece que o local vinha sendo usado por posseiros. - Ele estendeu o braço na direção da jornalista. - Este é o outro
motivo pelo qual a Srta. Richmond está aqui. Foi ela que o encontrou. Sem dúvida, vocês vão querer conversar com ela. - Ele indicou o pôster. - Também vão querer
levar isto com vocês. Imagino que farão alguns testes. E, inspetora...?
Karen recuperou o fôlego, diante da arrogância dele.
- Sim?
- Não quero ler a respeito disso no jornal amanhã cedo. - Ele olhou feio para ela como se a desafiasse a responder.
Karen se controlou por um momento, tentando compor uma resposta que abrangesse tudo que ela queria dizer e deixasse de fora qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.
A expressão de Grant mudou rapidamente.
- O que quer que comuniquemos à mídia, assim como o momento de qualquer comunicação, será uma decisão operacional - ela disse, por fim.
- Será tomada por mim e, quando apropriado, por meus oficiais superiores. Entendo plenamente como tudo isso é doloroso para o senhor, mas sinto muito. Temos
de basear nossas decisões naquilo que pensamos que, provavelmente, irá produzir o melhor resultado. O senhor pode nem sempre concordar, mas, infelizmente, não tem
nenhum direito de veto. - Ela esperou a explosão, mas esta não se fez. Supôs que ele a estivesse reservando para o Biscoito ou para os chefes dele.
Em vez disso, Grant assentiu.
- Confio em você, inspetora. Tudo que peço é que se comunique com a Srta. Richmond antes, para que possamos nos precaver contra a máfia. - Ele correu os dedos
pelos densos cabelos grisalhos num gesto que parecia bem ensaiado. - Tenho muita esperança de que, desta vez, a polícia chegue à verdade. Com todos os avanços nas
ciências criminais, vocês devem estar em vantagem com relação ao inspetor Lawson. - Ele se virou, claramente os dispensando.
- Creio que ainda teremos algumas perguntas a lhe fazer - disse Karen, determinada a não ceder todo o controle do encontro. - Se Catriona não tinha inimigos,
talvez o senhor pudesse pensar em alguns amigos dela que possam nos ajudar. O sargento Parhatka lhe informará quando eu quiser falar novamente com o senhor. Nesse
meio-tempo... Srta. Richmond?
A mulher inclinou a cabeça e sorriu.
- Estou à sua disposição, inspetora.
Até que enfim alguém por ali com uma vaga noção de como as coisas deveriam funcionar.
- Gostaria de vê-la no meu escritório esta tarde. Podemos marcar para as quatro horas?
- Qual é o problema em entrevistar a Srta. Richmond aqui? E agora? - perguntou Grant.
- Esta investigação é minha - disse Karen. - Conduzirei minhas entrevistas onde me convier. E, devido a outros inquéritos em andamento, me convém que seja
no meu escritório, esta tarde. Agora, se o senhor nos der licença.
Ela se levantou, notando o divertimento cauteloso da Lady Grant e a desaprovação sombria de Susan Charleson. O próprio Grant permaneceu imóvel feito uma estátua.
- Tudo bem, Susan, eu acompanho os policiais - disse Lady Grant, levantando-se rapidamente e caminhando em direção à porta antes que a assistente recuperasse
o autocontrole.
Enquanto a seguiam pelo corredor, Karen disse:
- Isso deve ser muito difícil para a senhora.
Lady Grant voltou-se para eles, andando de costas com a segurança de alguém que conhece cada centímetro de seu território.
- Por que você diz isso?
- Ver seu marido reviver uma época tão difícil... Eu não gostaria de ver alguém de quem eu gostasse passando por tudo isso.
Lady Grant pareceu confusa.
- Ele convive com isso todos os dias, inspetora. Pode ser que não o demonstre, mas não tira isso da cabeça. Às vezes o vejo olhando para nosso filho, Alec,
e sei que ele está pensando em como poderia ter sido, com Adam. Pensando no que perdeu. Ter algo novo em que focar é quase um alívio para ele.
Ela girou nos calcanhares e deu-lhes as costas novamente. Enquanto a seguiam, Karen encontrou o olhar de Phil e ficou surpresa com a raiva que viu ali.
- Ainda assim, a senhora não seria humana se uma parte sua não desejasse que nunca encontrássemos Adam são e salvo - Phil disse, a leveza do tom contrastando
diretamente com a severidade de sua expressão.
Lady Grant se deteve e voltou-se para eles, franzindo as sobrancelhas. Um rubor rosado subiu por seu pescoço.
- Que diabos você quer dizer com isso?
- Acho que a senhora sabe exatamente o que quero dizer, Lady Grant. Nós encontramos Adam e, de repente, seu filho Alec não é mais o único herdeiro de Brodie
- disse Phil. Era preciso ter coragem, pensou Karen, para assumir o papel de para-raios da investigação.
Por um momento, Lady Grant pareceu estar a ponto de estapeá-lo. Karen podia ver seu peito subindo e descendo com o esforço de se controlar. Finalmente, ela se obrigou
a assumir a pose habitual de civilidade.
- Na verdade - ela disse secamente -, você está vendo a situação precisamente pelo ângulo errado. O comprometimento absoluto de Brodie em descobrir o destino
de seu neto me enche de confiança com relação ao futuro de Alec. Um homem tão preso aos deveres para com sua própria
carne e seu próprio sangue jamais decepcionará nosso filho. Acredite se quiser, sargento, a busca de Brodie pela verdade me dá esperança. Não medo.
- Ela se virou nos calcanhares e marchou até a porta da frente, que manteve enfaticamente aberta para eles.
Depois que a porta se fechou, Karen disse:
- Caramba, Phil, por que você não diz o que realmente está pensando? O que provocou aquilo?
- Me desculpe. - Ele abriu a porta do passageiro para ela, uma pequena cortesia a que raramente se dava ao trabalho. - Eu já estava cheio de brincar de Miss
Marple, a detetive, e aquela palhaçada toda de crime na casa de campo. Tudo muito limpo e civilizado. Só queria ver se conseguia provocar uma reação honesta.
Karen sorriu.
- Acho que se pode dizer que conseguiu. Só espero que não sejamos atingidos pelas faíscas.
Phil bufou.
- Você não fica muito atrás, quando se trata de ser durona. "Esta investigação é minha" - ele a imitou, sem maldade.
Ela se acomodou no carro.
- É, tudo bem. A ilusão de estar no comando. Foi bom, enquanto durou.
Nottingham
As belezas do parque Nottingham Arboretum não só haviam sido obscurecidas como praticamente ficaram invisíveis com a chuva torrencial que cegava o agente Mark Hall
enquanto seguia Femi Otitoju, subindo pela trilha que levava ao Campanário Chinês. Ela finalmente havia mostrado alguma emoção, mas não era exatamente o que Mark
havia esperado.
Logan Laidlaw tinha ficado ainda menos contente do que Ferguson e Fraser ao vê-los. Ele não só se recusara a permitir que entrassem em seu apartamento, como lhes
dissera que não tinha a menor intenção de repetir o que já tinha contado à filha de Mick Prentice.
- Esta droga de vida é curta demais para desperdiçar minha energia falando duas vezes sobre a mesma coisa - ele dissera e, então, batera a porta na cara deles.
Otitoju havia ficado mais púrpura do que uma beterraba em conserva, respirando pesadamente pelo nariz. Cerrou os punhos e chegou a levar o pé para trás como se fosse
chutar a porta. Bastante violento, levando em conta que não havia muita violência nela. Mark colocara a mão em seu braço.
- Deixe estar, Femi. Ele está no direito dele. Não é obrigado a falar conosco.
Otitoju dera meia-volta, seu corpo inteiro tenso de raiva.
- Não deveria ser permitido - ela disse. - Eles deveriam ser obrigados a falar com a gente. Deveria ser contra a lei que as pessoas se recusassem a responder
a nossas perguntas. Deveria ser crime.
- Ele é uma testemunha, não um criminoso - disse Mark, assustado com a veemência dela. - Foi o que nos disseram em nosso treinamento: policiais por consentimento,
não por coerção.
- Isso não está certo - disse Otitoju, voltando furiosamente para o carro. - Eles esperam que a gente solucione crimes, mas não nos dão as ferramentas para
fazer o serviço. Que diabos ele pensa que é?
- Ele é alguém cuja opinião sobre a polícia foi gravada em pedra nos idos de 1984. Você nunca viu as reportagens de jornal dessa época? Policiais a cavalo
atacavam os piquetes como se fossem cossacos ou coisa parecida. Se usássemos hoje o cassetete daquele jeito, seríamos presos. Não foi um de nossos melhores momentos.
Portanto, não é de surpreender que o Sr. Laidlaw não queira falar conosco.
Ela balançou a cabeça.
- Faz com que eu me pergunte o que ele pode ter a esconder.
O trajeto da casa de Iain Maclean até o Arboretum, cruzando a cidade, não havia ajudado a melhorar o humor dela. Mark a alcançou.
- Deixe isso comigo, ok? - ele disse.
- Você acha que não sei conduzir uma entrevista?
- Não, não é isso. Mas conheço o suficiente sobre ex-mineiros para saber que são bastante machistas. Você viu como foi com Ferguson e Fraser... eles não ficaram
muito contentes com o fato de você fazer as perguntas.
Otitoju parou abruptamente e atirou a cabeça para trás, deixando que a chuva escorresse por seu rosto como lágrimas geladas. Recompondo-se, suspirou.
- Está bem. Vamos tirar vantagem de seus preconceitos. Você conduz a conversa. - Então, ela voltou a andar, dessa vez num passo mais comedido.
Chegaram ao Campanário Chinês e encontraram dois homens de meia-idade, vestindo macacão da prefeitura e abrigando-se da tempestade. Os pilares estreitos, que davam
suporte ao teto elegante, não ofereciam muita proteção aos respingos de chuva espalhados pelas rajadas de vento, mas era melhor do que ficar totalmente exposto.
- Estou procurando Iain Maclean - disse Mark, olhando um e outro.
- Sou eu - disse o mais baixo dos dois, com olhos azuis cintilando no rosto bronzeado. - E quem são vocês?
Mark apresentou os dois.
- Tem algum lugar aonde possamos ir tomar uma xícara de chá?
Os dois homens trocaram um olhar.
- Deveríamos estar podando as margens, mas estávamos prestes a desistir e voltar para as estufas - disse Maclean. - Não há nenhum café por aqui, mas vocês
podem nos acompanhar até as estufas, e nós preparamos o chá.
Dez minutos depois, eles estavam espremidos num canto, nos fundos de um amplo túnel de polietileno, e fora do caminho dos demais jardineiros, cujos olhares curiosos
se haviam acalmado ao perceberem que não haveria nada espetacular. Um forte cheiro de húmus pairava no ar, lembrando Mark do barracão no jardim de seu avô. Iain
Maclean segurou a xícara com as mãos enormes e esperou que eles falassem. Ele não havia mostrado qualquer surpresa com a chegada dos policiais e tampouco lhes havia
perguntado por que estavam ali. Mark desconfiava que Fraser ou Ferguson já o tivessem avisado.
- Queremos conversar com você sobre Mick Prentice - ele começou.
- O que tem o Mick? Não o vejo desde que nos mudamos para o sul - disse Maclean.
- Nem você nem mais ninguém - disse Mark. - Todos presumiram que ele houvesse viajado para o sul com vocês, mas não é isso que estão nos dizendo hoje.
Maclean coçou as cerdas prateadas que cobriam sua cabeça num corte de cabelo militar.
- É, bem. Eu tinha ouvido falar que as pessoas achavam isso, lá em Newton. É só para mostrar a você como as pessoas sempre preferem pensar o pior. De jeito
nenhum Mick teria se juntado a nós. Não imagino como alguém que o conhecesse poderia pensar isso.
- E você nunca os corrigiu?
- Para quê? Na cabeça deles, eu sou um mineiro fura-greve e desonesto. Nada do que eu pudesse dizer em defesa de alguém teria muito peso, lá em Newton.
- Para ser justo, não é apenas uma questão de tirar conclusões precipitadas. A esposa dele recebia dinheiro ocasionalmente, depois que ele foi embora. O carimbo
do correio era de Nottingham. Essa é uma das principais razões pelas quais todos acharam que ele houvesse feito o impensável.
- Não sei qual é a explicação para isso. Mas te digo uma coisa: seria mais fácil Mick Prentice ir para a Lua do que furar a greve.
- Isso é o que todos nos dizem - disse Mark. - Mas as pessoas fazem coisas que parecem insólitas, quando estão desesperadas. E, segundo consta, Mick Prentice
estava desesperado.
- Não tanto a ponto de fazer isso.
- Você fez.
Maclean olhou fixamente para sua xícara.
- Fiz. E nunca me envergonhei tanto de algo. Mas minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. Eu sabia que não havia maneira alguma de trazer mais
um bebê àquela vida. Então, fiz o que fiz. Eu conversei a respeito com o Mick, antes. - Ele lançou um olhar rápido a Mark. - Éramos amigos, ele e eu. Estudamos juntos
na escola. Eu queria explicar para ele por que estava fazendo aquilo. - Ele suspirou. - Ele disse que entendia a minha decisão. Que ele também tinha vontade de ir
embora. Mas que furar greve não era para ele. Não sei para onde ele foi; mas eu sei que, com certeza, não foi para outra mina.
- Quando você soube que ele havia desaparecido?
Ele contorceu o rosto enquanto pensava.
- É difícil dizer. Acho que quando minha esposa veio para ficar comigo. Isso quer dizer que foi por volta de fevereiro. Mas pode ter sido depois disso. Minha
esposa, ela ainda tem família lá em Wemyss. Nós não voltamos lá. Não seríamos bem-vindos. As pessoas têm memória boa, sabe? Mas
nos mantemos em contato e, às vezes, eles vêm aqui nos visitar. - Um pálido sorriso de desculpa passou por seu rosto. - O sobrinho da minha mulher, ele é estudante
na universidade daqui. Está terminando o segundo ano. Ele vem jantar aqui em casa de vez em quando. Então, sim, eu ouvi falar que Mick havia entrado na lista dos
desaparecidos, mas não saberia te dizer com certeza quando foi que fiquei sabendo.
- Aonde você acha que ele foi? O que você acha que aconteceu? - Em sua ansiedade, Mark se esqueceu da regra fundamental de fazer apenas uma pergunta por vez.
Maclean ignorou ambas.
- Por que cargas d'água vocês ficaram interessados no Mick, assim de repente? - ele perguntou. - Ninguém veio procurar por ele, em todos esses anos. Por que
tanto alvoroço agora?
Mark explicou por que Misha Gibson havia, finalmente, informado a polícia sobre o desaparecimento de seu pai. Maclean se mexeu na cadeira, sem jeito, fazendo o chá
se derramar sobre os dedos.
- Que coisa horrível. Me lembro de quando a própria Misha não passava de uma garotinha. Gostaria de poder ajudar. Mas não sei para onde ele foi - ele disse.
- Como eu falei antes, não o vi mais desde que saí de Newton.
- Ouviu falar alguma coisa sobre ele? - acrescentou Otitoju.
Maclean lhe lançou um olhar duro. Em seu rosto curtido pelo sol, o olhar parecia tão impassível quanto o Monte Rushmore.
- Não tente dar uma de esperta pra cima de mim, querida. Não, não ouvi nada sobre ele. No que me diz respeito, Mick Prentice sumiu do planeta no dia em que
vim para cá. E foi exatamente o que esperei que fosse acontecer.
Mark tentou restabelecer a camaradagem, infiltrando solidariedade em sua voz:
- Entendo perfeitamente - disse. - Mas o que você acha que aconteceu com Mick? Você era amigo dele. Se alguém pode pensar numa resposta, esse alguém é você.
Maclean balançou a cabeça.
- Não sei mesmo.
- E se tivesse que fazer uma suposição?
Novamente ele coçou a cabeça.
- Te digo uma coisa. Achei que ele e Andy tivessem fugido juntos. Achei que os dois estivessem cheios, que houvessem ido para algum outro lugar para começar
do zero. Vida nova e essas coisas.
Mark se lembrava do nome do amigo de Prentice, que vira no relatório informativo sobre o caso. Mas não houvera qualquer menção de terem fugido juntos.
- Aonde eles iriam? Como poderiam simplesmente desaparecer, sem deixar rastros?
Maclean bateu com o dedo na lateral do nariz.
- Andy era comunista, sabe? E, nessa época, Lech Walesa e o Solidariedade eram importantíssimos na Polônia. Sempre achei que aqueles dois tivessem ido para
lá. Havia um monte de minas na Polônia e não iria parecer que eles estivessem furando a greve. De jeito nenhum.
- Polônia? - Mark sentiu que precisava de um curso rápido sobre a história política do século XX.
- Eles estavam tentando derrubar o comunismo totalitário - Otitoju disse, asperamente. - Para substituí-lo por uma espécie de socialismo dos trabalhadores.
Maclean assentiu.
- Isso teria sido bem do gosto de Andy. Acho que ele deve ter convencido Mick a ir com ele. Isso explicaria por que ninguém nunca mais soube deles. Presos
nas minas de carvão atrás da Cortina de Ferro.
- Mas já faz algum tempo que essa Cortina de Ferro cheira a naftalina - Mark disse.
- Sim, mas quem sabe que tipo de vida eles conseguiram estabelecer por lá? Poderiam estar casados, com filhos, poderiam ter deixado o passado para trás. Se
Mick tivesse uma nova família, não iria querer que a antiga aparecesse do nada, não é?
De repente, Mark teve um daqueles momentos de revelação em que pôde ver o cenário completo.
- Era você quem mandava o dinheiro, não era? Você colocava dinheiro num envelope e enviava a Jenny Prentice, porque achava que Mick não enviaria dinheiro
para ela da Polônia.
Maclean pareceu se encolher contra a parede translúcida de polietileno. Seu rosto se franziu tanto, que era difícil ver seus brilhantes olhos azuis.
- Só estava tentando ajudar. Tenho ganhado bem desde que vim para cá. Sempre senti pena de Jenny. Parecia que ela havia ficado com a pior parte porque Mick
não teve coragem para assumir suas responsabilidades.
Aquela era uma forma estranha de se expressar, pensou Mark. Ele podia muito bem deixar por isso mesmo; aquele caso não era seu, afinal, e ele não precisaria enfrentar
os problemas que poderiam advir de se investigar algo aparentemente sem conexão. Mas, por outro lado, ele queria cumprir aquela missão da melhor forma possível.
Queria explorar a posição de assistente do DIC para conseguir uma transferência permanente para a divisão de detetives. Então, fazer esforços extras era definitivamente
parte do seu plano.
- Tem alguma coisa que você não esteja nos dizendo, Iain? - ele perguntou. - Alguma outra razão para Mick ter fugido da forma como fez, sem dizer uma palavra
a ninguém?
Maclean tomou o resto do seu chá e colocou a xícara de lado. Suas mãos, desproporcionalmente grandes devido a uma vida inteira de trabalho manual intenso, se entrelaçaram
e se soltaram. Ele parecia alguém pouco à vontade com o conteúdo de sua própria mente. Respirou fundo e disse:
- Imagino que agora já não faça diferença. Não se pode punir alguém que já tenha ido desta pra melhor.
Otitoju estava prestes a romper o silêncio de Maclean, mas Mark agarrou seu braço, numa advertência. Ela cedeu, sua boca formou uma linha estreita, e eles esperaram.
Finalmente, Maclean falou.
- Nunca contei isso a ninguém. Até parece que adiantou de alguma coisa manter segredo. Vocês têm de entender, Mick era um defensor ferrenho do sindicato.
E, claro, Andy era funcionário em tempo integral do Sindicato Nacional dos Mineradores. Estava totalmente em casa, íntimo dos altos escalões. Não duvido que Andy
tenha contado a Mick muitas coisas que talvez não devesse. - Ele deu um sorriso melancólico. - Ele estava sempre tentando impressionar Mick, ser seu melhor amigo.
Frequentamos a mesma classe, na escola. Nós três costumávamos andar juntos. Mas você sabe como são os trios. Sempre existe um líder e os outros dois ficam tentando
agradá-lo, tentando tirar o outro da jogada. Era assim conosco. Mick
no meio, tentando manter a paz. Ele era bom nisso, esperto em encontrar formas de deixar nós dois contentes. Nunca permitia que um de nós ficasse por cima. Bem,
não por muito tempo, pelo menos.
Mark podia perceber que Maclean relaxava ao lembrar-se da calma relativa daqueles dias.
- Sei bem o que você quer dizer - ele disse, baixinho.
- Enfim, nós todos continuamos amigos. Eu e minha mulher costumávamos sair com Mick e Jenny, os quatro. Ele e Andy jogavam futebol juntos. Como eu disse,
ele era bom em encontrar coisas que faziam com que seus dois amigos se sentissem especiais. Pois então, algumas semanas antes de eu vir para cá, passamos o dia juntos.
Caminhamos até o porto de Dysart. Ele montou o cavalete e pintou, e eu pesquei. Contei a ele o que havia planejado fazer, e ele tentou me dissuadir. Mas eu podia
ver que ele não estava prestando muita atenção. Então, perguntei a ele o que o estava incomodando. - Ele parou novamente, seus dedos fortes apoiavam-se uns contra
os outros.
- E o que era? - perguntou Mark, inclinando-se para a frente para afastar a presença rígida de Otitoju e fazendo daquele um círculo puramente masculino.
- Ele disse que achava que um dos funcionários do sindicato estava roubando. - Olhou fixamente nos olhos de Mark. Ele podia sentir a terrível traição que
havia por trás das palavras de Maclean. - Nós todos estávamos sem um tostão e passando fome, e um dos caras que, supostamente, deveria ficar do nosso lado estava
enchendo os próprios bolsos. Pode não parecer muita coisa agora, mas naquela época, isso me abalou profundamente.
Quinta-feira, 30 de novembro de 1984; Dysart
Uma cavala estava puxando seu anzol, mas Iain Maclean não lhe prestava a menor atenção.
- Você só pode estar brincando! - ele disse. - Ninguém faria uma coisa dessas.
Mick Prentice deu de ombros, sem tirar os olhos do papel grosso preso em seu cavalete.
- Você não precisa acreditar em mim. Eu sei o que sei.
- Você deve ter entendido errado. Nenhum funcionário do sindicato roubaria da gente. Não aqui. Não agora. - Maclean parecia estar à beira das lágrimas.
- Olhe, vou lhe contar o que sei. - Mick passou o pincel rapidamente pelo papel, deixando uma mancha de cor ao longo do horizonte. - Eu estava no escritório
na terça passada. Andy tinha me pedido para ir lá ajudá-lo com os requerimentos da assistência, então eu estava folheando as cartas que havíamos recebido. Digo uma
coisa a você: ver o que as pessoas estavam passando era de partir o coração. - Ele limpou o pincel e misturou uma cor cinza esverdeada em sua palheta de bolso. -
Então, estou eu lá naquele cubículo, ao lado do escritório principal, examinando essas coisas, e esse outro funcionário está lá na frente. Enfim, vem uma mulher
de Lundin Links. Terninho de lã e uma boina idiota de pelo de angorá. Você conhece o tipo: a ricaça metida a Madre Teresa de Calcutá. Ela disse que eles haviam realizado
um café da manhã beneficente no clube de golfe e que tinham arrecadado 232 libras para ajudar as famílias pobres dos mineiros em greve.
- Fizeram muito bem - disse Maclean. - Melhor vir diretamente até nós do que falar com aquela maldita equipe da Tatcher.
- Certamente. Então, ele lhe agradece e ela vai embora. Agora, eu não vi exatamente para onde foi o dinheiro, mas posso lhe dizer que não foi para dentro
do cofre.
- Ah, tenha dó, Mick. Isso não prova nada. Pode ser que o cara tenha levado diretamente para a subseção do sindicato. Ou para o banco.
- Sei. - Mick deu uma risada sem humor nenhum. - Como se, nos dias de hoje colocássemos dinheiro no banco com os confiscadores atrás da gente.
- Mesmo assim - disse Maclean, sentindo-se ofendido, por alguma razão.
- Olhe, se fosse só isso, eu não teria me incomodado. Mas tem mais. Uma das tarefas de Andy é manter um registro do dinheiro que vem de doações e coisas do
tipo. Todo esse dinheiro deve ser repassado para a subseção. Não sei o que acontece com ele, então, se volta para a gente em forma de doações ou se vai parar na
corte do Rei Arthur, escondido em alguma maldita conta bancária na Suíça. Mas qualquer pessoa que arrecade dinheiro deve dizer a Andy, e ele anota num livrinho.
Maclean assentiu.
- Me lembro de ter de dizer a ele quanto tínhamos conseguido juntar, quando fizemos as arrecadações na rua, no último verão.
Mick fez uma breve pausa e olhou para o ponto onde o mar se encontrava com a terra.
- Eu estava na casa de Andy, na outra noite. O livro estava em cima da mesa. E a doação de Lundin Links não estava anotada nele.
Maclean puxou a linha com tanta força que quase perdeu o peixe.
- Merda - ele disse, girando a carretilha furiosamente. - Talvez Andy estivesse atrasado com as anotações.
- Gostaria que fosse tão simples assim. Mas não é isso. As últimas anotações no livro de Andy eram de quatro dias depois que aquele dinheiro foi entregue.
Maclean jogou a vara nas lajotas de pedra a seus pés. Ele podia sentir as lágrimas queimando nos olhos.
- Que porra de situação desgraçada. E você espera que eu sinta remorso por estar indo para Nottingham? Pelo menos é trabalho honesto, por um pagamento honesto,
e não roubo. Não posso acreditar numa coisa dessas.
- Eu também não. Mas de que outra forma se poderia explicar isso? - Mick balançou a cabeça. - E vindo de um cara que ainda está recebendo salário.
- Quem é ele?
- Não posso lhe dizer. Não até que tenha decidido o que fazer a respeito.
- É óbvio o que você tem de fazer. Tem que contar ao Andy. Se houver uma explicação inocente, ele saberá.
- Não posso contar ao Andy - Mick protestou. -Jesus, às vezes sinto vontade de fugir desta merda de confusão toda. Passar a régua e começar do zero em outro
lugar. - Ele balançou a cabeça. - Não posso contar a Andy, Iain. Ele já está deprimido. Se eu contar isso, poderia estar empurrando-o de uma vez para o fundo do
abismo.
- Bem, conte para outra pessoa, então. Para alguém da subseção. Você tem que pegar esse filho da puta. Quem é ele? Me conte. Mais algumas semanas e estarei
longe daqui. Para quem eu iria contar? - Maclean sentia a necessidade de saber queimando-o por dentro. Era mais uma coisa que o ajudaria a acreditar que estava fazendo
a coisa certa. - Me conte, Mick.
O vento fez o cabelo de Mick entrar em seus olhos, salvando-o do desespero no rosto de Maclean. Mas a necessidade de compartilhar seu fardo era pesada demais para
ignorar. Ele afastou o cabelo e olhou nos olhos do amigo.
- Ben Reekie.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Glenrothes
Karen tinha de admitir que estava impressionada. Não só a equipe de Nottingham havia feito um excelente trabalho, mas a agente Femi Otitoju tinha digitado seu relatório
e o enviado por e-mail em tempo recorde. Veja bem, pensou Karen, eu provavelmente teria feito a mesma coisa, no lugar dela. Dada a qualidade das informações que
ela e seu parceiro haviam conseguido obter, qualquer policial candidato ao DIG ficaria desesperado para tirar a maior vantagem possível.
E realmente havia algo ali para explorar ao máximo. A agente Otitoju e seu colega em Nottingham haviam descoberto quem tinha confundido a todos, enviando dinheiro
a Jenny Prentice. E, crucialmente, ela também tinha fornecido a primeira resposta possível à questão de quem ficaria feliz ao ver Mick Prentice pelas costas. Os
ânimos andaram bastante exaltados na época, e a impopularidade do sindicato crescia em várias partes. A violência já havia irrompido mais vezes do que se poderia
contar, e nem sempre entre a polícia e os grevistas. Mick Prentice poderia ter sido consumido pelo fogo com o qual brincava. Caso houvesse confrontado Ben Reekie
com o que sabia, se ele fosse culpado da acusação e se Andy Kerr tivesse sido arrastado para a confusão, devido à sua conexão com os outros dois, então, havia motivo
para Reekie se livrar dos dois homens, que desapareceram aproximadamente na mesma época. Talvez Angie Kerr estivesse certa a respeito do irmão. Talvez ele não tivesse
se matado. Talvez Mick Prentice e Andy Kerr fossem vítimas de um assassino - ou assassinos - desesperado para proteger a reputação de um funcionário desonesto do
sindicato.
Karen estremeceu.
- É imaginação demais - ela disse, em voz alta.
- O quê? - Phil afastou os olhos da tela do computador, franzindo a testa.
- Desculpe. Só estou me dando uma bronca por ser melodramática demais. Mas lhe digo uma coisa, se essa Femi Otitoju algum dia decidir se mudar para o norte,
vou colocá-la no lugar do Novo em Folha tão rápido que ele não vai nem saber o que está acontecendo.
- Não que isso seja muito difícil - disse Phil. - A propósito, o que você está fazendo aqui? Não deveria estar conversando com a adorável Srta. Richmond?
- Ela deixou um recado. - Karen olhou para seu relógio. - Chegará dentro de alguns minutos.
- Por que o atraso?
- Parece que teve que conversar com o advogado de algum jornal sobre um artigo que ela escreveu.
Phil reclamou.
- Que nem o tal do Brodie Grant. Ainda pensam que somos da classe serviçal, aqueles lá. Talvez você devesse deixá-la esperando.
- Não posso me dar ao luxo de entrar nesse jogo idiota. Olhe só isto aqui. O parágrafo que eu marquei. - Ela passou o relatório de Otitoju para Phil e esperou
que ele o lesse. Assim que ele levantou os olhos da página, ela disse: - Alguém afirmando que viu Mick Prentice umas doze horas depois de ele ter saído de casa.
E parece que ele não estava agindo de forma normal.
- Que estranho. Se ele estava fugindo, por que ainda estaria por ali, àquela hora da noite? Onde havia estado antes? E para onde estava indo? O que estava
esperando? - Phil coçou o queixo. - Não faz nenhum sentido para mim.
- Nem para mim. Mas vamos ter que tentar descobrir. Vou acrescentar à minha lista - ela suspirou. - Um pouco abaixo de "ter uma conversa decente com a polícia
italiana".
- Pensei que você houvesse conversado com eles.
Ela assentiu.
- Com um policial no quartel-general de Siena, um cara chamado di Stefano, com quem Peter Spinks, da Proteção Infantil, trabalhou há uns anos. Ele fala inglês
razoavelmente bem, mas precisa de mais informações.
- Então, você vai entrar em contato com eles novamente na segunda-feira?
Karen assentiu.
- Isso. Ele disse para não esperarmos encontrar ninguém no escritório deles depois das duas da tarde de uma sexta-feira.
- Será ótimo, se você conseguir - disse Phil. - Falando nisso, quer ir tomar um drinque rápido depois que terminar a conversa com Annabel Richmond? Tenho
que ir jantar na casa do meu irmão, mas tenho tempo para uma cervejinha.


CONTINUA

Christie. Uma dívida que não é pequena.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss
A voz é suave, como a escuridão que os cerca.
- Está preparado?
- Mais preparado do que nunca.
- Você disse a ela o que fazer? - As palavras agora rolam, tropeçando umas nas outras num emaranhado único de sons.
- Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabilizado se isto der errado. - Palavras ásperas, num tom áspero. - Não é com ela que estou
preocupado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. - As palavras possuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. - Vamos, terminemos logo com isto.
Assim é como tudo começa.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/DOMINIO_SOMBRIO.jpg

 

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziam uma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas. Parecia alguém com
uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conforme ela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a
mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras informações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmente ignorados por aqueles
que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhão de sua determinação.
Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não era feia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali, não estava em seus melhores
dias. Ela poderia ter colocado um pouquinho mais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algo que lhe caísse melhor do que jeans e blusa
de capuz. David Cruickshank assumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se preparando para defesa.
- Quero informar o desaparecimento de uma pessoa.
Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desaparecidas. Aquela ali estava
calma demais para que se tratasse de um filho pequeno, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga com o namorado, era disso que se tratava.
Ou um avô senil perdido. A mesma perda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo balcão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta.
Nem chegou a destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondida antes que ele anotasse quaisquer detalhes.
- E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?
- Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, para ser exata. - Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seu semblante. -
Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?
O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a tela do computador.
- Vou te dizer uma coisa - ele falou -, se existe uma época excelente para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.
A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo que estava atualizando.
- Como assim?
- Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, na Downing Street,
10, com a patroa a tiracolo. - Ele se levantou num salto e foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. - O que você prefere fazer? Solucionar casos arquivados
e receber os louros por isso, ou tentar prevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?
- Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministro faz de Fife um alvo? - Karen marcou onde estava no documento com o dedo indicador e dirigiu
toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou de que tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não considerara as possibilidades atuais. - Nunca
se incomodaram com o distrito eleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.
- Isso é verdade. - Phil espiou para dentro da geladeira, decidindo entre um refrigerante Im Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e ele ainda não
se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer em sua infância. - Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, e Gordon é filho de um pastor
presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugar do chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja do pai dele.
Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio.
- Não sei como você consegue beber isso aí - ela disse. - Nunca reparou que o nome é um anagrama de "vomit"?
Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.
- Faz crescer cabelo no peito - ele disse.
- É melhor você tomar duas latas, então. - Havia uma ponta de inveja na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gorduras saturadas,
mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os dois eram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suas medidas aumentando. Isso, definitivamente,
não era justo.
Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.
- Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um pouco mais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaça agora é maior.
Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.
- Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon aja de um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?
Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojava a Equipe de Revisão
de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alterado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquer telefone que tocasse perto dela.
- Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando - ela disse distraidamente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, no fundo, ele não
sentia saudade de estar envolvido com a ação.
- Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com uma pessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. - Cruickshank parecia um tanto inseguro.
Aquilo era incomum o bastante para chamar a atenção de Karen.
- Do que se trata?
- De uma pessoa desaparecida - ele disse.
- É um dos nossos?
- Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.
Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por tempo suficiente.
- Então ela precisa falar com o Departamento de Investigações Criminais, Dave.
- Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este caso está um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor que passasse por
você primeiro, entendeu?
Vá logo ao que interessa.
- Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com investigações recentes. - Karen girou os olhos para Phil, que devolveu um sorriso falso
diante da óbvia frustração dela.
- Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vinte e dois anos.
Karen se endireitou na cadeira.
- Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?
- Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?
Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar a mulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre se sentia atraída por coisas
que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros no escuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazido duas promoções em três anos, superando
alguns colegas de igual posição e deixando muitos outros incomodados.
- Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela.
Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.
- Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o desaparecimento de uma pessoa? - ela perguntou, mais para si mesma do que para Phil, vasculhando
a mesa à procura de um caderno vazio e de uma caneta.
Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.
- Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.
- E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. - O sorriso de Karen
era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse o Gato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.
Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do elevador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatlética da Gap. Modelos
e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos e sem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro na altura do quadril. O cabelo castanho-médio
tinha um bom corte chanel longo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava, portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social.
Tampouco, provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulher agradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantos anos, olhos azuis
com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima de maquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um. Ao perceber a avaliação de Karen,
a pele ao redor de seus olhos se apertou.
- Sou a inspetora Pirie - ela disse, abreviando o impasse em potencial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. - Karen Pirie.
Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gorducha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio
precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, caso fosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen se descrevia daquela
maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela era lindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela não concordava. Tinha uma opinião
razoavelmente boa sobre si mesma. Mas, quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, no entanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.
Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu mais segura.
- Graças a Deus por isso - ela disse. O sotaque de Fife era claro, embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela distância.
- Perdão?
A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes de leite de uma criança.
- Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enrolando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.
- Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo chá - Karen disse secamente. - Por acaso, fui a pessoa que atendeu ao telefone. - Ela deu
meia-volta, olhou para trás e disse: - Você me acompanha?
Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma salinha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, para o verde artificialmente
uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofadas de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfície de cerejeira fora polida até adquirir
um brilho opaco. A única indicação do propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas na parede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda
vez que usava aquele local, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhido fotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algo
muito ruim acontece.
A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou uma cadeira e lhe indicou que sentasse.
- Não é assim na televisão - ela disse.
- Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão - Karen respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em
relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição, menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entrevista de testemunha.
- Cadê o gravador? - A mulher se sentou, sem aproximar a cadeira nem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.
Karen sorriu.
- Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interrogatório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interrogada sobre um
crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável e olhar pela janela. - Ela abriu seu bloco de anotações. - Creio que está aqui para informar sobre uma pessoa
desaparecida.
- Isso mesmo. O nome dele é...
- Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para começar, qual é seu nome?
- Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobrenome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha.
- Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone.
Misha informou todos os detalhes.
- Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome dela, se é que você me entende.
Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus mineiros de carvão, numa
época em que estes lhe pertenciam tanto quanto as minas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquer ligação com o lugar ou seu passado.
- Mesmo assim - ela disse -, preciso de seus dados também.
As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então, ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujo conhecimento da geografia
social da capital, a apenas cinquenta quilômetros de distância, era provincianamente escasso.
- E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa - ela disse.
Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.
- Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser exata.
- E quando foi que seu pai desapareceu? - Ali, pensou Karen, era onde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.
- Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio. Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. - As sobrancelhas
de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.
- É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desaparecimento - disse Karen.
Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.
- Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente.
- Não estou entendendo. O que quer dizer com "não exatamente"?
Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.
- Você fala como alguém desta região.
Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:
- Cresci em Methil.
- Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984.
- A greve dos mineiros?
Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.
- Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pessoas costumavam dizer
por aqui: que ninguém era mais militante do que os mineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro, depois de nove meses de greve, em que meia
dúzia deles desapareceu. Bem, eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eles haviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. - Seu rosto
se franziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. - Com relação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo. Mas,
segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu pai tinha ido com eles. Inclusive ela. - Lançou a Karen um olhar defensivo. - Eu era pequena demais
para me lembrar. Mas todos dizem que ele era um sindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.
- Ela balançou a cabeça. - Porém, o que mais ela iria pensar?
Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia ter significado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a solidariedade era reservada
apenas para aqueles que aguentavam o tranco. A atitude de Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.
- Não deve ter sido nada fácil para sua mãe - ela disse.
- Em um aspecto, foi muito fácil. - Misha disse com amargura. - Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria mais saber dele.
Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergência. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para a Assistência Social dos Mineiros. Fui
criada numa casa em que o nome do meu pai jamais era pronunciado.
Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.
- Ele nunca entrou em contato com vocês?
- Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o carimbo do correio de Nottingham.
- Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai seja uma pessoa desaparecida. - Karen tentou fazer sua voz soar o mais gentil possível.
- Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim, inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. É preciso que o encontrem.
O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela, aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.
- Por quê? - ela perguntou.
Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo
Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquela sensação de ultraje pelo
fato de que o mundo seguia seu caminho, a despeito do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara em contar porque nunca havia se permitido acreditar
que aquela poderia ser a última vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polegares deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadas
por suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de alguma forma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviam atirado contra
sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicção tinha, finalmente, sido testada ao extremo.
Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol, desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda
não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e um apartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso. John não
estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia saber sobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido no trabalho alguma questão
complexa com que só ele pudesse lidar.
Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de arenito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, o pulmão verde do centro sul
da cidade, onde ela adorava caminhar com Luke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia também checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma
bola de rúgbi rodeada de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam a bola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pela
superfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha. Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a caminhar ali com Luke.
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, era disso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em perspectiva. Uma caminhada
rápida através do Meadows e, daí, atravessaria a Ponte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou um restaurante.
Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa de fundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Ela não permitiria que fosse
o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outra chance a Luke.
Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que o segurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelo trabalho de parto, ela
soubera. John estava em estado de negação, recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho, ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo
havia agarrado o coração de Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão em sua mente, então, fora: quão diferente?
O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorte era o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do Hospital Real para Crianças
Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nas histórias "milagrosas" que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito
para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem para explicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.
Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano; ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encantadora das palavras disfarçava
seu conteúdo letal. Escondidos no DNA de ambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado para criar uma condição rara que condenaria seu filho
a uma vida curta e dolorosa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que certamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula
óssea que, no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatível. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medula óssea,
Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.
Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que, sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria de algum membro da família;
era o que os médicos chamavam de doador aparentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Ela havia lido sobre os registros de transplante de
medula e deduzido que sua melhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, de acordo com o especialista, a doação de um membro da família não compatível,
que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um risco menor de complicações do que a de um doador compatível que não tivesse qualquer parentesco com o paciente.
Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos dois lados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e até mesmo oferecendo recompensas
a primos distantes e tias idosas. Aquilo havia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária. John se fechara atrás de uma muralha de otimismo
pouco realista. Haveria um avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar, descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes compartilhados.
Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro. John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à procura de casos que provassem
que os médicos estavam errados. Aparecia semanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis. E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura
incessante de Misha. Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de negação era olímpica.
Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo.
Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seu último beco sem saída
apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrível julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamente aquela que havia rezado para não ter de
levar em conta.
Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquele caminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pronta para ser agressiva com
quem quer que estivesse invadindo seu espaço.
- John - ela disse, com cansaço.
- Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento
- ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamente até ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para que se tocassem,
se algum deles quisesse.
- Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.
- Não, isso eu posso ver. O que eles disseram?
Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do veredito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filho era invencível,
de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reação dela.
Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto o consolo.
- Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. - Sua voz parecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. A emoção derreteria
seu estado congelado e ali não era o lugar para demonstrações de pesar ou amor.
John apertou os dedos dela com força.
- Talvez não seja tarde demais - ele disse. - Talvez eles...
- Por favor, John. Agora não.
Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensionava conforme ele controlava sua discordância.
- Então - ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que outra coisa -, imagino que você vá procurar o filho da puta?
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen coçou a cabeça com a caneta. Por que eu sempre pego os melhores?
- Por que você deixou passar tanto tempo, antes de tentar rastrear seu pai?
Ela captou uma expressão fugaz de irritação em volta dos olhos e da boca de Misha.
- Porque eu havia crescido achando que meu pai fosse um filho da puta fura-greve e egoísta. O que ele fez alijou minha mãe de sua própria comunidade. Fez
com que eu fosse maltratada no parque e na escola. Não achei que um homem que houvesse abandonado a família na merda fosse se incomodar com o neto.
- Ele mandava dinheiro - disse Karen.
- Uns trocados aqui e ali. Dinheiro maldito - disse Misha. - Como eu disse, minha mãe se recusava a usá-lo. Ela o doava. Nunca tirei proveito dele.
- Talvez ele tenha tentado compensar a sua mãe. Os pais nem sempre nos contam as verdades incômodas.
Misha balançou a cabeça.
- Você não conhece a minha mãe. Mesmo com a vida de Luke em jogo, ela não ficou nada contente que eu estivesse tentando encontrar meu pai.
Para Karen, aquele parecia um motivo insuficiente para evitar o homem que poderia fornecer a chave para o futuro de um garoto. Mas ela sabia como os sentimentos
eram profundos nas velhas comunidades mineiras, deixou estar, portanto.
- Você diz que ele não estava onde se supunha. O que aconteceu, quando você foi procurar por ele?
Quinta-feira, 21 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Jenny Prentice tirou um saco de batatas da prateleira de verduras e se pôs a descascá-las, o corpo inclinado sobre a pia e as costas voltadas para a filha. A pergunta
de Misha pairou sem resposta entre as duas, lembrando ambas da barreira que a ausência do pai havia colocado entre elas desde o início. Misha tentou novamente.
- Eu perguntei...
- Eu te ouvi muito bem. Não há nada de errado com a minha audição - disse Jenny. - E a resposta é: não tenho a menor ideia. Como eu saberia onde começar
a procurar por aquele merda de fura-greve egoísta? Nós nos viramos muito bem sem ele nos últimos vinte e dois anos. Nunca houve razão para procurá-lo.
- Bem, existe uma razão agora.
Misha olhou para os ombros curvados da mãe. A luz fraca que entrava pela pequena janela da cozinha acentuava o branco de seus cabelos não pintados. Ela mal havia
completado cinquenta anos, mas parecia ter pulado a meia-idade e adquirido logo o encurvamento vulnerável de uma anciã. Era como se ela soubesse que o ataque um
dia chegaria e houvesse optado por se defender tornando-se patética.
- Ele não irá ajudar - Jenny zombou. - Ele deixou claro o que pensava de nós, quando nos abandonou para que nos virássemos sozinhas. Ele só pensava em si
mesmo.
- Pode ser. Mas mesmo assim tenho que tentar, pelo bem de Luke - Misha disse. - Havia algum endereço de remetente nos envelopes em que vinha o dinheiro?
Jenny cortou uma batata descascada ao meio e deixou cair numa panela com água salgada.
- Não. Ele nem sequer se dava ao trabalho de colocar uma cartinha no envelope. Apenas um punhado de cédulas sujas, só isso.
- E os caras com quem ele foi embora?
Jenny lançou um olhar rápido e desdenhoso para Misha.
- O que têm eles? Não dão as caras por aqui.
- Mas alguns ainda devem ter família aqui, ou em East Wemyss. Irmãos, primos. Eles podem saber alguma coisa sobre o meu pai.
Jenny sacudiu a cabeça com firmeza.
- Nunca mais ouvi falar dele, desde o dia em que se foi. Nem um pio, bom ou ruim. Os outros homens com quem ele foi embora não eram seus amigos. A única razão
pela qual ele pegou carona com eles foi porque não tinha dinheiro para ir sozinho para o sul. Ele deve ter usado os caras assim como usou a gente e, depois, deve
ter seguido seu próprio caminho, quando chegou aonde queria. - Ela deixou cair outra batata na panela e disse sem qualquer entusiasmo: - Você vai ficar para a janta?
- Não, tenho algumas coisas para resolver - Misha disse, impaciente com a recusa da mãe em levar a sério sua busca. - Deve haver alguém com quem ele tenha
mantido contato. Com quem ele poderia ter falado? A quem ele teria contado o que estava planejando fazer?
Jenny se empertigou e colocou a panela no velho fogão a gás. Misha e John se ofereciam para trocar o fogão desconjuntado toda vez que se sentavam para aquele ato
teatral que era o jantar de domingo, mas Jenny sempre recusava, com o ar de martírio frustrado com que normalmente respondia às ofertas de gentileza.
- Nisso você também deu azar. - Ela se acomodou numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa minúscula na cozinha apertada. - Ele só tinha um amigo
de verdade. Andy Kerr. Era um comunista fervoroso, o Andy. Te digo uma coisa: em 1984 não eram muitos os que ainda erguiam a bandeira vermelha, mas Andy era um deles.
Ele já era sindicalista bem antes da greve. Ele e seu pai eram amigos desde a escola. - Seu rosto se suavizou por um momento, e Misha quase pôde ver a jovem que
ela havia sido. - Eles estavam sempre aprontando alguma, aqueles dois.
- Então, onde é que encontro esse tal de Andy Kerr? - Misha se sentou em frente à mãe, seu desejo de ir embora temporariamente abandonado.
O rosto da mãe se contorceu em uma expressão irônica.
- Coitada. Se você conseguir encontrar Andy, será uma detetive e tanto. - Ela se inclinou para a frente e deu um tapinha na mão de Misha. - Ele é mais
uma das vítimas do seu pai.
- Como assim?
- Andy adorava seu pai. Para ele, era Deus no céu e seu pai na terra. Pobre Andy. A greve o colocou sob uma enorme pressão. Ele acreditava na greve, acreditava
na luta. Mas ficou arrasado ao ver as dificuldades pelas quais seus homens estavam passando. Ele estava à beira de um ataque de nervos, e o diretor local o obrigou
a tirar uma licença médica, não muito antes de seu pai dar o fora. Ninguém o viu depois disso. Ele vivia lá nos cafundós, então ninguém percebeu que ele havia partido.
- Ela soltou um suspiro longo e cansado. - Ele mandou um cartão-postal para o seu pai, de algum lugar no norte. Mas, é claro, seu pai já tinha fugido da greve e,
portanto, nunca o recebeu. Mais tarde, quando Andy voltou, deixou um bilhete para a irmã dele dizendo que não suportava mais. O pobre coitado se matou.
- E o que isso tem a ver com o meu pai? - perguntou Misha.
- Sempre achei que o fato de seu pai ter furado a greve foi a gota d'água. - A expressão de Jenny era uma mistura de piedade e convencimento. - Foi o que
condenou Andy.
- Você não tem como saber isso. - Misha se afastou, aborrecida.
- Não sou a única por aqui que pensa assim. Se seu pai tivesse confiado em alguém, teria sido em Andy. E isso deve ter sido demais para aquela pobre alma
fragilizada. Ele tirou a própria vida, sabendo que seu único amigo de verdade havia traído tudo aquilo que ele defendia.
Naquele tom melodramático, Jenny se levantou e pegou um saco de cenouras da prateleira. Estava claro que ela dera por encerrado o assunto Mick Prentice.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen deu uma espiada no relógio. Quaisquer que fossem as qualidades de Misha Gibson, a brevidade não era uma delas.
- Então Andy Kerr provou ser, literalmente, um caso morto e enterrado?
- Minha mãe acha que sim. Mas parece que nunca encontraram o corpo. Talvez ele não tenha se matado, afinal - disse Misha.
- Eles nem sempre aparecem - Karen disse. - Às vezes, o mar os reivindica. Ou a floresta, que seja. Ainda existe muito espaço vazio nesta terra.
A resignação tomou conta do rosto de Misha. Karen percebeu que ela era uma mulher inclinada a acreditar no que lhe diziam. Se havia alguém que sabia disso, era sua
mãe. Talvez as coisas não fossem tão preto no branco quanto Jenny Prentice queria que sua filha pensasse.
- Isso é verdade - disse Misha. - E minha mãe falou mesmo que ele havia deixado um bilhete. Será que a polícia ainda o tem?
Karen balançou a cabeça.
- Duvido. Se em algum momento esteve com a gente, foi devolvido à família dele.
- Não teria havido um inquérito? Não teriam precisado do bilhete para isso?
- Você se refere a uma Investigação de Acidente Fatal - disse Karen.
- Não sem um corpo. Se existir um arquivo desse caso, é a respeito de pessoa desaparecida.
- Mas ele não está desaparecido. A irmã dele conseguiu que ele fosse declarado morto. Seus pais morreram no acidente da balsa de Zeebrugge, mas parece que
o pai sempre se recusou a acreditar que Andy tivesse morrido; então, não alterou o testamento para deixar a casa para a filha. Ela teve que ir ao tribunal e pedir
que declarassem Andy morto, para que ela pudesse herdá-la. De qualquer modo, foi o que minha mãe me contou. - Nenhum sinal de dúvida perturbava a expressão de Misha.
Karen anotou irmã de Andy Kerr e acrescentou um pequeno asterisco à observação.
- Portanto, se Andy se matou, voltamos a ter como única explicação racional para seu pai ter desaparecido o fato de ele querer furar a greve. Você fez alguma
tentativa de contatar os caras com quem se supõe que ele tenha fugido?
Segunda-feira, 25 de junho de 2007; Edimburgo
Nove e dez da manhã de uma segunda-feira e Misha já se sentia exausta. Ela já deveria estar com Luke no hospital. Brincando com ele, lendo para ele, bajulando os
terapeutas para que ampliassem seus procedimentos, discutindo planos de tratamento com a equipe médica e usando toda a sua energia para contagiá-los com a sua convicção
de que era possível salvar o filho. E, se era possível, todos eles tinham a obrigação de lhe proporcionar até a última gota de intervenção médica.
Mas, em vez disso, Misha estava sentada no chão, com as costas contra a parede, os joelhos dobrados, o telefone no colo e o bloco de anotações a seu lado. Ela disse
a si mesma que estava tomando coragem para dar um telefonema, mas no fundo sabia que a exaustão era o verdadeiro motivo por trás da inatividade.
Outras famílias aproveitavam os fins de semana para relaxar, recarregar as baterias. Mas não os Gibson. Para começar, havia menos funcionários trabalhando no hospital,
então Misha e John se sentiam obrigados a dedicar
mais energia que o habitual a Luke. Tampouco havia descanso quando eles voltavam para casa. O fato de Misha acreditar que a última esperança para o filho era encontrar
seu pai havia simplesmente agravado o conflito entre seu ardor missionário e o otimismo passivo de John.
Esse fim de semana havia sido mais difícil que o normal. Ter um limite de tempo definido para a vida de Luke impregnava de valor e intensidade cada momento que compartilhavam.
Era difícil evitar uma espécie de sentimentalismo melodramático. Assim que saíram do hospital no domingo, Misha retomou o refrão que vinha repetindo desde que visitara
a mãe:
- Eu tenho que ir a Nottingham, John. Você sabe disso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta impermeável e curvou a cabeça para a frente, como se estivesse lutando contra um vento forte.
- Telefone para o cara - John falou. - Se ele tiver alguma coisa a dizer, dirá pelo telefone.
- Talvez não. - Ela correu um pouco para acertar o passo com ele. - As pessoas sempre contam mais coisas cara a cara. Talvez possa me dar alguma informação
sobre os outros que foram para lá com ele. Pode ser que eles saibam de alguma coisa.
John bufou.
- E como é que a sua mãe só se lembra do nome de um cara? Por que ela não pode te dar informações a respeito dos outros?
- Eu já disse. Ela apagou da memória tudo sobre aquela época. Tive que pressioná-la muito até ela me dar o nome de Logan Laidlaw.
- E você não acha incrível que o único cara de quem ela se lembra não tenha nenhum parente na região? Nenhuma maneira óbvia de ser rastreado?
Misha enganchou seu braço no dele, em parte para fazê-lo ir mais devagar.
- Mas eu o rastreei, não foi? Você é desconfiado demais.
- Não sou, não. Sua mãe não conhece o poder da Internet. Ela não sabe dos cadastros eleitorais on-line nem do site 192.com. Ela acha que, se não houver nenhum
ser humano a quem perguntar, você está ferrada. Pensou que não estava lhe dando nada que você pudesse usar. Ela não quer ver você bisbilhotando a respeito desse
assunto, ela não vai te ajudar.
- Então você e ela podem dar as mãos. - Misha soltou o braço do dele e caminhou rapidamente à sua frente.
John a alcançou na esquina da rua deles.
- Isso não é justo - ele disse. - Eu só não quero que você se machuque à toa.
- Você acha que ver meu filho morrer sem fazer nada para salvá-lo não está me machucando?
Misha sentiu o calor da raiva em seu rosto, soube que as lágrimas de ira estavam à espreita. Virou o rosto, piscando desesperadamente para os prédios altos de arenito.
- Encontraremos um doador. Ou eles encontrarão um tratamento. Toda essa pesquisa com células-tronco está avançando muito rápido.
- Não rápido o bastante para Luke - Misha disse, a familiar sensação de peso no estômago desacelerando seus passos. - John, por favor. Preciso ir a Nottingham.
Preciso que você tire uns dias de folga do trabalho para ficar com Luke.
- Você não precisa ir. Pode falar com o cara pelo telefone.
- Não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você não negocia com clientes pelo telefone. Não quando é alguma coisa importante. Você vai até eles pessoalmente.
Quer olhar em seus olhos. Tudo que estou pedindo é que você tire uns dias de folga para passar um tempo com seu filho.
Os olhos dele brilharam perigosamente, e ela soube que tinha ido longe demais. John balançou a cabeça com teimosia.
- Telefone para ele, Misha.
E isso foi tudo. Sua longa experiência com o marido havia lhe ensinado que, quando John assumia uma postura que acreditava estar certa, insistir no mesmo ponto
apenas lhe dava a oportunidade de construir defesas mais fortes. Ela não tinha argumentos novos que pudessem mudar sua decisão. Portanto, ali estava ela, sentada
no chão, tentando formular frases capazes de convencer Logan Laidlaw a lhe dizer o que havia acontecido com seu pai desde que ele a abandonara, havia mais de vinte
anos.
Sua mãe não lhe dera muita coisa para criar uma estratégia. Laidlaw era um esbanjador, um mulherengo, um homem que, aos trinta anos, ainda agia como um adolescente.
Aos vinte e cinco anos, já se divorciara com a péssima reputação de ser um homem habilidoso demais com os punhos quando perto das mulheres. A imagem que Misha guardava
do pai era incompleta e parcial, mas, mesmo com a visão imposta pela mãe, Mick Prentice não
parecia ser o tipo de homem que tivesse tempo a perder com Logan Laidlaw. Ainda assim, tempos difíceis criam os companheiros mais estranhos.
Finalmente, Misha pegou o telefone e digitou os números que ela havia encontrado através de buscas na Internet e em listas telefônicas. Provavelmente ele saíra para
trabalhar, ela pensou no quarto toque. Ou então estava dormindo.
O sexto toque foi interrompido abruptamente. Uma voz rouca grunhiu algo parecido com alô.
- É Logan Laidlaw? - Misha perguntou, lutando para manter a voz sob controle.
- Já tenho uma cozinha montada e não quero nenhum seguro. - O sotaque de Fife ainda era forte, as palavras se atropelando com o familiar sobe e desce.
- Não quero lhe vender nada, Sr. Laidlaw. Só preciso falar com o senhor um instante.
- É, sei. E eu sou o primeiro-ministro.
Ela podia sentir que ele estava a ponto de desligar.
- Sou a filha de Mick Prentice - ela revelou, sua estratégia tinha ido por água abaixo. Através da distância, ela podia ouvir o chiado líquido da respiração
dele. - Mick Prentice, de Newton of Wemyss - ela tentou.
- Eu sei de onde Mick Prentice é. Só não sei o que Mick Prentice tem a ver comigo.
- Olhe, sei que vocês dois não se veem muito, ultimamente, mas eu agradeceria qualquer informação que o senhor pudesse me dar. Realmente preciso encontrá-lo.
- O sotaque de Misha pulou algumas marchas até voltar à pronúncia carregada.
Uma pausa. Então, com um tom desconcertado:
- Por que você está me ligando? Não vejo Mick Prentice desde que saí de Newton of Wemyss, em 1984.
- Tudo bem, mas mesmo que vocês tenham se separado logo que chegaram a Nottingham, o senhor deve ter uma ideia de onde ele foi parar, aonde ele estava indo.
- Escuta aqui, docinho, não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim, nos separamos logo que chegamos a Nottingham? - ele parecia irritado,
a pouca paciência que tinha evaporava com as perguntas dela.
Misha engoliu um suspiro profundo e, então, disse lentamente:
- Só quero saber o que aconteceu com meu pai depois que vocês chegaram a Nottingham. Preciso encontrá-lo.
- Por acaso, você tem algum problema na cabeça, menina? Não faço a menor ideia do que aconteceu com seu pai depois que vim para Nottingham e sabe por quê?
Porque eu estava em Nottingham e ele, em Newton of Wemyss. E mesmo quando nós dois estávamos na mesma cidade, não éramos o que se pode chamar de compadres.
As palavras a atingiram como um balde de água fria. Será que havia algo errado com a memória de Logan Laidlaw? Estaria se esquecendo do passado?
- Não, isso não está certo - ela disse. - Ele foi para Nottingham com você.
Uma explosão de risadas, então uma tosse seca.
- Alguém está te enrolando, menina - ele ofegou. - Trotsky teria furado um piquete de greve antes do Mick Prentice que eu conheci. O que te faz pensar que
ele veio para Nottingham?
- Não sou só eu. Todo mundo pensa que ele foi para Nottingham com você e com os outros homens.
- Isso é loucura. Por que iriam pensar isso? Você não conhece a história da sua própria família?
- O que você quer dizer?
- Por Deus, menina, o seu bisavô. O avô do seu pai. Você não sabe a respeito dele?
Misha não fazia a mínima ideia de onde aquilo iria parar, mas pelo menos ele não tinha desligado na cara dela, como havia temido que fizesse.
- Ele morreu antes de eu nascer. Não sei nada sobre ele, a não ser que também era mineiro.
- Jackie Prentice - disse Laidlaw com algo que se aproximava à satisfação. - Ele foi um fura-greve em 1926. Depois do acordo sindical, ele teve de ser transferido
para um posto na superfície. Quando sua vida depende dos homens da sua equipe, você não quer ser um fura-greve no subterrâneo. A não ser que todo mundo esteja no
mesmo barco, como era nosso caso. Só Deus sabe por que Jackie permaneceu na cidade. Ele tinha que tomar um ônibus até Dysart só para conseguir uma bebida. Não havia
um só bar, em nenhum dos vilarejos de Wemyss, que o servisse. Então, seu pai e seu avô tiveram que trabalhar duas vezes mais que qualquer outra pessoa para serem
aceitos na mina. Nem morto Mick Prentice jogaria fora esse respeito. Ele preferiria morrer de fome. Isso mesmo, e deixar que você morresse junto com ele. Onde quer
que você tenha conseguido essa informação, eles não sabem de que diabos estão falando.
- Minha mãe me contou. É o que todos dizem em Newton. - O impacto das palavras dele a fizeram sentir como se todo ar houvesse sido sugado de seus pulmões.
- Bem, eles estão errados. Por que iriam pensar isso?
- Porque a noite em que você foi para Nottingham foi a última noite em que alguém em Newton o viu ou ouviu falar dele. E porque minha mãe, ocasionalmente,
recebe dinheiro pelo correio, com o carimbo de Nottingham.
Laidlaw respirou com dificuldade, uma exalação de sanfona no ouvido dela.
- Jesus, isso é espantoso. Bem, querida, sinto muito decepcioná-la. Cinco de nós partiram de Newton of Wemyss naquela noite de dezembro. Mas seu pai não estava
entre a gente.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen parou na lanchonete para comprar um sanduíche de salpicão de frango, quando voltava para sua mesa. Criminosos e testemunhas raramente conseguiam enganar Karen,
mas, quando se tratava de comida, ela podia enganar a si mesma dezessete vezes antes do café da manhã. O sanduíche, por exemplo. Pão integral, um pedaço de alface
murcha, algumas fatias de tomate e pepino e, pronto: passava a ser um alimento saudável. Esqueça a manteiga e a maionese. Na sua cabeça, as calorias eram canceladas
pelo benefício. Ela enfiou o caderno embaixo do braço e rasgou a embalagem plástica do sanduíche enquanto caminhava.
Phil Parhatka levantou os olhos quando Karen se deixou cair, pesadamente, na cadeira. Não pela primeira vez, o ângulo da cabeça dele a lembrou de que ele parecia
uma versão mais morena e mais magra de Matt Damon. Havia o mesmo nariz e queixo protuberantes, as sobrancelhas retas, o corte de cabelo à la Identidade Boume, e
a expressão que podia variar, de aberta a resguardada, num segundo. Só as cores eram diferentes.
A ascendência polonesa de Phil era responsável por seus cabelos escuros, os olhos castanhos e a pele intensamente branca; sua personalidade contribuíra com o minúsculo
furo em sua orelha esquerda, que geralmente acomodava um brinco de diamante, quando ele não estava de serviço.
- Como foi? - ele perguntou.
- Mais interessante do que eu esperava - ela admitiu, levantando-se novamente para pegar uma Coca Diet.
Entre mordidas e goles, ela fez um resumo conciso da história de Misha Gibson.
- E ela acredita no que esse velho caduco de Nottingham lhe contou? - ele perguntou, recostando-se na cadeira e entrelaçando os dedos atrás da cabeça.
- Acho que ela é o tipo de mulher que normalmente acredita no que as pessoas lhe dizem - disse Karen.
- Ela seria uma péssima policial, então. Portanto, imagino que você irá passar o caso para a Divisão Central investigar.
Karen deu uma dentada no sanduíche e mastigou vigorosamente, os músculos da mandíbula e têmpora se projetavam e contraíam como uma bola antiestresse sob pressão.
Ela engoliu antes de ter terminado de mastigar direito, empurrando o que sobrou com um gole de Coca Diet.
- Não tenho certeza - ela disse. - É um caso interessante.
Phil lançou um olhar cauteloso.
- Karen, não se trata de um caso arquivado. Não é nossa praia.
- Se eu passá-lo para a Central, vai acabar não dando em nada. Ninguém dé lá vai se incomodar com um caso em que as pistas esfriaram há vinte e dois anos.
- Ela se recusou a encarar o olhar desaprovador dele. - Você sabe disso tão bem quanto eu. E, segundo Misha Gibson, essa seria a última chance do filho dela.
- Ainda não faz com que seja um caso arquivado.
- Só porque não foi aberto em 1984 não significa que agora não esteja arquivado. - Karen sacudiu o resto de seu sanduíche apontando para arquivos sobre sua
mesa. - E nenhum destes aqui irá a qualquer lugar, a curto prazo. Darren Anderson: não há nada que eu possa fazer até que os policiais nas Canárias se mexam e descubram
em que bar a ex-namorada dele está trabalhando. Ishbel Mackindoe: aguardo que o laboratório me
diga se eles podem obter amostras viáveis de DNA das cartas anônimas. Patsy Millar: não posso seguir adiante com esse caso até que a Polícia Metropolitana de Londres
termine de cavar aquele jardim no bairro de Heringey e faça as análises criminais.
- Há testemunhas no caso de Patsy Millar com quem poderíamos falar novamente.
Karen deu de ombros. Ela sabia que podia usar a hierarquia para calar a boca de Phil, mas precisava demais da tranquilidade que havia entre eles.
- Elas não irão a lugar algum. Ou, senão, você pode pegar um dos detetives e lhe dar um pouco de treinamento em ação.
- Se você acha que eles precisam de treinamento em ação, deveria lhes dar esse caso arquivadíssimo de pessoa desaparecida. Você é uma inspetora agora, Karen.
Não se espera que saia investigando esse tipo de coisa. - Ele indicou com a mão os dois detetives sentados frente a seus computadores. - Isso é para gente como eles.
O que acontece é que você está entediada. - Karen tentou protestar, mas Phil continuou, sem lhe dar atenção. - Eu lhe disse, quando você aceitou essa promoção, que
iria ficar louca, sentada atrás de uma mesa. E agora, olhe só. Surrupiando os casos dos agentes da Central. O próximo passo é você sair para fazer pessoalmente os
interrogatórios.
- E daí? - Karen amassou a embalagem do sanduíche com mais força que o necessário e a atirou no lixo. - É bom manter a mão na massa. E vou garantir que tudo
seja feito de forma honesta. Levarei o detetive Murray comigo.
- O Novo em Folha? - O tom da voz de Phil era de incredulidade, seu semblante estava ofendido. - Você preferiria o Novo em Folha a mim?
Karen sorriu com doçura.
- Você agora é sargento, Phil. Um sargento com ambições. Ficar no escritório e esquentar minha cadeira ajudará suas aspirações a se tornarem realidade. Além
disso, o Novo em Folha não é tão ruim quanto você pensa. Ele faz aquilo que o mandam fazer.
- Isso um cachorro collie também faz. Só que o cão mostraria mais iniciativa.
- A vida de uma criança está em jogo, Phil. Eu tenho bastante iniciativa para nós dois. Isso deve ser feito da maneira correta e vou garantir que
seja. - Ela se virou para o computador com um ar de ter terminado a conversa.
Phil abriu a boca para falar mais, então, pensou melhor, ao ver o olhar repressivo que Karen lançou em sua direção. Eles se sentiram atraídos um pelo outro desde
o começo da carreira, reconhecendo a tendência comum de não se conformar. O fato de haverem galgado postos juntos lhes havia conferido uma amizade capaz de sobreviver
ao desafio da mudança de cargo. Mas ele sabia que havia um limite até onde podia pressionar Karen, e tinha a sensação de haver acabado de atingi-lo.
- Então, eu lhe darei cobertura por aqui - ele disse.
- Por mim, está ótimo - Karen disse, enquanto seus dedos voavam pelas teclas. - Marque a minha saída para amanhã de manhã. Tenho a impressão de que Jenny
Prentice será um pouquinho mais receptiva a uma dupla de policiais do que foi com a filha.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Aprender a esperar era uma das lições do jornalismo que as faculdades não ensinavam. Quando Bel Richmond tivera um emprego de tempo integral, em um jornal dominical,
sempre defendera que era paga não por uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, e sim pelos cinco minutos em que conseguia, com sua lábia, passar por uma
porta que ninguém antes conseguira cruzar. O que deixava bastante tempo livre para esperar. Esperar que alguém retornasse um telefonema. Esperar que o passo seguinte
da história acontecesse. Esperar que um contato se transformasse em informante. Bel havia passado por várias esperas e, embora tivesse se tornado habilidosa na atividade,
nunca havia aprendido a apreciá-la.
Tinha de admitir que já precisara esperar em ambientes muito menos salubres que aquele. Ali, havia o conforto do café, biscoitos e jornais. E a sala na qual havia
sido deixada oferecia a vista panorâmica que já enfeitara um milhão de latas de biscoitos amanteigados. Ocupando toda a extensão da Princess Street, exibia um punhado
de atrações turísticas: o castelo, o Scott Monument, a National Gallery e o parque Prince Street Gardens. Bel notou outra beleza arquitetônica significativa, mas
não sabia o suficiente sobre a cidade para identificá-la. Ela só visitara a capital escocesa algumas
vezes e não fora escolha sua realizar aquela reunião ali. Teria preferido Londres; porém, a relutância em mostrar seus trunfos antecipadamente a havia deslocado
do assento do motorista para o posto de suplicante.
De forma um tanto incomum para uma jornalista freelance, ela contava com um assistente de pesquisa. Jonathan era estudante de jornalismo na City University e pedira
a seu orientador que o indicasse para estagiar com Bel. Aparentemente, ele gostava do estilo dela. Bel ficara levemente agradecida pelo elogio, mas profundamente
maravilhada com a perspectiva de ter oito semanas livres de todo trabalho pesado. Sendo assim, Jonathan fizera o primeiro contato com a Maclennan Grant Enterprises.
Voltou com uma resposta bem simples: se a Srta. Richmond não estava preparada para declarar seu motivo para querer um encontro com Sir Broderick Maclennan Grant,
Sir Broderick não estava preparado para se encontrar com ela. Sir Broderick não dava entrevistas. Após algumas negociações adicionais a distância, ela chegara ao
presente acordo.
E agora, pensou Bel, ela estava sendo colocada em seu lugar. Obrigada a ficar esperando numa sala de reuniões de hotel. Forçada a entender que alguém tão importante
quanto a assistente pessoal do presidente e acionista principal da décima segunda empresa mais valiosa do país tinha compromissos mais urgentes em sua agenda do
que fazer sala para uma escritorazinha de Londres.
Gostaria de se levantar e caminhar um pouco, mas não queria revelar qualquer falta de compostura. Ceder terreno nunca fora natural para ela. Em vez disso, ajeitou
a jaqueta, verificou se a blusa estava adequadamente arrumada e tirou uma sujeirinha dos sapatos de camurça verde-esmeralda.
Afinal, precisamente quinze minutos depois da hora marcada, a porta se abriu. A mulher que entrou, num turbilhão de lã e caxemira, lembrava uma professora de colégio,
de idade indeterminada, mas acostumada a impor disciplina aos alunos. Por um momento insano, Bel quase se levantou de um pulo, num reflexo pavloviano às suas recordações
adolescentes de freiras terroristas. No entanto, conseguiu se conter e se levantou de forma mais lenta.
- Susan Charleson - disse a mulher, estendendo a mão. - Desculpe-me por tê-la feito esperar. Como Harold Macmillan disse uma vez: "Acontecimentos, caro rapaz.
Acontecimentos."
Bel decidiu não ressaltar que Harold Macmillan referia-se ao trabalho de primeiro-ministro, e não à função de babá de um líder industrial. Segurou os dedos mornos
e secos, em um aperto rápido e rígido, e, então, teve a mão liberada.
- Annabel Richmond.
Susan Charleson ignorou a poltrona em frente a Bel e dirigiu-se à mesa perto da janela. Pega de surpresa, Bel apanhou a bolsa e a pasta de couro e a seguiu. Sentaram-se
em lados opostos e Susan sorriu, os dentes pareciam uma linha de creme dental calcária em meio ao batom rosa-escuro.
- Você queria ver Sir Broderick - ela disse. Sem preâmbulos, sem conversa fiada sobre a vista. Simplesmente direta. Era uma técnica que Bel havia utilizado
algumas vezes, o que não queria dizer que a apreciasse quando a situação era inversa.
- Exatamente.
Susan balançou a cabeça.
- Sir Broderick não fala com a imprensa. Temo que você tenha desperdiçado seu tempo. Expliquei tudo isso a seu assistente, mas ele se recusou a aceitar uma
resposta negativa.
Foi a vez de Bel sorrir com frieza.
- E fez muito bem. Eu, obviamente, lhe dei um bom treinamento. Mas parece haver um mal-entendido. Não estou aqui para implorar por uma entrevista. Estou aqui
porque acho que tenho algo em que Sir Broderick ficará interessado. - Ela ergueu a pasta até a mesa e abriu o zíper. De dentro, retirou uma única folha de papel
A3 grosso, virada para baixo. Estava manchada e exalava um cheiro sutil, uma mistura curiosa de poeira, urina e lavanda. Bel não resistiu a lançar uma olhadela provocadora
para Susan Charleson. - Você gostaria de ver? - ela perguntou, virando o papel.
Susan tirou um estojo de couro do bolso da saia e extraiu dele uns óculos de aro de casco de tartaruga. Equilibrou-os no nariz, calmamente, mas sem tirar os olhos
das imagens em preto e branco à sua frente. O silêncio entre as mulheres pareceu crescer, e Bel sentiu-se sem ar enquanto esperava por uma resposta.
- Onde você encontrou isto? - Susan perguntou, seu tom de voz estava tão afetado quanto o de uma professora de latim.
Segunda-feira, 18 de junho de 2007; Campora, Toscana, Itália
Às sete da manhã era quase possível acreditar que o calor intenso dos últimos dez dias não fosse dar as caras. A luz perolada do dia cintilava entre a abóbada de
folhas de carvalho e castanheira, deixando visíveis as partículas de poeira que espiralavam, emitidas pelos pés de Bel. Ela se movia devagar o bastante para notá-las
porque a trilha destruída que descia em meio às árvores era sulcada e esburacada, coberta com pedras irregulares o bastante para conscientizar qualquer corredor
da fragilidade de seus tornozelos.
Apenas mais duas daquelas corridas matinais tão apreciadas antes de retornar às sufocantes ruas de Londres. O pensamento provocou uma ferroada de arrependimento.
Bel adorava escapulir da villa enquanto todos ainda estavam dormindo. Ela podia andar descalça pelo chão frio de mármore, fingindo ser a castelã do lugar, e não
simplesmente outra arrendatária tentando tirar uma casquinha da elegância toscana.
Ela vinha tirando férias com o mesmo grupo de cinco amigas desde que dividiram uma casa, em seu último ano na universidade de Durham. Naquela primeira vez, elas
estavam estudando arduamente para os exames finais. Os pais de uma delas tinham uma casa de campo na Comualha, que elas ocuparam por uma semana. Haviam chamado aquilo
de pausa nos estudos; na verdade, foram umas férias em que descansaram e relaxaram, ficando em melhores condições para prestar os exames do que se tivessem se exaurido
com livros e artigos. E, apesar de serem jovens modernas e nem um pouco dadas a superstições, todas sentiram que a semana que haviam passado juntas tinha, de alguma
forma, sido responsável por suas boas notas. Desde então, vinham se reunindo todos os anos, em junho, com o compromisso de se divertir.
Ao longo dos anos, seus hábitos alcoólicos haviam se tornado mais apurados; os alimentícios, mais epicuristas; e as conversas, mais escandalosas. Os lugares haviam
se tornado cada vez mais luxuosos. Amantes jamais eram convidados para compartilhar aquela semana das garotas. Ocasionalmente, uma delas hesitava, alegando muita
pressão no trabalho ou obrigações familiares, mas, geralmente, era ameaçada e mudava de ideia rapidamente e sem dar muito trabalho.
Para Bel, aquele era um elemento significativo de sua vida. Todas aquelas mulheres eram bem-sucedidas, todas eram fontes com as quais podia
contar para suavizar seu caminho, de tempos em tempos. Mas, apesar disso, não era essa a razão principal de suas férias serem tão importantes. Parceiros haviam chegado
e partido, mas aquelas amigas sempre foram uma constante. Em um mundo no qual se era julgado de acordo com sua última manchete, era agradável ter um refúgio onde
nada disso importava. Onde ela era apreciada simplesmente porque o grupo se divertia mais quando ela estava presente. Elas se conheciam havia muito tempo para perdoar
os defeitos umas das outras, para aceitar as opiniões políticas umas das outras e para dizer aquilo que seria impronunciável diante de qualquer outra pessoa. Essas
férias faziam parte da fortaleza que ela constantemente levantava contra suas próprias inseguranças. Além disso, atualmente, eram as únicas férias que ela tirava
que estavam de acordo com o que ela queria fazer. Nos últimos seis anos, ela estivera presa à sua irmã viúva, Vivianne, e seu filho Harry. A morte repentina do marido
de Vivianne, vítima de um ataque cardíaco, a deixara emocionalmente abalada e muito carente. Bel não hesitara em unir seu destino ao da irmã e do sobrinho. No final,
tinha sido uma boa decisão, mas, ainda assim, ela valorizava muito a pausa anual daquela vida familiar que nunca imaginou que viveria. Principalmente agora, quando
Harry se encontrava à beira da crise existencial da adolescência. Este ano, portanto, mais ainda do que no passado, as férias tinham de ser especiais, precisavam
superar tudo que já havia existido.
Era difícil imaginar como elas superariam isso, ela pensou, enquanto emergia das árvores e virava num campo de girassóis que se preparavam para florescer. Ela se
apressou um pouco ao percorrer seu caminho pela margem, o-nariz franzindo com o aromático perfume da vegetação. Não havia nada que ela desejasse mudar naquele lugar,
nenhum defeito que pudesse encontrar nos jardins e nas árvores frutíferas que rodeavam a varanda e a piscina. A vista do Val d'Eisa era deslumbrante, com as cidadezinhas
de Volterra e San Gimignano no horizonte distante.
E havia o bônus adicional da culinária de Grazia. Quando elas descobriram que a "chef local" descrita no site da Internet era a esposa do criador de porcos que vivia
ali perto, desistiram de chamá-la até a villa para preparar uma refeição tipicamente toscana. Na tarde do terceiro dia, no entanto, todas estavam incomodadas demais
com o calor para se dar ao trabalho de cozinhar; então, chamaram Grazia. O marido, Maurizio, a levou até a villa
num Fiat Panda caindo aos pedaços, que parecia se manter inteiro à custa de barbantes e fé. Ele descarregou caixas de comida cobertas de musselina. Num inglês macarrônico,
Grazia as expulsou da cozinha e mandou que fossem relaxar na varanda com um drinque.
A comida foi uma revelação: salames com frutas secas e prosciutto feito dos raros porcos Cinta di Siena que Maurizio criava, combinados com figos perfumados colhidos
em seu pomar; espaguete ao pesto de estragão e manjericão; codornas assadas com os vegetais cultivados por Maurizio e tiras compridas de batata temperadas com alecrim
e alho; queijos produzidos em fazendas da região e, finalmente, um delicioso bolo de amêndoas embebido com limoncello.
As mulheres nunca mais cozinharam.
A culinária de Grazia fez com que as corridas matinais de Bel se tornassem ainda mais necessárias. Ao aproximar-se dos quarenta, ela lutava cada vez mais para manter
o que pensava ser seu peso ideal. Naquela manhã, seu estômago ainda parecia uma bola rígida, após as suaves e deliciosas berinjelas alia parmigiana que a haviam
tentado a repetir generosamente o prato. Iria correr um pouco mais longe do que o normal, decidiu. Em vez de fazer o circuito do campo de girassóis e subir de volta
à villa, tomaria uma trilha que ia da extremidade mais distante e cruzava o terreno coberto de vegetação de uma casa colonica em ruínas, que ela avistara ao passar
de carro. Desde que vira a casa, na primeira manhã, tinha alimentado a fantasia de comprar a ruína e transformá-la no melhor dos refúgios toscanos, com direito
a piscina e jardim de oliveiras. E, é claro, com Grazia à disposição para cozinhar. Bel não tinha muitos escrúpulos com relação à invasão de propriedades, em fantasia
ou na realidade.
Mas ela se conhecia o suficiente para saber que aquilo nunca passaria de um sonho. Ser proprietária de um refúgio implicava o desejo, que ela não tinha, de abandonar
seu universo de trabalho. Talvez, quando estivesse pronta para se aposentar, pudesse considerar a possibilidade de devotar-se a um projeto de restauração como aquele.
A não ser pelo fato de admitir que esse era outro sonho pouco realista. Jornalistas jamais se aposentavam de verdade. Sempre havia outra história no horizonte, outro
alvo a perseguir. Sem falar do horror de ser esquecido. Todos motivos pelos quais seus relacionamentos passados não haviam durado, todos motivos pelos quais seu
futuro provavelmente reservasse as mesmas imperfeições. Ainda assim,
seria divertido dar uma olhada mais de perto na velha casa para ver seu estado. Quando mencionara a ideia a Grazia, ela fizera uma careta e a chamara de rovina.
Bel, cujo italiano era fluente, havia traduzido para as demais: "ruína". Hora de descobrir se Grazia estava dizendo a verdade ou apenas tentando desviar o interesse
de algumas ricaças inglesas.
O caminho através da grama alta ainda estava surpreendentemente limpo, o solo nu endurecido por anos de pisadas. Bel aproveitou a oportunidade para ir mais rápido,
até diminuir a velocidade ao chegar ao pátio fechado por portões, em frente à velha fazenda. Os portões estavam dilapidados, pendendo frouxamente das dobradiças
que mal se apegavam aos pilares de pedra. Uma corrente pesada e um cadeado os mantinham fechados. Mais além, o pavimento quebrado do pátio estava demarcado por tufos
rasteiros de tomilho, camomila e mato. Bel sacudiu os portões sem muita esperança. Mas foi o suficiente para revelar que o canto inferior do portão direito havia
se soltado completamente do suporte. Poderia ser facilmente afastado para que um adulto passasse pela abertura. Bel deslizou por ali e soltou o portão, que rangeu
suavemente ao voltar para sua posição de origem, aparentemente fechado.
De perto, ela pôde entender a descrição de Grazia. Qualquer um que assumisse a restauração ficaria escravo dos pedreiros por um longo, longo tempo. A casa rodeava
o pátio em três lados, uma ala central delimitada por dois braços iguais. Havia dois andares, com uma varanda percorrendo todo o segundo andar, na qual se abriam
portas e janelas, conferindo aos quartos fácil acesso ao ar livre e ao espaço de uso comum. Mas o chão da varanda havia cedido, as portas que restavam estavam tortas
e as vergas sobre as janelas estavam rachadas, pendendo em ângulos estranhos. As vidraças, em ambos os andares, estavam imundas, rachadas ou haviam desaparecido.
Mas as linhas sólidas da atraente arquitetura local ainda eram visíveis, e as pedras ásperas brilhavam calorosamente ao sol da manhã.
Bel não teria conseguido explicar por que, mas a casa a atraía. Tinha o charme desgastado de uma beldade suficientemente segura de si para permitir-se envelhecer
sem luta. Buganvílias sem poda estendiam-se sobre o estuque ocre descascado e cobriam a parede inferior da varanda. Se ninguém decidisse se apaixonar logo pela casa,
muito em breve ela estaria tomada pela vegetação. Em algumas gerações, não seria nada além de um
aterro inexplicável na ladeira da colina. Mas, naquele instante, ela ainda tinha o poder de enfeitiçar.
Bel atravessou o pátio que se esfarelava, passando por vasos de terracota rachados e tombados; as ervas que estes um dia haviam contido agora se espalhavam e brotavam
livremente, condimentando o ar com suas fragrâncias. Ela empurrou uma porta pesada, feita de tábuas de madeira que pendiam de uma única dobradiça. A madeira raspou
ruidosamente contra o piso desnivelado, de tijolos assentados em ziguezague, mas se abriu o suficiente para que Bel entrasse na sala ampla sem ter de se espremer.
Sua primeira impressão foi de sujeira e abandono. Teias de aranha se entrelaçavam num emaranhado que ia de parede a parede. As janelas estavam manchadas de poeira.
Um ruído de algo rastejando, a distância, fez com que Bel olhasse em volta, em pânico. Ela não tinha medo dos editores de jornais, mas ratos de quatro patas a enchiam
de repulsa.
Conforme ia se acostumando à obscuridade, Bel percebeu que a sala não estava completamente vazia. Havia uma mesa comprida contra uma parede. No lado oposto, um sofá
com o assento afundado. A julgar pelo resto do lugar, deveria estar podre e imundo, mas o tecido vermelho-escuro que o forrava ainda se mantinha relativamente limpo.
Ela arquivou aquele dado estranho para posterior consideração.
Bel hesitou por um instante. Tinha certeza de que nenhuma de suas amigas a encorajaria a prosseguir na exploração daquela estranha casa deserta. Mas ela havia construído
sua carreira com base em uma reputação de audácia. Só ela sabia com que frequência sua aparência ocultava níveis de ansiedade e incerteza que a haviam feito vomitar
em sarjetas e banheiros nos lugares mais estranhos. Depois de tudo que ela já havia enfrentado, em sua determinação de conseguir uma boa história, até que ponto
uma ruína deserta poderia ser assustadora?
Uma porta na extremidade mais distante conduzia a um corredor apertado, com uma escadaria gasta de pedra que levava à varanda. Mais à frente, ela podia ver outra
sala escura e suja. Espiou lá dentro, surpresa em ver um varal pendurado a um canto, com meia dúzia de cabides de metal. Pendurado em um dos cabides, havia um cachecol
de tricô. Por baixo, uma pilha amarrotada de roupa de camuflagem. Parecia uma daquelas jaquetas de caça, geralmente à venda na caminhonete que ficava no estacionamento
em frente ao café, na estrada principal de Colle di Val d'Eisa. As mulheres tinham rido daquilo uns dias atrás, se perguntando quando é que tinha virado moda os
italianos de todas as idades vestirem-se como recém-saídos do serviço militar nos Bálcãs. Estranho, ela pensou. Bel subiu cautelosamente as escadas até a varanda,
esperando encontrar a mesma sensação de lugar havia muito desabitado.
Porém, assim que emergiu da escadaria, percebeu que penetrara em algo muito diferente. Quando se virou para a esquerda e espiou pela primeira porta, entendeu que
aquela casa não era o que parecia. O bolor úmido do andar térreo era infinitamente menor ali, e o ar estava quase tão fresco quanto lá fora. O cômodo havia, obviamente,
sido um quarto, e não fazia muito tempo. Havia um colchão no chão com uma colcha atirada casualmente por cima, da metade para os pés. Estava empoeirado, mas não
havia nada comparável à sujeira impregnada do andar de baixo. De novo, havia um varal no canto. Tinha uma dúzia de cabides vazios, mas os últimos três seguravam
camisas levemente amarrotadas. Mesmo a distância, ela podia ver que não estavam em seu melhor estado, desbotadas nas mangas e nos colarinhos.
Um par de caixotes de tomate funcionava como criados-mudos. Sobre um deles, um toco de vela num pires. Uma edição amarelada do jornal Frankfurter AUgemeine Zeitung
jazia no chão, ao lado do colchão. Bel o apanhou, notando que a data era de menos de quatro meses atrás. Teve então uma ideia de quando o lugar havia sido abandonado
pela última vez. Ela ergueu a manga de uma das camisas e a pressionou contra o nariz. Alecrim e maconha. Suave, mas inconfundível.
Voltou para a varanda e verificou os demais quartos. O padrão era semelhante. Mais três quartos contendo uma porção de restos: algumas camisetas, livros e revistas
em inglês, italiano e alemão, meia garrafa de vinho, um resto de batom, uma sandália de couro cuja sola havia se soltado da parte de cima - o tipo de coisa que alguém
deixaria para trás, caso estivesse se mudando sem a mínima ideia de quem viria em seguida. Em um dos quartos, um buquê de flores enfiado num pote de azeitonas havia
secado a ponto de se desfazer.
O último quarto no lado oeste era o maior, até agora. Suas janelas haviam sido limpas mais recentemente do que as dos outros, as persianas
tinham sido reformadas e as paredes, caiadas. No meio do quarto, no chão, havia uma tela de silk-screen. Sobre mesas de cavaletes, encostadas numa parede, havia
copos plásticos manchados com pigmentos ressecados e pincéis endurecidos de forma negligente. Manchas e borrões espalhados marcavam o piso. Bel estava intrigada,
sua curiosidade superava qualquer vestígio de nervosismo por estar sozinha naquele lugar tão peculiar. Quem quer que houvesse estado ali, devia ter partido apressadamente.
Deixar uma sólida tela de silk-screen para trás não era algo que se fizesse, numa partida planejada.
Ela retornou à varanda e dirigiu-se à ala oposta. Teve o cuidado de permanecer próximo à parede, não confiando que o piso ondulado de tijolos suportasse seu peso.
Passou pelas portas dos quartos, sentindo-se como uma intrusa no Mary Celeste*. Um silêncio que não era quebrado nem mesmo por cantos de pássaros acentuava aquela
impressão. O último cômodo antes do canto era um banheiro cuja mescla nauseante de odores ainda pairava no ar. Um rolo de mangueira estava no chão, uma das extremidades
desaparecia através de um buraco perto da janela. Eles haviam, portanto, improvisado um pouco de água corrente, embora não o suficiente para deixar o vaso sanitário
menos asqueroso. Ela franziu o nariz e retrocedeu.
Bel virou a esquina da varanda no instante em que o sol se elevava acima das árvores, banhando-a num repentino calor. Fez com que sua entrada no último quarto fosse
ainda mais assustadora. Estremecendo com o ar úmido, ela se aventurou lá dentro. As persianas estavam bem fechadas, deixando o interior escuro demais para enxergar
qualquer coisa. Mas, conforme seus olhos se ajustaram, ela obteve uma impressão do quarto. Tinha as mesmas dimensões do estúdio, mas sua função era bem diferente.
Ela o atravessou até a janela mais próxima e forçou até finalmente abrir a persiana pela metade. Era o suficiente para confirmar sua primeira impressão. Aquele havia
sido o centro da ocupação da casa rovina. Havia um velho fogão desgastado, conectado a um botijão de gás, ao lado da pia de pedra. A mesa de jantar estava arranhada
e era de madeira nua, porém sólida, e com pernas lindamente esculpidas. Havia sete cadeiras díspares ao redor, e uma oitava encontrava-se tombada, a alguns metros
de distância. Contra as
* Barco encontrado à deriva, em 1872, no estreito de Gibraltar, cuja tripulação desapareceu. (N.E.)
paredes, uma cadeira de balanço e alguns sofás. Peças avulsas de louça e talheres estavam espalhadas, como se os moradores não se tivessem dado ao trabalho de recolhê-las
de onde haviam deixado.
Quando Bel se afastou da janela, uma mesa bamba chamou sua atenção. Como estava atrás da porta, era fácil não percebê-la. Uma coleção do que pareciam ser pôsteres
se espalhava sobre ela. Fascinada, ela foi em direção à mesa. Dois passos e parou, sua respiração ofegante ecoava no ar poeirento.
Diante dela, no piso de pedra calcária, havia uma mancha irregular, de talvez noventa por quarenta e cinco centímetros. Marrom-ferrugem, bordas arredondadas e lisas,
como se houvesse escorrido e empoçado, em vez de espirrado. Era densa o bastante para obscurecer o piso de pedra sob ela. Uma porção, na extremidade mais distante,
parecia borrada e diluída, como se alguém houvesse tentado limpar, esfregando-a, para logo desistir. Bel já havia feito coberturas de histórias de violência doméstica
e de homicídio sexual o suficiente para reconhecer uma mancha de sangue relevante quando a via.
Assustada, deu um passo atrás, sentia-se tonta, o coração batia com tanta força que achou que fosse sufocá-la. Que diabos havia acontecido ali? Ela olhou em volta
de forma desordenada, percebendo outras manchas escuras marcando o piso além da mesa. Hora de sair daqui, gritava a parte sensata de sua mente. Mas o demônio da
curiosidade sussurrava em seu ouvido. Há meses não há ninguém aqui. Olhe para a poeira. Já faz tempo que se foram. Não vão voltar num futuro próximo. Seja o que
for que tenha acontecido aqui, foi motivo suficiente para que dessem o fora. Dê uma olhada nos pôsteres...
Bel rodeou a mancha, passando o mais longe possível para não tocar em nenhum móvel. De repente, ela sentiu o ar pesado. Sabia que era só imaginação, mas, ainda assim,
parecia real. De costas para o quarto e com o rosto voltado para a porta, ela foi andando de lado até a mesa e olhou para baixo, para os pôsteres que a cobriam.
O segundo choque foi quase tão forte quanto o primeiro.
Bel sabia que estava correndo rápido demais morro acima, mas não podia diminuir o passo. Podia sentir o suor da mão cobrir o papel de boa qualidade do pôster enrolado.
Por fim, a trilha emergiu do meio das árvores e ficou menos traiçoeira, ao aproximar-se de sua villa de férias. A estrada descia
quase imperceptivelmente, mas a gravidade era suficiente para dar a suas pernas cansadas um impulso extra, e ela ainda ia rápido ao virar a curva da casa e encontrar
Lisa Martyn deitada à sombra, no terraço, em uma espreguiçadeira e com a edição de sexta-feira do Guardian como companhia. Bel ficou aliviada. Precisava falar com
alguém e, de todas as suas companheiras, era menos provável que Lisa transformasse suas revelações em fofocas da hora do jantar. Lisa, como advogada de direitos
humanos, cuja compaixão e feminismo pareciam tão inevitáveis quanto o ato de respirar, entenderia o potencial da descoberta que Bel pensava ter feito. Assim como
seu direito de lidar com aquilo do jeito que achasse melhor.
Lisa afastou lentamente os olhos do jornal, perturbada pelo arfar incomum da respiração de Bel.
- Meu Deus - ela disse. - Você parece a ponto de infartar.
Bel colocou o pôster numa cadeira e se curvou, as mãos apoiadas nos joelhos, puxando o ar para dentro dos pulmões, arrependida dos cigarros surrupiados em segredo.
- Ficarei... bem... num minuto.
Lisa se levantou desajeitadamente da espreguiçadeira e correu até a cozinha, voltando com uma toalha e uma garrafa de água. Bel se empertigou, pegou a água e derramou
metade sobre a cabeça, fungando ao inalar um pouco acidentalmente. Então, esfregou a cabeça com a toalha e se deixou cair numa cadeira. Tomou um gole comprido de
água enquanto Lisa voltava para a espreguiçadeira.
- O que aconteceu? - Lisa perguntou. - Você é a corredora mais digna que eu conheço. Nunca vi uma Bel sem fôlego na vida. O que foi que a deixou neste estado?
- Encontrei uma coisa - Bel disse. Seu peito ainda lutava, mas ela conseguiu emitir alguns sopros de fala. - Pelo menos, acho que encontrei. E se estiver
certa, será a história da minha carreira. - Ela estendeu a mão para apanhar o pôster. - Espero que você possa me dizer se perdi completamente a cabeça.
Intrigada, Lisa jogou o jornal no chão e se endireitou.
- Então, o que é... essa coisa que pode ser alguma coisa?
Bel desenrolou o papel grosso, prendendo-o nos cantos com um moedor de pimenta, uma caneca de café e dois cinzeiros sujos. A imagem na folha
A3 era impressionante. Havia sido desenhada para que parecesse uma simples xilogravura em preto e branco, no estilo impressionista alemão. No alto da página, um
homem barbado, com um topete de cabelo duro, se inclinava por cima de uma tela, e suas mãos seguravam cruzes de madeira, das quais pendiam três marionetes. Mas não
eram marionetes comuns. Uma era um esqueleto, a segunda era um bode, e a terceira, uma representação da Morte, com o manto encapuzado e a foice. Havia algo indiscutivelmente
sinistro na imagem. Abaixo, contornada por uma borda negra funesta, havia uma área em branco, de aproximadamente oito centímetros de profundidade. Era o tipo de
espaço onde se poderia colocar um aviso anunciando uma apresentação teatral.
- Puta que me pariu! - disse Lisa. Finalmente, ela ergueu os olhos. - Catriona Maclennan Grant - ela disse. Havia espanto em sua voz. - Bel... onde diabos
você encontrou isto?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Bel sorriu.
- Antes de responder a isso, quero deixar algumas coisas claras.
Susan Charleson revirou os olhos.
- Você não pode estar achando que é a primeira pessoa que passa por esta porta com uma cópia falsificada do pôster de resgate. Vou lhe dizer o mesmo que disse
a todos os outros. A recompensa está condicionada à localização do neto de Sir Broderick vivo, ou à demonstração, de forma conclusiva, de que ele esteja morto. Sem
falar em levar os assassinos de Catriona Maclennan Grant à Justiça.
- Você não está me entendendo - Bel disse, com um sorriso provocador, mas sem ceder um só milímetro. - Srta. Charleson, não estou nem um pouco interessada
no dinheiro de Sir Broderick. Mas tenho uma condição.
- Você está cometendo um erro. - A voz de Susan Charleson havia adquirido um toque ácido. - Este assunto é um caso policial. Você não está em posição de impor
condições.
Bel colocou a mão firmemente sobre o pôster.
- Posso sair agora mesmo por aquela porta com este pôster e esquecer que o vi. Não teria qualquer dificuldade em mentir para a polícia. Sou uma
jornalista, afinal. - Ela estava começando a se divertir muito mais do que havia previsto. - É a sua palavra contra a minha, Srta. Charleson. E eu sei que você não
quer que eu vá embora. Uma das habilidades que um jornalista bem-sucedido deve aprender é como ler as pessoas. E vi a forma como você reagiu ao olhar para isto.
Você sabe que é verdadeiro, e não uma cópia falsificada.
- Você tem uma postura bem agressiva - Susan Charleson parecia quase indiferente.
- Prefiro dizer que sou assertiva. Não vim aqui para discutir com você, Srta. Charleson. Quero ajudar. Mas não de graça. Pela minha experiência, os ricos
não dão valor a nada daquilo por que não tenham de pagar.
- Você disse que não estava interessada em dinheiro.
- É verdade. Não estou. No entanto, estou interessada em reputação. E a minha reputação está construída sobre o fato de não ser, simplesmente, a primeira
a aparecer com a história, mas em obter a história por trás da história. Acho que existem áreas em que posso ajudar a desvendar isso com mais eficácia do que os
canais oficiais. Tenho certeza de que você irá concordar, quando eu explicar de onde veio este pôster. Tudo o que peço é que você não me impeça de investigar o caso.
E, além disso, que você e seu chefe cooperem compartilhando informações sobre o que estava acontecendo na época em que Catriona foi sequestrada.
- Esse é um pedido bastante significativo. Sir Broderick não é um homem que aceite abrir mão facilmente de sua privacidade. Você há de convir que não tenho
autoridade para lhe garantir o que está pedindo.
Bel ergueu um ombro delicadamente.
- Então, podemos nos encontrar novamente quando você tiver uma resposta. - Ela deslizou o pôster pela mesa, abrindo a pasta para guardá-lo novamente.
Susan Charleson se levantou.
- Se você puder me dar alguns minutos, pode ser que eu consiga lhe dar uma resposta agora.
Bel soube, neste ponto, que havia ganhado. Susan Charleson queria demais aquilo. Ela convenceria o chefe a aceitar o acordo. Fazia anos que Bel não se sentia tão
excitada. Não significava simplesmente uma enxurrada de notícias e colunas jornalísticas, embora não houvesse um só jornal no
mundo que não fosse ficar interessado. Principalmente depois do caso Madeleine McCain. Com acesso ao misterioso Brodie Grant, mais a chance de descobrir o paradeiro
de seu neto, aquilo era um best-seller em potencial. O A Sangue Frio do novo milênio. Seria sua porta de entrada para o mundo do dinheiro fácil.
Bel sorriu. Talvez ela pudesse usar os ganhos na compra da casa ravina e assim completar o círculo. Era difícil imaginar algo mais perfeito.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Já fazia alguns anos desde a última vez que Karen tomara a estrada de mão única que conduzia a Newton of Wemyss. Mas era óbvio que o vilarejo tinha passado pelas
mesmas transformações que as vilas vizinhas, que margeavam a estrada principal. Aqueles que trabalhavam nas cidades próximas tinham atacado avidamente as quatro
vilas de Wemyss, enxergando possíveis casas rústicas no que um dia foram tristes casebres de mineiros. Cabanas de um quarto tinham sido demolidas para que se construíssem
amplas casas de campo, quintais transformados por estufas de plantas que enchiam de luz as cozinhas obscuras. Vilarejos que tinham fenecido e morrido após o desastre
na mina Michael, em 1967, e devido aos fechamentos que se seguiram à greve de 1984, haviam renascido como cidades-dormitório, cuja ideia de comunidade se restringia
às noites de jogos no pub local. Nas lojinhas da vila se podia comprar uma vela perfumada, mas não um litro de leite. A única forma de saber que já houvera uma comunidade
mineira ali era através de uma maquete do sistema de elevador do poço da mina, que se erguia sobre o ponto em que a ferrovia particular a vapor havia, no passado,
cruzado com a estrada principal, carregada com vagões abertos de carvão destinados ao fim da linha, em Thomton Junction. Agora, as casas caiadas dos mineiros pareciam
uma opção deliberada do arquiteto, como uma vila típica deveria parecer. O passado tinha sido superado por um presente de design.
Desde sua última visita, Newton of Wemyss havia melhorado muito. O modesto memorial de guerra ficava num triângulo de grama aparada no centro. Floreiros de madeira
o circulavam a intervalos perfeitos. Imaculadas casas de campo térreas bordejavam o parque da cidade, e a única exceção à baixa linha de construção era o imponente
volume do pub local, o Laird
o' Wemyss. Antigamente, havia sido propriedade coletiva da comunidade local sob o sistema Gothenburg*, mas os tempos difíceis nos anos oitenta o haviam obrigado
a fechar as portas. Agora, era um restaurante, e sua "cozinha de fusão escocesa" era capaz de atrair à cidade visitantes de lugares tão remotos quanto Dundee e Edimburgo,
e seus preços se elevavam bem acima do orçamento. Ela se perguntou quanto Mick Prentice teria de se deslocar para uma simples cerveja, se houvesse permanecido em
Newton.
Consultou as orientações que havia imprimido do site Mapquest e indicou uma estrada no ápice do triângulo a seu motorista, o detetive Jason "Novo em Folha" Murray.
- Você tem que descer esta rua aqui - ela disse. - Em direção ao mar. Onde ficava a mina.
Logo deixaram o centro da vila para trás. Arbustos desgrenhados bordejavam um exuberante campo de trigo verde à direita.
- Toda essa chuva, está fazendo tudo crescer de forma desenfreada - disse o Novo em Folha. Ele levara os 25 minutos do escritório até ali para produzir aquele
comentário.
Karen não estava interessada em conversar sobre o clima. O que havia para dizer? Tinha chovido o maldito verão inteiro, até agora. Só porque não estava chovendo
naquele exato instante, não significava que não choveria no fim do dia. Ela olhou à sua esquerda, onde os prédios da mina de carvão haviam estado. Tinha uma vaga
lembrança de haver escritórios, banheiros e uma cantina. Agora, tudo se reduzia ao alicerce de concreto, com o mato abrindo caminho entre as rachaduras irregulares
para reivindicar o terreno. Mais adiante, havia uma série de casebres intactos dos mineiros; oito casas deterioradas, no meio do nada devido à demolição dos prédios
que um dia deram razão à sua existência. Além delas havia um denso grupo de sicômoros e faias, um compacto quebra-vento entre as casas e a borda do penhasco, que
descia nove metros até a faixa costeira.
- Era ali que ficava a Lady Charlotte - ela disse.
- Hã? - o Novo em Folha pareceu espantado.
- A mina, Jason.
- Ah. Certo. Claro. Não é do meu tempo. - Ele espiou pelo para-brisa, fazendo-a se perguntar, com certa irritação, se ele precisaria de óculos. - Qual é a
casa, chefe?
* Aplicava-se ao controle do consumo e da comercialização de bebidas alcoólicas. (N.E.)
Ela apontou para a penúltima. O Novo em Folha desviou o carro dos buracos com tanto cuidado quanto se fosse seu e parou no final da rua de Jenny Prentice.
Apesar do telefonema de Karen marcando o encontro, Jenny não teve pressa em abrir a porta, o que deu a eles tempo suficiente para examinar as lajotas de concreto
rachadas e a deprimente entrada de cascalhos cheia de mato.
- Se esta casa fosse minha... - começou o Novo em Folha e, então, abandonou o pensamento, como se fosse algo grande demais para considerar.
A mulher que atendeu à porta tinha o ar de alguém que passava seus dias deitada para que a vida pudesse pisoteá-la mais facilmente. Seu cabelo escorrido e grisalho
estava preso atrás com descuido, mechas escapando dos dois lados. A pele era enrugada, com veias irregulares mapeando as bochechas. Usava um jaleco de náilon que
vinha até o meio das coxas, por cima de uma calça preta barata cujo tecido estava repleto de bolinhas. O jaleco era de um tom de lavanda impossível de se encontrar
na natureza. Os pais de Karen ainda viviam em uma rua habitada por ex-mineiros e suas famílias, na ultrapassada cidade de Methil, mas até o mais desequilibrado de
seus vizinhos teria tido um pouco mais de trabalho com a aparência, ao saber que receberia uma visita oficial. Karen nem tentou não julgar Jenny Prentice pela aparência.
- Bom dia, Sra. Prentice - ela disse energicamente. - Sou a inspetora Pirie. Conversamos pelo telefone. Este é o detetive Murray.
Jenny balançou a cabeça e fungou.
- É melhor vocês entrarem.
A sala era apertada, mas limpa. Os móveis, assim como o carpete, estavam fora de moda, mas nem um pouco surrados. Era uma sala para ocasiões especiais, pensou Karen,
em uma vida na qual não havia muitas.
Jenny acenou para que eles se sentassem no sofá e se postou na beirada da poltrona, no lado oposto. Estava claro que não lhes ofereceria nada para beber.
- Então, vocês estão aqui por causa da nossa Misha. Pensei que tivessem mais o que fazer, com todas essas coisas horríveis que sempre leio nos jornais.
- Um marido e um pai desaparecido é algo bastante horrível, a senhora não acha? - disse Karen.
Os lábios de Jenny se apertaram, como se ela sentisse a queimação de uma azia.
- Depende do homem, inspetora. O tipo de cara com quem a senhora costuma se deparar no seu trabalho... não creio que muitas esposas e filhos se incomodem,
quando eles são levados embora.
- A senhora ficaria surpresa. A maioria das famílias fica inconsolável. E pelo menos elas sabem onde o homem delas está. Não precisam viver com a incerteza.
- Não pensei que estivesse vivendo com a incerteza. Achava que sabia muito bem onde Mick estava, até que a nossa Misha começasse a fuçar por aí tentando encontrá-lo.
Karen assentiu.
- A senhora achava que ele estivesse em Nottingham.
- Isso. Achava que ele tivesse ido furar greve. Para ser sincera, não fiquei muito chateada de vê-lo pelas costas. Mas fiquei furiosa por ele ter colocado
aquele rótulo na gente. Preferiria que ele estivesse morto a que fosse um fura-greve, se é o que você quer saber. - Ela apontou para Karen.
- Você fala com sotaque da região. Deve saber como é ficar marcada desse jeito.
Karen assentiu.
- Pior então é saber agora que parece que ele não furou greve nenhuma.
Jenny desviou o olhar.
- Não sei de nada disso. Tudo que sei é que ele não foi para Nottingham naquela noite com aquele grupo de fura-greves.
- Bem, estamos aqui para desvendar o que realmente aconteceu. Meu colega fará algumas anotações, apenas para garantir que eu me lembre direitinho de tudo
o que a senhora me disser. - O Novo em Folha, apressadamente, pegou o caderno, folheando-o com nervosismo. Talvez Phil estivesse certo a respeito das deficiências
dele, pensou Karen. - Agora, preciso do nome completo dele e sua data de nascimento.
- Michael James Prentice. Nascido em 20 de janeiro de 1955.
- E vocês todos moravam aqui na época? A senhora, Michael e Misha?
- Isso. Morei aqui durante toda a minha vida de casada. Nunca tive escolha quanto a isso.
- A senhora tem uma foto de Mick que possa nos dar? Sei que já faz muito tempo, mas poderia ser útil.
- Vocês podem colocar no computador e envelhecer, não podem? - Jenny foi até um aparador e abriu uma gaveta.
- Às vezes, é possível. - Mas caro demais, a não ser que houvesse um motivo mais urgente que a leucemia do seu neto.
Jenny pegou um álbum de couro preto e o trouxe até a poltrona. Quando o abriu, a capa rangeu. Mesmo de cabeça para baixo e do outro lado da sala, Karen podia ver
que era um álbum de casamento. Jenny rapidamente passou pelas fotos formais de casamento até chegar a um envelope na parte de trás, repleto de fotografias avulsas.
Pegou um maço de fotos e as examinou. Parou em algumas e, então, finalmente optou por uma. Entregou a Karen uma fotografia retangular. Mostrava a cabeça e os ombros
de dois jovens, sorrindo para a câmera, o topo dos copos de cerveja aparecendo na imagem ao brindarem o fotógrafo.
- Este é o Mick, à esquerda - disse Jenny. - O bonitão.
Ela não estava mentindo. Mick Prentice tinha cabelo louro-escuro despenteado, cortado mais ou menos como o mullet que George Michael ostentara em sua fase com o
Wham. Mick tinha olhos azuis, cílios ridiculamente longos e um sorriso perigoso. Uma tatuagem de carvão, em forma de foice, atravessava sua sobrancelha direita,
impedindo-o de parecer bonito demais. Karen podia ver exatamente por que Jenny Prentice havia se apaixonado pelo marido.
- Obrigada - ela disse. - Quem é o outro cara?
Um tufo áspero de cabelo castanho, rosto comprido e ossudo, algumas cicatrizes de acne esburacando as bochechas fundas, olhos vivos e um sorriso triangular, como
o do Coringa dos quadrinhos do Batman. Não era bonito como seu companheiro, mas, mesmo assim, havia algo de sedutor nele.
- Seu melhor amigo. Andy Kerr.
O melhor amigo que se matou, segundo Misha.
- Misha me contou que seu marido desapareceu na sexta-feira, 14 de dezembro de 1984. É essa sua lembrança?
- Isso mesmo. Ele saiu de manhã com suas malditas tintas e disse que voltaria para o jantar. Foi a última vez que o vi.
- Tintas? Ele estava fazendo trabalhos extras?
Jenny emitiu um som de desdém.
- Até parece. Bem que precisávamos do dinheiro. Que nada, Mick pintava aquarelas. Pode acreditar? Dá para imaginar uma coisa mais inútil durante a greve de
1984 do que um mineiro pintando aquarelas?
- Ele não poderia vendê-las? - intrometeu-se o Novo em Folha, inclinando-se para a frente e parecendo perspicaz.
- Para quem? Todo mundo aqui estava duro e não havia dinheiro para que ele se arriscasse a tentar ir vender em outro lugar. - Jenny indicou a parede atrás
deles. - Ele teria tido sorte se conseguisse algumas libras por peça.
Karen se virou e olhou para as três pinturas pobremente emolduradas na parede. West Wemyss, Macduff Castle e a Lady's Rock. A seus olhos leigos, as pinturas pareciam
vívidas e expressivas. Ela as teria levado para casa, embora não soubesse quanto estaria disposta a pagar pelo privilégio, nos idos de 1984.
- Como foi que ele começou com isso? - Karen perguntou, virando-se para Jenny.
- Ele fez um curso no Serviço Social dos Mineiros, no ano em que Misha nasceu. A professora disse que ele tinha jeito para aquilo. Acho que ela dizia a mesma
coisa para qualquer um que fosse bonitinho.
- Mas ele deu continuidade?
- Permitia a ele sair de casa. Ficar longe das fraldas sujas e do barulho.
A amargura parecia emanar de Jenny Prentice em ondas. Era curioso, embora animador, que parecesse não ter contaminado a filha. Talvez aquilo tivesse alguma coisa
a ver com o padrasto de quem ela havia falado. Karen lembrou a si mesma de perguntar sobre o outro homem da vida de Jenny, que também parecia fazer-se notar pela
ausência.
- Ele pintou muito, durante a greve?
- Todo dia ele saía com sua sacola e o cavalete. Se estivesse chovendo, ele descia às cavernas com seus companheiros da Sociedade de Preservação.
- A senhora se refere às cavernas de Wemyss?
Karen conhecia as cavernas que retrocediam a partir da costa, afundando-se nos penhascos de pedra calcária entre East Wemyss e Buckhaven. Ela havia brincado ali
algumas vezes, quando criança, inconsciente de sua
importância histórica como um dos principais sítios pictos. As crianças locais as haviam tratado como áreas de diversão, uma das razões pelas quais se havia estabelecido
a Sociedade de Preservação. Agora, havia grades fechando as seções mais profundas e perigosas da rede de salões das cavernas, e historiadores e arqueólogos amadores
as haviam preservado como parque de diversões para adultos.
- Mick estava envolvido com as cavernas?
- Mick estava envolvido em tudo. Ele jogava futebol, pintava seus quadros, fuçava nas cavernas, estava metido até os dentes no sindicato. Tudo e qualquer
coisa era mais importante do que passar tempo com sua família.
- Jenny cruzou uma perna por cima da outra e os braços sobre o peito. - Ele dizia que isso o mantinha mentalmente são durante a greve. Acho que simplesmente
o mantinha longe de suas responsabilidades.
Karen sabia que aquele era um solo fértil para suas investigações, mas podia se dar ao luxo de deixar para mais tarde. A raiva reprimida de Jenny permanecia após
vinte e dois anos. Não iria a lugar algum. Havia algo muito mais imediato que a interessava.
- Então, durante a greve, onde Mick conseguia dinheiro para as tintas? Não conheço muito de arte, porém sei que papel e tintas adequados custam uma grana.
Ela não podia imaginar um mineiro em greve gastando com materiais artísticos quando não havia dinheiro para comida nem aquecimento.
- Não quero deixar ninguém em apuros - ela disse.
Sei.
- Foi há vinte e dois anos - Karen disse sem rodeios. - Não estou interessada em contrabando em pequena escala da época da greve dos mineiros.
- Um dos professores de arte da escola secundária vivia lá em Coaltown. Era um carinha bem esquisito. Uma perna mais curta que a outra e corcunda. Mick costumava
limpar o jardim para ele. O cara o pagava com tintas. - Ela deu uma fungada. - Perguntei se ele não podia pagar com dinheiro ou comida. Mas parece que o cara estava
dando todo o seu salário para a ex-mulher. As tintas ele podia surrupiar da escola. - Ela cruzou novamente os braços. - De qualquer jeito, ele já morreu.
Karen tentou afastar a sua aversão pela mulher, tão diferente da filha que a havia seduzido a entrar no caso.
- Então, como estavam as coisas entre vocês antes de Mick desaparecer?
- Eu culpo a greve. Tudo bem, nós tínhamos nossos altos e baixos. Mas foi a greve que colocou uma barreira entre nós. E não sou a única mulher nesta parte
do mundo que diz isso.
Karen sabia que aquilo era verdade. Naquela época, as terríveis privações da greve haviam deixado suas marcas em praticamente todo casal que ela conhecia. A violência
doméstica havia irrompido nos lugares mais improváveis; os índices de suicídio aumentaram; casamentos haviam se despedaçado diante da pobreza implacável. Ela não
compreendera isso na época, mas agora sim.
- Pode ser. Mas cada um tem uma história diferente. Eu gostaria de ouvir a sua.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
- Volto para o jantar - disse Mick Prentice, pendurando a grande bolsa de pano atravessada no corpo e pegando o pacote estreito com o cavalete dobrado.
- Jantar? Que jantar? Não tem nada nesta casa para comer. Você precisa sair para arranjar comida para sua família, não para pintar o maldito mar pela enésima
vez -Jenny gritou, tentando obrigá-lo a parar a caminho da porta.
Ele se virou, o rosto magro contorcido pela vergonha e pela dor.
- Você acha que não sei disso? Você acha que somos os únicos? Você acha que se eu tivesse alguma ideia de como melhorar as coisas, eu não estaria fazendo?
Ninguém tem porra nenhuma de comida. Ninguém tem porra nenhuma de dinheiro. - Sua voz entalou na garganta como um soluço. Ele fechou os olhos e respirou fundo. -
Ontem à noite, lá no Serviço Social, Sam Thomson disse que falaram de uma entrega de comida, vinda da Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas. Se você
for até lá, parece que vai chegar às duas horas. - Estava tão frio na cozinha que suas palavras formavam uma nuvem diante dos lábios.
- Mais esmolas. Não consigo me lembrar da última vez que, de fato, escolhi o que iria preparar para o jantar. - Jenny, repentinamente, se
sentou em uma das cadeiras da cozinha. Ergueu os olhos para ele. - Será que algum dia vamos superar isso?
- Só temos que aguentar mais um pouco. Já chegamos até aqui. Podemos vencer. - Ele parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a ela.
- Eles estão voltando a trabalhar, Mick. O tempo todo, estão voltando. Deu no noticiário na outra noite. Mais de um quarto das minas voltou a funcionar. Seja
o que for que digam Arthur Scargill e o resto da diretoria do sindicato, não há forma de ganharmos. É só uma questão de quanto aquela vaca da Thatcher nos fará perder.
Ele balançou a cabeça com veemência.
- Não diga isso, Jenny. Só há alguns focos lá no sul em que os mineiros cederam. Aqui no norte, estamos firmes como rochas. Em Yorkshire também. E em Gales
do Sul. E nós somos quem realmente importa.
Suas palavras soaram vazias e não havia convicção em seu rosto. Todos eles, pensou ela, estavam derrotados. Apenas não sabiam quando cair ao chão.
- Se você diz... - ela murmurou, virando-se.
Esperou até ouvir a porta se fechar atrás dele e, então, levantou-se lentamente e vestiu o casaco. Apanhou uma bolsa de plástico resistente e deixou o frio congelante
da cozinha para sair para o frio úmido da manhã. Essa era sua rotina, atualmente. Levantar-se e levar Misha à escola. No portão da escola, a pequena receberia uma
maçã ou uma laranja, um saco de batatas fritas e um biscoito de chocolate da associação Amigos de Lady Charlotte, um grupo desorganizado de estudantes e funcionários
públicos de Kirkcaldy, que garantiam que nenhuma criança começasse o dia de estômago vazio. Pelo menos os dias úteis.
E então, voltava para casa. Eles já haviam desistido de tomar leite junto com o chá, quando tinham chá. Em algumas manhãs, uma xícara de água quente era tudo o que
Mick e Jenny tinham para começar o dia. Aquilo não havia acontecido com frequência, mas uma só vez já era suficiente para lembrar como era fácil cair no abismo.
Depois de uma bebida quente, Jenny geralmente ia com a sacola até o bosque e tentava catar lenha suficiente para garantir algumas horas de calor à noite. Entre os
membros executivos do sindicato, sempre os chamando de
"camaradas", e a coleta de lenha, ela se sentia uma camponesa da Sibéria. Pelo menos eles tinham a sorte de viver perto de uma fonte de combustível. Ela sabia que
era muito mais difícil para outras pessoas. Tiveram a sorte de manter a lareira, graças ao benefício do carvão barato para os mineiros.
Ela cumpria aquela tarefa de forma mecânica, sem prestar muita atenção aos arredores, relembrando a última discussão entre ela e Mick. Às vezes, parecia que era
só a dificuldade que os mantinha unidos, só a necessidade de calor que os mantinha na mesma cama. A greve tinha aproximado alguns casais, mas muitos outros haviam
se separado como uma tora de madeira sob o fio do machado, após os primeiros meses, quando suas reservas de dinheiro se esgotaram.
Não havia sido tão ruim no começo. Desde a última onda de greves nos anos setenta, os mineiros tinham ganhado bastante dinheiro. Eles eram os reis do movimento sindicalista:
bem remunerados, organizados e confiantes. Afinal, haviam derrubado o governo de Ted Heath, na época. Eram intocáveis. E tinham dinheiro para provar.
Alguns haviam gastado até o último centavo: férias no exterior em que podiam expor ao sol a pele branca como leite e as tatuagens de carvão, carros exuberantes com
rádios caros, casas novas que pareciam ótimas quando eles se mudaram, mas que começaram a se deteriorar quase que imediatamente. Mas a maioria deles, cautelosa devido
à história passada, havia guardado um pouco do dinheiro. O bastante para cobrir o aluguel ou a hipoteca, o bastante para alimentar a família e pagar as contas de
combustíveis durante alguns meses. Foi a velocidade com que aquelas parcas economias desapareceram que os deixou aterrorizados. No início, o sindicato pagara salários
decentes aos homens que se amontoassem em carros, vans e microônibus para se unir a piquetes móveis, nas minas em funcionamento, usinas e plantas de coqueificação.
Mas a polícia tornara-se cada vez mais opressora para garantir que os grevistas itinerantes nunca chegassem ao destino, e não havia muito entusiasmo em pagar homens
para não atingir os objetivos. Além disso, nesses dias, os líderes sindicais estavam ocupados demais tentando esconder seus milhões dos confiscadores do governo
para se importar em desperdiçar dinheiro numa briga que deviam saber que estava fadada ao fracasso. Portanto, até mesmo aquela pequena fonte de renda havia se esgotado,
e a única coisa que as comunidades mineiras tinham para engolir era seu orgulho.
Jenny já havia engolido muito do seu durante os últimos nove meses. Havia começado logo de cara, quando ela ouvira que os mineiros escoceses iriam apoiar a região
carbonífera de Yorkshire na convocação de uma greve nacional, não da boca de Mick, mas de Arthur Scargill, presidente do Sindicato Nacional dos Mineradores. Não
pessoalmente, claro. Apenas sua conversa mole no noticiário da TV. Em vez de voltar direto da reunião no Serviço Social dos Mineiros para lhe contar, Mick havia
ficado com Andy e os outros colegas do sindicato, bebendo no bar como se dinheiro não fosse problema. Comemorando com a forma consagrada no grito de batalha do Rei
Arthur: Mineiros unidos jamais serão vencidos.
Desde o começo, as esposas sabiam bem que tudo aquilo era inútil. Uma greve de carvão deve ser feita no começo do inverno, quando a procura, por parte das usinas
elétricas, está no auge. Não na primavera, quando todos começam a desligar a calefação. E quando se parte para uma intensa ação industrial contra uma vaca como Margaret
Thatcher, deve-se proteger a retaguarda. Devem-se cumprir as leis trabalhistas. Devem-se cumprir suas próprias regras. Estipula-se uma eleição nacional. Não se deve
confiar numa interpretação dúbia de uma resolução aprovada três anos antes para um propósito distinto. Ah, sim, as esposas souberam que não daria em nada. Mas haviam
ficado de boca fechada e, pela primeira vez na vida, haviam formado sua própria organização para apoiar seus homens. Lealdade - era isso que contava nas vilas e
nas comunidades mineradoras.
E, portanto, Mick e Jenny ainda estavam juntos. Jenny às vezes se perguntava se a única razão pela qual Mick ainda estava com ela e Misha era porque não tinha aonde
ir. Pais falecidos, nenhum irmão ou irmã, não havia nenhum refúgio óbvio para ele. Ela havia lhe perguntado, uma vez, e ele ficara imóvel como uma estátua, por um
momento. Então, caçoara dela, negando que quisesse ir embora, lembrando-a de que Andy sempre o acolheria em seu sítio, se ele quisesse se afastar. Portanto, não
havia motivo para que ela imaginasse que aquela sexta-feira seria diferente de qualquer outra.
Quinta-feira; 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Então, aquela não foi a primeira vez que ele saiu com suas tintas para passar o dia fora? - perguntou Karen. O que quer que estivesse passando
pela cabeça de Jenny Prentice, claramente era muito mais que os fatos básicos que ela estava entregando.
- Quatro ou cinco vezes por semana.
- E a senhora? O que fazia no resto do dia?
- Ia até o bosque buscar gravetos, então voltava e assistia ao noticiário na TV. Foi um dia bastante especial, aquela sexta-feira. O Rei Arthur estava no
tribunal por obstrução da polícia, na Batalha de Orgreave. O Band Aid* chegou ao topo da parada de sucesso. Te digo uma coisa, eu poderia cuspir na cara deles. Todo
aquele esforço para arrecadar dinheiro para crianças a milhares de quilômetros, enquanto havia crianças famintas bem na porta deles. Onde estavam Bono e Bob Geldof,
quando nossos filhos despertaram na manhã de Natal e não havia nada em suas meias?
- Deve ter sido duro de encarar - Karen comentou.
- Foi como um tapa na cara. Não havia nenhum glamour em ajudar os mineiros, havia? - Um sorrisinho amargo iluminou seu rosto. - Mas poderia ter sido pior.
Poderíamos ter sido obrigados a aturar aquele merda hipócrita do Sting. Sem falar naquele maldito alaúde dele.
- Isso é verdade. - Karen estava se divertindo, dava para ver. Rir da própria desgraça era uma constante naquelas comunidades mineradoras. - E então, o que
a senhora fez depois do noticiário?
- Desci até o Serviço Social. Mick tinha falado alguma coisa sobre uma distribuição de comida. Entrei na fila e voltei para casa com um pacote de macarrão,
uma lata de tomates e duas cebolas. E um pacote de sopa desidratada. Lembro que fiquei bastante satisfeita. Peguei Misha na escola e achei que decorar a casa para
o Natal poderia nos animar um pouco, então, foi isso que fizemos.
- Quando a senhora percebeu que já era tarde para que Mick voltasse para casa?
Jenny fez uma pausa, a mão remexendo num botão do jaleco.
- Naquela época do ano, fica escuro cedo. Geralmente, ele voltaria não muito depois de mim e Misha. Mas como ficamos montando os enfeites de Natal, não percebi
o tempo passar.
Ela estava mentindo, Karen pensou. Mas por quê? E sobre o quê?
* Grupo criado por Bob Geldof, em 1984, que reuniu os mais conhecidos artistas do Reino Unido com a finalidade de arrecadar fundos para combater a fome na
Etiópia. A música-tema era "Do they know it's Christmas" (N.T.)
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Jenny tinha sido uma das primeiras na fila do Serviço Social dos Mineradores e havia voltado rapidamente para casa com sua lamentável comida, determinada a cozinhar
uma panela de sopa para que tivessem alguma coisa saborosa para o jantar. Ela contornou o prédio dos banheiros da mina, notando que todas as casas dos vizinhos estavam
no escuro. Naqueles dias, ninguém deixava uma luz acesa acolhedora quando saía. Cada centavo contava, quando chegavam as contas de combustível.
Quando ela chegou ao portão de sua casa, quase morreu de susto. Uma figura indefinida saiu da escuridão, parecendo agigantar-se na sua imaginação. Ela emitiu um
ruído que era em parte ofego, em parte gemido.
- Jenny, Jenny, acalme-se. Sou eu. Tom. Tom Campbell. Me desculpe, não quis te assustar. - A figura tomou forma, e ela reconheceu o homenzarrão, próximo à
porta da frente.
- Cristo, Tom, você quase me matou de susto - ela reclamou, passando por ele e abrindo a porta. Ciente do frio assombroso na casa, ela seguiu até a cozinha.
Sem hesitação, encheu a panela de água e a colocou no fogão, o anel de gás emitia um pouco de calor. Então, ela se virou para encará-lo na penumbra da luz da tarde.
- Como você está?
Tom Campbell ergueu os grandes ombros e deu um sorriso desanimado.
- Mais ou menos - ele disse. - É irônico. A única vez na vida em que realmente preciso dos meus amigos e acontece esta greve.
- Pelo menos você tem a mim e a Mick - Jenny disse, indicando-lhe uma cadeira.
- Bem, tenho a você, de qualquer jeito. Não acho que esteja na lista de cartões de Natal do Mick, supondo que alguém envie cartões este ano. Não depois de
outubro. Ele não falou mais comigo, desde então.
- Isso passa - ela disse, sem um pingo de convicção.
Mick sempre tivera certas reservas no que se referia à extensão da amizade escolar entre Jenny e a esposa de Tom, Moira. As mulheres eram amigas desde sempre, e
Moira fora dama de honra no casamento de Jenny e Mick. Quando chegou a vez de retribuir o favor, Jenny estava grávida de Misha. Mick havia ressaltado que seu aumento
de peso era a desculpa perfeita para recusar o convite de Moira, já que o vestido de dama de honra
tinha de ser comprado com antecedência. Não era uma sugestão, e sim uma ordem. Isso porque embora Tom Campbell fosse, sem dúvida alguma, um homem decente, bem-apessoado
e honesto, ele não era mineiro. Verdade, ele trabalhava na Lady Charlotte. Descia até a mina no subsolo, naquela gaiola de revirar o estômago. Às vezes, até mesmo
sujava as mãos. Mas não era mineiro. Era um auxiliar de minas. Membro de um sindicato diferente. Um homem da administração, que estava ali para verificar o cumprimento
das regras de saúde e segurança, e que os rapazes fizessem o que deviam fazer. Os mineiros tinham um termo para se referir à parte mais fácil de qualquer tarefa:
"a parte do auxiliar". Parecia bastante inocente, mas num ambiente em que cada membro do grupo sabia que sua vida dependia dos colegas, aquilo expressava um desdém
enorme. E, portanto, Mick Prentice sempre tivera certa reserva no que se referia à sua relação com Tom Campbell.
Ele havia se ofendido com os convites para jantar em sua casa afastada em West Wemyss. Desconfiava dos convites de Tom para que fosse jogar futebol com ele. Tinha
até mesmo se ressentido das horas que Jenny passara ao lado da cama de Moira, durante sua morte pouco digna, porém rápida, de câncer, alguns anos atrás. E, quando
o sindicato de Tom havia hesitado e ficado indeciso com relação a se unir à greve, alguns meses antes, Mick se enfurecera como uma criança mimada, quando eles finalmente
se colocaram do lado dos patrões.
Jenny desconfiava que parte do motivo de sua raiva era a bondade que Tom havia lhes demonstrado desde que a greve começara a afetá-los. Ele criara o hábito de passar
por sua casa com presentinhos: uma sacola de maçãs, um saco de batatas, um brinquedo de pelúcia para Misha. Sempre vinham acompanhados de desculpas plausíveis: a
árvore do vizinho estava carregada, vieram mais batatas na sua porção do que ele iria precisar, um prêmio ganho na rifa do clube de boliche. Mick sempre reclamava
depois.
- Idiota condescendente - ele dizia.
- Ele está tentando ajudar sem nos envergonhar - Jenny respondia.
Tampouco era ruim o fato de que a presença de Tom sempre a fazia se lembrar de tempos mais felizes. De alguma forma, quando ele estava ali, ela tinha novamente a
sensação de novas possibilidades. Ela via a si mesma refletida em seus olhos, como se fosse uma mulher jovem, uma mulher que tinha ambições de uma vida diferente.
Então, embora soubesse que irritaria Mick, Jenny ficava feliz quando Tom se sentava em sua cozinha e conversava com ela.
Ele tirou um pacote meio mole, mas pesado, do bolso.
- Você aproveitaria uns gramas extras de toucinho? - ele disse, a sobrancelha se franzindo de ansiedade. - Minha cunhada trouxe da fazenda de sua família
na Irlanda. Mas é defumado, sabe, e eu não consigo comer toucinho defumado. Tenho aversão. Então pensei que, melhor do que jogar fora... - Ele o entregou a ela.
Jenny pegou o pacote sem hesitar um só segundo. Suspirou desanimada.
- Olhe só para mim. Meu coração disparou por causa de um pedaço de toucinho. Foi isso que Margaret Thatcher e Arthur Scargill conseguiram fazer com a gente.
- Ela balançou a cabeça. - Obrigada, Tom. Você é um bom homem.
Ele desviou o olhar, incerto do que falar ou fazer. Seus olhos se fixaram no relógio.
- Você não tem que ir buscar a menina? Me desculpe, nem me liguei na hora, quando estava te esperando. Só queria... - ele se levantou, o rosto enrubescido.
- Volto depois.
Ela ouviu suas botas tropeçarem no corredor e, então, o ruído do trinco. Jogou o toucinho sobre a pia e desligou o fogo da panela de água. Agora, seria uma sopa
diferente.
Moira sempre tinha sido a sortuda.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Os olhos de Jenny voltaram da distância e se fixaram em Karen.
- Imagino que fossem umas sete horas, quando percebi que Mick não havia voltado para casa. Eu estava furiosa, porque tinha conseguido um jantar razoável para
pôr na mesa. Então, coloquei a pequena na cama, pedi à vizinha para cuidar dela para que eu pudesse correr até o Serviço e ver se Mick estava lá. - Ela balançou
a cabeça, ainda surpresa após tantos anos.
- E, é claro, ele não estava.
- Alguém o havia visto?
- Aparentemente, não.
- A senhora deve ter ficado preocupada - disse Karen.
Jenny ergueu um ombro.
- Não muito. Como eu disse, nós não tínhamos nos despedido no melhor dos ânimos. Simplesmente pensei que ele tivesse ficado irritado e ido para a casa do
Andy.
- O cara da foto?
- Isso. Andy Kerr. Era funcionário do sindicato. Mas estava de licença médica do trabalho. Estresse, disseram. E estavam certos. Ele se matou um mês depois.
Sempre achei que o fato de Mick decidir furar a greve foi a última gota para Andy. Ele idolatrava Mick. Aquilo teria acabado com ele.
- Então foi lá que a senhora deduziu que ele estivesse? - Karen a provocou.
- Isso mesmo. Andy tinha um sítio no bosque, no meio do nada. Ele dizia que gostava da paz e do silêncio. Mick me levou lá uma vez. Me deu arrepios. Era como
a casa da bruxa de um dos contos de fada de Misha; não se via a casa até que, de repente, você dava de cara com ela, bem na sua frente. Eu é que não moraria lá.
- A senhora não podia ter telefonado para confirmar? - intrometeu-se o Novo em Folha. As duas mulheres olharam para ele com uma mistura de diversão e indulgência.
- Nosso telefone tinha sido cortado meses antes, filho - disse Jenny, trocando um olhar com Karen. - E isso foi muito antes dos celulares.
Naquele ponto, Karen já estava seca por uma xícara de chá, mas nem morta iria se colocar em dívida com Jenny Prentice. Ela pigarreou e prosseguiu:
- Quando foi que a senhora começou a se preocupar?
- Quando a menina me acordou de manhã e ele ainda não estava em casa. Ele nunca tinha feito isso. Não havia sido uma briga de verdade, na sexta-feira. Foram
só umas palavras ásperas. Já tínhamos tido piores, acredite. Quando vi que ele não estava ali de manhã, comecei realmente a pensar que havia alguma coisa terrivelmente
errada.
- O que a senhora fez?
- Dei comida a Misha, troquei sua roupa e a levei até a casa de Lauren, uma amiguinha dela. Daí, atravessei o bosque até a casa de Andy. Mas não havia ninguém
lá. Então, me lembrei que Mick dissera que talvez Andy subisse até as Highlands para passar uns dias, já que estava de licença. Afastar-se de tudo. Pôr a cabeça
no lugar. Então, é lógico que ele não estava lá. Nesse ponto eu já estava bastante assustada. E se houvesse acontecido um acidente? E se ele tivesse ficado doente?
A lembrança ainda tinha o poder de perturbar Jenny. Seus dedos cutucavam sem parar a barra do jaleco.
- Subi até o Serviço Social para ver os representantes do sindicato. Pensei que se alguém soubesse onde Mick estava, seriam eles. Ou que, pelo menos, eles
saberiam onde começar a procurar. - Ela olhou fixamente para o chão, as mãos entrelaçadas no colo. - Foi então que as coisas começaram a degringolar na minha vida.
Sábado, 15 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Mesmo pela manhã, sem a presença de pessoas para elevar a temperatura, o Instituto do Serviço Social dos Mineradores estava mais quente do que sua casa, notou Jenny
ao entrar. Não muito, mas o suficiente para ser perceptível. Não era algo que geralmente chamava sua atenção, mas hoje ela tentava pensar em qualquer coisa que não
fosse a ausência do marido. Parou por um momento, hesitante, no hall de entrada, tentando decidir aonde ir. Os escritórios do Sindicato Nacional dos Mineradores
ficavam no andar de cima, ela se lembrava vagamente; caminhou, portanto, até a escadaria extravagantemente esculpida. Chegando ao primeiro andar, tudo ficou mais
fácil. Era só seguir o burburinho das vozes e a fumaça de cigarro.
Mais adiante no corredor, havia uma porta entreaberta, de onde vinham o som e o cheiro. Jenny bateu nervosamente, e a sala ficou em silêncio. Por fim, uma voz cautelosa
disse:
- Entre.
Ela esgueirou-se pela porta como se fosse uma pedinte. A sala era tomada por uma mesa em forma de U coberta por um oleado axadrezado. Alguns homens estavam sentados
em torno dela, demonstrando níveis variados de desânimo. Jenny vacilou quando percebeu que o homem na ponta mais distante era alguém que ela reconhecia, mas que
não conhecia pessoalmente. Mick McGahey, ex-comunista, líder dos mineiros escoceses. O único homem, dizia-se, que podia enfrentar o Rei Arthur e fazer-se ouvir.
O homem que fora mantido deliberadamente longe do primeiro posto por seu antecessor. Se Jenny ganhasse uma libra cada vez que ouvia alguém dizer que tudo teria sido
muito diferente se McGahey estivesse no comando, sua família teria sido a mais bem alimentada e mais bem-vestida em Newton of Wemyss.
- Me desculpem - ela gaguejou. - Eu só queria dar uma palavrinha... - Seus olhos passearam pela sala, em dúvida sobre em qual dos homens que conhecia
seria melhor fixar a atenção.
- Tudo bem, Jenny - disse Ben Reekie. - Era só uma reuniãozinha. Já terminamos, não é, rapazes? - Houve um murmúrio descontente de assentimento. Mas Reekie,
o secretário local, era habilidoso em avaliar o andamento de uma reunião e fazer as coisas avançarem. - Então, Jenny, como podemos te ajudar?
Ela gostaria de ficar a sós com ele, mas não tinha coragem de pedir. As mulheres tinham aprendido muito no processo de apoiar seus homens, mas, cara a cara, sua
assertividade ainda tendia a se esvair. Mas tudo ficaria bem, ela disse a si mesma. Vivera nesse universo encasulado durante toda a vida adulta, um mundo que se
centrava na mina e na Associação, no qual não havia segredos e onde o sindicato era sua mãe e seu pai.
- Estou preocupada com Mick - ela disse. Não adiantava fazer rodeios. - Ele saiu ontem de manhã e não voltou. Eu estava pensando se, talvez...?
Reekie apoiou a testa nos dedos, esfregando-a com tanta força que deixou marcas alternadas em vermelho e branco no centro.
- Deus do céu - ele sibilou entre os dentes cerrados.
- E você espera que acreditemos que você não sabe onde ele está?
A acusação veio de Ezra Macafferty, o último sobrevivente na vila das greves dos mineiros e das greves patronais da década de vinte.
- É claro que não sei onde ele está. - A voz soou melancólica, mas um medo sombrio começara a espalhar seu gelo pelo peito dela. - Pensei que talvez ele tivesse
passado por aqui. Achei que alguém pudesse saber.
- Isso eleva o número a seis - disse McGahey. Ela reconheceu o tom grave e áspero de sua voz das entrevistas na TV e comícios ao ar livre. Era estranho estar
na mesma sala que ele.
- Não entendo - ela disse. - Seis o quê? O que está acontecendo? - Todos os olhos estavam voltados para ela, perfurando-a. Podia sentir seu desprezo, mas
não entendia o motivo. - Aconteceu alguma coisa com Mick? Um acidente?
- Aconteceu uma coisa, sim - disse McGahey. - Parece que o seu marido furou a greve e fugiu para Nottingham.
Suas palavras pareceram sugar todo o ar dos pulmões dela. Jenny parou de respirar, deixando que se formasse uma bolha ao seu redor para protegê-la. Não podia ser
verdade. Não o Mick. Muda, ela sacudiu a cabeça com força. As palavras começaram a penetrar a barreira, mas ainda não faziam sentido.
- Sabíamos de cinco... pensamos que haveria mais... sempre um traidor no grupo... decepcionados... sempre um do sindicato.
- Não - ela disse. - Ele não faria isso.
- De que outra forma você explica o fato de ele não estar aqui? - disse Reekie. - Foi você que veio até nós procurando por ele. Sabemos que uma van cheia
deles foi embora ontem à noite. E ao menos um deles é amigo do seu Mick. Onde mais ele poderia estar?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu não teria me sentido pior se eles tivessem me chamado de prostituta - disse Jenny. - Imagino que, aos olhos deles, era exatamente isso que eu era. Meu
marido fugindo da greve, não demoraria nada até que eu começasse a viver de forma imoral.
- A senhora nunca duvidou de que eles estivessem certos?
Jenny afastou o cabelo do rosto, removendo momentaneamente um pouco de sua idade e docilidade.
- Na verdade, não. Mick era amigo de Iain Maclean, um dos que foram para Nottingham. Isso eu não discutia. E não se esqueça de como era, naquela épóca. Os
homens controlavam o jogo, e o sindicato controlava os homens. Quando as mulheres quiseram participar da greve, a primeira batalha que tivemos que travar foi contra
o sindicato. Tivemos que implorar que nos deixassem entrar. Eles nos queriam onde sempre havíamos estado: no cômodo dos fundos, cuidando do fogão. Não ao lado da
fogueira, nas linhas de piquete. Mas embora tivéssemos conseguido formar a Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas, ainda conhecíamos bem nosso lugar.
Teríamos que ser muito fortes, ou muito burras, para tentar ir contra a corrente por aqui.
Não era a primeira vez que Karen ouvia uma versão daquela verdade. Ela se perguntou se teria feito diferente, na mesma situação. Era bom pensar
que teria ficado ao lado de seu homem com um pouco mais de firmeza. Mas, diante da hostilidade que Jenny Prentice devia ter enfrentado por parte da comunidade, Karen
achava que também teria cedido.
- Entendo - ela disse. - Mas agora que parece que, afinal, Mick pode não ter fugido da greve, a senhora tem alguma ideia do que pode ter acontecido com ele?
Jenny balançou a cabeça.
- Nenhuma? Ainda que eu não pudesse acreditar, a fuga fazia algum sentido. Então, nunca considerei outra possibilidade.
- A senhora acha que ele pode ter simplesmente se enchido? Simplesmente caiu fora?
Ela franziu a testa.
- Olha, isso não seria do feitio de Mick. Ir embora sem falar nada? Acho que não. Ele faria questão que eu soubesse que tinha sido por minha culpa. - Ela
soltou uma risada amarga.
- A senhora não acha que ele pode ter ido embora sem dizer nada como uma forma de fazer com que a senhora sofresse ainda mais?
Jenny levantou a cabeça.
- Isso é asqueroso demais - ela protestou. - Você o faz parecer um sádico. Ele não era um homem cruel, inspetora. Apenas insensível e egoísta, como todos
eles.
Karen fez uma pausa. Aquela era sempre a parte mais difícil, quando se entrevistava os parentes de um desaparecido.
- Ele havia discutido com alguém? Tinha algum inimigo, Sra. Prentice?
Jenny a olhou como se Karen tivesse, de repente, passado a falar grego.
- Inimigo? Tipo, alguém que quisesse matá-lo?
- Talvez não matá-lo. Apenas brigar com ele.
Dessa vez, a risada de Jenny tinha um calor genuíno.
- Meu Jesus, isso é engraçado, vindo de você. - Ela balançou a cabeça. - As únicas brigas físicas em que Mick se meteu, durante todos os anos em que estivemos
casados, foi com o seu pessoal. Nas linhas de piquete. Nas manifestações. Se ele tinha inimigos? Claro, os de uniforme azul. Mas aqui não é a América Latina e não
me lembro de ouvir falar de desaparecidos nas greves dos mineiros. Portanto, a resposta para sua pergunta é não, ele não tinha o tipo de inimigo com quem teria uma
briga séria.
Karen observou o carpete por um longo tempo. A violência exagerada da polícia, contra os grevistas, havia envenenado os relacionamentos nas comunidades por mais
de uma geração. Não importava que os piores transgressores viessem de forças externas, trazidos ali para aumentar os números, e a quem se pagavam quantias obscenas
de dinheiro para oprimir seus concidadãos de formas que a maioria das pessoas preferia nem saber. O resultado de sua ignorância e arrogância havia afetado a todos
os policiais, em todas as corporações das cidades mineradoras. Ainda afetava, pensou Karen. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
- Sinto muito - ela disse. - A forma como trataram os mineiros foi imperdoável. Prefiro pensar que não agiríamos dessa maneira hoje em dia, mas é provável
que esteja enganada. A senhora tem certeza de que não havia ninguém com quem ele houvesse se desentendido?
Jenny nem sequer parou para pensar.
- Não que eu soubesse. Ele não era encrenqueiro. Tinha seus princípios, mas não os usava para provocar brigas. Defendia aquilo em que acreditava, mas era
só de falar, não de partir para a briga.
- E se falar não adiantasse? Ele retrocederia?
- Não tenho certeza se entendi a pergunta.
Karen falou vagarosamente, tateando a ideia.
- Estou pensando se ele não topou com esse tal de Iain Maclean naquele dia e tentou convencê-lo a não ir para Nottingham. E se Iain se recusou a mudar de
ideia, e talvez tivesse seus amigos para apoiá-lo... Será que Mick entraria numa briga com eles?
Jenny balançou firmemente a cabeça.
- De jeito nenhum. Ele diria o que pensava e, se não adiantasse, se afastaria.
Karen se sentiu frustrada. Mesmo depois de tanto tempo, os casos arquivados geralmente ofereciam um ou dois fios soltos por onde começar. Mas, até agora, parecia
não haver nada ali. Uma última pergunta e, depois, ela iria embora.
- A senhora tem alguma ideia de aonde Mick pode ter ido para pintar naquele dia?
- Ele não disse. A única coisa que posso dizer é que, no inverno, ele geralmente seguia pelo litoral até East Wemyss. Assim, se começasse a
chover, ele poderia descer até as cavernas e se abrigar lá. Os caras do grupo de preservação tinham uma cabaninha no fundo de uma das cavernas, com um fogareiro
onde podiam fazer chá. Ele tinha as chaves, podia ficar à vontade - ela acrescentou, a acidez de volta à sua voz. - Mas não tenho ideia se ele esteve ali nesse dia
ou não. Ele poderia estar em qualquer lugar entre Dysart e Buckhaven. - Ela olhou para o relógio. - Isso é tudo que sei.
Karen se levantou.
- Agradeço muito por seu tempo, Sra. Prentice. Continuaremos fazendo nossas investigações e a manteremos informada.
Novo em Folha se levantou desajeitadamente e seguiu Karen e Jenny até a porta da frente.
- Não estou preocupada por mim, entende? - Jenny disse, quando eles estavam a meio caminho da rua. - Mas veja se você consegue encontrá-lo pelo bem da criança.
Aquele era, pensou Karen, o primeiro sinal de emoção que ela demonstrava durante toda a manhã.
- Pegue seu caderno - ela disse a Novo em Folha, quando entraram no carro. - Próximos passos. Falar com a vizinha. Ver se ela se lembra de alguma coisa sobre
o dia em que Mick Prentice desapareceu. Falar com alguém do grupo da caverna, ver quem ainda está lá desde 1984. Obter outra visão de como realmente era Mick Prentice.
Procurar nos arquivos alguma coisa a respeito desse Andy Kerr, funcionário do Sindicato dos Mineiros, que supostamente cometeu suicídio na época em que Mick desapareceu.
Como é essa história? E precisamos rastrear esses cinco fura-greves e pedir que a polícia fale com eles em Nottingham. - Ela abriu a porta do passageiro novamente,
enquanto Novo em Folha terminava de escrever. - E já que estamos aqui, vamos dar uma olhada nessa vizinha.
Ela mal se afastara dois passos do carro quando seu telefone tocou.
- Phil - ela disse.
Nenhuma piadinha, ele simplesmente foi direto aos fatos:
- Você precisa voltar aqui agora mesmo.
- Por quê?
- O Biscoito está furioso. Quer saber por que diabos você não está na sua mesa.
Simon Lees, subchefe de Polícia (Criminal), tinha um temperamento muito diferente do de Karen. Ela estava convencida de que, antes de dormir, ele lia o Código de
Polícia, Ordem Pública e Justiça Criminal de 2006 (da Escócia). Sabia que ele era casado e tinha dois filhos adolescentes, mas não fazia ideia de como aquilo podia
ter acontecido com um homem tão obsessivamente organizado. Era Lei de Murphy que, na primeira manhã, em meses, que ela estava fazendo algo fora das normas, o Biscoito
viesse procurá-la. Ele parecia acreditar que tinha o direito divino de saber o paradeiro de qualquer oficial sob seu comando, quer estivesse ou não de serviço. Karen
se perguntou o quão próximo de um derrame ele teria chegado ao descobrir que ela não estava ocupando a mesa onde esperava encontrá-la. Pelo jeito, não próximo o
bastante.
- O que você disse a ele?
- Disse que você estava numa reunião com a equipe de armazenamento de provas, discutindo uma forma de agilizar o procedimento de catalogação deles - disse
Phil. - Ele gostou da ideia, mas não do fato de que isto não estivesse registrado em sua lista eletrônica de compromissos.
- Estou a caminho - Karen disse, confundindo Novo em Folha ao entrar novamente no carro. - Ele disse por que estava me procurando?
- Para mim? Um mero sargento? Dá um tempo, Karen. Ele apenas disse que era "muito importante". Alguém provavelmente roubou os biscoitinhos digestivos dele.
Karen gesticulou impacientemente para Novo em Folha.
- Para casa, James, e não poupe os cavalos. - Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido, mas deu partida no carro e saiu dirigindo. - Estou indo - ela
disse. - Ponha a água para ferver.
Glenrothes
A dupla hélice de frustração e irritação se retorceu nas entranhas de Simon Lees. Ele se mexeu na cadeira e rearrumou as fotos da família sobre a mesa. Qual era
o problema dessa gente? Quando fora procurar a inspetora Pirie e não a encontrara onde deveria estar, o sargento Parhatka agira como se aquilo estivesse perfeitamente
bem. Havia algo fundamentalmente indiferente nos detetives de Fife. Ele havia percebido aquilo dias após ter chegado de Glasgow. Surpreendia-se que eles houvessem
conseguido colocar
alguém atrás das grades, antes que ele chegasse com seus métodos analíticos, suas investigações eficientes, análises sofisticadas de vínculos criminais e o inevitável
aumento nos níveis de detecção.
O que o irritava ainda mais era o fato de que eles pareciam não ter qualquer gratidão pelos métodos modernos que ele trouxera para o trabalho. Ele até mesmo suspeitava
que riam dele. Seu apelido, por exemplo. Todo mundo no prédio parecia ter um apelido, a maioria deles podendo ser interpretados como levemente carinhosos. Mas não
ele. Logo descobrira que fora apelidado de Biscoito, porque compartilhava o sobrenome com uma fábrica de doces; seu produto mais famoso ficara conhecido devido a
um antiquíssimo jingle de propaganda, cujo racismo brincalhão causaria tumulto nas ruas se fosse veiculado na Escócia do século XXI. Ele culpava Karen Pirie; não
era coincidência que o apelido houvesse surgido após seu primeiro desentendimento com ela. Algo que se tornaria comum na maioria de seus encontros. Ele não tinha
certeza de como acontecia, mas ela sempre parecia confundi-lo.
Lees ainda se ressentia com aquela primeira lembrança. Mal havia chegado, já começara a dar as ordens, promovendo uma série de treinamentos. Não os de praxe, numa
postura machista, nem a tediosa revisão das regras de comportamento, mas abordagens originais de temas referentes ao policiamento moderno. A primeira leva de oficiais
tinha se reunido na sala de treinamento e Lees dera início a seu prólogo, explicando como eles passariam o dia desenvolvendo estratégias para o policiamento em uma
sociedade multicultural. Seus espectadores pareceram rebeldes, e Karen Pirie liderara o ataque:
- Senhor, posso fazer uma observação?
- É claro, inspetora Pirie. - Seu sorriso havia sido cordial, ocultando a irritação de ser interrompido antes de sequer ter revelado o programa.
- Bem, senhor, Fife não é realmente o que se poderia chamar de multicultural. Não temos muitas pessoas aqui que não sejam britânicas nativas. À exceção dos
italianos e poloneses, quero dizer, e eles já estão aqui há tanto tempo que nos esquecemos que não são daqui.
- Então o racismo parece estar bem para você; é isso, inspetora Pirie?
Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas ele fora levado àquilo pela atitude aparentemente retrógrada expressada por ela. Sem falar daquela
cara de bolacha impassível que ostentava sempre que dizia alguma coisa que pudesse ser interpretada como provocadora.
- Em absoluto, senhor. - Ela sorrira, de forma quase piedosa. - O que eu queria dizer é que, já que temos um orçamento limitado para treinamentos, pode fazer
mais sentido lidar primeiro com o tipo de situação que é mais provável que encontremos no dia a dia.
- Tais como?... Com quanta força devemos bater nas pessoas, quando as prendemos?
- Eu estava pensando em estratégias para lidar com a violência doméstica. É um tipo de chamada frequente e que pode facilmente se agravar. Gente demais ainda
morre todos os anos porque uma briga doméstica escapa ao controle. E nem sempre sabemos lidar com elas, sem piorar a situação. Eu diria que essa seria minha prioridade
número um no momento, senhor.
E com aquele discurso, ela havia tirado o chão dele. Não tinha volta. Poderia seguir adiante com o treinamento planejado, sabendo que todos na sala estariam rindo
dele. Ou poderia adiá-lo, organizando algo relacionado à sugestão da inspetora Pirie, e então perderia completamente a moral. No fim, ele disse a eles para passarem
o resto do dia pesquisando sobre o assunto da violência doméstica, preparando-se para outro dia de treinamento.
Dois dias depois, ouviu sem querer alguém se referindo a ele como o Biscoito. Ah, sim, ele sabia a quem culpar. Mas assim como em tudo que ela fazia para sabotá-lo,
não havia nada que ele pudesse atribuir diretamente a ela. Ela simplesmente ficaria ali, tão desgrenhada, impassível e inescrutável quanto uma vaca escocesa das
Highlands, nunca dizendo ou fazendo nada de que ele pudesse se queixar. E ela estabeleceu o padrão para todos os demais, mesmo estando isolada nos cafundós, na Equipe
de Revisão de Casos Arquivados, onde não deveria ser capaz de exercer nenhuma espécie de influência. Mas, de alguma forma, graças a Pirie, lidar com os detetives
das três divisões era como pastorear gatos.
Ele tentava evitá-la, tentava desviar-se dela através de suas diretrizes operacionais. Até então pensava que estava funcionando. Mas aí o telefone tinha tocado.
- Subchefe de Polícia Lees - anunciara ao atender. - Em que posso ajudar?
- Bom dia, subchefe Lees. Meu nome é Susan Charleson. Sou assistente pessoal de Sir Broderick Maclennan Grant. Meu chefe gostaria de falar com o senhor. Agora
seria um bom momento?
Lees se endireitou na cadeira, alinhando os ombros. Broderick Maclennan Grant era conhecido por três coisas: sua fortuna, seu isolamento misantrópico e pelo sequestro
e assassinato da filha Catriona, há vinte e poucos anos. Por mais improvável que pudesse parecer, um telefonema de sua assistente para o subchefe criminal só poderia
significar que havia ocorrido algum tipo de mudança no caso.
- Sim, claro, o momento perfeito, não poderia ser melhor.
Ele escavou a memória em busca de detalhes, ouvindo apenas em parte à mulher no telefone. Filha e neto sequestrados, tinha sido isso. Filha morta durante uma entrega
de resgate que deu errado, neto nunca mais visto. E, agora, ele parecia ter a chance de, finalmente, solucionar o caso. Concentrou-se novamente na voz da mulher.
- Se o senhor puder fazer a gentileza de aguardar, colocarei Sir Broderick na linha agora mesmo - ela disse.
O som oco de uma interrupção e, então, uma voz soturna e pesada disse:
- Aqui fala Broderick Maclennan Grant. Você é o subchefe de Polícia?
- Exatamente, Sir Broderick. Subchefe de Polícia Lees. Simon Lees.
- Você está ciente do assassinato não solucionado da minha filha, Catriona? E do sequestro do meu neto, Adam?
- É claro, naturalmente, não existe um só policial na região que não...
- Achamos que surgiu uma prova nova. Eu ficaria agradecido se você tomasse todas as providências para que a inspetora Pirie venha até a minha casa amanhã
cedo, para discutir o assunto comigo.
Lees literalmente afastou o telefone do rosto e ficou olhando para o aparelho. Seria algum trote sofisticado?
- Inspetora Pirie? Eu não... eu poderia ir - ele balbuciou.
- Você é um funcionário administrativo. Não preciso de um funcionário administrativo. - O tom de Brodie Grant era desdenhoso. - A inspetora Pirie é detetive.
Gostei da forma como ela lidou com o caso Lawson.
- Mas... mas, para tratar disso, deveria ser um oficial mais graduado - protestou Lees.
- Não é a inspetora Pirie quem está no comando da sua Equipe de Revisão de Casos Arquivados? - Grant começava a parecer impaciente. - Isso é graduação suficiente
para mim. Não me importo com postos, me importo com eficiência. É por isso que quero a inspetora Pirie na minha casa amanhã às dez. Isso deve lhe dar tempo suficiente
para se familiarizar com as informações básicas do caso. Tenha um bom dia, Sr. Lees. - A linha emudeceu e Simon Lees ficou sozinho, com seu mau humor e a pressão
arterial que se elevava.
Por mais que aquilo o angustiasse, ele não tinha escolha senão encontrar a inspetora Pirie e lhe dar as ordens. Pelo menos, poderia fazer com que aquilo parecesse
ter sido ideia dele. Embora não houvesse nenhum compromisso marcado no sistema de agendamento eletrônico que ele instituíra para seus detetives mais antigos, ela
não estava em sua mesa. Tudo bem que os policiais fizessem coisas por iniciativa própria, mas tinham de aprender a deixar um registro de seus movimentos.
Ele estava prestes a voltar para a sala da Revisão de Casos Arquivados para descobrir por que a inspetora Pirie ainda não havia aparecido quando uma batida incisiva
na porta foi seguida, sem qualquer intervalo, pela entrada dela.
- Eu disse que poderia entrar? - perguntou Lees, olhando-a com raiva do outro lado da sala.
- Pensei que fosse urgente, senhor. - Ela continuou andando e se sentou na cadeira do outro lado da mesa dele. - O sargento Parhatka me deu a impressão de
que, qualquer que fosse o motivo pelo qual o senhor estivesse me procurando, não podia esperar.
Que referência para o serviço policial, ele pensou, irritado. Cabelo desgrenhado caindo sobre os olhos, pouquíssima maquiagem e dentes que precisavam seriamente
de um aparelho ortodôntico. Ele supunha que ela fosse lésbica, dada sua atração por terninhos de calça comprida, o que era realmente um erro, devido à largura de
seus quadris. Não que ele tivesse qualquer coisa contra lésbicas, lembrou-lhe seu censor interno. Apenas achava que dava às pessoas a impressão errada sobre o serviço
policial de hoje.
- Sir Broderick Maclennan Grant me telefonou hoje de manhã - ele disse. O único sinal de interesse foi um ligeiro entreabrir dos lábios. - Suponho que saiba
quem é Broderick Maclennan Grant.
Karen pareceu surpresa com a pergunta. Ela se reclinou na cadeira e recitou:
- Terceiro homem mais rico da Escócia, é dono de metade da porção rentável das Highlands. Ganhou seu dinheiro construindo estradas e casas, e administrando
os sistemas de transporte que as servem. Possui uma ilha nas Hébridas, mas passa a maior parte do tempo no Castelo de Rotheswell, perto de Falkland. A maioria das
terras entre lá e o mar pertence a ele ou a Wemyss. Sua filha Cat e o filhinho dela, Adam, foram sequestrados por um grupo anarquista em 1985. Cat foi morta com
um tiro quando a entrega do resgate deu errado. Ninguém sabe o que aconteceu com Adam. A esposa de Grant suicidou-se alguns anos depois. Ele se casou novamente há
cerca de dez anos. Tem um filho pequeno que deve estar com cinco ou seis anos. - Ela riu. - Como fui?
- Não é um concurso, inspetora. - Lees sentiu que cerrou os punhos e os manteve embaixo da mesa. - Parece que há novas provas. E já que você está no comando
dos casos arquivados achei que deveria cuidar deste.
- Que tipo de provas? - Ela se reclinou sobre o braço da cadeira, numa postura relaxada.
- Achei melhor que você conversasse diretamente com Sir Broderick. Assim, não haverá qualquer possibilidade de confusão.
- Então, ele realmente não lhe disse nada a respeito?
Lees poderia jurar que ela estava gostando daquilo.
- Marquei de você se encontrar com ele no Castelo de Rotheswell amanhã de manhã às dez. Não preciso lhe dizer o quanto é importante que fique bem claro que
estamos levando isso a sério. Quero que Sir Broderick entenda que este assunto receberá toda a nossa atenção.
Karen se levantou abruptamente, os olhos repentinamente frios.
- Ele receberá exatamente a mesma atenção que todos os outros pais enlutados com quem trato. Não faço distinção entre os mortos, senhor. Agora, se isso é
tudo, tenho um arquivo para estudar até amanhã cedo.
Ela não esperou por uma dispensa. Apenas virou nos calcanhares e saiu, deixando Lees com a sensação de que ela tampouco fazia distinção entre os vivos.
Mais uma vez, Karen Pirie o havia feito se sentir um idiota.
Castelo de Rotheswell
Bel Richmond deu uma última olhada em seu arquivo sobre Catriona Maclennan Grant, certificando-se de que sua lista de perguntas cobria todos os ângulos. A intolerância
a bobagens por parte de Broderick Maclennan Grant era tão notória quanto sua aversão à publicidade. Bel suspeitava de que ele fosse atacar ao primeiro sinal de falta
de preparo de sua parte e usá-la como desculpa para romper o acordo que ela havia negociado com Susan Charleson.
Para dizer a verdade, ela ainda estava surpresa por haver conseguido. Levantou-se, fechou o laptop e deu uma olhada no espelho. Vestida para matar. Afinal, a primeira
impressão é a que fica. Fim de semana no campo. Era esse o look que ela havia adotado. Sempre fora boa em camuflagem. Mais uma das muitas razões pelas quais ela
era tão boa naquilo que fazia. Integrar-se, tornar-se "parte do grupo", qualquer que fosse ele, era um mal necessário. Portanto, se ela iria dormir sob o teto aristocrático
de Brodie Grant, precisava se vestir a caráter. Alisou o vestido axadrezado Black Watch que havia tomado emprestado de Vivianne, conferiu se não havia arranhões
nos sapatos de salto sabrina, ajeitou o cabelo, negro como um corvo, para trás da orelha e entreabriu os lábios rubros num sorriso. Uma olhada em seu relógio confirmou
que estava na hora de descer as escadas e descobrir o que a formidável Susan Charleson havia preparado.
Ao virar uma curva da ampla escadaria, teve de se desviar para evitar um garotinho que subia a toda velocidade. Ele conseguiu controlar os gestos desgovernados no
patamar entre dois lances, ofegou um "Desculpe", e voou escada acima. Bel piscou e ergueu as sobrancelhas. Já fazia algum tempo que não esbarrava assim num garotinho
e não havia sentido a menor falta. Continuou descendo, mas, antes de chegar ao pé da escada, uma mulher com calças de veludo bege e uma blusa vermelho-escura circulou
a coluna da escadaria e parou de repente, pega de surpresa.
- Oh, me desculpe, não quis assustá-la - ela disse. - Viu um garotinho passar por aqui?
Bel apontou com o polegar por sobre o ombro.
- Ele foi por ali.
A mulher assentiu. Agora que estava mais próxima, Bel podia ver que era uns dez anos mais velha do que pensara de início, trinta e tantos, no mínimo. A pele tratada,
o cabelo castanho grosso e o porte elegante ajudavam a confundir.
- Monstrinho - disse a mulher. Elas se encontraram a alguns degraus do patamar. - Você deve ser Annabel Richmond - ela disse, estendendo a mão delgada que
estava fria, apesar da temperatura agradável dentro das grossas paredes do castelo. - Sou Judith. Esposa de Brodie.
Claro que sim. Como Bel poderia ter imaginado uma babá tão bem arrumada?
- Lady Grant - ela disse, estremecendo por dentro.
- Judith, por favor. Mesmo depois de todos esses anos casada com Brodie, ainda tenho vontade de olhar para trás quando alguém me chama de Lady Grant. - Ela
não parecia dizer aquilo apenas por falsa modéstia.
- E eu sou Bel. Vamos deixar para lá o nome que uso profissionalmente.
Lady Grant sorriu, os olhos já examinando os degraus acima.
- Bel então. Olhe, não posso parar agora, tenho de capturar aquele monstrinho. Vejo você no jantar. - E lá foi ela, subindo dois degraus de cada vez.
Sentindo que havia exagerado ao se vestir, em comparação à castelã de Rotheswell, Bel seguiu pelos corredores de lajotas de pedra até o escritório de Susan Charleson.
A porta estava aberta e Susan, que falava ao telefone, acenou para que ela entrasse.
- Muito bem. Obrigada por arranjar tudo, Sr. Lees. - Ela recolocou o fone no gancho e contornou a mesa, conduzindo Bel de volta à porta. - Bem na hora - ela
disse. - Ele aprecia a pontualidade. Gostou do quarto? Tem tudo de que precisa? O acesso wi-fi está funcionando?
- Tudo está perfeito - disse Bel. - A vista também é linda.
Sentindo-se como se tivesse entrado num drama da BBC2 escrito por Stephen Poliakoff, ela deixou-se conduzir pelo labirinto de corredores, cujas
paredes estavam forradas de fotografias de paisagens escocesas enormes impressas em telas para parecerem quadros pintados. Ficou surpresa de tudo lhe parecer tão
aconchegante. Mas, também, aquela não era a ideia que fazia de um castelo. Esperara algo como Windsor ou Alnwick. Em vez disso, Rotheswell parecia-se mais a uma
mansão fortificada e com torres. O interior lembrava mais uma casa de campo do que um salão de banquetes medieval. Sólido, mas não tão intimidador quanto ela temera.
Quando finalmente pararam diante de uma porta dupla de mogno alta e abobadada, Bel já estava começando a se arrepender de não ter deixado uma trilha de migalhas
de pão.
- Chegamos - disse Susan, abrindo uma das portas e conduzindo Bel para o interior de uma sala de bilhar, forrada de painéis de madeira escura e com persianas
nas janelas. A única luz provinha de uma série de lustres sobre a mesa de bilhar de tamanho oficial. Quando elas entraram, Broderick Maclennan Grant levantou os
olhos do taco que posicionava para a jogada. Uma massa densa de cabelo impressionantemente grisalho caía jovialmente sobre a testa ampla, sobrancelhas como um par
de muralhas prateadas sobre olhos tão fundos que sua cor só podia ser adivinhada, nariz como o bico de um papagaio, e uma boca ampla e fina sobre um queixo quadrado,
eram características que o tornavam instantaneamente reconhecível. A iluminação do lugar dava um ar dramático a sua figura.
Por conta de fotografias, Bel sabia o que esperar, mas ficou surpresa com a eletricidade crepitante que sentiu em sua presença. Já estivera na presença de homens
e mulheres poderosos antes, mas poucas vezes sentira aquele carisma instantâneo. Entendeu, de imediato, como Brodie Grant havia construído seu império do nada.
Ele se endireitou e apoiou-se no taco.
- Srta. Richmond, suponho. - Sua voz era profunda e quase relutante, como se não a usasse muito.
- Exatamente, Sir Broderick. - Bel não tinha certeza se deveria avançar ou permanecer onde estava.
- Obrigado, Susan - disse Grant. Quando a porta se fechou atrás dela, ele acenou na direção de um par de poltronas de couro desgastadas ao lado de uma lareira
de mármore entalhado. - Sente-se. Posso jogar e conversar
ao mesmo tempo. - Ele voltou a estudar a tacada enquanto Bel deslocava uma das poltronas para que pudesse observá-lo de forma mais direta.
Ela esperou enquanto ele fez mais algumas jogadas, o silêncio se erguia entre eles como uma maré ameaçadora.
- É uma linda casa - ela disse afinal.
Ele resmungou:
- Não sou de papo furado, Srta. Richmond. - Deu uma tacada rápida e duas bolas colidiram num estalo que pareceu um tiro. Passou giz no taco e a observou por
um longo momento. - Você provavelmente está se perguntando como conseguiu isso. Acesso direto a um homem famoso por sua aversão à exposição na mídia. Que conquista,
hein? Bem, sinto muito em decepcioná-la, mas você apenas teve sorte. - Ele circulou a mesa, franzindo a testa diante da posição das bolas, movendo-se como um homem
vinte anos mais jovem.
- Foi assim que consegui algumas das minhas melhores histórias - Bel disse calmamente. - Grande parte do jornalismo de sucesso deve-se a isso: a habilidade
de estar no lugar certo, na hora certa. Não tenho problema algum com relação à sorte.
- Que seja. - Ele estudou as bolas, inclinando a cabeça para obter um ângulo diferente. - Então, você não está se perguntando por que escolhi romper meu silêncio,
após todos esses anos?
- Sim, é claro que estou. Mas, para ser honesta, não acho que suas razões para falar agora terão muito a ver com o que acabarei escrevendo. Portanto, é mais
uma curiosidade pessoal do que profissional.
Ele parou a meio caminho de sua preparação para uma tacada e empertigou-se, encarando-a com uma expressão que ela não podia decifrar. Ele poderia estar furioso ou
curioso.
- Você não é como eu esperava - ele disse. - É mais durona. Isso é bom.
Bel estava acostumada a ser subestimada pelos homens, em seu universo. Estava menos acostumada, porém, a que eles admitissem seu erro.
- Pode ter certeza de que sou durona. Não confio a mais ninguém as minhas batalhas.
Ele se virou para olhá-la, apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o taco.
- Não gosto de ficar exposto ao público - ele disse. - Mas sou realista. Em 1985 era possível que alguém como eu exercesse um determinado grau de influência
sobre a mídia. Quando Catriona e Adam foram sequestrados, controlamos em grande parte o que foi impresso e transmitido. A polícia também cooperou conosco. - Ele
suspirou e balançou a cabeça. - Olhe só de que adiantou. - Deixou o taco na mesa e veio se sentar de frente para Bel.
Sentou-se na posição clássica do macho dominante: joelhos bem abertos, mãos sobre as coxas, ombros para trás.
- O mundo é um lugar diferente agora - ele disse. - Eu vi o que vocês fazem com pais que perderam seus filhos. Mohamed Al Fayed, retratado como um palhaço
paranoico. Kate McCann, transformada em uma Medeia moderna. Dê um passo em falso e eles o enterram. Bem, não vou deixar que isso aconteça. Sou um homem muito bem-sucedido,
Srta. Richmond. E cheguei até aqui aceitando que existem coisas que eu não sei e entendendo que a forma de superar isso é contratando especialistas e ouvindo-os.
No que se refere a esse ramo de negócios, você é minha especialista. Quando souber que existem novas provas, a mídia enlouquecerá. Mas não falarei com ninguém além
de você. Tudo passará por você. Portanto, qualquer que seja a imagem que chegue ao público, será a que você gerar. Este lugar foi construído para resistir a um cerco,
e meu sistema de segurança é o melhor que existe. Nenhum dos répteis chega perto de mim, de Judith ou de Alec.
Bel sentiu um sorriso repuxar os cantos da boca. Acesso exclusivo era o sonho erótico de todo redator. Geralmente, tinha de se matar para conseguir algo assim. Mas,
ali estava, numa bandeja e de graça. Contudo, deixou-o continuar pensando que era ela quem estava lhe fazendo um favor.
- E o que eu ganho com isso? Além de me tornar a jornalista que todo mundo adora odiar?
A linha estreita dos lábios de Grant se comprimiu ainda mais, e o peito se ergueu numa respiração profunda.
- Eu falarei com você. -As palavras saíram como se tivessem sido trituradas entre duas pedras de moinho. Claramente, sua intenção era que aquele fosse um
momento comparado a quando Moisés desceu do Monte Sinai.
Bel estava determinada a não se deixar impressionar.
- Excelente. Podemos começar, então? - Enfiou a mão dentro da bolsa e tirou um gravador digital. - Sei que isto não será fácil para o senhor, mas preciso
que me conte sobre Catriona. Chegaremos ao sequestro e suas consequências, mas teremos que voltar um pouco antes disso. Quero ter um panorama de como ela era e de
como vivia.
Ele olhou para o nada e, pela primeira vez, Bel viu um homem que parecia ter setenta e dois anos.
- Não tenho certeza se sou a pessoa mais adequada para isso - ele disse. - Éramos parecidos demais. Sempre foi uma disputa, entre mim e Catriona. - Ele se
levantou da poltrona e voltou à mesa de bilhar. - Ela sempre foi voluntariosa, mesmo quando pequena. Tinha ataques de fúria que podiam balançar as paredes deste
lugar. Ela cresceu e deixou os ataques para trás, mas não o temperamento. Contudo, sempre conseguia reconquistar a boa vontade das pessoas. Quando ela queria. -
Ergueu os olhos para Bel e sorriu. - Ela sabia bem o que queria. E não era possível fazê-la mudar de ideia, uma vez que estivesse decidida sobre algo.
Grant se moveu em torno da mesa, estudando as bolas, alinhando sua próxima jogada.
- E tinha talento. Quando criança, nunca estava sem um lápis ou um pincel nas mãos. Desenho, pintura, modelagem em argila. Ela nunca parava. Não deixou de
fazer isso com o tempo, como a maioria das crianças. Simplesmente se aprimorou. Então, ela descobriu o vidro. - Ele se inclinou sobre a mesa e acertou a bola vermelha
com a bola da vez, encaçapando-a no buraco do meio. Então, reposicionou a vermelha e estudou os ângulos.
- O senhor disse que sempre houve disputa entre vocês. Quais eram os pontos críticos? - Bel perguntou, quando ele não demonstrou sinais de que continuaria
com suas reminiscências.
Grant deu uma risadinha irônica.
- Tudo e qualquer coisa. Política. Religião. Se a comida italiana era melhor do que a indiana. Se Mozart era melhor do que Beethoven. Se a arte abstrata tinha
algum significado. Se deveríamos plantar faia, bétula ou pinho escocês no bosque de Check Bar. - Ele se endireitou lentamente. - Por que ela não queria assumir a
companhia. Esse era o ponto mais crítico. Eu não tinha um filho homem, naquela época. E nunca tive problemas para
aceitar mulheres nos negócios. Não via razão alguma para que ela não pudesse assumir a MGE, desde que aprendesse como tudo funcionava. Ela dizia que preferiria furar
os próprios olhos com uma agulha.
- Ela não aprovava a MGE? - perguntou Bel.
- Não, não tinha nada a ver com a companhia ou com sua política. Ela queria era ser uma artista do vidro. Esculpir, soprar, modelar... tudo que fosse possível
fazer com vidro, ela queria ser a melhor. E isso não deixava espaço para a construção de rodovias ou casas.
- Deve ter sido uma grande decepção.
- Fiquei arrasado. - Grant pigarreou. - Fiz tudo o que podia para convencê-la a desistir daquilo. Mas ela não me dava ouvidos. Agiu à minha revelia e se candidatou
a uma vaga na universidade Goldsmiths, em Londres. E conseguiu. - Ele balançou a cabeça. - Eu queria cortar qualquer ajuda financeira a ela, mas Mary, minha esposa,
mãe de Cat, me compeliu a concordar em sustentá-la. Ela disse que, para alguém que detestava se expor ao público, eu estava dando uma imensa colher de chá para os
tabloides. Então, deixei-me convencer. - Ele deu um sorriso amargo. - Quase me conformei com tudo, também. Então, descobri o que realmente estava acontecendo.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1978; Castelo de Rotheswell
Brodie Grant girou o Land Rover numa curva que espalhou cascalho para os lados e freou a metros da porta da cozinha do Castelo de Rotheswell. Entrou pisando forte
na casa, com um labrador chocolate nos calcanhares. Atravessou a cozinha, deixando um redemoinho de ar gelado à sua passagem, e gritou para o cão ficar ali. Moveu-se
pela casa com a velocidade e a segurança de um homem que sabe precisamente aonde está indo.
Finalmente, irrompeu na sala belamente decorada onde a esposa se entregava à sua paixão pela costura de colchas de retalhos.
- Você sabia disto? - ele indagou. Mary ergueu os olhos, assustada. Podia ouvir a intensidade de sua respiração, do outro lado da sala.
- Disto o quê, Brodie? - perguntou. Ela estava casada com uma força da natureza havia tempo suficiente para não se espantar com uma entrada dramática.
- Foi você que me convenceu a isto. - Ele se jogou numa poltrona baixa, lutando para ajeitar as pernas. - "É o que ela quer, Brodie. Ela jamais o perdoará
se você ficar no caminho dela. Você seguiu seus sonhos, Brodie. Deixe-a seguir os dela." Foi o que você disse. Então, foi o que fiz. Contrariando o que achava certo,
eu disse que iria apoiá-la. Financiar seu maldito diploma. Ficar de boca fechada sobre a maldita perda de tempo que é tudo isso. Parar de lembrá-la que são pouquíssimos
os artistas que conseguem se sustentar com essa bobajada indulgente. Não enquanto estão vivos, pelo menos. - Ele bateu o punho fechado no braço da poltrona.
Mary continuou a enfiar a agulha no tecido e sorriu.
- Você fez isso mesmo, Brodie. E estou orgulhosa de você.
- E olhe só aonde isso nos levou. Olhe só o que realmente está acontecendo!
- Brodie, não tenho ideia do que está falando. Você poderia explicar? E não se esqueça da sua pressão.
Ela tinha o dom de provocá-lo gentilmente e demovê-lo de suas posturas tão extremas. Mas, naquele dia, não estava dando certo. A irritação de Brodie estava no auge,
e seria necessária mais que uma dose de racionalidade amável para fazê-lo voltar a seu humor normal.
- Saí com Sinclair. Fomos verificar as trilhas para a caçada na sexta-feira.
- E como estavam as trilhas?
- Ótimas. Sempre ótimas. Ele é um bom caseiro. Mas não é essa a questão, Mary. - Sua voz se elevou novamente, incompatível com o ambiente aconchegante, cheio
de tecidos nas prateleiras.
- Claro que não, Brodie. Percebi isso. Qual é exatamente a questão?
- Aquele maldito do Fergus Sinclair. Eu disse ao Sinclair. No verão passado, quando seu maldito filho estava farejando atrás da Cat. Eu disse a ele para manter
o garoto longe da minha filha, e achei que ele tivesse me ouvido. E agora, isto! - Sacudiu as mãos como se estivesse jogando uma pilha de feno para o ar.
Mary finalmente abaixou seu trabalho.
- Qual é o problema, Brodie? O que aconteceu?
- É o que vai acontecer. Você se lembra de como respiramos aliviados quando ele se matriculou no maldito curso de administração de propriedades
em Edimburgo? Bem, acontece que essa não era sua única opção. Ele simplesmente aceitou uma vaga na Universidade de Londres. Vai estar na mesma droga de cidade que
a nossa filha. Vai ficar em cima dela o tempo todo, como uma sarna. Maldito caipira oportunista. - Fechou a cara e socou novamente a poltrona. - Vou acabar com a
raça dele, você vai ver.
Para espanto dele, Mary desandou a rir em sua mesinha de trabalho, com lágrimas cintilando nos cantos dos olhos.
- Ai, Brodie - ela ofegou. - Nem consigo lhe dizer como isso é engraçado.
- Engraçado? - ele berrou. - Aquele garoto dos infernos vai arruinar a vida de Cat e você acha engraçado?
Mary se levantou de um salto e cruzou a sala até o marido. Ignorando seus protestos, sentou-se no colo dele e passou os dedos por seu cabelo grosso.
- Está tudo bem, Brodie. Tudo ficará bem.
- Não vejo como. - Ele se afastou da mão dela.
- Durante a última semana, eu e a Cat tentávamos arranjar uma forma de lhe contar.
- Contar o quê, mulher?
- Ela não vai para Londres, Brodie.
Ele se endireitou, quase derrubando Mary no chão.
- O que você quer dizer com não vai para Londres? Ela vai desistir dessa idiotice? Virá trabalhar comigo?
Mary suspirou.
- Não Seja bobo. Você sabe, no fundo do seu coração, que ela está fazendo o que deveria fazer. Não, ela recebeu a oferta de uma bolsa de estudos. É uma combinação
de formação acadêmica e trabalho em uma fábrica de vidro artístico. Brodie, é simplesmente a melhor escola do mundo. E eles querem a nossa Catriona.
Por um longo momento, ele se permitiu ficar dividido entre o orgulho e o medo.
- E onde é isso? - disse, por fim.
- Não é muito longe, Brodie. - Mary passou as costas da mão pelo rosto dele. - É na Suécia.
- Suécia? Na maldita Suécia? Por Deus, Mary. Suécia?
- Você fala como se fosse o fim do mundo. Pode-se voar para lá de Edimburgo, sabe? Leva menos de duas horas. Sinceramente, Brodie. Escute o que está dizendo.
Isso é maravilhoso. É o melhor começo possível para ela. E você não terá de se preocupar com o fato de Fergus estar no mesmo lugar. Não é provável que ele apareça
numa cidadezinha perdida entre Estocolmo e Uppsala, é?
Grant passou os braços em volta da esposa e descansou o queixo sobre sua cabeça.
- Só você mesmo para encontrar o lado bom disso. - Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. - Com certeza, isso irá colocar o maldito do Fergus Sinclair
no lugar dele.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
- Então o senhor também discutia com Cat a respeito de namorados? - Bel perguntou. - Era com relação a todos eles, ou apenas no caso de Fergus Sinclair?
- Ela não teve tantos namorados assim. Estava concentrada demais no trabalho. Saiu durante alguns meses com um dos escultores da fábrica de vidro. Eu o encontrei
algumas vezes. Sueco, mas mesmo assim um rapaz bastante sensato. Eu podia ver que ela não estava levando muito a sério; então não havia necessidade de discutirmos
sobre ele. Mas Fergus Sinclair era outra história. - Ele contornou a mesa, e sua raiva era óbvia.
- A polícia nunca o considerou suspeito, mas questionei, na época, se ele poderia estar por trás do que aconteceu com Cat e Adam. Ele, logicamente, não havia
aceitado, quando ela finalmente rompeu os laços entre eles. E não aceitava que ela não o reconhecesse como pai de Adam. Na época, pensei que era possível que ele
tivesse feito justiça com as próprias mãos. Embora fosse difícil imaginar que tivesse inteligência para armar algo tão complicado.
- Mas Cat continuou o relacionamento com Fergus, depois de ir para a Suécia?
Subitamente o cansaço pareceu dominá-lo, e Grant se deixou cair na poltrona, de frente para Bel.
- Eles eram muito próximos. Haviam brincado juntos quando crianças. Eu deveria ter colocado um ponto final naquilo, mas nunca passou pela minha cabeça que
se transformaria em alguma coisa. Eles eram muito diferentes. Cat, com sua arte, e Sinclair, sem outra ambição a não ser a de seguir os passos do pai e ser caseiro.
Classes sociais diferentes, aspirações diferentes. A única coisa que os aproximava era o fato de a vida os ter colocado no mesmo lugar. Portanto, sim, quando ela
voltava, nas férias, e ele estava por perto, eles se juntavam novamente. Ela não fazia segredo sobre isso, ainda que soubesse minha opinião a respeito de Sinclair.
Eu continuava com a esperança de que ela conhecesse alguém que fosse digno dela, mas isso nunca aconteceu. Ela continuava voltando para Sinclair.
- E, apesar disso, o senhor não despediu o pai dele. Não o retirou da propriedade.
Grant pareceu chocado.
- Meu Deus, claro que não. Você tem ideia de como é difícil encontrar um caseiro tão bom quanto Willie Sinclair? Você poderia entrevistar cem homens antes
de encontrar alguém com os instintos que ele tem sobre pássaros e sobre as terras. E também é um sujeito decente. Ele sabia que o filho não estava à altura de Cat.
Sentia vergonha por não conseguir impedir que Fergus andasse atrás dela. Queria proibi-lo de frequentar a casa deles, mas sua esposa não permitiu. - Ele deu de ombros.
- Não posso culpá-la. As mulheres são sempre moles com os filhos.
Bel tentou ocultar sua surpresa. Ela havia presumido que Grant não respeitaria qualquer limite para que tudo fosse como ele queria, no que dizia respeito à filha.
Aparentemente, ele era mais complexo do que ela havia imaginado.
- O que aconteceu quando ela voltou da Suécia?
Grant esfregou o rosto com as mãos.
- Não foi nada agradável. Ela queria se mudar. Montar um estúdio onde pudesse trabalhar e vender suas coisas, um lugar onde também houvesse um espaço separado
para ela morar. Ela estava de olho numas propriedades nas minhas terras. Eu disse que o preço da minha ajuda era que ela parasse de se encontrar com Sinclair. -
Pela primeira vez, Bel viu tristeza se infiltrando através da raiva fervilhante. - Foi burrice da minha parte. Mary disse isso, na época, e ela estava com a razão.
As duas ficaram
furiosas comigo, mas eu não quis ceder. Então, Cat seguiu seu próprio caminho. Ela entrou em contato com a corretora da propriedade rural de Wemyss e alugou um imóvel
deles. Uma velha casa, próxima à entrada da propriedade, juntamente com o que havia sido um depósito de lenha, entrando pela estrada principal. Perfeito para atrair
a clientela. Área para estacionamento na frente dos antigos portões, um estúdio e espaço para exposição, além de dependências para ela morar, por trás dos muros.
Toda a privacidade que ela poderia desejar. E todo mundo ficou sabendo que Catriona Maclennan Grant fora morar em Wemyss só para contrariar seu velho pai.
- Se ela dependia do senhor, como é que pôde pagar por tudo isso? - perguntou Bel.
- A mãe dela equipou o estúdio, pagou o aluguel referente ao primeiro ano e encheu a despensa de Cat até ela começar a vender suas peças. - Ele não conseguiu
evitar um sorriso. - O que não demorou muito. Ela era boa, sabe? Muito boa. E a mãe cuidou que todos os seus amigos fossem até lá para comprar presentes de casamento
e de aniversário. Nunca fiquei tão bravo com Mary quanto naquela época. Estava ultrajado. Sentia-me frustrado e desrespeitado, e a situação só piorou quando o desgraçado
do Sinclair voltou da universidade e retornou de onde havia parado.
- Eles moravam juntos?
- Não. Cat tinha bom-senso o bastante para não fazer isso. Agora eu olho para trás e, às vezes, penso que ela só continuava se encontrando com ele para me
irritar. Não durou muito, depois que ela abriu o estúdio. Estava praticamente terminado cerca de um ano e meio antes que... que ela morresse.
Bel fez as contas mentalmente e concluiu que havia algo errado.
- Mas Adam só tinha seis meses quando eles foram sequestrados. Então, como Fergus Sinclair podia ser o pai, se ele se separou de Cat um ano e meio antes?
Grant suspirou.
- De acordo com Mary, não foi um rompimento definitivo. Cat ficava repetindo para Sinclair que tudo havia terminado, mas ele não queria aceitar. Hoje em dia,
isso se chama assédio. Parece que ele vivia aparecendo com aquela cara de cão sem dono, e Cat nem sempre tinha forças para
mandá-lo embora. E daí, ela ficou grávida. - Ele olhou para o chão. - Sempre imaginei como seria ser avô. Ver a família continuar. Mas, quando Cat nos contou, tudo
o que senti foi raiva. Aquele filho da puta do Sinclair havia arruinado o futuro dela. Ele a sobrecarregou com seu bebê, destruiu suas chances de ter a carreira
que ela havia sonhado. A única coisa boa que ela fez foi se recusar a manter qualquer contato com ele. Não quis reconhecê-lo como pai da criança, não queria vê-lo
nem falar com ele. Deixou muito claro que, daquela vez, estava realmente tudo acabado entre eles.
- Como ele reagiu a isso?
- Mais uma vez, eu soube indiretamente. Dessa vez por Willie Sinclair. Ele disse que o garoto estava devastado. Mas só o que me importava era que ele finalmente
tivesse entendido o recado de que nunca faria parte da nossa família. Willie aconselhou-o a manter distância de Cat e, pela primeira vez na vida, ele ouviu. Em poucas
semanas, arranjou um emprego na Áustria para trabalhar numa propriedade de caça perto de Salzburg. Desde então ele trabalha na Europa.
- E hoje? O senhor ainda acha que ele pode ter sido responsável pelo que aconteceu?
Grant fez uma careta.
- Se é para ser honesto, não. Acho que não. Não creio que ele tivesse inteligência suficiente para criar um plano tão complicado. Tenho certeza de que ele
adoraria ter colocado as mãos no filho e ao mesmo tempo se vingar de Cat, mas é muito mais provável que tenham sido alguns filhos da puta com motivos políticos que
pensaram que seria muito inteligente me fazer financiar sua revolução. - Fatigado, ele se levantou. - Agora estou cansado. A polícia virá amanhã de manhã e teremos
que repassar tudo. Nós a veremos no jantar, Srta. Richmond.
Ele saiu da sala, deixando Bel cheia de coisas a considerar. E anotar. Quando Brodie Grant dissera que falaria com ela, não havia imaginado, nem por um minuto, que
ele lhe entregaria esse precioso filão de informações. Ela teria de pensar com muito cuidado em como apresentá-lo à mídia mundial. Um passo em falso e sabia que
a mina seria fechada. Agora que tivera um gostinho do que jazia adiante, isso era, definitivamente, a última coisa que ela queria.
Glenrothes
Novo em Folha olhava fixamente para a tela do computador, como se fosse um artefato alienígena, quando Karen voltou a seu escritório.
- O que você tem aí para mim? - ela perguntou. -Já conseguiu ras-trear os cinco fura-greves?
- Nenhum deles tem registro criminal - ele disse.
- E?
- Eu não sabia onde mais procurar.
Karen revirou os olhos. Sua convicção de que Novo em Folha havia sido imposto a ela por Biscoito como uma forma de sabotagem se intensificava a cada dia.
- Google. Registro eleitoral. O site 192.com. Registro de carteiras de habilitação. Comece por aí, Jason. E depois marque para mim uma visita, em terreno,
com o responsável pela preservação de cavernas. É melhor deixar o dia de amanhã livre; veja se você consegue que ele me receba no sábado cedo.
- Nós geralmente não trabalhamos aos sábados - disse Novo em Folha.
- Você é que está dizendo - Karen murmurou, lembrando-se de pedir a Phil que fosse com ela. A insistência da lei escocesa na corroboração para todo tipo de
prova fazia com que ficasse difícil dar uma de justiceiro solitário.
Ela despertou seu computador da hibernação e rastreou as informações de contato de seu equivalente em Nottingham. Para seu alívio, o inspetor Des Mottram estava
em sua mesa e foi receptivo a seu pedido.
- Acho provável que seja um beco sem saída, mas é algo que precisa ser verificado - ela disse.
- E não lhe atrai nem um pouco uma viagem até Costa dei Trent - ele disse, com uma resignação divertida na voz.
- Não é isso. Tive um caso importantíssimo reaberto hoje e não tenho como desperdiçar pessoas com algo que, provavelmente, não nos trará qualquer avanço,
exceto num caminho negativo.
- Não se preocupe. Eu sei como é isso. Hoje é seu dia de sorte, Karen. Teremos dois novos assistentes no Departamento de Investigação Criminal na segunda-feira
e isso é exatamente o tipo de coisa que posso usar para treiná-los. Nada muito complicado, não exige muita manha.
Karen passou para ele os nomes dos homens.
- Um dos meus rapazes está procurando pelos últimos endereços conhecidos. Assim que ele achar alguma coisa, pedirei que lhe mande um e-mail. - Mais alguns
detalhes e ela terminou. Bem naquele instante, Phil Parhatka voltou a entrar na sala, com um enrolado de bacon que transmitiu uma mensagem diretamente para os centros
de prazer do cérebro de Karen. - Hummm - ela gemeu. - Deus, isto está com um cheiro delicioso.
- Se eu soubesse que você havia voltado, teria lhe trazido um. Bom, vamos dividir esse.
Ele pegou uma faca em sua gaveta e cortou o enrolado na metade, espirrando molho de tomate nos dedos. Passou a ela sua metade e, então, lambeu os dedos. O que mais,
pensou Karen, uma mulher poderia querer de um homem?
- O que o Biscoito queria? - perguntou Phil.
Karen deu uma mordida no enrolado e falou com a boca cheia da massa adocicada com bacon salgado.
- Novos desdobramentos no caso Catriona Maclennan Grant.
- É mesmo? O que aconteceu?
Karen sorriu.
- Não sei. O Rei Brodie não se preocupou em dizer ao Biscoito. Só disse a ele para me mandar lá amanhã de manhã. Então, preciso me atualizar rapidinho. Já
mandei buscar os arquivos, mas vou checar on-line primeiro. Olhe só... - Ela o puxou para um lado. - O assunto Mick Prentice. Preciso falar com alguém no sábado
e é óbvio que o Novo em Folha não trabalha aos sábados. Existe alguma chance de eu convencer você a ir comigo?
- Ir aonde?
- Às cavernas de Wemyss.
- Sério? - Phil se animou. - Poderemos passar para o outro lado das grades?
- Imagino que sim - disse Karen. - Não sabia que você se interessava por cavernas.
- Karen, eu já fui garoto um dia.
Ela revirou os olhos.
- Isso é bem verdade.
- Além disso, as cavernas têm coisas realmente legais. Inscrições e desenhos pictos. Entalhes da Idade do Ferro. Gosto da ideia de ser um
esquilo-agente-secreto e poder dar uma espiada nas coisas que geralmente não podem ser vistas. Claro que irei com você. Você já fez os registros do
caso?
Karen pareceu envergonhada.
- Quero ver aonde vai dar. Foi uma época difícil por aqui. Se alguma coisa ruim aconteceu a Mick Prentice, quero ir até o fundo. E você sabe como a mídia
está sempre se metendo no que fazemos no setor de Casos Arquivados. Tenho a sensação de que esse é um caso em que temos mais chance de descobrir o que aconteceu
se mantivermos segredo por um tempo.
Phil terminou seu enrolado e limpou a boca com as costas da mão.
- Parece justo. Você é a chefe. Só se assegure de que o Biscoito não possa usar isso contra você.
- Vou tomar cuidado. Escute, você está ocupado agora?
Ele atirou o saco de papel vazio na lixeira com uma jogada por cima da cabeça, comemorando quando acertou.
- Nada que eu não possa adiar.
- Veja o que você consegue descobrir sobre um cara chamado Andy Kerr. Ele era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores durante a greve. Morava num
sítio no meio do bosque de Wemyss. Estava de licença médica, com depressão, na época em que Mick desapareceu. Dizem que deu fim à própria vida, mas nunca encontraram
o corpo.
Phil assentiu.
- Verei o que consigo descobrir.
Enquanto ele voltava à própria mesa, Karen procurava Catriona Maclennan Grant no Google. O primeiro resultado a levou a uma publicação em formato de jornal, de dois
anos antes, marcando o vigésimo aniversário da morte da jovem escultora. Depois de ler três parágrafos, Karen sentiu um golpe no meio de seu peito. "É incrível como
são poucas as pessoas que se dispõem a falar sobre este caso", ela leu. "O pai de Cat Grant jamais falou com a imprensa sobre o que aconteceu. Sua mãe se matou dois
anos após a morte da filha. Seu ex-namorado, Fergus Sinclair, se recusa a dar entrevistas. E o policial encarregado do caso também está fora do nosso alcance, já
que ele mesmo cumpre pena por assassinato."
- Ai, Jesus - ela gemeu. Nem sequer tinha visto o arquivo do caso e aquela já estava se transformando numa missão dos infernos.
Kirkcaldy
Já passava das dez quando Karen entrou em casa com um pacote de arquivos e uma porção de peixe para o jantar. A ideia de que estava brincando de casinha nunca a
tinha abandonado. Talvez tivesse algo a ver com a casa em si, uma caixa pré-fabricada num empreendimento imobiliário popular de 1960, no norte de Kirkcaldy. O tipo
de lugar no qual as pessoas começavam a vida, aferrando-se à esperança de que não a terminariam ali. Um subúrbio com baixos índices de criminalidade, onde se podia
deixar as crianças brincar na rua, desde que não se morasse em uma das estradas. Acidentes de trânsito, e não sequestros, eram o que os pais mais temiam por ali.
Karen nunca se lembrava ao certo por que havia comprado a casa, embora, na época, tivesse parecido uma boa ideia. Suspeitava que o apelo estivera no fato de ela
vir completamente mobiliada, provavelmente por alguém que havia tirado a ideia de um programa de TV sobre decoração. Comprara a mobília junto com a casa, até mesmo
os quadros nas paredes. Não ligava para o fato de não ter sido ela a escolher as coisas entre as quais vivia. De qualquer maneira, era o tipo de coisa que ela provavelmente
teria escolhido, e aquilo lhe havia economizado o trabalho de passar um domingo numa loja da IKEA. E ninguém podia negar que era um milhão de vezes mais agradável
do que a confusão floral desbotada em que viviam seus pais. Sua mãe continuava esperando que ela se tornasse como todo mundo, mas isso não iria acontecer. Quando
tinha um fim de semana livre, Karen não desejava nada além de um prato de carne e legumes com curry com os amigos e passar um bom tempo estirada no sofá, assistindo
a jogos de futebol e a filmes antigos. Nada de arrumar a casa.
Ela colocou tudo sobre a mesa de jantar e foi à procura de um prato e talheres. Ainda conservava alguns padrões, pelo amor de Deus. Atirou o casaco sobre uma cadeira
e sentou-se com a refeição, abrindo um dos arquivos para ler enquanto comia. Ela já havia estudado os arquivos do caso Grant antes e tomado nota das perguntas para
as quais queria respostas. Agora, finalmente, tinha a chance de analisar o material que Phil compilara para ela.
Como havia esperado, o relatório de pessoa desaparecida original não poderia estar mais incompleto. Naquela época, o desaparecimento de um homem adulto, solteiro
e sem filhos, com histórico de depressão clínica, não teria muita atenção da polícia. Não tinha nada a ver com o fato de que a greve dos mineiros houvesse sobrecarregado
a força policial até o limite, e tudo a ver com o fato de que, naquele tempo, pessoas desaparecidas não eram prioridade. A não ser que fossem crianças pequenas ou
mulheres jovens e atraentes. Mesmo nos dias atuais, somente os problemas clínicos de Andy Kerr teriam garantido um leve interesse.
Seu desaparecimento havia sido informado por sua irmã, Angie, na véspera do Natal. Ele não aparecera na casa dos pais para a tradicional comemoração em família.
Angie, em casa de férias do curso de pedagogia, havia deixado alguns recados na secretária eletrônica dele na semana anterior, tentando marcar um encontro para um
drinque. Andy não respondera, mas aquilo não era incomum. Ele sempre fora dedicado ao trabalho, mas, desde que a greve havia começado, tornara-se um verdadeiro workaholic.
Então, na tarde da véspera de Natal, a Sra. Kerr admitira que Andy estava de licença por depressão. Angie convenceu o pai a levá-la de carro até o sítio de Andy,
no bosque de Wemyss. O lugar estava frio e deserto, sem qualquer comida fresca na geladeira. Havia um bilhete encostado no açucareiro sobre a mesa da cozinha. Incrivelmente,
o bilhete havia sido embalado e incluído no arquivo. Se você estiver lendo isto, provavelmente é porque está preocupado comigo. Não fique. Já aguentei o suficiente.
É uma coisa depois da outra, e não suporto mais. Fui embora para tentar colocar a cabeça no lugar. Andy.
Não era exatamente um bilhete de suicídio, mas, se você encontrasse um corpo ao lado de uma mensagem dessas, não esperaria que fosse uma vítima de assassinato. E
a irmã dissera que Andy gostava de fazer caminhada pela montanha. Ela podia entender por que o oficial que investigara o sítio e o bosque ao redor houvesse recomendado
que não se tomassem outras medidas além de fazer a informação circular entre as demais forças da Escócia. Uma anotação no arquivo, escrito com caligrafia diferente,
atestava que Angie Kerr havia entrado com um pedido para que seu irmão fosse declarado legalmente morto em 1992 e que o pedido fora concedido.
A última página estava na caligrafia familiar de Phil. "Os pais de Kerr morreram no desastre de balsa de Zeebrugge, em 1987. Angie não poderia reclamar sua herança
enquanto Andy não fosse declarado morto. Quando ela, finalmente, conseguiu legitimar a sucessão, em 1993, vendeu tudo e emigrou para a Nova Zelândia. Ela ensina
piano em Nelson, em South Island; trabalha em casa." Seguiam o endereço completo e o número de telefone de Angie Kerr.
Ela havia sofrido bastante com tudo aquilo, pensou Karen. Perder o irmão e os pais no espaço de alguns anos já era duro, e ainda por cima ter de passar pelo processo
de obter a declaração de morte legal para Andy. Não era de admirar que ela tivesse desejado se mudar para o outro lado do mundo. Onde, ela notou, seriam onze e meia
da manhã. Uma hora perfeitamente civilizada para se ligar para alguém.
Uma das poucas coisas que Karen havia comprado para sua casa era uma secretária eletrônica que lhe permitia gravar digitalmente as ligações telefônicas, que ela,
então, podia transferir via conexão USB para seu computador. Tentara convencer Biscoito a comprar algumas para o escritório, mas ele não se interessava. Provavelmente
porque não tinha sido ideia dele. Karen podia apostar que, muito em breve, algo parecido surgiria no escritório principal do Departamento de Investigação Criminal,
uma invenção do próprio subchefe Lees. Tudo bem. Pelo menos ela podia usar o sistema em casa e pedir ressarcimento pelas ligações.
Uma mulher atendeu no terceiro toque, o sotaque escocês evidente até mesmo nas duas sílabas de "Alô?".
Karen se apresentou e, então, disse:
- É Angie Kerr?
- Antes era Kerr. Agora é Mackenzie. É a respeito do meu irmão? Vocês o encontraram? - Ela parecia ansiosa, quase satisfeita.
- Não. Infelizmente, não.
- Ele não se matou, sabe? Sempre achei que sofreu um acidente. Caiu de alguma montanha, em algum lugar. Por mais deprimido que estivesse, Andy jamais se mataria.
Ele não era covarde. - O tom de desafio era claro em sua voz.
- Sinto muito - disse Karen. - Realmente não tenho respostas para você. Mas estamos examinando novamente os fatos da época em que ele
desapareceu. Estamos investigando o desaparecimento de Mick Prentice, e o nome do seu irmão veio à tona.
- Mick Prentice. - Angie parecia enojada. - Que belo amigo ele se revelou.
- O que você quer dizer?
- Não acho que seja coincidência que ele tenha fugido da greve justamente antes de Andy partir.
- Por que você diz isso?
Uma pausa curta, então Angie continuou:
- Porque seria o pior tipo de traição. Aqueles caras eram amigos desde o primeiro dia de escola. O fato de Mick ter furado a greve arrasaria Andy. E eu acho
que ele previu que isso aconteceria.
- O que a faz dizer isso?
- A última vez que o vi, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo com Mick.
Domingo, 2 de dezembro de 1984; Bosque de Wemyss
Nenhuma visita à casa de sua família seria completa, para Angie, se não passasse algum tempo com o irmão. Ela tentava vir pelo menos uma vez por semestre, mas, embora
a viagem de ônibus de Edimburgo levasse apenas uma hora, às vezes parecia demais para suportar. Ela sabia que o problema era o diferente tipo de distância que estava
crescendo entre ela e os pais, conforme se movimentava com maior liberdade num universo que era estranho para eles: palestras, sociedades estudantis, festas nas
quais as drogas eram tão comuns quanto um drinque, e uma gama de assuntos que ultrapassava tudo que ela já houvesse encontrado em Fife. Não que não existissem oportunidades
para ampliar os horizontes intelectuais por lá. Mas as salas de leitura, os cursos da WEA e os Bums Clubs eram para os homens. As mulheres nunca tiveram acesso nem
tempo para eles. Os homens cumpriam seus turnos no subterrâneo e, depois, seu tempo era só deles. Mas o trabalho das mulheres nunca terminava de verdade, principalmente
para aquelas cujos senhorios eram as antigas empresas carboníferas ou a comissão nacional do carvão. A própria avó de Angie não tivera água quente corrente nem um
banheiro em sua casa até já ter mais de sessenta
anos. Portanto, os homens não se sentiam facilmente atraídos por mulheres com formação escolar.
Andy era uma exceção. Sua mudança da frente mineira para o trabalho no sindicato o havia exposto às políticas igualitárias aspiradas pelo movimento sindicalista.
Ainda que não existissem mulheres trabalhando nas minas, o contato com outros sindicatos havia convencido Andy de que o mundo não acabaria se as mulheres fossem
tratadas como companheiras igualitárias da raça humana. E, assim, irmão e irmã tornaram-se mais próximos, substituindo as brigas da infância por discussões legítimas.
Agora, Angie esperava com ansiedade pelas tardes de domingo passadas com o irmão, passeando pelo bosque ou segurando canecas de chocolate quente diante da lareira.
Naquela tarde, Andy a esperara na parada de ônibus no final da estrada que descia até seu sítio, adentrando o bosque. Eles haviam planejado contornar o bosque e
caminhar até a orla, mas o céu ameaçava chuva, então optaram por voltar ao sítio.
- Acendi a lareira para a sua chegada - Andy dissera quando começaram a caminhada. - Me sinto culpado por ter dinheiro para o carvão, então, geralmente, não
a acendo. Simplesmente visto mais um suéter.
- Isso é uma tolice. Ninguém o culpa por ainda receber um salário.
Andy balançou a cabeça.
- É aí que você se engana. Tem um monte de gente que acha que deveríamos devolver nosso salário para o fundo do sindicato.
- E a quem isso beneficia? Você está fazendo um trabalho. Está apoiando os homens em greve. Merece ser remunerado. - Ela passou o braço pelo de Andy, compreendendo
como ele devia estar se sentindo acuado.
- Pois é, e muitos dos grevistas acham que também deveriam receber alguma coisa do sindicato. Ouvi alguns deles, lá no Serviço Social, dizendo que, se o sindicato
estivesse pagando salário-greve, não teriam que estar trabalhando tanto para manter os fundos a salvo das mãos dos confiscadores. Eles questionam para que servem
os fundos do sindicato se não é para ajudar seus membros quando há uma greve. - Ele suspirou, a cabeça baixa como se estivesse caminhando contra um vento forte.
- E eles têm razão, sabe?
- Imagino que sim. Mas se você delega a tomada de decisões a seus líderes, que foi o que eles fizeram ao concordar com a greve sem uma votação
nacional, então não pode começar a reclamar quando eles tomam decisões com as quais você não concorda muito. - Angie olhou atentamente para o irmão, observando como
as linhas de tensão ao redor de seus olhos haviam se aprofundado, desde a última vez que o vira. Sua pele parecia pálida e pouco saudável, como a de um homem que
viesse passando tempo demais em ambientes fechados e sem suplementos vitamínicos. - E se você se deixar intimidar a esse respeito, não ajudará a ninguém.
- Não sinto que esteja sendo de muita ajuda no momento - ele disse, tão baixinho que a fala quase se perdeu no ruído das folhas mortas sob seus pés.
- Isso é uma bobagem - Angie protestou, sabendo que não era suficiente, mas sem saber o que mais poderia dizer.
- Não, é a verdade. A vida dos homens que eu represento está desmoronando. Eles estão perdendo a casa porque não conseguem pagar a hipoteca. A esposa já vendeu
o anel de casamento. Os filhos vão para a escola com fome. Têm furos nos sapatos. Aqui mais parece um maldito país de Terceiro Mundo, só que não temos nenhuma instituição
de caridade arrecadando dinheiro para nos ajudar com nosso desastre. E não posso fazer nada a respeito. Como você acha que me sinto com isso?
- Bem mal - disse Angie, agarrando seu braço com mais força. Não havia resistência; era como abraçar o protetor estofado contra correntes de ar que sua mãe
usava para manter a sala o mais abafada possível. - Mas você pode fazer apenas o melhor que conseguir. Ninguém espera que você solucione todos os problemas da greve.
- Eu sei - ele suspirou. - Mas me sentia parte desta comunidade. Pertenci a ela minha vida inteira. Agora, parece que os caras em greve estão num lado da
cerca e todos os demais estão no outro. Funcionários do sindicato, auxiliares das minas, gerentes, a porra do governo Toiy... somos todos inimigos.
- Agora é que você está realmente dizendo bobagens. De jeito nenhum estamos no mesmo lado que os Tories. Todo mundo sabe disso. - Eles caminharam em silêncio,
apressando o passo quando a promessa de chuva se tornou realidade. Caiu torrencialmente em gotas frias e duras. Os galhos nus acima de sua cabeça ofereciam pouca
proteção contra o aguaceiro penetrante. Angie soltou o braço dele e começou a correr. - Vamos apostar uma corrida? - ela disse, animada, de alguma forma, pelo aguaceiro
gelado.
Não olhou para verificar se ele a estava seguindo. Apenas correu de forma desordenada em meio às árvores, seguindo a trilha sinuosa. Como sempre, emergir na clareira
onde o sítio se incrustava era incrivelmente repentino. A casa aparecia como algo saído dos contos dos Irmãos Grimm, uma construção baixa sem qualquer outro charme
além do seu isolamento. O teto de ardósia, o estuque cinza, a porta e as janelas pretas levariam qualquer criança que passasse por ali a identificá-la como a casa
da bruxa malvada. Um alpendre de madeira abrigava um recipiente para carvão, uma pilha de madeira e a motocicleta com sidecar de Andy.
Angie correu até a varanda e se virou, ofegante. Não havia sinal de Andy. Alguns minutos se passaram antes que ele surgisse entre as árvores, caminhando com dificuldade,
o cabelo castanho-claro grudado à cabeça. Angie sentiu-se murchar diante do fracasso de sua tentativa de animá-lo um pouco. Ele não disse nada ao entrar primeiro
na casa, tão organizada e espartana quanto um quartel. A única decoração era uma série de pôsteres de animais selvagens que haviam sido dados como brinde junto com
um dos jornais dominicais escoceses. Um conjunto de prateleiras estava lotado de livros sobre história natural e política; outro, de LPs. Não poderia ser mais diferente
dos quartos que ela frequentava em Edimburgo, mas Angie gostava mais dali do que de qualquer um deles. Ela sacudiu a cabeça como um cachorro para tirar as gotas
de chuva do cabelo louro-escuro, atirou o casaco sobre uma cadeira e se encolheu em uma das poltronas de segunda mão que estavam ao lado da lareira. Andy foi direto
até a cozinha para preparar o chocolate quente.
Enquanto esperava que ele se juntasse a ela, Angie tentava imaginar uma forma de animá-lo. Geralmente, ela o fazia rir com as histórias de seus colegas da universidade
e suas travessuras, mas sentia que isso não iria funcionar naquele dia. Iriam parecer histórias insensíveis sobre os privilegiados. Talvez a solução fosse lembrá-lo
das pessoas que ainda acreditavam nele.
Ele voltou com duas canecas fumegantes numa bandeja. Geralmente, eles comiam biscoitos, mas qualquer coisa que cheirasse a luxo estava fora do cardápio daquele dia.
- Tenho doado a maior parte do meu salário para o fundo de emergência - ele disse, percebendo que ela havia notado. - Só guardo o suficiente para o aluguel
e as coisas básicas.
Sentaram-se de frente um para o outro, aferrando-se à bebida quente para deixar que o calor penetrasse em suas mãos geladas. Angie falou primeiro.
- Você não deveria dar atenção a eles. As pessoas que realmente o conhecem não acham que você seja um dos inimigos. Você deveria ouvir gente como Mick, que
sabe quem você é. O que você é.
- Você acha mesmo? - Sua boca se retorceu numa expressão amargurada. - Como é que pessoas da laia de Mick podem saber quem eu sou, se nem sequer sabem mais
quem elas mesmas são?
- O que você quer dizer com não saber mais quem é Mick? Vocês são amigos há mais de vinte anos. Não acredito que a greve tenha mudado nenhum de vocês tanto
assim.
- É o que se poderia pensar, não? - Andy olhou fixamente para o fogo com os olhos embotados e os ombros caídos. - Os homens daqui... não é comum a gente conversar
sobre nossos sentimentos. Vivemos nesta atmosfera de camaradagem, lealdade e dependência mútua, mas nunca falamos sobre o que acontece dentro da gente. Mas eu e
o Mick, nós não éramos assim. Costumávamos contar tudo um ao outro. Não havia nada sobre o que não pudéssemos conversar. - Ele afastou o cabelo molhado da testa
alta e estreita. - Mas, ultimamente, algo mudou. Sinto que ele está escondendo alguma coisa. Parece que há alguma questão realmente importante sobre a qual ele não
consegue se obrigar a falar.
- Mas pode ser qualquer coisa - disse Angie. - Algo entre ele e Jenny, talvez. Algo que não seria certo discutir com você.
Andy fungou.
- Você acha que ele não fala sobre Jenny? Eu sei tudo sobre aquele casamento, pode acreditar. Poderia desenhar um mapa das falhas geológicas entre aqueles
dois. Não, não é Jenny. A única coisa que posso pensar é que ele concorda com os outros. Que ache que eu não esteja servindo de nada para eles, no momento.
- Tem certeza de que não é sua imaginação? Isso não parece coisa do Mick.
- Bem que eu gostaria. Mas não é imaginação. Nem mesmo meu melhor amigo acha que eu mereça confiança. Só não sei quanto tempo conseguirei fazer meu trabalho,
me sentindo deste jeito.
Angie começou a se preocupar de verdade. O desespero de Andy estava claramente além de qualquer coisa com a qual ela soubesse lidar.
- Andy, não me leve a mal, mas você precisa ir ao médico.
Ele emitiu um som que parecia o de uma risada sufocada antes mesmo de se formar.
- Quem? O Dr. Aspirina e o Dr. Melhorai, os gêmeos analgésicos? Você acha que estou perdendo o juízo? Acha que esses dois saberiam o que fazer a respeito,
se eu estivesse mesmo? Acha que preciso de temazepam, como a porra da metade das mulheres daqui? Pílulas da felicidade, para fazer com que nada mais importe?
- Eu quero ajudar você, Andy. E não tenho competência para isso. Você precisa conversar com alguém que saiba o que fazer, e os médicos são um bom começo.
Até mesmo o Aspirina e o Melhoral sabem mais do que eu sobre depressão. Acho que você está deprimido, Andy. Uma depressão clínica mesmo, e não apenas tristeza.
Ele pareceu que ia chorar.
- Sabe o que é o pior de tudo isso que você acabou de falar? Que eu acho que você pode ter razão.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Kirkcaldy
Parecia plausível. Andy Kerr havia sentido que Mick Prentice escondia alguma coisa dele. Quando pareceu que Mick havia se unido aos fura-greves e ido para Nottingham,
deve ter sido o suficiente para empurrar alguém já fragilizado para o abismo. Mas aparentemente Mick Prentice, afinal, não havia ido para Nottingham. A questão,
pensou Karen, era se Andy Kerr sabia o que realmente havia acontecido com seu melhor amigo. E se ele estava envolvido no desaparecimento dele.
- E você nunca mais falou com Andy, depois daquele domingo? - ela perguntou.
- Não. Tentei telefonar para ele algumas vezes, mas só caía na secretária eletrônica. Eu não tinha telefone onde estava morando, então ele não tinha como
me ligar de volta. Minha mãe me disse que o médico lhe dera uma licença do trabalho, por causa da depressão, mas isso foi tudo que eu soube.
- Você acha que é possível que ele e Mick tenham ido a algum lugar juntos?
- O quê? Você quer dizer que tenham dado as costas para todo mundo e ido em direção ao pôr do sol, como Butch Cassidy e Sundance Kid?
Karen recuou.
- Não exatamente assim. Mas como se os dois tivessem se fartado e não conseguissem ver outra saída. Não há dúvida de que Andy estava com problemas. E você
sugeriu que Mick e Jenny também não estavam se entendendo. Talvez eles tenham se decidido por um rompimento limpo.
Ela podia ouvir Angie respirando, no outro lado do mundo.
- Andy não faria isso conosco. Ele jamais teria nos magoado dessa forma.
- Mick poderia tê-lo convencido? Você disse que eles eram amigos desde a escola. Quem era o líder? Quem era o seguidor? Sempre há um que lidera e outro que
segue. Você sabe disso, Angie. Mick era o líder? - Ninguém conseguia ser mais insistente do que Karen, quando estava inspirada.
- Acho que sim. Mick era o extrovertido, Andy era muito mais quieto. Mas eles formavam uma dupla. Estavam sempre metidos em problemas, mas não de forma negativa.
Não com a polícia. Apenas enrolados na escola. Eles sabotavam as experiências de química com fogos de artifício. Grudavam a tampa da mesa da professora. Andy era
bom com as palavras, e Mick era artístico, então eles imprimiam pôsteres com anúncios falsos da escola. Ou Mick falsificava bilhetes dos professores, dando aos dois
permissão para sair das aulas de que eles não gostavam. Ou bagunçavam a biblioteca, trocando as capas dos livros. Eu teria um ataque de nervos se tivesse alunos
como eles. Mas eles amadureceram. Na época da greve, os dois já estavam assentados na vida. - Havia mais do que um toque de pesar em sua voz. - Portanto, sim, teoricamente,
Mick poderia ter convencido Andy a dar no pé. Mas não teria sido por muito tempo. Eles teriam voltado. Não poderiam ficar longe. Tinham raízes profundas demais.
- Você cortou as suas - Karen observou.
- Eu me apaixonei por um neozelandês, e minha família inteira estava morta - Angie disse, simplesmente. - Eu não estava deixando para trás ninguém para chorar
por mim.
- É justo. Podemos voltar para o Mick? Você disse que Andy sugerira que havia problemas no casamento dele.
- Ela o obrigou a casar, sabe? Andy sempre achou que ela ficara grávida de propósito. Ela deveria estar tomando pílula, mas, incrivelmente, não funcionou
e, em seguida, Misha estava a caminho. Ela sabia que Mick vinha de uma família decente, o tipo de gente que não foge das responsabilidades. Então, é claro que ele
se casou com ela.
Havia um toque de amargura em seu tom de voz que fez Karen se perguntar se ela havia sido apaixonada por Mick Prentice antes que seu neozelandês aparecesse.
- Não foi o melhor dos começos, então.
- No início, eles pareciam bem felizes. - A admissão rancorosa de Angie custou a vir. - Mick a tratava como uma princesinha, e ela se aproveitava disso. Mas
não gostou nada quando chegaram os tempos difíceis. Achei, na época, que ela o havia forçado a furar a greve porque tinha se cansado de viver na miséria.
- Mas ela sofreu muito, depois que ele foi embora - disse Karen. - Foi um estigma terrível ser a esposa de um fura-greve. Ela não teria permitido que ele
a deixasse enfrentar aquilo sozinha.
Angie emitiu um ruído de desdém.
- Ela não tinha ideia de como seria, até que aconteceu. Ela não entendia. Não era das nossas, sabe? As pessoas falam da classe trabalhadora como se fosse
um bolo só, mas as linhas demarcatórias são tão bem definidas quanto em qualquer outra classe. Ela nasceu e foi criada em East Wemyss, mas não era uma de nós. Seu
pai não sujava as mãos. Ele trabalhava na cooperativa. Ficava atrás de um balcão de loja. Vestia camisa e gravata para trabalhar. Aposto que ele nunca votou no Partido
Trabalhista na vida. Então, não tenho certeza de que ela entendesse bem o que iria acontecer com ela, se Mick entrasse em greve.
Fazia sentido. Karen compreendia visceralmente o que Angie estava dizendo. Ela conhecia pessoas assim em sua própria comunidade. Pessoas que não se encaixavam em
lugar algum, que tinham a bunda calejada de tanto ficarem sentadas em cima do muro. Acrescentava peso à ideia de que Mick Prentice poderia ter fugido da greve. Exceto
pelo fato de ele não ter feito isso.
- O negócio, Angie, é que parece que Mick não fugiu da greve, naquela noite. Nossos inquéritos preliminares indicam que ele não se uniu àqueles cinco homens
que foram para Nottingham.
Um silêncio chocado. Então, Angie disse:
- Ele poderia ter ido para outro lugar, sozinho.
- Ele não tinha dinheiro. Nem um meio de transporte. Não levou nada consigo quando saiu naquela manhã, além de seu material de pintura. Seja o que for que
aconteceu com ele, não acho que ele tenha fugido da greve.
- Então, o que aconteceu com ele?
- Ainda não sei - disse Karen. - Mas planejo descobrir. E esta é a pergunta que preciso começar a fazer: vamos supor que Mick não tenha furado a greve. Quem
poderia ter motivos para querê-lo fora do caminho?
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Nottingham
Femi Otitoju digitou o quarto endereço no Google Earth e estudou o resultado.
- Vamos, Fem - resmungou Mark Hall. - O inspetor-chefe está de olho na gente. Ele está se perguntando que diabo você está fazendo, brincando com o computador,
depois de ele ter nos mandado numa missão.
- Estou calculando a ordem mais eficiente para fazer as entrevistas, assim não teremos que perder a metade do dia voltando aos lugares. - Ela olhou para os
quatro nomes e endereços fornecidos por um detetive de Fife e os numerou de acordo com sua lógica. - E eu já falei: não me chame de Fem. - Ela imprimiu a lista e
a dobrou com esmero, guardando-a em sua impecável bolsa de mão. - Meu nome é Femi.
Mark girou os olhos e a seguiu, saindo do escritório de Revisão de Casos Arquivados, lançando um sorriso nervoso para o inspetor-chefe Mottram no caminho. Ele havia
esperado ansiosamente por sua transferência para o Departamento de Investigações Criminais, mas, se tivesse sido avisado de que isso significaria trabalhar com Femi
Otitoju, ele poderia ter reconsiderado a questão. O comentário na delegacia, quando ambos ainda usavam uniformes, era que, no caso de Otitoju, a sigla AP (agente
policial) queria dizer Além da Perfeição. Seu uniforme sempre fora imaculado e os sapatos, lustrados no padrão militar. Suas roupas civis seguiam o mesmo estilo:
um discreto
terninho cinza impecavelmente passado, camisa de um branco ofuscante, cabelo impecável. E sapatos mais polidos que um espelho. Tudo que ela fazia era dentro das
regras;
tudo era preciso. Não que Mark tivesse algo contra as coisas serem feitas adequadamente. Mas ele sempre acreditara que havia espaço para a espontaneidade, principalmente
numa entrevista. Se a pessoa com quem você estivesse falando saísse pela tangente, não havia mal algum em segui-la por um tempo. Às vezes, era entre as tangentes
que a verdade estava oculta.
- Então, esses quatro eram mineiros de Fife que furaram a greve para vir trabalhar nas minas daqui? - ele perguntou.
- Exatamente. Originalmente, havia cinco, mas um deles, Stuart McAdam, morreu há dois anos, de câncer de pulmão.
Como é que ela se lembrava daquelas coisas? E por que se importava em memorizá-las?
- E quem você vai ver primeiro?
- William John Fraser. Conhecido como Billy. Cinquenta e três anos, casado, dois filhos adultos, um na Universidade de Leeds, o outro em Loughborough. Ele
é eletricista autônomo agora. - Ela pendurou a bolsa no ombro. - Eu dirijo; sei aonde estamos indo.
Saíram para o estacionamento descoberto atrás da delegacia e se dirigiram para um carro sem identificação de uso comum do DIC (Departamento de Investigação Criminal).
Mark sabia que o carro estaria cheio de lixo deixado por outros policiais. Conforme descobria, o DIC e os carros eram como cães e postes.
- Ele não vai estar no trabalho agora?
Ele abriu a porta do passageiro e constatou que o assoalho do carro estava coberto de embalagens de sanduíches, latas de Coca-Cola vazias e cinco papéis de chocolate
Snickers. Algo branco esvoaçou no canto de sua visão periférica. Otitoju sacudia uma sacolinha plástica vazia.
- Tome - ela disse. - Enfie o lixo aqui para eu jogar na lixeira.
Mark pensou que, afinal, ela servia para alguma coisa. Seguiram pela
estrada principal, ainda movimentada mesmo depois da hora do rush matinal, e foram na direção oeste. A estrada era margeada por casas de tijolos vermelhos sujos
e pelo tipo de comércio que mal conseguia sobreviver, devido às opções mais sofisticadas em outros lugares. Lojas de conveniência,
salões de manicure, lojas de ferramentas, lavanderias, lanchonetes de fast-food e cabeleireiros. Era deprimente passar por ali. Mark ficou agradecido por seu apartamento
no centro da cidade, em uma fábrica de rendas que fora reformada. Podia ser pequeno, mas ele não tinha de lidar com essa pobreza em sua vida pessoal. E havia um
excelente restaurante chinês bem na esquina, que entregava em domicílio.
Quinze minutos percorrendo a estrada que contornava a cidade e eles viraram para um enclave de casinhas geminadas. Pareciam ter sido construídas na década de 1930;
sólidas, despretensiosas e de boa proporção. A casa de Billy Fraser ficava num terreno de esquina, com um jardim considerável e bem cuidado.
- Morei nesta cidade a vida toda e nem sequer sabia que este lugar existia - comentou Mark.
Ele seguiu Otitoju pela entrada da casa. A porta foi aberta por uma mulher que não podia ter mais de um metro e cinquenta de altura. Tinha a aparência de alguém
que já perdera sua melhor forma: mechas grisalhas no chanel castanho-claro, o queixo começando a ficar flácido, e alguns quilos a mais do que o ideal. Mark achou
que ela até que estava bem para a idade. Sua abordagem foi direta, antes que Otitoju tivesse a chance de assustá-la.
- Sra. Fraser?
A mulher assentiu, parecendo ansiosa.
- Sim, sou eu. - Sotaque local, notou Mark. Então, ele não havia trazido uma esposa de Fife. - E vocês são...?
- Sou Mark Hall, e esta é minha colega, Femi Otitoju. Somos policiais e precisamos conversar com Billy. Não é nada para se preocupar - acrescentou rapidamente,
ao ver o olhar de pânico no rosto da Sra. Fraser. - Uma pessoa que ele conhecia, lá em Fife, foi dada como desaparecida, e nós precisamos fazer algumas perguntas
a Billy.
A mulher balançou a cabeça.
- Você vai perder seu tempo, meu bem. Billy não manteve contato com ninguém de Fife a não ser os rapazes que vieram com ele para cá. E isso já faz mais de
vinte anos.
- O homem no qual estamos interessados desapareceu há mais de vinte anos - Otitoju disse, asperamente. - Então, precisamos falar com seu marido. Ele está
em casa?
Mark sentiu vontade de chutá-la, ao ver o rosto da Sra. Fraser se fechar para eles. Otitoju, definitivamente, não havia entrado na fila da simpatia.
- Ele está no trabalho.
- Você poderia nos dizer onde ele está trabalhando, minha flor? - perguntou Mark, tentando recuperar o rumo da conversa.
Ele quase podia enxergar o debate mental no rosto da mulher.
- Espere um pouco - ela disse, enfim. Voltou com uma agenda grande aberta na página daquele dia. Virou-a para que ele a olhasse. - Aqui está.
Otitoju já estava anotando o endereço em sua preciosa folha de papel. A Sra. Fraser viu os nomes.
- Vocês estão com sorte - ela disse. - Johnny Ferguson está trabalhando com ele hoje. Vocês poderão matar dois coelhos com uma cajadada só. - Pela expressão
em seu rosto, ela não estava muito convencida de que fosse apenas uma metáfora.
Os dois ex-mineiros estavam trabalhando a apenas cinco minutos de carro dali, reformando uma loja na rua principal.
- De casa de espetinhos de carne a oficina de molduras de quadros num passe de mágica - disse Mark, lendo as placas.
Fraser e Ferguson trabalhavam duro. Fraser abria um canal para passar os fios elétricos enquanto Ferguson derrubava o banco que havia em uma das paredes para facilitar
os clientes que compravam para viagem. Ambos pararam o que estavam fazendo quando os dois policiais entraram, olhando-os cautelosamente. Era engraçado, pensou Mark,
como algumas pessoas sempre reconheciam policiais instantaneamente, ao passo que outras pareciam ignorar quaisquer sinais que ele e seus colegas pudessem emitir.
Não tinha nada a ver com ser culpado ou inocente, como ele havia pensado, ingenuamente, no começo. Era só um instinto para identificar o caçador.
Otitoju os apresentou e explicou por que estavam ali. Fraser e Ferguson pareceram confusos.
- Por que alguém pensaria que ele veio conosco? - perguntou Ferguson.
- Mais objetivamente, por que alguém pensaria que nós o traríamos?
- Billy Fraser passou as costas da mão pela boca, num gesto de repulsa. -
Mick Prentice achava que nós estávamos abaixo dele. Mesmo antes de nós furarmos a greve, ele desprezava a gente. Achava que era melhor do que nós.
- Por que ele pensaria isso? - Mark perguntou.
Fraser tirou um maço de Bensons do bolso do macacão. Antes que ele pudesse pegar um cigarro, Otitoju já havia colocado a mão macia sobre a aspereza da dele.
- Isso agora é contra a lei, Sr. Fraser. Este é um local de trabalho. O senhor não pode fumar aqui.
- Ah, puta que pariu - Fraser reclamou, virando-se enquanto enfiava os cigarros de volta no bolso.
- Por que Mick Prentice achava que era melhor do que vocês? - Mark perguntou novamente.
Ferguson aceitou o desafio.
- Alguns homens entraram em greve porque o sindicato mandou que fizessem isso. E outros porque estavam convencidos de sua razão e de que sabiam o que era
melhor para o restante de nós. Mick Prentice era um dos que achavam que sabiam mais do que os outros.
- Isso - Fraser concordou, com amargura. - E ele tinha seus amigos do sindicato para cuidarem dele. - Ele esfregou o polegar e o indicador no gesto universal
que representava dinheiro.
- Não entendo - disse Mark. - Sinto muito, companheiro, sou jovem demais para me lembrar da greve. Mas achei que um dos maiores problemas era que vocês não
recebiam salário-greve.
- Você está certo, filho - disse Fraser. - Mas, por algum tempo, os rapazes que participavam dos piquetes móveis recebiam dinheiro vivo. Então, quando havia
qualquer necessidade de ir aos piquetes, eram sempre os mesmos que recebiam autorização. E se você não servisse para aquilo, não havia nada mais para você. Acontece
que o Mick servia mais do que a maioria. Seu melhor amigo era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores, percebe?
- Era mais difícil para uns do que para outros - acrescentou Ferguson. - Imagino que o amiguinho de Prentice lhe dava uma graninha ou um pacote de comida
quando terminava o dinheiro dos piquetes. A maioria de nós não tinha tanta sorte. Portanto, não, Mick Prentice não veio conosco. E Billy tem razão. Nós não o teríamos
aceitado, se ele tivesse pedido para vir.
Otitoju andava pela sala, vistoriando o trabalho deles como se fosse uma inspetora de obras.
- No dia em que vocês partiram... Vocês chegaram a ver Mick Prentice?
Os dois homens trocaram um olhar que pareceu furtivo para Mark. Ferguson, rapidamente, sacudiu a cabeça.
- Mais ou menos - ele disse.
- Como é possível ver alguém "mais ou menos"? - Otitoju inquiriu, virando-se na direção deles.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984
Johnny Ferguson estava no escuro, na janela do quarto, de onde podia ver a estrada principal que atravessava o vilarejo. O quarto não estava frio, mas ele tiritava
um pouco, e a mão que segurava o cigarro enrolado tremia, recortando a elevação suave da fumaça.
- Vamos, Stuart - ele resmungou a meia-voz. Deu outra tragada no cigarro e olhou novamente para o relógio barato em seu pulso. Dez minutos de atraso. Seu
pé direito começou, involuntariamente, a tamborilar no chão.
Nada se movia. Ainda não eram nove horas, mas quase não havia luz. As pessoas não tinham dinheiro para pagar a eletricidade. Elas iam até o Serviço Social para usufruir
um pouco de luz e de aquecimento, ou iam para a cama, esperando dormir o suficiente para que o pesadelo tivesse terminado quando despertassem. Pela primeira vez,
entretanto, o silêncio das ruas não incomodou Ferguson. Quanto menos pessoas testemunhassem o que aconteceria naquela noite, melhor. Ele sabia exatamente o que estava
prestes a fazer, e estava morrendo de medo.
De repente, viu um par de faróis virando a esquina da Main Street. Contra as luzes fracas da rua, Ferguson pôde definir a silhueta de uma van Transit. Modelo antigo,
não o novo, que a polícia usava para transportar as tropas em suas operações contra os mineiros. Conforme a van se aproximou, ele pôde ver que era de cor escura.
Finalmente, Stuart havia chegado.
Ferguson apagou o cigarro. Deu uma última olhada no quarto em que havia dormido nos últimos três anos, desde que alugara aquela casinha minúscula. Estava escuro
demais para ver muita coisa, mas, também, ali
não havia muito o que ver. O que não podia ser vendido tinha sido quebrado para usar como lenha. Agora só havia o colchão no assoalho com um cinzeiro e um livro
rasgado de Sven Hassel ao lado. Nada que se arrependeria de abandonar. Helen já partira havia muito tempo, então, ele podia muito bem dar as costas para aquele bando
de desgraçados.
Desceu ruidosamente as escadas até o andar de baixo e abriu a porta bem no instante em que Stuart ia bater.
- Preparado? - perguntou-lhe Stuart.
Um suspiro profundo:
- Mais preparado, impossível.
Ele empurrou uma bolsa de viagem com o pé na direção de Stuart, agarrou a outra e apanhou também um saco preto de lixo. Dez anos de merda trabalhando na mina de
carvão e aquilo era tudo que tinha.
Deram dois passos, dos quatro que os conduziriam até a van e, de repente, já não estavam mais sozinhos. Uma figura virou a esquina, apressadamente, como alguém que
estivesse numa missão. Alguns metros mais perto, e a forma se definiu como Mick Prentice. Ferguson sentiu como se uma gelada mão lhe apertasse o peito. Era só o
que faltava! Prentice vir atacá-los, gritando insultos e fazendo com que todas as portas da rua se abrissem.
Stuart jogou a bolsa na traseira da van, onde Billy Fraser já estava acomodado sobre uma pilha de sacolas. Ele se virou para encarar Prentice, pronto para agir,
se fosse necessário.
Mas a raiva que tinham esperado que chovesse sobre eles não veio. Em vez disso, Prentice apenas ficou ali parado, parecendo prestes a romper em lágrimas. Olhou para
eles e balançou a cabeça.
- Não, rapazes. Não. Não façam isso - disse.
Ele continuou repetindo aquilo. Ferguson mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que os atormentava, convocando-os e incitando-os para que continuassem
leais ao sindicato. Isso era, pensou ele, uma amostra de como aquela greve os havia derrotado.
Ferguson passou por Prentice, guardou suas bolsas no carro e sentou-se ao lado de Fraser, que puxou as portas para fechá-las atrás dele.
- Inacreditável, porra - disse Fraser.
- Parece que ele acabou de levar um soco no estômago - disse Ferguson. - O cara pirou de vez.
- Dê graças a Deus - disse Fraser. - A última coisa de que precisávamos era que ele explodisse como uma porra de um foguete e fizesse a casa cair para a gente.
- Ele ergueu a voz quando o motor deu a partida. - Vamos, Stu. A vida nova começa agora.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007
- Houve alguma testemunha desse encontro? - perguntou Otitoju.
- Stuart já morreu, então sou a única testemunha que resta - Fraser disse. - Eu estava na van. A porta traseira estava aberta e eu vi tudo. Johnny tem razão:
Prentice parecia devastado. Como se o que estávamos fazendo fosse uma afronta pessoal.
- Poderia ter sido bem diferente se, em vez de você na van, estivesse o Iain - disse Ferguson.
- Por que isso teria feito diferença? - perguntou Mark.
- Iain e ele eram amigos. Prentice talvez sentisse a necessidade de ten tar convencê-lo a mudar de ideia. Mas Iain foi o último a ser apanhado, então achei
que havíamos nos livrado de uma boa. E essa foi a última vez que vimos Prentice - disse Ferguson. - Ainda tenho família por lá. Ouvi dizer que ele tinha dado no
pé, mas supus que ele houvesse ido com aquele amigo dele, o cara do sindicato. Não consigo me lembrar do nome dele...
- Andy alguma coisa - disse Fraser. - Isso mesmo, quando você me disse que os dois estavam na lista de desaparecidos, pensei que tivessem decidido dar o fora
e começar do zero em outro lugar. Vocês têm que entender, a vida das pessoas estava se desfazendo, naquela época. Os homens faziam coisas que jamais imaginaríamos
que fossem capazes. - Ele se virou, caminhou até a porta e saiu, tirando os cigarros do bolso.
- Ele está certo - disse Ferguson. - E, na maioria das vezes, não queríamos pensar muito a respeito. Pensando bem, ainda não queremos. Portanto, a não ser
que haja mais alguma coisa, desejamos a vocês um bom dia. - Ele apanhou o pé de cabra e voltou à sua tarefa.
Incapaz de pensar em mais perguntas, Mark se dirigiu para a porta. Otitoju hesitou um instante, antes de segui-lo até o carro. Ficaram sentados em silêncio por um
momento e, então, Mark disse:
- Deve ter sido horrível.
- Não justifica o desrespeito deles pela lei - disse Otitoju. - A greve dos mineiros provocou um distanciamento entre nós e as pessoas a quem servimos. Eles
nos fizeram parecer brutais, apesar de termos sido provocados. Dizem que até a rainha ficou chocada com a batalha de Orgreave, mas o que as pessoas esperavam? Supostamente,
devemos manter a paz. Se as pessoas não consentem em ser policiadas, o que mais podemos fazer?
Mark a encarou.
- Você me assusta - ele disse.
Ela pareceu surpresa.
- Às vezes me pergunto se você está no trabalho certo - ela retrucou.
Mark olhou para longe.
- Então somos dois, minha flor.
Castelo de Rotheswell
A despeito de sua determinação de lidar com Sir Broderick Maclennan Grant exatamente da mesma forma como lidaria com qualquer outra pessoa, Karen tinha de admitir
que seu estômago não estava colaborando. A ansiedade sempre havia afetado seu sistema digestivo, tirando-lhe o apetite e obrigando-a a fazer visitas urgentes ao
banheiro.
- Se eu tivesse que fazer mais entrevistas assim, não precisaria me preocupar com dieta - disse, quando ela e Phil partiram em direção ao Castelo de Rotheswell.
- Ach, andam valorizando demais as dietas - disse Phil, da confortável posição de um homem cujo peso não se alterara desde que completara dezoito anos, independentemente
do que comesse ou bebesse. - Você está bem assim.
Karen queria acreditar nele, mas não conseguia. Ninguém acharia atraente sua figura gorducha, a não ser que estivesse muito mais necessitado de companhia feminina
do que Phil.
- Ah, sei.
Ela abriu sua maleta e revisou os pontos principais do arquivo do caso, para o bem de Phil. Mal havia chegado ao final de seu resumo quando viraram para tomar a
entrada de Rotheswell. Para além dos galhos secos de um grupo de árvores, podiam avistar o castelo, mas, antes de se aproximarem
mais, sua identidade precisava ser verificada. Tiveram de sair do carro e mostrar a credencial para a câmera do circuito fechado de televisão. Então, os sólidos
portões de madeira se abriram, permitindo que o carro chegasse a uma espécie de antecâmara de segurança. Phil foi dirigindo, enquanto Karen caminhava ao lado do
carro. Os portões de madeira se fecharam atrás deles, deixando-os presos num tipo de curral gigante. Dois guardas saíram de uma guarita e revistaram o exterior e
o interior do carro, a maleta de Karen e os bolsos do casaco esportivo de Phil.
- Ele tem um sistema de segurança melhor que o do primeiro-ministro - disse Karen, quando finalmente puderam seguir de carro até o castelo.
- É mais fácil conseguir um primeiro-ministro novo do que outro Brodie Grant - disse Phil. - De qualquer forma, aposto que é isso que ele pensa.
Ao se aproximarem da casa, um senhor de idade, vestindo um casaco impermeável e um quepe de lã, contornou a torre mais próxima e acenou para que eles seguissem até
o extremo do pátio de cascalho, em frente à casa. Quando eles finalmente estacionaram, ele já havia desaparecido, sem deixar-lhes outra opção senão a de se aproximar
das imensas portas de madeira com tachas de ferro, no centro da fachada.
- Onde está o Mel Gibson quando precisamos dele? - Karen resmungou, levantando uma aldrava pesada de ferro e deixando-a cair com um estrondo considerável.
- Parece um filme ruim.
- E nós ainda nem sabemos por que estamos aqui. - Phil parecia aborrecido. - Difícil entender o que poderia justificar tamanha preparação.
Antes que Karen pudesse responder, a porta se abriu, girando em dobradiças silenciosas. Uma mulher, que lembrara sua professora do primário, disse:
- Bem-vindos a Rotheswell. Sou Susan Charleson, assistente pessoal de Sir Broderick. Entrem.
Eles entraram em um saguão onde, não fosse pela grandiosa escadaria, poderia caber a casa inteira de Karen. Antes que pudessem observar mais do que as cores intensas
e a atmosfera de aconchego, eles foram impelidos a seguir por um amplo corredor, por uma curta distância.
- Suponho que seja a inspetora Pirie - disse Susan Charleson. - Mas não estou a par do nome e do posto do seu colega.
- Sargento detetive Phil Parhatka - ele disse, com toda a pompa de que era capaz diante da formalidade dela.
- Ótimo, agora posso apresentá-los - ela disse, dando um passo para o lado e abrindo uma porta.
Ela acenou para que entrassem em uma sala onde o DIC poderia facilmente realizar seu Bums' Supper* anual. Teriam de empurrar alguns dos móveis para junto das paredes,
só para abrir espaço para as danças tradicionais, mas, ainda assim, não ficariam muito apertados.
Havia três pessoas na sala, mas Karen instantaneamente se concentrou naquela que irradiava carisma. Brodie Grant podia já ter passado dos setenta anos, mas ainda
tinha mais glamour que as duas mulheres que o rodeavam. Ele estava próximo à notável cornija de pedra entalhada da lareira, com a mão esquerda sob o cotovelo direito
e a mão direita segurando casualmente um charuto fino; o rosto estava tão imóvel e impressionante quanto na capa de revista que ela havia encontrado, ao buscar por
imagens dele no Google. Vestia um paletó de tweed cinza e branco cujo caimento sugeria ser de caxemira e seda, em vez do tradicional Harris and Donegal, uma camiseta
polo preta, calça combinando e aquele tipo de sapatos que Karen somente havia visto nos pés de americanos ricos. Ela achava que se chamavam sapatos oxford ou algo
parecido. Assemelhavam-se a alguma coisa que se veria num boneco escocês com traje típico, e não num capitão da indústria. Ela estava tão ocupada observando seus
sapatos estranhos que quase perdeu as apresentações.
Ergueu os olhos a tempo de captar o levíssimo esboço de sorriso nos lábios de Lady Grant, elegante em um terninho de mescla de lã com o clássico colarinho aveludado
que, por alguma razão, Karen sempre associava a dinheiro e classe. O sorriso, porém, parecia estranhamente cúmplice.
Susan Charleson apresentou a outra mulher.
- Esta é Annabel Richmond, uma jornalista freelancer.
Agora, cautelosa, Karen assentiu, expressando reconhecimento. Que diabos fazia uma jornalista ali? Se havia uma coisa que Karen sabia a respeito de Brodie Grant
era que ele era tão alérgico à mídia que poderia entrar em choque anafilático a qualquer momento na presença de alguém da imprensa.
* O aniversário do poeta Robert Bums é comemorado em toda a Escócia com um jantar escocês tradicional, acompanhado por leituras de obras e canções de Bums, no dia 25 de janeiro. (N.T.)
Brodie Grant deu um passo à frente e indicou, com um ondular de seu charuto, que eles deveriam se sentar num sofá, a quilômetros de distância da lareira. Karen se
sentou na beirada, ciente de que aquele era o tipo de sofá que a engoliria, impossibilitando uma saída que não fosse extremamente desastrada.
- A Srta. Richmond está aqui a meu pedido, por dois motivos - disse Grant. - O primeiro deles explicarei em breve. O outro é que ela vai atuar como uma ligação
entre a mídia e a família. Não concederei entrevistas coletivas nem farei apelos sentimentais pela televisão. Ela é, portanto, a primeira a ser procurada se vocês
estiverem atrás de alguma coisa para alimentar os répteis.
Karen inclinou a cabeça.
- Essa é uma prerrogativa sua - ela disse, tentando soar como se estivesse fazendo uma concessão, por pura bondade. Qualquer coisa que lhe garantisse recuperar
um pouco do controle. - O Sr. Lees me comunicou que o senhor acredita que tenham surgido novas provas no que se refere ao sequestro de sua filha e neto. Correto?
- São novas provas, sim. Disso não resta dúvida. Susan?
Ele olhou para a assistente, com expectativa. Suficientemente esperta para antecipar-se às exigências do chefe, ela já avançava na direção deles com uma folha de
compensado de madeira, coberta por um plástico. Ao se aproximar, virou-a de frente para Karen e Phil.
Karen sentiu um lampejo de decepção.
- Esta não é a primeira vez que vemos algo assim - ela disse, estudando a impressão monocromática de um titereiro com suas marionetes sinistras. - Deparci-me
com três ou quatro exemplares, nos arquivos.
- Cinco, na verdade - disse Grant. - Mas nenhum como este. Todos os anteriores foram desconsiderados porque divergiam de alguma maneira dos originais. As
reproduções que o inspetor-chefe Lawson distribuiu para a mídia, na época, foram alteradas sutilmente para que pudéssemos eliminar quaisquer imitadores. Todos os
que apareceram desde então eram cópias das versões alteradas.
- E esta aqui é diferente? - perguntou Karen.
Grant assentiu.
- Exatamente, inspetora. É idêntica em todos os aspectos. Estou ciente de que a recompensa que ofereci seja uma tentação para certas pessoas.
Mantive minha própria cópia do original para que pudesse comparar com qualquer coisa que me fosse trazida diretamente. Como esta. - Ele deu um sorriso cansado. -
Não que eu precise de uma cópia. Jamais me esquecerei de nenhum detalhe. A primeira vez que pus os olhos nesta imagem, ela ficou gravada na minha memória.
Sábado, 19 de janeiro de 1985
Mary Grant serviu uma segunda xícara de café ao marido antes que ele percebesse que havia terminado a primeira. Ela vinha fazendo aquilo havia tantos anos que ainda
o surpreendia o fato de sua xícara precisar ser enchida tantas vezes, quando se hospedava em hotéis. Ele virou a página de seu jornal e resmungou.
- Enfim, uma notícia boa. Lord Wolfenden libertou-se do invólucro mortal.
A expressão de Mary era mais de resignação cansada do que de choque.
- Que coisa horrível de se dizer, Brodie.
Sem levantar os olhos, ele continuou:
- O homem fez do mundo um lugar pior, Mary. Portanto, não fico triste por ele ter partido.
Anos de casamento haviam eliminado a maior parte da beligerância de Mary Grant. Mas, mesmo que ela houvesse pensado em dizer alguma coisa, não teria tido a oportunidade.
Para a surpresa de ambos, a porta da sala de café da manhã se abriu de repente, sem nenhuma batida prévia, e Susan Charleson entrou quase correndo. Brodie deixou
cair o jornal sobre os ovos mexidos, notando-lhe as bochechas rosadas e a respiração ofegante.
- Desculpem-me - ela balbuciou. - Mas o senhor precisa ver isto. - Ela empurrou um grande envelope de papel manilha na direção dele. Na frente, liam-se seu
nome e endereço e as palavras "particular" e "confidencial" escritas em hidrocor preto, acima e abaixo.
- Em nome de Deus, o que é isto que não pode esperar até depois do café? - ele perguntou, enfiando dois dedos sob a aba do envelope, revelando um papel grosso
dobrado em quatro.
- Isto - disse Susan, apontando para o envelope. - Coloquei de volta no envelope porque não quis que mais ninguém visse.
Com um resmungo de impaciência, Grant pegou o papel e o desdobrou. Parecia um pôster de propaganda de um show macabro de marionetes. Totalmente em preto e branco,
um titereiro se inclinava sobre o palco, manipulando um grupo de marionetes que incluíam um esqueleto e um bode. Lembrou-lhe aquele tipo de impressões que ele vira
uma vez, num programa da TV sobre a arte que Hitler odiava. Enquanto pensava isso, seus olhos examinaram a parte inferior do pôster. Onde se esperaria encontrar
detalhes sobre o show de marionetes havia uma mensagem muito diferente.
Seu capitalismo explorador e gerenciado está prestes a ser castigado.
Nós temos uma filha e um neto em nosso poder. Faça exatamente o que
mandarmos se quiser vê-los novamente. Nada de polícia. Apenas siga sua
vida normalmente. Estamos te observando. Entraremos em contato com você
em breve.
Pacto Anarquista da Escócia.
- É alguma brincadeira de mau gosto? - perguntou Grant, atirando-o sobre a mesa e empurrando a cadeira para trás. Quando ele se levantou, Mary apanhou o pôster
e, então, o deixou cair, como se tivesse queimado seus dedos.
- Ah, meu Deus - ela arfou. - Brodie?
- É um trote - ele disse. - Algum filho da puta doente está tentando nos assustar.
- Não - disse Susan. - Tem mais. Ela apanhou o envelope no chão e sacudiu-o pára que uma fotografia Polaroid caísse de dentro dele. Em silêncio, entregou-a
a Grant.
Ele viu sua única filha amarrada a uma cadeira. Um pedaço de fita adesiva cobria-lhe a boca. O cabelo estava despenteado e uma mancha de sujeira, ou um hematoma,
marcava-lhe a face esquerda. Entre ela e a câmera, uma mão enluvada segurava a primeira página do Daily Record do dia anterior para não deixar margem a dúvida. Ele
sentiu as pernas cederem e deixou-se cair na cadeira, as pálpebras tremendo enquanto tentava recuperar o autocontrole. Mary estendeu a mão pedindo a fotografia,
mas ele sacudiu a cabeça e segurou-a de encontro ao peito.
- Não - ele disse. - Não, Mary.
Houve um longo silêncio e, então, Susan disse:
- O que o senhor quer que eu faça?
Grant não conseguia articular as palavras. Não sabia o que estava pensando, o que estava sentindo nem o que queria dizer. Era uma experiência tão estranha e improvável
quanto usar drogas alucinógenas. Ele sempre estava no controle de si mesmo, assim como da maior parte do que acontecia ao seu redor. Sentir-se impotente era algo
que não lhe acontecia havia tanto tempo, que até se esquecera de como era lidar com aquilo.
- O senhor quer que eu telefone para o chefe de polícia? - perguntou Susan.
- Aqui fala para não fazer isso - disse Mary. - Não podemos colocar em risco a vida de Catriona e Adam.
- Ao diabo com isso - disse Grant, numa pálida aproximação à sua voz normal. - Não vou ser manipulado por um bando de anarquistas malditos. - Ele se forçou
a levantar, sua força de vontade superando o medo que já o devorava. - Susan, telefone para o chefe de polícia. Explique a situação. Diga a ele que quero o melhor
agente que tiver, que não se pareça com um policial. Quero que ele esteja no meu escritório dentro de uma hora. E, agora, vou para o escritório. Seguir com minha
vida normal, caso eles estejam realmente observando.
- Brodie, como você pode fazer isso? - Com o rosto lívido, Mary parecia chocada. - Temos que fazer o que eles mandarem.
- Não temos, não. Apenas temos que aparentar estar fazendo. - Agora, sua voz estava mais forte. Ter estabelecido os princípios básicos de um plano lhe dera
forças para se recuperar. Ele poderia lidar com o medo desde que pudesse se obrigar a acreditar que estava fazendo alguma coisa para resolver a situação. - Susan,
comece a tomar as providências. - Ele foi até Mary e lhe deu um tapinha no ombro. - Vai ficar tudo bem, Mary. Eu prometo.
Se ele não visse o rosto dela, não teria de lidar com suas dúvidas ou seu pavor. Já tinha o suficiente com que se preocupar, sem aquela carga extra.
Dysart, Fife
Outros homens teriam caminhado de um lado para o outro, esperando que a polícia chegasse. Brodie Grant nunca fora de desperdiçar energia em
atividades inúteis. Permaneceu sentado em sua cadeira no escritório, virada de costas para a escrivaninha, para que pudesse ver a vista espetacular por cima do estuário
do Forth até Berwick Law, Edimburgo e as montanhas Pentlands. Olhou por sobre a água cinzenta, ordenando seus pensamentos para evitar qualquer perda de tempo quando
a polícia chegasse. Ele detestava desperdiçar qualquer coisa, mesmo aquilo que podia ser facilmente reposto.
Susan, que o havia seguido para o trabalho na hora de costume, entrou pela porta que separava seu escritório do dele.
- A polícia está aqui - ela disse. - Devo fazê-los entrar?
Grant se virou em sua cadeira.
- Sim. Depois, deixe-nos a sós.
Ele notou o olhar de surpresa no rosto dela. Estava acostumada a participar de todos os seus segredos, a conhecer mais coisas do que Mary se daria ao trabalho de
saber. Mas, dessa vez, ele queria que o círculo fosse o menor possível. Até mesmo Susan seria demais.
Ela fez entrar dois homens vestidos com macacão de pintor e, então, fechou dramaticamente a porta atrás de si. Grant ficou satisfeito com o disfarce.
- Obrigado por terem vindo tão rápido. E tão discretamente - ele disse, observando os dois. Pareciam jovens demais para uma tarefa tão importante. O mais
velho, magro e moreno, tinha provavelmente uns trinta e poucos anos, e o outro, louro e avermelhado, uns vinte e tantos.
O moreno falou primeiro. Para surpresa de Grant, sua apresentação atingiu diretamente suas restrições.
- Sou o inspetor James Lawson - ele disse. - E este é o agente Rennie. Fomos instruídos pessoalmente pelo chefe de polícia. Sei que o senhor deve estar pensando
que sou muito novo para comandar uma operação como esta, mas fui escolhido devido à minha experiência. No ano passado, a esposa de um dos jogadores do time de futebol
East Fife foi sequestrada. Conseguimos resolver o assunto sem que ninguém se machucasse.
- Não me lembro de ter ouvido falar sobre isso - disse Grant.
- Fomos muito bem-sucedidos em manter segredo - disse Lawson, com o mais tênue sorriso de orgulho no rosto.
- Não houve julgamento? Como vocês conseguiram manter isso fora dos jornais?
Lawson deu de ombros.
- O sequestrador se confessou culpado. O caso estava resolvido e encerrado antes que a imprensa sequer percebesse. Somos bastante bons em lidar com a imprensa,
aqui em Fife. - De novo, um sorriso ligeiro. - Como pode ver, senhor, tenho uma experiência relevante.
Grant lançou-lhe um olhar demorado e avaliador.
- Fico satisfeito em saber disso. - Tirou uma pinça da gaveta e, delicadamente, deslocou a folha de papel que havia colocado por cima do pôster de resgate.
- Foi isto que chegou pelo correio, hoje de manhã. Acompanhado por isto... - Erguendo-a cuidadosamente pelas extremidades, ele virou a foto Polaroid.
Lawson se aproximou e os analisou atentamente.
- E o senhor tem certeza de que esta é sua filha?
Pela primeira vez, o autocontrole de Grant vacilou por uma fração de segundo.
- Você acha que não conheço minha própria filha?
- Não é isso, senhor. Mas, para que fique registrado, preciso ter certeza de que o senhor tem certeza absoluta.
- Tenho certeza.
- Neste caso, não há qualquer dúvida - disse Lawson. - Quando foi a última vez que o senhor viu ou falou com sua filha?
Grant fez um gesto de impaciência com a mão.
- Não sei. Suponho que a tenha visto pela última vez há umas duas semanas. Ela trouxe Adam para nos visitar. A mãe dela deve ter conversado com ela ou a visto
desde então. Você sabe como são as mulheres.
A culpa repentina que ele sentiu foi mais uma vibração lenta do que uma pontada. Ele não se arrependia de nada do que havia feito ou dito; só se arrependia de que
houvesse provocado uma ruptura entre ele e Cat.
- Falaremos com sua esposa - disse Lawson. - Será útil para nós termos uma ideia de quando isso aconteceu.
- Catriona é dona de seu próprio negócio. Creio que alguém perceberia, se sua galeria estivesse fechada. Deve haver centenas, milhares de pessoas que passam
de carro por ali todos os dias. Ela era bem escrupulosa com relação à placa de aberto e fechado. - Ele deu um sorriso rígido e frio.
- Ela é boa para negócios. - Puxou um bloco de anotações em sua direção e escreveu o endereço e as indicações de como chegar à galeria de Catriona.
- É claro - disse Lawson. - Mas achei que o senhor não quisesse que os seqüestradores soubessem que nos procurou.
Grant foi pego de surpresa por sua própria estupidez.
- Desculpe-me. Você tem razão. Não estou raciocinando direito. Eu...
- Esse é meu dever, não seu. - Havia gentileza no tom de voz de Lawson. - O senhor pode estar certo de que não faremos perguntas que levantem suspeitas. Se
não conseguirmos descobrir nada de forma aparentemente natural, deixaremos de lado. A segurança de Catriona e Adam está acima de tudo. Isso eu prometo ao senhor.
- É uma promessa que espero que cumpra. Agora, qual é o próximo passo? - Grant estava novamente no comando de si mesmo, porém desconcertado pelas emoções
que o desequilibravam.
- Colocaremos uma escuta e um rastreador em suas linhas telefônicas para o caso de eles tentarem entrar em contato com o senhor através do telefone. E vou
precisar que o senhor vá à casa de Catriona. É o que os seqüestradores esperariam. O senhor terá de ser os meus olhos dentro da casa. O senhor deverá registrar qualquer
coisa fora do lugar, qualquer coisa incomum. Terá de levar uma maleta ou algo assim para que, se por exemplo, houver duas canecas sobre a mesa, o senhor possa trazê-las
para nós. Também precisaremos de alguma coisa de Catriona para obtermos suas impressões digitais. Uma escova de cabelo seria ideal, pois teríamos também um pouco
de seu cabelo. - Lawson parecia ansioso.
Grant balançou a cabeça.
- Você terá que pedir à minha esposa para fazer isso. Não sou muito observador. - Não queria admitir que só havia cruzado a porta da casa da filha uma vez
e, mesmo assim, com relutância. - Ela ficará feliz por ter alguma coisa a fazer. Por se sentir útil.
- Muito bem, providenciaremos isso. - Lawson tocou o pôster com uma caneta. - Aparentemente esse é mais um ato político do que pessoal. E vamos verificar
informações a respeito de qualquer grupo que possa ter os recursos e a determinação para planejar algo assim. Preciso lhe perguntar, no entanto... o senhor teve
algum desentendimento com qualquer grupo de interesse específico? Uma organização que pudesse ter alguns caras mais exaltados em suas facções, capazes de achar que
era uma boa ideia fazer isso?
Grant já havia se perguntado aquilo enquanto esperava pela polícia.
- A única coisa em que posso pensar é um problema que tivemos há mais ou menos um ano com uma dessas organizações do tipo "salvem as baleias". Nós tínhamos
um empreendimento imobiliário em Black Isle que eles alegavam que afetaria de forma adversa o habitat de uns golfinhos no Moray Firth. Tudo bobagem, é claro. Eles
tentaram deter nosso pessoal da construção... aquela coisa de sempre, deitando-se em frente às retroescavadeiras. Um deles se machucou. Foi culpa de sua própria
estupidez, como disseram as autoridades. Mas foi apenas isso. Eles se foram, com o rabo entre as pernas, e nós continuamos com o empreendimento. E, a propósito,
os golfinhos estão perfeitamente bem.
Lawson ficou visivelmente animado com a informação de Grant.
- Mesmo assim, teremos que verificar essa possibilidade - ele disse.
- A Srta. Charleson tem todos os arquivos. Ela poderá lhes dizer o que vocês precisarem.
- Obrigado. Também preciso lhe perguntar se existe alguém que possa ter algum motivo de reclamação pessoal contra o senhor. Ou contra alguém de sua família.
Grant balançou a cabeça.
- Já incomodei muita gente nesta vida. Mas não consigo pensar em algo que tenha feito capaz de levar alguém a fazer isso. Certamente isto se relaciona com
dinheiro, não com ódio. Todo mundo sabe que sou um dos homens mais ricos da Escócia. Não é nenhum segredo. Para mim, esse é o motivo óbvio por trás disso. Alguns
filhos da puta tentando pôr as mãos no meu dinheiro suado. E eles acham que é dessa forma que irão conseguir.
- É possível - concordou Lawson.
- É mais do que possível. É o mais provável. E nem morto vou deixar que escapem ilesos dessa. Quero minha família de volta, e quero que eles voltem sem ter
de ceder um milímetro a esses desgraçados! - Grant bateu na mesa com a mão espalmada e os dois policiais deram um pulo com o estrondo repentino.
- É por isso que estamos aqui - disse Lawson. - Faremos tudo que for possível para obter o resultado que o senhor deseja.
Naquele momento, a confiança de Grant ainda estava intacta.
- Não espero nada menos do que isso - ele disse.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
Ao ouvir o relato de Grant sobre aquela primeira manhã depois de o mundo ter mudado, o que mais chamou a atenção de Karen foi a suposição, por parte de todos, de
que tudo tinha a ver com Brodie Grant. Ninguém parecia haver considerado que a pessoa que estava sendo punida não era Grant, e sim sua filha.
- Catriona tinha algum inimigo?
Grant olhou-a, com impaciência.
- Catriona? Como ela poderia ter inimigos? Era uma mãe solteira e uma artesã do vidro. Não levava o tipo de vida que gerasse animosidade pessoal. - Com um
suspiro, ele apertou os lábios.
Karen disse a si mesma que não deveria se intimidar com sua atitude.
- Desculpe-me. Eu me expressei mal. Deveria ter perguntado se o senhor sabe de alguém a quem ela houvesse desagradado.
Grant dirigiu-lhe um pequeno gesto de satisfação, como se ela houvesse passado num teste que nem sequer sabia existir.
- O pai de seu filho. Ele estava, de fato, bastante contrariado. Mas nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim, e os seus colegas da polícia nunca puderam
encontrar nenhuma prova que o conectasse ao crime.
- O senhor está se referindo a Fergus Sinclair? - Karen perguntou.
- E quem mais poderia ser? Pensei que você tivesse se atualizado com relação ao caso - cobrou Grant.
Karen começava a sentir pena de qualquer pessoa que fosse obrigada a suportar o alto nível de irritação de Brodie Grant. Desconfiava que não fosse reservada apenas
para ela.
- Só existe uma menção a Sinclair no arquivo - ela disse. - Nas anotações de uma entrevista com Lady Grant, Sinclair é mencionado como suposto pai de Adam.
Grant bufou.
- Suposto? É claro que ele era o pai do garoto. Eles vinham se encontrando de maneira intermitente havia anos. Mas o que você quer dizer com só existe uma
referência a Sinclair? Deve haver mais. Eles foram até a Áustria para interrogá-lo.
- Áustria?
- Ele trabalhava lá. É formado em administração rural. Trabalhou também na França e na Suíça, mas voltou para a Áustria cerca de quatro anos atrás. Susan
pode lhe dar todos os detalhes.
- O senhor o tem vigiado? - O que não seria nenhuma surpresa, pensou Karen.
- Não, inspetora. Eu já lhe disse: nunca achei que Sinclair tivesse a coragem para fazer algo assim. Então, por que o vigiaria? A única razão pela qual sei
onde Sinclair mora é porque seu pai ainda é meu caseiro. - Grant balançou a cabeça. - Não posso acreditar que tudo isso não esteja nos arquivos.
Karen estava pensando a mesma coisa, mas não quis admitir.
- E, que o senhor saiba, havia mais alguém que Catriona pudesse ter desagradado?
O rosto de Grant estava tão cinzento quanto seu cabelo.
- Só a mim, inspetora. Olhe, é óbvio, pelo lugar onde apareceu esta nova prova, que isso não tem nada a ver pessoalmente com Cat. É obviamente político. O
que faz com que tenha a ver com meus princípios pessoais, e não com quem Cat possa ter incomodado.
- Então, onde foi que este pôster apareceu? - perguntou Phil.
Karen ficou agradecida pela interrupção. Ele era bom em interromper e guiar as entrevistas em direções mais produtivas quando ela estava correndo o risco de estancar.
- Em uma fazenda em ruínas na Toscana. Parece que o local vinha sendo usado por posseiros. - Ele estendeu o braço na direção da jornalista. - Este é o outro
motivo pelo qual a Srta. Richmond está aqui. Foi ela que o encontrou. Sem dúvida, vocês vão querer conversar com ela. - Ele indicou o pôster. - Também vão querer
levar isto com vocês. Imagino que farão alguns testes. E, inspetora...?
Karen recuperou o fôlego, diante da arrogância dele.
- Sim?
- Não quero ler a respeito disso no jornal amanhã cedo. - Ele olhou feio para ela como se a desafiasse a responder.
Karen se controlou por um momento, tentando compor uma resposta que abrangesse tudo que ela queria dizer e deixasse de fora qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.
A expressão de Grant mudou rapidamente.
- O que quer que comuniquemos à mídia, assim como o momento de qualquer comunicação, será uma decisão operacional - ela disse, por fim.
- Será tomada por mim e, quando apropriado, por meus oficiais superiores. Entendo plenamente como tudo isso é doloroso para o senhor, mas sinto muito. Temos
de basear nossas decisões naquilo que pensamos que, provavelmente, irá produzir o melhor resultado. O senhor pode nem sempre concordar, mas, infelizmente, não tem
nenhum direito de veto. - Ela esperou a explosão, mas esta não se fez. Supôs que ele a estivesse reservando para o Biscoito ou para os chefes dele.
Em vez disso, Grant assentiu.
- Confio em você, inspetora. Tudo que peço é que se comunique com a Srta. Richmond antes, para que possamos nos precaver contra a máfia. - Ele correu os dedos
pelos densos cabelos grisalhos num gesto que parecia bem ensaiado. - Tenho muita esperança de que, desta vez, a polícia chegue à verdade. Com todos os avanços nas
ciências criminais, vocês devem estar em vantagem com relação ao inspetor Lawson. - Ele se virou, claramente os dispensando.
- Creio que ainda teremos algumas perguntas a lhe fazer - disse Karen, determinada a não ceder todo o controle do encontro. - Se Catriona não tinha inimigos,
talvez o senhor pudesse pensar em alguns amigos dela que possam nos ajudar. O sargento Parhatka lhe informará quando eu quiser falar novamente com o senhor. Nesse
meio-tempo... Srta. Richmond?
A mulher inclinou a cabeça e sorriu.
- Estou à sua disposição, inspetora.
Até que enfim alguém por ali com uma vaga noção de como as coisas deveriam funcionar.
- Gostaria de vê-la no meu escritório esta tarde. Podemos marcar para as quatro horas?
- Qual é o problema em entrevistar a Srta. Richmond aqui? E agora? - perguntou Grant.
- Esta investigação é minha - disse Karen. - Conduzirei minhas entrevistas onde me convier. E, devido a outros inquéritos em andamento, me convém que seja
no meu escritório, esta tarde. Agora, se o senhor nos der licença.
Ela se levantou, notando o divertimento cauteloso da Lady Grant e a desaprovação sombria de Susan Charleson. O próprio Grant permaneceu imóvel feito uma estátua.
- Tudo bem, Susan, eu acompanho os policiais - disse Lady Grant, levantando-se rapidamente e caminhando em direção à porta antes que a assistente recuperasse
o autocontrole.
Enquanto a seguiam pelo corredor, Karen disse:
- Isso deve ser muito difícil para a senhora.
Lady Grant voltou-se para eles, andando de costas com a segurança de alguém que conhece cada centímetro de seu território.
- Por que você diz isso?
- Ver seu marido reviver uma época tão difícil... Eu não gostaria de ver alguém de quem eu gostasse passando por tudo isso.
Lady Grant pareceu confusa.
- Ele convive com isso todos os dias, inspetora. Pode ser que não o demonstre, mas não tira isso da cabeça. Às vezes o vejo olhando para nosso filho, Alec,
e sei que ele está pensando em como poderia ter sido, com Adam. Pensando no que perdeu. Ter algo novo em que focar é quase um alívio para ele.
Ela girou nos calcanhares e deu-lhes as costas novamente. Enquanto a seguiam, Karen encontrou o olhar de Phil e ficou surpresa com a raiva que viu ali.
- Ainda assim, a senhora não seria humana se uma parte sua não desejasse que nunca encontrássemos Adam são e salvo - Phil disse, a leveza do tom contrastando
diretamente com a severidade de sua expressão.
Lady Grant se deteve e voltou-se para eles, franzindo as sobrancelhas. Um rubor rosado subiu por seu pescoço.
- Que diabos você quer dizer com isso?
- Acho que a senhora sabe exatamente o que quero dizer, Lady Grant. Nós encontramos Adam e, de repente, seu filho Alec não é mais o único herdeiro de Brodie
- disse Phil. Era preciso ter coragem, pensou Karen, para assumir o papel de para-raios da investigação.
Por um momento, Lady Grant pareceu estar a ponto de estapeá-lo. Karen podia ver seu peito subindo e descendo com o esforço de se controlar. Finalmente, ela se obrigou
a assumir a pose habitual de civilidade.
- Na verdade - ela disse secamente -, você está vendo a situação precisamente pelo ângulo errado. O comprometimento absoluto de Brodie em descobrir o destino
de seu neto me enche de confiança com relação ao futuro de Alec. Um homem tão preso aos deveres para com sua própria
carne e seu próprio sangue jamais decepcionará nosso filho. Acredite se quiser, sargento, a busca de Brodie pela verdade me dá esperança. Não medo.
- Ela se virou nos calcanhares e marchou até a porta da frente, que manteve enfaticamente aberta para eles.
Depois que a porta se fechou, Karen disse:
- Caramba, Phil, por que você não diz o que realmente está pensando? O que provocou aquilo?
- Me desculpe. - Ele abriu a porta do passageiro para ela, uma pequena cortesia a que raramente se dava ao trabalho. - Eu já estava cheio de brincar de Miss
Marple, a detetive, e aquela palhaçada toda de crime na casa de campo. Tudo muito limpo e civilizado. Só queria ver se conseguia provocar uma reação honesta.
Karen sorriu.
- Acho que se pode dizer que conseguiu. Só espero que não sejamos atingidos pelas faíscas.
Phil bufou.
- Você não fica muito atrás, quando se trata de ser durona. "Esta investigação é minha" - ele a imitou, sem maldade.
Ela se acomodou no carro.
- É, tudo bem. A ilusão de estar no comando. Foi bom, enquanto durou.
Nottingham
As belezas do parque Nottingham Arboretum não só haviam sido obscurecidas como praticamente ficaram invisíveis com a chuva torrencial que cegava o agente Mark Hall
enquanto seguia Femi Otitoju, subindo pela trilha que levava ao Campanário Chinês. Ela finalmente havia mostrado alguma emoção, mas não era exatamente o que Mark
havia esperado.
Logan Laidlaw tinha ficado ainda menos contente do que Ferguson e Fraser ao vê-los. Ele não só se recusara a permitir que entrassem em seu apartamento, como lhes
dissera que não tinha a menor intenção de repetir o que já tinha contado à filha de Mick Prentice.
- Esta droga de vida é curta demais para desperdiçar minha energia falando duas vezes sobre a mesma coisa - ele dissera e, então, batera a porta na cara deles.
Otitoju havia ficado mais púrpura do que uma beterraba em conserva, respirando pesadamente pelo nariz. Cerrou os punhos e chegou a levar o pé para trás como se fosse
chutar a porta. Bastante violento, levando em conta que não havia muita violência nela. Mark colocara a mão em seu braço.
- Deixe estar, Femi. Ele está no direito dele. Não é obrigado a falar conosco.
Otitoju dera meia-volta, seu corpo inteiro tenso de raiva.
- Não deveria ser permitido - ela disse. - Eles deveriam ser obrigados a falar com a gente. Deveria ser contra a lei que as pessoas se recusassem a responder
a nossas perguntas. Deveria ser crime.
- Ele é uma testemunha, não um criminoso - disse Mark, assustado com a veemência dela. - Foi o que nos disseram em nosso treinamento: policiais por consentimento,
não por coerção.
- Isso não está certo - disse Otitoju, voltando furiosamente para o carro. - Eles esperam que a gente solucione crimes, mas não nos dão as ferramentas para
fazer o serviço. Que diabos ele pensa que é?
- Ele é alguém cuja opinião sobre a polícia foi gravada em pedra nos idos de 1984. Você nunca viu as reportagens de jornal dessa época? Policiais a cavalo
atacavam os piquetes como se fossem cossacos ou coisa parecida. Se usássemos hoje o cassetete daquele jeito, seríamos presos. Não foi um de nossos melhores momentos.
Portanto, não é de surpreender que o Sr. Laidlaw não queira falar conosco.
Ela balançou a cabeça.
- Faz com que eu me pergunte o que ele pode ter a esconder.
O trajeto da casa de Iain Maclean até o Arboretum, cruzando a cidade, não havia ajudado a melhorar o humor dela. Mark a alcançou.
- Deixe isso comigo, ok? - ele disse.
- Você acha que não sei conduzir uma entrevista?
- Não, não é isso. Mas conheço o suficiente sobre ex-mineiros para saber que são bastante machistas. Você viu como foi com Ferguson e Fraser... eles não ficaram
muito contentes com o fato de você fazer as perguntas.
Otitoju parou abruptamente e atirou a cabeça para trás, deixando que a chuva escorresse por seu rosto como lágrimas geladas. Recompondo-se, suspirou.
- Está bem. Vamos tirar vantagem de seus preconceitos. Você conduz a conversa. - Então, ela voltou a andar, dessa vez num passo mais comedido.
Chegaram ao Campanário Chinês e encontraram dois homens de meia-idade, vestindo macacão da prefeitura e abrigando-se da tempestade. Os pilares estreitos, que davam
suporte ao teto elegante, não ofereciam muita proteção aos respingos de chuva espalhados pelas rajadas de vento, mas era melhor do que ficar totalmente exposto.
- Estou procurando Iain Maclean - disse Mark, olhando um e outro.
- Sou eu - disse o mais baixo dos dois, com olhos azuis cintilando no rosto bronzeado. - E quem são vocês?
Mark apresentou os dois.
- Tem algum lugar aonde possamos ir tomar uma xícara de chá?
Os dois homens trocaram um olhar.
- Deveríamos estar podando as margens, mas estávamos prestes a desistir e voltar para as estufas - disse Maclean. - Não há nenhum café por aqui, mas vocês
podem nos acompanhar até as estufas, e nós preparamos o chá.
Dez minutos depois, eles estavam espremidos num canto, nos fundos de um amplo túnel de polietileno, e fora do caminho dos demais jardineiros, cujos olhares curiosos
se haviam acalmado ao perceberem que não haveria nada espetacular. Um forte cheiro de húmus pairava no ar, lembrando Mark do barracão no jardim de seu avô. Iain
Maclean segurou a xícara com as mãos enormes e esperou que eles falassem. Ele não havia mostrado qualquer surpresa com a chegada dos policiais e tampouco lhes havia
perguntado por que estavam ali. Mark desconfiava que Fraser ou Ferguson já o tivessem avisado.
- Queremos conversar com você sobre Mick Prentice - ele começou.
- O que tem o Mick? Não o vejo desde que nos mudamos para o sul - disse Maclean.
- Nem você nem mais ninguém - disse Mark. - Todos presumiram que ele houvesse viajado para o sul com vocês, mas não é isso que estão nos dizendo hoje.
Maclean coçou as cerdas prateadas que cobriam sua cabeça num corte de cabelo militar.
- É, bem. Eu tinha ouvido falar que as pessoas achavam isso, lá em Newton. É só para mostrar a você como as pessoas sempre preferem pensar o pior. De jeito
nenhum Mick teria se juntado a nós. Não imagino como alguém que o conhecesse poderia pensar isso.
- E você nunca os corrigiu?
- Para quê? Na cabeça deles, eu sou um mineiro fura-greve e desonesto. Nada do que eu pudesse dizer em defesa de alguém teria muito peso, lá em Newton.
- Para ser justo, não é apenas uma questão de tirar conclusões precipitadas. A esposa dele recebia dinheiro ocasionalmente, depois que ele foi embora. O carimbo
do correio era de Nottingham. Essa é uma das principais razões pelas quais todos acharam que ele houvesse feito o impensável.
- Não sei qual é a explicação para isso. Mas te digo uma coisa: seria mais fácil Mick Prentice ir para a Lua do que furar a greve.
- Isso é o que todos nos dizem - disse Mark. - Mas as pessoas fazem coisas que parecem insólitas, quando estão desesperadas. E, segundo consta, Mick Prentice
estava desesperado.
- Não tanto a ponto de fazer isso.
- Você fez.
Maclean olhou fixamente para sua xícara.
- Fiz. E nunca me envergonhei tanto de algo. Mas minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. Eu sabia que não havia maneira alguma de trazer mais
um bebê àquela vida. Então, fiz o que fiz. Eu conversei a respeito com o Mick, antes. - Ele lançou um olhar rápido a Mark. - Éramos amigos, ele e eu. Estudamos juntos
na escola. Eu queria explicar para ele por que estava fazendo aquilo. - Ele suspirou. - Ele disse que entendia a minha decisão. Que ele também tinha vontade de ir
embora. Mas que furar greve não era para ele. Não sei para onde ele foi; mas eu sei que, com certeza, não foi para outra mina.
- Quando você soube que ele havia desaparecido?
Ele contorceu o rosto enquanto pensava.
- É difícil dizer. Acho que quando minha esposa veio para ficar comigo. Isso quer dizer que foi por volta de fevereiro. Mas pode ter sido depois disso. Minha
esposa, ela ainda tem família lá em Wemyss. Nós não voltamos lá. Não seríamos bem-vindos. As pessoas têm memória boa, sabe? Mas
nos mantemos em contato e, às vezes, eles vêm aqui nos visitar. - Um pálido sorriso de desculpa passou por seu rosto. - O sobrinho da minha mulher, ele é estudante
na universidade daqui. Está terminando o segundo ano. Ele vem jantar aqui em casa de vez em quando. Então, sim, eu ouvi falar que Mick havia entrado na lista dos
desaparecidos, mas não saberia te dizer com certeza quando foi que fiquei sabendo.
- Aonde você acha que ele foi? O que você acha que aconteceu? - Em sua ansiedade, Mark se esqueceu da regra fundamental de fazer apenas uma pergunta por vez.
Maclean ignorou ambas.
- Por que cargas d'água vocês ficaram interessados no Mick, assim de repente? - ele perguntou. - Ninguém veio procurar por ele, em todos esses anos. Por que
tanto alvoroço agora?
Mark explicou por que Misha Gibson havia, finalmente, informado a polícia sobre o desaparecimento de seu pai. Maclean se mexeu na cadeira, sem jeito, fazendo o chá
se derramar sobre os dedos.
- Que coisa horrível. Me lembro de quando a própria Misha não passava de uma garotinha. Gostaria de poder ajudar. Mas não sei para onde ele foi - ele disse.
- Como eu falei antes, não o vi mais desde que saí de Newton.
- Ouviu falar alguma coisa sobre ele? - acrescentou Otitoju.
Maclean lhe lançou um olhar duro. Em seu rosto curtido pelo sol, o olhar parecia tão impassível quanto o Monte Rushmore.
- Não tente dar uma de esperta pra cima de mim, querida. Não, não ouvi nada sobre ele. No que me diz respeito, Mick Prentice sumiu do planeta no dia em que
vim para cá. E foi exatamente o que esperei que fosse acontecer.
Mark tentou restabelecer a camaradagem, infiltrando solidariedade em sua voz:
- Entendo perfeitamente - disse. - Mas o que você acha que aconteceu com Mick? Você era amigo dele. Se alguém pode pensar numa resposta, esse alguém é você.
Maclean balançou a cabeça.
- Não sei mesmo.
- E se tivesse que fazer uma suposição?
Novamente ele coçou a cabeça.
- Te digo uma coisa. Achei que ele e Andy tivessem fugido juntos. Achei que os dois estivessem cheios, que houvessem ido para algum outro lugar para começar
do zero. Vida nova e essas coisas.
Mark se lembrava do nome do amigo de Prentice, que vira no relatório informativo sobre o caso. Mas não houvera qualquer menção de terem fugido juntos.
- Aonde eles iriam? Como poderiam simplesmente desaparecer, sem deixar rastros?
Maclean bateu com o dedo na lateral do nariz.
- Andy era comunista, sabe? E, nessa época, Lech Walesa e o Solidariedade eram importantíssimos na Polônia. Sempre achei que aqueles dois tivessem ido para
lá. Havia um monte de minas na Polônia e não iria parecer que eles estivessem furando a greve. De jeito nenhum.
- Polônia? - Mark sentiu que precisava de um curso rápido sobre a história política do século XX.
- Eles estavam tentando derrubar o comunismo totalitário - Otitoju disse, asperamente. - Para substituí-lo por uma espécie de socialismo dos trabalhadores.
Maclean assentiu.
- Isso teria sido bem do gosto de Andy. Acho que ele deve ter convencido Mick a ir com ele. Isso explicaria por que ninguém nunca mais soube deles. Presos
nas minas de carvão atrás da Cortina de Ferro.
- Mas já faz algum tempo que essa Cortina de Ferro cheira a naftalina - Mark disse.
- Sim, mas quem sabe que tipo de vida eles conseguiram estabelecer por lá? Poderiam estar casados, com filhos, poderiam ter deixado o passado para trás. Se
Mick tivesse uma nova família, não iria querer que a antiga aparecesse do nada, não é?
De repente, Mark teve um daqueles momentos de revelação em que pôde ver o cenário completo.
- Era você quem mandava o dinheiro, não era? Você colocava dinheiro num envelope e enviava a Jenny Prentice, porque achava que Mick não enviaria dinheiro
para ela da Polônia.
Maclean pareceu se encolher contra a parede translúcida de polietileno. Seu rosto se franziu tanto, que era difícil ver seus brilhantes olhos azuis.
- Só estava tentando ajudar. Tenho ganhado bem desde que vim para cá. Sempre senti pena de Jenny. Parecia que ela havia ficado com a pior parte porque Mick
não teve coragem para assumir suas responsabilidades.
Aquela era uma forma estranha de se expressar, pensou Mark. Ele podia muito bem deixar por isso mesmo; aquele caso não era seu, afinal, e ele não precisaria enfrentar
os problemas que poderiam advir de se investigar algo aparentemente sem conexão. Mas, por outro lado, ele queria cumprir aquela missão da melhor forma possível.
Queria explorar a posição de assistente do DIC para conseguir uma transferência permanente para a divisão de detetives. Então, fazer esforços extras era definitivamente
parte do seu plano.
- Tem alguma coisa que você não esteja nos dizendo, Iain? - ele perguntou. - Alguma outra razão para Mick ter fugido da forma como fez, sem dizer uma palavra
a ninguém?
Maclean tomou o resto do seu chá e colocou a xícara de lado. Suas mãos, desproporcionalmente grandes devido a uma vida inteira de trabalho manual intenso, se entrelaçaram
e se soltaram. Ele parecia alguém pouco à vontade com o conteúdo de sua própria mente. Respirou fundo e disse:
- Imagino que agora já não faça diferença. Não se pode punir alguém que já tenha ido desta pra melhor.
Otitoju estava prestes a romper o silêncio de Maclean, mas Mark agarrou seu braço, numa advertência. Ela cedeu, sua boca formou uma linha estreita, e eles esperaram.
Finalmente, Maclean falou.
- Nunca contei isso a ninguém. Até parece que adiantou de alguma coisa manter segredo. Vocês têm de entender, Mick era um defensor ferrenho do sindicato.
E, claro, Andy era funcionário em tempo integral do Sindicato Nacional dos Mineradores. Estava totalmente em casa, íntimo dos altos escalões. Não duvido que Andy
tenha contado a Mick muitas coisas que talvez não devesse. - Ele deu um sorriso melancólico. - Ele estava sempre tentando impressionar Mick, ser seu melhor amigo.
Frequentamos a mesma classe, na escola. Nós três costumávamos andar juntos. Mas você sabe como são os trios. Sempre existe um líder e os outros dois ficam tentando
agradá-lo, tentando tirar o outro da jogada. Era assim conosco. Mick
no meio, tentando manter a paz. Ele era bom nisso, esperto em encontrar formas de deixar nós dois contentes. Nunca permitia que um de nós ficasse por cima. Bem,
não por muito tempo, pelo menos.
Mark podia perceber que Maclean relaxava ao lembrar-se da calma relativa daqueles dias.
- Sei bem o que você quer dizer - ele disse, baixinho.
- Enfim, nós todos continuamos amigos. Eu e minha mulher costumávamos sair com Mick e Jenny, os quatro. Ele e Andy jogavam futebol juntos. Como eu disse,
ele era bom em encontrar coisas que faziam com que seus dois amigos se sentissem especiais. Pois então, algumas semanas antes de eu vir para cá, passamos o dia juntos.
Caminhamos até o porto de Dysart. Ele montou o cavalete e pintou, e eu pesquei. Contei a ele o que havia planejado fazer, e ele tentou me dissuadir. Mas eu podia
ver que ele não estava prestando muita atenção. Então, perguntei a ele o que o estava incomodando. - Ele parou novamente, seus dedos fortes apoiavam-se uns contra
os outros.
- E o que era? - perguntou Mark, inclinando-se para a frente para afastar a presença rígida de Otitoju e fazendo daquele um círculo puramente masculino.
- Ele disse que achava que um dos funcionários do sindicato estava roubando. - Olhou fixamente nos olhos de Mark. Ele podia sentir a terrível traição que
havia por trás das palavras de Maclean. - Nós todos estávamos sem um tostão e passando fome, e um dos caras que, supostamente, deveria ficar do nosso lado estava
enchendo os próprios bolsos. Pode não parecer muita coisa agora, mas naquela época, isso me abalou profundamente.
Quinta-feira, 30 de novembro de 1984; Dysart
Uma cavala estava puxando seu anzol, mas Iain Maclean não lhe prestava a menor atenção.
- Você só pode estar brincando! - ele disse. - Ninguém faria uma coisa dessas.
Mick Prentice deu de ombros, sem tirar os olhos do papel grosso preso em seu cavalete.
- Você não precisa acreditar em mim. Eu sei o que sei.
- Você deve ter entendido errado. Nenhum funcionário do sindicato roubaria da gente. Não aqui. Não agora. - Maclean parecia estar à beira das lágrimas.
- Olhe, vou lhe contar o que sei. - Mick passou o pincel rapidamente pelo papel, deixando uma mancha de cor ao longo do horizonte. - Eu estava no escritório
na terça passada. Andy tinha me pedido para ir lá ajudá-lo com os requerimentos da assistência, então eu estava folheando as cartas que havíamos recebido. Digo uma
coisa a você: ver o que as pessoas estavam passando era de partir o coração. - Ele limpou o pincel e misturou uma cor cinza esverdeada em sua palheta de bolso. -
Então, estou eu lá naquele cubículo, ao lado do escritório principal, examinando essas coisas, e esse outro funcionário está lá na frente. Enfim, vem uma mulher
de Lundin Links. Terninho de lã e uma boina idiota de pelo de angorá. Você conhece o tipo: a ricaça metida a Madre Teresa de Calcutá. Ela disse que eles haviam realizado
um café da manhã beneficente no clube de golfe e que tinham arrecadado 232 libras para ajudar as famílias pobres dos mineiros em greve.
- Fizeram muito bem - disse Maclean. - Melhor vir diretamente até nós do que falar com aquela maldita equipe da Tatcher.
- Certamente. Então, ele lhe agradece e ela vai embora. Agora, eu não vi exatamente para onde foi o dinheiro, mas posso lhe dizer que não foi para dentro
do cofre.
- Ah, tenha dó, Mick. Isso não prova nada. Pode ser que o cara tenha levado diretamente para a subseção do sindicato. Ou para o banco.
- Sei. - Mick deu uma risada sem humor nenhum. - Como se, nos dias de hoje colocássemos dinheiro no banco com os confiscadores atrás da gente.
- Mesmo assim - disse Maclean, sentindo-se ofendido, por alguma razão.
- Olhe, se fosse só isso, eu não teria me incomodado. Mas tem mais. Uma das tarefas de Andy é manter um registro do dinheiro que vem de doações e coisas do
tipo. Todo esse dinheiro deve ser repassado para a subseção. Não sei o que acontece com ele, então, se volta para a gente em forma de doações ou se vai parar na
corte do Rei Arthur, escondido em alguma maldita conta bancária na Suíça. Mas qualquer pessoa que arrecade dinheiro deve dizer a Andy, e ele anota num livrinho.
Maclean assentiu.
- Me lembro de ter de dizer a ele quanto tínhamos conseguido juntar, quando fizemos as arrecadações na rua, no último verão.
Mick fez uma breve pausa e olhou para o ponto onde o mar se encontrava com a terra.
- Eu estava na casa de Andy, na outra noite. O livro estava em cima da mesa. E a doação de Lundin Links não estava anotada nele.
Maclean puxou a linha com tanta força que quase perdeu o peixe.
- Merda - ele disse, girando a carretilha furiosamente. - Talvez Andy estivesse atrasado com as anotações.
- Gostaria que fosse tão simples assim. Mas não é isso. As últimas anotações no livro de Andy eram de quatro dias depois que aquele dinheiro foi entregue.
Maclean jogou a vara nas lajotas de pedra a seus pés. Ele podia sentir as lágrimas queimando nos olhos.
- Que porra de situação desgraçada. E você espera que eu sinta remorso por estar indo para Nottingham? Pelo menos é trabalho honesto, por um pagamento honesto,
e não roubo. Não posso acreditar numa coisa dessas.
- Eu também não. Mas de que outra forma se poderia explicar isso? - Mick balançou a cabeça. - E vindo de um cara que ainda está recebendo salário.
- Quem é ele?
- Não posso lhe dizer. Não até que tenha decidido o que fazer a respeito.
- É óbvio o que você tem de fazer. Tem que contar ao Andy. Se houver uma explicação inocente, ele saberá.
- Não posso contar ao Andy - Mick protestou. -Jesus, às vezes sinto vontade de fugir desta merda de confusão toda. Passar a régua e começar do zero em outro
lugar. - Ele balançou a cabeça. - Não posso contar a Andy, Iain. Ele já está deprimido. Se eu contar isso, poderia estar empurrando-o de uma vez para o fundo do
abismo.
- Bem, conte para outra pessoa, então. Para alguém da subseção. Você tem que pegar esse filho da puta. Quem é ele? Me conte. Mais algumas semanas e estarei
longe daqui. Para quem eu iria contar? - Maclean sentia a necessidade de saber queimando-o por dentro. Era mais uma coisa que o ajudaria a acreditar que estava fazendo
a coisa certa. - Me conte, Mick.
O vento fez o cabelo de Mick entrar em seus olhos, salvando-o do desespero no rosto de Maclean. Mas a necessidade de compartilhar seu fardo era pesada demais para
ignorar. Ele afastou o cabelo e olhou nos olhos do amigo.
- Ben Reekie.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Glenrothes
Karen tinha de admitir que estava impressionada. Não só a equipe de Nottingham havia feito um excelente trabalho, mas a agente Femi Otitoju tinha digitado seu relatório
e o enviado por e-mail em tempo recorde. Veja bem, pensou Karen, eu provavelmente teria feito a mesma coisa, no lugar dela. Dada a qualidade das informações que
ela e seu parceiro haviam conseguido obter, qualquer policial candidato ao DIG ficaria desesperado para tirar a maior vantagem possível.
E realmente havia algo ali para explorar ao máximo. A agente Otitoju e seu colega em Nottingham haviam descoberto quem tinha confundido a todos, enviando dinheiro
a Jenny Prentice. E, crucialmente, ela também tinha fornecido a primeira resposta possível à questão de quem ficaria feliz ao ver Mick Prentice pelas costas. Os
ânimos andaram bastante exaltados na época, e a impopularidade do sindicato crescia em várias partes. A violência já havia irrompido mais vezes do que se poderia
contar, e nem sempre entre a polícia e os grevistas. Mick Prentice poderia ter sido consumido pelo fogo com o qual brincava. Caso houvesse confrontado Ben Reekie
com o que sabia, se ele fosse culpado da acusação e se Andy Kerr tivesse sido arrastado para a confusão, devido à sua conexão com os outros dois, então, havia motivo
para Reekie se livrar dos dois homens, que desapareceram aproximadamente na mesma época. Talvez Angie Kerr estivesse certa a respeito do irmão. Talvez ele não tivesse
se matado. Talvez Mick Prentice e Andy Kerr fossem vítimas de um assassino - ou assassinos - desesperado para proteger a reputação de um funcionário desonesto do
sindicato.
Karen estremeceu.
- É imaginação demais - ela disse, em voz alta.
- O quê? - Phil afastou os olhos da tela do computador, franzindo a testa.
- Desculpe. Só estou me dando uma bronca por ser melodramática demais. Mas lhe digo uma coisa, se essa Femi Otitoju algum dia decidir se mudar para o norte,
vou colocá-la no lugar do Novo em Folha tão rápido que ele não vai nem saber o que está acontecendo.
- Não que isso seja muito difícil - disse Phil. - A propósito, o que você está fazendo aqui? Não deveria estar conversando com a adorável Srta. Richmond?
- Ela deixou um recado. - Karen olhou para seu relógio. - Chegará dentro de alguns minutos.
- Por que o atraso?
- Parece que teve que conversar com o advogado de algum jornal sobre um artigo que ela escreveu.
Phil reclamou.
- Que nem o tal do Brodie Grant. Ainda pensam que somos da classe serviçal, aqueles lá. Talvez você devesse deixá-la esperando.
- Não posso me dar ao luxo de entrar nesse jogo idiota. Olhe só isto aqui. O parágrafo que eu marquei. - Ela passou o relatório de Otitoju para Phil e esperou
que ele o lesse. Assim que ele levantou os olhos da página, ela disse: - Alguém afirmando que viu Mick Prentice umas doze horas depois de ele ter saído de casa.
E parece que ele não estava agindo de forma normal.
- Que estranho. Se ele estava fugindo, por que ainda estaria por ali, àquela hora da noite? Onde havia estado antes? E para onde estava indo? O que estava
esperando? - Phil coçou o queixo. - Não faz nenhum sentido para mim.
- Nem para mim. Mas vamos ter que tentar descobrir. Vou acrescentar à minha lista - ela suspirou. - Um pouco abaixo de "ter uma conversa decente com a polícia
italiana".
- Pensei que você houvesse conversado com eles.
Ela assentiu.
- Com um policial no quartel-general de Siena, um cara chamado di Stefano, com quem Peter Spinks, da Proteção Infantil, trabalhou há uns anos. Ele fala inglês
razoavelmente bem, mas precisa de mais informações.
- Então, você vai entrar em contato com eles novamente na segunda-feira?
Karen assentiu.
- Isso. Ele disse para não esperarmos encontrar ninguém no escritório deles depois das duas da tarde de uma sexta-feira.
- Será ótimo, se você conseguir - disse Phil. - Falando nisso, quer ir tomar um drinque rápido depois que terminar a conversa com Annabel Richmond? Tenho
que ir jantar na casa do meu irmão, mas tenho tempo para uma cervejinha.


CONTINUA

Christie. Uma dívida que não é pequena.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss
A voz é suave, como a escuridão que os cerca.
- Está preparado?
- Mais preparado do que nunca.
- Você disse a ela o que fazer? - As palavras agora rolam, tropeçando umas nas outras num emaranhado único de sons.
- Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabilizado se isto der errado. - Palavras ásperas, num tom áspero. - Não é com ela que estou
preocupado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. - As palavras possuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. - Vamos, terminemos logo com isto.
Assim é como tudo começa.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/DOMINIO_SOMBRIO.jpg

 

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziam uma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas. Parecia alguém com
uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conforme ela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a
mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras informações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmente ignorados por aqueles
que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhão de sua determinação.
Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não era feia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali, não estava em seus melhores
dias. Ela poderia ter colocado um pouquinho mais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algo que lhe caísse melhor do que jeans e blusa
de capuz. David Cruickshank assumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se preparando para defesa.
- Quero informar o desaparecimento de uma pessoa.
Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desaparecidas. Aquela ali estava
calma demais para que se tratasse de um filho pequeno, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga com o namorado, era disso que se tratava.
Ou um avô senil perdido. A mesma perda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo balcão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta.
Nem chegou a destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondida antes que ele anotasse quaisquer detalhes.
- E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?
- Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, para ser exata. - Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seu semblante. -
Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?
O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a tela do computador.
- Vou te dizer uma coisa - ele falou -, se existe uma época excelente para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.
A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo que estava atualizando.
- Como assim?
- Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, na Downing Street,
10, com a patroa a tiracolo. - Ele se levantou num salto e foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. - O que você prefere fazer? Solucionar casos arquivados
e receber os louros por isso, ou tentar prevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?
- Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministro faz de Fife um alvo? - Karen marcou onde estava no documento com o dedo indicador e dirigiu
toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou de que tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não considerara as possibilidades atuais. - Nunca
se incomodaram com o distrito eleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.
- Isso é verdade. - Phil espiou para dentro da geladeira, decidindo entre um refrigerante Im Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e ele ainda não
se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer em sua infância. - Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, e Gordon é filho de um pastor
presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugar do chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja do pai dele.
Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio.
- Não sei como você consegue beber isso aí - ela disse. - Nunca reparou que o nome é um anagrama de "vomit"?
Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.
- Faz crescer cabelo no peito - ele disse.
- É melhor você tomar duas latas, então. - Havia uma ponta de inveja na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gorduras saturadas,
mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os dois eram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suas medidas aumentando. Isso, definitivamente,
não era justo.
Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.
- Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um pouco mais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaça agora é maior.
Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.
- Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon aja de um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?
Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojava a Equipe de Revisão
de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alterado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquer telefone que tocasse perto dela.
- Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando - ela disse distraidamente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, no fundo, ele não
sentia saudade de estar envolvido com a ação.
- Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com uma pessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. - Cruickshank parecia um tanto inseguro.
Aquilo era incomum o bastante para chamar a atenção de Karen.
- Do que se trata?
- De uma pessoa desaparecida - ele disse.
- É um dos nossos?
- Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.
Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por tempo suficiente.
- Então ela precisa falar com o Departamento de Investigações Criminais, Dave.
- Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este caso está um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor que passasse por
você primeiro, entendeu?
Vá logo ao que interessa.
- Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com investigações recentes. - Karen girou os olhos para Phil, que devolveu um sorriso falso
diante da óbvia frustração dela.
- Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vinte e dois anos.
Karen se endireitou na cadeira.
- Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?
- Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?
Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar a mulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre se sentia atraída por coisas
que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros no escuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazido duas promoções em três anos, superando
alguns colegas de igual posição e deixando muitos outros incomodados.
- Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela.
Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.
- Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o desaparecimento de uma pessoa? - ela perguntou, mais para si mesma do que para Phil, vasculhando
a mesa à procura de um caderno vazio e de uma caneta.
Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.
- Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.
- E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. - O sorriso de Karen
era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse o Gato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.
Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do elevador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatlética da Gap. Modelos
e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos e sem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro na altura do quadril. O cabelo castanho-médio
tinha um bom corte chanel longo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava, portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social.
Tampouco, provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulher agradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantos anos, olhos azuis
com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima de maquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um. Ao perceber a avaliação de Karen,
a pele ao redor de seus olhos se apertou.
- Sou a inspetora Pirie - ela disse, abreviando o impasse em potencial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. - Karen Pirie.
Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gorducha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio
precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, caso fosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen se descrevia daquela
maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela era lindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela não concordava. Tinha uma opinião
razoavelmente boa sobre si mesma. Mas, quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, no entanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.
Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu mais segura.
- Graças a Deus por isso - ela disse. O sotaque de Fife era claro, embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela distância.
- Perdão?
A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes de leite de uma criança.
- Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enrolando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.
- Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo chá - Karen disse secamente. - Por acaso, fui a pessoa que atendeu ao telefone. - Ela deu
meia-volta, olhou para trás e disse: - Você me acompanha?
Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma salinha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, para o verde artificialmente
uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofadas de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfície de cerejeira fora polida até adquirir
um brilho opaco. A única indicação do propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas na parede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda
vez que usava aquele local, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhido fotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algo
muito ruim acontece.
A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou uma cadeira e lhe indicou que sentasse.
- Não é assim na televisão - ela disse.
- Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão - Karen respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em
relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição, menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entrevista de testemunha.
- Cadê o gravador? - A mulher se sentou, sem aproximar a cadeira nem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.
Karen sorriu.
- Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interrogatório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interrogada sobre um
crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável e olhar pela janela. - Ela abriu seu bloco de anotações. - Creio que está aqui para informar sobre uma pessoa
desaparecida.
- Isso mesmo. O nome dele é...
- Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para começar, qual é seu nome?
- Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobrenome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha.
- Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone.
Misha informou todos os detalhes.
- Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome dela, se é que você me entende.
Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus mineiros de carvão, numa
época em que estes lhe pertenciam tanto quanto as minas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquer ligação com o lugar ou seu passado.
- Mesmo assim - ela disse -, preciso de seus dados também.
As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então, ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujo conhecimento da geografia
social da capital, a apenas cinquenta quilômetros de distância, era provincianamente escasso.
- E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa - ela disse.
Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.
- Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser exata.
- E quando foi que seu pai desapareceu? - Ali, pensou Karen, era onde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.
- Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio. Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. - As sobrancelhas
de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.
- É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desaparecimento - disse Karen.
Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.
- Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente.
- Não estou entendendo. O que quer dizer com "não exatamente"?
Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.
- Você fala como alguém desta região.
Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:
- Cresci em Methil.
- Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984.
- A greve dos mineiros?
Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.
- Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pessoas costumavam dizer
por aqui: que ninguém era mais militante do que os mineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro, depois de nove meses de greve, em que meia
dúzia deles desapareceu. Bem, eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eles haviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. - Seu rosto
se franziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. - Com relação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo. Mas,
segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu pai tinha ido com eles. Inclusive ela. - Lançou a Karen um olhar defensivo. - Eu era pequena demais
para me lembrar. Mas todos dizem que ele era um sindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.
- Ela balançou a cabeça. - Porém, o que mais ela iria pensar?
Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia ter significado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a solidariedade era reservada
apenas para aqueles que aguentavam o tranco. A atitude de Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.
- Não deve ter sido nada fácil para sua mãe - ela disse.
- Em um aspecto, foi muito fácil. - Misha disse com amargura. - Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria mais saber dele.
Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergência. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para a Assistência Social dos Mineiros. Fui
criada numa casa em que o nome do meu pai jamais era pronunciado.
Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.
- Ele nunca entrou em contato com vocês?
- Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o carimbo do correio de Nottingham.
- Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai seja uma pessoa desaparecida. - Karen tentou fazer sua voz soar o mais gentil possível.
- Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim, inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. É preciso que o encontrem.
O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela, aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.
- Por quê? - ela perguntou.
Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo
Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquela sensação de ultraje pelo
fato de que o mundo seguia seu caminho, a despeito do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara em contar porque nunca havia se permitido acreditar
que aquela poderia ser a última vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polegares deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadas
por suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de alguma forma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviam atirado contra
sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicção tinha, finalmente, sido testada ao extremo.
Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol, desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda
não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e um apartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso. John não
estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia saber sobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido no trabalho alguma questão
complexa com que só ele pudesse lidar.
Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de arenito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, o pulmão verde do centro sul
da cidade, onde ela adorava caminhar com Luke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia também checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma
bola de rúgbi rodeada de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam a bola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pela
superfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha. Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a caminhar ali com Luke.
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, era disso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em perspectiva. Uma caminhada
rápida através do Meadows e, daí, atravessaria a Ponte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou um restaurante.
Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa de fundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Ela não permitiria que fosse
o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outra chance a Luke.
Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que o segurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelo trabalho de parto, ela
soubera. John estava em estado de negação, recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho, ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo
havia agarrado o coração de Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão em sua mente, então, fora: quão diferente?
O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorte era o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do Hospital Real para Crianças
Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nas histórias "milagrosas" que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito
para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem para explicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.
Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano; ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encantadora das palavras disfarçava
seu conteúdo letal. Escondidos no DNA de ambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado para criar uma condição rara que condenaria seu filho
a uma vida curta e dolorosa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que certamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula
óssea que, no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatível. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medula óssea,
Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.
Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que, sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria de algum membro da família;
era o que os médicos chamavam de doador aparentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Ela havia lido sobre os registros de transplante de
medula e deduzido que sua melhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, de acordo com o especialista, a doação de um membro da família não compatível,
que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um risco menor de complicações do que a de um doador compatível que não tivesse qualquer parentesco com o paciente.
Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos dois lados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e até mesmo oferecendo recompensas
a primos distantes e tias idosas. Aquilo havia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária. John se fechara atrás de uma muralha de otimismo
pouco realista. Haveria um avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar, descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes compartilhados.
Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro. John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à procura de casos que provassem
que os médicos estavam errados. Aparecia semanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis. E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura
incessante de Misha. Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de negação era olímpica.
Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo.
Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seu último beco sem saída
apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrível julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamente aquela que havia rezado para não ter de
levar em conta.
Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquele caminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pronta para ser agressiva com
quem quer que estivesse invadindo seu espaço.
- John - ela disse, com cansaço.
- Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento
- ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamente até ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para que se tocassem,
se algum deles quisesse.
- Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.
- Não, isso eu posso ver. O que eles disseram?
Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do veredito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filho era invencível,
de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reação dela.
Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto o consolo.
- Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. - Sua voz parecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. A emoção derreteria
seu estado congelado e ali não era o lugar para demonstrações de pesar ou amor.
John apertou os dedos dela com força.
- Talvez não seja tarde demais - ele disse. - Talvez eles...
- Por favor, John. Agora não.
Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensionava conforme ele controlava sua discordância.
- Então - ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que outra coisa -, imagino que você vá procurar o filho da puta?
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen coçou a cabeça com a caneta. Por que eu sempre pego os melhores?
- Por que você deixou passar tanto tempo, antes de tentar rastrear seu pai?
Ela captou uma expressão fugaz de irritação em volta dos olhos e da boca de Misha.
- Porque eu havia crescido achando que meu pai fosse um filho da puta fura-greve e egoísta. O que ele fez alijou minha mãe de sua própria comunidade. Fez
com que eu fosse maltratada no parque e na escola. Não achei que um homem que houvesse abandonado a família na merda fosse se incomodar com o neto.
- Ele mandava dinheiro - disse Karen.
- Uns trocados aqui e ali. Dinheiro maldito - disse Misha. - Como eu disse, minha mãe se recusava a usá-lo. Ela o doava. Nunca tirei proveito dele.
- Talvez ele tenha tentado compensar a sua mãe. Os pais nem sempre nos contam as verdades incômodas.
Misha balançou a cabeça.
- Você não conhece a minha mãe. Mesmo com a vida de Luke em jogo, ela não ficou nada contente que eu estivesse tentando encontrar meu pai.
Para Karen, aquele parecia um motivo insuficiente para evitar o homem que poderia fornecer a chave para o futuro de um garoto. Mas ela sabia como os sentimentos
eram profundos nas velhas comunidades mineiras, deixou estar, portanto.
- Você diz que ele não estava onde se supunha. O que aconteceu, quando você foi procurar por ele?
Quinta-feira, 21 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Jenny Prentice tirou um saco de batatas da prateleira de verduras e se pôs a descascá-las, o corpo inclinado sobre a pia e as costas voltadas para a filha. A pergunta
de Misha pairou sem resposta entre as duas, lembrando ambas da barreira que a ausência do pai havia colocado entre elas desde o início. Misha tentou novamente.
- Eu perguntei...
- Eu te ouvi muito bem. Não há nada de errado com a minha audição - disse Jenny. - E a resposta é: não tenho a menor ideia. Como eu saberia onde começar
a procurar por aquele merda de fura-greve egoísta? Nós nos viramos muito bem sem ele nos últimos vinte e dois anos. Nunca houve razão para procurá-lo.
- Bem, existe uma razão agora.
Misha olhou para os ombros curvados da mãe. A luz fraca que entrava pela pequena janela da cozinha acentuava o branco de seus cabelos não pintados. Ela mal havia
completado cinquenta anos, mas parecia ter pulado a meia-idade e adquirido logo o encurvamento vulnerável de uma anciã. Era como se ela soubesse que o ataque um
dia chegaria e houvesse optado por se defender tornando-se patética.
- Ele não irá ajudar - Jenny zombou. - Ele deixou claro o que pensava de nós, quando nos abandonou para que nos virássemos sozinhas. Ele só pensava em si
mesmo.
- Pode ser. Mas mesmo assim tenho que tentar, pelo bem de Luke - Misha disse. - Havia algum endereço de remetente nos envelopes em que vinha o dinheiro?
Jenny cortou uma batata descascada ao meio e deixou cair numa panela com água salgada.
- Não. Ele nem sequer se dava ao trabalho de colocar uma cartinha no envelope. Apenas um punhado de cédulas sujas, só isso.
- E os caras com quem ele foi embora?
Jenny lançou um olhar rápido e desdenhoso para Misha.
- O que têm eles? Não dão as caras por aqui.
- Mas alguns ainda devem ter família aqui, ou em East Wemyss. Irmãos, primos. Eles podem saber alguma coisa sobre o meu pai.
Jenny sacudiu a cabeça com firmeza.
- Nunca mais ouvi falar dele, desde o dia em que se foi. Nem um pio, bom ou ruim. Os outros homens com quem ele foi embora não eram seus amigos. A única razão
pela qual ele pegou carona com eles foi porque não tinha dinheiro para ir sozinho para o sul. Ele deve ter usado os caras assim como usou a gente e, depois, deve
ter seguido seu próprio caminho, quando chegou aonde queria. - Ela deixou cair outra batata na panela e disse sem qualquer entusiasmo: - Você vai ficar para a janta?
- Não, tenho algumas coisas para resolver - Misha disse, impaciente com a recusa da mãe em levar a sério sua busca. - Deve haver alguém com quem ele tenha
mantido contato. Com quem ele poderia ter falado? A quem ele teria contado o que estava planejando fazer?
Jenny se empertigou e colocou a panela no velho fogão a gás. Misha e John se ofereciam para trocar o fogão desconjuntado toda vez que se sentavam para aquele ato
teatral que era o jantar de domingo, mas Jenny sempre recusava, com o ar de martírio frustrado com que normalmente respondia às ofertas de gentileza.
- Nisso você também deu azar. - Ela se acomodou numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa minúscula na cozinha apertada. - Ele só tinha um amigo
de verdade. Andy Kerr. Era um comunista fervoroso, o Andy. Te digo uma coisa: em 1984 não eram muitos os que ainda erguiam a bandeira vermelha, mas Andy era um deles.
Ele já era sindicalista bem antes da greve. Ele e seu pai eram amigos desde a escola. - Seu rosto se suavizou por um momento, e Misha quase pôde ver a jovem que
ela havia sido. - Eles estavam sempre aprontando alguma, aqueles dois.
- Então, onde é que encontro esse tal de Andy Kerr? - Misha se sentou em frente à mãe, seu desejo de ir embora temporariamente abandonado.
O rosto da mãe se contorceu em uma expressão irônica.
- Coitada. Se você conseguir encontrar Andy, será uma detetive e tanto. - Ela se inclinou para a frente e deu um tapinha na mão de Misha. - Ele é mais
uma das vítimas do seu pai.
- Como assim?
- Andy adorava seu pai. Para ele, era Deus no céu e seu pai na terra. Pobre Andy. A greve o colocou sob uma enorme pressão. Ele acreditava na greve, acreditava
na luta. Mas ficou arrasado ao ver as dificuldades pelas quais seus homens estavam passando. Ele estava à beira de um ataque de nervos, e o diretor local o obrigou
a tirar uma licença médica, não muito antes de seu pai dar o fora. Ninguém o viu depois disso. Ele vivia lá nos cafundós, então ninguém percebeu que ele havia partido.
- Ela soltou um suspiro longo e cansado. - Ele mandou um cartão-postal para o seu pai, de algum lugar no norte. Mas, é claro, seu pai já tinha fugido da greve e,
portanto, nunca o recebeu. Mais tarde, quando Andy voltou, deixou um bilhete para a irmã dele dizendo que não suportava mais. O pobre coitado se matou.
- E o que isso tem a ver com o meu pai? - perguntou Misha.
- Sempre achei que o fato de seu pai ter furado a greve foi a gota d'água. - A expressão de Jenny era uma mistura de piedade e convencimento. - Foi o que
condenou Andy.
- Você não tem como saber isso. - Misha se afastou, aborrecida.
- Não sou a única por aqui que pensa assim. Se seu pai tivesse confiado em alguém, teria sido em Andy. E isso deve ter sido demais para aquela pobre alma
fragilizada. Ele tirou a própria vida, sabendo que seu único amigo de verdade havia traído tudo aquilo que ele defendia.
Naquele tom melodramático, Jenny se levantou e pegou um saco de cenouras da prateleira. Estava claro que ela dera por encerrado o assunto Mick Prentice.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen deu uma espiada no relógio. Quaisquer que fossem as qualidades de Misha Gibson, a brevidade não era uma delas.
- Então Andy Kerr provou ser, literalmente, um caso morto e enterrado?
- Minha mãe acha que sim. Mas parece que nunca encontraram o corpo. Talvez ele não tenha se matado, afinal - disse Misha.
- Eles nem sempre aparecem - Karen disse. - Às vezes, o mar os reivindica. Ou a floresta, que seja. Ainda existe muito espaço vazio nesta terra.
A resignação tomou conta do rosto de Misha. Karen percebeu que ela era uma mulher inclinada a acreditar no que lhe diziam. Se havia alguém que sabia disso, era sua
mãe. Talvez as coisas não fossem tão preto no branco quanto Jenny Prentice queria que sua filha pensasse.
- Isso é verdade - disse Misha. - E minha mãe falou mesmo que ele havia deixado um bilhete. Será que a polícia ainda o tem?
Karen balançou a cabeça.
- Duvido. Se em algum momento esteve com a gente, foi devolvido à família dele.
- Não teria havido um inquérito? Não teriam precisado do bilhete para isso?
- Você se refere a uma Investigação de Acidente Fatal - disse Karen.
- Não sem um corpo. Se existir um arquivo desse caso, é a respeito de pessoa desaparecida.
- Mas ele não está desaparecido. A irmã dele conseguiu que ele fosse declarado morto. Seus pais morreram no acidente da balsa de Zeebrugge, mas parece que
o pai sempre se recusou a acreditar que Andy tivesse morrido; então, não alterou o testamento para deixar a casa para a filha. Ela teve que ir ao tribunal e pedir
que declarassem Andy morto, para que ela pudesse herdá-la. De qualquer modo, foi o que minha mãe me contou. - Nenhum sinal de dúvida perturbava a expressão de Misha.
Karen anotou irmã de Andy Kerr e acrescentou um pequeno asterisco à observação.
- Portanto, se Andy se matou, voltamos a ter como única explicação racional para seu pai ter desaparecido o fato de ele querer furar a greve. Você fez alguma
tentativa de contatar os caras com quem se supõe que ele tenha fugido?
Segunda-feira, 25 de junho de 2007; Edimburgo
Nove e dez da manhã de uma segunda-feira e Misha já se sentia exausta. Ela já deveria estar com Luke no hospital. Brincando com ele, lendo para ele, bajulando os
terapeutas para que ampliassem seus procedimentos, discutindo planos de tratamento com a equipe médica e usando toda a sua energia para contagiá-los com a sua convicção
de que era possível salvar o filho. E, se era possível, todos eles tinham a obrigação de lhe proporcionar até a última gota de intervenção médica.
Mas, em vez disso, Misha estava sentada no chão, com as costas contra a parede, os joelhos dobrados, o telefone no colo e o bloco de anotações a seu lado. Ela disse
a si mesma que estava tomando coragem para dar um telefonema, mas no fundo sabia que a exaustão era o verdadeiro motivo por trás da inatividade.
Outras famílias aproveitavam os fins de semana para relaxar, recarregar as baterias. Mas não os Gibson. Para começar, havia menos funcionários trabalhando no hospital,
então Misha e John se sentiam obrigados a dedicar
mais energia que o habitual a Luke. Tampouco havia descanso quando eles voltavam para casa. O fato de Misha acreditar que a última esperança para o filho era encontrar
seu pai havia simplesmente agravado o conflito entre seu ardor missionário e o otimismo passivo de John.
Esse fim de semana havia sido mais difícil que o normal. Ter um limite de tempo definido para a vida de Luke impregnava de valor e intensidade cada momento que compartilhavam.
Era difícil evitar uma espécie de sentimentalismo melodramático. Assim que saíram do hospital no domingo, Misha retomou o refrão que vinha repetindo desde que visitara
a mãe:
- Eu tenho que ir a Nottingham, John. Você sabe disso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta impermeável e curvou a cabeça para a frente, como se estivesse lutando contra um vento forte.
- Telefone para o cara - John falou. - Se ele tiver alguma coisa a dizer, dirá pelo telefone.
- Talvez não. - Ela correu um pouco para acertar o passo com ele. - As pessoas sempre contam mais coisas cara a cara. Talvez possa me dar alguma informação
sobre os outros que foram para lá com ele. Pode ser que eles saibam de alguma coisa.
John bufou.
- E como é que a sua mãe só se lembra do nome de um cara? Por que ela não pode te dar informações a respeito dos outros?
- Eu já disse. Ela apagou da memória tudo sobre aquela época. Tive que pressioná-la muito até ela me dar o nome de Logan Laidlaw.
- E você não acha incrível que o único cara de quem ela se lembra não tenha nenhum parente na região? Nenhuma maneira óbvia de ser rastreado?
Misha enganchou seu braço no dele, em parte para fazê-lo ir mais devagar.
- Mas eu o rastreei, não foi? Você é desconfiado demais.
- Não sou, não. Sua mãe não conhece o poder da Internet. Ela não sabe dos cadastros eleitorais on-line nem do site 192.com. Ela acha que, se não houver nenhum
ser humano a quem perguntar, você está ferrada. Pensou que não estava lhe dando nada que você pudesse usar. Ela não quer ver você bisbilhotando a respeito desse
assunto, ela não vai te ajudar.
- Então você e ela podem dar as mãos. - Misha soltou o braço do dele e caminhou rapidamente à sua frente.
John a alcançou na esquina da rua deles.
- Isso não é justo - ele disse. - Eu só não quero que você se machuque à toa.
- Você acha que ver meu filho morrer sem fazer nada para salvá-lo não está me machucando?
Misha sentiu o calor da raiva em seu rosto, soube que as lágrimas de ira estavam à espreita. Virou o rosto, piscando desesperadamente para os prédios altos de arenito.
- Encontraremos um doador. Ou eles encontrarão um tratamento. Toda essa pesquisa com células-tronco está avançando muito rápido.
- Não rápido o bastante para Luke - Misha disse, a familiar sensação de peso no estômago desacelerando seus passos. - John, por favor. Preciso ir a Nottingham.
Preciso que você tire uns dias de folga do trabalho para ficar com Luke.
- Você não precisa ir. Pode falar com o cara pelo telefone.
- Não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você não negocia com clientes pelo telefone. Não quando é alguma coisa importante. Você vai até eles pessoalmente.
Quer olhar em seus olhos. Tudo que estou pedindo é que você tire uns dias de folga para passar um tempo com seu filho.
Os olhos dele brilharam perigosamente, e ela soube que tinha ido longe demais. John balançou a cabeça com teimosia.
- Telefone para ele, Misha.
E isso foi tudo. Sua longa experiência com o marido havia lhe ensinado que, quando John assumia uma postura que acreditava estar certa, insistir no mesmo ponto
apenas lhe dava a oportunidade de construir defesas mais fortes. Ela não tinha argumentos novos que pudessem mudar sua decisão. Portanto, ali estava ela, sentada
no chão, tentando formular frases capazes de convencer Logan Laidlaw a lhe dizer o que havia acontecido com seu pai desde que ele a abandonara, havia mais de vinte
anos.
Sua mãe não lhe dera muita coisa para criar uma estratégia. Laidlaw era um esbanjador, um mulherengo, um homem que, aos trinta anos, ainda agia como um adolescente.
Aos vinte e cinco anos, já se divorciara com a péssima reputação de ser um homem habilidoso demais com os punhos quando perto das mulheres. A imagem que Misha guardava
do pai era incompleta e parcial, mas, mesmo com a visão imposta pela mãe, Mick Prentice não
parecia ser o tipo de homem que tivesse tempo a perder com Logan Laidlaw. Ainda assim, tempos difíceis criam os companheiros mais estranhos.
Finalmente, Misha pegou o telefone e digitou os números que ela havia encontrado através de buscas na Internet e em listas telefônicas. Provavelmente ele saíra para
trabalhar, ela pensou no quarto toque. Ou então estava dormindo.
O sexto toque foi interrompido abruptamente. Uma voz rouca grunhiu algo parecido com alô.
- É Logan Laidlaw? - Misha perguntou, lutando para manter a voz sob controle.
- Já tenho uma cozinha montada e não quero nenhum seguro. - O sotaque de Fife ainda era forte, as palavras se atropelando com o familiar sobe e desce.
- Não quero lhe vender nada, Sr. Laidlaw. Só preciso falar com o senhor um instante.
- É, sei. E eu sou o primeiro-ministro.
Ela podia sentir que ele estava a ponto de desligar.
- Sou a filha de Mick Prentice - ela revelou, sua estratégia tinha ido por água abaixo. Através da distância, ela podia ouvir o chiado líquido da respiração
dele. - Mick Prentice, de Newton of Wemyss - ela tentou.
- Eu sei de onde Mick Prentice é. Só não sei o que Mick Prentice tem a ver comigo.
- Olhe, sei que vocês dois não se veem muito, ultimamente, mas eu agradeceria qualquer informação que o senhor pudesse me dar. Realmente preciso encontrá-lo.
- O sotaque de Misha pulou algumas marchas até voltar à pronúncia carregada.
Uma pausa. Então, com um tom desconcertado:
- Por que você está me ligando? Não vejo Mick Prentice desde que saí de Newton of Wemyss, em 1984.
- Tudo bem, mas mesmo que vocês tenham se separado logo que chegaram a Nottingham, o senhor deve ter uma ideia de onde ele foi parar, aonde ele estava indo.
- Escuta aqui, docinho, não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim, nos separamos logo que chegamos a Nottingham? - ele parecia irritado,
a pouca paciência que tinha evaporava com as perguntas dela.
Misha engoliu um suspiro profundo e, então, disse lentamente:
- Só quero saber o que aconteceu com meu pai depois que vocês chegaram a Nottingham. Preciso encontrá-lo.
- Por acaso, você tem algum problema na cabeça, menina? Não faço a menor ideia do que aconteceu com seu pai depois que vim para Nottingham e sabe por quê?
Porque eu estava em Nottingham e ele, em Newton of Wemyss. E mesmo quando nós dois estávamos na mesma cidade, não éramos o que se pode chamar de compadres.
As palavras a atingiram como um balde de água fria. Será que havia algo errado com a memória de Logan Laidlaw? Estaria se esquecendo do passado?
- Não, isso não está certo - ela disse. - Ele foi para Nottingham com você.
Uma explosão de risadas, então uma tosse seca.
- Alguém está te enrolando, menina - ele ofegou. - Trotsky teria furado um piquete de greve antes do Mick Prentice que eu conheci. O que te faz pensar que
ele veio para Nottingham?
- Não sou só eu. Todo mundo pensa que ele foi para Nottingham com você e com os outros homens.
- Isso é loucura. Por que iriam pensar isso? Você não conhece a história da sua própria família?
- O que você quer dizer?
- Por Deus, menina, o seu bisavô. O avô do seu pai. Você não sabe a respeito dele?
Misha não fazia a mínima ideia de onde aquilo iria parar, mas pelo menos ele não tinha desligado na cara dela, como havia temido que fizesse.
- Ele morreu antes de eu nascer. Não sei nada sobre ele, a não ser que também era mineiro.
- Jackie Prentice - disse Laidlaw com algo que se aproximava à satisfação. - Ele foi um fura-greve em 1926. Depois do acordo sindical, ele teve de ser transferido
para um posto na superfície. Quando sua vida depende dos homens da sua equipe, você não quer ser um fura-greve no subterrâneo. A não ser que todo mundo esteja no
mesmo barco, como era nosso caso. Só Deus sabe por que Jackie permaneceu na cidade. Ele tinha que tomar um ônibus até Dysart só para conseguir uma bebida. Não havia
um só bar, em nenhum dos vilarejos de Wemyss, que o servisse. Então, seu pai e seu avô tiveram que trabalhar duas vezes mais que qualquer outra pessoa para serem
aceitos na mina. Nem morto Mick Prentice jogaria fora esse respeito. Ele preferiria morrer de fome. Isso mesmo, e deixar que você morresse junto com ele. Onde quer
que você tenha conseguido essa informação, eles não sabem de que diabos estão falando.
- Minha mãe me contou. É o que todos dizem em Newton. - O impacto das palavras dele a fizeram sentir como se todo ar houvesse sido sugado de seus pulmões.
- Bem, eles estão errados. Por que iriam pensar isso?
- Porque a noite em que você foi para Nottingham foi a última noite em que alguém em Newton o viu ou ouviu falar dele. E porque minha mãe, ocasionalmente,
recebe dinheiro pelo correio, com o carimbo de Nottingham.
Laidlaw respirou com dificuldade, uma exalação de sanfona no ouvido dela.
- Jesus, isso é espantoso. Bem, querida, sinto muito decepcioná-la. Cinco de nós partiram de Newton of Wemyss naquela noite de dezembro. Mas seu pai não estava
entre a gente.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen parou na lanchonete para comprar um sanduíche de salpicão de frango, quando voltava para sua mesa. Criminosos e testemunhas raramente conseguiam enganar Karen,
mas, quando se tratava de comida, ela podia enganar a si mesma dezessete vezes antes do café da manhã. O sanduíche, por exemplo. Pão integral, um pedaço de alface
murcha, algumas fatias de tomate e pepino e, pronto: passava a ser um alimento saudável. Esqueça a manteiga e a maionese. Na sua cabeça, as calorias eram canceladas
pelo benefício. Ela enfiou o caderno embaixo do braço e rasgou a embalagem plástica do sanduíche enquanto caminhava.
Phil Parhatka levantou os olhos quando Karen se deixou cair, pesadamente, na cadeira. Não pela primeira vez, o ângulo da cabeça dele a lembrou de que ele parecia
uma versão mais morena e mais magra de Matt Damon. Havia o mesmo nariz e queixo protuberantes, as sobrancelhas retas, o corte de cabelo à la Identidade Boume, e
a expressão que podia variar, de aberta a resguardada, num segundo. Só as cores eram diferentes.
A ascendência polonesa de Phil era responsável por seus cabelos escuros, os olhos castanhos e a pele intensamente branca; sua personalidade contribuíra com o minúsculo
furo em sua orelha esquerda, que geralmente acomodava um brinco de diamante, quando ele não estava de serviço.
- Como foi? - ele perguntou.
- Mais interessante do que eu esperava - ela admitiu, levantando-se novamente para pegar uma Coca Diet.
Entre mordidas e goles, ela fez um resumo conciso da história de Misha Gibson.
- E ela acredita no que esse velho caduco de Nottingham lhe contou? - ele perguntou, recostando-se na cadeira e entrelaçando os dedos atrás da cabeça.
- Acho que ela é o tipo de mulher que normalmente acredita no que as pessoas lhe dizem - disse Karen.
- Ela seria uma péssima policial, então. Portanto, imagino que você irá passar o caso para a Divisão Central investigar.
Karen deu uma dentada no sanduíche e mastigou vigorosamente, os músculos da mandíbula e têmpora se projetavam e contraíam como uma bola antiestresse sob pressão.
Ela engoliu antes de ter terminado de mastigar direito, empurrando o que sobrou com um gole de Coca Diet.
- Não tenho certeza - ela disse. - É um caso interessante.
Phil lançou um olhar cauteloso.
- Karen, não se trata de um caso arquivado. Não é nossa praia.
- Se eu passá-lo para a Central, vai acabar não dando em nada. Ninguém dé lá vai se incomodar com um caso em que as pistas esfriaram há vinte e dois anos.
- Ela se recusou a encarar o olhar desaprovador dele. - Você sabe disso tão bem quanto eu. E, segundo Misha Gibson, essa seria a última chance do filho dela.
- Ainda não faz com que seja um caso arquivado.
- Só porque não foi aberto em 1984 não significa que agora não esteja arquivado. - Karen sacudiu o resto de seu sanduíche apontando para arquivos sobre sua
mesa. - E nenhum destes aqui irá a qualquer lugar, a curto prazo. Darren Anderson: não há nada que eu possa fazer até que os policiais nas Canárias se mexam e descubram
em que bar a ex-namorada dele está trabalhando. Ishbel Mackindoe: aguardo que o laboratório me
diga se eles podem obter amostras viáveis de DNA das cartas anônimas. Patsy Millar: não posso seguir adiante com esse caso até que a Polícia Metropolitana de Londres
termine de cavar aquele jardim no bairro de Heringey e faça as análises criminais.
- Há testemunhas no caso de Patsy Millar com quem poderíamos falar novamente.
Karen deu de ombros. Ela sabia que podia usar a hierarquia para calar a boca de Phil, mas precisava demais da tranquilidade que havia entre eles.
- Elas não irão a lugar algum. Ou, senão, você pode pegar um dos detetives e lhe dar um pouco de treinamento em ação.
- Se você acha que eles precisam de treinamento em ação, deveria lhes dar esse caso arquivadíssimo de pessoa desaparecida. Você é uma inspetora agora, Karen.
Não se espera que saia investigando esse tipo de coisa. - Ele indicou com a mão os dois detetives sentados frente a seus computadores. - Isso é para gente como eles.
O que acontece é que você está entediada. - Karen tentou protestar, mas Phil continuou, sem lhe dar atenção. - Eu lhe disse, quando você aceitou essa promoção, que
iria ficar louca, sentada atrás de uma mesa. E agora, olhe só. Surrupiando os casos dos agentes da Central. O próximo passo é você sair para fazer pessoalmente os
interrogatórios.
- E daí? - Karen amassou a embalagem do sanduíche com mais força que o necessário e a atirou no lixo. - É bom manter a mão na massa. E vou garantir que tudo
seja feito de forma honesta. Levarei o detetive Murray comigo.
- O Novo em Folha? - O tom da voz de Phil era de incredulidade, seu semblante estava ofendido. - Você preferiria o Novo em Folha a mim?
Karen sorriu com doçura.
- Você agora é sargento, Phil. Um sargento com ambições. Ficar no escritório e esquentar minha cadeira ajudará suas aspirações a se tornarem realidade. Além
disso, o Novo em Folha não é tão ruim quanto você pensa. Ele faz aquilo que o mandam fazer.
- Isso um cachorro collie também faz. Só que o cão mostraria mais iniciativa.
- A vida de uma criança está em jogo, Phil. Eu tenho bastante iniciativa para nós dois. Isso deve ser feito da maneira correta e vou garantir que
seja. - Ela se virou para o computador com um ar de ter terminado a conversa.
Phil abriu a boca para falar mais, então, pensou melhor, ao ver o olhar repressivo que Karen lançou em sua direção. Eles se sentiram atraídos um pelo outro desde
o começo da carreira, reconhecendo a tendência comum de não se conformar. O fato de haverem galgado postos juntos lhes havia conferido uma amizade capaz de sobreviver
ao desafio da mudança de cargo. Mas ele sabia que havia um limite até onde podia pressionar Karen, e tinha a sensação de haver acabado de atingi-lo.
- Então, eu lhe darei cobertura por aqui - ele disse.
- Por mim, está ótimo - Karen disse, enquanto seus dedos voavam pelas teclas. - Marque a minha saída para amanhã de manhã. Tenho a impressão de que Jenny
Prentice será um pouquinho mais receptiva a uma dupla de policiais do que foi com a filha.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Aprender a esperar era uma das lições do jornalismo que as faculdades não ensinavam. Quando Bel Richmond tivera um emprego de tempo integral, em um jornal dominical,
sempre defendera que era paga não por uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, e sim pelos cinco minutos em que conseguia, com sua lábia, passar por uma
porta que ninguém antes conseguira cruzar. O que deixava bastante tempo livre para esperar. Esperar que alguém retornasse um telefonema. Esperar que o passo seguinte
da história acontecesse. Esperar que um contato se transformasse em informante. Bel havia passado por várias esperas e, embora tivesse se tornado habilidosa na atividade,
nunca havia aprendido a apreciá-la.
Tinha de admitir que já precisara esperar em ambientes muito menos salubres que aquele. Ali, havia o conforto do café, biscoitos e jornais. E a sala na qual havia
sido deixada oferecia a vista panorâmica que já enfeitara um milhão de latas de biscoitos amanteigados. Ocupando toda a extensão da Princess Street, exibia um punhado
de atrações turísticas: o castelo, o Scott Monument, a National Gallery e o parque Prince Street Gardens. Bel notou outra beleza arquitetônica significativa, mas
não sabia o suficiente sobre a cidade para identificá-la. Ela só visitara a capital escocesa algumas
vezes e não fora escolha sua realizar aquela reunião ali. Teria preferido Londres; porém, a relutância em mostrar seus trunfos antecipadamente a havia deslocado
do assento do motorista para o posto de suplicante.
De forma um tanto incomum para uma jornalista freelance, ela contava com um assistente de pesquisa. Jonathan era estudante de jornalismo na City University e pedira
a seu orientador que o indicasse para estagiar com Bel. Aparentemente, ele gostava do estilo dela. Bel ficara levemente agradecida pelo elogio, mas profundamente
maravilhada com a perspectiva de ter oito semanas livres de todo trabalho pesado. Sendo assim, Jonathan fizera o primeiro contato com a Maclennan Grant Enterprises.
Voltou com uma resposta bem simples: se a Srta. Richmond não estava preparada para declarar seu motivo para querer um encontro com Sir Broderick Maclennan Grant,
Sir Broderick não estava preparado para se encontrar com ela. Sir Broderick não dava entrevistas. Após algumas negociações adicionais a distância, ela chegara ao
presente acordo.
E agora, pensou Bel, ela estava sendo colocada em seu lugar. Obrigada a ficar esperando numa sala de reuniões de hotel. Forçada a entender que alguém tão importante
quanto a assistente pessoal do presidente e acionista principal da décima segunda empresa mais valiosa do país tinha compromissos mais urgentes em sua agenda do
que fazer sala para uma escritorazinha de Londres.
Gostaria de se levantar e caminhar um pouco, mas não queria revelar qualquer falta de compostura. Ceder terreno nunca fora natural para ela. Em vez disso, ajeitou
a jaqueta, verificou se a blusa estava adequadamente arrumada e tirou uma sujeirinha dos sapatos de camurça verde-esmeralda.
Afinal, precisamente quinze minutos depois da hora marcada, a porta se abriu. A mulher que entrou, num turbilhão de lã e caxemira, lembrava uma professora de colégio,
de idade indeterminada, mas acostumada a impor disciplina aos alunos. Por um momento insano, Bel quase se levantou de um pulo, num reflexo pavloviano às suas recordações
adolescentes de freiras terroristas. No entanto, conseguiu se conter e se levantou de forma mais lenta.
- Susan Charleson - disse a mulher, estendendo a mão. - Desculpe-me por tê-la feito esperar. Como Harold Macmillan disse uma vez: "Acontecimentos, caro rapaz.
Acontecimentos."
Bel decidiu não ressaltar que Harold Macmillan referia-se ao trabalho de primeiro-ministro, e não à função de babá de um líder industrial. Segurou os dedos mornos
e secos, em um aperto rápido e rígido, e, então, teve a mão liberada.
- Annabel Richmond.
Susan Charleson ignorou a poltrona em frente a Bel e dirigiu-se à mesa perto da janela. Pega de surpresa, Bel apanhou a bolsa e a pasta de couro e a seguiu. Sentaram-se
em lados opostos e Susan sorriu, os dentes pareciam uma linha de creme dental calcária em meio ao batom rosa-escuro.
- Você queria ver Sir Broderick - ela disse. Sem preâmbulos, sem conversa fiada sobre a vista. Simplesmente direta. Era uma técnica que Bel havia utilizado
algumas vezes, o que não queria dizer que a apreciasse quando a situação era inversa.
- Exatamente.
Susan balançou a cabeça.
- Sir Broderick não fala com a imprensa. Temo que você tenha desperdiçado seu tempo. Expliquei tudo isso a seu assistente, mas ele se recusou a aceitar uma
resposta negativa.
Foi a vez de Bel sorrir com frieza.
- E fez muito bem. Eu, obviamente, lhe dei um bom treinamento. Mas parece haver um mal-entendido. Não estou aqui para implorar por uma entrevista. Estou aqui
porque acho que tenho algo em que Sir Broderick ficará interessado. - Ela ergueu a pasta até a mesa e abriu o zíper. De dentro, retirou uma única folha de papel
A3 grosso, virada para baixo. Estava manchada e exalava um cheiro sutil, uma mistura curiosa de poeira, urina e lavanda. Bel não resistiu a lançar uma olhadela provocadora
para Susan Charleson. - Você gostaria de ver? - ela perguntou, virando o papel.
Susan tirou um estojo de couro do bolso da saia e extraiu dele uns óculos de aro de casco de tartaruga. Equilibrou-os no nariz, calmamente, mas sem tirar os olhos
das imagens em preto e branco à sua frente. O silêncio entre as mulheres pareceu crescer, e Bel sentiu-se sem ar enquanto esperava por uma resposta.
- Onde você encontrou isto? - Susan perguntou, seu tom de voz estava tão afetado quanto o de uma professora de latim.
Segunda-feira, 18 de junho de 2007; Campora, Toscana, Itália
Às sete da manhã era quase possível acreditar que o calor intenso dos últimos dez dias não fosse dar as caras. A luz perolada do dia cintilava entre a abóbada de
folhas de carvalho e castanheira, deixando visíveis as partículas de poeira que espiralavam, emitidas pelos pés de Bel. Ela se movia devagar o bastante para notá-las
porque a trilha destruída que descia em meio às árvores era sulcada e esburacada, coberta com pedras irregulares o bastante para conscientizar qualquer corredor
da fragilidade de seus tornozelos.
Apenas mais duas daquelas corridas matinais tão apreciadas antes de retornar às sufocantes ruas de Londres. O pensamento provocou uma ferroada de arrependimento.
Bel adorava escapulir da villa enquanto todos ainda estavam dormindo. Ela podia andar descalça pelo chão frio de mármore, fingindo ser a castelã do lugar, e não
simplesmente outra arrendatária tentando tirar uma casquinha da elegância toscana.
Ela vinha tirando férias com o mesmo grupo de cinco amigas desde que dividiram uma casa, em seu último ano na universidade de Durham. Naquela primeira vez, elas
estavam estudando arduamente para os exames finais. Os pais de uma delas tinham uma casa de campo na Comualha, que elas ocuparam por uma semana. Haviam chamado aquilo
de pausa nos estudos; na verdade, foram umas férias em que descansaram e relaxaram, ficando em melhores condições para prestar os exames do que se tivessem se exaurido
com livros e artigos. E, apesar de serem jovens modernas e nem um pouco dadas a superstições, todas sentiram que a semana que haviam passado juntas tinha, de alguma
forma, sido responsável por suas boas notas. Desde então, vinham se reunindo todos os anos, em junho, com o compromisso de se divertir.
Ao longo dos anos, seus hábitos alcoólicos haviam se tornado mais apurados; os alimentícios, mais epicuristas; e as conversas, mais escandalosas. Os lugares haviam
se tornado cada vez mais luxuosos. Amantes jamais eram convidados para compartilhar aquela semana das garotas. Ocasionalmente, uma delas hesitava, alegando muita
pressão no trabalho ou obrigações familiares, mas, geralmente, era ameaçada e mudava de ideia rapidamente e sem dar muito trabalho.
Para Bel, aquele era um elemento significativo de sua vida. Todas aquelas mulheres eram bem-sucedidas, todas eram fontes com as quais podia
contar para suavizar seu caminho, de tempos em tempos. Mas, apesar disso, não era essa a razão principal de suas férias serem tão importantes. Parceiros haviam chegado
e partido, mas aquelas amigas sempre foram uma constante. Em um mundo no qual se era julgado de acordo com sua última manchete, era agradável ter um refúgio onde
nada disso importava. Onde ela era apreciada simplesmente porque o grupo se divertia mais quando ela estava presente. Elas se conheciam havia muito tempo para perdoar
os defeitos umas das outras, para aceitar as opiniões políticas umas das outras e para dizer aquilo que seria impronunciável diante de qualquer outra pessoa. Essas
férias faziam parte da fortaleza que ela constantemente levantava contra suas próprias inseguranças. Além disso, atualmente, eram as únicas férias que ela tirava
que estavam de acordo com o que ela queria fazer. Nos últimos seis anos, ela estivera presa à sua irmã viúva, Vivianne, e seu filho Harry. A morte repentina do marido
de Vivianne, vítima de um ataque cardíaco, a deixara emocionalmente abalada e muito carente. Bel não hesitara em unir seu destino ao da irmã e do sobrinho. No final,
tinha sido uma boa decisão, mas, ainda assim, ela valorizava muito a pausa anual daquela vida familiar que nunca imaginou que viveria. Principalmente agora, quando
Harry se encontrava à beira da crise existencial da adolescência. Este ano, portanto, mais ainda do que no passado, as férias tinham de ser especiais, precisavam
superar tudo que já havia existido.
Era difícil imaginar como elas superariam isso, ela pensou, enquanto emergia das árvores e virava num campo de girassóis que se preparavam para florescer. Ela se
apressou um pouco ao percorrer seu caminho pela margem, o-nariz franzindo com o aromático perfume da vegetação. Não havia nada que ela desejasse mudar naquele lugar,
nenhum defeito que pudesse encontrar nos jardins e nas árvores frutíferas que rodeavam a varanda e a piscina. A vista do Val d'Eisa era deslumbrante, com as cidadezinhas
de Volterra e San Gimignano no horizonte distante.
E havia o bônus adicional da culinária de Grazia. Quando elas descobriram que a "chef local" descrita no site da Internet era a esposa do criador de porcos que vivia
ali perto, desistiram de chamá-la até a villa para preparar uma refeição tipicamente toscana. Na tarde do terceiro dia, no entanto, todas estavam incomodadas demais
com o calor para se dar ao trabalho de cozinhar; então, chamaram Grazia. O marido, Maurizio, a levou até a villa
num Fiat Panda caindo aos pedaços, que parecia se manter inteiro à custa de barbantes e fé. Ele descarregou caixas de comida cobertas de musselina. Num inglês macarrônico,
Grazia as expulsou da cozinha e mandou que fossem relaxar na varanda com um drinque.
A comida foi uma revelação: salames com frutas secas e prosciutto feito dos raros porcos Cinta di Siena que Maurizio criava, combinados com figos perfumados colhidos
em seu pomar; espaguete ao pesto de estragão e manjericão; codornas assadas com os vegetais cultivados por Maurizio e tiras compridas de batata temperadas com alecrim
e alho; queijos produzidos em fazendas da região e, finalmente, um delicioso bolo de amêndoas embebido com limoncello.
As mulheres nunca mais cozinharam.
A culinária de Grazia fez com que as corridas matinais de Bel se tornassem ainda mais necessárias. Ao aproximar-se dos quarenta, ela lutava cada vez mais para manter
o que pensava ser seu peso ideal. Naquela manhã, seu estômago ainda parecia uma bola rígida, após as suaves e deliciosas berinjelas alia parmigiana que a haviam
tentado a repetir generosamente o prato. Iria correr um pouco mais longe do que o normal, decidiu. Em vez de fazer o circuito do campo de girassóis e subir de volta
à villa, tomaria uma trilha que ia da extremidade mais distante e cruzava o terreno coberto de vegetação de uma casa colonica em ruínas, que ela avistara ao passar
de carro. Desde que vira a casa, na primeira manhã, tinha alimentado a fantasia de comprar a ruína e transformá-la no melhor dos refúgios toscanos, com direito
a piscina e jardim de oliveiras. E, é claro, com Grazia à disposição para cozinhar. Bel não tinha muitos escrúpulos com relação à invasão de propriedades, em fantasia
ou na realidade.
Mas ela se conhecia o suficiente para saber que aquilo nunca passaria de um sonho. Ser proprietária de um refúgio implicava o desejo, que ela não tinha, de abandonar
seu universo de trabalho. Talvez, quando estivesse pronta para se aposentar, pudesse considerar a possibilidade de devotar-se a um projeto de restauração como aquele.
A não ser pelo fato de admitir que esse era outro sonho pouco realista. Jornalistas jamais se aposentavam de verdade. Sempre havia outra história no horizonte, outro
alvo a perseguir. Sem falar do horror de ser esquecido. Todos motivos pelos quais seus relacionamentos passados não haviam durado, todos motivos pelos quais seu
futuro provavelmente reservasse as mesmas imperfeições. Ainda assim,
seria divertido dar uma olhada mais de perto na velha casa para ver seu estado. Quando mencionara a ideia a Grazia, ela fizera uma careta e a chamara de rovina.
Bel, cujo italiano era fluente, havia traduzido para as demais: "ruína". Hora de descobrir se Grazia estava dizendo a verdade ou apenas tentando desviar o interesse
de algumas ricaças inglesas.
O caminho através da grama alta ainda estava surpreendentemente limpo, o solo nu endurecido por anos de pisadas. Bel aproveitou a oportunidade para ir mais rápido,
até diminuir a velocidade ao chegar ao pátio fechado por portões, em frente à velha fazenda. Os portões estavam dilapidados, pendendo frouxamente das dobradiças
que mal se apegavam aos pilares de pedra. Uma corrente pesada e um cadeado os mantinham fechados. Mais além, o pavimento quebrado do pátio estava demarcado por tufos
rasteiros de tomilho, camomila e mato. Bel sacudiu os portões sem muita esperança. Mas foi o suficiente para revelar que o canto inferior do portão direito havia
se soltado completamente do suporte. Poderia ser facilmente afastado para que um adulto passasse pela abertura. Bel deslizou por ali e soltou o portão, que rangeu
suavemente ao voltar para sua posição de origem, aparentemente fechado.
De perto, ela pôde entender a descrição de Grazia. Qualquer um que assumisse a restauração ficaria escravo dos pedreiros por um longo, longo tempo. A casa rodeava
o pátio em três lados, uma ala central delimitada por dois braços iguais. Havia dois andares, com uma varanda percorrendo todo o segundo andar, na qual se abriam
portas e janelas, conferindo aos quartos fácil acesso ao ar livre e ao espaço de uso comum. Mas o chão da varanda havia cedido, as portas que restavam estavam tortas
e as vergas sobre as janelas estavam rachadas, pendendo em ângulos estranhos. As vidraças, em ambos os andares, estavam imundas, rachadas ou haviam desaparecido.
Mas as linhas sólidas da atraente arquitetura local ainda eram visíveis, e as pedras ásperas brilhavam calorosamente ao sol da manhã.
Bel não teria conseguido explicar por que, mas a casa a atraía. Tinha o charme desgastado de uma beldade suficientemente segura de si para permitir-se envelhecer
sem luta. Buganvílias sem poda estendiam-se sobre o estuque ocre descascado e cobriam a parede inferior da varanda. Se ninguém decidisse se apaixonar logo pela casa,
muito em breve ela estaria tomada pela vegetação. Em algumas gerações, não seria nada além de um
aterro inexplicável na ladeira da colina. Mas, naquele instante, ela ainda tinha o poder de enfeitiçar.
Bel atravessou o pátio que se esfarelava, passando por vasos de terracota rachados e tombados; as ervas que estes um dia haviam contido agora se espalhavam e brotavam
livremente, condimentando o ar com suas fragrâncias. Ela empurrou uma porta pesada, feita de tábuas de madeira que pendiam de uma única dobradiça. A madeira raspou
ruidosamente contra o piso desnivelado, de tijolos assentados em ziguezague, mas se abriu o suficiente para que Bel entrasse na sala ampla sem ter de se espremer.
Sua primeira impressão foi de sujeira e abandono. Teias de aranha se entrelaçavam num emaranhado que ia de parede a parede. As janelas estavam manchadas de poeira.
Um ruído de algo rastejando, a distância, fez com que Bel olhasse em volta, em pânico. Ela não tinha medo dos editores de jornais, mas ratos de quatro patas a enchiam
de repulsa.
Conforme ia se acostumando à obscuridade, Bel percebeu que a sala não estava completamente vazia. Havia uma mesa comprida contra uma parede. No lado oposto, um sofá
com o assento afundado. A julgar pelo resto do lugar, deveria estar podre e imundo, mas o tecido vermelho-escuro que o forrava ainda se mantinha relativamente limpo.
Ela arquivou aquele dado estranho para posterior consideração.
Bel hesitou por um instante. Tinha certeza de que nenhuma de suas amigas a encorajaria a prosseguir na exploração daquela estranha casa deserta. Mas ela havia construído
sua carreira com base em uma reputação de audácia. Só ela sabia com que frequência sua aparência ocultava níveis de ansiedade e incerteza que a haviam feito vomitar
em sarjetas e banheiros nos lugares mais estranhos. Depois de tudo que ela já havia enfrentado, em sua determinação de conseguir uma boa história, até que ponto
uma ruína deserta poderia ser assustadora?
Uma porta na extremidade mais distante conduzia a um corredor apertado, com uma escadaria gasta de pedra que levava à varanda. Mais à frente, ela podia ver outra
sala escura e suja. Espiou lá dentro, surpresa em ver um varal pendurado a um canto, com meia dúzia de cabides de metal. Pendurado em um dos cabides, havia um cachecol
de tricô. Por baixo, uma pilha amarrotada de roupa de camuflagem. Parecia uma daquelas jaquetas de caça, geralmente à venda na caminhonete que ficava no estacionamento
em frente ao café, na estrada principal de Colle di Val d'Eisa. As mulheres tinham rido daquilo uns dias atrás, se perguntando quando é que tinha virado moda os
italianos de todas as idades vestirem-se como recém-saídos do serviço militar nos Bálcãs. Estranho, ela pensou. Bel subiu cautelosamente as escadas até a varanda,
esperando encontrar a mesma sensação de lugar havia muito desabitado.
Porém, assim que emergiu da escadaria, percebeu que penetrara em algo muito diferente. Quando se virou para a esquerda e espiou pela primeira porta, entendeu que
aquela casa não era o que parecia. O bolor úmido do andar térreo era infinitamente menor ali, e o ar estava quase tão fresco quanto lá fora. O cômodo havia, obviamente,
sido um quarto, e não fazia muito tempo. Havia um colchão no chão com uma colcha atirada casualmente por cima, da metade para os pés. Estava empoeirado, mas não
havia nada comparável à sujeira impregnada do andar de baixo. De novo, havia um varal no canto. Tinha uma dúzia de cabides vazios, mas os últimos três seguravam
camisas levemente amarrotadas. Mesmo a distância, ela podia ver que não estavam em seu melhor estado, desbotadas nas mangas e nos colarinhos.
Um par de caixotes de tomate funcionava como criados-mudos. Sobre um deles, um toco de vela num pires. Uma edição amarelada do jornal Frankfurter AUgemeine Zeitung
jazia no chão, ao lado do colchão. Bel o apanhou, notando que a data era de menos de quatro meses atrás. Teve então uma ideia de quando o lugar havia sido abandonado
pela última vez. Ela ergueu a manga de uma das camisas e a pressionou contra o nariz. Alecrim e maconha. Suave, mas inconfundível.
Voltou para a varanda e verificou os demais quartos. O padrão era semelhante. Mais três quartos contendo uma porção de restos: algumas camisetas, livros e revistas
em inglês, italiano e alemão, meia garrafa de vinho, um resto de batom, uma sandália de couro cuja sola havia se soltado da parte de cima - o tipo de coisa que alguém
deixaria para trás, caso estivesse se mudando sem a mínima ideia de quem viria em seguida. Em um dos quartos, um buquê de flores enfiado num pote de azeitonas havia
secado a ponto de se desfazer.
O último quarto no lado oeste era o maior, até agora. Suas janelas haviam sido limpas mais recentemente do que as dos outros, as persianas
tinham sido reformadas e as paredes, caiadas. No meio do quarto, no chão, havia uma tela de silk-screen. Sobre mesas de cavaletes, encostadas numa parede, havia
copos plásticos manchados com pigmentos ressecados e pincéis endurecidos de forma negligente. Manchas e borrões espalhados marcavam o piso. Bel estava intrigada,
sua curiosidade superava qualquer vestígio de nervosismo por estar sozinha naquele lugar tão peculiar. Quem quer que houvesse estado ali, devia ter partido apressadamente.
Deixar uma sólida tela de silk-screen para trás não era algo que se fizesse, numa partida planejada.
Ela retornou à varanda e dirigiu-se à ala oposta. Teve o cuidado de permanecer próximo à parede, não confiando que o piso ondulado de tijolos suportasse seu peso.
Passou pelas portas dos quartos, sentindo-se como uma intrusa no Mary Celeste*. Um silêncio que não era quebrado nem mesmo por cantos de pássaros acentuava aquela
impressão. O último cômodo antes do canto era um banheiro cuja mescla nauseante de odores ainda pairava no ar. Um rolo de mangueira estava no chão, uma das extremidades
desaparecia através de um buraco perto da janela. Eles haviam, portanto, improvisado um pouco de água corrente, embora não o suficiente para deixar o vaso sanitário
menos asqueroso. Ela franziu o nariz e retrocedeu.
Bel virou a esquina da varanda no instante em que o sol se elevava acima das árvores, banhando-a num repentino calor. Fez com que sua entrada no último quarto fosse
ainda mais assustadora. Estremecendo com o ar úmido, ela se aventurou lá dentro. As persianas estavam bem fechadas, deixando o interior escuro demais para enxergar
qualquer coisa. Mas, conforme seus olhos se ajustaram, ela obteve uma impressão do quarto. Tinha as mesmas dimensões do estúdio, mas sua função era bem diferente.
Ela o atravessou até a janela mais próxima e forçou até finalmente abrir a persiana pela metade. Era o suficiente para confirmar sua primeira impressão. Aquele havia
sido o centro da ocupação da casa rovina. Havia um velho fogão desgastado, conectado a um botijão de gás, ao lado da pia de pedra. A mesa de jantar estava arranhada
e era de madeira nua, porém sólida, e com pernas lindamente esculpidas. Havia sete cadeiras díspares ao redor, e uma oitava encontrava-se tombada, a alguns metros
de distância. Contra as
* Barco encontrado à deriva, em 1872, no estreito de Gibraltar, cuja tripulação desapareceu. (N.E.)
paredes, uma cadeira de balanço e alguns sofás. Peças avulsas de louça e talheres estavam espalhadas, como se os moradores não se tivessem dado ao trabalho de recolhê-las
de onde haviam deixado.
Quando Bel se afastou da janela, uma mesa bamba chamou sua atenção. Como estava atrás da porta, era fácil não percebê-la. Uma coleção do que pareciam ser pôsteres
se espalhava sobre ela. Fascinada, ela foi em direção à mesa. Dois passos e parou, sua respiração ofegante ecoava no ar poeirento.
Diante dela, no piso de pedra calcária, havia uma mancha irregular, de talvez noventa por quarenta e cinco centímetros. Marrom-ferrugem, bordas arredondadas e lisas,
como se houvesse escorrido e empoçado, em vez de espirrado. Era densa o bastante para obscurecer o piso de pedra sob ela. Uma porção, na extremidade mais distante,
parecia borrada e diluída, como se alguém houvesse tentado limpar, esfregando-a, para logo desistir. Bel já havia feito coberturas de histórias de violência doméstica
e de homicídio sexual o suficiente para reconhecer uma mancha de sangue relevante quando a via.
Assustada, deu um passo atrás, sentia-se tonta, o coração batia com tanta força que achou que fosse sufocá-la. Que diabos havia acontecido ali? Ela olhou em volta
de forma desordenada, percebendo outras manchas escuras marcando o piso além da mesa. Hora de sair daqui, gritava a parte sensata de sua mente. Mas o demônio da
curiosidade sussurrava em seu ouvido. Há meses não há ninguém aqui. Olhe para a poeira. Já faz tempo que se foram. Não vão voltar num futuro próximo. Seja o que
for que tenha acontecido aqui, foi motivo suficiente para que dessem o fora. Dê uma olhada nos pôsteres...
Bel rodeou a mancha, passando o mais longe possível para não tocar em nenhum móvel. De repente, ela sentiu o ar pesado. Sabia que era só imaginação, mas, ainda assim,
parecia real. De costas para o quarto e com o rosto voltado para a porta, ela foi andando de lado até a mesa e olhou para baixo, para os pôsteres que a cobriam.
O segundo choque foi quase tão forte quanto o primeiro.
Bel sabia que estava correndo rápido demais morro acima, mas não podia diminuir o passo. Podia sentir o suor da mão cobrir o papel de boa qualidade do pôster enrolado.
Por fim, a trilha emergiu do meio das árvores e ficou menos traiçoeira, ao aproximar-se de sua villa de férias. A estrada descia
quase imperceptivelmente, mas a gravidade era suficiente para dar a suas pernas cansadas um impulso extra, e ela ainda ia rápido ao virar a curva da casa e encontrar
Lisa Martyn deitada à sombra, no terraço, em uma espreguiçadeira e com a edição de sexta-feira do Guardian como companhia. Bel ficou aliviada. Precisava falar com
alguém e, de todas as suas companheiras, era menos provável que Lisa transformasse suas revelações em fofocas da hora do jantar. Lisa, como advogada de direitos
humanos, cuja compaixão e feminismo pareciam tão inevitáveis quanto o ato de respirar, entenderia o potencial da descoberta que Bel pensava ter feito. Assim como
seu direito de lidar com aquilo do jeito que achasse melhor.
Lisa afastou lentamente os olhos do jornal, perturbada pelo arfar incomum da respiração de Bel.
- Meu Deus - ela disse. - Você parece a ponto de infartar.
Bel colocou o pôster numa cadeira e se curvou, as mãos apoiadas nos joelhos, puxando o ar para dentro dos pulmões, arrependida dos cigarros surrupiados em segredo.
- Ficarei... bem... num minuto.
Lisa se levantou desajeitadamente da espreguiçadeira e correu até a cozinha, voltando com uma toalha e uma garrafa de água. Bel se empertigou, pegou a água e derramou
metade sobre a cabeça, fungando ao inalar um pouco acidentalmente. Então, esfregou a cabeça com a toalha e se deixou cair numa cadeira. Tomou um gole comprido de
água enquanto Lisa voltava para a espreguiçadeira.
- O que aconteceu? - Lisa perguntou. - Você é a corredora mais digna que eu conheço. Nunca vi uma Bel sem fôlego na vida. O que foi que a deixou neste estado?
- Encontrei uma coisa - Bel disse. Seu peito ainda lutava, mas ela conseguiu emitir alguns sopros de fala. - Pelo menos, acho que encontrei. E se estiver
certa, será a história da minha carreira. - Ela estendeu a mão para apanhar o pôster. - Espero que você possa me dizer se perdi completamente a cabeça.
Intrigada, Lisa jogou o jornal no chão e se endireitou.
- Então, o que é... essa coisa que pode ser alguma coisa?
Bel desenrolou o papel grosso, prendendo-o nos cantos com um moedor de pimenta, uma caneca de café e dois cinzeiros sujos. A imagem na folha
A3 era impressionante. Havia sido desenhada para que parecesse uma simples xilogravura em preto e branco, no estilo impressionista alemão. No alto da página, um
homem barbado, com um topete de cabelo duro, se inclinava por cima de uma tela, e suas mãos seguravam cruzes de madeira, das quais pendiam três marionetes. Mas não
eram marionetes comuns. Uma era um esqueleto, a segunda era um bode, e a terceira, uma representação da Morte, com o manto encapuzado e a foice. Havia algo indiscutivelmente
sinistro na imagem. Abaixo, contornada por uma borda negra funesta, havia uma área em branco, de aproximadamente oito centímetros de profundidade. Era o tipo de
espaço onde se poderia colocar um aviso anunciando uma apresentação teatral.
- Puta que me pariu! - disse Lisa. Finalmente, ela ergueu os olhos. - Catriona Maclennan Grant - ela disse. Havia espanto em sua voz. - Bel... onde diabos
você encontrou isto?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Bel sorriu.
- Antes de responder a isso, quero deixar algumas coisas claras.
Susan Charleson revirou os olhos.
- Você não pode estar achando que é a primeira pessoa que passa por esta porta com uma cópia falsificada do pôster de resgate. Vou lhe dizer o mesmo que disse
a todos os outros. A recompensa está condicionada à localização do neto de Sir Broderick vivo, ou à demonstração, de forma conclusiva, de que ele esteja morto. Sem
falar em levar os assassinos de Catriona Maclennan Grant à Justiça.
- Você não está me entendendo - Bel disse, com um sorriso provocador, mas sem ceder um só milímetro. - Srta. Charleson, não estou nem um pouco interessada
no dinheiro de Sir Broderick. Mas tenho uma condição.
- Você está cometendo um erro. - A voz de Susan Charleson havia adquirido um toque ácido. - Este assunto é um caso policial. Você não está em posição de impor
condições.
Bel colocou a mão firmemente sobre o pôster.
- Posso sair agora mesmo por aquela porta com este pôster e esquecer que o vi. Não teria qualquer dificuldade em mentir para a polícia. Sou uma
jornalista, afinal. - Ela estava começando a se divertir muito mais do que havia previsto. - É a sua palavra contra a minha, Srta. Charleson. E eu sei que você não
quer que eu vá embora. Uma das habilidades que um jornalista bem-sucedido deve aprender é como ler as pessoas. E vi a forma como você reagiu ao olhar para isto.
Você sabe que é verdadeiro, e não uma cópia falsificada.
- Você tem uma postura bem agressiva - Susan Charleson parecia quase indiferente.
- Prefiro dizer que sou assertiva. Não vim aqui para discutir com você, Srta. Charleson. Quero ajudar. Mas não de graça. Pela minha experiência, os ricos
não dão valor a nada daquilo por que não tenham de pagar.
- Você disse que não estava interessada em dinheiro.
- É verdade. Não estou. No entanto, estou interessada em reputação. E a minha reputação está construída sobre o fato de não ser, simplesmente, a primeira
a aparecer com a história, mas em obter a história por trás da história. Acho que existem áreas em que posso ajudar a desvendar isso com mais eficácia do que os
canais oficiais. Tenho certeza de que você irá concordar, quando eu explicar de onde veio este pôster. Tudo o que peço é que você não me impeça de investigar o caso.
E, além disso, que você e seu chefe cooperem compartilhando informações sobre o que estava acontecendo na época em que Catriona foi sequestrada.
- Esse é um pedido bastante significativo. Sir Broderick não é um homem que aceite abrir mão facilmente de sua privacidade. Você há de convir que não tenho
autoridade para lhe garantir o que está pedindo.
Bel ergueu um ombro delicadamente.
- Então, podemos nos encontrar novamente quando você tiver uma resposta. - Ela deslizou o pôster pela mesa, abrindo a pasta para guardá-lo novamente.
Susan Charleson se levantou.
- Se você puder me dar alguns minutos, pode ser que eu consiga lhe dar uma resposta agora.
Bel soube, neste ponto, que havia ganhado. Susan Charleson queria demais aquilo. Ela convenceria o chefe a aceitar o acordo. Fazia anos que Bel não se sentia tão
excitada. Não significava simplesmente uma enxurrada de notícias e colunas jornalísticas, embora não houvesse um só jornal no
mundo que não fosse ficar interessado. Principalmente depois do caso Madeleine McCain. Com acesso ao misterioso Brodie Grant, mais a chance de descobrir o paradeiro
de seu neto, aquilo era um best-seller em potencial. O A Sangue Frio do novo milênio. Seria sua porta de entrada para o mundo do dinheiro fácil.
Bel sorriu. Talvez ela pudesse usar os ganhos na compra da casa ravina e assim completar o círculo. Era difícil imaginar algo mais perfeito.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Já fazia alguns anos desde a última vez que Karen tomara a estrada de mão única que conduzia a Newton of Wemyss. Mas era óbvio que o vilarejo tinha passado pelas
mesmas transformações que as vilas vizinhas, que margeavam a estrada principal. Aqueles que trabalhavam nas cidades próximas tinham atacado avidamente as quatro
vilas de Wemyss, enxergando possíveis casas rústicas no que um dia foram tristes casebres de mineiros. Cabanas de um quarto tinham sido demolidas para que se construíssem
amplas casas de campo, quintais transformados por estufas de plantas que enchiam de luz as cozinhas obscuras. Vilarejos que tinham fenecido e morrido após o desastre
na mina Michael, em 1967, e devido aos fechamentos que se seguiram à greve de 1984, haviam renascido como cidades-dormitório, cuja ideia de comunidade se restringia
às noites de jogos no pub local. Nas lojinhas da vila se podia comprar uma vela perfumada, mas não um litro de leite. A única forma de saber que já houvera uma comunidade
mineira ali era através de uma maquete do sistema de elevador do poço da mina, que se erguia sobre o ponto em que a ferrovia particular a vapor havia, no passado,
cruzado com a estrada principal, carregada com vagões abertos de carvão destinados ao fim da linha, em Thomton Junction. Agora, as casas caiadas dos mineiros pareciam
uma opção deliberada do arquiteto, como uma vila típica deveria parecer. O passado tinha sido superado por um presente de design.
Desde sua última visita, Newton of Wemyss havia melhorado muito. O modesto memorial de guerra ficava num triângulo de grama aparada no centro. Floreiros de madeira
o circulavam a intervalos perfeitos. Imaculadas casas de campo térreas bordejavam o parque da cidade, e a única exceção à baixa linha de construção era o imponente
volume do pub local, o Laird
o' Wemyss. Antigamente, havia sido propriedade coletiva da comunidade local sob o sistema Gothenburg*, mas os tempos difíceis nos anos oitenta o haviam obrigado
a fechar as portas. Agora, era um restaurante, e sua "cozinha de fusão escocesa" era capaz de atrair à cidade visitantes de lugares tão remotos quanto Dundee e Edimburgo,
e seus preços se elevavam bem acima do orçamento. Ela se perguntou quanto Mick Prentice teria de se deslocar para uma simples cerveja, se houvesse permanecido em
Newton.
Consultou as orientações que havia imprimido do site Mapquest e indicou uma estrada no ápice do triângulo a seu motorista, o detetive Jason "Novo em Folha" Murray.
- Você tem que descer esta rua aqui - ela disse. - Em direção ao mar. Onde ficava a mina.
Logo deixaram o centro da vila para trás. Arbustos desgrenhados bordejavam um exuberante campo de trigo verde à direita.
- Toda essa chuva, está fazendo tudo crescer de forma desenfreada - disse o Novo em Folha. Ele levara os 25 minutos do escritório até ali para produzir aquele
comentário.
Karen não estava interessada em conversar sobre o clima. O que havia para dizer? Tinha chovido o maldito verão inteiro, até agora. Só porque não estava chovendo
naquele exato instante, não significava que não choveria no fim do dia. Ela olhou à sua esquerda, onde os prédios da mina de carvão haviam estado. Tinha uma vaga
lembrança de haver escritórios, banheiros e uma cantina. Agora, tudo se reduzia ao alicerce de concreto, com o mato abrindo caminho entre as rachaduras irregulares
para reivindicar o terreno. Mais adiante, havia uma série de casebres intactos dos mineiros; oito casas deterioradas, no meio do nada devido à demolição dos prédios
que um dia deram razão à sua existência. Além delas havia um denso grupo de sicômoros e faias, um compacto quebra-vento entre as casas e a borda do penhasco, que
descia nove metros até a faixa costeira.
- Era ali que ficava a Lady Charlotte - ela disse.
- Hã? - o Novo em Folha pareceu espantado.
- A mina, Jason.
- Ah. Certo. Claro. Não é do meu tempo. - Ele espiou pelo para-brisa, fazendo-a se perguntar, com certa irritação, se ele precisaria de óculos. - Qual é a
casa, chefe?
* Aplicava-se ao controle do consumo e da comercialização de bebidas alcoólicas. (N.E.)
Ela apontou para a penúltima. O Novo em Folha desviou o carro dos buracos com tanto cuidado quanto se fosse seu e parou no final da rua de Jenny Prentice.
Apesar do telefonema de Karen marcando o encontro, Jenny não teve pressa em abrir a porta, o que deu a eles tempo suficiente para examinar as lajotas de concreto
rachadas e a deprimente entrada de cascalhos cheia de mato.
- Se esta casa fosse minha... - começou o Novo em Folha e, então, abandonou o pensamento, como se fosse algo grande demais para considerar.
A mulher que atendeu à porta tinha o ar de alguém que passava seus dias deitada para que a vida pudesse pisoteá-la mais facilmente. Seu cabelo escorrido e grisalho
estava preso atrás com descuido, mechas escapando dos dois lados. A pele era enrugada, com veias irregulares mapeando as bochechas. Usava um jaleco de náilon que
vinha até o meio das coxas, por cima de uma calça preta barata cujo tecido estava repleto de bolinhas. O jaleco era de um tom de lavanda impossível de se encontrar
na natureza. Os pais de Karen ainda viviam em uma rua habitada por ex-mineiros e suas famílias, na ultrapassada cidade de Methil, mas até o mais desequilibrado de
seus vizinhos teria tido um pouco mais de trabalho com a aparência, ao saber que receberia uma visita oficial. Karen nem tentou não julgar Jenny Prentice pela aparência.
- Bom dia, Sra. Prentice - ela disse energicamente. - Sou a inspetora Pirie. Conversamos pelo telefone. Este é o detetive Murray.
Jenny balançou a cabeça e fungou.
- É melhor vocês entrarem.
A sala era apertada, mas limpa. Os móveis, assim como o carpete, estavam fora de moda, mas nem um pouco surrados. Era uma sala para ocasiões especiais, pensou Karen,
em uma vida na qual não havia muitas.
Jenny acenou para que eles se sentassem no sofá e se postou na beirada da poltrona, no lado oposto. Estava claro que não lhes ofereceria nada para beber.
- Então, vocês estão aqui por causa da nossa Misha. Pensei que tivessem mais o que fazer, com todas essas coisas horríveis que sempre leio nos jornais.
- Um marido e um pai desaparecido é algo bastante horrível, a senhora não acha? - disse Karen.
Os lábios de Jenny se apertaram, como se ela sentisse a queimação de uma azia.
- Depende do homem, inspetora. O tipo de cara com quem a senhora costuma se deparar no seu trabalho... não creio que muitas esposas e filhos se incomodem,
quando eles são levados embora.
- A senhora ficaria surpresa. A maioria das famílias fica inconsolável. E pelo menos elas sabem onde o homem delas está. Não precisam viver com a incerteza.
- Não pensei que estivesse vivendo com a incerteza. Achava que sabia muito bem onde Mick estava, até que a nossa Misha começasse a fuçar por aí tentando encontrá-lo.
Karen assentiu.
- A senhora achava que ele estivesse em Nottingham.
- Isso. Achava que ele tivesse ido furar greve. Para ser sincera, não fiquei muito chateada de vê-lo pelas costas. Mas fiquei furiosa por ele ter colocado
aquele rótulo na gente. Preferiria que ele estivesse morto a que fosse um fura-greve, se é o que você quer saber. - Ela apontou para Karen.
- Você fala com sotaque da região. Deve saber como é ficar marcada desse jeito.
Karen assentiu.
- Pior então é saber agora que parece que ele não furou greve nenhuma.
Jenny desviou o olhar.
- Não sei de nada disso. Tudo que sei é que ele não foi para Nottingham naquela noite com aquele grupo de fura-greves.
- Bem, estamos aqui para desvendar o que realmente aconteceu. Meu colega fará algumas anotações, apenas para garantir que eu me lembre direitinho de tudo
o que a senhora me disser. - O Novo em Folha, apressadamente, pegou o caderno, folheando-o com nervosismo. Talvez Phil estivesse certo a respeito das deficiências
dele, pensou Karen. - Agora, preciso do nome completo dele e sua data de nascimento.
- Michael James Prentice. Nascido em 20 de janeiro de 1955.
- E vocês todos moravam aqui na época? A senhora, Michael e Misha?
- Isso. Morei aqui durante toda a minha vida de casada. Nunca tive escolha quanto a isso.
- A senhora tem uma foto de Mick que possa nos dar? Sei que já faz muito tempo, mas poderia ser útil.
- Vocês podem colocar no computador e envelhecer, não podem? - Jenny foi até um aparador e abriu uma gaveta.
- Às vezes, é possível. - Mas caro demais, a não ser que houvesse um motivo mais urgente que a leucemia do seu neto.
Jenny pegou um álbum de couro preto e o trouxe até a poltrona. Quando o abriu, a capa rangeu. Mesmo de cabeça para baixo e do outro lado da sala, Karen podia ver
que era um álbum de casamento. Jenny rapidamente passou pelas fotos formais de casamento até chegar a um envelope na parte de trás, repleto de fotografias avulsas.
Pegou um maço de fotos e as examinou. Parou em algumas e, então, finalmente optou por uma. Entregou a Karen uma fotografia retangular. Mostrava a cabeça e os ombros
de dois jovens, sorrindo para a câmera, o topo dos copos de cerveja aparecendo na imagem ao brindarem o fotógrafo.
- Este é o Mick, à esquerda - disse Jenny. - O bonitão.
Ela não estava mentindo. Mick Prentice tinha cabelo louro-escuro despenteado, cortado mais ou menos como o mullet que George Michael ostentara em sua fase com o
Wham. Mick tinha olhos azuis, cílios ridiculamente longos e um sorriso perigoso. Uma tatuagem de carvão, em forma de foice, atravessava sua sobrancelha direita,
impedindo-o de parecer bonito demais. Karen podia ver exatamente por que Jenny Prentice havia se apaixonado pelo marido.
- Obrigada - ela disse. - Quem é o outro cara?
Um tufo áspero de cabelo castanho, rosto comprido e ossudo, algumas cicatrizes de acne esburacando as bochechas fundas, olhos vivos e um sorriso triangular, como
o do Coringa dos quadrinhos do Batman. Não era bonito como seu companheiro, mas, mesmo assim, havia algo de sedutor nele.
- Seu melhor amigo. Andy Kerr.
O melhor amigo que se matou, segundo Misha.
- Misha me contou que seu marido desapareceu na sexta-feira, 14 de dezembro de 1984. É essa sua lembrança?
- Isso mesmo. Ele saiu de manhã com suas malditas tintas e disse que voltaria para o jantar. Foi a última vez que o vi.
- Tintas? Ele estava fazendo trabalhos extras?
Jenny emitiu um som de desdém.
- Até parece. Bem que precisávamos do dinheiro. Que nada, Mick pintava aquarelas. Pode acreditar? Dá para imaginar uma coisa mais inútil durante a greve de
1984 do que um mineiro pintando aquarelas?
- Ele não poderia vendê-las? - intrometeu-se o Novo em Folha, inclinando-se para a frente e parecendo perspicaz.
- Para quem? Todo mundo aqui estava duro e não havia dinheiro para que ele se arriscasse a tentar ir vender em outro lugar. - Jenny indicou a parede atrás
deles. - Ele teria tido sorte se conseguisse algumas libras por peça.
Karen se virou e olhou para as três pinturas pobremente emolduradas na parede. West Wemyss, Macduff Castle e a Lady's Rock. A seus olhos leigos, as pinturas pareciam
vívidas e expressivas. Ela as teria levado para casa, embora não soubesse quanto estaria disposta a pagar pelo privilégio, nos idos de 1984.
- Como foi que ele começou com isso? - Karen perguntou, virando-se para Jenny.
- Ele fez um curso no Serviço Social dos Mineiros, no ano em que Misha nasceu. A professora disse que ele tinha jeito para aquilo. Acho que ela dizia a mesma
coisa para qualquer um que fosse bonitinho.
- Mas ele deu continuidade?
- Permitia a ele sair de casa. Ficar longe das fraldas sujas e do barulho.
A amargura parecia emanar de Jenny Prentice em ondas. Era curioso, embora animador, que parecesse não ter contaminado a filha. Talvez aquilo tivesse alguma coisa
a ver com o padrasto de quem ela havia falado. Karen lembrou a si mesma de perguntar sobre o outro homem da vida de Jenny, que também parecia fazer-se notar pela
ausência.
- Ele pintou muito, durante a greve?
- Todo dia ele saía com sua sacola e o cavalete. Se estivesse chovendo, ele descia às cavernas com seus companheiros da Sociedade de Preservação.
- A senhora se refere às cavernas de Wemyss?
Karen conhecia as cavernas que retrocediam a partir da costa, afundando-se nos penhascos de pedra calcária entre East Wemyss e Buckhaven. Ela havia brincado ali
algumas vezes, quando criança, inconsciente de sua
importância histórica como um dos principais sítios pictos. As crianças locais as haviam tratado como áreas de diversão, uma das razões pelas quais se havia estabelecido
a Sociedade de Preservação. Agora, havia grades fechando as seções mais profundas e perigosas da rede de salões das cavernas, e historiadores e arqueólogos amadores
as haviam preservado como parque de diversões para adultos.
- Mick estava envolvido com as cavernas?
- Mick estava envolvido em tudo. Ele jogava futebol, pintava seus quadros, fuçava nas cavernas, estava metido até os dentes no sindicato. Tudo e qualquer
coisa era mais importante do que passar tempo com sua família.
- Jenny cruzou uma perna por cima da outra e os braços sobre o peito. - Ele dizia que isso o mantinha mentalmente são durante a greve. Acho que simplesmente
o mantinha longe de suas responsabilidades.
Karen sabia que aquele era um solo fértil para suas investigações, mas podia se dar ao luxo de deixar para mais tarde. A raiva reprimida de Jenny permanecia após
vinte e dois anos. Não iria a lugar algum. Havia algo muito mais imediato que a interessava.
- Então, durante a greve, onde Mick conseguia dinheiro para as tintas? Não conheço muito de arte, porém sei que papel e tintas adequados custam uma grana.
Ela não podia imaginar um mineiro em greve gastando com materiais artísticos quando não havia dinheiro para comida nem aquecimento.
- Não quero deixar ninguém em apuros - ela disse.
Sei.
- Foi há vinte e dois anos - Karen disse sem rodeios. - Não estou interessada em contrabando em pequena escala da época da greve dos mineiros.
- Um dos professores de arte da escola secundária vivia lá em Coaltown. Era um carinha bem esquisito. Uma perna mais curta que a outra e corcunda. Mick costumava
limpar o jardim para ele. O cara o pagava com tintas. - Ela deu uma fungada. - Perguntei se ele não podia pagar com dinheiro ou comida. Mas parece que o cara estava
dando todo o seu salário para a ex-mulher. As tintas ele podia surrupiar da escola. - Ela cruzou novamente os braços. - De qualquer jeito, ele já morreu.
Karen tentou afastar a sua aversão pela mulher, tão diferente da filha que a havia seduzido a entrar no caso.
- Então, como estavam as coisas entre vocês antes de Mick desaparecer?
- Eu culpo a greve. Tudo bem, nós tínhamos nossos altos e baixos. Mas foi a greve que colocou uma barreira entre nós. E não sou a única mulher nesta parte
do mundo que diz isso.
Karen sabia que aquilo era verdade. Naquela época, as terríveis privações da greve haviam deixado suas marcas em praticamente todo casal que ela conhecia. A violência
doméstica havia irrompido nos lugares mais improváveis; os índices de suicídio aumentaram; casamentos haviam se despedaçado diante da pobreza implacável. Ela não
compreendera isso na época, mas agora sim.
- Pode ser. Mas cada um tem uma história diferente. Eu gostaria de ouvir a sua.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
- Volto para o jantar - disse Mick Prentice, pendurando a grande bolsa de pano atravessada no corpo e pegando o pacote estreito com o cavalete dobrado.
- Jantar? Que jantar? Não tem nada nesta casa para comer. Você precisa sair para arranjar comida para sua família, não para pintar o maldito mar pela enésima
vez -Jenny gritou, tentando obrigá-lo a parar a caminho da porta.
Ele se virou, o rosto magro contorcido pela vergonha e pela dor.
- Você acha que não sei disso? Você acha que somos os únicos? Você acha que se eu tivesse alguma ideia de como melhorar as coisas, eu não estaria fazendo?
Ninguém tem porra nenhuma de comida. Ninguém tem porra nenhuma de dinheiro. - Sua voz entalou na garganta como um soluço. Ele fechou os olhos e respirou fundo. -
Ontem à noite, lá no Serviço Social, Sam Thomson disse que falaram de uma entrega de comida, vinda da Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas. Se você
for até lá, parece que vai chegar às duas horas. - Estava tão frio na cozinha que suas palavras formavam uma nuvem diante dos lábios.
- Mais esmolas. Não consigo me lembrar da última vez que, de fato, escolhi o que iria preparar para o jantar. - Jenny, repentinamente, se
sentou em uma das cadeiras da cozinha. Ergueu os olhos para ele. - Será que algum dia vamos superar isso?
- Só temos que aguentar mais um pouco. Já chegamos até aqui. Podemos vencer. - Ele parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a ela.
- Eles estão voltando a trabalhar, Mick. O tempo todo, estão voltando. Deu no noticiário na outra noite. Mais de um quarto das minas voltou a funcionar. Seja
o que for que digam Arthur Scargill e o resto da diretoria do sindicato, não há forma de ganharmos. É só uma questão de quanto aquela vaca da Thatcher nos fará perder.
Ele balançou a cabeça com veemência.
- Não diga isso, Jenny. Só há alguns focos lá no sul em que os mineiros cederam. Aqui no norte, estamos firmes como rochas. Em Yorkshire também. E em Gales
do Sul. E nós somos quem realmente importa.
Suas palavras soaram vazias e não havia convicção em seu rosto. Todos eles, pensou ela, estavam derrotados. Apenas não sabiam quando cair ao chão.
- Se você diz... - ela murmurou, virando-se.
Esperou até ouvir a porta se fechar atrás dele e, então, levantou-se lentamente e vestiu o casaco. Apanhou uma bolsa de plástico resistente e deixou o frio congelante
da cozinha para sair para o frio úmido da manhã. Essa era sua rotina, atualmente. Levantar-se e levar Misha à escola. No portão da escola, a pequena receberia uma
maçã ou uma laranja, um saco de batatas fritas e um biscoito de chocolate da associação Amigos de Lady Charlotte, um grupo desorganizado de estudantes e funcionários
públicos de Kirkcaldy, que garantiam que nenhuma criança começasse o dia de estômago vazio. Pelo menos os dias úteis.
E então, voltava para casa. Eles já haviam desistido de tomar leite junto com o chá, quando tinham chá. Em algumas manhãs, uma xícara de água quente era tudo o que
Mick e Jenny tinham para começar o dia. Aquilo não havia acontecido com frequência, mas uma só vez já era suficiente para lembrar como era fácil cair no abismo.
Depois de uma bebida quente, Jenny geralmente ia com a sacola até o bosque e tentava catar lenha suficiente para garantir algumas horas de calor à noite. Entre os
membros executivos do sindicato, sempre os chamando de
"camaradas", e a coleta de lenha, ela se sentia uma camponesa da Sibéria. Pelo menos eles tinham a sorte de viver perto de uma fonte de combustível. Ela sabia que
era muito mais difícil para outras pessoas. Tiveram a sorte de manter a lareira, graças ao benefício do carvão barato para os mineiros.
Ela cumpria aquela tarefa de forma mecânica, sem prestar muita atenção aos arredores, relembrando a última discussão entre ela e Mick. Às vezes, parecia que era
só a dificuldade que os mantinha unidos, só a necessidade de calor que os mantinha na mesma cama. A greve tinha aproximado alguns casais, mas muitos outros haviam
se separado como uma tora de madeira sob o fio do machado, após os primeiros meses, quando suas reservas de dinheiro se esgotaram.
Não havia sido tão ruim no começo. Desde a última onda de greves nos anos setenta, os mineiros tinham ganhado bastante dinheiro. Eles eram os reis do movimento sindicalista:
bem remunerados, organizados e confiantes. Afinal, haviam derrubado o governo de Ted Heath, na época. Eram intocáveis. E tinham dinheiro para provar.
Alguns haviam gastado até o último centavo: férias no exterior em que podiam expor ao sol a pele branca como leite e as tatuagens de carvão, carros exuberantes com
rádios caros, casas novas que pareciam ótimas quando eles se mudaram, mas que começaram a se deteriorar quase que imediatamente. Mas a maioria deles, cautelosa devido
à história passada, havia guardado um pouco do dinheiro. O bastante para cobrir o aluguel ou a hipoteca, o bastante para alimentar a família e pagar as contas de
combustíveis durante alguns meses. Foi a velocidade com que aquelas parcas economias desapareceram que os deixou aterrorizados. No início, o sindicato pagara salários
decentes aos homens que se amontoassem em carros, vans e microônibus para se unir a piquetes móveis, nas minas em funcionamento, usinas e plantas de coqueificação.
Mas a polícia tornara-se cada vez mais opressora para garantir que os grevistas itinerantes nunca chegassem ao destino, e não havia muito entusiasmo em pagar homens
para não atingir os objetivos. Além disso, nesses dias, os líderes sindicais estavam ocupados demais tentando esconder seus milhões dos confiscadores do governo
para se importar em desperdiçar dinheiro numa briga que deviam saber que estava fadada ao fracasso. Portanto, até mesmo aquela pequena fonte de renda havia se esgotado,
e a única coisa que as comunidades mineiras tinham para engolir era seu orgulho.
Jenny já havia engolido muito do seu durante os últimos nove meses. Havia começado logo de cara, quando ela ouvira que os mineiros escoceses iriam apoiar a região
carbonífera de Yorkshire na convocação de uma greve nacional, não da boca de Mick, mas de Arthur Scargill, presidente do Sindicato Nacional dos Mineradores. Não
pessoalmente, claro. Apenas sua conversa mole no noticiário da TV. Em vez de voltar direto da reunião no Serviço Social dos Mineiros para lhe contar, Mick havia
ficado com Andy e os outros colegas do sindicato, bebendo no bar como se dinheiro não fosse problema. Comemorando com a forma consagrada no grito de batalha do Rei
Arthur: Mineiros unidos jamais serão vencidos.
Desde o começo, as esposas sabiam bem que tudo aquilo era inútil. Uma greve de carvão deve ser feita no começo do inverno, quando a procura, por parte das usinas
elétricas, está no auge. Não na primavera, quando todos começam a desligar a calefação. E quando se parte para uma intensa ação industrial contra uma vaca como Margaret
Thatcher, deve-se proteger a retaguarda. Devem-se cumprir as leis trabalhistas. Devem-se cumprir suas próprias regras. Estipula-se uma eleição nacional. Não se deve
confiar numa interpretação dúbia de uma resolução aprovada três anos antes para um propósito distinto. Ah, sim, as esposas souberam que não daria em nada. Mas haviam
ficado de boca fechada e, pela primeira vez na vida, haviam formado sua própria organização para apoiar seus homens. Lealdade - era isso que contava nas vilas e
nas comunidades mineradoras.
E, portanto, Mick e Jenny ainda estavam juntos. Jenny às vezes se perguntava se a única razão pela qual Mick ainda estava com ela e Misha era porque não tinha aonde
ir. Pais falecidos, nenhum irmão ou irmã, não havia nenhum refúgio óbvio para ele. Ela havia lhe perguntado, uma vez, e ele ficara imóvel como uma estátua, por um
momento. Então, caçoara dela, negando que quisesse ir embora, lembrando-a de que Andy sempre o acolheria em seu sítio, se ele quisesse se afastar. Portanto, não
havia motivo para que ela imaginasse que aquela sexta-feira seria diferente de qualquer outra.
Quinta-feira; 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Então, aquela não foi a primeira vez que ele saiu com suas tintas para passar o dia fora? - perguntou Karen. O que quer que estivesse passando
pela cabeça de Jenny Prentice, claramente era muito mais que os fatos básicos que ela estava entregando.
- Quatro ou cinco vezes por semana.
- E a senhora? O que fazia no resto do dia?
- Ia até o bosque buscar gravetos, então voltava e assistia ao noticiário na TV. Foi um dia bastante especial, aquela sexta-feira. O Rei Arthur estava no
tribunal por obstrução da polícia, na Batalha de Orgreave. O Band Aid* chegou ao topo da parada de sucesso. Te digo uma coisa, eu poderia cuspir na cara deles. Todo
aquele esforço para arrecadar dinheiro para crianças a milhares de quilômetros, enquanto havia crianças famintas bem na porta deles. Onde estavam Bono e Bob Geldof,
quando nossos filhos despertaram na manhã de Natal e não havia nada em suas meias?
- Deve ter sido duro de encarar - Karen comentou.
- Foi como um tapa na cara. Não havia nenhum glamour em ajudar os mineiros, havia? - Um sorrisinho amargo iluminou seu rosto. - Mas poderia ter sido pior.
Poderíamos ter sido obrigados a aturar aquele merda hipócrita do Sting. Sem falar naquele maldito alaúde dele.
- Isso é verdade. - Karen estava se divertindo, dava para ver. Rir da própria desgraça era uma constante naquelas comunidades mineradoras. - E então, o que
a senhora fez depois do noticiário?
- Desci até o Serviço Social. Mick tinha falado alguma coisa sobre uma distribuição de comida. Entrei na fila e voltei para casa com um pacote de macarrão,
uma lata de tomates e duas cebolas. E um pacote de sopa desidratada. Lembro que fiquei bastante satisfeita. Peguei Misha na escola e achei que decorar a casa para
o Natal poderia nos animar um pouco, então, foi isso que fizemos.
- Quando a senhora percebeu que já era tarde para que Mick voltasse para casa?
Jenny fez uma pausa, a mão remexendo num botão do jaleco.
- Naquela época do ano, fica escuro cedo. Geralmente, ele voltaria não muito depois de mim e Misha. Mas como ficamos montando os enfeites de Natal, não percebi
o tempo passar.
Ela estava mentindo, Karen pensou. Mas por quê? E sobre o quê?
* Grupo criado por Bob Geldof, em 1984, que reuniu os mais conhecidos artistas do Reino Unido com a finalidade de arrecadar fundos para combater a fome na
Etiópia. A música-tema era "Do they know it's Christmas" (N.T.)
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Jenny tinha sido uma das primeiras na fila do Serviço Social dos Mineradores e havia voltado rapidamente para casa com sua lamentável comida, determinada a cozinhar
uma panela de sopa para que tivessem alguma coisa saborosa para o jantar. Ela contornou o prédio dos banheiros da mina, notando que todas as casas dos vizinhos estavam
no escuro. Naqueles dias, ninguém deixava uma luz acesa acolhedora quando saía. Cada centavo contava, quando chegavam as contas de combustível.
Quando ela chegou ao portão de sua casa, quase morreu de susto. Uma figura indefinida saiu da escuridão, parecendo agigantar-se na sua imaginação. Ela emitiu um
ruído que era em parte ofego, em parte gemido.
- Jenny, Jenny, acalme-se. Sou eu. Tom. Tom Campbell. Me desculpe, não quis te assustar. - A figura tomou forma, e ela reconheceu o homenzarrão, próximo à
porta da frente.
- Cristo, Tom, você quase me matou de susto - ela reclamou, passando por ele e abrindo a porta. Ciente do frio assombroso na casa, ela seguiu até a cozinha.
Sem hesitação, encheu a panela de água e a colocou no fogão, o anel de gás emitia um pouco de calor. Então, ela se virou para encará-lo na penumbra da luz da tarde.
- Como você está?
Tom Campbell ergueu os grandes ombros e deu um sorriso desanimado.
- Mais ou menos - ele disse. - É irônico. A única vez na vida em que realmente preciso dos meus amigos e acontece esta greve.
- Pelo menos você tem a mim e a Mick - Jenny disse, indicando-lhe uma cadeira.
- Bem, tenho a você, de qualquer jeito. Não acho que esteja na lista de cartões de Natal do Mick, supondo que alguém envie cartões este ano. Não depois de
outubro. Ele não falou mais comigo, desde então.
- Isso passa - ela disse, sem um pingo de convicção.
Mick sempre tivera certas reservas no que se referia à extensão da amizade escolar entre Jenny e a esposa de Tom, Moira. As mulheres eram amigas desde sempre, e
Moira fora dama de honra no casamento de Jenny e Mick. Quando chegou a vez de retribuir o favor, Jenny estava grávida de Misha. Mick havia ressaltado que seu aumento
de peso era a desculpa perfeita para recusar o convite de Moira, já que o vestido de dama de honra
tinha de ser comprado com antecedência. Não era uma sugestão, e sim uma ordem. Isso porque embora Tom Campbell fosse, sem dúvida alguma, um homem decente, bem-apessoado
e honesto, ele não era mineiro. Verdade, ele trabalhava na Lady Charlotte. Descia até a mina no subsolo, naquela gaiola de revirar o estômago. Às vezes, até mesmo
sujava as mãos. Mas não era mineiro. Era um auxiliar de minas. Membro de um sindicato diferente. Um homem da administração, que estava ali para verificar o cumprimento
das regras de saúde e segurança, e que os rapazes fizessem o que deviam fazer. Os mineiros tinham um termo para se referir à parte mais fácil de qualquer tarefa:
"a parte do auxiliar". Parecia bastante inocente, mas num ambiente em que cada membro do grupo sabia que sua vida dependia dos colegas, aquilo expressava um desdém
enorme. E, portanto, Mick Prentice sempre tivera certa reserva no que se referia à sua relação com Tom Campbell.
Ele havia se ofendido com os convites para jantar em sua casa afastada em West Wemyss. Desconfiava dos convites de Tom para que fosse jogar futebol com ele. Tinha
até mesmo se ressentido das horas que Jenny passara ao lado da cama de Moira, durante sua morte pouco digna, porém rápida, de câncer, alguns anos atrás. E, quando
o sindicato de Tom havia hesitado e ficado indeciso com relação a se unir à greve, alguns meses antes, Mick se enfurecera como uma criança mimada, quando eles finalmente
se colocaram do lado dos patrões.
Jenny desconfiava que parte do motivo de sua raiva era a bondade que Tom havia lhes demonstrado desde que a greve começara a afetá-los. Ele criara o hábito de passar
por sua casa com presentinhos: uma sacola de maçãs, um saco de batatas, um brinquedo de pelúcia para Misha. Sempre vinham acompanhados de desculpas plausíveis: a
árvore do vizinho estava carregada, vieram mais batatas na sua porção do que ele iria precisar, um prêmio ganho na rifa do clube de boliche. Mick sempre reclamava
depois.
- Idiota condescendente - ele dizia.
- Ele está tentando ajudar sem nos envergonhar - Jenny respondia.
Tampouco era ruim o fato de que a presença de Tom sempre a fazia se lembrar de tempos mais felizes. De alguma forma, quando ele estava ali, ela tinha novamente a
sensação de novas possibilidades. Ela via a si mesma refletida em seus olhos, como se fosse uma mulher jovem, uma mulher que tinha ambições de uma vida diferente.
Então, embora soubesse que irritaria Mick, Jenny ficava feliz quando Tom se sentava em sua cozinha e conversava com ela.
Ele tirou um pacote meio mole, mas pesado, do bolso.
- Você aproveitaria uns gramas extras de toucinho? - ele disse, a sobrancelha se franzindo de ansiedade. - Minha cunhada trouxe da fazenda de sua família
na Irlanda. Mas é defumado, sabe, e eu não consigo comer toucinho defumado. Tenho aversão. Então pensei que, melhor do que jogar fora... - Ele o entregou a ela.
Jenny pegou o pacote sem hesitar um só segundo. Suspirou desanimada.
- Olhe só para mim. Meu coração disparou por causa de um pedaço de toucinho. Foi isso que Margaret Thatcher e Arthur Scargill conseguiram fazer com a gente.
- Ela balançou a cabeça. - Obrigada, Tom. Você é um bom homem.
Ele desviou o olhar, incerto do que falar ou fazer. Seus olhos se fixaram no relógio.
- Você não tem que ir buscar a menina? Me desculpe, nem me liguei na hora, quando estava te esperando. Só queria... - ele se levantou, o rosto enrubescido.
- Volto depois.
Ela ouviu suas botas tropeçarem no corredor e, então, o ruído do trinco. Jogou o toucinho sobre a pia e desligou o fogo da panela de água. Agora, seria uma sopa
diferente.
Moira sempre tinha sido a sortuda.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Os olhos de Jenny voltaram da distância e se fixaram em Karen.
- Imagino que fossem umas sete horas, quando percebi que Mick não havia voltado para casa. Eu estava furiosa, porque tinha conseguido um jantar razoável para
pôr na mesa. Então, coloquei a pequena na cama, pedi à vizinha para cuidar dela para que eu pudesse correr até o Serviço e ver se Mick estava lá. - Ela balançou
a cabeça, ainda surpresa após tantos anos.
- E, é claro, ele não estava.
- Alguém o havia visto?
- Aparentemente, não.
- A senhora deve ter ficado preocupada - disse Karen.
Jenny ergueu um ombro.
- Não muito. Como eu disse, nós não tínhamos nos despedido no melhor dos ânimos. Simplesmente pensei que ele tivesse ficado irritado e ido para a casa do
Andy.
- O cara da foto?
- Isso. Andy Kerr. Era funcionário do sindicato. Mas estava de licença médica do trabalho. Estresse, disseram. E estavam certos. Ele se matou um mês depois.
Sempre achei que o fato de Mick decidir furar a greve foi a última gota para Andy. Ele idolatrava Mick. Aquilo teria acabado com ele.
- Então foi lá que a senhora deduziu que ele estivesse? - Karen a provocou.
- Isso mesmo. Andy tinha um sítio no bosque, no meio do nada. Ele dizia que gostava da paz e do silêncio. Mick me levou lá uma vez. Me deu arrepios. Era como
a casa da bruxa de um dos contos de fada de Misha; não se via a casa até que, de repente, você dava de cara com ela, bem na sua frente. Eu é que não moraria lá.
- A senhora não podia ter telefonado para confirmar? - intrometeu-se o Novo em Folha. As duas mulheres olharam para ele com uma mistura de diversão e indulgência.
- Nosso telefone tinha sido cortado meses antes, filho - disse Jenny, trocando um olhar com Karen. - E isso foi muito antes dos celulares.
Naquele ponto, Karen já estava seca por uma xícara de chá, mas nem morta iria se colocar em dívida com Jenny Prentice. Ela pigarreou e prosseguiu:
- Quando foi que a senhora começou a se preocupar?
- Quando a menina me acordou de manhã e ele ainda não estava em casa. Ele nunca tinha feito isso. Não havia sido uma briga de verdade, na sexta-feira. Foram
só umas palavras ásperas. Já tínhamos tido piores, acredite. Quando vi que ele não estava ali de manhã, comecei realmente a pensar que havia alguma coisa terrivelmente
errada.
- O que a senhora fez?
- Dei comida a Misha, troquei sua roupa e a levei até a casa de Lauren, uma amiguinha dela. Daí, atravessei o bosque até a casa de Andy. Mas não havia ninguém
lá. Então, me lembrei que Mick dissera que talvez Andy subisse até as Highlands para passar uns dias, já que estava de licença. Afastar-se de tudo. Pôr a cabeça
no lugar. Então, é lógico que ele não estava lá. Nesse ponto eu já estava bastante assustada. E se houvesse acontecido um acidente? E se ele tivesse ficado doente?
A lembrança ainda tinha o poder de perturbar Jenny. Seus dedos cutucavam sem parar a barra do jaleco.
- Subi até o Serviço Social para ver os representantes do sindicato. Pensei que se alguém soubesse onde Mick estava, seriam eles. Ou que, pelo menos, eles
saberiam onde começar a procurar. - Ela olhou fixamente para o chão, as mãos entrelaçadas no colo. - Foi então que as coisas começaram a degringolar na minha vida.
Sábado, 15 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Mesmo pela manhã, sem a presença de pessoas para elevar a temperatura, o Instituto do Serviço Social dos Mineradores estava mais quente do que sua casa, notou Jenny
ao entrar. Não muito, mas o suficiente para ser perceptível. Não era algo que geralmente chamava sua atenção, mas hoje ela tentava pensar em qualquer coisa que não
fosse a ausência do marido. Parou por um momento, hesitante, no hall de entrada, tentando decidir aonde ir. Os escritórios do Sindicato Nacional dos Mineradores
ficavam no andar de cima, ela se lembrava vagamente; caminhou, portanto, até a escadaria extravagantemente esculpida. Chegando ao primeiro andar, tudo ficou mais
fácil. Era só seguir o burburinho das vozes e a fumaça de cigarro.
Mais adiante no corredor, havia uma porta entreaberta, de onde vinham o som e o cheiro. Jenny bateu nervosamente, e a sala ficou em silêncio. Por fim, uma voz cautelosa
disse:
- Entre.
Ela esgueirou-se pela porta como se fosse uma pedinte. A sala era tomada por uma mesa em forma de U coberta por um oleado axadrezado. Alguns homens estavam sentados
em torno dela, demonstrando níveis variados de desânimo. Jenny vacilou quando percebeu que o homem na ponta mais distante era alguém que ela reconhecia, mas que
não conhecia pessoalmente. Mick McGahey, ex-comunista, líder dos mineiros escoceses. O único homem, dizia-se, que podia enfrentar o Rei Arthur e fazer-se ouvir.
O homem que fora mantido deliberadamente longe do primeiro posto por seu antecessor. Se Jenny ganhasse uma libra cada vez que ouvia alguém dizer que tudo teria sido
muito diferente se McGahey estivesse no comando, sua família teria sido a mais bem alimentada e mais bem-vestida em Newton of Wemyss.
- Me desculpem - ela gaguejou. - Eu só queria dar uma palavrinha... - Seus olhos passearam pela sala, em dúvida sobre em qual dos homens que conhecia
seria melhor fixar a atenção.
- Tudo bem, Jenny - disse Ben Reekie. - Era só uma reuniãozinha. Já terminamos, não é, rapazes? - Houve um murmúrio descontente de assentimento. Mas Reekie,
o secretário local, era habilidoso em avaliar o andamento de uma reunião e fazer as coisas avançarem. - Então, Jenny, como podemos te ajudar?
Ela gostaria de ficar a sós com ele, mas não tinha coragem de pedir. As mulheres tinham aprendido muito no processo de apoiar seus homens, mas, cara a cara, sua
assertividade ainda tendia a se esvair. Mas tudo ficaria bem, ela disse a si mesma. Vivera nesse universo encasulado durante toda a vida adulta, um mundo que se
centrava na mina e na Associação, no qual não havia segredos e onde o sindicato era sua mãe e seu pai.
- Estou preocupada com Mick - ela disse. Não adiantava fazer rodeios. - Ele saiu ontem de manhã e não voltou. Eu estava pensando se, talvez...?
Reekie apoiou a testa nos dedos, esfregando-a com tanta força que deixou marcas alternadas em vermelho e branco no centro.
- Deus do céu - ele sibilou entre os dentes cerrados.
- E você espera que acreditemos que você não sabe onde ele está?
A acusação veio de Ezra Macafferty, o último sobrevivente na vila das greves dos mineiros e das greves patronais da década de vinte.
- É claro que não sei onde ele está. - A voz soou melancólica, mas um medo sombrio começara a espalhar seu gelo pelo peito dela. - Pensei que talvez ele tivesse
passado por aqui. Achei que alguém pudesse saber.
- Isso eleva o número a seis - disse McGahey. Ela reconheceu o tom grave e áspero de sua voz das entrevistas na TV e comícios ao ar livre. Era estranho estar
na mesma sala que ele.
- Não entendo - ela disse. - Seis o quê? O que está acontecendo? - Todos os olhos estavam voltados para ela, perfurando-a. Podia sentir seu desprezo, mas
não entendia o motivo. - Aconteceu alguma coisa com Mick? Um acidente?
- Aconteceu uma coisa, sim - disse McGahey. - Parece que o seu marido furou a greve e fugiu para Nottingham.
Suas palavras pareceram sugar todo o ar dos pulmões dela. Jenny parou de respirar, deixando que se formasse uma bolha ao seu redor para protegê-la. Não podia ser
verdade. Não o Mick. Muda, ela sacudiu a cabeça com força. As palavras começaram a penetrar a barreira, mas ainda não faziam sentido.
- Sabíamos de cinco... pensamos que haveria mais... sempre um traidor no grupo... decepcionados... sempre um do sindicato.
- Não - ela disse. - Ele não faria isso.
- De que outra forma você explica o fato de ele não estar aqui? - disse Reekie. - Foi você que veio até nós procurando por ele. Sabemos que uma van cheia
deles foi embora ontem à noite. E ao menos um deles é amigo do seu Mick. Onde mais ele poderia estar?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu não teria me sentido pior se eles tivessem me chamado de prostituta - disse Jenny. - Imagino que, aos olhos deles, era exatamente isso que eu era. Meu
marido fugindo da greve, não demoraria nada até que eu começasse a viver de forma imoral.
- A senhora nunca duvidou de que eles estivessem certos?
Jenny afastou o cabelo do rosto, removendo momentaneamente um pouco de sua idade e docilidade.
- Na verdade, não. Mick era amigo de Iain Maclean, um dos que foram para Nottingham. Isso eu não discutia. E não se esqueça de como era, naquela épóca. Os
homens controlavam o jogo, e o sindicato controlava os homens. Quando as mulheres quiseram participar da greve, a primeira batalha que tivemos que travar foi contra
o sindicato. Tivemos que implorar que nos deixassem entrar. Eles nos queriam onde sempre havíamos estado: no cômodo dos fundos, cuidando do fogão. Não ao lado da
fogueira, nas linhas de piquete. Mas embora tivéssemos conseguido formar a Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas, ainda conhecíamos bem nosso lugar.
Teríamos que ser muito fortes, ou muito burras, para tentar ir contra a corrente por aqui.
Não era a primeira vez que Karen ouvia uma versão daquela verdade. Ela se perguntou se teria feito diferente, na mesma situação. Era bom pensar
que teria ficado ao lado de seu homem com um pouco mais de firmeza. Mas, diante da hostilidade que Jenny Prentice devia ter enfrentado por parte da comunidade, Karen
achava que também teria cedido.
- Entendo - ela disse. - Mas agora que parece que, afinal, Mick pode não ter fugido da greve, a senhora tem alguma ideia do que pode ter acontecido com ele?
Jenny balançou a cabeça.
- Nenhuma? Ainda que eu não pudesse acreditar, a fuga fazia algum sentido. Então, nunca considerei outra possibilidade.
- A senhora acha que ele pode ter simplesmente se enchido? Simplesmente caiu fora?
Ela franziu a testa.
- Olha, isso não seria do feitio de Mick. Ir embora sem falar nada? Acho que não. Ele faria questão que eu soubesse que tinha sido por minha culpa. - Ela
soltou uma risada amarga.
- A senhora não acha que ele pode ter ido embora sem dizer nada como uma forma de fazer com que a senhora sofresse ainda mais?
Jenny levantou a cabeça.
- Isso é asqueroso demais - ela protestou. - Você o faz parecer um sádico. Ele não era um homem cruel, inspetora. Apenas insensível e egoísta, como todos
eles.
Karen fez uma pausa. Aquela era sempre a parte mais difícil, quando se entrevistava os parentes de um desaparecido.
- Ele havia discutido com alguém? Tinha algum inimigo, Sra. Prentice?
Jenny a olhou como se Karen tivesse, de repente, passado a falar grego.
- Inimigo? Tipo, alguém que quisesse matá-lo?
- Talvez não matá-lo. Apenas brigar com ele.
Dessa vez, a risada de Jenny tinha um calor genuíno.
- Meu Jesus, isso é engraçado, vindo de você. - Ela balançou a cabeça. - As únicas brigas físicas em que Mick se meteu, durante todos os anos em que estivemos
casados, foi com o seu pessoal. Nas linhas de piquete. Nas manifestações. Se ele tinha inimigos? Claro, os de uniforme azul. Mas aqui não é a América Latina e não
me lembro de ouvir falar de desaparecidos nas greves dos mineiros. Portanto, a resposta para sua pergunta é não, ele não tinha o tipo de inimigo com quem teria uma
briga séria.
Karen observou o carpete por um longo tempo. A violência exagerada da polícia, contra os grevistas, havia envenenado os relacionamentos nas comunidades por mais
de uma geração. Não importava que os piores transgressores viessem de forças externas, trazidos ali para aumentar os números, e a quem se pagavam quantias obscenas
de dinheiro para oprimir seus concidadãos de formas que a maioria das pessoas preferia nem saber. O resultado de sua ignorância e arrogância havia afetado a todos
os policiais, em todas as corporações das cidades mineradoras. Ainda afetava, pensou Karen. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
- Sinto muito - ela disse. - A forma como trataram os mineiros foi imperdoável. Prefiro pensar que não agiríamos dessa maneira hoje em dia, mas é provável
que esteja enganada. A senhora tem certeza de que não havia ninguém com quem ele houvesse se desentendido?
Jenny nem sequer parou para pensar.
- Não que eu soubesse. Ele não era encrenqueiro. Tinha seus princípios, mas não os usava para provocar brigas. Defendia aquilo em que acreditava, mas era
só de falar, não de partir para a briga.
- E se falar não adiantasse? Ele retrocederia?
- Não tenho certeza se entendi a pergunta.
Karen falou vagarosamente, tateando a ideia.
- Estou pensando se ele não topou com esse tal de Iain Maclean naquele dia e tentou convencê-lo a não ir para Nottingham. E se Iain se recusou a mudar de
ideia, e talvez tivesse seus amigos para apoiá-lo... Será que Mick entraria numa briga com eles?
Jenny balançou firmemente a cabeça.
- De jeito nenhum. Ele diria o que pensava e, se não adiantasse, se afastaria.
Karen se sentiu frustrada. Mesmo depois de tanto tempo, os casos arquivados geralmente ofereciam um ou dois fios soltos por onde começar. Mas, até agora, parecia
não haver nada ali. Uma última pergunta e, depois, ela iria embora.
- A senhora tem alguma ideia de aonde Mick pode ter ido para pintar naquele dia?
- Ele não disse. A única coisa que posso dizer é que, no inverno, ele geralmente seguia pelo litoral até East Wemyss. Assim, se começasse a
chover, ele poderia descer até as cavernas e se abrigar lá. Os caras do grupo de preservação tinham uma cabaninha no fundo de uma das cavernas, com um fogareiro
onde podiam fazer chá. Ele tinha as chaves, podia ficar à vontade - ela acrescentou, a acidez de volta à sua voz. - Mas não tenho ideia se ele esteve ali nesse dia
ou não. Ele poderia estar em qualquer lugar entre Dysart e Buckhaven. - Ela olhou para o relógio. - Isso é tudo que sei.
Karen se levantou.
- Agradeço muito por seu tempo, Sra. Prentice. Continuaremos fazendo nossas investigações e a manteremos informada.
Novo em Folha se levantou desajeitadamente e seguiu Karen e Jenny até a porta da frente.
- Não estou preocupada por mim, entende? - Jenny disse, quando eles estavam a meio caminho da rua. - Mas veja se você consegue encontrá-lo pelo bem da criança.
Aquele era, pensou Karen, o primeiro sinal de emoção que ela demonstrava durante toda a manhã.
- Pegue seu caderno - ela disse a Novo em Folha, quando entraram no carro. - Próximos passos. Falar com a vizinha. Ver se ela se lembra de alguma coisa sobre
o dia em que Mick Prentice desapareceu. Falar com alguém do grupo da caverna, ver quem ainda está lá desde 1984. Obter outra visão de como realmente era Mick Prentice.
Procurar nos arquivos alguma coisa a respeito desse Andy Kerr, funcionário do Sindicato dos Mineiros, que supostamente cometeu suicídio na época em que Mick desapareceu.
Como é essa história? E precisamos rastrear esses cinco fura-greves e pedir que a polícia fale com eles em Nottingham. - Ela abriu a porta do passageiro novamente,
enquanto Novo em Folha terminava de escrever. - E já que estamos aqui, vamos dar uma olhada nessa vizinha.
Ela mal se afastara dois passos do carro quando seu telefone tocou.
- Phil - ela disse.
Nenhuma piadinha, ele simplesmente foi direto aos fatos:
- Você precisa voltar aqui agora mesmo.
- Por quê?
- O Biscoito está furioso. Quer saber por que diabos você não está na sua mesa.
Simon Lees, subchefe de Polícia (Criminal), tinha um temperamento muito diferente do de Karen. Ela estava convencida de que, antes de dormir, ele lia o Código de
Polícia, Ordem Pública e Justiça Criminal de 2006 (da Escócia). Sabia que ele era casado e tinha dois filhos adolescentes, mas não fazia ideia de como aquilo podia
ter acontecido com um homem tão obsessivamente organizado. Era Lei de Murphy que, na primeira manhã, em meses, que ela estava fazendo algo fora das normas, o Biscoito
viesse procurá-la. Ele parecia acreditar que tinha o direito divino de saber o paradeiro de qualquer oficial sob seu comando, quer estivesse ou não de serviço. Karen
se perguntou o quão próximo de um derrame ele teria chegado ao descobrir que ela não estava ocupando a mesa onde esperava encontrá-la. Pelo jeito, não próximo o
bastante.
- O que você disse a ele?
- Disse que você estava numa reunião com a equipe de armazenamento de provas, discutindo uma forma de agilizar o procedimento de catalogação deles - disse
Phil. - Ele gostou da ideia, mas não do fato de que isto não estivesse registrado em sua lista eletrônica de compromissos.
- Estou a caminho - Karen disse, confundindo Novo em Folha ao entrar novamente no carro. - Ele disse por que estava me procurando?
- Para mim? Um mero sargento? Dá um tempo, Karen. Ele apenas disse que era "muito importante". Alguém provavelmente roubou os biscoitinhos digestivos dele.
Karen gesticulou impacientemente para Novo em Folha.
- Para casa, James, e não poupe os cavalos. - Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido, mas deu partida no carro e saiu dirigindo. - Estou indo - ela
disse. - Ponha a água para ferver.
Glenrothes
A dupla hélice de frustração e irritação se retorceu nas entranhas de Simon Lees. Ele se mexeu na cadeira e rearrumou as fotos da família sobre a mesa. Qual era
o problema dessa gente? Quando fora procurar a inspetora Pirie e não a encontrara onde deveria estar, o sargento Parhatka agira como se aquilo estivesse perfeitamente
bem. Havia algo fundamentalmente indiferente nos detetives de Fife. Ele havia percebido aquilo dias após ter chegado de Glasgow. Surpreendia-se que eles houvessem
conseguido colocar
alguém atrás das grades, antes que ele chegasse com seus métodos analíticos, suas investigações eficientes, análises sofisticadas de vínculos criminais e o inevitável
aumento nos níveis de detecção.
O que o irritava ainda mais era o fato de que eles pareciam não ter qualquer gratidão pelos métodos modernos que ele trouxera para o trabalho. Ele até mesmo suspeitava
que riam dele. Seu apelido, por exemplo. Todo mundo no prédio parecia ter um apelido, a maioria deles podendo ser interpretados como levemente carinhosos. Mas não
ele. Logo descobrira que fora apelidado de Biscoito, porque compartilhava o sobrenome com uma fábrica de doces; seu produto mais famoso ficara conhecido devido a
um antiquíssimo jingle de propaganda, cujo racismo brincalhão causaria tumulto nas ruas se fosse veiculado na Escócia do século XXI. Ele culpava Karen Pirie; não
era coincidência que o apelido houvesse surgido após seu primeiro desentendimento com ela. Algo que se tornaria comum na maioria de seus encontros. Ele não tinha
certeza de como acontecia, mas ela sempre parecia confundi-lo.
Lees ainda se ressentia com aquela primeira lembrança. Mal havia chegado, já começara a dar as ordens, promovendo uma série de treinamentos. Não os de praxe, numa
postura machista, nem a tediosa revisão das regras de comportamento, mas abordagens originais de temas referentes ao policiamento moderno. A primeira leva de oficiais
tinha se reunido na sala de treinamento e Lees dera início a seu prólogo, explicando como eles passariam o dia desenvolvendo estratégias para o policiamento em uma
sociedade multicultural. Seus espectadores pareceram rebeldes, e Karen Pirie liderara o ataque:
- Senhor, posso fazer uma observação?
- É claro, inspetora Pirie. - Seu sorriso havia sido cordial, ocultando a irritação de ser interrompido antes de sequer ter revelado o programa.
- Bem, senhor, Fife não é realmente o que se poderia chamar de multicultural. Não temos muitas pessoas aqui que não sejam britânicas nativas. À exceção dos
italianos e poloneses, quero dizer, e eles já estão aqui há tanto tempo que nos esquecemos que não são daqui.
- Então o racismo parece estar bem para você; é isso, inspetora Pirie?
Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas ele fora levado àquilo pela atitude aparentemente retrógrada expressada por ela. Sem falar daquela
cara de bolacha impassível que ostentava sempre que dizia alguma coisa que pudesse ser interpretada como provocadora.
- Em absoluto, senhor. - Ela sorrira, de forma quase piedosa. - O que eu queria dizer é que, já que temos um orçamento limitado para treinamentos, pode fazer
mais sentido lidar primeiro com o tipo de situação que é mais provável que encontremos no dia a dia.
- Tais como?... Com quanta força devemos bater nas pessoas, quando as prendemos?
- Eu estava pensando em estratégias para lidar com a violência doméstica. É um tipo de chamada frequente e que pode facilmente se agravar. Gente demais ainda
morre todos os anos porque uma briga doméstica escapa ao controle. E nem sempre sabemos lidar com elas, sem piorar a situação. Eu diria que essa seria minha prioridade
número um no momento, senhor.
E com aquele discurso, ela havia tirado o chão dele. Não tinha volta. Poderia seguir adiante com o treinamento planejado, sabendo que todos na sala estariam rindo
dele. Ou poderia adiá-lo, organizando algo relacionado à sugestão da inspetora Pirie, e então perderia completamente a moral. No fim, ele disse a eles para passarem
o resto do dia pesquisando sobre o assunto da violência doméstica, preparando-se para outro dia de treinamento.
Dois dias depois, ouviu sem querer alguém se referindo a ele como o Biscoito. Ah, sim, ele sabia a quem culpar. Mas assim como em tudo que ela fazia para sabotá-lo,
não havia nada que ele pudesse atribuir diretamente a ela. Ela simplesmente ficaria ali, tão desgrenhada, impassível e inescrutável quanto uma vaca escocesa das
Highlands, nunca dizendo ou fazendo nada de que ele pudesse se queixar. E ela estabeleceu o padrão para todos os demais, mesmo estando isolada nos cafundós, na Equipe
de Revisão de Casos Arquivados, onde não deveria ser capaz de exercer nenhuma espécie de influência. Mas, de alguma forma, graças a Pirie, lidar com os detetives
das três divisões era como pastorear gatos.
Ele tentava evitá-la, tentava desviar-se dela através de suas diretrizes operacionais. Até então pensava que estava funcionando. Mas aí o telefone tinha tocado.
- Subchefe de Polícia Lees - anunciara ao atender. - Em que posso ajudar?
- Bom dia, subchefe Lees. Meu nome é Susan Charleson. Sou assistente pessoal de Sir Broderick Maclennan Grant. Meu chefe gostaria de falar com o senhor. Agora
seria um bom momento?
Lees se endireitou na cadeira, alinhando os ombros. Broderick Maclennan Grant era conhecido por três coisas: sua fortuna, seu isolamento misantrópico e pelo sequestro
e assassinato da filha Catriona, há vinte e poucos anos. Por mais improvável que pudesse parecer, um telefonema de sua assistente para o subchefe criminal só poderia
significar que havia ocorrido algum tipo de mudança no caso.
- Sim, claro, o momento perfeito, não poderia ser melhor.
Ele escavou a memória em busca de detalhes, ouvindo apenas em parte à mulher no telefone. Filha e neto sequestrados, tinha sido isso. Filha morta durante uma entrega
de resgate que deu errado, neto nunca mais visto. E, agora, ele parecia ter a chance de, finalmente, solucionar o caso. Concentrou-se novamente na voz da mulher.
- Se o senhor puder fazer a gentileza de aguardar, colocarei Sir Broderick na linha agora mesmo - ela disse.
O som oco de uma interrupção e, então, uma voz soturna e pesada disse:
- Aqui fala Broderick Maclennan Grant. Você é o subchefe de Polícia?
- Exatamente, Sir Broderick. Subchefe de Polícia Lees. Simon Lees.
- Você está ciente do assassinato não solucionado da minha filha, Catriona? E do sequestro do meu neto, Adam?
- É claro, naturalmente, não existe um só policial na região que não...
- Achamos que surgiu uma prova nova. Eu ficaria agradecido se você tomasse todas as providências para que a inspetora Pirie venha até a minha casa amanhã
cedo, para discutir o assunto comigo.
Lees literalmente afastou o telefone do rosto e ficou olhando para o aparelho. Seria algum trote sofisticado?
- Inspetora Pirie? Eu não... eu poderia ir - ele balbuciou.
- Você é um funcionário administrativo. Não preciso de um funcionário administrativo. - O tom de Brodie Grant era desdenhoso. - A inspetora Pirie é detetive.
Gostei da forma como ela lidou com o caso Lawson.
- Mas... mas, para tratar disso, deveria ser um oficial mais graduado - protestou Lees.
- Não é a inspetora Pirie quem está no comando da sua Equipe de Revisão de Casos Arquivados? - Grant começava a parecer impaciente. - Isso é graduação suficiente
para mim. Não me importo com postos, me importo com eficiência. É por isso que quero a inspetora Pirie na minha casa amanhã às dez. Isso deve lhe dar tempo suficiente
para se familiarizar com as informações básicas do caso. Tenha um bom dia, Sr. Lees. - A linha emudeceu e Simon Lees ficou sozinho, com seu mau humor e a pressão
arterial que se elevava.
Por mais que aquilo o angustiasse, ele não tinha escolha senão encontrar a inspetora Pirie e lhe dar as ordens. Pelo menos, poderia fazer com que aquilo parecesse
ter sido ideia dele. Embora não houvesse nenhum compromisso marcado no sistema de agendamento eletrônico que ele instituíra para seus detetives mais antigos, ela
não estava em sua mesa. Tudo bem que os policiais fizessem coisas por iniciativa própria, mas tinham de aprender a deixar um registro de seus movimentos.
Ele estava prestes a voltar para a sala da Revisão de Casos Arquivados para descobrir por que a inspetora Pirie ainda não havia aparecido quando uma batida incisiva
na porta foi seguida, sem qualquer intervalo, pela entrada dela.
- Eu disse que poderia entrar? - perguntou Lees, olhando-a com raiva do outro lado da sala.
- Pensei que fosse urgente, senhor. - Ela continuou andando e se sentou na cadeira do outro lado da mesa dele. - O sargento Parhatka me deu a impressão de
que, qualquer que fosse o motivo pelo qual o senhor estivesse me procurando, não podia esperar.
Que referência para o serviço policial, ele pensou, irritado. Cabelo desgrenhado caindo sobre os olhos, pouquíssima maquiagem e dentes que precisavam seriamente
de um aparelho ortodôntico. Ele supunha que ela fosse lésbica, dada sua atração por terninhos de calça comprida, o que era realmente um erro, devido à largura de
seus quadris. Não que ele tivesse qualquer coisa contra lésbicas, lembrou-lhe seu censor interno. Apenas achava que dava às pessoas a impressão errada sobre o serviço
policial de hoje.
- Sir Broderick Maclennan Grant me telefonou hoje de manhã - ele disse. O único sinal de interesse foi um ligeiro entreabrir dos lábios. - Suponho que saiba
quem é Broderick Maclennan Grant.
Karen pareceu surpresa com a pergunta. Ela se reclinou na cadeira e recitou:
- Terceiro homem mais rico da Escócia, é dono de metade da porção rentável das Highlands. Ganhou seu dinheiro construindo estradas e casas, e administrando
os sistemas de transporte que as servem. Possui uma ilha nas Hébridas, mas passa a maior parte do tempo no Castelo de Rotheswell, perto de Falkland. A maioria das
terras entre lá e o mar pertence a ele ou a Wemyss. Sua filha Cat e o filhinho dela, Adam, foram sequestrados por um grupo anarquista em 1985. Cat foi morta com
um tiro quando a entrega do resgate deu errado. Ninguém sabe o que aconteceu com Adam. A esposa de Grant suicidou-se alguns anos depois. Ele se casou novamente há
cerca de dez anos. Tem um filho pequeno que deve estar com cinco ou seis anos. - Ela riu. - Como fui?
- Não é um concurso, inspetora. - Lees sentiu que cerrou os punhos e os manteve embaixo da mesa. - Parece que há novas provas. E já que você está no comando
dos casos arquivados achei que deveria cuidar deste.
- Que tipo de provas? - Ela se reclinou sobre o braço da cadeira, numa postura relaxada.
- Achei melhor que você conversasse diretamente com Sir Broderick. Assim, não haverá qualquer possibilidade de confusão.
- Então, ele realmente não lhe disse nada a respeito?
Lees poderia jurar que ela estava gostando daquilo.
- Marquei de você se encontrar com ele no Castelo de Rotheswell amanhã de manhã às dez. Não preciso lhe dizer o quanto é importante que fique bem claro que
estamos levando isso a sério. Quero que Sir Broderick entenda que este assunto receberá toda a nossa atenção.
Karen se levantou abruptamente, os olhos repentinamente frios.
- Ele receberá exatamente a mesma atenção que todos os outros pais enlutados com quem trato. Não faço distinção entre os mortos, senhor. Agora, se isso é
tudo, tenho um arquivo para estudar até amanhã cedo.
Ela não esperou por uma dispensa. Apenas virou nos calcanhares e saiu, deixando Lees com a sensação de que ela tampouco fazia distinção entre os vivos.
Mais uma vez, Karen Pirie o havia feito se sentir um idiota.
Castelo de Rotheswell
Bel Richmond deu uma última olhada em seu arquivo sobre Catriona Maclennan Grant, certificando-se de que sua lista de perguntas cobria todos os ângulos. A intolerância
a bobagens por parte de Broderick Maclennan Grant era tão notória quanto sua aversão à publicidade. Bel suspeitava de que ele fosse atacar ao primeiro sinal de falta
de preparo de sua parte e usá-la como desculpa para romper o acordo que ela havia negociado com Susan Charleson.
Para dizer a verdade, ela ainda estava surpresa por haver conseguido. Levantou-se, fechou o laptop e deu uma olhada no espelho. Vestida para matar. Afinal, a primeira
impressão é a que fica. Fim de semana no campo. Era esse o look que ela havia adotado. Sempre fora boa em camuflagem. Mais uma das muitas razões pelas quais ela
era tão boa naquilo que fazia. Integrar-se, tornar-se "parte do grupo", qualquer que fosse ele, era um mal necessário. Portanto, se ela iria dormir sob o teto aristocrático
de Brodie Grant, precisava se vestir a caráter. Alisou o vestido axadrezado Black Watch que havia tomado emprestado de Vivianne, conferiu se não havia arranhões
nos sapatos de salto sabrina, ajeitou o cabelo, negro como um corvo, para trás da orelha e entreabriu os lábios rubros num sorriso. Uma olhada em seu relógio confirmou
que estava na hora de descer as escadas e descobrir o que a formidável Susan Charleson havia preparado.
Ao virar uma curva da ampla escadaria, teve de se desviar para evitar um garotinho que subia a toda velocidade. Ele conseguiu controlar os gestos desgovernados no
patamar entre dois lances, ofegou um "Desculpe", e voou escada acima. Bel piscou e ergueu as sobrancelhas. Já fazia algum tempo que não esbarrava assim num garotinho
e não havia sentido a menor falta. Continuou descendo, mas, antes de chegar ao pé da escada, uma mulher com calças de veludo bege e uma blusa vermelho-escura circulou
a coluna da escadaria e parou de repente, pega de surpresa.
- Oh, me desculpe, não quis assustá-la - ela disse. - Viu um garotinho passar por aqui?
Bel apontou com o polegar por sobre o ombro.
- Ele foi por ali.
A mulher assentiu. Agora que estava mais próxima, Bel podia ver que era uns dez anos mais velha do que pensara de início, trinta e tantos, no mínimo. A pele tratada,
o cabelo castanho grosso e o porte elegante ajudavam a confundir.
- Monstrinho - disse a mulher. Elas se encontraram a alguns degraus do patamar. - Você deve ser Annabel Richmond - ela disse, estendendo a mão delgada que
estava fria, apesar da temperatura agradável dentro das grossas paredes do castelo. - Sou Judith. Esposa de Brodie.
Claro que sim. Como Bel poderia ter imaginado uma babá tão bem arrumada?
- Lady Grant - ela disse, estremecendo por dentro.
- Judith, por favor. Mesmo depois de todos esses anos casada com Brodie, ainda tenho vontade de olhar para trás quando alguém me chama de Lady Grant. - Ela
não parecia dizer aquilo apenas por falsa modéstia.
- E eu sou Bel. Vamos deixar para lá o nome que uso profissionalmente.
Lady Grant sorriu, os olhos já examinando os degraus acima.
- Bel então. Olhe, não posso parar agora, tenho de capturar aquele monstrinho. Vejo você no jantar. - E lá foi ela, subindo dois degraus de cada vez.
Sentindo que havia exagerado ao se vestir, em comparação à castelã de Rotheswell, Bel seguiu pelos corredores de lajotas de pedra até o escritório de Susan Charleson.
A porta estava aberta e Susan, que falava ao telefone, acenou para que ela entrasse.
- Muito bem. Obrigada por arranjar tudo, Sr. Lees. - Ela recolocou o fone no gancho e contornou a mesa, conduzindo Bel de volta à porta. - Bem na hora - ela
disse. - Ele aprecia a pontualidade. Gostou do quarto? Tem tudo de que precisa? O acesso wi-fi está funcionando?
- Tudo está perfeito - disse Bel. - A vista também é linda.
Sentindo-se como se tivesse entrado num drama da BBC2 escrito por Stephen Poliakoff, ela deixou-se conduzir pelo labirinto de corredores, cujas
paredes estavam forradas de fotografias de paisagens escocesas enormes impressas em telas para parecerem quadros pintados. Ficou surpresa de tudo lhe parecer tão
aconchegante. Mas, também, aquela não era a ideia que fazia de um castelo. Esperara algo como Windsor ou Alnwick. Em vez disso, Rotheswell parecia-se mais a uma
mansão fortificada e com torres. O interior lembrava mais uma casa de campo do que um salão de banquetes medieval. Sólido, mas não tão intimidador quanto ela temera.
Quando finalmente pararam diante de uma porta dupla de mogno alta e abobadada, Bel já estava começando a se arrepender de não ter deixado uma trilha de migalhas
de pão.
- Chegamos - disse Susan, abrindo uma das portas e conduzindo Bel para o interior de uma sala de bilhar, forrada de painéis de madeira escura e com persianas
nas janelas. A única luz provinha de uma série de lustres sobre a mesa de bilhar de tamanho oficial. Quando elas entraram, Broderick Maclennan Grant levantou os
olhos do taco que posicionava para a jogada. Uma massa densa de cabelo impressionantemente grisalho caía jovialmente sobre a testa ampla, sobrancelhas como um par
de muralhas prateadas sobre olhos tão fundos que sua cor só podia ser adivinhada, nariz como o bico de um papagaio, e uma boca ampla e fina sobre um queixo quadrado,
eram características que o tornavam instantaneamente reconhecível. A iluminação do lugar dava um ar dramático a sua figura.
Por conta de fotografias, Bel sabia o que esperar, mas ficou surpresa com a eletricidade crepitante que sentiu em sua presença. Já estivera na presença de homens
e mulheres poderosos antes, mas poucas vezes sentira aquele carisma instantâneo. Entendeu, de imediato, como Brodie Grant havia construído seu império do nada.
Ele se endireitou e apoiou-se no taco.
- Srta. Richmond, suponho. - Sua voz era profunda e quase relutante, como se não a usasse muito.
- Exatamente, Sir Broderick. - Bel não tinha certeza se deveria avançar ou permanecer onde estava.
- Obrigado, Susan - disse Grant. Quando a porta se fechou atrás dela, ele acenou na direção de um par de poltronas de couro desgastadas ao lado de uma lareira
de mármore entalhado. - Sente-se. Posso jogar e conversar
ao mesmo tempo. - Ele voltou a estudar a tacada enquanto Bel deslocava uma das poltronas para que pudesse observá-lo de forma mais direta.
Ela esperou enquanto ele fez mais algumas jogadas, o silêncio se erguia entre eles como uma maré ameaçadora.
- É uma linda casa - ela disse afinal.
Ele resmungou:
- Não sou de papo furado, Srta. Richmond. - Deu uma tacada rápida e duas bolas colidiram num estalo que pareceu um tiro. Passou giz no taco e a observou por
um longo momento. - Você provavelmente está se perguntando como conseguiu isso. Acesso direto a um homem famoso por sua aversão à exposição na mídia. Que conquista,
hein? Bem, sinto muito em decepcioná-la, mas você apenas teve sorte. - Ele circulou a mesa, franzindo a testa diante da posição das bolas, movendo-se como um homem
vinte anos mais jovem.
- Foi assim que consegui algumas das minhas melhores histórias - Bel disse calmamente. - Grande parte do jornalismo de sucesso deve-se a isso: a habilidade
de estar no lugar certo, na hora certa. Não tenho problema algum com relação à sorte.
- Que seja. - Ele estudou as bolas, inclinando a cabeça para obter um ângulo diferente. - Então, você não está se perguntando por que escolhi romper meu silêncio,
após todos esses anos?
- Sim, é claro que estou. Mas, para ser honesta, não acho que suas razões para falar agora terão muito a ver com o que acabarei escrevendo. Portanto, é mais
uma curiosidade pessoal do que profissional.
Ele parou a meio caminho de sua preparação para uma tacada e empertigou-se, encarando-a com uma expressão que ela não podia decifrar. Ele poderia estar furioso ou
curioso.
- Você não é como eu esperava - ele disse. - É mais durona. Isso é bom.
Bel estava acostumada a ser subestimada pelos homens, em seu universo. Estava menos acostumada, porém, a que eles admitissem seu erro.
- Pode ter certeza de que sou durona. Não confio a mais ninguém as minhas batalhas.
Ele se virou para olhá-la, apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o taco.
- Não gosto de ficar exposto ao público - ele disse. - Mas sou realista. Em 1985 era possível que alguém como eu exercesse um determinado grau de influência
sobre a mídia. Quando Catriona e Adam foram sequestrados, controlamos em grande parte o que foi impresso e transmitido. A polícia também cooperou conosco. - Ele
suspirou e balançou a cabeça. - Olhe só de que adiantou. - Deixou o taco na mesa e veio se sentar de frente para Bel.
Sentou-se na posição clássica do macho dominante: joelhos bem abertos, mãos sobre as coxas, ombros para trás.
- O mundo é um lugar diferente agora - ele disse. - Eu vi o que vocês fazem com pais que perderam seus filhos. Mohamed Al Fayed, retratado como um palhaço
paranoico. Kate McCann, transformada em uma Medeia moderna. Dê um passo em falso e eles o enterram. Bem, não vou deixar que isso aconteça. Sou um homem muito bem-sucedido,
Srta. Richmond. E cheguei até aqui aceitando que existem coisas que eu não sei e entendendo que a forma de superar isso é contratando especialistas e ouvindo-os.
No que se refere a esse ramo de negócios, você é minha especialista. Quando souber que existem novas provas, a mídia enlouquecerá. Mas não falarei com ninguém além
de você. Tudo passará por você. Portanto, qualquer que seja a imagem que chegue ao público, será a que você gerar. Este lugar foi construído para resistir a um cerco,
e meu sistema de segurança é o melhor que existe. Nenhum dos répteis chega perto de mim, de Judith ou de Alec.
Bel sentiu um sorriso repuxar os cantos da boca. Acesso exclusivo era o sonho erótico de todo redator. Geralmente, tinha de se matar para conseguir algo assim. Mas,
ali estava, numa bandeja e de graça. Contudo, deixou-o continuar pensando que era ela quem estava lhe fazendo um favor.
- E o que eu ganho com isso? Além de me tornar a jornalista que todo mundo adora odiar?
A linha estreita dos lábios de Grant se comprimiu ainda mais, e o peito se ergueu numa respiração profunda.
- Eu falarei com você. -As palavras saíram como se tivessem sido trituradas entre duas pedras de moinho. Claramente, sua intenção era que aquele fosse um
momento comparado a quando Moisés desceu do Monte Sinai.
Bel estava determinada a não se deixar impressionar.
- Excelente. Podemos começar, então? - Enfiou a mão dentro da bolsa e tirou um gravador digital. - Sei que isto não será fácil para o senhor, mas preciso
que me conte sobre Catriona. Chegaremos ao sequestro e suas consequências, mas teremos que voltar um pouco antes disso. Quero ter um panorama de como ela era e de
como vivia.
Ele olhou para o nada e, pela primeira vez, Bel viu um homem que parecia ter setenta e dois anos.
- Não tenho certeza se sou a pessoa mais adequada para isso - ele disse. - Éramos parecidos demais. Sempre foi uma disputa, entre mim e Catriona. - Ele se
levantou da poltrona e voltou à mesa de bilhar. - Ela sempre foi voluntariosa, mesmo quando pequena. Tinha ataques de fúria que podiam balançar as paredes deste
lugar. Ela cresceu e deixou os ataques para trás, mas não o temperamento. Contudo, sempre conseguia reconquistar a boa vontade das pessoas. Quando ela queria. -
Ergueu os olhos para Bel e sorriu. - Ela sabia bem o que queria. E não era possível fazê-la mudar de ideia, uma vez que estivesse decidida sobre algo.
Grant se moveu em torno da mesa, estudando as bolas, alinhando sua próxima jogada.
- E tinha talento. Quando criança, nunca estava sem um lápis ou um pincel nas mãos. Desenho, pintura, modelagem em argila. Ela nunca parava. Não deixou de
fazer isso com o tempo, como a maioria das crianças. Simplesmente se aprimorou. Então, ela descobriu o vidro. - Ele se inclinou sobre a mesa e acertou a bola vermelha
com a bola da vez, encaçapando-a no buraco do meio. Então, reposicionou a vermelha e estudou os ângulos.
- O senhor disse que sempre houve disputa entre vocês. Quais eram os pontos críticos? - Bel perguntou, quando ele não demonstrou sinais de que continuaria
com suas reminiscências.
Grant deu uma risadinha irônica.
- Tudo e qualquer coisa. Política. Religião. Se a comida italiana era melhor do que a indiana. Se Mozart era melhor do que Beethoven. Se a arte abstrata tinha
algum significado. Se deveríamos plantar faia, bétula ou pinho escocês no bosque de Check Bar. - Ele se endireitou lentamente. - Por que ela não queria assumir a
companhia. Esse era o ponto mais crítico. Eu não tinha um filho homem, naquela época. E nunca tive problemas para
aceitar mulheres nos negócios. Não via razão alguma para que ela não pudesse assumir a MGE, desde que aprendesse como tudo funcionava. Ela dizia que preferiria furar
os próprios olhos com uma agulha.
- Ela não aprovava a MGE? - perguntou Bel.
- Não, não tinha nada a ver com a companhia ou com sua política. Ela queria era ser uma artista do vidro. Esculpir, soprar, modelar... tudo que fosse possível
fazer com vidro, ela queria ser a melhor. E isso não deixava espaço para a construção de rodovias ou casas.
- Deve ter sido uma grande decepção.
- Fiquei arrasado. - Grant pigarreou. - Fiz tudo o que podia para convencê-la a desistir daquilo. Mas ela não me dava ouvidos. Agiu à minha revelia e se candidatou
a uma vaga na universidade Goldsmiths, em Londres. E conseguiu. - Ele balançou a cabeça. - Eu queria cortar qualquer ajuda financeira a ela, mas Mary, minha esposa,
mãe de Cat, me compeliu a concordar em sustentá-la. Ela disse que, para alguém que detestava se expor ao público, eu estava dando uma imensa colher de chá para os
tabloides. Então, deixei-me convencer. - Ele deu um sorriso amargo. - Quase me conformei com tudo, também. Então, descobri o que realmente estava acontecendo.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1978; Castelo de Rotheswell
Brodie Grant girou o Land Rover numa curva que espalhou cascalho para os lados e freou a metros da porta da cozinha do Castelo de Rotheswell. Entrou pisando forte
na casa, com um labrador chocolate nos calcanhares. Atravessou a cozinha, deixando um redemoinho de ar gelado à sua passagem, e gritou para o cão ficar ali. Moveu-se
pela casa com a velocidade e a segurança de um homem que sabe precisamente aonde está indo.
Finalmente, irrompeu na sala belamente decorada onde a esposa se entregava à sua paixão pela costura de colchas de retalhos.
- Você sabia disto? - ele indagou. Mary ergueu os olhos, assustada. Podia ouvir a intensidade de sua respiração, do outro lado da sala.
- Disto o quê, Brodie? - perguntou. Ela estava casada com uma força da natureza havia tempo suficiente para não se espantar com uma entrada dramática.
- Foi você que me convenceu a isto. - Ele se jogou numa poltrona baixa, lutando para ajeitar as pernas. - "É o que ela quer, Brodie. Ela jamais o perdoará
se você ficar no caminho dela. Você seguiu seus sonhos, Brodie. Deixe-a seguir os dela." Foi o que você disse. Então, foi o que fiz. Contrariando o que achava certo,
eu disse que iria apoiá-la. Financiar seu maldito diploma. Ficar de boca fechada sobre a maldita perda de tempo que é tudo isso. Parar de lembrá-la que são pouquíssimos
os artistas que conseguem se sustentar com essa bobajada indulgente. Não enquanto estão vivos, pelo menos. - Ele bateu o punho fechado no braço da poltrona.
Mary continuou a enfiar a agulha no tecido e sorriu.
- Você fez isso mesmo, Brodie. E estou orgulhosa de você.
- E olhe só aonde isso nos levou. Olhe só o que realmente está acontecendo!
- Brodie, não tenho ideia do que está falando. Você poderia explicar? E não se esqueça da sua pressão.
Ela tinha o dom de provocá-lo gentilmente e demovê-lo de suas posturas tão extremas. Mas, naquele dia, não estava dando certo. A irritação de Brodie estava no auge,
e seria necessária mais que uma dose de racionalidade amável para fazê-lo voltar a seu humor normal.
- Saí com Sinclair. Fomos verificar as trilhas para a caçada na sexta-feira.
- E como estavam as trilhas?
- Ótimas. Sempre ótimas. Ele é um bom caseiro. Mas não é essa a questão, Mary. - Sua voz se elevou novamente, incompatível com o ambiente aconchegante, cheio
de tecidos nas prateleiras.
- Claro que não, Brodie. Percebi isso. Qual é exatamente a questão?
- Aquele maldito do Fergus Sinclair. Eu disse ao Sinclair. No verão passado, quando seu maldito filho estava farejando atrás da Cat. Eu disse a ele para manter
o garoto longe da minha filha, e achei que ele tivesse me ouvido. E agora, isto! - Sacudiu as mãos como se estivesse jogando uma pilha de feno para o ar.
Mary finalmente abaixou seu trabalho.
- Qual é o problema, Brodie? O que aconteceu?
- É o que vai acontecer. Você se lembra de como respiramos aliviados quando ele se matriculou no maldito curso de administração de propriedades
em Edimburgo? Bem, acontece que essa não era sua única opção. Ele simplesmente aceitou uma vaga na Universidade de Londres. Vai estar na mesma droga de cidade que
a nossa filha. Vai ficar em cima dela o tempo todo, como uma sarna. Maldito caipira oportunista. - Fechou a cara e socou novamente a poltrona. - Vou acabar com a
raça dele, você vai ver.
Para espanto dele, Mary desandou a rir em sua mesinha de trabalho, com lágrimas cintilando nos cantos dos olhos.
- Ai, Brodie - ela ofegou. - Nem consigo lhe dizer como isso é engraçado.
- Engraçado? - ele berrou. - Aquele garoto dos infernos vai arruinar a vida de Cat e você acha engraçado?
Mary se levantou de um salto e cruzou a sala até o marido. Ignorando seus protestos, sentou-se no colo dele e passou os dedos por seu cabelo grosso.
- Está tudo bem, Brodie. Tudo ficará bem.
- Não vejo como. - Ele se afastou da mão dela.
- Durante a última semana, eu e a Cat tentávamos arranjar uma forma de lhe contar.
- Contar o quê, mulher?
- Ela não vai para Londres, Brodie.
Ele se endireitou, quase derrubando Mary no chão.
- O que você quer dizer com não vai para Londres? Ela vai desistir dessa idiotice? Virá trabalhar comigo?
Mary suspirou.
- Não Seja bobo. Você sabe, no fundo do seu coração, que ela está fazendo o que deveria fazer. Não, ela recebeu a oferta de uma bolsa de estudos. É uma combinação
de formação acadêmica e trabalho em uma fábrica de vidro artístico. Brodie, é simplesmente a melhor escola do mundo. E eles querem a nossa Catriona.
Por um longo momento, ele se permitiu ficar dividido entre o orgulho e o medo.
- E onde é isso? - disse, por fim.
- Não é muito longe, Brodie. - Mary passou as costas da mão pelo rosto dele. - É na Suécia.
- Suécia? Na maldita Suécia? Por Deus, Mary. Suécia?
- Você fala como se fosse o fim do mundo. Pode-se voar para lá de Edimburgo, sabe? Leva menos de duas horas. Sinceramente, Brodie. Escute o que está dizendo.
Isso é maravilhoso. É o melhor começo possível para ela. E você não terá de se preocupar com o fato de Fergus estar no mesmo lugar. Não é provável que ele apareça
numa cidadezinha perdida entre Estocolmo e Uppsala, é?
Grant passou os braços em volta da esposa e descansou o queixo sobre sua cabeça.
- Só você mesmo para encontrar o lado bom disso. - Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. - Com certeza, isso irá colocar o maldito do Fergus Sinclair
no lugar dele.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
- Então o senhor também discutia com Cat a respeito de namorados? - Bel perguntou. - Era com relação a todos eles, ou apenas no caso de Fergus Sinclair?
- Ela não teve tantos namorados assim. Estava concentrada demais no trabalho. Saiu durante alguns meses com um dos escultores da fábrica de vidro. Eu o encontrei
algumas vezes. Sueco, mas mesmo assim um rapaz bastante sensato. Eu podia ver que ela não estava levando muito a sério; então não havia necessidade de discutirmos
sobre ele. Mas Fergus Sinclair era outra história. - Ele contornou a mesa, e sua raiva era óbvia.
- A polícia nunca o considerou suspeito, mas questionei, na época, se ele poderia estar por trás do que aconteceu com Cat e Adam. Ele, logicamente, não havia
aceitado, quando ela finalmente rompeu os laços entre eles. E não aceitava que ela não o reconhecesse como pai de Adam. Na época, pensei que era possível que ele
tivesse feito justiça com as próprias mãos. Embora fosse difícil imaginar que tivesse inteligência para armar algo tão complicado.
- Mas Cat continuou o relacionamento com Fergus, depois de ir para a Suécia?
Subitamente o cansaço pareceu dominá-lo, e Grant se deixou cair na poltrona, de frente para Bel.
- Eles eram muito próximos. Haviam brincado juntos quando crianças. Eu deveria ter colocado um ponto final naquilo, mas nunca passou pela minha cabeça que
se transformaria em alguma coisa. Eles eram muito diferentes. Cat, com sua arte, e Sinclair, sem outra ambição a não ser a de seguir os passos do pai e ser caseiro.
Classes sociais diferentes, aspirações diferentes. A única coisa que os aproximava era o fato de a vida os ter colocado no mesmo lugar. Portanto, sim, quando ela
voltava, nas férias, e ele estava por perto, eles se juntavam novamente. Ela não fazia segredo sobre isso, ainda que soubesse minha opinião a respeito de Sinclair.
Eu continuava com a esperança de que ela conhecesse alguém que fosse digno dela, mas isso nunca aconteceu. Ela continuava voltando para Sinclair.
- E, apesar disso, o senhor não despediu o pai dele. Não o retirou da propriedade.
Grant pareceu chocado.
- Meu Deus, claro que não. Você tem ideia de como é difícil encontrar um caseiro tão bom quanto Willie Sinclair? Você poderia entrevistar cem homens antes
de encontrar alguém com os instintos que ele tem sobre pássaros e sobre as terras. E também é um sujeito decente. Ele sabia que o filho não estava à altura de Cat.
Sentia vergonha por não conseguir impedir que Fergus andasse atrás dela. Queria proibi-lo de frequentar a casa deles, mas sua esposa não permitiu. - Ele deu de ombros.
- Não posso culpá-la. As mulheres são sempre moles com os filhos.
Bel tentou ocultar sua surpresa. Ela havia presumido que Grant não respeitaria qualquer limite para que tudo fosse como ele queria, no que dizia respeito à filha.
Aparentemente, ele era mais complexo do que ela havia imaginado.
- O que aconteceu quando ela voltou da Suécia?
Grant esfregou o rosto com as mãos.
- Não foi nada agradável. Ela queria se mudar. Montar um estúdio onde pudesse trabalhar e vender suas coisas, um lugar onde também houvesse um espaço separado
para ela morar. Ela estava de olho numas propriedades nas minhas terras. Eu disse que o preço da minha ajuda era que ela parasse de se encontrar com Sinclair. -
Pela primeira vez, Bel viu tristeza se infiltrando através da raiva fervilhante. - Foi burrice da minha parte. Mary disse isso, na época, e ela estava com a razão.
As duas ficaram
furiosas comigo, mas eu não quis ceder. Então, Cat seguiu seu próprio caminho. Ela entrou em contato com a corretora da propriedade rural de Wemyss e alugou um imóvel
deles. Uma velha casa, próxima à entrada da propriedade, juntamente com o que havia sido um depósito de lenha, entrando pela estrada principal. Perfeito para atrair
a clientela. Área para estacionamento na frente dos antigos portões, um estúdio e espaço para exposição, além de dependências para ela morar, por trás dos muros.
Toda a privacidade que ela poderia desejar. E todo mundo ficou sabendo que Catriona Maclennan Grant fora morar em Wemyss só para contrariar seu velho pai.
- Se ela dependia do senhor, como é que pôde pagar por tudo isso? - perguntou Bel.
- A mãe dela equipou o estúdio, pagou o aluguel referente ao primeiro ano e encheu a despensa de Cat até ela começar a vender suas peças. - Ele não conseguiu
evitar um sorriso. - O que não demorou muito. Ela era boa, sabe? Muito boa. E a mãe cuidou que todos os seus amigos fossem até lá para comprar presentes de casamento
e de aniversário. Nunca fiquei tão bravo com Mary quanto naquela época. Estava ultrajado. Sentia-me frustrado e desrespeitado, e a situação só piorou quando o desgraçado
do Sinclair voltou da universidade e retornou de onde havia parado.
- Eles moravam juntos?
- Não. Cat tinha bom-senso o bastante para não fazer isso. Agora eu olho para trás e, às vezes, penso que ela só continuava se encontrando com ele para me
irritar. Não durou muito, depois que ela abriu o estúdio. Estava praticamente terminado cerca de um ano e meio antes que... que ela morresse.
Bel fez as contas mentalmente e concluiu que havia algo errado.
- Mas Adam só tinha seis meses quando eles foram sequestrados. Então, como Fergus Sinclair podia ser o pai, se ele se separou de Cat um ano e meio antes?
Grant suspirou.
- De acordo com Mary, não foi um rompimento definitivo. Cat ficava repetindo para Sinclair que tudo havia terminado, mas ele não queria aceitar. Hoje em dia,
isso se chama assédio. Parece que ele vivia aparecendo com aquela cara de cão sem dono, e Cat nem sempre tinha forças para
mandá-lo embora. E daí, ela ficou grávida. - Ele olhou para o chão. - Sempre imaginei como seria ser avô. Ver a família continuar. Mas, quando Cat nos contou, tudo
o que senti foi raiva. Aquele filho da puta do Sinclair havia arruinado o futuro dela. Ele a sobrecarregou com seu bebê, destruiu suas chances de ter a carreira
que ela havia sonhado. A única coisa boa que ela fez foi se recusar a manter qualquer contato com ele. Não quis reconhecê-lo como pai da criança, não queria vê-lo
nem falar com ele. Deixou muito claro que, daquela vez, estava realmente tudo acabado entre eles.
- Como ele reagiu a isso?
- Mais uma vez, eu soube indiretamente. Dessa vez por Willie Sinclair. Ele disse que o garoto estava devastado. Mas só o que me importava era que ele finalmente
tivesse entendido o recado de que nunca faria parte da nossa família. Willie aconselhou-o a manter distância de Cat e, pela primeira vez na vida, ele ouviu. Em poucas
semanas, arranjou um emprego na Áustria para trabalhar numa propriedade de caça perto de Salzburg. Desde então ele trabalha na Europa.
- E hoje? O senhor ainda acha que ele pode ter sido responsável pelo que aconteceu?
Grant fez uma careta.
- Se é para ser honesto, não. Acho que não. Não creio que ele tivesse inteligência suficiente para criar um plano tão complicado. Tenho certeza de que ele
adoraria ter colocado as mãos no filho e ao mesmo tempo se vingar de Cat, mas é muito mais provável que tenham sido alguns filhos da puta com motivos políticos que
pensaram que seria muito inteligente me fazer financiar sua revolução. - Fatigado, ele se levantou. - Agora estou cansado. A polícia virá amanhã de manhã e teremos
que repassar tudo. Nós a veremos no jantar, Srta. Richmond.
Ele saiu da sala, deixando Bel cheia de coisas a considerar. E anotar. Quando Brodie Grant dissera que falaria com ela, não havia imaginado, nem por um minuto, que
ele lhe entregaria esse precioso filão de informações. Ela teria de pensar com muito cuidado em como apresentá-lo à mídia mundial. Um passo em falso e sabia que
a mina seria fechada. Agora que tivera um gostinho do que jazia adiante, isso era, definitivamente, a última coisa que ela queria.
Glenrothes
Novo em Folha olhava fixamente para a tela do computador, como se fosse um artefato alienígena, quando Karen voltou a seu escritório.
- O que você tem aí para mim? - ela perguntou. -Já conseguiu ras-trear os cinco fura-greves?
- Nenhum deles tem registro criminal - ele disse.
- E?
- Eu não sabia onde mais procurar.
Karen revirou os olhos. Sua convicção de que Novo em Folha havia sido imposto a ela por Biscoito como uma forma de sabotagem se intensificava a cada dia.
- Google. Registro eleitoral. O site 192.com. Registro de carteiras de habilitação. Comece por aí, Jason. E depois marque para mim uma visita, em terreno,
com o responsável pela preservação de cavernas. É melhor deixar o dia de amanhã livre; veja se você consegue que ele me receba no sábado cedo.
- Nós geralmente não trabalhamos aos sábados - disse Novo em Folha.
- Você é que está dizendo - Karen murmurou, lembrando-se de pedir a Phil que fosse com ela. A insistência da lei escocesa na corroboração para todo tipo de
prova fazia com que ficasse difícil dar uma de justiceiro solitário.
Ela despertou seu computador da hibernação e rastreou as informações de contato de seu equivalente em Nottingham. Para seu alívio, o inspetor Des Mottram estava
em sua mesa e foi receptivo a seu pedido.
- Acho provável que seja um beco sem saída, mas é algo que precisa ser verificado - ela disse.
- E não lhe atrai nem um pouco uma viagem até Costa dei Trent - ele disse, com uma resignação divertida na voz.
- Não é isso. Tive um caso importantíssimo reaberto hoje e não tenho como desperdiçar pessoas com algo que, provavelmente, não nos trará qualquer avanço,
exceto num caminho negativo.
- Não se preocupe. Eu sei como é isso. Hoje é seu dia de sorte, Karen. Teremos dois novos assistentes no Departamento de Investigação Criminal na segunda-feira
e isso é exatamente o tipo de coisa que posso usar para treiná-los. Nada muito complicado, não exige muita manha.
Karen passou para ele os nomes dos homens.
- Um dos meus rapazes está procurando pelos últimos endereços conhecidos. Assim que ele achar alguma coisa, pedirei que lhe mande um e-mail. - Mais alguns
detalhes e ela terminou. Bem naquele instante, Phil Parhatka voltou a entrar na sala, com um enrolado de bacon que transmitiu uma mensagem diretamente para os centros
de prazer do cérebro de Karen. - Hummm - ela gemeu. - Deus, isto está com um cheiro delicioso.
- Se eu soubesse que você havia voltado, teria lhe trazido um. Bom, vamos dividir esse.
Ele pegou uma faca em sua gaveta e cortou o enrolado na metade, espirrando molho de tomate nos dedos. Passou a ela sua metade e, então, lambeu os dedos. O que mais,
pensou Karen, uma mulher poderia querer de um homem?
- O que o Biscoito queria? - perguntou Phil.
Karen deu uma mordida no enrolado e falou com a boca cheia da massa adocicada com bacon salgado.
- Novos desdobramentos no caso Catriona Maclennan Grant.
- É mesmo? O que aconteceu?
Karen sorriu.
- Não sei. O Rei Brodie não se preocupou em dizer ao Biscoito. Só disse a ele para me mandar lá amanhã de manhã. Então, preciso me atualizar rapidinho. Já
mandei buscar os arquivos, mas vou checar on-line primeiro. Olhe só... - Ela o puxou para um lado. - O assunto Mick Prentice. Preciso falar com alguém no sábado
e é óbvio que o Novo em Folha não trabalha aos sábados. Existe alguma chance de eu convencer você a ir comigo?
- Ir aonde?
- Às cavernas de Wemyss.
- Sério? - Phil se animou. - Poderemos passar para o outro lado das grades?
- Imagino que sim - disse Karen. - Não sabia que você se interessava por cavernas.
- Karen, eu já fui garoto um dia.
Ela revirou os olhos.
- Isso é bem verdade.
- Além disso, as cavernas têm coisas realmente legais. Inscrições e desenhos pictos. Entalhes da Idade do Ferro. Gosto da ideia de ser um
esquilo-agente-secreto e poder dar uma espiada nas coisas que geralmente não podem ser vistas. Claro que irei com você. Você já fez os registros do
caso?
Karen pareceu envergonhada.
- Quero ver aonde vai dar. Foi uma época difícil por aqui. Se alguma coisa ruim aconteceu a Mick Prentice, quero ir até o fundo. E você sabe como a mídia
está sempre se metendo no que fazemos no setor de Casos Arquivados. Tenho a sensação de que esse é um caso em que temos mais chance de descobrir o que aconteceu
se mantivermos segredo por um tempo.
Phil terminou seu enrolado e limpou a boca com as costas da mão.
- Parece justo. Você é a chefe. Só se assegure de que o Biscoito não possa usar isso contra você.
- Vou tomar cuidado. Escute, você está ocupado agora?
Ele atirou o saco de papel vazio na lixeira com uma jogada por cima da cabeça, comemorando quando acertou.
- Nada que eu não possa adiar.
- Veja o que você consegue descobrir sobre um cara chamado Andy Kerr. Ele era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores durante a greve. Morava num
sítio no meio do bosque de Wemyss. Estava de licença médica, com depressão, na época em que Mick desapareceu. Dizem que deu fim à própria vida, mas nunca encontraram
o corpo.
Phil assentiu.
- Verei o que consigo descobrir.
Enquanto ele voltava à própria mesa, Karen procurava Catriona Maclennan Grant no Google. O primeiro resultado a levou a uma publicação em formato de jornal, de dois
anos antes, marcando o vigésimo aniversário da morte da jovem escultora. Depois de ler três parágrafos, Karen sentiu um golpe no meio de seu peito. "É incrível como
são poucas as pessoas que se dispõem a falar sobre este caso", ela leu. "O pai de Cat Grant jamais falou com a imprensa sobre o que aconteceu. Sua mãe se matou dois
anos após a morte da filha. Seu ex-namorado, Fergus Sinclair, se recusa a dar entrevistas. E o policial encarregado do caso também está fora do nosso alcance, já
que ele mesmo cumpre pena por assassinato."
- Ai, Jesus - ela gemeu. Nem sequer tinha visto o arquivo do caso e aquela já estava se transformando numa missão dos infernos.
Kirkcaldy
Já passava das dez quando Karen entrou em casa com um pacote de arquivos e uma porção de peixe para o jantar. A ideia de que estava brincando de casinha nunca a
tinha abandonado. Talvez tivesse algo a ver com a casa em si, uma caixa pré-fabricada num empreendimento imobiliário popular de 1960, no norte de Kirkcaldy. O tipo
de lugar no qual as pessoas começavam a vida, aferrando-se à esperança de que não a terminariam ali. Um subúrbio com baixos índices de criminalidade, onde se podia
deixar as crianças brincar na rua, desde que não se morasse em uma das estradas. Acidentes de trânsito, e não sequestros, eram o que os pais mais temiam por ali.
Karen nunca se lembrava ao certo por que havia comprado a casa, embora, na época, tivesse parecido uma boa ideia. Suspeitava que o apelo estivera no fato de ela
vir completamente mobiliada, provavelmente por alguém que havia tirado a ideia de um programa de TV sobre decoração. Comprara a mobília junto com a casa, até mesmo
os quadros nas paredes. Não ligava para o fato de não ter sido ela a escolher as coisas entre as quais vivia. De qualquer maneira, era o tipo de coisa que ela provavelmente
teria escolhido, e aquilo lhe havia economizado o trabalho de passar um domingo numa loja da IKEA. E ninguém podia negar que era um milhão de vezes mais agradável
do que a confusão floral desbotada em que viviam seus pais. Sua mãe continuava esperando que ela se tornasse como todo mundo, mas isso não iria acontecer. Quando
tinha um fim de semana livre, Karen não desejava nada além de um prato de carne e legumes com curry com os amigos e passar um bom tempo estirada no sofá, assistindo
a jogos de futebol e a filmes antigos. Nada de arrumar a casa.
Ela colocou tudo sobre a mesa de jantar e foi à procura de um prato e talheres. Ainda conservava alguns padrões, pelo amor de Deus. Atirou o casaco sobre uma cadeira
e sentou-se com a refeição, abrindo um dos arquivos para ler enquanto comia. Ela já havia estudado os arquivos do caso Grant antes e tomado nota das perguntas para
as quais queria respostas. Agora, finalmente, tinha a chance de analisar o material que Phil compilara para ela.
Como havia esperado, o relatório de pessoa desaparecida original não poderia estar mais incompleto. Naquela época, o desaparecimento de um homem adulto, solteiro
e sem filhos, com histórico de depressão clínica, não teria muita atenção da polícia. Não tinha nada a ver com o fato de que a greve dos mineiros houvesse sobrecarregado
a força policial até o limite, e tudo a ver com o fato de que, naquele tempo, pessoas desaparecidas não eram prioridade. A não ser que fossem crianças pequenas ou
mulheres jovens e atraentes. Mesmo nos dias atuais, somente os problemas clínicos de Andy Kerr teriam garantido um leve interesse.
Seu desaparecimento havia sido informado por sua irmã, Angie, na véspera do Natal. Ele não aparecera na casa dos pais para a tradicional comemoração em família.
Angie, em casa de férias do curso de pedagogia, havia deixado alguns recados na secretária eletrônica dele na semana anterior, tentando marcar um encontro para um
drinque. Andy não respondera, mas aquilo não era incomum. Ele sempre fora dedicado ao trabalho, mas, desde que a greve havia começado, tornara-se um verdadeiro workaholic.
Então, na tarde da véspera de Natal, a Sra. Kerr admitira que Andy estava de licença por depressão. Angie convenceu o pai a levá-la de carro até o sítio de Andy,
no bosque de Wemyss. O lugar estava frio e deserto, sem qualquer comida fresca na geladeira. Havia um bilhete encostado no açucareiro sobre a mesa da cozinha. Incrivelmente,
o bilhete havia sido embalado e incluído no arquivo. Se você estiver lendo isto, provavelmente é porque está preocupado comigo. Não fique. Já aguentei o suficiente.
É uma coisa depois da outra, e não suporto mais. Fui embora para tentar colocar a cabeça no lugar. Andy.
Não era exatamente um bilhete de suicídio, mas, se você encontrasse um corpo ao lado de uma mensagem dessas, não esperaria que fosse uma vítima de assassinato. E
a irmã dissera que Andy gostava de fazer caminhada pela montanha. Ela podia entender por que o oficial que investigara o sítio e o bosque ao redor houvesse recomendado
que não se tomassem outras medidas além de fazer a informação circular entre as demais forças da Escócia. Uma anotação no arquivo, escrito com caligrafia diferente,
atestava que Angie Kerr havia entrado com um pedido para que seu irmão fosse declarado legalmente morto em 1992 e que o pedido fora concedido.
A última página estava na caligrafia familiar de Phil. "Os pais de Kerr morreram no desastre de balsa de Zeebrugge, em 1987. Angie não poderia reclamar sua herança
enquanto Andy não fosse declarado morto. Quando ela, finalmente, conseguiu legitimar a sucessão, em 1993, vendeu tudo e emigrou para a Nova Zelândia. Ela ensina
piano em Nelson, em South Island; trabalha em casa." Seguiam o endereço completo e o número de telefone de Angie Kerr.
Ela havia sofrido bastante com tudo aquilo, pensou Karen. Perder o irmão e os pais no espaço de alguns anos já era duro, e ainda por cima ter de passar pelo processo
de obter a declaração de morte legal para Andy. Não era de admirar que ela tivesse desejado se mudar para o outro lado do mundo. Onde, ela notou, seriam onze e meia
da manhã. Uma hora perfeitamente civilizada para se ligar para alguém.
Uma das poucas coisas que Karen havia comprado para sua casa era uma secretária eletrônica que lhe permitia gravar digitalmente as ligações telefônicas, que ela,
então, podia transferir via conexão USB para seu computador. Tentara convencer Biscoito a comprar algumas para o escritório, mas ele não se interessava. Provavelmente
porque não tinha sido ideia dele. Karen podia apostar que, muito em breve, algo parecido surgiria no escritório principal do Departamento de Investigação Criminal,
uma invenção do próprio subchefe Lees. Tudo bem. Pelo menos ela podia usar o sistema em casa e pedir ressarcimento pelas ligações.
Uma mulher atendeu no terceiro toque, o sotaque escocês evidente até mesmo nas duas sílabas de "Alô?".
Karen se apresentou e, então, disse:
- É Angie Kerr?
- Antes era Kerr. Agora é Mackenzie. É a respeito do meu irmão? Vocês o encontraram? - Ela parecia ansiosa, quase satisfeita.
- Não. Infelizmente, não.
- Ele não se matou, sabe? Sempre achei que sofreu um acidente. Caiu de alguma montanha, em algum lugar. Por mais deprimido que estivesse, Andy jamais se mataria.
Ele não era covarde. - O tom de desafio era claro em sua voz.
- Sinto muito - disse Karen. - Realmente não tenho respostas para você. Mas estamos examinando novamente os fatos da época em que ele
desapareceu. Estamos investigando o desaparecimento de Mick Prentice, e o nome do seu irmão veio à tona.
- Mick Prentice. - Angie parecia enojada. - Que belo amigo ele se revelou.
- O que você quer dizer?
- Não acho que seja coincidência que ele tenha fugido da greve justamente antes de Andy partir.
- Por que você diz isso?
Uma pausa curta, então Angie continuou:
- Porque seria o pior tipo de traição. Aqueles caras eram amigos desde o primeiro dia de escola. O fato de Mick ter furado a greve arrasaria Andy. E eu acho
que ele previu que isso aconteceria.
- O que a faz dizer isso?
- A última vez que o vi, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo com Mick.
Domingo, 2 de dezembro de 1984; Bosque de Wemyss
Nenhuma visita à casa de sua família seria completa, para Angie, se não passasse algum tempo com o irmão. Ela tentava vir pelo menos uma vez por semestre, mas, embora
a viagem de ônibus de Edimburgo levasse apenas uma hora, às vezes parecia demais para suportar. Ela sabia que o problema era o diferente tipo de distância que estava
crescendo entre ela e os pais, conforme se movimentava com maior liberdade num universo que era estranho para eles: palestras, sociedades estudantis, festas nas
quais as drogas eram tão comuns quanto um drinque, e uma gama de assuntos que ultrapassava tudo que ela já houvesse encontrado em Fife. Não que não existissem oportunidades
para ampliar os horizontes intelectuais por lá. Mas as salas de leitura, os cursos da WEA e os Bums Clubs eram para os homens. As mulheres nunca tiveram acesso nem
tempo para eles. Os homens cumpriam seus turnos no subterrâneo e, depois, seu tempo era só deles. Mas o trabalho das mulheres nunca terminava de verdade, principalmente
para aquelas cujos senhorios eram as antigas empresas carboníferas ou a comissão nacional do carvão. A própria avó de Angie não tivera água quente corrente nem um
banheiro em sua casa até já ter mais de sessenta
anos. Portanto, os homens não se sentiam facilmente atraídos por mulheres com formação escolar.
Andy era uma exceção. Sua mudança da frente mineira para o trabalho no sindicato o havia exposto às políticas igualitárias aspiradas pelo movimento sindicalista.
Ainda que não existissem mulheres trabalhando nas minas, o contato com outros sindicatos havia convencido Andy de que o mundo não acabaria se as mulheres fossem
tratadas como companheiras igualitárias da raça humana. E, assim, irmão e irmã tornaram-se mais próximos, substituindo as brigas da infância por discussões legítimas.
Agora, Angie esperava com ansiedade pelas tardes de domingo passadas com o irmão, passeando pelo bosque ou segurando canecas de chocolate quente diante da lareira.
Naquela tarde, Andy a esperara na parada de ônibus no final da estrada que descia até seu sítio, adentrando o bosque. Eles haviam planejado contornar o bosque e
caminhar até a orla, mas o céu ameaçava chuva, então optaram por voltar ao sítio.
- Acendi a lareira para a sua chegada - Andy dissera quando começaram a caminhada. - Me sinto culpado por ter dinheiro para o carvão, então, geralmente, não
a acendo. Simplesmente visto mais um suéter.
- Isso é uma tolice. Ninguém o culpa por ainda receber um salário.
Andy balançou a cabeça.
- É aí que você se engana. Tem um monte de gente que acha que deveríamos devolver nosso salário para o fundo do sindicato.
- E a quem isso beneficia? Você está fazendo um trabalho. Está apoiando os homens em greve. Merece ser remunerado. - Ela passou o braço pelo de Andy, compreendendo
como ele devia estar se sentindo acuado.
- Pois é, e muitos dos grevistas acham que também deveriam receber alguma coisa do sindicato. Ouvi alguns deles, lá no Serviço Social, dizendo que, se o sindicato
estivesse pagando salário-greve, não teriam que estar trabalhando tanto para manter os fundos a salvo das mãos dos confiscadores. Eles questionam para que servem
os fundos do sindicato se não é para ajudar seus membros quando há uma greve. - Ele suspirou, a cabeça baixa como se estivesse caminhando contra um vento forte.
- E eles têm razão, sabe?
- Imagino que sim. Mas se você delega a tomada de decisões a seus líderes, que foi o que eles fizeram ao concordar com a greve sem uma votação
nacional, então não pode começar a reclamar quando eles tomam decisões com as quais você não concorda muito. - Angie olhou atentamente para o irmão, observando como
as linhas de tensão ao redor de seus olhos haviam se aprofundado, desde a última vez que o vira. Sua pele parecia pálida e pouco saudável, como a de um homem que
viesse passando tempo demais em ambientes fechados e sem suplementos vitamínicos. - E se você se deixar intimidar a esse respeito, não ajudará a ninguém.
- Não sinto que esteja sendo de muita ajuda no momento - ele disse, tão baixinho que a fala quase se perdeu no ruído das folhas mortas sob seus pés.
- Isso é uma bobagem - Angie protestou, sabendo que não era suficiente, mas sem saber o que mais poderia dizer.
- Não, é a verdade. A vida dos homens que eu represento está desmoronando. Eles estão perdendo a casa porque não conseguem pagar a hipoteca. A esposa já vendeu
o anel de casamento. Os filhos vão para a escola com fome. Têm furos nos sapatos. Aqui mais parece um maldito país de Terceiro Mundo, só que não temos nenhuma instituição
de caridade arrecadando dinheiro para nos ajudar com nosso desastre. E não posso fazer nada a respeito. Como você acha que me sinto com isso?
- Bem mal - disse Angie, agarrando seu braço com mais força. Não havia resistência; era como abraçar o protetor estofado contra correntes de ar que sua mãe
usava para manter a sala o mais abafada possível. - Mas você pode fazer apenas o melhor que conseguir. Ninguém espera que você solucione todos os problemas da greve.
- Eu sei - ele suspirou. - Mas me sentia parte desta comunidade. Pertenci a ela minha vida inteira. Agora, parece que os caras em greve estão num lado da
cerca e todos os demais estão no outro. Funcionários do sindicato, auxiliares das minas, gerentes, a porra do governo Toiy... somos todos inimigos.
- Agora é que você está realmente dizendo bobagens. De jeito nenhum estamos no mesmo lado que os Tories. Todo mundo sabe disso. - Eles caminharam em silêncio,
apressando o passo quando a promessa de chuva se tornou realidade. Caiu torrencialmente em gotas frias e duras. Os galhos nus acima de sua cabeça ofereciam pouca
proteção contra o aguaceiro penetrante. Angie soltou o braço dele e começou a correr. - Vamos apostar uma corrida? - ela disse, animada, de alguma forma, pelo aguaceiro
gelado.
Não olhou para verificar se ele a estava seguindo. Apenas correu de forma desordenada em meio às árvores, seguindo a trilha sinuosa. Como sempre, emergir na clareira
onde o sítio se incrustava era incrivelmente repentino. A casa aparecia como algo saído dos contos dos Irmãos Grimm, uma construção baixa sem qualquer outro charme
além do seu isolamento. O teto de ardósia, o estuque cinza, a porta e as janelas pretas levariam qualquer criança que passasse por ali a identificá-la como a casa
da bruxa malvada. Um alpendre de madeira abrigava um recipiente para carvão, uma pilha de madeira e a motocicleta com sidecar de Andy.
Angie correu até a varanda e se virou, ofegante. Não havia sinal de Andy. Alguns minutos se passaram antes que ele surgisse entre as árvores, caminhando com dificuldade,
o cabelo castanho-claro grudado à cabeça. Angie sentiu-se murchar diante do fracasso de sua tentativa de animá-lo um pouco. Ele não disse nada ao entrar primeiro
na casa, tão organizada e espartana quanto um quartel. A única decoração era uma série de pôsteres de animais selvagens que haviam sido dados como brinde junto com
um dos jornais dominicais escoceses. Um conjunto de prateleiras estava lotado de livros sobre história natural e política; outro, de LPs. Não poderia ser mais diferente
dos quartos que ela frequentava em Edimburgo, mas Angie gostava mais dali do que de qualquer um deles. Ela sacudiu a cabeça como um cachorro para tirar as gotas
de chuva do cabelo louro-escuro, atirou o casaco sobre uma cadeira e se encolheu em uma das poltronas de segunda mão que estavam ao lado da lareira. Andy foi direto
até a cozinha para preparar o chocolate quente.
Enquanto esperava que ele se juntasse a ela, Angie tentava imaginar uma forma de animá-lo. Geralmente, ela o fazia rir com as histórias de seus colegas da universidade
e suas travessuras, mas sentia que isso não iria funcionar naquele dia. Iriam parecer histórias insensíveis sobre os privilegiados. Talvez a solução fosse lembrá-lo
das pessoas que ainda acreditavam nele.
Ele voltou com duas canecas fumegantes numa bandeja. Geralmente, eles comiam biscoitos, mas qualquer coisa que cheirasse a luxo estava fora do cardápio daquele dia.
- Tenho doado a maior parte do meu salário para o fundo de emergência - ele disse, percebendo que ela havia notado. - Só guardo o suficiente para o aluguel
e as coisas básicas.
Sentaram-se de frente um para o outro, aferrando-se à bebida quente para deixar que o calor penetrasse em suas mãos geladas. Angie falou primeiro.
- Você não deveria dar atenção a eles. As pessoas que realmente o conhecem não acham que você seja um dos inimigos. Você deveria ouvir gente como Mick, que
sabe quem você é. O que você é.
- Você acha mesmo? - Sua boca se retorceu numa expressão amargurada. - Como é que pessoas da laia de Mick podem saber quem eu sou, se nem sequer sabem mais
quem elas mesmas são?
- O que você quer dizer com não saber mais quem é Mick? Vocês são amigos há mais de vinte anos. Não acredito que a greve tenha mudado nenhum de vocês tanto
assim.
- É o que se poderia pensar, não? - Andy olhou fixamente para o fogo com os olhos embotados e os ombros caídos. - Os homens daqui... não é comum a gente conversar
sobre nossos sentimentos. Vivemos nesta atmosfera de camaradagem, lealdade e dependência mútua, mas nunca falamos sobre o que acontece dentro da gente. Mas eu e
o Mick, nós não éramos assim. Costumávamos contar tudo um ao outro. Não havia nada sobre o que não pudéssemos conversar. - Ele afastou o cabelo molhado da testa
alta e estreita. - Mas, ultimamente, algo mudou. Sinto que ele está escondendo alguma coisa. Parece que há alguma questão realmente importante sobre a qual ele não
consegue se obrigar a falar.
- Mas pode ser qualquer coisa - disse Angie. - Algo entre ele e Jenny, talvez. Algo que não seria certo discutir com você.
Andy fungou.
- Você acha que ele não fala sobre Jenny? Eu sei tudo sobre aquele casamento, pode acreditar. Poderia desenhar um mapa das falhas geológicas entre aqueles
dois. Não, não é Jenny. A única coisa que posso pensar é que ele concorda com os outros. Que ache que eu não esteja servindo de nada para eles, no momento.
- Tem certeza de que não é sua imaginação? Isso não parece coisa do Mick.
- Bem que eu gostaria. Mas não é imaginação. Nem mesmo meu melhor amigo acha que eu mereça confiança. Só não sei quanto tempo conseguirei fazer meu trabalho,
me sentindo deste jeito.
Angie começou a se preocupar de verdade. O desespero de Andy estava claramente além de qualquer coisa com a qual ela soubesse lidar.
- Andy, não me leve a mal, mas você precisa ir ao médico.
Ele emitiu um som que parecia o de uma risada sufocada antes mesmo de se formar.
- Quem? O Dr. Aspirina e o Dr. Melhorai, os gêmeos analgésicos? Você acha que estou perdendo o juízo? Acha que esses dois saberiam o que fazer a respeito,
se eu estivesse mesmo? Acha que preciso de temazepam, como a porra da metade das mulheres daqui? Pílulas da felicidade, para fazer com que nada mais importe?
- Eu quero ajudar você, Andy. E não tenho competência para isso. Você precisa conversar com alguém que saiba o que fazer, e os médicos são um bom começo.
Até mesmo o Aspirina e o Melhoral sabem mais do que eu sobre depressão. Acho que você está deprimido, Andy. Uma depressão clínica mesmo, e não apenas tristeza.
Ele pareceu que ia chorar.
- Sabe o que é o pior de tudo isso que você acabou de falar? Que eu acho que você pode ter razão.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Kirkcaldy
Parecia plausível. Andy Kerr havia sentido que Mick Prentice escondia alguma coisa dele. Quando pareceu que Mick havia se unido aos fura-greves e ido para Nottingham,
deve ter sido o suficiente para empurrar alguém já fragilizado para o abismo. Mas aparentemente Mick Prentice, afinal, não havia ido para Nottingham. A questão,
pensou Karen, era se Andy Kerr sabia o que realmente havia acontecido com seu melhor amigo. E se ele estava envolvido no desaparecimento dele.
- E você nunca mais falou com Andy, depois daquele domingo? - ela perguntou.
- Não. Tentei telefonar para ele algumas vezes, mas só caía na secretária eletrônica. Eu não tinha telefone onde estava morando, então ele não tinha como
me ligar de volta. Minha mãe me disse que o médico lhe dera uma licença do trabalho, por causa da depressão, mas isso foi tudo que eu soube.
- Você acha que é possível que ele e Mick tenham ido a algum lugar juntos?
- O quê? Você quer dizer que tenham dado as costas para todo mundo e ido em direção ao pôr do sol, como Butch Cassidy e Sundance Kid?
Karen recuou.
- Não exatamente assim. Mas como se os dois tivessem se fartado e não conseguissem ver outra saída. Não há dúvida de que Andy estava com problemas. E você
sugeriu que Mick e Jenny também não estavam se entendendo. Talvez eles tenham se decidido por um rompimento limpo.
Ela podia ouvir Angie respirando, no outro lado do mundo.
- Andy não faria isso conosco. Ele jamais teria nos magoado dessa forma.
- Mick poderia tê-lo convencido? Você disse que eles eram amigos desde a escola. Quem era o líder? Quem era o seguidor? Sempre há um que lidera e outro que
segue. Você sabe disso, Angie. Mick era o líder? - Ninguém conseguia ser mais insistente do que Karen, quando estava inspirada.
- Acho que sim. Mick era o extrovertido, Andy era muito mais quieto. Mas eles formavam uma dupla. Estavam sempre metidos em problemas, mas não de forma negativa.
Não com a polícia. Apenas enrolados na escola. Eles sabotavam as experiências de química com fogos de artifício. Grudavam a tampa da mesa da professora. Andy era
bom com as palavras, e Mick era artístico, então eles imprimiam pôsteres com anúncios falsos da escola. Ou Mick falsificava bilhetes dos professores, dando aos dois
permissão para sair das aulas de que eles não gostavam. Ou bagunçavam a biblioteca, trocando as capas dos livros. Eu teria um ataque de nervos se tivesse alunos
como eles. Mas eles amadureceram. Na época da greve, os dois já estavam assentados na vida. - Havia mais do que um toque de pesar em sua voz. - Portanto, sim, teoricamente,
Mick poderia ter convencido Andy a dar no pé. Mas não teria sido por muito tempo. Eles teriam voltado. Não poderiam ficar longe. Tinham raízes profundas demais.
- Você cortou as suas - Karen observou.
- Eu me apaixonei por um neozelandês, e minha família inteira estava morta - Angie disse, simplesmente. - Eu não estava deixando para trás ninguém para chorar
por mim.
- É justo. Podemos voltar para o Mick? Você disse que Andy sugerira que havia problemas no casamento dele.
- Ela o obrigou a casar, sabe? Andy sempre achou que ela ficara grávida de propósito. Ela deveria estar tomando pílula, mas, incrivelmente, não funcionou
e, em seguida, Misha estava a caminho. Ela sabia que Mick vinha de uma família decente, o tipo de gente que não foge das responsabilidades. Então, é claro que ele
se casou com ela.
Havia um toque de amargura em seu tom de voz que fez Karen se perguntar se ela havia sido apaixonada por Mick Prentice antes que seu neozelandês aparecesse.
- Não foi o melhor dos começos, então.
- No início, eles pareciam bem felizes. - A admissão rancorosa de Angie custou a vir. - Mick a tratava como uma princesinha, e ela se aproveitava disso. Mas
não gostou nada quando chegaram os tempos difíceis. Achei, na época, que ela o havia forçado a furar a greve porque tinha se cansado de viver na miséria.
- Mas ela sofreu muito, depois que ele foi embora - disse Karen. - Foi um estigma terrível ser a esposa de um fura-greve. Ela não teria permitido que ele
a deixasse enfrentar aquilo sozinha.
Angie emitiu um ruído de desdém.
- Ela não tinha ideia de como seria, até que aconteceu. Ela não entendia. Não era das nossas, sabe? As pessoas falam da classe trabalhadora como se fosse
um bolo só, mas as linhas demarcatórias são tão bem definidas quanto em qualquer outra classe. Ela nasceu e foi criada em East Wemyss, mas não era uma de nós. Seu
pai não sujava as mãos. Ele trabalhava na cooperativa. Ficava atrás de um balcão de loja. Vestia camisa e gravata para trabalhar. Aposto que ele nunca votou no Partido
Trabalhista na vida. Então, não tenho certeza de que ela entendesse bem o que iria acontecer com ela, se Mick entrasse em greve.
Fazia sentido. Karen compreendia visceralmente o que Angie estava dizendo. Ela conhecia pessoas assim em sua própria comunidade. Pessoas que não se encaixavam em
lugar algum, que tinham a bunda calejada de tanto ficarem sentadas em cima do muro. Acrescentava peso à ideia de que Mick Prentice poderia ter fugido da greve. Exceto
pelo fato de ele não ter feito isso.
- O negócio, Angie, é que parece que Mick não fugiu da greve, naquela noite. Nossos inquéritos preliminares indicam que ele não se uniu àqueles cinco homens
que foram para Nottingham.
Um silêncio chocado. Então, Angie disse:
- Ele poderia ter ido para outro lugar, sozinho.
- Ele não tinha dinheiro. Nem um meio de transporte. Não levou nada consigo quando saiu naquela manhã, além de seu material de pintura. Seja o que for que
aconteceu com ele, não acho que ele tenha fugido da greve.
- Então, o que aconteceu com ele?
- Ainda não sei - disse Karen. - Mas planejo descobrir. E esta é a pergunta que preciso começar a fazer: vamos supor que Mick não tenha furado a greve. Quem
poderia ter motivos para querê-lo fora do caminho?
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Nottingham
Femi Otitoju digitou o quarto endereço no Google Earth e estudou o resultado.
- Vamos, Fem - resmungou Mark Hall. - O inspetor-chefe está de olho na gente. Ele está se perguntando que diabo você está fazendo, brincando com o computador,
depois de ele ter nos mandado numa missão.
- Estou calculando a ordem mais eficiente para fazer as entrevistas, assim não teremos que perder a metade do dia voltando aos lugares. - Ela olhou para os
quatro nomes e endereços fornecidos por um detetive de Fife e os numerou de acordo com sua lógica. - E eu já falei: não me chame de Fem. - Ela imprimiu a lista e
a dobrou com esmero, guardando-a em sua impecável bolsa de mão. - Meu nome é Femi.
Mark girou os olhos e a seguiu, saindo do escritório de Revisão de Casos Arquivados, lançando um sorriso nervoso para o inspetor-chefe Mottram no caminho. Ele havia
esperado ansiosamente por sua transferência para o Departamento de Investigações Criminais, mas, se tivesse sido avisado de que isso significaria trabalhar com Femi
Otitoju, ele poderia ter reconsiderado a questão. O comentário na delegacia, quando ambos ainda usavam uniformes, era que, no caso de Otitoju, a sigla AP (agente
policial) queria dizer Além da Perfeição. Seu uniforme sempre fora imaculado e os sapatos, lustrados no padrão militar. Suas roupas civis seguiam o mesmo estilo:
um discreto
terninho cinza impecavelmente passado, camisa de um branco ofuscante, cabelo impecável. E sapatos mais polidos que um espelho. Tudo que ela fazia era dentro das
regras;
tudo era preciso. Não que Mark tivesse algo contra as coisas serem feitas adequadamente. Mas ele sempre acreditara que havia espaço para a espontaneidade, principalmente
numa entrevista. Se a pessoa com quem você estivesse falando saísse pela tangente, não havia mal algum em segui-la por um tempo. Às vezes, era entre as tangentes
que a verdade estava oculta.
- Então, esses quatro eram mineiros de Fife que furaram a greve para vir trabalhar nas minas daqui? - ele perguntou.
- Exatamente. Originalmente, havia cinco, mas um deles, Stuart McAdam, morreu há dois anos, de câncer de pulmão.
Como é que ela se lembrava daquelas coisas? E por que se importava em memorizá-las?
- E quem você vai ver primeiro?
- William John Fraser. Conhecido como Billy. Cinquenta e três anos, casado, dois filhos adultos, um na Universidade de Leeds, o outro em Loughborough. Ele
é eletricista autônomo agora. - Ela pendurou a bolsa no ombro. - Eu dirijo; sei aonde estamos indo.
Saíram para o estacionamento descoberto atrás da delegacia e se dirigiram para um carro sem identificação de uso comum do DIC (Departamento de Investigação Criminal).
Mark sabia que o carro estaria cheio de lixo deixado por outros policiais. Conforme descobria, o DIC e os carros eram como cães e postes.
- Ele não vai estar no trabalho agora?
Ele abriu a porta do passageiro e constatou que o assoalho do carro estava coberto de embalagens de sanduíches, latas de Coca-Cola vazias e cinco papéis de chocolate
Snickers. Algo branco esvoaçou no canto de sua visão periférica. Otitoju sacudia uma sacolinha plástica vazia.
- Tome - ela disse. - Enfie o lixo aqui para eu jogar na lixeira.
Mark pensou que, afinal, ela servia para alguma coisa. Seguiram pela
estrada principal, ainda movimentada mesmo depois da hora do rush matinal, e foram na direção oeste. A estrada era margeada por casas de tijolos vermelhos sujos
e pelo tipo de comércio que mal conseguia sobreviver, devido às opções mais sofisticadas em outros lugares. Lojas de conveniência,
salões de manicure, lojas de ferramentas, lavanderias, lanchonetes de fast-food e cabeleireiros. Era deprimente passar por ali. Mark ficou agradecido por seu apartamento
no centro da cidade, em uma fábrica de rendas que fora reformada. Podia ser pequeno, mas ele não tinha de lidar com essa pobreza em sua vida pessoal. E havia um
excelente restaurante chinês bem na esquina, que entregava em domicílio.
Quinze minutos percorrendo a estrada que contornava a cidade e eles viraram para um enclave de casinhas geminadas. Pareciam ter sido construídas na década de 1930;
sólidas, despretensiosas e de boa proporção. A casa de Billy Fraser ficava num terreno de esquina, com um jardim considerável e bem cuidado.
- Morei nesta cidade a vida toda e nem sequer sabia que este lugar existia - comentou Mark.
Ele seguiu Otitoju pela entrada da casa. A porta foi aberta por uma mulher que não podia ter mais de um metro e cinquenta de altura. Tinha a aparência de alguém
que já perdera sua melhor forma: mechas grisalhas no chanel castanho-claro, o queixo começando a ficar flácido, e alguns quilos a mais do que o ideal. Mark achou
que ela até que estava bem para a idade. Sua abordagem foi direta, antes que Otitoju tivesse a chance de assustá-la.
- Sra. Fraser?
A mulher assentiu, parecendo ansiosa.
- Sim, sou eu. - Sotaque local, notou Mark. Então, ele não havia trazido uma esposa de Fife. - E vocês são...?
- Sou Mark Hall, e esta é minha colega, Femi Otitoju. Somos policiais e precisamos conversar com Billy. Não é nada para se preocupar - acrescentou rapidamente,
ao ver o olhar de pânico no rosto da Sra. Fraser. - Uma pessoa que ele conhecia, lá em Fife, foi dada como desaparecida, e nós precisamos fazer algumas perguntas
a Billy.
A mulher balançou a cabeça.
- Você vai perder seu tempo, meu bem. Billy não manteve contato com ninguém de Fife a não ser os rapazes que vieram com ele para cá. E isso já faz mais de
vinte anos.
- O homem no qual estamos interessados desapareceu há mais de vinte anos - Otitoju disse, asperamente. - Então, precisamos falar com seu marido. Ele está
em casa?
Mark sentiu vontade de chutá-la, ao ver o rosto da Sra. Fraser se fechar para eles. Otitoju, definitivamente, não havia entrado na fila da simpatia.
- Ele está no trabalho.
- Você poderia nos dizer onde ele está trabalhando, minha flor? - perguntou Mark, tentando recuperar o rumo da conversa.
Ele quase podia enxergar o debate mental no rosto da mulher.
- Espere um pouco - ela disse, enfim. Voltou com uma agenda grande aberta na página daquele dia. Virou-a para que ele a olhasse. - Aqui está.
Otitoju já estava anotando o endereço em sua preciosa folha de papel. A Sra. Fraser viu os nomes.
- Vocês estão com sorte - ela disse. - Johnny Ferguson está trabalhando com ele hoje. Vocês poderão matar dois coelhos com uma cajadada só. - Pela expressão
em seu rosto, ela não estava muito convencida de que fosse apenas uma metáfora.
Os dois ex-mineiros estavam trabalhando a apenas cinco minutos de carro dali, reformando uma loja na rua principal.
- De casa de espetinhos de carne a oficina de molduras de quadros num passe de mágica - disse Mark, lendo as placas.
Fraser e Ferguson trabalhavam duro. Fraser abria um canal para passar os fios elétricos enquanto Ferguson derrubava o banco que havia em uma das paredes para facilitar
os clientes que compravam para viagem. Ambos pararam o que estavam fazendo quando os dois policiais entraram, olhando-os cautelosamente. Era engraçado, pensou Mark,
como algumas pessoas sempre reconheciam policiais instantaneamente, ao passo que outras pareciam ignorar quaisquer sinais que ele e seus colegas pudessem emitir.
Não tinha nada a ver com ser culpado ou inocente, como ele havia pensado, ingenuamente, no começo. Era só um instinto para identificar o caçador.
Otitoju os apresentou e explicou por que estavam ali. Fraser e Ferguson pareceram confusos.
- Por que alguém pensaria que ele veio conosco? - perguntou Ferguson.
- Mais objetivamente, por que alguém pensaria que nós o traríamos?
- Billy Fraser passou as costas da mão pela boca, num gesto de repulsa. -
Mick Prentice achava que nós estávamos abaixo dele. Mesmo antes de nós furarmos a greve, ele desprezava a gente. Achava que era melhor do que nós.
- Por que ele pensaria isso? - Mark perguntou.
Fraser tirou um maço de Bensons do bolso do macacão. Antes que ele pudesse pegar um cigarro, Otitoju já havia colocado a mão macia sobre a aspereza da dele.
- Isso agora é contra a lei, Sr. Fraser. Este é um local de trabalho. O senhor não pode fumar aqui.
- Ah, puta que pariu - Fraser reclamou, virando-se enquanto enfiava os cigarros de volta no bolso.
- Por que Mick Prentice achava que era melhor do que vocês? - Mark perguntou novamente.
Ferguson aceitou o desafio.
- Alguns homens entraram em greve porque o sindicato mandou que fizessem isso. E outros porque estavam convencidos de sua razão e de que sabiam o que era
melhor para o restante de nós. Mick Prentice era um dos que achavam que sabiam mais do que os outros.
- Isso - Fraser concordou, com amargura. - E ele tinha seus amigos do sindicato para cuidarem dele. - Ele esfregou o polegar e o indicador no gesto universal
que representava dinheiro.
- Não entendo - disse Mark. - Sinto muito, companheiro, sou jovem demais para me lembrar da greve. Mas achei que um dos maiores problemas era que vocês não
recebiam salário-greve.
- Você está certo, filho - disse Fraser. - Mas, por algum tempo, os rapazes que participavam dos piquetes móveis recebiam dinheiro vivo. Então, quando havia
qualquer necessidade de ir aos piquetes, eram sempre os mesmos que recebiam autorização. E se você não servisse para aquilo, não havia nada mais para você. Acontece
que o Mick servia mais do que a maioria. Seu melhor amigo era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores, percebe?
- Era mais difícil para uns do que para outros - acrescentou Ferguson. - Imagino que o amiguinho de Prentice lhe dava uma graninha ou um pacote de comida
quando terminava o dinheiro dos piquetes. A maioria de nós não tinha tanta sorte. Portanto, não, Mick Prentice não veio conosco. E Billy tem razão. Nós não o teríamos
aceitado, se ele tivesse pedido para vir.
Otitoju andava pela sala, vistoriando o trabalho deles como se fosse uma inspetora de obras.
- No dia em que vocês partiram... Vocês chegaram a ver Mick Prentice?
Os dois homens trocaram um olhar que pareceu furtivo para Mark. Ferguson, rapidamente, sacudiu a cabeça.
- Mais ou menos - ele disse.
- Como é possível ver alguém "mais ou menos"? - Otitoju inquiriu, virando-se na direção deles.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984
Johnny Ferguson estava no escuro, na janela do quarto, de onde podia ver a estrada principal que atravessava o vilarejo. O quarto não estava frio, mas ele tiritava
um pouco, e a mão que segurava o cigarro enrolado tremia, recortando a elevação suave da fumaça.
- Vamos, Stuart - ele resmungou a meia-voz. Deu outra tragada no cigarro e olhou novamente para o relógio barato em seu pulso. Dez minutos de atraso. Seu
pé direito começou, involuntariamente, a tamborilar no chão.
Nada se movia. Ainda não eram nove horas, mas quase não havia luz. As pessoas não tinham dinheiro para pagar a eletricidade. Elas iam até o Serviço Social para usufruir
um pouco de luz e de aquecimento, ou iam para a cama, esperando dormir o suficiente para que o pesadelo tivesse terminado quando despertassem. Pela primeira vez,
entretanto, o silêncio das ruas não incomodou Ferguson. Quanto menos pessoas testemunhassem o que aconteceria naquela noite, melhor. Ele sabia exatamente o que estava
prestes a fazer, e estava morrendo de medo.
De repente, viu um par de faróis virando a esquina da Main Street. Contra as luzes fracas da rua, Ferguson pôde definir a silhueta de uma van Transit. Modelo antigo,
não o novo, que a polícia usava para transportar as tropas em suas operações contra os mineiros. Conforme a van se aproximou, ele pôde ver que era de cor escura.
Finalmente, Stuart havia chegado.
Ferguson apagou o cigarro. Deu uma última olhada no quarto em que havia dormido nos últimos três anos, desde que alugara aquela casinha minúscula. Estava escuro
demais para ver muita coisa, mas, também, ali
não havia muito o que ver. O que não podia ser vendido tinha sido quebrado para usar como lenha. Agora só havia o colchão no assoalho com um cinzeiro e um livro
rasgado de Sven Hassel ao lado. Nada que se arrependeria de abandonar. Helen já partira havia muito tempo, então, ele podia muito bem dar as costas para aquele bando
de desgraçados.
Desceu ruidosamente as escadas até o andar de baixo e abriu a porta bem no instante em que Stuart ia bater.
- Preparado? - perguntou-lhe Stuart.
Um suspiro profundo:
- Mais preparado, impossível.
Ele empurrou uma bolsa de viagem com o pé na direção de Stuart, agarrou a outra e apanhou também um saco preto de lixo. Dez anos de merda trabalhando na mina de
carvão e aquilo era tudo que tinha.
Deram dois passos, dos quatro que os conduziriam até a van e, de repente, já não estavam mais sozinhos. Uma figura virou a esquina, apressadamente, como alguém que
estivesse numa missão. Alguns metros mais perto, e a forma se definiu como Mick Prentice. Ferguson sentiu como se uma gelada mão lhe apertasse o peito. Era só o
que faltava! Prentice vir atacá-los, gritando insultos e fazendo com que todas as portas da rua se abrissem.
Stuart jogou a bolsa na traseira da van, onde Billy Fraser já estava acomodado sobre uma pilha de sacolas. Ele se virou para encarar Prentice, pronto para agir,
se fosse necessário.
Mas a raiva que tinham esperado que chovesse sobre eles não veio. Em vez disso, Prentice apenas ficou ali parado, parecendo prestes a romper em lágrimas. Olhou para
eles e balançou a cabeça.
- Não, rapazes. Não. Não façam isso - disse.
Ele continuou repetindo aquilo. Ferguson mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que os atormentava, convocando-os e incitando-os para que continuassem
leais ao sindicato. Isso era, pensou ele, uma amostra de como aquela greve os havia derrotado.
Ferguson passou por Prentice, guardou suas bolsas no carro e sentou-se ao lado de Fraser, que puxou as portas para fechá-las atrás dele.
- Inacreditável, porra - disse Fraser.
- Parece que ele acabou de levar um soco no estômago - disse Ferguson. - O cara pirou de vez.
- Dê graças a Deus - disse Fraser. - A última coisa de que precisávamos era que ele explodisse como uma porra de um foguete e fizesse a casa cair para a gente.
- Ele ergueu a voz quando o motor deu a partida. - Vamos, Stu. A vida nova começa agora.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007
- Houve alguma testemunha desse encontro? - perguntou Otitoju.
- Stuart já morreu, então sou a única testemunha que resta - Fraser disse. - Eu estava na van. A porta traseira estava aberta e eu vi tudo. Johnny tem razão:
Prentice parecia devastado. Como se o que estávamos fazendo fosse uma afronta pessoal.
- Poderia ter sido bem diferente se, em vez de você na van, estivesse o Iain - disse Ferguson.
- Por que isso teria feito diferença? - perguntou Mark.
- Iain e ele eram amigos. Prentice talvez sentisse a necessidade de ten tar convencê-lo a mudar de ideia. Mas Iain foi o último a ser apanhado, então achei
que havíamos nos livrado de uma boa. E essa foi a última vez que vimos Prentice - disse Ferguson. - Ainda tenho família por lá. Ouvi dizer que ele tinha dado no
pé, mas supus que ele houvesse ido com aquele amigo dele, o cara do sindicato. Não consigo me lembrar do nome dele...
- Andy alguma coisa - disse Fraser. - Isso mesmo, quando você me disse que os dois estavam na lista de desaparecidos, pensei que tivessem decidido dar o fora
e começar do zero em outro lugar. Vocês têm que entender, a vida das pessoas estava se desfazendo, naquela época. Os homens faziam coisas que jamais imaginaríamos
que fossem capazes. - Ele se virou, caminhou até a porta e saiu, tirando os cigarros do bolso.
- Ele está certo - disse Ferguson. - E, na maioria das vezes, não queríamos pensar muito a respeito. Pensando bem, ainda não queremos. Portanto, a não ser
que haja mais alguma coisa, desejamos a vocês um bom dia. - Ele apanhou o pé de cabra e voltou à sua tarefa.
Incapaz de pensar em mais perguntas, Mark se dirigiu para a porta. Otitoju hesitou um instante, antes de segui-lo até o carro. Ficaram sentados em silêncio por um
momento e, então, Mark disse:
- Deve ter sido horrível.
- Não justifica o desrespeito deles pela lei - disse Otitoju. - A greve dos mineiros provocou um distanciamento entre nós e as pessoas a quem servimos. Eles
nos fizeram parecer brutais, apesar de termos sido provocados. Dizem que até a rainha ficou chocada com a batalha de Orgreave, mas o que as pessoas esperavam? Supostamente,
devemos manter a paz. Se as pessoas não consentem em ser policiadas, o que mais podemos fazer?
Mark a encarou.
- Você me assusta - ele disse.
Ela pareceu surpresa.
- Às vezes me pergunto se você está no trabalho certo - ela retrucou.
Mark olhou para longe.
- Então somos dois, minha flor.
Castelo de Rotheswell
A despeito de sua determinação de lidar com Sir Broderick Maclennan Grant exatamente da mesma forma como lidaria com qualquer outra pessoa, Karen tinha de admitir
que seu estômago não estava colaborando. A ansiedade sempre havia afetado seu sistema digestivo, tirando-lhe o apetite e obrigando-a a fazer visitas urgentes ao
banheiro.
- Se eu tivesse que fazer mais entrevistas assim, não precisaria me preocupar com dieta - disse, quando ela e Phil partiram em direção ao Castelo de Rotheswell.
- Ach, andam valorizando demais as dietas - disse Phil, da confortável posição de um homem cujo peso não se alterara desde que completara dezoito anos, independentemente
do que comesse ou bebesse. - Você está bem assim.
Karen queria acreditar nele, mas não conseguia. Ninguém acharia atraente sua figura gorducha, a não ser que estivesse muito mais necessitado de companhia feminina
do que Phil.
- Ah, sei.
Ela abriu sua maleta e revisou os pontos principais do arquivo do caso, para o bem de Phil. Mal havia chegado ao final de seu resumo quando viraram para tomar a
entrada de Rotheswell. Para além dos galhos secos de um grupo de árvores, podiam avistar o castelo, mas, antes de se aproximarem
mais, sua identidade precisava ser verificada. Tiveram de sair do carro e mostrar a credencial para a câmera do circuito fechado de televisão. Então, os sólidos
portões de madeira se abriram, permitindo que o carro chegasse a uma espécie de antecâmara de segurança. Phil foi dirigindo, enquanto Karen caminhava ao lado do
carro. Os portões de madeira se fecharam atrás deles, deixando-os presos num tipo de curral gigante. Dois guardas saíram de uma guarita e revistaram o exterior e
o interior do carro, a maleta de Karen e os bolsos do casaco esportivo de Phil.
- Ele tem um sistema de segurança melhor que o do primeiro-ministro - disse Karen, quando finalmente puderam seguir de carro até o castelo.
- É mais fácil conseguir um primeiro-ministro novo do que outro Brodie Grant - disse Phil. - De qualquer forma, aposto que é isso que ele pensa.
Ao se aproximarem da casa, um senhor de idade, vestindo um casaco impermeável e um quepe de lã, contornou a torre mais próxima e acenou para que eles seguissem até
o extremo do pátio de cascalho, em frente à casa. Quando eles finalmente estacionaram, ele já havia desaparecido, sem deixar-lhes outra opção senão a de se aproximar
das imensas portas de madeira com tachas de ferro, no centro da fachada.
- Onde está o Mel Gibson quando precisamos dele? - Karen resmungou, levantando uma aldrava pesada de ferro e deixando-a cair com um estrondo considerável.
- Parece um filme ruim.
- E nós ainda nem sabemos por que estamos aqui. - Phil parecia aborrecido. - Difícil entender o que poderia justificar tamanha preparação.
Antes que Karen pudesse responder, a porta se abriu, girando em dobradiças silenciosas. Uma mulher, que lembrara sua professora do primário, disse:
- Bem-vindos a Rotheswell. Sou Susan Charleson, assistente pessoal de Sir Broderick. Entrem.
Eles entraram em um saguão onde, não fosse pela grandiosa escadaria, poderia caber a casa inteira de Karen. Antes que pudessem observar mais do que as cores intensas
e a atmosfera de aconchego, eles foram impelidos a seguir por um amplo corredor, por uma curta distância.
- Suponho que seja a inspetora Pirie - disse Susan Charleson. - Mas não estou a par do nome e do posto do seu colega.
- Sargento detetive Phil Parhatka - ele disse, com toda a pompa de que era capaz diante da formalidade dela.
- Ótimo, agora posso apresentá-los - ela disse, dando um passo para o lado e abrindo uma porta.
Ela acenou para que entrassem em uma sala onde o DIC poderia facilmente realizar seu Bums' Supper* anual. Teriam de empurrar alguns dos móveis para junto das paredes,
só para abrir espaço para as danças tradicionais, mas, ainda assim, não ficariam muito apertados.
Havia três pessoas na sala, mas Karen instantaneamente se concentrou naquela que irradiava carisma. Brodie Grant podia já ter passado dos setenta anos, mas ainda
tinha mais glamour que as duas mulheres que o rodeavam. Ele estava próximo à notável cornija de pedra entalhada da lareira, com a mão esquerda sob o cotovelo direito
e a mão direita segurando casualmente um charuto fino; o rosto estava tão imóvel e impressionante quanto na capa de revista que ela havia encontrado, ao buscar por
imagens dele no Google. Vestia um paletó de tweed cinza e branco cujo caimento sugeria ser de caxemira e seda, em vez do tradicional Harris and Donegal, uma camiseta
polo preta, calça combinando e aquele tipo de sapatos que Karen somente havia visto nos pés de americanos ricos. Ela achava que se chamavam sapatos oxford ou algo
parecido. Assemelhavam-se a alguma coisa que se veria num boneco escocês com traje típico, e não num capitão da indústria. Ela estava tão ocupada observando seus
sapatos estranhos que quase perdeu as apresentações.
Ergueu os olhos a tempo de captar o levíssimo esboço de sorriso nos lábios de Lady Grant, elegante em um terninho de mescla de lã com o clássico colarinho aveludado
que, por alguma razão, Karen sempre associava a dinheiro e classe. O sorriso, porém, parecia estranhamente cúmplice.
Susan Charleson apresentou a outra mulher.
- Esta é Annabel Richmond, uma jornalista freelancer.
Agora, cautelosa, Karen assentiu, expressando reconhecimento. Que diabos fazia uma jornalista ali? Se havia uma coisa que Karen sabia a respeito de Brodie Grant
era que ele era tão alérgico à mídia que poderia entrar em choque anafilático a qualquer momento na presença de alguém da imprensa.
* O aniversário do poeta Robert Bums é comemorado em toda a Escócia com um jantar escocês tradicional, acompanhado por leituras de obras e canções de Bums, no dia 25 de janeiro. (N.T.)
Brodie Grant deu um passo à frente e indicou, com um ondular de seu charuto, que eles deveriam se sentar num sofá, a quilômetros de distância da lareira. Karen se
sentou na beirada, ciente de que aquele era o tipo de sofá que a engoliria, impossibilitando uma saída que não fosse extremamente desastrada.
- A Srta. Richmond está aqui a meu pedido, por dois motivos - disse Grant. - O primeiro deles explicarei em breve. O outro é que ela vai atuar como uma ligação
entre a mídia e a família. Não concederei entrevistas coletivas nem farei apelos sentimentais pela televisão. Ela é, portanto, a primeira a ser procurada se vocês
estiverem atrás de alguma coisa para alimentar os répteis.
Karen inclinou a cabeça.
- Essa é uma prerrogativa sua - ela disse, tentando soar como se estivesse fazendo uma concessão, por pura bondade. Qualquer coisa que lhe garantisse recuperar
um pouco do controle. - O Sr. Lees me comunicou que o senhor acredita que tenham surgido novas provas no que se refere ao sequestro de sua filha e neto. Correto?
- São novas provas, sim. Disso não resta dúvida. Susan?
Ele olhou para a assistente, com expectativa. Suficientemente esperta para antecipar-se às exigências do chefe, ela já avançava na direção deles com uma folha de
compensado de madeira, coberta por um plástico. Ao se aproximar, virou-a de frente para Karen e Phil.
Karen sentiu um lampejo de decepção.
- Esta não é a primeira vez que vemos algo assim - ela disse, estudando a impressão monocromática de um titereiro com suas marionetes sinistras. - Deparci-me
com três ou quatro exemplares, nos arquivos.
- Cinco, na verdade - disse Grant. - Mas nenhum como este. Todos os anteriores foram desconsiderados porque divergiam de alguma maneira dos originais. As
reproduções que o inspetor-chefe Lawson distribuiu para a mídia, na época, foram alteradas sutilmente para que pudéssemos eliminar quaisquer imitadores. Todos os
que apareceram desde então eram cópias das versões alteradas.
- E esta aqui é diferente? - perguntou Karen.
Grant assentiu.
- Exatamente, inspetora. É idêntica em todos os aspectos. Estou ciente de que a recompensa que ofereci seja uma tentação para certas pessoas.
Mantive minha própria cópia do original para que pudesse comparar com qualquer coisa que me fosse trazida diretamente. Como esta. - Ele deu um sorriso cansado. -
Não que eu precise de uma cópia. Jamais me esquecerei de nenhum detalhe. A primeira vez que pus os olhos nesta imagem, ela ficou gravada na minha memória.
Sábado, 19 de janeiro de 1985
Mary Grant serviu uma segunda xícara de café ao marido antes que ele percebesse que havia terminado a primeira. Ela vinha fazendo aquilo havia tantos anos que ainda
o surpreendia o fato de sua xícara precisar ser enchida tantas vezes, quando se hospedava em hotéis. Ele virou a página de seu jornal e resmungou.
- Enfim, uma notícia boa. Lord Wolfenden libertou-se do invólucro mortal.
A expressão de Mary era mais de resignação cansada do que de choque.
- Que coisa horrível de se dizer, Brodie.
Sem levantar os olhos, ele continuou:
- O homem fez do mundo um lugar pior, Mary. Portanto, não fico triste por ele ter partido.
Anos de casamento haviam eliminado a maior parte da beligerância de Mary Grant. Mas, mesmo que ela houvesse pensado em dizer alguma coisa, não teria tido a oportunidade.
Para a surpresa de ambos, a porta da sala de café da manhã se abriu de repente, sem nenhuma batida prévia, e Susan Charleson entrou quase correndo. Brodie deixou
cair o jornal sobre os ovos mexidos, notando-lhe as bochechas rosadas e a respiração ofegante.
- Desculpem-me - ela balbuciou. - Mas o senhor precisa ver isto. - Ela empurrou um grande envelope de papel manilha na direção dele. Na frente, liam-se seu
nome e endereço e as palavras "particular" e "confidencial" escritas em hidrocor preto, acima e abaixo.
- Em nome de Deus, o que é isto que não pode esperar até depois do café? - ele perguntou, enfiando dois dedos sob a aba do envelope, revelando um papel grosso
dobrado em quatro.
- Isto - disse Susan, apontando para o envelope. - Coloquei de volta no envelope porque não quis que mais ninguém visse.
Com um resmungo de impaciência, Grant pegou o papel e o desdobrou. Parecia um pôster de propaganda de um show macabro de marionetes. Totalmente em preto e branco,
um titereiro se inclinava sobre o palco, manipulando um grupo de marionetes que incluíam um esqueleto e um bode. Lembrou-lhe aquele tipo de impressões que ele vira
uma vez, num programa da TV sobre a arte que Hitler odiava. Enquanto pensava isso, seus olhos examinaram a parte inferior do pôster. Onde se esperaria encontrar
detalhes sobre o show de marionetes havia uma mensagem muito diferente.
Seu capitalismo explorador e gerenciado está prestes a ser castigado.
Nós temos uma filha e um neto em nosso poder. Faça exatamente o que
mandarmos se quiser vê-los novamente. Nada de polícia. Apenas siga sua
vida normalmente. Estamos te observando. Entraremos em contato com você
em breve.
Pacto Anarquista da Escócia.
- É alguma brincadeira de mau gosto? - perguntou Grant, atirando-o sobre a mesa e empurrando a cadeira para trás. Quando ele se levantou, Mary apanhou o pôster
e, então, o deixou cair, como se tivesse queimado seus dedos.
- Ah, meu Deus - ela arfou. - Brodie?
- É um trote - ele disse. - Algum filho da puta doente está tentando nos assustar.
- Não - disse Susan. - Tem mais. Ela apanhou o envelope no chão e sacudiu-o pára que uma fotografia Polaroid caísse de dentro dele. Em silêncio, entregou-a
a Grant.
Ele viu sua única filha amarrada a uma cadeira. Um pedaço de fita adesiva cobria-lhe a boca. O cabelo estava despenteado e uma mancha de sujeira, ou um hematoma,
marcava-lhe a face esquerda. Entre ela e a câmera, uma mão enluvada segurava a primeira página do Daily Record do dia anterior para não deixar margem a dúvida. Ele
sentiu as pernas cederem e deixou-se cair na cadeira, as pálpebras tremendo enquanto tentava recuperar o autocontrole. Mary estendeu a mão pedindo a fotografia,
mas ele sacudiu a cabeça e segurou-a de encontro ao peito.
- Não - ele disse. - Não, Mary.
Houve um longo silêncio e, então, Susan disse:
- O que o senhor quer que eu faça?
Grant não conseguia articular as palavras. Não sabia o que estava pensando, o que estava sentindo nem o que queria dizer. Era uma experiência tão estranha e improvável
quanto usar drogas alucinógenas. Ele sempre estava no controle de si mesmo, assim como da maior parte do que acontecia ao seu redor. Sentir-se impotente era algo
que não lhe acontecia havia tanto tempo, que até se esquecera de como era lidar com aquilo.
- O senhor quer que eu telefone para o chefe de polícia? - perguntou Susan.
- Aqui fala para não fazer isso - disse Mary. - Não podemos colocar em risco a vida de Catriona e Adam.
- Ao diabo com isso - disse Grant, numa pálida aproximação à sua voz normal. - Não vou ser manipulado por um bando de anarquistas malditos. - Ele se forçou
a levantar, sua força de vontade superando o medo que já o devorava. - Susan, telefone para o chefe de polícia. Explique a situação. Diga a ele que quero o melhor
agente que tiver, que não se pareça com um policial. Quero que ele esteja no meu escritório dentro de uma hora. E, agora, vou para o escritório. Seguir com minha
vida normal, caso eles estejam realmente observando.
- Brodie, como você pode fazer isso? - Com o rosto lívido, Mary parecia chocada. - Temos que fazer o que eles mandarem.
- Não temos, não. Apenas temos que aparentar estar fazendo. - Agora, sua voz estava mais forte. Ter estabelecido os princípios básicos de um plano lhe dera
forças para se recuperar. Ele poderia lidar com o medo desde que pudesse se obrigar a acreditar que estava fazendo alguma coisa para resolver a situação. - Susan,
comece a tomar as providências. - Ele foi até Mary e lhe deu um tapinha no ombro. - Vai ficar tudo bem, Mary. Eu prometo.
Se ele não visse o rosto dela, não teria de lidar com suas dúvidas ou seu pavor. Já tinha o suficiente com que se preocupar, sem aquela carga extra.
Dysart, Fife
Outros homens teriam caminhado de um lado para o outro, esperando que a polícia chegasse. Brodie Grant nunca fora de desperdiçar energia em
atividades inúteis. Permaneceu sentado em sua cadeira no escritório, virada de costas para a escrivaninha, para que pudesse ver a vista espetacular por cima do estuário
do Forth até Berwick Law, Edimburgo e as montanhas Pentlands. Olhou por sobre a água cinzenta, ordenando seus pensamentos para evitar qualquer perda de tempo quando
a polícia chegasse. Ele detestava desperdiçar qualquer coisa, mesmo aquilo que podia ser facilmente reposto.
Susan, que o havia seguido para o trabalho na hora de costume, entrou pela porta que separava seu escritório do dele.
- A polícia está aqui - ela disse. - Devo fazê-los entrar?
Grant se virou em sua cadeira.
- Sim. Depois, deixe-nos a sós.
Ele notou o olhar de surpresa no rosto dela. Estava acostumada a participar de todos os seus segredos, a conhecer mais coisas do que Mary se daria ao trabalho de
saber. Mas, dessa vez, ele queria que o círculo fosse o menor possível. Até mesmo Susan seria demais.
Ela fez entrar dois homens vestidos com macacão de pintor e, então, fechou dramaticamente a porta atrás de si. Grant ficou satisfeito com o disfarce.
- Obrigado por terem vindo tão rápido. E tão discretamente - ele disse, observando os dois. Pareciam jovens demais para uma tarefa tão importante. O mais
velho, magro e moreno, tinha provavelmente uns trinta e poucos anos, e o outro, louro e avermelhado, uns vinte e tantos.
O moreno falou primeiro. Para surpresa de Grant, sua apresentação atingiu diretamente suas restrições.
- Sou o inspetor James Lawson - ele disse. - E este é o agente Rennie. Fomos instruídos pessoalmente pelo chefe de polícia. Sei que o senhor deve estar pensando
que sou muito novo para comandar uma operação como esta, mas fui escolhido devido à minha experiência. No ano passado, a esposa de um dos jogadores do time de futebol
East Fife foi sequestrada. Conseguimos resolver o assunto sem que ninguém se machucasse.
- Não me lembro de ter ouvido falar sobre isso - disse Grant.
- Fomos muito bem-sucedidos em manter segredo - disse Lawson, com o mais tênue sorriso de orgulho no rosto.
- Não houve julgamento? Como vocês conseguiram manter isso fora dos jornais?
Lawson deu de ombros.
- O sequestrador se confessou culpado. O caso estava resolvido e encerrado antes que a imprensa sequer percebesse. Somos bastante bons em lidar com a imprensa,
aqui em Fife. - De novo, um sorriso ligeiro. - Como pode ver, senhor, tenho uma experiência relevante.
Grant lançou-lhe um olhar demorado e avaliador.
- Fico satisfeito em saber disso. - Tirou uma pinça da gaveta e, delicadamente, deslocou a folha de papel que havia colocado por cima do pôster de resgate.
- Foi isto que chegou pelo correio, hoje de manhã. Acompanhado por isto... - Erguendo-a cuidadosamente pelas extremidades, ele virou a foto Polaroid.
Lawson se aproximou e os analisou atentamente.
- E o senhor tem certeza de que esta é sua filha?
Pela primeira vez, o autocontrole de Grant vacilou por uma fração de segundo.
- Você acha que não conheço minha própria filha?
- Não é isso, senhor. Mas, para que fique registrado, preciso ter certeza de que o senhor tem certeza absoluta.
- Tenho certeza.
- Neste caso, não há qualquer dúvida - disse Lawson. - Quando foi a última vez que o senhor viu ou falou com sua filha?
Grant fez um gesto de impaciência com a mão.
- Não sei. Suponho que a tenha visto pela última vez há umas duas semanas. Ela trouxe Adam para nos visitar. A mãe dela deve ter conversado com ela ou a visto
desde então. Você sabe como são as mulheres.
A culpa repentina que ele sentiu foi mais uma vibração lenta do que uma pontada. Ele não se arrependia de nada do que havia feito ou dito; só se arrependia de que
houvesse provocado uma ruptura entre ele e Cat.
- Falaremos com sua esposa - disse Lawson. - Será útil para nós termos uma ideia de quando isso aconteceu.
- Catriona é dona de seu próprio negócio. Creio que alguém perceberia, se sua galeria estivesse fechada. Deve haver centenas, milhares de pessoas que passam
de carro por ali todos os dias. Ela era bem escrupulosa com relação à placa de aberto e fechado. - Ele deu um sorriso rígido e frio.
- Ela é boa para negócios. - Puxou um bloco de anotações em sua direção e escreveu o endereço e as indicações de como chegar à galeria de Catriona.
- É claro - disse Lawson. - Mas achei que o senhor não quisesse que os seqüestradores soubessem que nos procurou.
Grant foi pego de surpresa por sua própria estupidez.
- Desculpe-me. Você tem razão. Não estou raciocinando direito. Eu...
- Esse é meu dever, não seu. - Havia gentileza no tom de voz de Lawson. - O senhor pode estar certo de que não faremos perguntas que levantem suspeitas. Se
não conseguirmos descobrir nada de forma aparentemente natural, deixaremos de lado. A segurança de Catriona e Adam está acima de tudo. Isso eu prometo ao senhor.
- É uma promessa que espero que cumpra. Agora, qual é o próximo passo? - Grant estava novamente no comando de si mesmo, porém desconcertado pelas emoções
que o desequilibravam.
- Colocaremos uma escuta e um rastreador em suas linhas telefônicas para o caso de eles tentarem entrar em contato com o senhor através do telefone. E vou
precisar que o senhor vá à casa de Catriona. É o que os seqüestradores esperariam. O senhor terá de ser os meus olhos dentro da casa. O senhor deverá registrar qualquer
coisa fora do lugar, qualquer coisa incomum. Terá de levar uma maleta ou algo assim para que, se por exemplo, houver duas canecas sobre a mesa, o senhor possa trazê-las
para nós. Também precisaremos de alguma coisa de Catriona para obtermos suas impressões digitais. Uma escova de cabelo seria ideal, pois teríamos também um pouco
de seu cabelo. - Lawson parecia ansioso.
Grant balançou a cabeça.
- Você terá que pedir à minha esposa para fazer isso. Não sou muito observador. - Não queria admitir que só havia cruzado a porta da casa da filha uma vez
e, mesmo assim, com relutância. - Ela ficará feliz por ter alguma coisa a fazer. Por se sentir útil.
- Muito bem, providenciaremos isso. - Lawson tocou o pôster com uma caneta. - Aparentemente esse é mais um ato político do que pessoal. E vamos verificar
informações a respeito de qualquer grupo que possa ter os recursos e a determinação para planejar algo assim. Preciso lhe perguntar, no entanto... o senhor teve
algum desentendimento com qualquer grupo de interesse específico? Uma organização que pudesse ter alguns caras mais exaltados em suas facções, capazes de achar que
era uma boa ideia fazer isso?
Grant já havia se perguntado aquilo enquanto esperava pela polícia.
- A única coisa em que posso pensar é um problema que tivemos há mais ou menos um ano com uma dessas organizações do tipo "salvem as baleias". Nós tínhamos
um empreendimento imobiliário em Black Isle que eles alegavam que afetaria de forma adversa o habitat de uns golfinhos no Moray Firth. Tudo bobagem, é claro. Eles
tentaram deter nosso pessoal da construção... aquela coisa de sempre, deitando-se em frente às retroescavadeiras. Um deles se machucou. Foi culpa de sua própria
estupidez, como disseram as autoridades. Mas foi apenas isso. Eles se foram, com o rabo entre as pernas, e nós continuamos com o empreendimento. E, a propósito,
os golfinhos estão perfeitamente bem.
Lawson ficou visivelmente animado com a informação de Grant.
- Mesmo assim, teremos que verificar essa possibilidade - ele disse.
- A Srta. Charleson tem todos os arquivos. Ela poderá lhes dizer o que vocês precisarem.
- Obrigado. Também preciso lhe perguntar se existe alguém que possa ter algum motivo de reclamação pessoal contra o senhor. Ou contra alguém de sua família.
Grant balançou a cabeça.
- Já incomodei muita gente nesta vida. Mas não consigo pensar em algo que tenha feito capaz de levar alguém a fazer isso. Certamente isto se relaciona com
dinheiro, não com ódio. Todo mundo sabe que sou um dos homens mais ricos da Escócia. Não é nenhum segredo. Para mim, esse é o motivo óbvio por trás disso. Alguns
filhos da puta tentando pôr as mãos no meu dinheiro suado. E eles acham que é dessa forma que irão conseguir.
- É possível - concordou Lawson.
- É mais do que possível. É o mais provável. E nem morto vou deixar que escapem ilesos dessa. Quero minha família de volta, e quero que eles voltem sem ter
de ceder um milímetro a esses desgraçados! - Grant bateu na mesa com a mão espalmada e os dois policiais deram um pulo com o estrondo repentino.
- É por isso que estamos aqui - disse Lawson. - Faremos tudo que for possível para obter o resultado que o senhor deseja.
Naquele momento, a confiança de Grant ainda estava intacta.
- Não espero nada menos do que isso - ele disse.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
Ao ouvir o relato de Grant sobre aquela primeira manhã depois de o mundo ter mudado, o que mais chamou a atenção de Karen foi a suposição, por parte de todos, de
que tudo tinha a ver com Brodie Grant. Ninguém parecia haver considerado que a pessoa que estava sendo punida não era Grant, e sim sua filha.
- Catriona tinha algum inimigo?
Grant olhou-a, com impaciência.
- Catriona? Como ela poderia ter inimigos? Era uma mãe solteira e uma artesã do vidro. Não levava o tipo de vida que gerasse animosidade pessoal. - Com um
suspiro, ele apertou os lábios.
Karen disse a si mesma que não deveria se intimidar com sua atitude.
- Desculpe-me. Eu me expressei mal. Deveria ter perguntado se o senhor sabe de alguém a quem ela houvesse desagradado.
Grant dirigiu-lhe um pequeno gesto de satisfação, como se ela houvesse passado num teste que nem sequer sabia existir.
- O pai de seu filho. Ele estava, de fato, bastante contrariado. Mas nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim, e os seus colegas da polícia nunca puderam
encontrar nenhuma prova que o conectasse ao crime.
- O senhor está se referindo a Fergus Sinclair? - Karen perguntou.
- E quem mais poderia ser? Pensei que você tivesse se atualizado com relação ao caso - cobrou Grant.
Karen começava a sentir pena de qualquer pessoa que fosse obrigada a suportar o alto nível de irritação de Brodie Grant. Desconfiava que não fosse reservada apenas
para ela.
- Só existe uma menção a Sinclair no arquivo - ela disse. - Nas anotações de uma entrevista com Lady Grant, Sinclair é mencionado como suposto pai de Adam.
Grant bufou.
- Suposto? É claro que ele era o pai do garoto. Eles vinham se encontrando de maneira intermitente havia anos. Mas o que você quer dizer com só existe uma
referência a Sinclair? Deve haver mais. Eles foram até a Áustria para interrogá-lo.
- Áustria?
- Ele trabalhava lá. É formado em administração rural. Trabalhou também na França e na Suíça, mas voltou para a Áustria cerca de quatro anos atrás. Susan
pode lhe dar todos os detalhes.
- O senhor o tem vigiado? - O que não seria nenhuma surpresa, pensou Karen.
- Não, inspetora. Eu já lhe disse: nunca achei que Sinclair tivesse a coragem para fazer algo assim. Então, por que o vigiaria? A única razão pela qual sei
onde Sinclair mora é porque seu pai ainda é meu caseiro. - Grant balançou a cabeça. - Não posso acreditar que tudo isso não esteja nos arquivos.
Karen estava pensando a mesma coisa, mas não quis admitir.
- E, que o senhor saiba, havia mais alguém que Catriona pudesse ter desagradado?
O rosto de Grant estava tão cinzento quanto seu cabelo.
- Só a mim, inspetora. Olhe, é óbvio, pelo lugar onde apareceu esta nova prova, que isso não tem nada a ver pessoalmente com Cat. É obviamente político. O
que faz com que tenha a ver com meus princípios pessoais, e não com quem Cat possa ter incomodado.
- Então, onde foi que este pôster apareceu? - perguntou Phil.
Karen ficou agradecida pela interrupção. Ele era bom em interromper e guiar as entrevistas em direções mais produtivas quando ela estava correndo o risco de estancar.
- Em uma fazenda em ruínas na Toscana. Parece que o local vinha sendo usado por posseiros. - Ele estendeu o braço na direção da jornalista. - Este é o outro
motivo pelo qual a Srta. Richmond está aqui. Foi ela que o encontrou. Sem dúvida, vocês vão querer conversar com ela. - Ele indicou o pôster. - Também vão querer
levar isto com vocês. Imagino que farão alguns testes. E, inspetora...?
Karen recuperou o fôlego, diante da arrogância dele.
- Sim?
- Não quero ler a respeito disso no jornal amanhã cedo. - Ele olhou feio para ela como se a desafiasse a responder.
Karen se controlou por um momento, tentando compor uma resposta que abrangesse tudo que ela queria dizer e deixasse de fora qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.
A expressão de Grant mudou rapidamente.
- O que quer que comuniquemos à mídia, assim como o momento de qualquer comunicação, será uma decisão operacional - ela disse, por fim.
- Será tomada por mim e, quando apropriado, por meus oficiais superiores. Entendo plenamente como tudo isso é doloroso para o senhor, mas sinto muito. Temos
de basear nossas decisões naquilo que pensamos que, provavelmente, irá produzir o melhor resultado. O senhor pode nem sempre concordar, mas, infelizmente, não tem
nenhum direito de veto. - Ela esperou a explosão, mas esta não se fez. Supôs que ele a estivesse reservando para o Biscoito ou para os chefes dele.
Em vez disso, Grant assentiu.
- Confio em você, inspetora. Tudo que peço é que se comunique com a Srta. Richmond antes, para que possamos nos precaver contra a máfia. - Ele correu os dedos
pelos densos cabelos grisalhos num gesto que parecia bem ensaiado. - Tenho muita esperança de que, desta vez, a polícia chegue à verdade. Com todos os avanços nas
ciências criminais, vocês devem estar em vantagem com relação ao inspetor Lawson. - Ele se virou, claramente os dispensando.
- Creio que ainda teremos algumas perguntas a lhe fazer - disse Karen, determinada a não ceder todo o controle do encontro. - Se Catriona não tinha inimigos,
talvez o senhor pudesse pensar em alguns amigos dela que possam nos ajudar. O sargento Parhatka lhe informará quando eu quiser falar novamente com o senhor. Nesse
meio-tempo... Srta. Richmond?
A mulher inclinou a cabeça e sorriu.
- Estou à sua disposição, inspetora.
Até que enfim alguém por ali com uma vaga noção de como as coisas deveriam funcionar.
- Gostaria de vê-la no meu escritório esta tarde. Podemos marcar para as quatro horas?
- Qual é o problema em entrevistar a Srta. Richmond aqui? E agora? - perguntou Grant.
- Esta investigação é minha - disse Karen. - Conduzirei minhas entrevistas onde me convier. E, devido a outros inquéritos em andamento, me convém que seja
no meu escritório, esta tarde. Agora, se o senhor nos der licença.
Ela se levantou, notando o divertimento cauteloso da Lady Grant e a desaprovação sombria de Susan Charleson. O próprio Grant permaneceu imóvel feito uma estátua.
- Tudo bem, Susan, eu acompanho os policiais - disse Lady Grant, levantando-se rapidamente e caminhando em direção à porta antes que a assistente recuperasse
o autocontrole.
Enquanto a seguiam pelo corredor, Karen disse:
- Isso deve ser muito difícil para a senhora.
Lady Grant voltou-se para eles, andando de costas com a segurança de alguém que conhece cada centímetro de seu território.
- Por que você diz isso?
- Ver seu marido reviver uma época tão difícil... Eu não gostaria de ver alguém de quem eu gostasse passando por tudo isso.
Lady Grant pareceu confusa.
- Ele convive com isso todos os dias, inspetora. Pode ser que não o demonstre, mas não tira isso da cabeça. Às vezes o vejo olhando para nosso filho, Alec,
e sei que ele está pensando em como poderia ter sido, com Adam. Pensando no que perdeu. Ter algo novo em que focar é quase um alívio para ele.
Ela girou nos calcanhares e deu-lhes as costas novamente. Enquanto a seguiam, Karen encontrou o olhar de Phil e ficou surpresa com a raiva que viu ali.
- Ainda assim, a senhora não seria humana se uma parte sua não desejasse que nunca encontrássemos Adam são e salvo - Phil disse, a leveza do tom contrastando
diretamente com a severidade de sua expressão.
Lady Grant se deteve e voltou-se para eles, franzindo as sobrancelhas. Um rubor rosado subiu por seu pescoço.
- Que diabos você quer dizer com isso?
- Acho que a senhora sabe exatamente o que quero dizer, Lady Grant. Nós encontramos Adam e, de repente, seu filho Alec não é mais o único herdeiro de Brodie
- disse Phil. Era preciso ter coragem, pensou Karen, para assumir o papel de para-raios da investigação.
Por um momento, Lady Grant pareceu estar a ponto de estapeá-lo. Karen podia ver seu peito subindo e descendo com o esforço de se controlar. Finalmente, ela se obrigou
a assumir a pose habitual de civilidade.
- Na verdade - ela disse secamente -, você está vendo a situação precisamente pelo ângulo errado. O comprometimento absoluto de Brodie em descobrir o destino
de seu neto me enche de confiança com relação ao futuro de Alec. Um homem tão preso aos deveres para com sua própria
carne e seu próprio sangue jamais decepcionará nosso filho. Acredite se quiser, sargento, a busca de Brodie pela verdade me dá esperança. Não medo.
- Ela se virou nos calcanhares e marchou até a porta da frente, que manteve enfaticamente aberta para eles.
Depois que a porta se fechou, Karen disse:
- Caramba, Phil, por que você não diz o que realmente está pensando? O que provocou aquilo?
- Me desculpe. - Ele abriu a porta do passageiro para ela, uma pequena cortesia a que raramente se dava ao trabalho. - Eu já estava cheio de brincar de Miss
Marple, a detetive, e aquela palhaçada toda de crime na casa de campo. Tudo muito limpo e civilizado. Só queria ver se conseguia provocar uma reação honesta.
Karen sorriu.
- Acho que se pode dizer que conseguiu. Só espero que não sejamos atingidos pelas faíscas.
Phil bufou.
- Você não fica muito atrás, quando se trata de ser durona. "Esta investigação é minha" - ele a imitou, sem maldade.
Ela se acomodou no carro.
- É, tudo bem. A ilusão de estar no comando. Foi bom, enquanto durou.
Nottingham
As belezas do parque Nottingham Arboretum não só haviam sido obscurecidas como praticamente ficaram invisíveis com a chuva torrencial que cegava o agente Mark Hall
enquanto seguia Femi Otitoju, subindo pela trilha que levava ao Campanário Chinês. Ela finalmente havia mostrado alguma emoção, mas não era exatamente o que Mark
havia esperado.
Logan Laidlaw tinha ficado ainda menos contente do que Ferguson e Fraser ao vê-los. Ele não só se recusara a permitir que entrassem em seu apartamento, como lhes
dissera que não tinha a menor intenção de repetir o que já tinha contado à filha de Mick Prentice.
- Esta droga de vida é curta demais para desperdiçar minha energia falando duas vezes sobre a mesma coisa - ele dissera e, então, batera a porta na cara deles.
Otitoju havia ficado mais púrpura do que uma beterraba em conserva, respirando pesadamente pelo nariz. Cerrou os punhos e chegou a levar o pé para trás como se fosse
chutar a porta. Bastante violento, levando em conta que não havia muita violência nela. Mark colocara a mão em seu braço.
- Deixe estar, Femi. Ele está no direito dele. Não é obrigado a falar conosco.
Otitoju dera meia-volta, seu corpo inteiro tenso de raiva.
- Não deveria ser permitido - ela disse. - Eles deveriam ser obrigados a falar com a gente. Deveria ser contra a lei que as pessoas se recusassem a responder
a nossas perguntas. Deveria ser crime.
- Ele é uma testemunha, não um criminoso - disse Mark, assustado com a veemência dela. - Foi o que nos disseram em nosso treinamento: policiais por consentimento,
não por coerção.
- Isso não está certo - disse Otitoju, voltando furiosamente para o carro. - Eles esperam que a gente solucione crimes, mas não nos dão as ferramentas para
fazer o serviço. Que diabos ele pensa que é?
- Ele é alguém cuja opinião sobre a polícia foi gravada em pedra nos idos de 1984. Você nunca viu as reportagens de jornal dessa época? Policiais a cavalo
atacavam os piquetes como se fossem cossacos ou coisa parecida. Se usássemos hoje o cassetete daquele jeito, seríamos presos. Não foi um de nossos melhores momentos.
Portanto, não é de surpreender que o Sr. Laidlaw não queira falar conosco.
Ela balançou a cabeça.
- Faz com que eu me pergunte o que ele pode ter a esconder.
O trajeto da casa de Iain Maclean até o Arboretum, cruzando a cidade, não havia ajudado a melhorar o humor dela. Mark a alcançou.
- Deixe isso comigo, ok? - ele disse.
- Você acha que não sei conduzir uma entrevista?
- Não, não é isso. Mas conheço o suficiente sobre ex-mineiros para saber que são bastante machistas. Você viu como foi com Ferguson e Fraser... eles não ficaram
muito contentes com o fato de você fazer as perguntas.
Otitoju parou abruptamente e atirou a cabeça para trás, deixando que a chuva escorresse por seu rosto como lágrimas geladas. Recompondo-se, suspirou.
- Está bem. Vamos tirar vantagem de seus preconceitos. Você conduz a conversa. - Então, ela voltou a andar, dessa vez num passo mais comedido.
Chegaram ao Campanário Chinês e encontraram dois homens de meia-idade, vestindo macacão da prefeitura e abrigando-se da tempestade. Os pilares estreitos, que davam
suporte ao teto elegante, não ofereciam muita proteção aos respingos de chuva espalhados pelas rajadas de vento, mas era melhor do que ficar totalmente exposto.
- Estou procurando Iain Maclean - disse Mark, olhando um e outro.
- Sou eu - disse o mais baixo dos dois, com olhos azuis cintilando no rosto bronzeado. - E quem são vocês?
Mark apresentou os dois.
- Tem algum lugar aonde possamos ir tomar uma xícara de chá?
Os dois homens trocaram um olhar.
- Deveríamos estar podando as margens, mas estávamos prestes a desistir e voltar para as estufas - disse Maclean. - Não há nenhum café por aqui, mas vocês
podem nos acompanhar até as estufas, e nós preparamos o chá.
Dez minutos depois, eles estavam espremidos num canto, nos fundos de um amplo túnel de polietileno, e fora do caminho dos demais jardineiros, cujos olhares curiosos
se haviam acalmado ao perceberem que não haveria nada espetacular. Um forte cheiro de húmus pairava no ar, lembrando Mark do barracão no jardim de seu avô. Iain
Maclean segurou a xícara com as mãos enormes e esperou que eles falassem. Ele não havia mostrado qualquer surpresa com a chegada dos policiais e tampouco lhes havia
perguntado por que estavam ali. Mark desconfiava que Fraser ou Ferguson já o tivessem avisado.
- Queremos conversar com você sobre Mick Prentice - ele começou.
- O que tem o Mick? Não o vejo desde que nos mudamos para o sul - disse Maclean.
- Nem você nem mais ninguém - disse Mark. - Todos presumiram que ele houvesse viajado para o sul com vocês, mas não é isso que estão nos dizendo hoje.
Maclean coçou as cerdas prateadas que cobriam sua cabeça num corte de cabelo militar.
- É, bem. Eu tinha ouvido falar que as pessoas achavam isso, lá em Newton. É só para mostrar a você como as pessoas sempre preferem pensar o pior. De jeito
nenhum Mick teria se juntado a nós. Não imagino como alguém que o conhecesse poderia pensar isso.
- E você nunca os corrigiu?
- Para quê? Na cabeça deles, eu sou um mineiro fura-greve e desonesto. Nada do que eu pudesse dizer em defesa de alguém teria muito peso, lá em Newton.
- Para ser justo, não é apenas uma questão de tirar conclusões precipitadas. A esposa dele recebia dinheiro ocasionalmente, depois que ele foi embora. O carimbo
do correio era de Nottingham. Essa é uma das principais razões pelas quais todos acharam que ele houvesse feito o impensável.
- Não sei qual é a explicação para isso. Mas te digo uma coisa: seria mais fácil Mick Prentice ir para a Lua do que furar a greve.
- Isso é o que todos nos dizem - disse Mark. - Mas as pessoas fazem coisas que parecem insólitas, quando estão desesperadas. E, segundo consta, Mick Prentice
estava desesperado.
- Não tanto a ponto de fazer isso.
- Você fez.
Maclean olhou fixamente para sua xícara.
- Fiz. E nunca me envergonhei tanto de algo. Mas minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. Eu sabia que não havia maneira alguma de trazer mais
um bebê àquela vida. Então, fiz o que fiz. Eu conversei a respeito com o Mick, antes. - Ele lançou um olhar rápido a Mark. - Éramos amigos, ele e eu. Estudamos juntos
na escola. Eu queria explicar para ele por que estava fazendo aquilo. - Ele suspirou. - Ele disse que entendia a minha decisão. Que ele também tinha vontade de ir
embora. Mas que furar greve não era para ele. Não sei para onde ele foi; mas eu sei que, com certeza, não foi para outra mina.
- Quando você soube que ele havia desaparecido?
Ele contorceu o rosto enquanto pensava.
- É difícil dizer. Acho que quando minha esposa veio para ficar comigo. Isso quer dizer que foi por volta de fevereiro. Mas pode ter sido depois disso. Minha
esposa, ela ainda tem família lá em Wemyss. Nós não voltamos lá. Não seríamos bem-vindos. As pessoas têm memória boa, sabe? Mas
nos mantemos em contato e, às vezes, eles vêm aqui nos visitar. - Um pálido sorriso de desculpa passou por seu rosto. - O sobrinho da minha mulher, ele é estudante
na universidade daqui. Está terminando o segundo ano. Ele vem jantar aqui em casa de vez em quando. Então, sim, eu ouvi falar que Mick havia entrado na lista dos
desaparecidos, mas não saberia te dizer com certeza quando foi que fiquei sabendo.
- Aonde você acha que ele foi? O que você acha que aconteceu? - Em sua ansiedade, Mark se esqueceu da regra fundamental de fazer apenas uma pergunta por vez.
Maclean ignorou ambas.
- Por que cargas d'água vocês ficaram interessados no Mick, assim de repente? - ele perguntou. - Ninguém veio procurar por ele, em todos esses anos. Por que
tanto alvoroço agora?
Mark explicou por que Misha Gibson havia, finalmente, informado a polícia sobre o desaparecimento de seu pai. Maclean se mexeu na cadeira, sem jeito, fazendo o chá
se derramar sobre os dedos.
- Que coisa horrível. Me lembro de quando a própria Misha não passava de uma garotinha. Gostaria de poder ajudar. Mas não sei para onde ele foi - ele disse.
- Como eu falei antes, não o vi mais desde que saí de Newton.
- Ouviu falar alguma coisa sobre ele? - acrescentou Otitoju.
Maclean lhe lançou um olhar duro. Em seu rosto curtido pelo sol, o olhar parecia tão impassível quanto o Monte Rushmore.
- Não tente dar uma de esperta pra cima de mim, querida. Não, não ouvi nada sobre ele. No que me diz respeito, Mick Prentice sumiu do planeta no dia em que
vim para cá. E foi exatamente o que esperei que fosse acontecer.
Mark tentou restabelecer a camaradagem, infiltrando solidariedade em sua voz:
- Entendo perfeitamente - disse. - Mas o que você acha que aconteceu com Mick? Você era amigo dele. Se alguém pode pensar numa resposta, esse alguém é você.
Maclean balançou a cabeça.
- Não sei mesmo.
- E se tivesse que fazer uma suposição?
Novamente ele coçou a cabeça.
- Te digo uma coisa. Achei que ele e Andy tivessem fugido juntos. Achei que os dois estivessem cheios, que houvessem ido para algum outro lugar para começar
do zero. Vida nova e essas coisas.
Mark se lembrava do nome do amigo de Prentice, que vira no relatório informativo sobre o caso. Mas não houvera qualquer menção de terem fugido juntos.
- Aonde eles iriam? Como poderiam simplesmente desaparecer, sem deixar rastros?
Maclean bateu com o dedo na lateral do nariz.
- Andy era comunista, sabe? E, nessa época, Lech Walesa e o Solidariedade eram importantíssimos na Polônia. Sempre achei que aqueles dois tivessem ido para
lá. Havia um monte de minas na Polônia e não iria parecer que eles estivessem furando a greve. De jeito nenhum.
- Polônia? - Mark sentiu que precisava de um curso rápido sobre a história política do século XX.
- Eles estavam tentando derrubar o comunismo totalitário - Otitoju disse, asperamente. - Para substituí-lo por uma espécie de socialismo dos trabalhadores.
Maclean assentiu.
- Isso teria sido bem do gosto de Andy. Acho que ele deve ter convencido Mick a ir com ele. Isso explicaria por que ninguém nunca mais soube deles. Presos
nas minas de carvão atrás da Cortina de Ferro.
- Mas já faz algum tempo que essa Cortina de Ferro cheira a naftalina - Mark disse.
- Sim, mas quem sabe que tipo de vida eles conseguiram estabelecer por lá? Poderiam estar casados, com filhos, poderiam ter deixado o passado para trás. Se
Mick tivesse uma nova família, não iria querer que a antiga aparecesse do nada, não é?
De repente, Mark teve um daqueles momentos de revelação em que pôde ver o cenário completo.
- Era você quem mandava o dinheiro, não era? Você colocava dinheiro num envelope e enviava a Jenny Prentice, porque achava que Mick não enviaria dinheiro
para ela da Polônia.
Maclean pareceu se encolher contra a parede translúcida de polietileno. Seu rosto se franziu tanto, que era difícil ver seus brilhantes olhos azuis.
- Só estava tentando ajudar. Tenho ganhado bem desde que vim para cá. Sempre senti pena de Jenny. Parecia que ela havia ficado com a pior parte porque Mick
não teve coragem para assumir suas responsabilidades.
Aquela era uma forma estranha de se expressar, pensou Mark. Ele podia muito bem deixar por isso mesmo; aquele caso não era seu, afinal, e ele não precisaria enfrentar
os problemas que poderiam advir de se investigar algo aparentemente sem conexão. Mas, por outro lado, ele queria cumprir aquela missão da melhor forma possível.
Queria explorar a posição de assistente do DIC para conseguir uma transferência permanente para a divisão de detetives. Então, fazer esforços extras era definitivamente
parte do seu plano.
- Tem alguma coisa que você não esteja nos dizendo, Iain? - ele perguntou. - Alguma outra razão para Mick ter fugido da forma como fez, sem dizer uma palavra
a ninguém?
Maclean tomou o resto do seu chá e colocou a xícara de lado. Suas mãos, desproporcionalmente grandes devido a uma vida inteira de trabalho manual intenso, se entrelaçaram
e se soltaram. Ele parecia alguém pouco à vontade com o conteúdo de sua própria mente. Respirou fundo e disse:
- Imagino que agora já não faça diferença. Não se pode punir alguém que já tenha ido desta pra melhor.
Otitoju estava prestes a romper o silêncio de Maclean, mas Mark agarrou seu braço, numa advertência. Ela cedeu, sua boca formou uma linha estreita, e eles esperaram.
Finalmente, Maclean falou.
- Nunca contei isso a ninguém. Até parece que adiantou de alguma coisa manter segredo. Vocês têm de entender, Mick era um defensor ferrenho do sindicato.
E, claro, Andy era funcionário em tempo integral do Sindicato Nacional dos Mineradores. Estava totalmente em casa, íntimo dos altos escalões. Não duvido que Andy
tenha contado a Mick muitas coisas que talvez não devesse. - Ele deu um sorriso melancólico. - Ele estava sempre tentando impressionar Mick, ser seu melhor amigo.
Frequentamos a mesma classe, na escola. Nós três costumávamos andar juntos. Mas você sabe como são os trios. Sempre existe um líder e os outros dois ficam tentando
agradá-lo, tentando tirar o outro da jogada. Era assim conosco. Mick
no meio, tentando manter a paz. Ele era bom nisso, esperto em encontrar formas de deixar nós dois contentes. Nunca permitia que um de nós ficasse por cima. Bem,
não por muito tempo, pelo menos.
Mark podia perceber que Maclean relaxava ao lembrar-se da calma relativa daqueles dias.
- Sei bem o que você quer dizer - ele disse, baixinho.
- Enfim, nós todos continuamos amigos. Eu e minha mulher costumávamos sair com Mick e Jenny, os quatro. Ele e Andy jogavam futebol juntos. Como eu disse,
ele era bom em encontrar coisas que faziam com que seus dois amigos se sentissem especiais. Pois então, algumas semanas antes de eu vir para cá, passamos o dia juntos.
Caminhamos até o porto de Dysart. Ele montou o cavalete e pintou, e eu pesquei. Contei a ele o que havia planejado fazer, e ele tentou me dissuadir. Mas eu podia
ver que ele não estava prestando muita atenção. Então, perguntei a ele o que o estava incomodando. - Ele parou novamente, seus dedos fortes apoiavam-se uns contra
os outros.
- E o que era? - perguntou Mark, inclinando-se para a frente para afastar a presença rígida de Otitoju e fazendo daquele um círculo puramente masculino.
- Ele disse que achava que um dos funcionários do sindicato estava roubando. - Olhou fixamente nos olhos de Mark. Ele podia sentir a terrível traição que
havia por trás das palavras de Maclean. - Nós todos estávamos sem um tostão e passando fome, e um dos caras que, supostamente, deveria ficar do nosso lado estava
enchendo os próprios bolsos. Pode não parecer muita coisa agora, mas naquela época, isso me abalou profundamente.
Quinta-feira, 30 de novembro de 1984; Dysart
Uma cavala estava puxando seu anzol, mas Iain Maclean não lhe prestava a menor atenção.
- Você só pode estar brincando! - ele disse. - Ninguém faria uma coisa dessas.
Mick Prentice deu de ombros, sem tirar os olhos do papel grosso preso em seu cavalete.
- Você não precisa acreditar em mim. Eu sei o que sei.
- Você deve ter entendido errado. Nenhum funcionário do sindicato roubaria da gente. Não aqui. Não agora. - Maclean parecia estar à beira das lágrimas.
- Olhe, vou lhe contar o que sei. - Mick passou o pincel rapidamente pelo papel, deixando uma mancha de cor ao longo do horizonte. - Eu estava no escritório
na terça passada. Andy tinha me pedido para ir lá ajudá-lo com os requerimentos da assistência, então eu estava folheando as cartas que havíamos recebido. Digo uma
coisa a você: ver o que as pessoas estavam passando era de partir o coração. - Ele limpou o pincel e misturou uma cor cinza esverdeada em sua palheta de bolso. -
Então, estou eu lá naquele cubículo, ao lado do escritório principal, examinando essas coisas, e esse outro funcionário está lá na frente. Enfim, vem uma mulher
de Lundin Links. Terninho de lã e uma boina idiota de pelo de angorá. Você conhece o tipo: a ricaça metida a Madre Teresa de Calcutá. Ela disse que eles haviam realizado
um café da manhã beneficente no clube de golfe e que tinham arrecadado 232 libras para ajudar as famílias pobres dos mineiros em greve.
- Fizeram muito bem - disse Maclean. - Melhor vir diretamente até nós do que falar com aquela maldita equipe da Tatcher.
- Certamente. Então, ele lhe agradece e ela vai embora. Agora, eu não vi exatamente para onde foi o dinheiro, mas posso lhe dizer que não foi para dentro
do cofre.
- Ah, tenha dó, Mick. Isso não prova nada. Pode ser que o cara tenha levado diretamente para a subseção do sindicato. Ou para o banco.
- Sei. - Mick deu uma risada sem humor nenhum. - Como se, nos dias de hoje colocássemos dinheiro no banco com os confiscadores atrás da gente.
- Mesmo assim - disse Maclean, sentindo-se ofendido, por alguma razão.
- Olhe, se fosse só isso, eu não teria me incomodado. Mas tem mais. Uma das tarefas de Andy é manter um registro do dinheiro que vem de doações e coisas do
tipo. Todo esse dinheiro deve ser repassado para a subseção. Não sei o que acontece com ele, então, se volta para a gente em forma de doações ou se vai parar na
corte do Rei Arthur, escondido em alguma maldita conta bancária na Suíça. Mas qualquer pessoa que arrecade dinheiro deve dizer a Andy, e ele anota num livrinho.
Maclean assentiu.
- Me lembro de ter de dizer a ele quanto tínhamos conseguido juntar, quando fizemos as arrecadações na rua, no último verão.
Mick fez uma breve pausa e olhou para o ponto onde o mar se encontrava com a terra.
- Eu estava na casa de Andy, na outra noite. O livro estava em cima da mesa. E a doação de Lundin Links não estava anotada nele.
Maclean puxou a linha com tanta força que quase perdeu o peixe.
- Merda - ele disse, girando a carretilha furiosamente. - Talvez Andy estivesse atrasado com as anotações.
- Gostaria que fosse tão simples assim. Mas não é isso. As últimas anotações no livro de Andy eram de quatro dias depois que aquele dinheiro foi entregue.
Maclean jogou a vara nas lajotas de pedra a seus pés. Ele podia sentir as lágrimas queimando nos olhos.
- Que porra de situação desgraçada. E você espera que eu sinta remorso por estar indo para Nottingham? Pelo menos é trabalho honesto, por um pagamento honesto,
e não roubo. Não posso acreditar numa coisa dessas.
- Eu também não. Mas de que outra forma se poderia explicar isso? - Mick balançou a cabeça. - E vindo de um cara que ainda está recebendo salário.
- Quem é ele?
- Não posso lhe dizer. Não até que tenha decidido o que fazer a respeito.
- É óbvio o que você tem de fazer. Tem que contar ao Andy. Se houver uma explicação inocente, ele saberá.
- Não posso contar ao Andy - Mick protestou. -Jesus, às vezes sinto vontade de fugir desta merda de confusão toda. Passar a régua e começar do zero em outro
lugar. - Ele balançou a cabeça. - Não posso contar a Andy, Iain. Ele já está deprimido. Se eu contar isso, poderia estar empurrando-o de uma vez para o fundo do
abismo.
- Bem, conte para outra pessoa, então. Para alguém da subseção. Você tem que pegar esse filho da puta. Quem é ele? Me conte. Mais algumas semanas e estarei
longe daqui. Para quem eu iria contar? - Maclean sentia a necessidade de saber queimando-o por dentro. Era mais uma coisa que o ajudaria a acreditar que estava fazendo
a coisa certa. - Me conte, Mick.
O vento fez o cabelo de Mick entrar em seus olhos, salvando-o do desespero no rosto de Maclean. Mas a necessidade de compartilhar seu fardo era pesada demais para
ignorar. Ele afastou o cabelo e olhou nos olhos do amigo.
- Ben Reekie.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Glenrothes
Karen tinha de admitir que estava impressionada. Não só a equipe de Nottingham havia feito um excelente trabalho, mas a agente Femi Otitoju tinha digitado seu relatório
e o enviado por e-mail em tempo recorde. Veja bem, pensou Karen, eu provavelmente teria feito a mesma coisa, no lugar dela. Dada a qualidade das informações que
ela e seu parceiro haviam conseguido obter, qualquer policial candidato ao DIG ficaria desesperado para tirar a maior vantagem possível.
E realmente havia algo ali para explorar ao máximo. A agente Otitoju e seu colega em Nottingham haviam descoberto quem tinha confundido a todos, enviando dinheiro
a Jenny Prentice. E, crucialmente, ela também tinha fornecido a primeira resposta possível à questão de quem ficaria feliz ao ver Mick Prentice pelas costas. Os
ânimos andaram bastante exaltados na época, e a impopularidade do sindicato crescia em várias partes. A violência já havia irrompido mais vezes do que se poderia
contar, e nem sempre entre a polícia e os grevistas. Mick Prentice poderia ter sido consumido pelo fogo com o qual brincava. Caso houvesse confrontado Ben Reekie
com o que sabia, se ele fosse culpado da acusação e se Andy Kerr tivesse sido arrastado para a confusão, devido à sua conexão com os outros dois, então, havia motivo
para Reekie se livrar dos dois homens, que desapareceram aproximadamente na mesma época. Talvez Angie Kerr estivesse certa a respeito do irmão. Talvez ele não tivesse
se matado. Talvez Mick Prentice e Andy Kerr fossem vítimas de um assassino - ou assassinos - desesperado para proteger a reputação de um funcionário desonesto do
sindicato.
Karen estremeceu.
- É imaginação demais - ela disse, em voz alta.
- O quê? - Phil afastou os olhos da tela do computador, franzindo a testa.
- Desculpe. Só estou me dando uma bronca por ser melodramática demais. Mas lhe digo uma coisa, se essa Femi Otitoju algum dia decidir se mudar para o norte,
vou colocá-la no lugar do Novo em Folha tão rápido que ele não vai nem saber o que está acontecendo.
- Não que isso seja muito difícil - disse Phil. - A propósito, o que você está fazendo aqui? Não deveria estar conversando com a adorável Srta. Richmond?
- Ela deixou um recado. - Karen olhou para seu relógio. - Chegará dentro de alguns minutos.
- Por que o atraso?
- Parece que teve que conversar com o advogado de algum jornal sobre um artigo que ela escreveu.
Phil reclamou.
- Que nem o tal do Brodie Grant. Ainda pensam que somos da classe serviçal, aqueles lá. Talvez você devesse deixá-la esperando.
- Não posso me dar ao luxo de entrar nesse jogo idiota. Olhe só isto aqui. O parágrafo que eu marquei. - Ela passou o relatório de Otitoju para Phil e esperou
que ele o lesse. Assim que ele levantou os olhos da página, ela disse: - Alguém afirmando que viu Mick Prentice umas doze horas depois de ele ter saído de casa.
E parece que ele não estava agindo de forma normal.
- Que estranho. Se ele estava fugindo, por que ainda estaria por ali, àquela hora da noite? Onde havia estado antes? E para onde estava indo? O que estava
esperando? - Phil coçou o queixo. - Não faz nenhum sentido para mim.
- Nem para mim. Mas vamos ter que tentar descobrir. Vou acrescentar à minha lista - ela suspirou. - Um pouco abaixo de "ter uma conversa decente com a polícia
italiana".
- Pensei que você houvesse conversado com eles.
Ela assentiu.
- Com um policial no quartel-general de Siena, um cara chamado di Stefano, com quem Peter Spinks, da Proteção Infantil, trabalhou há uns anos. Ele fala inglês
razoavelmente bem, mas precisa de mais informações.
- Então, você vai entrar em contato com eles novamente na segunda-feira?
Karen assentiu.
- Isso. Ele disse para não esperarmos encontrar ninguém no escritório deles depois das duas da tarde de uma sexta-feira.
- Será ótimo, se você conseguir - disse Phil. - Falando nisso, quer ir tomar um drinque rápido depois que terminar a conversa com Annabel Richmond? Tenho
que ir jantar na casa do meu irmão, mas tenho tempo para uma cervejinha.


CONTINUA

Christie. Uma dívida que não é pequena.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss
A voz é suave, como a escuridão que os cerca.
- Está preparado?
- Mais preparado do que nunca.
- Você disse a ela o que fazer? - As palavras agora rolam, tropeçando umas nas outras num emaranhado único de sons.
- Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabilizado se isto der errado. - Palavras ásperas, num tom áspero. - Não é com ela que estou
preocupado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. - As palavras possuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. - Vamos, terminemos logo com isto.
Assim é como tudo começa.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/DOMINIO_SOMBRIO.jpg

 

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziam uma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas. Parecia alguém com
uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conforme ela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a
mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras informações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmente ignorados por aqueles
que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhão de sua determinação.
Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não era feia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali, não estava em seus melhores
dias. Ela poderia ter colocado um pouquinho mais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algo que lhe caísse melhor do que jeans e blusa
de capuz. David Cruickshank assumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se preparando para defesa.
- Quero informar o desaparecimento de uma pessoa.
Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desaparecidas. Aquela ali estava
calma demais para que se tratasse de um filho pequeno, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga com o namorado, era disso que se tratava.
Ou um avô senil perdido. A mesma perda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo balcão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta.
Nem chegou a destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondida antes que ele anotasse quaisquer detalhes.
- E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?
- Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, para ser exata. - Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seu semblante. -
Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?
O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a tela do computador.
- Vou te dizer uma coisa - ele falou -, se existe uma época excelente para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.
A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo que estava atualizando.
- Como assim?
- Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, na Downing Street,
10, com a patroa a tiracolo. - Ele se levantou num salto e foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. - O que você prefere fazer? Solucionar casos arquivados
e receber os louros por isso, ou tentar prevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?
- Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministro faz de Fife um alvo? - Karen marcou onde estava no documento com o dedo indicador e dirigiu
toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou de que tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não considerara as possibilidades atuais. - Nunca
se incomodaram com o distrito eleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.
- Isso é verdade. - Phil espiou para dentro da geladeira, decidindo entre um refrigerante Im Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e ele ainda não
se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer em sua infância. - Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, e Gordon é filho de um pastor
presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugar do chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja do pai dele.
Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio.
- Não sei como você consegue beber isso aí - ela disse. - Nunca reparou que o nome é um anagrama de "vomit"?
Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.
- Faz crescer cabelo no peito - ele disse.
- É melhor você tomar duas latas, então. - Havia uma ponta de inveja na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gorduras saturadas,
mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os dois eram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suas medidas aumentando. Isso, definitivamente,
não era justo.
Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.
- Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um pouco mais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaça agora é maior.
Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.
- Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon aja de um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?
Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojava a Equipe de Revisão
de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alterado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquer telefone que tocasse perto dela.
- Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando - ela disse distraidamente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, no fundo, ele não
sentia saudade de estar envolvido com a ação.
- Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com uma pessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. - Cruickshank parecia um tanto inseguro.
Aquilo era incomum o bastante para chamar a atenção de Karen.
- Do que se trata?
- De uma pessoa desaparecida - ele disse.
- É um dos nossos?
- Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.
Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por tempo suficiente.
- Então ela precisa falar com o Departamento de Investigações Criminais, Dave.
- Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este caso está um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor que passasse por
você primeiro, entendeu?
Vá logo ao que interessa.
- Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com investigações recentes. - Karen girou os olhos para Phil, que devolveu um sorriso falso
diante da óbvia frustração dela.
- Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vinte e dois anos.
Karen se endireitou na cadeira.
- Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?
- Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?
Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar a mulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre se sentia atraída por coisas
que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros no escuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazido duas promoções em três anos, superando
alguns colegas de igual posição e deixando muitos outros incomodados.
- Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela.
Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.
- Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o desaparecimento de uma pessoa? - ela perguntou, mais para si mesma do que para Phil, vasculhando
a mesa à procura de um caderno vazio e de uma caneta.
Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.
- Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.
- E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. - O sorriso de Karen
era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse o Gato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.
Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do elevador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatlética da Gap. Modelos
e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos e sem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro na altura do quadril. O cabelo castanho-médio
tinha um bom corte chanel longo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava, portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social.
Tampouco, provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulher agradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantos anos, olhos azuis
com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima de maquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um. Ao perceber a avaliação de Karen,
a pele ao redor de seus olhos se apertou.
- Sou a inspetora Pirie - ela disse, abreviando o impasse em potencial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. - Karen Pirie.
Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gorducha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio
precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, caso fosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen se descrevia daquela
maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela era lindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela não concordava. Tinha uma opinião
razoavelmente boa sobre si mesma. Mas, quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, no entanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.
Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu mais segura.
- Graças a Deus por isso - ela disse. O sotaque de Fife era claro, embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela distância.
- Perdão?
A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes de leite de uma criança.
- Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enrolando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.
- Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo chá - Karen disse secamente. - Por acaso, fui a pessoa que atendeu ao telefone. - Ela deu
meia-volta, olhou para trás e disse: - Você me acompanha?
Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma salinha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, para o verde artificialmente
uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofadas de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfície de cerejeira fora polida até adquirir
um brilho opaco. A única indicação do propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas na parede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda
vez que usava aquele local, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhido fotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algo
muito ruim acontece.
A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou uma cadeira e lhe indicou que sentasse.
- Não é assim na televisão - ela disse.
- Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão - Karen respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em
relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição, menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entrevista de testemunha.
- Cadê o gravador? - A mulher se sentou, sem aproximar a cadeira nem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.
Karen sorriu.
- Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interrogatório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interrogada sobre um
crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável e olhar pela janela. - Ela abriu seu bloco de anotações. - Creio que está aqui para informar sobre uma pessoa
desaparecida.
- Isso mesmo. O nome dele é...
- Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para começar, qual é seu nome?
- Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobrenome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha.
- Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone.
Misha informou todos os detalhes.
- Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome dela, se é que você me entende.
Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus mineiros de carvão, numa
época em que estes lhe pertenciam tanto quanto as minas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquer ligação com o lugar ou seu passado.
- Mesmo assim - ela disse -, preciso de seus dados também.
As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então, ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujo conhecimento da geografia
social da capital, a apenas cinquenta quilômetros de distância, era provincianamente escasso.
- E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa - ela disse.
Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.
- Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser exata.
- E quando foi que seu pai desapareceu? - Ali, pensou Karen, era onde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.
- Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio. Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. - As sobrancelhas
de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.
- É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desaparecimento - disse Karen.
Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.
- Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente.
- Não estou entendendo. O que quer dizer com "não exatamente"?
Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.
- Você fala como alguém desta região.
Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:
- Cresci em Methil.
- Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984.
- A greve dos mineiros?
Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.
- Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pessoas costumavam dizer
por aqui: que ninguém era mais militante do que os mineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro, depois de nove meses de greve, em que meia
dúzia deles desapareceu. Bem, eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eles haviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. - Seu rosto
se franziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. - Com relação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo. Mas,
segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu pai tinha ido com eles. Inclusive ela. - Lançou a Karen um olhar defensivo. - Eu era pequena demais
para me lembrar. Mas todos dizem que ele era um sindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.
- Ela balançou a cabeça. - Porém, o que mais ela iria pensar?
Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia ter significado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a solidariedade era reservada
apenas para aqueles que aguentavam o tranco. A atitude de Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.
- Não deve ter sido nada fácil para sua mãe - ela disse.
- Em um aspecto, foi muito fácil. - Misha disse com amargura. - Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria mais saber dele.
Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergência. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para a Assistência Social dos Mineiros. Fui
criada numa casa em que o nome do meu pai jamais era pronunciado.
Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.
- Ele nunca entrou em contato com vocês?
- Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o carimbo do correio de Nottingham.
- Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai seja uma pessoa desaparecida. - Karen tentou fazer sua voz soar o mais gentil possível.
- Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim, inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. É preciso que o encontrem.
O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela, aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.
- Por quê? - ela perguntou.
Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo
Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquela sensação de ultraje pelo
fato de que o mundo seguia seu caminho, a despeito do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara em contar porque nunca havia se permitido acreditar
que aquela poderia ser a última vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polegares deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadas
por suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de alguma forma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviam atirado contra
sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicção tinha, finalmente, sido testada ao extremo.
Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol, desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda
não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e um apartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso. John não
estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia saber sobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido no trabalho alguma questão
complexa com que só ele pudesse lidar.
Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de arenito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, o pulmão verde do centro sul
da cidade, onde ela adorava caminhar com Luke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia também checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma
bola de rúgbi rodeada de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam a bola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pela
superfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha. Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a caminhar ali com Luke.
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, era disso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em perspectiva. Uma caminhada
rápida através do Meadows e, daí, atravessaria a Ponte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou um restaurante.
Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa de fundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Ela não permitiria que fosse
o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outra chance a Luke.
Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que o segurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelo trabalho de parto, ela
soubera. John estava em estado de negação, recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho, ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo
havia agarrado o coração de Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão em sua mente, então, fora: quão diferente?
O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorte era o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do Hospital Real para Crianças
Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nas histórias "milagrosas" que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito
para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem para explicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.
Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano; ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encantadora das palavras disfarçava
seu conteúdo letal. Escondidos no DNA de ambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado para criar uma condição rara que condenaria seu filho
a uma vida curta e dolorosa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que certamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula
óssea que, no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatível. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medula óssea,
Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.
Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que, sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria de algum membro da família;
era o que os médicos chamavam de doador aparentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Ela havia lido sobre os registros de transplante de
medula e deduzido que sua melhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, de acordo com o especialista, a doação de um membro da família não compatível,
que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um risco menor de complicações do que a de um doador compatível que não tivesse qualquer parentesco com o paciente.
Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos dois lados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e até mesmo oferecendo recompensas
a primos distantes e tias idosas. Aquilo havia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária. John se fechara atrás de uma muralha de otimismo
pouco realista. Haveria um avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar, descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes compartilhados.
Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro. John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à procura de casos que provassem
que os médicos estavam errados. Aparecia semanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis. E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura
incessante de Misha. Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de negação era olímpica.
Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo.
Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seu último beco sem saída
apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrível julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamente aquela que havia rezado para não ter de
levar em conta.
Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquele caminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pronta para ser agressiva com
quem quer que estivesse invadindo seu espaço.
- John - ela disse, com cansaço.
- Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento
- ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamente até ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para que se tocassem,
se algum deles quisesse.
- Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.
- Não, isso eu posso ver. O que eles disseram?
Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do veredito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filho era invencível,
de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reação dela.
Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto o consolo.
- Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. - Sua voz parecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. A emoção derreteria
seu estado congelado e ali não era o lugar para demonstrações de pesar ou amor.
John apertou os dedos dela com força.
- Talvez não seja tarde demais - ele disse. - Talvez eles...
- Por favor, John. Agora não.
Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensionava conforme ele controlava sua discordância.
- Então - ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que outra coisa -, imagino que você vá procurar o filho da puta?
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen coçou a cabeça com a caneta. Por que eu sempre pego os melhores?
- Por que você deixou passar tanto tempo, antes de tentar rastrear seu pai?
Ela captou uma expressão fugaz de irritação em volta dos olhos e da boca de Misha.
- Porque eu havia crescido achando que meu pai fosse um filho da puta fura-greve e egoísta. O que ele fez alijou minha mãe de sua própria comunidade. Fez
com que eu fosse maltratada no parque e na escola. Não achei que um homem que houvesse abandonado a família na merda fosse se incomodar com o neto.
- Ele mandava dinheiro - disse Karen.
- Uns trocados aqui e ali. Dinheiro maldito - disse Misha. - Como eu disse, minha mãe se recusava a usá-lo. Ela o doava. Nunca tirei proveito dele.
- Talvez ele tenha tentado compensar a sua mãe. Os pais nem sempre nos contam as verdades incômodas.
Misha balançou a cabeça.
- Você não conhece a minha mãe. Mesmo com a vida de Luke em jogo, ela não ficou nada contente que eu estivesse tentando encontrar meu pai.
Para Karen, aquele parecia um motivo insuficiente para evitar o homem que poderia fornecer a chave para o futuro de um garoto. Mas ela sabia como os sentimentos
eram profundos nas velhas comunidades mineiras, deixou estar, portanto.
- Você diz que ele não estava onde se supunha. O que aconteceu, quando você foi procurar por ele?
Quinta-feira, 21 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Jenny Prentice tirou um saco de batatas da prateleira de verduras e se pôs a descascá-las, o corpo inclinado sobre a pia e as costas voltadas para a filha. A pergunta
de Misha pairou sem resposta entre as duas, lembrando ambas da barreira que a ausência do pai havia colocado entre elas desde o início. Misha tentou novamente.
- Eu perguntei...
- Eu te ouvi muito bem. Não há nada de errado com a minha audição - disse Jenny. - E a resposta é: não tenho a menor ideia. Como eu saberia onde começar
a procurar por aquele merda de fura-greve egoísta? Nós nos viramos muito bem sem ele nos últimos vinte e dois anos. Nunca houve razão para procurá-lo.
- Bem, existe uma razão agora.
Misha olhou para os ombros curvados da mãe. A luz fraca que entrava pela pequena janela da cozinha acentuava o branco de seus cabelos não pintados. Ela mal havia
completado cinquenta anos, mas parecia ter pulado a meia-idade e adquirido logo o encurvamento vulnerável de uma anciã. Era como se ela soubesse que o ataque um
dia chegaria e houvesse optado por se defender tornando-se patética.
- Ele não irá ajudar - Jenny zombou. - Ele deixou claro o que pensava de nós, quando nos abandonou para que nos virássemos sozinhas. Ele só pensava em si
mesmo.
- Pode ser. Mas mesmo assim tenho que tentar, pelo bem de Luke - Misha disse. - Havia algum endereço de remetente nos envelopes em que vinha o dinheiro?
Jenny cortou uma batata descascada ao meio e deixou cair numa panela com água salgada.
- Não. Ele nem sequer se dava ao trabalho de colocar uma cartinha no envelope. Apenas um punhado de cédulas sujas, só isso.
- E os caras com quem ele foi embora?
Jenny lançou um olhar rápido e desdenhoso para Misha.
- O que têm eles? Não dão as caras por aqui.
- Mas alguns ainda devem ter família aqui, ou em East Wemyss. Irmãos, primos. Eles podem saber alguma coisa sobre o meu pai.
Jenny sacudiu a cabeça com firmeza.
- Nunca mais ouvi falar dele, desde o dia em que se foi. Nem um pio, bom ou ruim. Os outros homens com quem ele foi embora não eram seus amigos. A única razão
pela qual ele pegou carona com eles foi porque não tinha dinheiro para ir sozinho para o sul. Ele deve ter usado os caras assim como usou a gente e, depois, deve
ter seguido seu próprio caminho, quando chegou aonde queria. - Ela deixou cair outra batata na panela e disse sem qualquer entusiasmo: - Você vai ficar para a janta?
- Não, tenho algumas coisas para resolver - Misha disse, impaciente com a recusa da mãe em levar a sério sua busca. - Deve haver alguém com quem ele tenha
mantido contato. Com quem ele poderia ter falado? A quem ele teria contado o que estava planejando fazer?
Jenny se empertigou e colocou a panela no velho fogão a gás. Misha e John se ofereciam para trocar o fogão desconjuntado toda vez que se sentavam para aquele ato
teatral que era o jantar de domingo, mas Jenny sempre recusava, com o ar de martírio frustrado com que normalmente respondia às ofertas de gentileza.
- Nisso você também deu azar. - Ela se acomodou numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa minúscula na cozinha apertada. - Ele só tinha um amigo
de verdade. Andy Kerr. Era um comunista fervoroso, o Andy. Te digo uma coisa: em 1984 não eram muitos os que ainda erguiam a bandeira vermelha, mas Andy era um deles.
Ele já era sindicalista bem antes da greve. Ele e seu pai eram amigos desde a escola. - Seu rosto se suavizou por um momento, e Misha quase pôde ver a jovem que
ela havia sido. - Eles estavam sempre aprontando alguma, aqueles dois.
- Então, onde é que encontro esse tal de Andy Kerr? - Misha se sentou em frente à mãe, seu desejo de ir embora temporariamente abandonado.
O rosto da mãe se contorceu em uma expressão irônica.
- Coitada. Se você conseguir encontrar Andy, será uma detetive e tanto. - Ela se inclinou para a frente e deu um tapinha na mão de Misha. - Ele é mais
uma das vítimas do seu pai.
- Como assim?
- Andy adorava seu pai. Para ele, era Deus no céu e seu pai na terra. Pobre Andy. A greve o colocou sob uma enorme pressão. Ele acreditava na greve, acreditava
na luta. Mas ficou arrasado ao ver as dificuldades pelas quais seus homens estavam passando. Ele estava à beira de um ataque de nervos, e o diretor local o obrigou
a tirar uma licença médica, não muito antes de seu pai dar o fora. Ninguém o viu depois disso. Ele vivia lá nos cafundós, então ninguém percebeu que ele havia partido.
- Ela soltou um suspiro longo e cansado. - Ele mandou um cartão-postal para o seu pai, de algum lugar no norte. Mas, é claro, seu pai já tinha fugido da greve e,
portanto, nunca o recebeu. Mais tarde, quando Andy voltou, deixou um bilhete para a irmã dele dizendo que não suportava mais. O pobre coitado se matou.
- E o que isso tem a ver com o meu pai? - perguntou Misha.
- Sempre achei que o fato de seu pai ter furado a greve foi a gota d'água. - A expressão de Jenny era uma mistura de piedade e convencimento. - Foi o que
condenou Andy.
- Você não tem como saber isso. - Misha se afastou, aborrecida.
- Não sou a única por aqui que pensa assim. Se seu pai tivesse confiado em alguém, teria sido em Andy. E isso deve ter sido demais para aquela pobre alma
fragilizada. Ele tirou a própria vida, sabendo que seu único amigo de verdade havia traído tudo aquilo que ele defendia.
Naquele tom melodramático, Jenny se levantou e pegou um saco de cenouras da prateleira. Estava claro que ela dera por encerrado o assunto Mick Prentice.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen deu uma espiada no relógio. Quaisquer que fossem as qualidades de Misha Gibson, a brevidade não era uma delas.
- Então Andy Kerr provou ser, literalmente, um caso morto e enterrado?
- Minha mãe acha que sim. Mas parece que nunca encontraram o corpo. Talvez ele não tenha se matado, afinal - disse Misha.
- Eles nem sempre aparecem - Karen disse. - Às vezes, o mar os reivindica. Ou a floresta, que seja. Ainda existe muito espaço vazio nesta terra.
A resignação tomou conta do rosto de Misha. Karen percebeu que ela era uma mulher inclinada a acreditar no que lhe diziam. Se havia alguém que sabia disso, era sua
mãe. Talvez as coisas não fossem tão preto no branco quanto Jenny Prentice queria que sua filha pensasse.
- Isso é verdade - disse Misha. - E minha mãe falou mesmo que ele havia deixado um bilhete. Será que a polícia ainda o tem?
Karen balançou a cabeça.
- Duvido. Se em algum momento esteve com a gente, foi devolvido à família dele.
- Não teria havido um inquérito? Não teriam precisado do bilhete para isso?
- Você se refere a uma Investigação de Acidente Fatal - disse Karen.
- Não sem um corpo. Se existir um arquivo desse caso, é a respeito de pessoa desaparecida.
- Mas ele não está desaparecido. A irmã dele conseguiu que ele fosse declarado morto. Seus pais morreram no acidente da balsa de Zeebrugge, mas parece que
o pai sempre se recusou a acreditar que Andy tivesse morrido; então, não alterou o testamento para deixar a casa para a filha. Ela teve que ir ao tribunal e pedir
que declarassem Andy morto, para que ela pudesse herdá-la. De qualquer modo, foi o que minha mãe me contou. - Nenhum sinal de dúvida perturbava a expressão de Misha.
Karen anotou irmã de Andy Kerr e acrescentou um pequeno asterisco à observação.
- Portanto, se Andy se matou, voltamos a ter como única explicação racional para seu pai ter desaparecido o fato de ele querer furar a greve. Você fez alguma
tentativa de contatar os caras com quem se supõe que ele tenha fugido?
Segunda-feira, 25 de junho de 2007; Edimburgo
Nove e dez da manhã de uma segunda-feira e Misha já se sentia exausta. Ela já deveria estar com Luke no hospital. Brincando com ele, lendo para ele, bajulando os
terapeutas para que ampliassem seus procedimentos, discutindo planos de tratamento com a equipe médica e usando toda a sua energia para contagiá-los com a sua convicção
de que era possível salvar o filho. E, se era possível, todos eles tinham a obrigação de lhe proporcionar até a última gota de intervenção médica.
Mas, em vez disso, Misha estava sentada no chão, com as costas contra a parede, os joelhos dobrados, o telefone no colo e o bloco de anotações a seu lado. Ela disse
a si mesma que estava tomando coragem para dar um telefonema, mas no fundo sabia que a exaustão era o verdadeiro motivo por trás da inatividade.
Outras famílias aproveitavam os fins de semana para relaxar, recarregar as baterias. Mas não os Gibson. Para começar, havia menos funcionários trabalhando no hospital,
então Misha e John se sentiam obrigados a dedicar
mais energia que o habitual a Luke. Tampouco havia descanso quando eles voltavam para casa. O fato de Misha acreditar que a última esperança para o filho era encontrar
seu pai havia simplesmente agravado o conflito entre seu ardor missionário e o otimismo passivo de John.
Esse fim de semana havia sido mais difícil que o normal. Ter um limite de tempo definido para a vida de Luke impregnava de valor e intensidade cada momento que compartilhavam.
Era difícil evitar uma espécie de sentimentalismo melodramático. Assim que saíram do hospital no domingo, Misha retomou o refrão que vinha repetindo desde que visitara
a mãe:
- Eu tenho que ir a Nottingham, John. Você sabe disso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta impermeável e curvou a cabeça para a frente, como se estivesse lutando contra um vento forte.
- Telefone para o cara - John falou. - Se ele tiver alguma coisa a dizer, dirá pelo telefone.
- Talvez não. - Ela correu um pouco para acertar o passo com ele. - As pessoas sempre contam mais coisas cara a cara. Talvez possa me dar alguma informação
sobre os outros que foram para lá com ele. Pode ser que eles saibam de alguma coisa.
John bufou.
- E como é que a sua mãe só se lembra do nome de um cara? Por que ela não pode te dar informações a respeito dos outros?
- Eu já disse. Ela apagou da memória tudo sobre aquela época. Tive que pressioná-la muito até ela me dar o nome de Logan Laidlaw.
- E você não acha incrível que o único cara de quem ela se lembra não tenha nenhum parente na região? Nenhuma maneira óbvia de ser rastreado?
Misha enganchou seu braço no dele, em parte para fazê-lo ir mais devagar.
- Mas eu o rastreei, não foi? Você é desconfiado demais.
- Não sou, não. Sua mãe não conhece o poder da Internet. Ela não sabe dos cadastros eleitorais on-line nem do site 192.com. Ela acha que, se não houver nenhum
ser humano a quem perguntar, você está ferrada. Pensou que não estava lhe dando nada que você pudesse usar. Ela não quer ver você bisbilhotando a respeito desse
assunto, ela não vai te ajudar.
- Então você e ela podem dar as mãos. - Misha soltou o braço do dele e caminhou rapidamente à sua frente.
John a alcançou na esquina da rua deles.
- Isso não é justo - ele disse. - Eu só não quero que você se machuque à toa.
- Você acha que ver meu filho morrer sem fazer nada para salvá-lo não está me machucando?
Misha sentiu o calor da raiva em seu rosto, soube que as lágrimas de ira estavam à espreita. Virou o rosto, piscando desesperadamente para os prédios altos de arenito.
- Encontraremos um doador. Ou eles encontrarão um tratamento. Toda essa pesquisa com células-tronco está avançando muito rápido.
- Não rápido o bastante para Luke - Misha disse, a familiar sensação de peso no estômago desacelerando seus passos. - John, por favor. Preciso ir a Nottingham.
Preciso que você tire uns dias de folga do trabalho para ficar com Luke.
- Você não precisa ir. Pode falar com o cara pelo telefone.
- Não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você não negocia com clientes pelo telefone. Não quando é alguma coisa importante. Você vai até eles pessoalmente.
Quer olhar em seus olhos. Tudo que estou pedindo é que você tire uns dias de folga para passar um tempo com seu filho.
Os olhos dele brilharam perigosamente, e ela soube que tinha ido longe demais. John balançou a cabeça com teimosia.
- Telefone para ele, Misha.
E isso foi tudo. Sua longa experiência com o marido havia lhe ensinado que, quando John assumia uma postura que acreditava estar certa, insistir no mesmo ponto
apenas lhe dava a oportunidade de construir defesas mais fortes. Ela não tinha argumentos novos que pudessem mudar sua decisão. Portanto, ali estava ela, sentada
no chão, tentando formular frases capazes de convencer Logan Laidlaw a lhe dizer o que havia acontecido com seu pai desde que ele a abandonara, havia mais de vinte
anos.
Sua mãe não lhe dera muita coisa para criar uma estratégia. Laidlaw era um esbanjador, um mulherengo, um homem que, aos trinta anos, ainda agia como um adolescente.
Aos vinte e cinco anos, já se divorciara com a péssima reputação de ser um homem habilidoso demais com os punhos quando perto das mulheres. A imagem que Misha guardava
do pai era incompleta e parcial, mas, mesmo com a visão imposta pela mãe, Mick Prentice não
parecia ser o tipo de homem que tivesse tempo a perder com Logan Laidlaw. Ainda assim, tempos difíceis criam os companheiros mais estranhos.
Finalmente, Misha pegou o telefone e digitou os números que ela havia encontrado através de buscas na Internet e em listas telefônicas. Provavelmente ele saíra para
trabalhar, ela pensou no quarto toque. Ou então estava dormindo.
O sexto toque foi interrompido abruptamente. Uma voz rouca grunhiu algo parecido com alô.
- É Logan Laidlaw? - Misha perguntou, lutando para manter a voz sob controle.
- Já tenho uma cozinha montada e não quero nenhum seguro. - O sotaque de Fife ainda era forte, as palavras se atropelando com o familiar sobe e desce.
- Não quero lhe vender nada, Sr. Laidlaw. Só preciso falar com o senhor um instante.
- É, sei. E eu sou o primeiro-ministro.
Ela podia sentir que ele estava a ponto de desligar.
- Sou a filha de Mick Prentice - ela revelou, sua estratégia tinha ido por água abaixo. Através da distância, ela podia ouvir o chiado líquido da respiração
dele. - Mick Prentice, de Newton of Wemyss - ela tentou.
- Eu sei de onde Mick Prentice é. Só não sei o que Mick Prentice tem a ver comigo.
- Olhe, sei que vocês dois não se veem muito, ultimamente, mas eu agradeceria qualquer informação que o senhor pudesse me dar. Realmente preciso encontrá-lo.
- O sotaque de Misha pulou algumas marchas até voltar à pronúncia carregada.
Uma pausa. Então, com um tom desconcertado:
- Por que você está me ligando? Não vejo Mick Prentice desde que saí de Newton of Wemyss, em 1984.
- Tudo bem, mas mesmo que vocês tenham se separado logo que chegaram a Nottingham, o senhor deve ter uma ideia de onde ele foi parar, aonde ele estava indo.
- Escuta aqui, docinho, não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim, nos separamos logo que chegamos a Nottingham? - ele parecia irritado,
a pouca paciência que tinha evaporava com as perguntas dela.
Misha engoliu um suspiro profundo e, então, disse lentamente:
- Só quero saber o que aconteceu com meu pai depois que vocês chegaram a Nottingham. Preciso encontrá-lo.
- Por acaso, você tem algum problema na cabeça, menina? Não faço a menor ideia do que aconteceu com seu pai depois que vim para Nottingham e sabe por quê?
Porque eu estava em Nottingham e ele, em Newton of Wemyss. E mesmo quando nós dois estávamos na mesma cidade, não éramos o que se pode chamar de compadres.
As palavras a atingiram como um balde de água fria. Será que havia algo errado com a memória de Logan Laidlaw? Estaria se esquecendo do passado?
- Não, isso não está certo - ela disse. - Ele foi para Nottingham com você.
Uma explosão de risadas, então uma tosse seca.
- Alguém está te enrolando, menina - ele ofegou. - Trotsky teria furado um piquete de greve antes do Mick Prentice que eu conheci. O que te faz pensar que
ele veio para Nottingham?
- Não sou só eu. Todo mundo pensa que ele foi para Nottingham com você e com os outros homens.
- Isso é loucura. Por que iriam pensar isso? Você não conhece a história da sua própria família?
- O que você quer dizer?
- Por Deus, menina, o seu bisavô. O avô do seu pai. Você não sabe a respeito dele?
Misha não fazia a mínima ideia de onde aquilo iria parar, mas pelo menos ele não tinha desligado na cara dela, como havia temido que fizesse.
- Ele morreu antes de eu nascer. Não sei nada sobre ele, a não ser que também era mineiro.
- Jackie Prentice - disse Laidlaw com algo que se aproximava à satisfação. - Ele foi um fura-greve em 1926. Depois do acordo sindical, ele teve de ser transferido
para um posto na superfície. Quando sua vida depende dos homens da sua equipe, você não quer ser um fura-greve no subterrâneo. A não ser que todo mundo esteja no
mesmo barco, como era nosso caso. Só Deus sabe por que Jackie permaneceu na cidade. Ele tinha que tomar um ônibus até Dysart só para conseguir uma bebida. Não havia
um só bar, em nenhum dos vilarejos de Wemyss, que o servisse. Então, seu pai e seu avô tiveram que trabalhar duas vezes mais que qualquer outra pessoa para serem
aceitos na mina. Nem morto Mick Prentice jogaria fora esse respeito. Ele preferiria morrer de fome. Isso mesmo, e deixar que você morresse junto com ele. Onde quer
que você tenha conseguido essa informação, eles não sabem de que diabos estão falando.
- Minha mãe me contou. É o que todos dizem em Newton. - O impacto das palavras dele a fizeram sentir como se todo ar houvesse sido sugado de seus pulmões.
- Bem, eles estão errados. Por que iriam pensar isso?
- Porque a noite em que você foi para Nottingham foi a última noite em que alguém em Newton o viu ou ouviu falar dele. E porque minha mãe, ocasionalmente,
recebe dinheiro pelo correio, com o carimbo de Nottingham.
Laidlaw respirou com dificuldade, uma exalação de sanfona no ouvido dela.
- Jesus, isso é espantoso. Bem, querida, sinto muito decepcioná-la. Cinco de nós partiram de Newton of Wemyss naquela noite de dezembro. Mas seu pai não estava
entre a gente.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen parou na lanchonete para comprar um sanduíche de salpicão de frango, quando voltava para sua mesa. Criminosos e testemunhas raramente conseguiam enganar Karen,
mas, quando se tratava de comida, ela podia enganar a si mesma dezessete vezes antes do café da manhã. O sanduíche, por exemplo. Pão integral, um pedaço de alface
murcha, algumas fatias de tomate e pepino e, pronto: passava a ser um alimento saudável. Esqueça a manteiga e a maionese. Na sua cabeça, as calorias eram canceladas
pelo benefício. Ela enfiou o caderno embaixo do braço e rasgou a embalagem plástica do sanduíche enquanto caminhava.
Phil Parhatka levantou os olhos quando Karen se deixou cair, pesadamente, na cadeira. Não pela primeira vez, o ângulo da cabeça dele a lembrou de que ele parecia
uma versão mais morena e mais magra de Matt Damon. Havia o mesmo nariz e queixo protuberantes, as sobrancelhas retas, o corte de cabelo à la Identidade Boume, e
a expressão que podia variar, de aberta a resguardada, num segundo. Só as cores eram diferentes.
A ascendência polonesa de Phil era responsável por seus cabelos escuros, os olhos castanhos e a pele intensamente branca; sua personalidade contribuíra com o minúsculo
furo em sua orelha esquerda, que geralmente acomodava um brinco de diamante, quando ele não estava de serviço.
- Como foi? - ele perguntou.
- Mais interessante do que eu esperava - ela admitiu, levantando-se novamente para pegar uma Coca Diet.
Entre mordidas e goles, ela fez um resumo conciso da história de Misha Gibson.
- E ela acredita no que esse velho caduco de Nottingham lhe contou? - ele perguntou, recostando-se na cadeira e entrelaçando os dedos atrás da cabeça.
- Acho que ela é o tipo de mulher que normalmente acredita no que as pessoas lhe dizem - disse Karen.
- Ela seria uma péssima policial, então. Portanto, imagino que você irá passar o caso para a Divisão Central investigar.
Karen deu uma dentada no sanduíche e mastigou vigorosamente, os músculos da mandíbula e têmpora se projetavam e contraíam como uma bola antiestresse sob pressão.
Ela engoliu antes de ter terminado de mastigar direito, empurrando o que sobrou com um gole de Coca Diet.
- Não tenho certeza - ela disse. - É um caso interessante.
Phil lançou um olhar cauteloso.
- Karen, não se trata de um caso arquivado. Não é nossa praia.
- Se eu passá-lo para a Central, vai acabar não dando em nada. Ninguém dé lá vai se incomodar com um caso em que as pistas esfriaram há vinte e dois anos.
- Ela se recusou a encarar o olhar desaprovador dele. - Você sabe disso tão bem quanto eu. E, segundo Misha Gibson, essa seria a última chance do filho dela.
- Ainda não faz com que seja um caso arquivado.
- Só porque não foi aberto em 1984 não significa que agora não esteja arquivado. - Karen sacudiu o resto de seu sanduíche apontando para arquivos sobre sua
mesa. - E nenhum destes aqui irá a qualquer lugar, a curto prazo. Darren Anderson: não há nada que eu possa fazer até que os policiais nas Canárias se mexam e descubram
em que bar a ex-namorada dele está trabalhando. Ishbel Mackindoe: aguardo que o laboratório me
diga se eles podem obter amostras viáveis de DNA das cartas anônimas. Patsy Millar: não posso seguir adiante com esse caso até que a Polícia Metropolitana de Londres
termine de cavar aquele jardim no bairro de Heringey e faça as análises criminais.
- Há testemunhas no caso de Patsy Millar com quem poderíamos falar novamente.
Karen deu de ombros. Ela sabia que podia usar a hierarquia para calar a boca de Phil, mas precisava demais da tranquilidade que havia entre eles.
- Elas não irão a lugar algum. Ou, senão, você pode pegar um dos detetives e lhe dar um pouco de treinamento em ação.
- Se você acha que eles precisam de treinamento em ação, deveria lhes dar esse caso arquivadíssimo de pessoa desaparecida. Você é uma inspetora agora, Karen.
Não se espera que saia investigando esse tipo de coisa. - Ele indicou com a mão os dois detetives sentados frente a seus computadores. - Isso é para gente como eles.
O que acontece é que você está entediada. - Karen tentou protestar, mas Phil continuou, sem lhe dar atenção. - Eu lhe disse, quando você aceitou essa promoção, que
iria ficar louca, sentada atrás de uma mesa. E agora, olhe só. Surrupiando os casos dos agentes da Central. O próximo passo é você sair para fazer pessoalmente os
interrogatórios.
- E daí? - Karen amassou a embalagem do sanduíche com mais força que o necessário e a atirou no lixo. - É bom manter a mão na massa. E vou garantir que tudo
seja feito de forma honesta. Levarei o detetive Murray comigo.
- O Novo em Folha? - O tom da voz de Phil era de incredulidade, seu semblante estava ofendido. - Você preferiria o Novo em Folha a mim?
Karen sorriu com doçura.
- Você agora é sargento, Phil. Um sargento com ambições. Ficar no escritório e esquentar minha cadeira ajudará suas aspirações a se tornarem realidade. Além
disso, o Novo em Folha não é tão ruim quanto você pensa. Ele faz aquilo que o mandam fazer.
- Isso um cachorro collie também faz. Só que o cão mostraria mais iniciativa.
- A vida de uma criança está em jogo, Phil. Eu tenho bastante iniciativa para nós dois. Isso deve ser feito da maneira correta e vou garantir que
seja. - Ela se virou para o computador com um ar de ter terminado a conversa.
Phil abriu a boca para falar mais, então, pensou melhor, ao ver o olhar repressivo que Karen lançou em sua direção. Eles se sentiram atraídos um pelo outro desde
o começo da carreira, reconhecendo a tendência comum de não se conformar. O fato de haverem galgado postos juntos lhes havia conferido uma amizade capaz de sobreviver
ao desafio da mudança de cargo. Mas ele sabia que havia um limite até onde podia pressionar Karen, e tinha a sensação de haver acabado de atingi-lo.
- Então, eu lhe darei cobertura por aqui - ele disse.
- Por mim, está ótimo - Karen disse, enquanto seus dedos voavam pelas teclas. - Marque a minha saída para amanhã de manhã. Tenho a impressão de que Jenny
Prentice será um pouquinho mais receptiva a uma dupla de policiais do que foi com a filha.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Aprender a esperar era uma das lições do jornalismo que as faculdades não ensinavam. Quando Bel Richmond tivera um emprego de tempo integral, em um jornal dominical,
sempre defendera que era paga não por uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, e sim pelos cinco minutos em que conseguia, com sua lábia, passar por uma
porta que ninguém antes conseguira cruzar. O que deixava bastante tempo livre para esperar. Esperar que alguém retornasse um telefonema. Esperar que o passo seguinte
da história acontecesse. Esperar que um contato se transformasse em informante. Bel havia passado por várias esperas e, embora tivesse se tornado habilidosa na atividade,
nunca havia aprendido a apreciá-la.
Tinha de admitir que já precisara esperar em ambientes muito menos salubres que aquele. Ali, havia o conforto do café, biscoitos e jornais. E a sala na qual havia
sido deixada oferecia a vista panorâmica que já enfeitara um milhão de latas de biscoitos amanteigados. Ocupando toda a extensão da Princess Street, exibia um punhado
de atrações turísticas: o castelo, o Scott Monument, a National Gallery e o parque Prince Street Gardens. Bel notou outra beleza arquitetônica significativa, mas
não sabia o suficiente sobre a cidade para identificá-la. Ela só visitara a capital escocesa algumas
vezes e não fora escolha sua realizar aquela reunião ali. Teria preferido Londres; porém, a relutância em mostrar seus trunfos antecipadamente a havia deslocado
do assento do motorista para o posto de suplicante.
De forma um tanto incomum para uma jornalista freelance, ela contava com um assistente de pesquisa. Jonathan era estudante de jornalismo na City University e pedira
a seu orientador que o indicasse para estagiar com Bel. Aparentemente, ele gostava do estilo dela. Bel ficara levemente agradecida pelo elogio, mas profundamente
maravilhada com a perspectiva de ter oito semanas livres de todo trabalho pesado. Sendo assim, Jonathan fizera o primeiro contato com a Maclennan Grant Enterprises.
Voltou com uma resposta bem simples: se a Srta. Richmond não estava preparada para declarar seu motivo para querer um encontro com Sir Broderick Maclennan Grant,
Sir Broderick não estava preparado para se encontrar com ela. Sir Broderick não dava entrevistas. Após algumas negociações adicionais a distância, ela chegara ao
presente acordo.
E agora, pensou Bel, ela estava sendo colocada em seu lugar. Obrigada a ficar esperando numa sala de reuniões de hotel. Forçada a entender que alguém tão importante
quanto a assistente pessoal do presidente e acionista principal da décima segunda empresa mais valiosa do país tinha compromissos mais urgentes em sua agenda do
que fazer sala para uma escritorazinha de Londres.
Gostaria de se levantar e caminhar um pouco, mas não queria revelar qualquer falta de compostura. Ceder terreno nunca fora natural para ela. Em vez disso, ajeitou
a jaqueta, verificou se a blusa estava adequadamente arrumada e tirou uma sujeirinha dos sapatos de camurça verde-esmeralda.
Afinal, precisamente quinze minutos depois da hora marcada, a porta se abriu. A mulher que entrou, num turbilhão de lã e caxemira, lembrava uma professora de colégio,
de idade indeterminada, mas acostumada a impor disciplina aos alunos. Por um momento insano, Bel quase se levantou de um pulo, num reflexo pavloviano às suas recordações
adolescentes de freiras terroristas. No entanto, conseguiu se conter e se levantou de forma mais lenta.
- Susan Charleson - disse a mulher, estendendo a mão. - Desculpe-me por tê-la feito esperar. Como Harold Macmillan disse uma vez: "Acontecimentos, caro rapaz.
Acontecimentos."
Bel decidiu não ressaltar que Harold Macmillan referia-se ao trabalho de primeiro-ministro, e não à função de babá de um líder industrial. Segurou os dedos mornos
e secos, em um aperto rápido e rígido, e, então, teve a mão liberada.
- Annabel Richmond.
Susan Charleson ignorou a poltrona em frente a Bel e dirigiu-se à mesa perto da janela. Pega de surpresa, Bel apanhou a bolsa e a pasta de couro e a seguiu. Sentaram-se
em lados opostos e Susan sorriu, os dentes pareciam uma linha de creme dental calcária em meio ao batom rosa-escuro.
- Você queria ver Sir Broderick - ela disse. Sem preâmbulos, sem conversa fiada sobre a vista. Simplesmente direta. Era uma técnica que Bel havia utilizado
algumas vezes, o que não queria dizer que a apreciasse quando a situação era inversa.
- Exatamente.
Susan balançou a cabeça.
- Sir Broderick não fala com a imprensa. Temo que você tenha desperdiçado seu tempo. Expliquei tudo isso a seu assistente, mas ele se recusou a aceitar uma
resposta negativa.
Foi a vez de Bel sorrir com frieza.
- E fez muito bem. Eu, obviamente, lhe dei um bom treinamento. Mas parece haver um mal-entendido. Não estou aqui para implorar por uma entrevista. Estou aqui
porque acho que tenho algo em que Sir Broderick ficará interessado. - Ela ergueu a pasta até a mesa e abriu o zíper. De dentro, retirou uma única folha de papel
A3 grosso, virada para baixo. Estava manchada e exalava um cheiro sutil, uma mistura curiosa de poeira, urina e lavanda. Bel não resistiu a lançar uma olhadela provocadora
para Susan Charleson. - Você gostaria de ver? - ela perguntou, virando o papel.
Susan tirou um estojo de couro do bolso da saia e extraiu dele uns óculos de aro de casco de tartaruga. Equilibrou-os no nariz, calmamente, mas sem tirar os olhos
das imagens em preto e branco à sua frente. O silêncio entre as mulheres pareceu crescer, e Bel sentiu-se sem ar enquanto esperava por uma resposta.
- Onde você encontrou isto? - Susan perguntou, seu tom de voz estava tão afetado quanto o de uma professora de latim.
Segunda-feira, 18 de junho de 2007; Campora, Toscana, Itália
Às sete da manhã era quase possível acreditar que o calor intenso dos últimos dez dias não fosse dar as caras. A luz perolada do dia cintilava entre a abóbada de
folhas de carvalho e castanheira, deixando visíveis as partículas de poeira que espiralavam, emitidas pelos pés de Bel. Ela se movia devagar o bastante para notá-las
porque a trilha destruída que descia em meio às árvores era sulcada e esburacada, coberta com pedras irregulares o bastante para conscientizar qualquer corredor
da fragilidade de seus tornozelos.
Apenas mais duas daquelas corridas matinais tão apreciadas antes de retornar às sufocantes ruas de Londres. O pensamento provocou uma ferroada de arrependimento.
Bel adorava escapulir da villa enquanto todos ainda estavam dormindo. Ela podia andar descalça pelo chão frio de mármore, fingindo ser a castelã do lugar, e não
simplesmente outra arrendatária tentando tirar uma casquinha da elegância toscana.
Ela vinha tirando férias com o mesmo grupo de cinco amigas desde que dividiram uma casa, em seu último ano na universidade de Durham. Naquela primeira vez, elas
estavam estudando arduamente para os exames finais. Os pais de uma delas tinham uma casa de campo na Comualha, que elas ocuparam por uma semana. Haviam chamado aquilo
de pausa nos estudos; na verdade, foram umas férias em que descansaram e relaxaram, ficando em melhores condições para prestar os exames do que se tivessem se exaurido
com livros e artigos. E, apesar de serem jovens modernas e nem um pouco dadas a superstições, todas sentiram que a semana que haviam passado juntas tinha, de alguma
forma, sido responsável por suas boas notas. Desde então, vinham se reunindo todos os anos, em junho, com o compromisso de se divertir.
Ao longo dos anos, seus hábitos alcoólicos haviam se tornado mais apurados; os alimentícios, mais epicuristas; e as conversas, mais escandalosas. Os lugares haviam
se tornado cada vez mais luxuosos. Amantes jamais eram convidados para compartilhar aquela semana das garotas. Ocasionalmente, uma delas hesitava, alegando muita
pressão no trabalho ou obrigações familiares, mas, geralmente, era ameaçada e mudava de ideia rapidamente e sem dar muito trabalho.
Para Bel, aquele era um elemento significativo de sua vida. Todas aquelas mulheres eram bem-sucedidas, todas eram fontes com as quais podia
contar para suavizar seu caminho, de tempos em tempos. Mas, apesar disso, não era essa a razão principal de suas férias serem tão importantes. Parceiros haviam chegado
e partido, mas aquelas amigas sempre foram uma constante. Em um mundo no qual se era julgado de acordo com sua última manchete, era agradável ter um refúgio onde
nada disso importava. Onde ela era apreciada simplesmente porque o grupo se divertia mais quando ela estava presente. Elas se conheciam havia muito tempo para perdoar
os defeitos umas das outras, para aceitar as opiniões políticas umas das outras e para dizer aquilo que seria impronunciável diante de qualquer outra pessoa. Essas
férias faziam parte da fortaleza que ela constantemente levantava contra suas próprias inseguranças. Além disso, atualmente, eram as únicas férias que ela tirava
que estavam de acordo com o que ela queria fazer. Nos últimos seis anos, ela estivera presa à sua irmã viúva, Vivianne, e seu filho Harry. A morte repentina do marido
de Vivianne, vítima de um ataque cardíaco, a deixara emocionalmente abalada e muito carente. Bel não hesitara em unir seu destino ao da irmã e do sobrinho. No final,
tinha sido uma boa decisão, mas, ainda assim, ela valorizava muito a pausa anual daquela vida familiar que nunca imaginou que viveria. Principalmente agora, quando
Harry se encontrava à beira da crise existencial da adolescência. Este ano, portanto, mais ainda do que no passado, as férias tinham de ser especiais, precisavam
superar tudo que já havia existido.
Era difícil imaginar como elas superariam isso, ela pensou, enquanto emergia das árvores e virava num campo de girassóis que se preparavam para florescer. Ela se
apressou um pouco ao percorrer seu caminho pela margem, o-nariz franzindo com o aromático perfume da vegetação. Não havia nada que ela desejasse mudar naquele lugar,
nenhum defeito que pudesse encontrar nos jardins e nas árvores frutíferas que rodeavam a varanda e a piscina. A vista do Val d'Eisa era deslumbrante, com as cidadezinhas
de Volterra e San Gimignano no horizonte distante.
E havia o bônus adicional da culinária de Grazia. Quando elas descobriram que a "chef local" descrita no site da Internet era a esposa do criador de porcos que vivia
ali perto, desistiram de chamá-la até a villa para preparar uma refeição tipicamente toscana. Na tarde do terceiro dia, no entanto, todas estavam incomodadas demais
com o calor para se dar ao trabalho de cozinhar; então, chamaram Grazia. O marido, Maurizio, a levou até a villa
num Fiat Panda caindo aos pedaços, que parecia se manter inteiro à custa de barbantes e fé. Ele descarregou caixas de comida cobertas de musselina. Num inglês macarrônico,
Grazia as expulsou da cozinha e mandou que fossem relaxar na varanda com um drinque.
A comida foi uma revelação: salames com frutas secas e prosciutto feito dos raros porcos Cinta di Siena que Maurizio criava, combinados com figos perfumados colhidos
em seu pomar; espaguete ao pesto de estragão e manjericão; codornas assadas com os vegetais cultivados por Maurizio e tiras compridas de batata temperadas com alecrim
e alho; queijos produzidos em fazendas da região e, finalmente, um delicioso bolo de amêndoas embebido com limoncello.
As mulheres nunca mais cozinharam.
A culinária de Grazia fez com que as corridas matinais de Bel se tornassem ainda mais necessárias. Ao aproximar-se dos quarenta, ela lutava cada vez mais para manter
o que pensava ser seu peso ideal. Naquela manhã, seu estômago ainda parecia uma bola rígida, após as suaves e deliciosas berinjelas alia parmigiana que a haviam
tentado a repetir generosamente o prato. Iria correr um pouco mais longe do que o normal, decidiu. Em vez de fazer o circuito do campo de girassóis e subir de volta
à villa, tomaria uma trilha que ia da extremidade mais distante e cruzava o terreno coberto de vegetação de uma casa colonica em ruínas, que ela avistara ao passar
de carro. Desde que vira a casa, na primeira manhã, tinha alimentado a fantasia de comprar a ruína e transformá-la no melhor dos refúgios toscanos, com direito
a piscina e jardim de oliveiras. E, é claro, com Grazia à disposição para cozinhar. Bel não tinha muitos escrúpulos com relação à invasão de propriedades, em fantasia
ou na realidade.
Mas ela se conhecia o suficiente para saber que aquilo nunca passaria de um sonho. Ser proprietária de um refúgio implicava o desejo, que ela não tinha, de abandonar
seu universo de trabalho. Talvez, quando estivesse pronta para se aposentar, pudesse considerar a possibilidade de devotar-se a um projeto de restauração como aquele.
A não ser pelo fato de admitir que esse era outro sonho pouco realista. Jornalistas jamais se aposentavam de verdade. Sempre havia outra história no horizonte, outro
alvo a perseguir. Sem falar do horror de ser esquecido. Todos motivos pelos quais seus relacionamentos passados não haviam durado, todos motivos pelos quais seu
futuro provavelmente reservasse as mesmas imperfeições. Ainda assim,
seria divertido dar uma olhada mais de perto na velha casa para ver seu estado. Quando mencionara a ideia a Grazia, ela fizera uma careta e a chamara de rovina.
Bel, cujo italiano era fluente, havia traduzido para as demais: "ruína". Hora de descobrir se Grazia estava dizendo a verdade ou apenas tentando desviar o interesse
de algumas ricaças inglesas.
O caminho através da grama alta ainda estava surpreendentemente limpo, o solo nu endurecido por anos de pisadas. Bel aproveitou a oportunidade para ir mais rápido,
até diminuir a velocidade ao chegar ao pátio fechado por portões, em frente à velha fazenda. Os portões estavam dilapidados, pendendo frouxamente das dobradiças
que mal se apegavam aos pilares de pedra. Uma corrente pesada e um cadeado os mantinham fechados. Mais além, o pavimento quebrado do pátio estava demarcado por tufos
rasteiros de tomilho, camomila e mato. Bel sacudiu os portões sem muita esperança. Mas foi o suficiente para revelar que o canto inferior do portão direito havia
se soltado completamente do suporte. Poderia ser facilmente afastado para que um adulto passasse pela abertura. Bel deslizou por ali e soltou o portão, que rangeu
suavemente ao voltar para sua posição de origem, aparentemente fechado.
De perto, ela pôde entender a descrição de Grazia. Qualquer um que assumisse a restauração ficaria escravo dos pedreiros por um longo, longo tempo. A casa rodeava
o pátio em três lados, uma ala central delimitada por dois braços iguais. Havia dois andares, com uma varanda percorrendo todo o segundo andar, na qual se abriam
portas e janelas, conferindo aos quartos fácil acesso ao ar livre e ao espaço de uso comum. Mas o chão da varanda havia cedido, as portas que restavam estavam tortas
e as vergas sobre as janelas estavam rachadas, pendendo em ângulos estranhos. As vidraças, em ambos os andares, estavam imundas, rachadas ou haviam desaparecido.
Mas as linhas sólidas da atraente arquitetura local ainda eram visíveis, e as pedras ásperas brilhavam calorosamente ao sol da manhã.
Bel não teria conseguido explicar por que, mas a casa a atraía. Tinha o charme desgastado de uma beldade suficientemente segura de si para permitir-se envelhecer
sem luta. Buganvílias sem poda estendiam-se sobre o estuque ocre descascado e cobriam a parede inferior da varanda. Se ninguém decidisse se apaixonar logo pela casa,
muito em breve ela estaria tomada pela vegetação. Em algumas gerações, não seria nada além de um
aterro inexplicável na ladeira da colina. Mas, naquele instante, ela ainda tinha o poder de enfeitiçar.
Bel atravessou o pátio que se esfarelava, passando por vasos de terracota rachados e tombados; as ervas que estes um dia haviam contido agora se espalhavam e brotavam
livremente, condimentando o ar com suas fragrâncias. Ela empurrou uma porta pesada, feita de tábuas de madeira que pendiam de uma única dobradiça. A madeira raspou
ruidosamente contra o piso desnivelado, de tijolos assentados em ziguezague, mas se abriu o suficiente para que Bel entrasse na sala ampla sem ter de se espremer.
Sua primeira impressão foi de sujeira e abandono. Teias de aranha se entrelaçavam num emaranhado que ia de parede a parede. As janelas estavam manchadas de poeira.
Um ruído de algo rastejando, a distância, fez com que Bel olhasse em volta, em pânico. Ela não tinha medo dos editores de jornais, mas ratos de quatro patas a enchiam
de repulsa.
Conforme ia se acostumando à obscuridade, Bel percebeu que a sala não estava completamente vazia. Havia uma mesa comprida contra uma parede. No lado oposto, um sofá
com o assento afundado. A julgar pelo resto do lugar, deveria estar podre e imundo, mas o tecido vermelho-escuro que o forrava ainda se mantinha relativamente limpo.
Ela arquivou aquele dado estranho para posterior consideração.
Bel hesitou por um instante. Tinha certeza de que nenhuma de suas amigas a encorajaria a prosseguir na exploração daquela estranha casa deserta. Mas ela havia construído
sua carreira com base em uma reputação de audácia. Só ela sabia com que frequência sua aparência ocultava níveis de ansiedade e incerteza que a haviam feito vomitar
em sarjetas e banheiros nos lugares mais estranhos. Depois de tudo que ela já havia enfrentado, em sua determinação de conseguir uma boa história, até que ponto
uma ruína deserta poderia ser assustadora?
Uma porta na extremidade mais distante conduzia a um corredor apertado, com uma escadaria gasta de pedra que levava à varanda. Mais à frente, ela podia ver outra
sala escura e suja. Espiou lá dentro, surpresa em ver um varal pendurado a um canto, com meia dúzia de cabides de metal. Pendurado em um dos cabides, havia um cachecol
de tricô. Por baixo, uma pilha amarrotada de roupa de camuflagem. Parecia uma daquelas jaquetas de caça, geralmente à venda na caminhonete que ficava no estacionamento
em frente ao café, na estrada principal de Colle di Val d'Eisa. As mulheres tinham rido daquilo uns dias atrás, se perguntando quando é que tinha virado moda os
italianos de todas as idades vestirem-se como recém-saídos do serviço militar nos Bálcãs. Estranho, ela pensou. Bel subiu cautelosamente as escadas até a varanda,
esperando encontrar a mesma sensação de lugar havia muito desabitado.
Porém, assim que emergiu da escadaria, percebeu que penetrara em algo muito diferente. Quando se virou para a esquerda e espiou pela primeira porta, entendeu que
aquela casa não era o que parecia. O bolor úmido do andar térreo era infinitamente menor ali, e o ar estava quase tão fresco quanto lá fora. O cômodo havia, obviamente,
sido um quarto, e não fazia muito tempo. Havia um colchão no chão com uma colcha atirada casualmente por cima, da metade para os pés. Estava empoeirado, mas não
havia nada comparável à sujeira impregnada do andar de baixo. De novo, havia um varal no canto. Tinha uma dúzia de cabides vazios, mas os últimos três seguravam
camisas levemente amarrotadas. Mesmo a distância, ela podia ver que não estavam em seu melhor estado, desbotadas nas mangas e nos colarinhos.
Um par de caixotes de tomate funcionava como criados-mudos. Sobre um deles, um toco de vela num pires. Uma edição amarelada do jornal Frankfurter AUgemeine Zeitung
jazia no chão, ao lado do colchão. Bel o apanhou, notando que a data era de menos de quatro meses atrás. Teve então uma ideia de quando o lugar havia sido abandonado
pela última vez. Ela ergueu a manga de uma das camisas e a pressionou contra o nariz. Alecrim e maconha. Suave, mas inconfundível.
Voltou para a varanda e verificou os demais quartos. O padrão era semelhante. Mais três quartos contendo uma porção de restos: algumas camisetas, livros e revistas
em inglês, italiano e alemão, meia garrafa de vinho, um resto de batom, uma sandália de couro cuja sola havia se soltado da parte de cima - o tipo de coisa que alguém
deixaria para trás, caso estivesse se mudando sem a mínima ideia de quem viria em seguida. Em um dos quartos, um buquê de flores enfiado num pote de azeitonas havia
secado a ponto de se desfazer.
O último quarto no lado oeste era o maior, até agora. Suas janelas haviam sido limpas mais recentemente do que as dos outros, as persianas
tinham sido reformadas e as paredes, caiadas. No meio do quarto, no chão, havia uma tela de silk-screen. Sobre mesas de cavaletes, encostadas numa parede, havia
copos plásticos manchados com pigmentos ressecados e pincéis endurecidos de forma negligente. Manchas e borrões espalhados marcavam o piso. Bel estava intrigada,
sua curiosidade superava qualquer vestígio de nervosismo por estar sozinha naquele lugar tão peculiar. Quem quer que houvesse estado ali, devia ter partido apressadamente.
Deixar uma sólida tela de silk-screen para trás não era algo que se fizesse, numa partida planejada.
Ela retornou à varanda e dirigiu-se à ala oposta. Teve o cuidado de permanecer próximo à parede, não confiando que o piso ondulado de tijolos suportasse seu peso.
Passou pelas portas dos quartos, sentindo-se como uma intrusa no Mary Celeste*. Um silêncio que não era quebrado nem mesmo por cantos de pássaros acentuava aquela
impressão. O último cômodo antes do canto era um banheiro cuja mescla nauseante de odores ainda pairava no ar. Um rolo de mangueira estava no chão, uma das extremidades
desaparecia através de um buraco perto da janela. Eles haviam, portanto, improvisado um pouco de água corrente, embora não o suficiente para deixar o vaso sanitário
menos asqueroso. Ela franziu o nariz e retrocedeu.
Bel virou a esquina da varanda no instante em que o sol se elevava acima das árvores, banhando-a num repentino calor. Fez com que sua entrada no último quarto fosse
ainda mais assustadora. Estremecendo com o ar úmido, ela se aventurou lá dentro. As persianas estavam bem fechadas, deixando o interior escuro demais para enxergar
qualquer coisa. Mas, conforme seus olhos se ajustaram, ela obteve uma impressão do quarto. Tinha as mesmas dimensões do estúdio, mas sua função era bem diferente.
Ela o atravessou até a janela mais próxima e forçou até finalmente abrir a persiana pela metade. Era o suficiente para confirmar sua primeira impressão. Aquele havia
sido o centro da ocupação da casa rovina. Havia um velho fogão desgastado, conectado a um botijão de gás, ao lado da pia de pedra. A mesa de jantar estava arranhada
e era de madeira nua, porém sólida, e com pernas lindamente esculpidas. Havia sete cadeiras díspares ao redor, e uma oitava encontrava-se tombada, a alguns metros
de distância. Contra as
* Barco encontrado à deriva, em 1872, no estreito de Gibraltar, cuja tripulação desapareceu. (N.E.)
paredes, uma cadeira de balanço e alguns sofás. Peças avulsas de louça e talheres estavam espalhadas, como se os moradores não se tivessem dado ao trabalho de recolhê-las
de onde haviam deixado.
Quando Bel se afastou da janela, uma mesa bamba chamou sua atenção. Como estava atrás da porta, era fácil não percebê-la. Uma coleção do que pareciam ser pôsteres
se espalhava sobre ela. Fascinada, ela foi em direção à mesa. Dois passos e parou, sua respiração ofegante ecoava no ar poeirento.
Diante dela, no piso de pedra calcária, havia uma mancha irregular, de talvez noventa por quarenta e cinco centímetros. Marrom-ferrugem, bordas arredondadas e lisas,
como se houvesse escorrido e empoçado, em vez de espirrado. Era densa o bastante para obscurecer o piso de pedra sob ela. Uma porção, na extremidade mais distante,
parecia borrada e diluída, como se alguém houvesse tentado limpar, esfregando-a, para logo desistir. Bel já havia feito coberturas de histórias de violência doméstica
e de homicídio sexual o suficiente para reconhecer uma mancha de sangue relevante quando a via.
Assustada, deu um passo atrás, sentia-se tonta, o coração batia com tanta força que achou que fosse sufocá-la. Que diabos havia acontecido ali? Ela olhou em volta
de forma desordenada, percebendo outras manchas escuras marcando o piso além da mesa. Hora de sair daqui, gritava a parte sensata de sua mente. Mas o demônio da
curiosidade sussurrava em seu ouvido. Há meses não há ninguém aqui. Olhe para a poeira. Já faz tempo que se foram. Não vão voltar num futuro próximo. Seja o que
for que tenha acontecido aqui, foi motivo suficiente para que dessem o fora. Dê uma olhada nos pôsteres...
Bel rodeou a mancha, passando o mais longe possível para não tocar em nenhum móvel. De repente, ela sentiu o ar pesado. Sabia que era só imaginação, mas, ainda assim,
parecia real. De costas para o quarto e com o rosto voltado para a porta, ela foi andando de lado até a mesa e olhou para baixo, para os pôsteres que a cobriam.
O segundo choque foi quase tão forte quanto o primeiro.
Bel sabia que estava correndo rápido demais morro acima, mas não podia diminuir o passo. Podia sentir o suor da mão cobrir o papel de boa qualidade do pôster enrolado.
Por fim, a trilha emergiu do meio das árvores e ficou menos traiçoeira, ao aproximar-se de sua villa de férias. A estrada descia
quase imperceptivelmente, mas a gravidade era suficiente para dar a suas pernas cansadas um impulso extra, e ela ainda ia rápido ao virar a curva da casa e encontrar
Lisa Martyn deitada à sombra, no terraço, em uma espreguiçadeira e com a edição de sexta-feira do Guardian como companhia. Bel ficou aliviada. Precisava falar com
alguém e, de todas as suas companheiras, era menos provável que Lisa transformasse suas revelações em fofocas da hora do jantar. Lisa, como advogada de direitos
humanos, cuja compaixão e feminismo pareciam tão inevitáveis quanto o ato de respirar, entenderia o potencial da descoberta que Bel pensava ter feito. Assim como
seu direito de lidar com aquilo do jeito que achasse melhor.
Lisa afastou lentamente os olhos do jornal, perturbada pelo arfar incomum da respiração de Bel.
- Meu Deus - ela disse. - Você parece a ponto de infartar.
Bel colocou o pôster numa cadeira e se curvou, as mãos apoiadas nos joelhos, puxando o ar para dentro dos pulmões, arrependida dos cigarros surrupiados em segredo.
- Ficarei... bem... num minuto.
Lisa se levantou desajeitadamente da espreguiçadeira e correu até a cozinha, voltando com uma toalha e uma garrafa de água. Bel se empertigou, pegou a água e derramou
metade sobre a cabeça, fungando ao inalar um pouco acidentalmente. Então, esfregou a cabeça com a toalha e se deixou cair numa cadeira. Tomou um gole comprido de
água enquanto Lisa voltava para a espreguiçadeira.
- O que aconteceu? - Lisa perguntou. - Você é a corredora mais digna que eu conheço. Nunca vi uma Bel sem fôlego na vida. O que foi que a deixou neste estado?
- Encontrei uma coisa - Bel disse. Seu peito ainda lutava, mas ela conseguiu emitir alguns sopros de fala. - Pelo menos, acho que encontrei. E se estiver
certa, será a história da minha carreira. - Ela estendeu a mão para apanhar o pôster. - Espero que você possa me dizer se perdi completamente a cabeça.
Intrigada, Lisa jogou o jornal no chão e se endireitou.
- Então, o que é... essa coisa que pode ser alguma coisa?
Bel desenrolou o papel grosso, prendendo-o nos cantos com um moedor de pimenta, uma caneca de café e dois cinzeiros sujos. A imagem na folha
A3 era impressionante. Havia sido desenhada para que parecesse uma simples xilogravura em preto e branco, no estilo impressionista alemão. No alto da página, um
homem barbado, com um topete de cabelo duro, se inclinava por cima de uma tela, e suas mãos seguravam cruzes de madeira, das quais pendiam três marionetes. Mas não
eram marionetes comuns. Uma era um esqueleto, a segunda era um bode, e a terceira, uma representação da Morte, com o manto encapuzado e a foice. Havia algo indiscutivelmente
sinistro na imagem. Abaixo, contornada por uma borda negra funesta, havia uma área em branco, de aproximadamente oito centímetros de profundidade. Era o tipo de
espaço onde se poderia colocar um aviso anunciando uma apresentação teatral.
- Puta que me pariu! - disse Lisa. Finalmente, ela ergueu os olhos. - Catriona Maclennan Grant - ela disse. Havia espanto em sua voz. - Bel... onde diabos
você encontrou isto?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Bel sorriu.
- Antes de responder a isso, quero deixar algumas coisas claras.
Susan Charleson revirou os olhos.
- Você não pode estar achando que é a primeira pessoa que passa por esta porta com uma cópia falsificada do pôster de resgate. Vou lhe dizer o mesmo que disse
a todos os outros. A recompensa está condicionada à localização do neto de Sir Broderick vivo, ou à demonstração, de forma conclusiva, de que ele esteja morto. Sem
falar em levar os assassinos de Catriona Maclennan Grant à Justiça.
- Você não está me entendendo - Bel disse, com um sorriso provocador, mas sem ceder um só milímetro. - Srta. Charleson, não estou nem um pouco interessada
no dinheiro de Sir Broderick. Mas tenho uma condição.
- Você está cometendo um erro. - A voz de Susan Charleson havia adquirido um toque ácido. - Este assunto é um caso policial. Você não está em posição de impor
condições.
Bel colocou a mão firmemente sobre o pôster.
- Posso sair agora mesmo por aquela porta com este pôster e esquecer que o vi. Não teria qualquer dificuldade em mentir para a polícia. Sou uma
jornalista, afinal. - Ela estava começando a se divertir muito mais do que havia previsto. - É a sua palavra contra a minha, Srta. Charleson. E eu sei que você não
quer que eu vá embora. Uma das habilidades que um jornalista bem-sucedido deve aprender é como ler as pessoas. E vi a forma como você reagiu ao olhar para isto.
Você sabe que é verdadeiro, e não uma cópia falsificada.
- Você tem uma postura bem agressiva - Susan Charleson parecia quase indiferente.
- Prefiro dizer que sou assertiva. Não vim aqui para discutir com você, Srta. Charleson. Quero ajudar. Mas não de graça. Pela minha experiência, os ricos
não dão valor a nada daquilo por que não tenham de pagar.
- Você disse que não estava interessada em dinheiro.
- É verdade. Não estou. No entanto, estou interessada em reputação. E a minha reputação está construída sobre o fato de não ser, simplesmente, a primeira
a aparecer com a história, mas em obter a história por trás da história. Acho que existem áreas em que posso ajudar a desvendar isso com mais eficácia do que os
canais oficiais. Tenho certeza de que você irá concordar, quando eu explicar de onde veio este pôster. Tudo o que peço é que você não me impeça de investigar o caso.
E, além disso, que você e seu chefe cooperem compartilhando informações sobre o que estava acontecendo na época em que Catriona foi sequestrada.
- Esse é um pedido bastante significativo. Sir Broderick não é um homem que aceite abrir mão facilmente de sua privacidade. Você há de convir que não tenho
autoridade para lhe garantir o que está pedindo.
Bel ergueu um ombro delicadamente.
- Então, podemos nos encontrar novamente quando você tiver uma resposta. - Ela deslizou o pôster pela mesa, abrindo a pasta para guardá-lo novamente.
Susan Charleson se levantou.
- Se você puder me dar alguns minutos, pode ser que eu consiga lhe dar uma resposta agora.
Bel soube, neste ponto, que havia ganhado. Susan Charleson queria demais aquilo. Ela convenceria o chefe a aceitar o acordo. Fazia anos que Bel não se sentia tão
excitada. Não significava simplesmente uma enxurrada de notícias e colunas jornalísticas, embora não houvesse um só jornal no
mundo que não fosse ficar interessado. Principalmente depois do caso Madeleine McCain. Com acesso ao misterioso Brodie Grant, mais a chance de descobrir o paradeiro
de seu neto, aquilo era um best-seller em potencial. O A Sangue Frio do novo milênio. Seria sua porta de entrada para o mundo do dinheiro fácil.
Bel sorriu. Talvez ela pudesse usar os ganhos na compra da casa ravina e assim completar o círculo. Era difícil imaginar algo mais perfeito.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Já fazia alguns anos desde a última vez que Karen tomara a estrada de mão única que conduzia a Newton of Wemyss. Mas era óbvio que o vilarejo tinha passado pelas
mesmas transformações que as vilas vizinhas, que margeavam a estrada principal. Aqueles que trabalhavam nas cidades próximas tinham atacado avidamente as quatro
vilas de Wemyss, enxergando possíveis casas rústicas no que um dia foram tristes casebres de mineiros. Cabanas de um quarto tinham sido demolidas para que se construíssem
amplas casas de campo, quintais transformados por estufas de plantas que enchiam de luz as cozinhas obscuras. Vilarejos que tinham fenecido e morrido após o desastre
na mina Michael, em 1967, e devido aos fechamentos que se seguiram à greve de 1984, haviam renascido como cidades-dormitório, cuja ideia de comunidade se restringia
às noites de jogos no pub local. Nas lojinhas da vila se podia comprar uma vela perfumada, mas não um litro de leite. A única forma de saber que já houvera uma comunidade
mineira ali era através de uma maquete do sistema de elevador do poço da mina, que se erguia sobre o ponto em que a ferrovia particular a vapor havia, no passado,
cruzado com a estrada principal, carregada com vagões abertos de carvão destinados ao fim da linha, em Thomton Junction. Agora, as casas caiadas dos mineiros pareciam
uma opção deliberada do arquiteto, como uma vila típica deveria parecer. O passado tinha sido superado por um presente de design.
Desde sua última visita, Newton of Wemyss havia melhorado muito. O modesto memorial de guerra ficava num triângulo de grama aparada no centro. Floreiros de madeira
o circulavam a intervalos perfeitos. Imaculadas casas de campo térreas bordejavam o parque da cidade, e a única exceção à baixa linha de construção era o imponente
volume do pub local, o Laird
o' Wemyss. Antigamente, havia sido propriedade coletiva da comunidade local sob o sistema Gothenburg*, mas os tempos difíceis nos anos oitenta o haviam obrigado
a fechar as portas. Agora, era um restaurante, e sua "cozinha de fusão escocesa" era capaz de atrair à cidade visitantes de lugares tão remotos quanto Dundee e Edimburgo,
e seus preços se elevavam bem acima do orçamento. Ela se perguntou quanto Mick Prentice teria de se deslocar para uma simples cerveja, se houvesse permanecido em
Newton.
Consultou as orientações que havia imprimido do site Mapquest e indicou uma estrada no ápice do triângulo a seu motorista, o detetive Jason "Novo em Folha" Murray.
- Você tem que descer esta rua aqui - ela disse. - Em direção ao mar. Onde ficava a mina.
Logo deixaram o centro da vila para trás. Arbustos desgrenhados bordejavam um exuberante campo de trigo verde à direita.
- Toda essa chuva, está fazendo tudo crescer de forma desenfreada - disse o Novo em Folha. Ele levara os 25 minutos do escritório até ali para produzir aquele
comentário.
Karen não estava interessada em conversar sobre o clima. O que havia para dizer? Tinha chovido o maldito verão inteiro, até agora. Só porque não estava chovendo
naquele exato instante, não significava que não choveria no fim do dia. Ela olhou à sua esquerda, onde os prédios da mina de carvão haviam estado. Tinha uma vaga
lembrança de haver escritórios, banheiros e uma cantina. Agora, tudo se reduzia ao alicerce de concreto, com o mato abrindo caminho entre as rachaduras irregulares
para reivindicar o terreno. Mais adiante, havia uma série de casebres intactos dos mineiros; oito casas deterioradas, no meio do nada devido à demolição dos prédios
que um dia deram razão à sua existência. Além delas havia um denso grupo de sicômoros e faias, um compacto quebra-vento entre as casas e a borda do penhasco, que
descia nove metros até a faixa costeira.
- Era ali que ficava a Lady Charlotte - ela disse.
- Hã? - o Novo em Folha pareceu espantado.
- A mina, Jason.
- Ah. Certo. Claro. Não é do meu tempo. - Ele espiou pelo para-brisa, fazendo-a se perguntar, com certa irritação, se ele precisaria de óculos. - Qual é a
casa, chefe?
* Aplicava-se ao controle do consumo e da comercialização de bebidas alcoólicas. (N.E.)
Ela apontou para a penúltima. O Novo em Folha desviou o carro dos buracos com tanto cuidado quanto se fosse seu e parou no final da rua de Jenny Prentice.
Apesar do telefonema de Karen marcando o encontro, Jenny não teve pressa em abrir a porta, o que deu a eles tempo suficiente para examinar as lajotas de concreto
rachadas e a deprimente entrada de cascalhos cheia de mato.
- Se esta casa fosse minha... - começou o Novo em Folha e, então, abandonou o pensamento, como se fosse algo grande demais para considerar.
A mulher que atendeu à porta tinha o ar de alguém que passava seus dias deitada para que a vida pudesse pisoteá-la mais facilmente. Seu cabelo escorrido e grisalho
estava preso atrás com descuido, mechas escapando dos dois lados. A pele era enrugada, com veias irregulares mapeando as bochechas. Usava um jaleco de náilon que
vinha até o meio das coxas, por cima de uma calça preta barata cujo tecido estava repleto de bolinhas. O jaleco era de um tom de lavanda impossível de se encontrar
na natureza. Os pais de Karen ainda viviam em uma rua habitada por ex-mineiros e suas famílias, na ultrapassada cidade de Methil, mas até o mais desequilibrado de
seus vizinhos teria tido um pouco mais de trabalho com a aparência, ao saber que receberia uma visita oficial. Karen nem tentou não julgar Jenny Prentice pela aparência.
- Bom dia, Sra. Prentice - ela disse energicamente. - Sou a inspetora Pirie. Conversamos pelo telefone. Este é o detetive Murray.
Jenny balançou a cabeça e fungou.
- É melhor vocês entrarem.
A sala era apertada, mas limpa. Os móveis, assim como o carpete, estavam fora de moda, mas nem um pouco surrados. Era uma sala para ocasiões especiais, pensou Karen,
em uma vida na qual não havia muitas.
Jenny acenou para que eles se sentassem no sofá e se postou na beirada da poltrona, no lado oposto. Estava claro que não lhes ofereceria nada para beber.
- Então, vocês estão aqui por causa da nossa Misha. Pensei que tivessem mais o que fazer, com todas essas coisas horríveis que sempre leio nos jornais.
- Um marido e um pai desaparecido é algo bastante horrível, a senhora não acha? - disse Karen.
Os lábios de Jenny se apertaram, como se ela sentisse a queimação de uma azia.
- Depende do homem, inspetora. O tipo de cara com quem a senhora costuma se deparar no seu trabalho... não creio que muitas esposas e filhos se incomodem,
quando eles são levados embora.
- A senhora ficaria surpresa. A maioria das famílias fica inconsolável. E pelo menos elas sabem onde o homem delas está. Não precisam viver com a incerteza.
- Não pensei que estivesse vivendo com a incerteza. Achava que sabia muito bem onde Mick estava, até que a nossa Misha começasse a fuçar por aí tentando encontrá-lo.
Karen assentiu.
- A senhora achava que ele estivesse em Nottingham.
- Isso. Achava que ele tivesse ido furar greve. Para ser sincera, não fiquei muito chateada de vê-lo pelas costas. Mas fiquei furiosa por ele ter colocado
aquele rótulo na gente. Preferiria que ele estivesse morto a que fosse um fura-greve, se é o que você quer saber. - Ela apontou para Karen.
- Você fala com sotaque da região. Deve saber como é ficar marcada desse jeito.
Karen assentiu.
- Pior então é saber agora que parece que ele não furou greve nenhuma.
Jenny desviou o olhar.
- Não sei de nada disso. Tudo que sei é que ele não foi para Nottingham naquela noite com aquele grupo de fura-greves.
- Bem, estamos aqui para desvendar o que realmente aconteceu. Meu colega fará algumas anotações, apenas para garantir que eu me lembre direitinho de tudo
o que a senhora me disser. - O Novo em Folha, apressadamente, pegou o caderno, folheando-o com nervosismo. Talvez Phil estivesse certo a respeito das deficiências
dele, pensou Karen. - Agora, preciso do nome completo dele e sua data de nascimento.
- Michael James Prentice. Nascido em 20 de janeiro de 1955.
- E vocês todos moravam aqui na época? A senhora, Michael e Misha?
- Isso. Morei aqui durante toda a minha vida de casada. Nunca tive escolha quanto a isso.
- A senhora tem uma foto de Mick que possa nos dar? Sei que já faz muito tempo, mas poderia ser útil.
- Vocês podem colocar no computador e envelhecer, não podem? - Jenny foi até um aparador e abriu uma gaveta.
- Às vezes, é possível. - Mas caro demais, a não ser que houvesse um motivo mais urgente que a leucemia do seu neto.
Jenny pegou um álbum de couro preto e o trouxe até a poltrona. Quando o abriu, a capa rangeu. Mesmo de cabeça para baixo e do outro lado da sala, Karen podia ver
que era um álbum de casamento. Jenny rapidamente passou pelas fotos formais de casamento até chegar a um envelope na parte de trás, repleto de fotografias avulsas.
Pegou um maço de fotos e as examinou. Parou em algumas e, então, finalmente optou por uma. Entregou a Karen uma fotografia retangular. Mostrava a cabeça e os ombros
de dois jovens, sorrindo para a câmera, o topo dos copos de cerveja aparecendo na imagem ao brindarem o fotógrafo.
- Este é o Mick, à esquerda - disse Jenny. - O bonitão.
Ela não estava mentindo. Mick Prentice tinha cabelo louro-escuro despenteado, cortado mais ou menos como o mullet que George Michael ostentara em sua fase com o
Wham. Mick tinha olhos azuis, cílios ridiculamente longos e um sorriso perigoso. Uma tatuagem de carvão, em forma de foice, atravessava sua sobrancelha direita,
impedindo-o de parecer bonito demais. Karen podia ver exatamente por que Jenny Prentice havia se apaixonado pelo marido.
- Obrigada - ela disse. - Quem é o outro cara?
Um tufo áspero de cabelo castanho, rosto comprido e ossudo, algumas cicatrizes de acne esburacando as bochechas fundas, olhos vivos e um sorriso triangular, como
o do Coringa dos quadrinhos do Batman. Não era bonito como seu companheiro, mas, mesmo assim, havia algo de sedutor nele.
- Seu melhor amigo. Andy Kerr.
O melhor amigo que se matou, segundo Misha.
- Misha me contou que seu marido desapareceu na sexta-feira, 14 de dezembro de 1984. É essa sua lembrança?
- Isso mesmo. Ele saiu de manhã com suas malditas tintas e disse que voltaria para o jantar. Foi a última vez que o vi.
- Tintas? Ele estava fazendo trabalhos extras?
Jenny emitiu um som de desdém.
- Até parece. Bem que precisávamos do dinheiro. Que nada, Mick pintava aquarelas. Pode acreditar? Dá para imaginar uma coisa mais inútil durante a greve de
1984 do que um mineiro pintando aquarelas?
- Ele não poderia vendê-las? - intrometeu-se o Novo em Folha, inclinando-se para a frente e parecendo perspicaz.
- Para quem? Todo mundo aqui estava duro e não havia dinheiro para que ele se arriscasse a tentar ir vender em outro lugar. - Jenny indicou a parede atrás
deles. - Ele teria tido sorte se conseguisse algumas libras por peça.
Karen se virou e olhou para as três pinturas pobremente emolduradas na parede. West Wemyss, Macduff Castle e a Lady's Rock. A seus olhos leigos, as pinturas pareciam
vívidas e expressivas. Ela as teria levado para casa, embora não soubesse quanto estaria disposta a pagar pelo privilégio, nos idos de 1984.
- Como foi que ele começou com isso? - Karen perguntou, virando-se para Jenny.
- Ele fez um curso no Serviço Social dos Mineiros, no ano em que Misha nasceu. A professora disse que ele tinha jeito para aquilo. Acho que ela dizia a mesma
coisa para qualquer um que fosse bonitinho.
- Mas ele deu continuidade?
- Permitia a ele sair de casa. Ficar longe das fraldas sujas e do barulho.
A amargura parecia emanar de Jenny Prentice em ondas. Era curioso, embora animador, que parecesse não ter contaminado a filha. Talvez aquilo tivesse alguma coisa
a ver com o padrasto de quem ela havia falado. Karen lembrou a si mesma de perguntar sobre o outro homem da vida de Jenny, que também parecia fazer-se notar pela
ausência.
- Ele pintou muito, durante a greve?
- Todo dia ele saía com sua sacola e o cavalete. Se estivesse chovendo, ele descia às cavernas com seus companheiros da Sociedade de Preservação.
- A senhora se refere às cavernas de Wemyss?
Karen conhecia as cavernas que retrocediam a partir da costa, afundando-se nos penhascos de pedra calcária entre East Wemyss e Buckhaven. Ela havia brincado ali
algumas vezes, quando criança, inconsciente de sua
importância histórica como um dos principais sítios pictos. As crianças locais as haviam tratado como áreas de diversão, uma das razões pelas quais se havia estabelecido
a Sociedade de Preservação. Agora, havia grades fechando as seções mais profundas e perigosas da rede de salões das cavernas, e historiadores e arqueólogos amadores
as haviam preservado como parque de diversões para adultos.
- Mick estava envolvido com as cavernas?
- Mick estava envolvido em tudo. Ele jogava futebol, pintava seus quadros, fuçava nas cavernas, estava metido até os dentes no sindicato. Tudo e qualquer
coisa era mais importante do que passar tempo com sua família.
- Jenny cruzou uma perna por cima da outra e os braços sobre o peito. - Ele dizia que isso o mantinha mentalmente são durante a greve. Acho que simplesmente
o mantinha longe de suas responsabilidades.
Karen sabia que aquele era um solo fértil para suas investigações, mas podia se dar ao luxo de deixar para mais tarde. A raiva reprimida de Jenny permanecia após
vinte e dois anos. Não iria a lugar algum. Havia algo muito mais imediato que a interessava.
- Então, durante a greve, onde Mick conseguia dinheiro para as tintas? Não conheço muito de arte, porém sei que papel e tintas adequados custam uma grana.
Ela não podia imaginar um mineiro em greve gastando com materiais artísticos quando não havia dinheiro para comida nem aquecimento.
- Não quero deixar ninguém em apuros - ela disse.
Sei.
- Foi há vinte e dois anos - Karen disse sem rodeios. - Não estou interessada em contrabando em pequena escala da época da greve dos mineiros.
- Um dos professores de arte da escola secundária vivia lá em Coaltown. Era um carinha bem esquisito. Uma perna mais curta que a outra e corcunda. Mick costumava
limpar o jardim para ele. O cara o pagava com tintas. - Ela deu uma fungada. - Perguntei se ele não podia pagar com dinheiro ou comida. Mas parece que o cara estava
dando todo o seu salário para a ex-mulher. As tintas ele podia surrupiar da escola. - Ela cruzou novamente os braços. - De qualquer jeito, ele já morreu.
Karen tentou afastar a sua aversão pela mulher, tão diferente da filha que a havia seduzido a entrar no caso.
- Então, como estavam as coisas entre vocês antes de Mick desaparecer?
- Eu culpo a greve. Tudo bem, nós tínhamos nossos altos e baixos. Mas foi a greve que colocou uma barreira entre nós. E não sou a única mulher nesta parte
do mundo que diz isso.
Karen sabia que aquilo era verdade. Naquela época, as terríveis privações da greve haviam deixado suas marcas em praticamente todo casal que ela conhecia. A violência
doméstica havia irrompido nos lugares mais improváveis; os índices de suicídio aumentaram; casamentos haviam se despedaçado diante da pobreza implacável. Ela não
compreendera isso na época, mas agora sim.
- Pode ser. Mas cada um tem uma história diferente. Eu gostaria de ouvir a sua.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
- Volto para o jantar - disse Mick Prentice, pendurando a grande bolsa de pano atravessada no corpo e pegando o pacote estreito com o cavalete dobrado.
- Jantar? Que jantar? Não tem nada nesta casa para comer. Você precisa sair para arranjar comida para sua família, não para pintar o maldito mar pela enésima
vez -Jenny gritou, tentando obrigá-lo a parar a caminho da porta.
Ele se virou, o rosto magro contorcido pela vergonha e pela dor.
- Você acha que não sei disso? Você acha que somos os únicos? Você acha que se eu tivesse alguma ideia de como melhorar as coisas, eu não estaria fazendo?
Ninguém tem porra nenhuma de comida. Ninguém tem porra nenhuma de dinheiro. - Sua voz entalou na garganta como um soluço. Ele fechou os olhos e respirou fundo. -
Ontem à noite, lá no Serviço Social, Sam Thomson disse que falaram de uma entrega de comida, vinda da Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas. Se você
for até lá, parece que vai chegar às duas horas. - Estava tão frio na cozinha que suas palavras formavam uma nuvem diante dos lábios.
- Mais esmolas. Não consigo me lembrar da última vez que, de fato, escolhi o que iria preparar para o jantar. - Jenny, repentinamente, se
sentou em uma das cadeiras da cozinha. Ergueu os olhos para ele. - Será que algum dia vamos superar isso?
- Só temos que aguentar mais um pouco. Já chegamos até aqui. Podemos vencer. - Ele parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a ela.
- Eles estão voltando a trabalhar, Mick. O tempo todo, estão voltando. Deu no noticiário na outra noite. Mais de um quarto das minas voltou a funcionar. Seja
o que for que digam Arthur Scargill e o resto da diretoria do sindicato, não há forma de ganharmos. É só uma questão de quanto aquela vaca da Thatcher nos fará perder.
Ele balançou a cabeça com veemência.
- Não diga isso, Jenny. Só há alguns focos lá no sul em que os mineiros cederam. Aqui no norte, estamos firmes como rochas. Em Yorkshire também. E em Gales
do Sul. E nós somos quem realmente importa.
Suas palavras soaram vazias e não havia convicção em seu rosto. Todos eles, pensou ela, estavam derrotados. Apenas não sabiam quando cair ao chão.
- Se você diz... - ela murmurou, virando-se.
Esperou até ouvir a porta se fechar atrás dele e, então, levantou-se lentamente e vestiu o casaco. Apanhou uma bolsa de plástico resistente e deixou o frio congelante
da cozinha para sair para o frio úmido da manhã. Essa era sua rotina, atualmente. Levantar-se e levar Misha à escola. No portão da escola, a pequena receberia uma
maçã ou uma laranja, um saco de batatas fritas e um biscoito de chocolate da associação Amigos de Lady Charlotte, um grupo desorganizado de estudantes e funcionários
públicos de Kirkcaldy, que garantiam que nenhuma criança começasse o dia de estômago vazio. Pelo menos os dias úteis.
E então, voltava para casa. Eles já haviam desistido de tomar leite junto com o chá, quando tinham chá. Em algumas manhãs, uma xícara de água quente era tudo o que
Mick e Jenny tinham para começar o dia. Aquilo não havia acontecido com frequência, mas uma só vez já era suficiente para lembrar como era fácil cair no abismo.
Depois de uma bebida quente, Jenny geralmente ia com a sacola até o bosque e tentava catar lenha suficiente para garantir algumas horas de calor à noite. Entre os
membros executivos do sindicato, sempre os chamando de
"camaradas", e a coleta de lenha, ela se sentia uma camponesa da Sibéria. Pelo menos eles tinham a sorte de viver perto de uma fonte de combustível. Ela sabia que
era muito mais difícil para outras pessoas. Tiveram a sorte de manter a lareira, graças ao benefício do carvão barato para os mineiros.
Ela cumpria aquela tarefa de forma mecânica, sem prestar muita atenção aos arredores, relembrando a última discussão entre ela e Mick. Às vezes, parecia que era
só a dificuldade que os mantinha unidos, só a necessidade de calor que os mantinha na mesma cama. A greve tinha aproximado alguns casais, mas muitos outros haviam
se separado como uma tora de madeira sob o fio do machado, após os primeiros meses, quando suas reservas de dinheiro se esgotaram.
Não havia sido tão ruim no começo. Desde a última onda de greves nos anos setenta, os mineiros tinham ganhado bastante dinheiro. Eles eram os reis do movimento sindicalista:
bem remunerados, organizados e confiantes. Afinal, haviam derrubado o governo de Ted Heath, na época. Eram intocáveis. E tinham dinheiro para provar.
Alguns haviam gastado até o último centavo: férias no exterior em que podiam expor ao sol a pele branca como leite e as tatuagens de carvão, carros exuberantes com
rádios caros, casas novas que pareciam ótimas quando eles se mudaram, mas que começaram a se deteriorar quase que imediatamente. Mas a maioria deles, cautelosa devido
à história passada, havia guardado um pouco do dinheiro. O bastante para cobrir o aluguel ou a hipoteca, o bastante para alimentar a família e pagar as contas de
combustíveis durante alguns meses. Foi a velocidade com que aquelas parcas economias desapareceram que os deixou aterrorizados. No início, o sindicato pagara salários
decentes aos homens que se amontoassem em carros, vans e microônibus para se unir a piquetes móveis, nas minas em funcionamento, usinas e plantas de coqueificação.
Mas a polícia tornara-se cada vez mais opressora para garantir que os grevistas itinerantes nunca chegassem ao destino, e não havia muito entusiasmo em pagar homens
para não atingir os objetivos. Além disso, nesses dias, os líderes sindicais estavam ocupados demais tentando esconder seus milhões dos confiscadores do governo
para se importar em desperdiçar dinheiro numa briga que deviam saber que estava fadada ao fracasso. Portanto, até mesmo aquela pequena fonte de renda havia se esgotado,
e a única coisa que as comunidades mineiras tinham para engolir era seu orgulho.
Jenny já havia engolido muito do seu durante os últimos nove meses. Havia começado logo de cara, quando ela ouvira que os mineiros escoceses iriam apoiar a região
carbonífera de Yorkshire na convocação de uma greve nacional, não da boca de Mick, mas de Arthur Scargill, presidente do Sindicato Nacional dos Mineradores. Não
pessoalmente, claro. Apenas sua conversa mole no noticiário da TV. Em vez de voltar direto da reunião no Serviço Social dos Mineiros para lhe contar, Mick havia
ficado com Andy e os outros colegas do sindicato, bebendo no bar como se dinheiro não fosse problema. Comemorando com a forma consagrada no grito de batalha do Rei
Arthur: Mineiros unidos jamais serão vencidos.
Desde o começo, as esposas sabiam bem que tudo aquilo era inútil. Uma greve de carvão deve ser feita no começo do inverno, quando a procura, por parte das usinas
elétricas, está no auge. Não na primavera, quando todos começam a desligar a calefação. E quando se parte para uma intensa ação industrial contra uma vaca como Margaret
Thatcher, deve-se proteger a retaguarda. Devem-se cumprir as leis trabalhistas. Devem-se cumprir suas próprias regras. Estipula-se uma eleição nacional. Não se deve
confiar numa interpretação dúbia de uma resolução aprovada três anos antes para um propósito distinto. Ah, sim, as esposas souberam que não daria em nada. Mas haviam
ficado de boca fechada e, pela primeira vez na vida, haviam formado sua própria organização para apoiar seus homens. Lealdade - era isso que contava nas vilas e
nas comunidades mineradoras.
E, portanto, Mick e Jenny ainda estavam juntos. Jenny às vezes se perguntava se a única razão pela qual Mick ainda estava com ela e Misha era porque não tinha aonde
ir. Pais falecidos, nenhum irmão ou irmã, não havia nenhum refúgio óbvio para ele. Ela havia lhe perguntado, uma vez, e ele ficara imóvel como uma estátua, por um
momento. Então, caçoara dela, negando que quisesse ir embora, lembrando-a de que Andy sempre o acolheria em seu sítio, se ele quisesse se afastar. Portanto, não
havia motivo para que ela imaginasse que aquela sexta-feira seria diferente de qualquer outra.
Quinta-feira; 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Então, aquela não foi a primeira vez que ele saiu com suas tintas para passar o dia fora? - perguntou Karen. O que quer que estivesse passando
pela cabeça de Jenny Prentice, claramente era muito mais que os fatos básicos que ela estava entregando.
- Quatro ou cinco vezes por semana.
- E a senhora? O que fazia no resto do dia?
- Ia até o bosque buscar gravetos, então voltava e assistia ao noticiário na TV. Foi um dia bastante especial, aquela sexta-feira. O Rei Arthur estava no
tribunal por obstrução da polícia, na Batalha de Orgreave. O Band Aid* chegou ao topo da parada de sucesso. Te digo uma coisa, eu poderia cuspir na cara deles. Todo
aquele esforço para arrecadar dinheiro para crianças a milhares de quilômetros, enquanto havia crianças famintas bem na porta deles. Onde estavam Bono e Bob Geldof,
quando nossos filhos despertaram na manhã de Natal e não havia nada em suas meias?
- Deve ter sido duro de encarar - Karen comentou.
- Foi como um tapa na cara. Não havia nenhum glamour em ajudar os mineiros, havia? - Um sorrisinho amargo iluminou seu rosto. - Mas poderia ter sido pior.
Poderíamos ter sido obrigados a aturar aquele merda hipócrita do Sting. Sem falar naquele maldito alaúde dele.
- Isso é verdade. - Karen estava se divertindo, dava para ver. Rir da própria desgraça era uma constante naquelas comunidades mineradoras. - E então, o que
a senhora fez depois do noticiário?
- Desci até o Serviço Social. Mick tinha falado alguma coisa sobre uma distribuição de comida. Entrei na fila e voltei para casa com um pacote de macarrão,
uma lata de tomates e duas cebolas. E um pacote de sopa desidratada. Lembro que fiquei bastante satisfeita. Peguei Misha na escola e achei que decorar a casa para
o Natal poderia nos animar um pouco, então, foi isso que fizemos.
- Quando a senhora percebeu que já era tarde para que Mick voltasse para casa?
Jenny fez uma pausa, a mão remexendo num botão do jaleco.
- Naquela época do ano, fica escuro cedo. Geralmente, ele voltaria não muito depois de mim e Misha. Mas como ficamos montando os enfeites de Natal, não percebi
o tempo passar.
Ela estava mentindo, Karen pensou. Mas por quê? E sobre o quê?
* Grupo criado por Bob Geldof, em 1984, que reuniu os mais conhecidos artistas do Reino Unido com a finalidade de arrecadar fundos para combater a fome na
Etiópia. A música-tema era "Do they know it's Christmas" (N.T.)
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Jenny tinha sido uma das primeiras na fila do Serviço Social dos Mineradores e havia voltado rapidamente para casa com sua lamentável comida, determinada a cozinhar
uma panela de sopa para que tivessem alguma coisa saborosa para o jantar. Ela contornou o prédio dos banheiros da mina, notando que todas as casas dos vizinhos estavam
no escuro. Naqueles dias, ninguém deixava uma luz acesa acolhedora quando saía. Cada centavo contava, quando chegavam as contas de combustível.
Quando ela chegou ao portão de sua casa, quase morreu de susto. Uma figura indefinida saiu da escuridão, parecendo agigantar-se na sua imaginação. Ela emitiu um
ruído que era em parte ofego, em parte gemido.
- Jenny, Jenny, acalme-se. Sou eu. Tom. Tom Campbell. Me desculpe, não quis te assustar. - A figura tomou forma, e ela reconheceu o homenzarrão, próximo à
porta da frente.
- Cristo, Tom, você quase me matou de susto - ela reclamou, passando por ele e abrindo a porta. Ciente do frio assombroso na casa, ela seguiu até a cozinha.
Sem hesitação, encheu a panela de água e a colocou no fogão, o anel de gás emitia um pouco de calor. Então, ela se virou para encará-lo na penumbra da luz da tarde.
- Como você está?
Tom Campbell ergueu os grandes ombros e deu um sorriso desanimado.
- Mais ou menos - ele disse. - É irônico. A única vez na vida em que realmente preciso dos meus amigos e acontece esta greve.
- Pelo menos você tem a mim e a Mick - Jenny disse, indicando-lhe uma cadeira.
- Bem, tenho a você, de qualquer jeito. Não acho que esteja na lista de cartões de Natal do Mick, supondo que alguém envie cartões este ano. Não depois de
outubro. Ele não falou mais comigo, desde então.
- Isso passa - ela disse, sem um pingo de convicção.
Mick sempre tivera certas reservas no que se referia à extensão da amizade escolar entre Jenny e a esposa de Tom, Moira. As mulheres eram amigas desde sempre, e
Moira fora dama de honra no casamento de Jenny e Mick. Quando chegou a vez de retribuir o favor, Jenny estava grávida de Misha. Mick havia ressaltado que seu aumento
de peso era a desculpa perfeita para recusar o convite de Moira, já que o vestido de dama de honra
tinha de ser comprado com antecedência. Não era uma sugestão, e sim uma ordem. Isso porque embora Tom Campbell fosse, sem dúvida alguma, um homem decente, bem-apessoado
e honesto, ele não era mineiro. Verdade, ele trabalhava na Lady Charlotte. Descia até a mina no subsolo, naquela gaiola de revirar o estômago. Às vezes, até mesmo
sujava as mãos. Mas não era mineiro. Era um auxiliar de minas. Membro de um sindicato diferente. Um homem da administração, que estava ali para verificar o cumprimento
das regras de saúde e segurança, e que os rapazes fizessem o que deviam fazer. Os mineiros tinham um termo para se referir à parte mais fácil de qualquer tarefa:
"a parte do auxiliar". Parecia bastante inocente, mas num ambiente em que cada membro do grupo sabia que sua vida dependia dos colegas, aquilo expressava um desdém
enorme. E, portanto, Mick Prentice sempre tivera certa reserva no que se referia à sua relação com Tom Campbell.
Ele havia se ofendido com os convites para jantar em sua casa afastada em West Wemyss. Desconfiava dos convites de Tom para que fosse jogar futebol com ele. Tinha
até mesmo se ressentido das horas que Jenny passara ao lado da cama de Moira, durante sua morte pouco digna, porém rápida, de câncer, alguns anos atrás. E, quando
o sindicato de Tom havia hesitado e ficado indeciso com relação a se unir à greve, alguns meses antes, Mick se enfurecera como uma criança mimada, quando eles finalmente
se colocaram do lado dos patrões.
Jenny desconfiava que parte do motivo de sua raiva era a bondade que Tom havia lhes demonstrado desde que a greve começara a afetá-los. Ele criara o hábito de passar
por sua casa com presentinhos: uma sacola de maçãs, um saco de batatas, um brinquedo de pelúcia para Misha. Sempre vinham acompanhados de desculpas plausíveis: a
árvore do vizinho estava carregada, vieram mais batatas na sua porção do que ele iria precisar, um prêmio ganho na rifa do clube de boliche. Mick sempre reclamava
depois.
- Idiota condescendente - ele dizia.
- Ele está tentando ajudar sem nos envergonhar - Jenny respondia.
Tampouco era ruim o fato de que a presença de Tom sempre a fazia se lembrar de tempos mais felizes. De alguma forma, quando ele estava ali, ela tinha novamente a
sensação de novas possibilidades. Ela via a si mesma refletida em seus olhos, como se fosse uma mulher jovem, uma mulher que tinha ambições de uma vida diferente.
Então, embora soubesse que irritaria Mick, Jenny ficava feliz quando Tom se sentava em sua cozinha e conversava com ela.
Ele tirou um pacote meio mole, mas pesado, do bolso.
- Você aproveitaria uns gramas extras de toucinho? - ele disse, a sobrancelha se franzindo de ansiedade. - Minha cunhada trouxe da fazenda de sua família
na Irlanda. Mas é defumado, sabe, e eu não consigo comer toucinho defumado. Tenho aversão. Então pensei que, melhor do que jogar fora... - Ele o entregou a ela.
Jenny pegou o pacote sem hesitar um só segundo. Suspirou desanimada.
- Olhe só para mim. Meu coração disparou por causa de um pedaço de toucinho. Foi isso que Margaret Thatcher e Arthur Scargill conseguiram fazer com a gente.
- Ela balançou a cabeça. - Obrigada, Tom. Você é um bom homem.
Ele desviou o olhar, incerto do que falar ou fazer. Seus olhos se fixaram no relógio.
- Você não tem que ir buscar a menina? Me desculpe, nem me liguei na hora, quando estava te esperando. Só queria... - ele se levantou, o rosto enrubescido.
- Volto depois.
Ela ouviu suas botas tropeçarem no corredor e, então, o ruído do trinco. Jogou o toucinho sobre a pia e desligou o fogo da panela de água. Agora, seria uma sopa
diferente.
Moira sempre tinha sido a sortuda.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Os olhos de Jenny voltaram da distância e se fixaram em Karen.
- Imagino que fossem umas sete horas, quando percebi que Mick não havia voltado para casa. Eu estava furiosa, porque tinha conseguido um jantar razoável para
pôr na mesa. Então, coloquei a pequena na cama, pedi à vizinha para cuidar dela para que eu pudesse correr até o Serviço e ver se Mick estava lá. - Ela balançou
a cabeça, ainda surpresa após tantos anos.
- E, é claro, ele não estava.
- Alguém o havia visto?
- Aparentemente, não.
- A senhora deve ter ficado preocupada - disse Karen.
Jenny ergueu um ombro.
- Não muito. Como eu disse, nós não tínhamos nos despedido no melhor dos ânimos. Simplesmente pensei que ele tivesse ficado irritado e ido para a casa do
Andy.
- O cara da foto?
- Isso. Andy Kerr. Era funcionário do sindicato. Mas estava de licença médica do trabalho. Estresse, disseram. E estavam certos. Ele se matou um mês depois.
Sempre achei que o fato de Mick decidir furar a greve foi a última gota para Andy. Ele idolatrava Mick. Aquilo teria acabado com ele.
- Então foi lá que a senhora deduziu que ele estivesse? - Karen a provocou.
- Isso mesmo. Andy tinha um sítio no bosque, no meio do nada. Ele dizia que gostava da paz e do silêncio. Mick me levou lá uma vez. Me deu arrepios. Era como
a casa da bruxa de um dos contos de fada de Misha; não se via a casa até que, de repente, você dava de cara com ela, bem na sua frente. Eu é que não moraria lá.
- A senhora não podia ter telefonado para confirmar? - intrometeu-se o Novo em Folha. As duas mulheres olharam para ele com uma mistura de diversão e indulgência.
- Nosso telefone tinha sido cortado meses antes, filho - disse Jenny, trocando um olhar com Karen. - E isso foi muito antes dos celulares.
Naquele ponto, Karen já estava seca por uma xícara de chá, mas nem morta iria se colocar em dívida com Jenny Prentice. Ela pigarreou e prosseguiu:
- Quando foi que a senhora começou a se preocupar?
- Quando a menina me acordou de manhã e ele ainda não estava em casa. Ele nunca tinha feito isso. Não havia sido uma briga de verdade, na sexta-feira. Foram
só umas palavras ásperas. Já tínhamos tido piores, acredite. Quando vi que ele não estava ali de manhã, comecei realmente a pensar que havia alguma coisa terrivelmente
errada.
- O que a senhora fez?
- Dei comida a Misha, troquei sua roupa e a levei até a casa de Lauren, uma amiguinha dela. Daí, atravessei o bosque até a casa de Andy. Mas não havia ninguém
lá. Então, me lembrei que Mick dissera que talvez Andy subisse até as Highlands para passar uns dias, já que estava de licença. Afastar-se de tudo. Pôr a cabeça
no lugar. Então, é lógico que ele não estava lá. Nesse ponto eu já estava bastante assustada. E se houvesse acontecido um acidente? E se ele tivesse ficado doente?
A lembrança ainda tinha o poder de perturbar Jenny. Seus dedos cutucavam sem parar a barra do jaleco.
- Subi até o Serviço Social para ver os representantes do sindicato. Pensei que se alguém soubesse onde Mick estava, seriam eles. Ou que, pelo menos, eles
saberiam onde começar a procurar. - Ela olhou fixamente para o chão, as mãos entrelaçadas no colo. - Foi então que as coisas começaram a degringolar na minha vida.
Sábado, 15 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Mesmo pela manhã, sem a presença de pessoas para elevar a temperatura, o Instituto do Serviço Social dos Mineradores estava mais quente do que sua casa, notou Jenny
ao entrar. Não muito, mas o suficiente para ser perceptível. Não era algo que geralmente chamava sua atenção, mas hoje ela tentava pensar em qualquer coisa que não
fosse a ausência do marido. Parou por um momento, hesitante, no hall de entrada, tentando decidir aonde ir. Os escritórios do Sindicato Nacional dos Mineradores
ficavam no andar de cima, ela se lembrava vagamente; caminhou, portanto, até a escadaria extravagantemente esculpida. Chegando ao primeiro andar, tudo ficou mais
fácil. Era só seguir o burburinho das vozes e a fumaça de cigarro.
Mais adiante no corredor, havia uma porta entreaberta, de onde vinham o som e o cheiro. Jenny bateu nervosamente, e a sala ficou em silêncio. Por fim, uma voz cautelosa
disse:
- Entre.
Ela esgueirou-se pela porta como se fosse uma pedinte. A sala era tomada por uma mesa em forma de U coberta por um oleado axadrezado. Alguns homens estavam sentados
em torno dela, demonstrando níveis variados de desânimo. Jenny vacilou quando percebeu que o homem na ponta mais distante era alguém que ela reconhecia, mas que
não conhecia pessoalmente. Mick McGahey, ex-comunista, líder dos mineiros escoceses. O único homem, dizia-se, que podia enfrentar o Rei Arthur e fazer-se ouvir.
O homem que fora mantido deliberadamente longe do primeiro posto por seu antecessor. Se Jenny ganhasse uma libra cada vez que ouvia alguém dizer que tudo teria sido
muito diferente se McGahey estivesse no comando, sua família teria sido a mais bem alimentada e mais bem-vestida em Newton of Wemyss.
- Me desculpem - ela gaguejou. - Eu só queria dar uma palavrinha... - Seus olhos passearam pela sala, em dúvida sobre em qual dos homens que conhecia
seria melhor fixar a atenção.
- Tudo bem, Jenny - disse Ben Reekie. - Era só uma reuniãozinha. Já terminamos, não é, rapazes? - Houve um murmúrio descontente de assentimento. Mas Reekie,
o secretário local, era habilidoso em avaliar o andamento de uma reunião e fazer as coisas avançarem. - Então, Jenny, como podemos te ajudar?
Ela gostaria de ficar a sós com ele, mas não tinha coragem de pedir. As mulheres tinham aprendido muito no processo de apoiar seus homens, mas, cara a cara, sua
assertividade ainda tendia a se esvair. Mas tudo ficaria bem, ela disse a si mesma. Vivera nesse universo encasulado durante toda a vida adulta, um mundo que se
centrava na mina e na Associação, no qual não havia segredos e onde o sindicato era sua mãe e seu pai.
- Estou preocupada com Mick - ela disse. Não adiantava fazer rodeios. - Ele saiu ontem de manhã e não voltou. Eu estava pensando se, talvez...?
Reekie apoiou a testa nos dedos, esfregando-a com tanta força que deixou marcas alternadas em vermelho e branco no centro.
- Deus do céu - ele sibilou entre os dentes cerrados.
- E você espera que acreditemos que você não sabe onde ele está?
A acusação veio de Ezra Macafferty, o último sobrevivente na vila das greves dos mineiros e das greves patronais da década de vinte.
- É claro que não sei onde ele está. - A voz soou melancólica, mas um medo sombrio começara a espalhar seu gelo pelo peito dela. - Pensei que talvez ele tivesse
passado por aqui. Achei que alguém pudesse saber.
- Isso eleva o número a seis - disse McGahey. Ela reconheceu o tom grave e áspero de sua voz das entrevistas na TV e comícios ao ar livre. Era estranho estar
na mesma sala que ele.
- Não entendo - ela disse. - Seis o quê? O que está acontecendo? - Todos os olhos estavam voltados para ela, perfurando-a. Podia sentir seu desprezo, mas
não entendia o motivo. - Aconteceu alguma coisa com Mick? Um acidente?
- Aconteceu uma coisa, sim - disse McGahey. - Parece que o seu marido furou a greve e fugiu para Nottingham.
Suas palavras pareceram sugar todo o ar dos pulmões dela. Jenny parou de respirar, deixando que se formasse uma bolha ao seu redor para protegê-la. Não podia ser
verdade. Não o Mick. Muda, ela sacudiu a cabeça com força. As palavras começaram a penetrar a barreira, mas ainda não faziam sentido.
- Sabíamos de cinco... pensamos que haveria mais... sempre um traidor no grupo... decepcionados... sempre um do sindicato.
- Não - ela disse. - Ele não faria isso.
- De que outra forma você explica o fato de ele não estar aqui? - disse Reekie. - Foi você que veio até nós procurando por ele. Sabemos que uma van cheia
deles foi embora ontem à noite. E ao menos um deles é amigo do seu Mick. Onde mais ele poderia estar?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu não teria me sentido pior se eles tivessem me chamado de prostituta - disse Jenny. - Imagino que, aos olhos deles, era exatamente isso que eu era. Meu
marido fugindo da greve, não demoraria nada até que eu começasse a viver de forma imoral.
- A senhora nunca duvidou de que eles estivessem certos?
Jenny afastou o cabelo do rosto, removendo momentaneamente um pouco de sua idade e docilidade.
- Na verdade, não. Mick era amigo de Iain Maclean, um dos que foram para Nottingham. Isso eu não discutia. E não se esqueça de como era, naquela épóca. Os
homens controlavam o jogo, e o sindicato controlava os homens. Quando as mulheres quiseram participar da greve, a primeira batalha que tivemos que travar foi contra
o sindicato. Tivemos que implorar que nos deixassem entrar. Eles nos queriam onde sempre havíamos estado: no cômodo dos fundos, cuidando do fogão. Não ao lado da
fogueira, nas linhas de piquete. Mas embora tivéssemos conseguido formar a Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas, ainda conhecíamos bem nosso lugar.
Teríamos que ser muito fortes, ou muito burras, para tentar ir contra a corrente por aqui.
Não era a primeira vez que Karen ouvia uma versão daquela verdade. Ela se perguntou se teria feito diferente, na mesma situação. Era bom pensar
que teria ficado ao lado de seu homem com um pouco mais de firmeza. Mas, diante da hostilidade que Jenny Prentice devia ter enfrentado por parte da comunidade, Karen
achava que também teria cedido.
- Entendo - ela disse. - Mas agora que parece que, afinal, Mick pode não ter fugido da greve, a senhora tem alguma ideia do que pode ter acontecido com ele?
Jenny balançou a cabeça.
- Nenhuma? Ainda que eu não pudesse acreditar, a fuga fazia algum sentido. Então, nunca considerei outra possibilidade.
- A senhora acha que ele pode ter simplesmente se enchido? Simplesmente caiu fora?
Ela franziu a testa.
- Olha, isso não seria do feitio de Mick. Ir embora sem falar nada? Acho que não. Ele faria questão que eu soubesse que tinha sido por minha culpa. - Ela
soltou uma risada amarga.
- A senhora não acha que ele pode ter ido embora sem dizer nada como uma forma de fazer com que a senhora sofresse ainda mais?
Jenny levantou a cabeça.
- Isso é asqueroso demais - ela protestou. - Você o faz parecer um sádico. Ele não era um homem cruel, inspetora. Apenas insensível e egoísta, como todos
eles.
Karen fez uma pausa. Aquela era sempre a parte mais difícil, quando se entrevistava os parentes de um desaparecido.
- Ele havia discutido com alguém? Tinha algum inimigo, Sra. Prentice?
Jenny a olhou como se Karen tivesse, de repente, passado a falar grego.
- Inimigo? Tipo, alguém que quisesse matá-lo?
- Talvez não matá-lo. Apenas brigar com ele.
Dessa vez, a risada de Jenny tinha um calor genuíno.
- Meu Jesus, isso é engraçado, vindo de você. - Ela balançou a cabeça. - As únicas brigas físicas em que Mick se meteu, durante todos os anos em que estivemos
casados, foi com o seu pessoal. Nas linhas de piquete. Nas manifestações. Se ele tinha inimigos? Claro, os de uniforme azul. Mas aqui não é a América Latina e não
me lembro de ouvir falar de desaparecidos nas greves dos mineiros. Portanto, a resposta para sua pergunta é não, ele não tinha o tipo de inimigo com quem teria uma
briga séria.
Karen observou o carpete por um longo tempo. A violência exagerada da polícia, contra os grevistas, havia envenenado os relacionamentos nas comunidades por mais
de uma geração. Não importava que os piores transgressores viessem de forças externas, trazidos ali para aumentar os números, e a quem se pagavam quantias obscenas
de dinheiro para oprimir seus concidadãos de formas que a maioria das pessoas preferia nem saber. O resultado de sua ignorância e arrogância havia afetado a todos
os policiais, em todas as corporações das cidades mineradoras. Ainda afetava, pensou Karen. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
- Sinto muito - ela disse. - A forma como trataram os mineiros foi imperdoável. Prefiro pensar que não agiríamos dessa maneira hoje em dia, mas é provável
que esteja enganada. A senhora tem certeza de que não havia ninguém com quem ele houvesse se desentendido?
Jenny nem sequer parou para pensar.
- Não que eu soubesse. Ele não era encrenqueiro. Tinha seus princípios, mas não os usava para provocar brigas. Defendia aquilo em que acreditava, mas era
só de falar, não de partir para a briga.
- E se falar não adiantasse? Ele retrocederia?
- Não tenho certeza se entendi a pergunta.
Karen falou vagarosamente, tateando a ideia.
- Estou pensando se ele não topou com esse tal de Iain Maclean naquele dia e tentou convencê-lo a não ir para Nottingham. E se Iain se recusou a mudar de
ideia, e talvez tivesse seus amigos para apoiá-lo... Será que Mick entraria numa briga com eles?
Jenny balançou firmemente a cabeça.
- De jeito nenhum. Ele diria o que pensava e, se não adiantasse, se afastaria.
Karen se sentiu frustrada. Mesmo depois de tanto tempo, os casos arquivados geralmente ofereciam um ou dois fios soltos por onde começar. Mas, até agora, parecia
não haver nada ali. Uma última pergunta e, depois, ela iria embora.
- A senhora tem alguma ideia de aonde Mick pode ter ido para pintar naquele dia?
- Ele não disse. A única coisa que posso dizer é que, no inverno, ele geralmente seguia pelo litoral até East Wemyss. Assim, se começasse a
chover, ele poderia descer até as cavernas e se abrigar lá. Os caras do grupo de preservação tinham uma cabaninha no fundo de uma das cavernas, com um fogareiro
onde podiam fazer chá. Ele tinha as chaves, podia ficar à vontade - ela acrescentou, a acidez de volta à sua voz. - Mas não tenho ideia se ele esteve ali nesse dia
ou não. Ele poderia estar em qualquer lugar entre Dysart e Buckhaven. - Ela olhou para o relógio. - Isso é tudo que sei.
Karen se levantou.
- Agradeço muito por seu tempo, Sra. Prentice. Continuaremos fazendo nossas investigações e a manteremos informada.
Novo em Folha se levantou desajeitadamente e seguiu Karen e Jenny até a porta da frente.
- Não estou preocupada por mim, entende? - Jenny disse, quando eles estavam a meio caminho da rua. - Mas veja se você consegue encontrá-lo pelo bem da criança.
Aquele era, pensou Karen, o primeiro sinal de emoção que ela demonstrava durante toda a manhã.
- Pegue seu caderno - ela disse a Novo em Folha, quando entraram no carro. - Próximos passos. Falar com a vizinha. Ver se ela se lembra de alguma coisa sobre
o dia em que Mick Prentice desapareceu. Falar com alguém do grupo da caverna, ver quem ainda está lá desde 1984. Obter outra visão de como realmente era Mick Prentice.
Procurar nos arquivos alguma coisa a respeito desse Andy Kerr, funcionário do Sindicato dos Mineiros, que supostamente cometeu suicídio na época em que Mick desapareceu.
Como é essa história? E precisamos rastrear esses cinco fura-greves e pedir que a polícia fale com eles em Nottingham. - Ela abriu a porta do passageiro novamente,
enquanto Novo em Folha terminava de escrever. - E já que estamos aqui, vamos dar uma olhada nessa vizinha.
Ela mal se afastara dois passos do carro quando seu telefone tocou.
- Phil - ela disse.
Nenhuma piadinha, ele simplesmente foi direto aos fatos:
- Você precisa voltar aqui agora mesmo.
- Por quê?
- O Biscoito está furioso. Quer saber por que diabos você não está na sua mesa.
Simon Lees, subchefe de Polícia (Criminal), tinha um temperamento muito diferente do de Karen. Ela estava convencida de que, antes de dormir, ele lia o Código de
Polícia, Ordem Pública e Justiça Criminal de 2006 (da Escócia). Sabia que ele era casado e tinha dois filhos adolescentes, mas não fazia ideia de como aquilo podia
ter acontecido com um homem tão obsessivamente organizado. Era Lei de Murphy que, na primeira manhã, em meses, que ela estava fazendo algo fora das normas, o Biscoito
viesse procurá-la. Ele parecia acreditar que tinha o direito divino de saber o paradeiro de qualquer oficial sob seu comando, quer estivesse ou não de serviço. Karen
se perguntou o quão próximo de um derrame ele teria chegado ao descobrir que ela não estava ocupando a mesa onde esperava encontrá-la. Pelo jeito, não próximo o
bastante.
- O que você disse a ele?
- Disse que você estava numa reunião com a equipe de armazenamento de provas, discutindo uma forma de agilizar o procedimento de catalogação deles - disse
Phil. - Ele gostou da ideia, mas não do fato de que isto não estivesse registrado em sua lista eletrônica de compromissos.
- Estou a caminho - Karen disse, confundindo Novo em Folha ao entrar novamente no carro. - Ele disse por que estava me procurando?
- Para mim? Um mero sargento? Dá um tempo, Karen. Ele apenas disse que era "muito importante". Alguém provavelmente roubou os biscoitinhos digestivos dele.
Karen gesticulou impacientemente para Novo em Folha.
- Para casa, James, e não poupe os cavalos. - Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido, mas deu partida no carro e saiu dirigindo. - Estou indo - ela
disse. - Ponha a água para ferver.
Glenrothes
A dupla hélice de frustração e irritação se retorceu nas entranhas de Simon Lees. Ele se mexeu na cadeira e rearrumou as fotos da família sobre a mesa. Qual era
o problema dessa gente? Quando fora procurar a inspetora Pirie e não a encontrara onde deveria estar, o sargento Parhatka agira como se aquilo estivesse perfeitamente
bem. Havia algo fundamentalmente indiferente nos detetives de Fife. Ele havia percebido aquilo dias após ter chegado de Glasgow. Surpreendia-se que eles houvessem
conseguido colocar
alguém atrás das grades, antes que ele chegasse com seus métodos analíticos, suas investigações eficientes, análises sofisticadas de vínculos criminais e o inevitável
aumento nos níveis de detecção.
O que o irritava ainda mais era o fato de que eles pareciam não ter qualquer gratidão pelos métodos modernos que ele trouxera para o trabalho. Ele até mesmo suspeitava
que riam dele. Seu apelido, por exemplo. Todo mundo no prédio parecia ter um apelido, a maioria deles podendo ser interpretados como levemente carinhosos. Mas não
ele. Logo descobrira que fora apelidado de Biscoito, porque compartilhava o sobrenome com uma fábrica de doces; seu produto mais famoso ficara conhecido devido a
um antiquíssimo jingle de propaganda, cujo racismo brincalhão causaria tumulto nas ruas se fosse veiculado na Escócia do século XXI. Ele culpava Karen Pirie; não
era coincidência que o apelido houvesse surgido após seu primeiro desentendimento com ela. Algo que se tornaria comum na maioria de seus encontros. Ele não tinha
certeza de como acontecia, mas ela sempre parecia confundi-lo.
Lees ainda se ressentia com aquela primeira lembrança. Mal havia chegado, já começara a dar as ordens, promovendo uma série de treinamentos. Não os de praxe, numa
postura machista, nem a tediosa revisão das regras de comportamento, mas abordagens originais de temas referentes ao policiamento moderno. A primeira leva de oficiais
tinha se reunido na sala de treinamento e Lees dera início a seu prólogo, explicando como eles passariam o dia desenvolvendo estratégias para o policiamento em uma
sociedade multicultural. Seus espectadores pareceram rebeldes, e Karen Pirie liderara o ataque:
- Senhor, posso fazer uma observação?
- É claro, inspetora Pirie. - Seu sorriso havia sido cordial, ocultando a irritação de ser interrompido antes de sequer ter revelado o programa.
- Bem, senhor, Fife não é realmente o que se poderia chamar de multicultural. Não temos muitas pessoas aqui que não sejam britânicas nativas. À exceção dos
italianos e poloneses, quero dizer, e eles já estão aqui há tanto tempo que nos esquecemos que não são daqui.
- Então o racismo parece estar bem para você; é isso, inspetora Pirie?
Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas ele fora levado àquilo pela atitude aparentemente retrógrada expressada por ela. Sem falar daquela
cara de bolacha impassível que ostentava sempre que dizia alguma coisa que pudesse ser interpretada como provocadora.
- Em absoluto, senhor. - Ela sorrira, de forma quase piedosa. - O que eu queria dizer é que, já que temos um orçamento limitado para treinamentos, pode fazer
mais sentido lidar primeiro com o tipo de situação que é mais provável que encontremos no dia a dia.
- Tais como?... Com quanta força devemos bater nas pessoas, quando as prendemos?
- Eu estava pensando em estratégias para lidar com a violência doméstica. É um tipo de chamada frequente e que pode facilmente se agravar. Gente demais ainda
morre todos os anos porque uma briga doméstica escapa ao controle. E nem sempre sabemos lidar com elas, sem piorar a situação. Eu diria que essa seria minha prioridade
número um no momento, senhor.
E com aquele discurso, ela havia tirado o chão dele. Não tinha volta. Poderia seguir adiante com o treinamento planejado, sabendo que todos na sala estariam rindo
dele. Ou poderia adiá-lo, organizando algo relacionado à sugestão da inspetora Pirie, e então perderia completamente a moral. No fim, ele disse a eles para passarem
o resto do dia pesquisando sobre o assunto da violência doméstica, preparando-se para outro dia de treinamento.
Dois dias depois, ouviu sem querer alguém se referindo a ele como o Biscoito. Ah, sim, ele sabia a quem culpar. Mas assim como em tudo que ela fazia para sabotá-lo,
não havia nada que ele pudesse atribuir diretamente a ela. Ela simplesmente ficaria ali, tão desgrenhada, impassível e inescrutável quanto uma vaca escocesa das
Highlands, nunca dizendo ou fazendo nada de que ele pudesse se queixar. E ela estabeleceu o padrão para todos os demais, mesmo estando isolada nos cafundós, na Equipe
de Revisão de Casos Arquivados, onde não deveria ser capaz de exercer nenhuma espécie de influência. Mas, de alguma forma, graças a Pirie, lidar com os detetives
das três divisões era como pastorear gatos.
Ele tentava evitá-la, tentava desviar-se dela através de suas diretrizes operacionais. Até então pensava que estava funcionando. Mas aí o telefone tinha tocado.
- Subchefe de Polícia Lees - anunciara ao atender. - Em que posso ajudar?
- Bom dia, subchefe Lees. Meu nome é Susan Charleson. Sou assistente pessoal de Sir Broderick Maclennan Grant. Meu chefe gostaria de falar com o senhor. Agora
seria um bom momento?
Lees se endireitou na cadeira, alinhando os ombros. Broderick Maclennan Grant era conhecido por três coisas: sua fortuna, seu isolamento misantrópico e pelo sequestro
e assassinato da filha Catriona, há vinte e poucos anos. Por mais improvável que pudesse parecer, um telefonema de sua assistente para o subchefe criminal só poderia
significar que havia ocorrido algum tipo de mudança no caso.
- Sim, claro, o momento perfeito, não poderia ser melhor.
Ele escavou a memória em busca de detalhes, ouvindo apenas em parte à mulher no telefone. Filha e neto sequestrados, tinha sido isso. Filha morta durante uma entrega
de resgate que deu errado, neto nunca mais visto. E, agora, ele parecia ter a chance de, finalmente, solucionar o caso. Concentrou-se novamente na voz da mulher.
- Se o senhor puder fazer a gentileza de aguardar, colocarei Sir Broderick na linha agora mesmo - ela disse.
O som oco de uma interrupção e, então, uma voz soturna e pesada disse:
- Aqui fala Broderick Maclennan Grant. Você é o subchefe de Polícia?
- Exatamente, Sir Broderick. Subchefe de Polícia Lees. Simon Lees.
- Você está ciente do assassinato não solucionado da minha filha, Catriona? E do sequestro do meu neto, Adam?
- É claro, naturalmente, não existe um só policial na região que não...
- Achamos que surgiu uma prova nova. Eu ficaria agradecido se você tomasse todas as providências para que a inspetora Pirie venha até a minha casa amanhã
cedo, para discutir o assunto comigo.
Lees literalmente afastou o telefone do rosto e ficou olhando para o aparelho. Seria algum trote sofisticado?
- Inspetora Pirie? Eu não... eu poderia ir - ele balbuciou.
- Você é um funcionário administrativo. Não preciso de um funcionário administrativo. - O tom de Brodie Grant era desdenhoso. - A inspetora Pirie é detetive.
Gostei da forma como ela lidou com o caso Lawson.
- Mas... mas, para tratar disso, deveria ser um oficial mais graduado - protestou Lees.
- Não é a inspetora Pirie quem está no comando da sua Equipe de Revisão de Casos Arquivados? - Grant começava a parecer impaciente. - Isso é graduação suficiente
para mim. Não me importo com postos, me importo com eficiência. É por isso que quero a inspetora Pirie na minha casa amanhã às dez. Isso deve lhe dar tempo suficiente
para se familiarizar com as informações básicas do caso. Tenha um bom dia, Sr. Lees. - A linha emudeceu e Simon Lees ficou sozinho, com seu mau humor e a pressão
arterial que se elevava.
Por mais que aquilo o angustiasse, ele não tinha escolha senão encontrar a inspetora Pirie e lhe dar as ordens. Pelo menos, poderia fazer com que aquilo parecesse
ter sido ideia dele. Embora não houvesse nenhum compromisso marcado no sistema de agendamento eletrônico que ele instituíra para seus detetives mais antigos, ela
não estava em sua mesa. Tudo bem que os policiais fizessem coisas por iniciativa própria, mas tinham de aprender a deixar um registro de seus movimentos.
Ele estava prestes a voltar para a sala da Revisão de Casos Arquivados para descobrir por que a inspetora Pirie ainda não havia aparecido quando uma batida incisiva
na porta foi seguida, sem qualquer intervalo, pela entrada dela.
- Eu disse que poderia entrar? - perguntou Lees, olhando-a com raiva do outro lado da sala.
- Pensei que fosse urgente, senhor. - Ela continuou andando e se sentou na cadeira do outro lado da mesa dele. - O sargento Parhatka me deu a impressão de
que, qualquer que fosse o motivo pelo qual o senhor estivesse me procurando, não podia esperar.
Que referência para o serviço policial, ele pensou, irritado. Cabelo desgrenhado caindo sobre os olhos, pouquíssima maquiagem e dentes que precisavam seriamente
de um aparelho ortodôntico. Ele supunha que ela fosse lésbica, dada sua atração por terninhos de calça comprida, o que era realmente um erro, devido à largura de
seus quadris. Não que ele tivesse qualquer coisa contra lésbicas, lembrou-lhe seu censor interno. Apenas achava que dava às pessoas a impressão errada sobre o serviço
policial de hoje.
- Sir Broderick Maclennan Grant me telefonou hoje de manhã - ele disse. O único sinal de interesse foi um ligeiro entreabrir dos lábios. - Suponho que saiba
quem é Broderick Maclennan Grant.
Karen pareceu surpresa com a pergunta. Ela se reclinou na cadeira e recitou:
- Terceiro homem mais rico da Escócia, é dono de metade da porção rentável das Highlands. Ganhou seu dinheiro construindo estradas e casas, e administrando
os sistemas de transporte que as servem. Possui uma ilha nas Hébridas, mas passa a maior parte do tempo no Castelo de Rotheswell, perto de Falkland. A maioria das
terras entre lá e o mar pertence a ele ou a Wemyss. Sua filha Cat e o filhinho dela, Adam, foram sequestrados por um grupo anarquista em 1985. Cat foi morta com
um tiro quando a entrega do resgate deu errado. Ninguém sabe o que aconteceu com Adam. A esposa de Grant suicidou-se alguns anos depois. Ele se casou novamente há
cerca de dez anos. Tem um filho pequeno que deve estar com cinco ou seis anos. - Ela riu. - Como fui?
- Não é um concurso, inspetora. - Lees sentiu que cerrou os punhos e os manteve embaixo da mesa. - Parece que há novas provas. E já que você está no comando
dos casos arquivados achei que deveria cuidar deste.
- Que tipo de provas? - Ela se reclinou sobre o braço da cadeira, numa postura relaxada.
- Achei melhor que você conversasse diretamente com Sir Broderick. Assim, não haverá qualquer possibilidade de confusão.
- Então, ele realmente não lhe disse nada a respeito?
Lees poderia jurar que ela estava gostando daquilo.
- Marquei de você se encontrar com ele no Castelo de Rotheswell amanhã de manhã às dez. Não preciso lhe dizer o quanto é importante que fique bem claro que
estamos levando isso a sério. Quero que Sir Broderick entenda que este assunto receberá toda a nossa atenção.
Karen se levantou abruptamente, os olhos repentinamente frios.
- Ele receberá exatamente a mesma atenção que todos os outros pais enlutados com quem trato. Não faço distinção entre os mortos, senhor. Agora, se isso é
tudo, tenho um arquivo para estudar até amanhã cedo.
Ela não esperou por uma dispensa. Apenas virou nos calcanhares e saiu, deixando Lees com a sensação de que ela tampouco fazia distinção entre os vivos.
Mais uma vez, Karen Pirie o havia feito se sentir um idiota.
Castelo de Rotheswell
Bel Richmond deu uma última olhada em seu arquivo sobre Catriona Maclennan Grant, certificando-se de que sua lista de perguntas cobria todos os ângulos. A intolerância
a bobagens por parte de Broderick Maclennan Grant era tão notória quanto sua aversão à publicidade. Bel suspeitava de que ele fosse atacar ao primeiro sinal de falta
de preparo de sua parte e usá-la como desculpa para romper o acordo que ela havia negociado com Susan Charleson.
Para dizer a verdade, ela ainda estava surpresa por haver conseguido. Levantou-se, fechou o laptop e deu uma olhada no espelho. Vestida para matar. Afinal, a primeira
impressão é a que fica. Fim de semana no campo. Era esse o look que ela havia adotado. Sempre fora boa em camuflagem. Mais uma das muitas razões pelas quais ela
era tão boa naquilo que fazia. Integrar-se, tornar-se "parte do grupo", qualquer que fosse ele, era um mal necessário. Portanto, se ela iria dormir sob o teto aristocrático
de Brodie Grant, precisava se vestir a caráter. Alisou o vestido axadrezado Black Watch que havia tomado emprestado de Vivianne, conferiu se não havia arranhões
nos sapatos de salto sabrina, ajeitou o cabelo, negro como um corvo, para trás da orelha e entreabriu os lábios rubros num sorriso. Uma olhada em seu relógio confirmou
que estava na hora de descer as escadas e descobrir o que a formidável Susan Charleson havia preparado.
Ao virar uma curva da ampla escadaria, teve de se desviar para evitar um garotinho que subia a toda velocidade. Ele conseguiu controlar os gestos desgovernados no
patamar entre dois lances, ofegou um "Desculpe", e voou escada acima. Bel piscou e ergueu as sobrancelhas. Já fazia algum tempo que não esbarrava assim num garotinho
e não havia sentido a menor falta. Continuou descendo, mas, antes de chegar ao pé da escada, uma mulher com calças de veludo bege e uma blusa vermelho-escura circulou
a coluna da escadaria e parou de repente, pega de surpresa.
- Oh, me desculpe, não quis assustá-la - ela disse. - Viu um garotinho passar por aqui?
Bel apontou com o polegar por sobre o ombro.
- Ele foi por ali.
A mulher assentiu. Agora que estava mais próxima, Bel podia ver que era uns dez anos mais velha do que pensara de início, trinta e tantos, no mínimo. A pele tratada,
o cabelo castanho grosso e o porte elegante ajudavam a confundir.
- Monstrinho - disse a mulher. Elas se encontraram a alguns degraus do patamar. - Você deve ser Annabel Richmond - ela disse, estendendo a mão delgada que
estava fria, apesar da temperatura agradável dentro das grossas paredes do castelo. - Sou Judith. Esposa de Brodie.
Claro que sim. Como Bel poderia ter imaginado uma babá tão bem arrumada?
- Lady Grant - ela disse, estremecendo por dentro.
- Judith, por favor. Mesmo depois de todos esses anos casada com Brodie, ainda tenho vontade de olhar para trás quando alguém me chama de Lady Grant. - Ela
não parecia dizer aquilo apenas por falsa modéstia.
- E eu sou Bel. Vamos deixar para lá o nome que uso profissionalmente.
Lady Grant sorriu, os olhos já examinando os degraus acima.
- Bel então. Olhe, não posso parar agora, tenho de capturar aquele monstrinho. Vejo você no jantar. - E lá foi ela, subindo dois degraus de cada vez.
Sentindo que havia exagerado ao se vestir, em comparação à castelã de Rotheswell, Bel seguiu pelos corredores de lajotas de pedra até o escritório de Susan Charleson.
A porta estava aberta e Susan, que falava ao telefone, acenou para que ela entrasse.
- Muito bem. Obrigada por arranjar tudo, Sr. Lees. - Ela recolocou o fone no gancho e contornou a mesa, conduzindo Bel de volta à porta. - Bem na hora - ela
disse. - Ele aprecia a pontualidade. Gostou do quarto? Tem tudo de que precisa? O acesso wi-fi está funcionando?
- Tudo está perfeito - disse Bel. - A vista também é linda.
Sentindo-se como se tivesse entrado num drama da BBC2 escrito por Stephen Poliakoff, ela deixou-se conduzir pelo labirinto de corredores, cujas
paredes estavam forradas de fotografias de paisagens escocesas enormes impressas em telas para parecerem quadros pintados. Ficou surpresa de tudo lhe parecer tão
aconchegante. Mas, também, aquela não era a ideia que fazia de um castelo. Esperara algo como Windsor ou Alnwick. Em vez disso, Rotheswell parecia-se mais a uma
mansão fortificada e com torres. O interior lembrava mais uma casa de campo do que um salão de banquetes medieval. Sólido, mas não tão intimidador quanto ela temera.
Quando finalmente pararam diante de uma porta dupla de mogno alta e abobadada, Bel já estava começando a se arrepender de não ter deixado uma trilha de migalhas
de pão.
- Chegamos - disse Susan, abrindo uma das portas e conduzindo Bel para o interior de uma sala de bilhar, forrada de painéis de madeira escura e com persianas
nas janelas. A única luz provinha de uma série de lustres sobre a mesa de bilhar de tamanho oficial. Quando elas entraram, Broderick Maclennan Grant levantou os
olhos do taco que posicionava para a jogada. Uma massa densa de cabelo impressionantemente grisalho caía jovialmente sobre a testa ampla, sobrancelhas como um par
de muralhas prateadas sobre olhos tão fundos que sua cor só podia ser adivinhada, nariz como o bico de um papagaio, e uma boca ampla e fina sobre um queixo quadrado,
eram características que o tornavam instantaneamente reconhecível. A iluminação do lugar dava um ar dramático a sua figura.
Por conta de fotografias, Bel sabia o que esperar, mas ficou surpresa com a eletricidade crepitante que sentiu em sua presença. Já estivera na presença de homens
e mulheres poderosos antes, mas poucas vezes sentira aquele carisma instantâneo. Entendeu, de imediato, como Brodie Grant havia construído seu império do nada.
Ele se endireitou e apoiou-se no taco.
- Srta. Richmond, suponho. - Sua voz era profunda e quase relutante, como se não a usasse muito.
- Exatamente, Sir Broderick. - Bel não tinha certeza se deveria avançar ou permanecer onde estava.
- Obrigado, Susan - disse Grant. Quando a porta se fechou atrás dela, ele acenou na direção de um par de poltronas de couro desgastadas ao lado de uma lareira
de mármore entalhado. - Sente-se. Posso jogar e conversar
ao mesmo tempo. - Ele voltou a estudar a tacada enquanto Bel deslocava uma das poltronas para que pudesse observá-lo de forma mais direta.
Ela esperou enquanto ele fez mais algumas jogadas, o silêncio se erguia entre eles como uma maré ameaçadora.
- É uma linda casa - ela disse afinal.
Ele resmungou:
- Não sou de papo furado, Srta. Richmond. - Deu uma tacada rápida e duas bolas colidiram num estalo que pareceu um tiro. Passou giz no taco e a observou por
um longo momento. - Você provavelmente está se perguntando como conseguiu isso. Acesso direto a um homem famoso por sua aversão à exposição na mídia. Que conquista,
hein? Bem, sinto muito em decepcioná-la, mas você apenas teve sorte. - Ele circulou a mesa, franzindo a testa diante da posição das bolas, movendo-se como um homem
vinte anos mais jovem.
- Foi assim que consegui algumas das minhas melhores histórias - Bel disse calmamente. - Grande parte do jornalismo de sucesso deve-se a isso: a habilidade
de estar no lugar certo, na hora certa. Não tenho problema algum com relação à sorte.
- Que seja. - Ele estudou as bolas, inclinando a cabeça para obter um ângulo diferente. - Então, você não está se perguntando por que escolhi romper meu silêncio,
após todos esses anos?
- Sim, é claro que estou. Mas, para ser honesta, não acho que suas razões para falar agora terão muito a ver com o que acabarei escrevendo. Portanto, é mais
uma curiosidade pessoal do que profissional.
Ele parou a meio caminho de sua preparação para uma tacada e empertigou-se, encarando-a com uma expressão que ela não podia decifrar. Ele poderia estar furioso ou
curioso.
- Você não é como eu esperava - ele disse. - É mais durona. Isso é bom.
Bel estava acostumada a ser subestimada pelos homens, em seu universo. Estava menos acostumada, porém, a que eles admitissem seu erro.
- Pode ter certeza de que sou durona. Não confio a mais ninguém as minhas batalhas.
Ele se virou para olhá-la, apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o taco.
- Não gosto de ficar exposto ao público - ele disse. - Mas sou realista. Em 1985 era possível que alguém como eu exercesse um determinado grau de influência
sobre a mídia. Quando Catriona e Adam foram sequestrados, controlamos em grande parte o que foi impresso e transmitido. A polícia também cooperou conosco. - Ele
suspirou e balançou a cabeça. - Olhe só de que adiantou. - Deixou o taco na mesa e veio se sentar de frente para Bel.
Sentou-se na posição clássica do macho dominante: joelhos bem abertos, mãos sobre as coxas, ombros para trás.
- O mundo é um lugar diferente agora - ele disse. - Eu vi o que vocês fazem com pais que perderam seus filhos. Mohamed Al Fayed, retratado como um palhaço
paranoico. Kate McCann, transformada em uma Medeia moderna. Dê um passo em falso e eles o enterram. Bem, não vou deixar que isso aconteça. Sou um homem muito bem-sucedido,
Srta. Richmond. E cheguei até aqui aceitando que existem coisas que eu não sei e entendendo que a forma de superar isso é contratando especialistas e ouvindo-os.
No que se refere a esse ramo de negócios, você é minha especialista. Quando souber que existem novas provas, a mídia enlouquecerá. Mas não falarei com ninguém além
de você. Tudo passará por você. Portanto, qualquer que seja a imagem que chegue ao público, será a que você gerar. Este lugar foi construído para resistir a um cerco,
e meu sistema de segurança é o melhor que existe. Nenhum dos répteis chega perto de mim, de Judith ou de Alec.
Bel sentiu um sorriso repuxar os cantos da boca. Acesso exclusivo era o sonho erótico de todo redator. Geralmente, tinha de se matar para conseguir algo assim. Mas,
ali estava, numa bandeja e de graça. Contudo, deixou-o continuar pensando que era ela quem estava lhe fazendo um favor.
- E o que eu ganho com isso? Além de me tornar a jornalista que todo mundo adora odiar?
A linha estreita dos lábios de Grant se comprimiu ainda mais, e o peito se ergueu numa respiração profunda.
- Eu falarei com você. -As palavras saíram como se tivessem sido trituradas entre duas pedras de moinho. Claramente, sua intenção era que aquele fosse um
momento comparado a quando Moisés desceu do Monte Sinai.
Bel estava determinada a não se deixar impressionar.
- Excelente. Podemos começar, então? - Enfiou a mão dentro da bolsa e tirou um gravador digital. - Sei que isto não será fácil para o senhor, mas preciso
que me conte sobre Catriona. Chegaremos ao sequestro e suas consequências, mas teremos que voltar um pouco antes disso. Quero ter um panorama de como ela era e de
como vivia.
Ele olhou para o nada e, pela primeira vez, Bel viu um homem que parecia ter setenta e dois anos.
- Não tenho certeza se sou a pessoa mais adequada para isso - ele disse. - Éramos parecidos demais. Sempre foi uma disputa, entre mim e Catriona. - Ele se
levantou da poltrona e voltou à mesa de bilhar. - Ela sempre foi voluntariosa, mesmo quando pequena. Tinha ataques de fúria que podiam balançar as paredes deste
lugar. Ela cresceu e deixou os ataques para trás, mas não o temperamento. Contudo, sempre conseguia reconquistar a boa vontade das pessoas. Quando ela queria. -
Ergueu os olhos para Bel e sorriu. - Ela sabia bem o que queria. E não era possível fazê-la mudar de ideia, uma vez que estivesse decidida sobre algo.
Grant se moveu em torno da mesa, estudando as bolas, alinhando sua próxima jogada.
- E tinha talento. Quando criança, nunca estava sem um lápis ou um pincel nas mãos. Desenho, pintura, modelagem em argila. Ela nunca parava. Não deixou de
fazer isso com o tempo, como a maioria das crianças. Simplesmente se aprimorou. Então, ela descobriu o vidro. - Ele se inclinou sobre a mesa e acertou a bola vermelha
com a bola da vez, encaçapando-a no buraco do meio. Então, reposicionou a vermelha e estudou os ângulos.
- O senhor disse que sempre houve disputa entre vocês. Quais eram os pontos críticos? - Bel perguntou, quando ele não demonstrou sinais de que continuaria
com suas reminiscências.
Grant deu uma risadinha irônica.
- Tudo e qualquer coisa. Política. Religião. Se a comida italiana era melhor do que a indiana. Se Mozart era melhor do que Beethoven. Se a arte abstrata tinha
algum significado. Se deveríamos plantar faia, bétula ou pinho escocês no bosque de Check Bar. - Ele se endireitou lentamente. - Por que ela não queria assumir a
companhia. Esse era o ponto mais crítico. Eu não tinha um filho homem, naquela época. E nunca tive problemas para
aceitar mulheres nos negócios. Não via razão alguma para que ela não pudesse assumir a MGE, desde que aprendesse como tudo funcionava. Ela dizia que preferiria furar
os próprios olhos com uma agulha.
- Ela não aprovava a MGE? - perguntou Bel.
- Não, não tinha nada a ver com a companhia ou com sua política. Ela queria era ser uma artista do vidro. Esculpir, soprar, modelar... tudo que fosse possível
fazer com vidro, ela queria ser a melhor. E isso não deixava espaço para a construção de rodovias ou casas.
- Deve ter sido uma grande decepção.
- Fiquei arrasado. - Grant pigarreou. - Fiz tudo o que podia para convencê-la a desistir daquilo. Mas ela não me dava ouvidos. Agiu à minha revelia e se candidatou
a uma vaga na universidade Goldsmiths, em Londres. E conseguiu. - Ele balançou a cabeça. - Eu queria cortar qualquer ajuda financeira a ela, mas Mary, minha esposa,
mãe de Cat, me compeliu a concordar em sustentá-la. Ela disse que, para alguém que detestava se expor ao público, eu estava dando uma imensa colher de chá para os
tabloides. Então, deixei-me convencer. - Ele deu um sorriso amargo. - Quase me conformei com tudo, também. Então, descobri o que realmente estava acontecendo.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1978; Castelo de Rotheswell
Brodie Grant girou o Land Rover numa curva que espalhou cascalho para os lados e freou a metros da porta da cozinha do Castelo de Rotheswell. Entrou pisando forte
na casa, com um labrador chocolate nos calcanhares. Atravessou a cozinha, deixando um redemoinho de ar gelado à sua passagem, e gritou para o cão ficar ali. Moveu-se
pela casa com a velocidade e a segurança de um homem que sabe precisamente aonde está indo.
Finalmente, irrompeu na sala belamente decorada onde a esposa se entregava à sua paixão pela costura de colchas de retalhos.
- Você sabia disto? - ele indagou. Mary ergueu os olhos, assustada. Podia ouvir a intensidade de sua respiração, do outro lado da sala.
- Disto o quê, Brodie? - perguntou. Ela estava casada com uma força da natureza havia tempo suficiente para não se espantar com uma entrada dramática.
- Foi você que me convenceu a isto. - Ele se jogou numa poltrona baixa, lutando para ajeitar as pernas. - "É o que ela quer, Brodie. Ela jamais o perdoará
se você ficar no caminho dela. Você seguiu seus sonhos, Brodie. Deixe-a seguir os dela." Foi o que você disse. Então, foi o que fiz. Contrariando o que achava certo,
eu disse que iria apoiá-la. Financiar seu maldito diploma. Ficar de boca fechada sobre a maldita perda de tempo que é tudo isso. Parar de lembrá-la que são pouquíssimos
os artistas que conseguem se sustentar com essa bobajada indulgente. Não enquanto estão vivos, pelo menos. - Ele bateu o punho fechado no braço da poltrona.
Mary continuou a enfiar a agulha no tecido e sorriu.
- Você fez isso mesmo, Brodie. E estou orgulhosa de você.
- E olhe só aonde isso nos levou. Olhe só o que realmente está acontecendo!
- Brodie, não tenho ideia do que está falando. Você poderia explicar? E não se esqueça da sua pressão.
Ela tinha o dom de provocá-lo gentilmente e demovê-lo de suas posturas tão extremas. Mas, naquele dia, não estava dando certo. A irritação de Brodie estava no auge,
e seria necessária mais que uma dose de racionalidade amável para fazê-lo voltar a seu humor normal.
- Saí com Sinclair. Fomos verificar as trilhas para a caçada na sexta-feira.
- E como estavam as trilhas?
- Ótimas. Sempre ótimas. Ele é um bom caseiro. Mas não é essa a questão, Mary. - Sua voz se elevou novamente, incompatível com o ambiente aconchegante, cheio
de tecidos nas prateleiras.
- Claro que não, Brodie. Percebi isso. Qual é exatamente a questão?
- Aquele maldito do Fergus Sinclair. Eu disse ao Sinclair. No verão passado, quando seu maldito filho estava farejando atrás da Cat. Eu disse a ele para manter
o garoto longe da minha filha, e achei que ele tivesse me ouvido. E agora, isto! - Sacudiu as mãos como se estivesse jogando uma pilha de feno para o ar.
Mary finalmente abaixou seu trabalho.
- Qual é o problema, Brodie? O que aconteceu?
- É o que vai acontecer. Você se lembra de como respiramos aliviados quando ele se matriculou no maldito curso de administração de propriedades
em Edimburgo? Bem, acontece que essa não era sua única opção. Ele simplesmente aceitou uma vaga na Universidade de Londres. Vai estar na mesma droga de cidade que
a nossa filha. Vai ficar em cima dela o tempo todo, como uma sarna. Maldito caipira oportunista. - Fechou a cara e socou novamente a poltrona. - Vou acabar com a
raça dele, você vai ver.
Para espanto dele, Mary desandou a rir em sua mesinha de trabalho, com lágrimas cintilando nos cantos dos olhos.
- Ai, Brodie - ela ofegou. - Nem consigo lhe dizer como isso é engraçado.
- Engraçado? - ele berrou. - Aquele garoto dos infernos vai arruinar a vida de Cat e você acha engraçado?
Mary se levantou de um salto e cruzou a sala até o marido. Ignorando seus protestos, sentou-se no colo dele e passou os dedos por seu cabelo grosso.
- Está tudo bem, Brodie. Tudo ficará bem.
- Não vejo como. - Ele se afastou da mão dela.
- Durante a última semana, eu e a Cat tentávamos arranjar uma forma de lhe contar.
- Contar o quê, mulher?
- Ela não vai para Londres, Brodie.
Ele se endireitou, quase derrubando Mary no chão.
- O que você quer dizer com não vai para Londres? Ela vai desistir dessa idiotice? Virá trabalhar comigo?
Mary suspirou.
- Não Seja bobo. Você sabe, no fundo do seu coração, que ela está fazendo o que deveria fazer. Não, ela recebeu a oferta de uma bolsa de estudos. É uma combinação
de formação acadêmica e trabalho em uma fábrica de vidro artístico. Brodie, é simplesmente a melhor escola do mundo. E eles querem a nossa Catriona.
Por um longo momento, ele se permitiu ficar dividido entre o orgulho e o medo.
- E onde é isso? - disse, por fim.
- Não é muito longe, Brodie. - Mary passou as costas da mão pelo rosto dele. - É na Suécia.
- Suécia? Na maldita Suécia? Por Deus, Mary. Suécia?
- Você fala como se fosse o fim do mundo. Pode-se voar para lá de Edimburgo, sabe? Leva menos de duas horas. Sinceramente, Brodie. Escute o que está dizendo.
Isso é maravilhoso. É o melhor começo possível para ela. E você não terá de se preocupar com o fato de Fergus estar no mesmo lugar. Não é provável que ele apareça
numa cidadezinha perdida entre Estocolmo e Uppsala, é?
Grant passou os braços em volta da esposa e descansou o queixo sobre sua cabeça.
- Só você mesmo para encontrar o lado bom disso. - Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. - Com certeza, isso irá colocar o maldito do Fergus Sinclair
no lugar dele.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
- Então o senhor também discutia com Cat a respeito de namorados? - Bel perguntou. - Era com relação a todos eles, ou apenas no caso de Fergus Sinclair?
- Ela não teve tantos namorados assim. Estava concentrada demais no trabalho. Saiu durante alguns meses com um dos escultores da fábrica de vidro. Eu o encontrei
algumas vezes. Sueco, mas mesmo assim um rapaz bastante sensato. Eu podia ver que ela não estava levando muito a sério; então não havia necessidade de discutirmos
sobre ele. Mas Fergus Sinclair era outra história. - Ele contornou a mesa, e sua raiva era óbvia.
- A polícia nunca o considerou suspeito, mas questionei, na época, se ele poderia estar por trás do que aconteceu com Cat e Adam. Ele, logicamente, não havia
aceitado, quando ela finalmente rompeu os laços entre eles. E não aceitava que ela não o reconhecesse como pai de Adam. Na época, pensei que era possível que ele
tivesse feito justiça com as próprias mãos. Embora fosse difícil imaginar que tivesse inteligência para armar algo tão complicado.
- Mas Cat continuou o relacionamento com Fergus, depois de ir para a Suécia?
Subitamente o cansaço pareceu dominá-lo, e Grant se deixou cair na poltrona, de frente para Bel.
- Eles eram muito próximos. Haviam brincado juntos quando crianças. Eu deveria ter colocado um ponto final naquilo, mas nunca passou pela minha cabeça que
se transformaria em alguma coisa. Eles eram muito diferentes. Cat, com sua arte, e Sinclair, sem outra ambição a não ser a de seguir os passos do pai e ser caseiro.
Classes sociais diferentes, aspirações diferentes. A única coisa que os aproximava era o fato de a vida os ter colocado no mesmo lugar. Portanto, sim, quando ela
voltava, nas férias, e ele estava por perto, eles se juntavam novamente. Ela não fazia segredo sobre isso, ainda que soubesse minha opinião a respeito de Sinclair.
Eu continuava com a esperança de que ela conhecesse alguém que fosse digno dela, mas isso nunca aconteceu. Ela continuava voltando para Sinclair.
- E, apesar disso, o senhor não despediu o pai dele. Não o retirou da propriedade.
Grant pareceu chocado.
- Meu Deus, claro que não. Você tem ideia de como é difícil encontrar um caseiro tão bom quanto Willie Sinclair? Você poderia entrevistar cem homens antes
de encontrar alguém com os instintos que ele tem sobre pássaros e sobre as terras. E também é um sujeito decente. Ele sabia que o filho não estava à altura de Cat.
Sentia vergonha por não conseguir impedir que Fergus andasse atrás dela. Queria proibi-lo de frequentar a casa deles, mas sua esposa não permitiu. - Ele deu de ombros.
- Não posso culpá-la. As mulheres são sempre moles com os filhos.
Bel tentou ocultar sua surpresa. Ela havia presumido que Grant não respeitaria qualquer limite para que tudo fosse como ele queria, no que dizia respeito à filha.
Aparentemente, ele era mais complexo do que ela havia imaginado.
- O que aconteceu quando ela voltou da Suécia?
Grant esfregou o rosto com as mãos.
- Não foi nada agradável. Ela queria se mudar. Montar um estúdio onde pudesse trabalhar e vender suas coisas, um lugar onde também houvesse um espaço separado
para ela morar. Ela estava de olho numas propriedades nas minhas terras. Eu disse que o preço da minha ajuda era que ela parasse de se encontrar com Sinclair. -
Pela primeira vez, Bel viu tristeza se infiltrando através da raiva fervilhante. - Foi burrice da minha parte. Mary disse isso, na época, e ela estava com a razão.
As duas ficaram
furiosas comigo, mas eu não quis ceder. Então, Cat seguiu seu próprio caminho. Ela entrou em contato com a corretora da propriedade rural de Wemyss e alugou um imóvel
deles. Uma velha casa, próxima à entrada da propriedade, juntamente com o que havia sido um depósito de lenha, entrando pela estrada principal. Perfeito para atrair
a clientela. Área para estacionamento na frente dos antigos portões, um estúdio e espaço para exposição, além de dependências para ela morar, por trás dos muros.
Toda a privacidade que ela poderia desejar. E todo mundo ficou sabendo que Catriona Maclennan Grant fora morar em Wemyss só para contrariar seu velho pai.
- Se ela dependia do senhor, como é que pôde pagar por tudo isso? - perguntou Bel.
- A mãe dela equipou o estúdio, pagou o aluguel referente ao primeiro ano e encheu a despensa de Cat até ela começar a vender suas peças. - Ele não conseguiu
evitar um sorriso. - O que não demorou muito. Ela era boa, sabe? Muito boa. E a mãe cuidou que todos os seus amigos fossem até lá para comprar presentes de casamento
e de aniversário. Nunca fiquei tão bravo com Mary quanto naquela época. Estava ultrajado. Sentia-me frustrado e desrespeitado, e a situação só piorou quando o desgraçado
do Sinclair voltou da universidade e retornou de onde havia parado.
- Eles moravam juntos?
- Não. Cat tinha bom-senso o bastante para não fazer isso. Agora eu olho para trás e, às vezes, penso que ela só continuava se encontrando com ele para me
irritar. Não durou muito, depois que ela abriu o estúdio. Estava praticamente terminado cerca de um ano e meio antes que... que ela morresse.
Bel fez as contas mentalmente e concluiu que havia algo errado.
- Mas Adam só tinha seis meses quando eles foram sequestrados. Então, como Fergus Sinclair podia ser o pai, se ele se separou de Cat um ano e meio antes?
Grant suspirou.
- De acordo com Mary, não foi um rompimento definitivo. Cat ficava repetindo para Sinclair que tudo havia terminado, mas ele não queria aceitar. Hoje em dia,
isso se chama assédio. Parece que ele vivia aparecendo com aquela cara de cão sem dono, e Cat nem sempre tinha forças para
mandá-lo embora. E daí, ela ficou grávida. - Ele olhou para o chão. - Sempre imaginei como seria ser avô. Ver a família continuar. Mas, quando Cat nos contou, tudo
o que senti foi raiva. Aquele filho da puta do Sinclair havia arruinado o futuro dela. Ele a sobrecarregou com seu bebê, destruiu suas chances de ter a carreira
que ela havia sonhado. A única coisa boa que ela fez foi se recusar a manter qualquer contato com ele. Não quis reconhecê-lo como pai da criança, não queria vê-lo
nem falar com ele. Deixou muito claro que, daquela vez, estava realmente tudo acabado entre eles.
- Como ele reagiu a isso?
- Mais uma vez, eu soube indiretamente. Dessa vez por Willie Sinclair. Ele disse que o garoto estava devastado. Mas só o que me importava era que ele finalmente
tivesse entendido o recado de que nunca faria parte da nossa família. Willie aconselhou-o a manter distância de Cat e, pela primeira vez na vida, ele ouviu. Em poucas
semanas, arranjou um emprego na Áustria para trabalhar numa propriedade de caça perto de Salzburg. Desde então ele trabalha na Europa.
- E hoje? O senhor ainda acha que ele pode ter sido responsável pelo que aconteceu?
Grant fez uma careta.
- Se é para ser honesto, não. Acho que não. Não creio que ele tivesse inteligência suficiente para criar um plano tão complicado. Tenho certeza de que ele
adoraria ter colocado as mãos no filho e ao mesmo tempo se vingar de Cat, mas é muito mais provável que tenham sido alguns filhos da puta com motivos políticos que
pensaram que seria muito inteligente me fazer financiar sua revolução. - Fatigado, ele se levantou. - Agora estou cansado. A polícia virá amanhã de manhã e teremos
que repassar tudo. Nós a veremos no jantar, Srta. Richmond.
Ele saiu da sala, deixando Bel cheia de coisas a considerar. E anotar. Quando Brodie Grant dissera que falaria com ela, não havia imaginado, nem por um minuto, que
ele lhe entregaria esse precioso filão de informações. Ela teria de pensar com muito cuidado em como apresentá-lo à mídia mundial. Um passo em falso e sabia que
a mina seria fechada. Agora que tivera um gostinho do que jazia adiante, isso era, definitivamente, a última coisa que ela queria.
Glenrothes
Novo em Folha olhava fixamente para a tela do computador, como se fosse um artefato alienígena, quando Karen voltou a seu escritório.
- O que você tem aí para mim? - ela perguntou. -Já conseguiu ras-trear os cinco fura-greves?
- Nenhum deles tem registro criminal - ele disse.
- E?
- Eu não sabia onde mais procurar.
Karen revirou os olhos. Sua convicção de que Novo em Folha havia sido imposto a ela por Biscoito como uma forma de sabotagem se intensificava a cada dia.
- Google. Registro eleitoral. O site 192.com. Registro de carteiras de habilitação. Comece por aí, Jason. E depois marque para mim uma visita, em terreno,
com o responsável pela preservação de cavernas. É melhor deixar o dia de amanhã livre; veja se você consegue que ele me receba no sábado cedo.
- Nós geralmente não trabalhamos aos sábados - disse Novo em Folha.
- Você é que está dizendo - Karen murmurou, lembrando-se de pedir a Phil que fosse com ela. A insistência da lei escocesa na corroboração para todo tipo de
prova fazia com que ficasse difícil dar uma de justiceiro solitário.
Ela despertou seu computador da hibernação e rastreou as informações de contato de seu equivalente em Nottingham. Para seu alívio, o inspetor Des Mottram estava
em sua mesa e foi receptivo a seu pedido.
- Acho provável que seja um beco sem saída, mas é algo que precisa ser verificado - ela disse.
- E não lhe atrai nem um pouco uma viagem até Costa dei Trent - ele disse, com uma resignação divertida na voz.
- Não é isso. Tive um caso importantíssimo reaberto hoje e não tenho como desperdiçar pessoas com algo que, provavelmente, não nos trará qualquer avanço,
exceto num caminho negativo.
- Não se preocupe. Eu sei como é isso. Hoje é seu dia de sorte, Karen. Teremos dois novos assistentes no Departamento de Investigação Criminal na segunda-feira
e isso é exatamente o tipo de coisa que posso usar para treiná-los. Nada muito complicado, não exige muita manha.
Karen passou para ele os nomes dos homens.
- Um dos meus rapazes está procurando pelos últimos endereços conhecidos. Assim que ele achar alguma coisa, pedirei que lhe mande um e-mail. - Mais alguns
detalhes e ela terminou. Bem naquele instante, Phil Parhatka voltou a entrar na sala, com um enrolado de bacon que transmitiu uma mensagem diretamente para os centros
de prazer do cérebro de Karen. - Hummm - ela gemeu. - Deus, isto está com um cheiro delicioso.
- Se eu soubesse que você havia voltado, teria lhe trazido um. Bom, vamos dividir esse.
Ele pegou uma faca em sua gaveta e cortou o enrolado na metade, espirrando molho de tomate nos dedos. Passou a ela sua metade e, então, lambeu os dedos. O que mais,
pensou Karen, uma mulher poderia querer de um homem?
- O que o Biscoito queria? - perguntou Phil.
Karen deu uma mordida no enrolado e falou com a boca cheia da massa adocicada com bacon salgado.
- Novos desdobramentos no caso Catriona Maclennan Grant.
- É mesmo? O que aconteceu?
Karen sorriu.
- Não sei. O Rei Brodie não se preocupou em dizer ao Biscoito. Só disse a ele para me mandar lá amanhã de manhã. Então, preciso me atualizar rapidinho. Já
mandei buscar os arquivos, mas vou checar on-line primeiro. Olhe só... - Ela o puxou para um lado. - O assunto Mick Prentice. Preciso falar com alguém no sábado
e é óbvio que o Novo em Folha não trabalha aos sábados. Existe alguma chance de eu convencer você a ir comigo?
- Ir aonde?
- Às cavernas de Wemyss.
- Sério? - Phil se animou. - Poderemos passar para o outro lado das grades?
- Imagino que sim - disse Karen. - Não sabia que você se interessava por cavernas.
- Karen, eu já fui garoto um dia.
Ela revirou os olhos.
- Isso é bem verdade.
- Além disso, as cavernas têm coisas realmente legais. Inscrições e desenhos pictos. Entalhes da Idade do Ferro. Gosto da ideia de ser um
esquilo-agente-secreto e poder dar uma espiada nas coisas que geralmente não podem ser vistas. Claro que irei com você. Você já fez os registros do
caso?
Karen pareceu envergonhada.
- Quero ver aonde vai dar. Foi uma época difícil por aqui. Se alguma coisa ruim aconteceu a Mick Prentice, quero ir até o fundo. E você sabe como a mídia
está sempre se metendo no que fazemos no setor de Casos Arquivados. Tenho a sensação de que esse é um caso em que temos mais chance de descobrir o que aconteceu
se mantivermos segredo por um tempo.
Phil terminou seu enrolado e limpou a boca com as costas da mão.
- Parece justo. Você é a chefe. Só se assegure de que o Biscoito não possa usar isso contra você.
- Vou tomar cuidado. Escute, você está ocupado agora?
Ele atirou o saco de papel vazio na lixeira com uma jogada por cima da cabeça, comemorando quando acertou.
- Nada que eu não possa adiar.
- Veja o que você consegue descobrir sobre um cara chamado Andy Kerr. Ele era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores durante a greve. Morava num
sítio no meio do bosque de Wemyss. Estava de licença médica, com depressão, na época em que Mick desapareceu. Dizem que deu fim à própria vida, mas nunca encontraram
o corpo.
Phil assentiu.
- Verei o que consigo descobrir.
Enquanto ele voltava à própria mesa, Karen procurava Catriona Maclennan Grant no Google. O primeiro resultado a levou a uma publicação em formato de jornal, de dois
anos antes, marcando o vigésimo aniversário da morte da jovem escultora. Depois de ler três parágrafos, Karen sentiu um golpe no meio de seu peito. "É incrível como
são poucas as pessoas que se dispõem a falar sobre este caso", ela leu. "O pai de Cat Grant jamais falou com a imprensa sobre o que aconteceu. Sua mãe se matou dois
anos após a morte da filha. Seu ex-namorado, Fergus Sinclair, se recusa a dar entrevistas. E o policial encarregado do caso também está fora do nosso alcance, já
que ele mesmo cumpre pena por assassinato."
- Ai, Jesus - ela gemeu. Nem sequer tinha visto o arquivo do caso e aquela já estava se transformando numa missão dos infernos.
Kirkcaldy
Já passava das dez quando Karen entrou em casa com um pacote de arquivos e uma porção de peixe para o jantar. A ideia de que estava brincando de casinha nunca a
tinha abandonado. Talvez tivesse algo a ver com a casa em si, uma caixa pré-fabricada num empreendimento imobiliário popular de 1960, no norte de Kirkcaldy. O tipo
de lugar no qual as pessoas começavam a vida, aferrando-se à esperança de que não a terminariam ali. Um subúrbio com baixos índices de criminalidade, onde se podia
deixar as crianças brincar na rua, desde que não se morasse em uma das estradas. Acidentes de trânsito, e não sequestros, eram o que os pais mais temiam por ali.
Karen nunca se lembrava ao certo por que havia comprado a casa, embora, na época, tivesse parecido uma boa ideia. Suspeitava que o apelo estivera no fato de ela
vir completamente mobiliada, provavelmente por alguém que havia tirado a ideia de um programa de TV sobre decoração. Comprara a mobília junto com a casa, até mesmo
os quadros nas paredes. Não ligava para o fato de não ter sido ela a escolher as coisas entre as quais vivia. De qualquer maneira, era o tipo de coisa que ela provavelmente
teria escolhido, e aquilo lhe havia economizado o trabalho de passar um domingo numa loja da IKEA. E ninguém podia negar que era um milhão de vezes mais agradável
do que a confusão floral desbotada em que viviam seus pais. Sua mãe continuava esperando que ela se tornasse como todo mundo, mas isso não iria acontecer. Quando
tinha um fim de semana livre, Karen não desejava nada além de um prato de carne e legumes com curry com os amigos e passar um bom tempo estirada no sofá, assistindo
a jogos de futebol e a filmes antigos. Nada de arrumar a casa.
Ela colocou tudo sobre a mesa de jantar e foi à procura de um prato e talheres. Ainda conservava alguns padrões, pelo amor de Deus. Atirou o casaco sobre uma cadeira
e sentou-se com a refeição, abrindo um dos arquivos para ler enquanto comia. Ela já havia estudado os arquivos do caso Grant antes e tomado nota das perguntas para
as quais queria respostas. Agora, finalmente, tinha a chance de analisar o material que Phil compilara para ela.
Como havia esperado, o relatório de pessoa desaparecida original não poderia estar mais incompleto. Naquela época, o desaparecimento de um homem adulto, solteiro
e sem filhos, com histórico de depressão clínica, não teria muita atenção da polícia. Não tinha nada a ver com o fato de que a greve dos mineiros houvesse sobrecarregado
a força policial até o limite, e tudo a ver com o fato de que, naquele tempo, pessoas desaparecidas não eram prioridade. A não ser que fossem crianças pequenas ou
mulheres jovens e atraentes. Mesmo nos dias atuais, somente os problemas clínicos de Andy Kerr teriam garantido um leve interesse.
Seu desaparecimento havia sido informado por sua irmã, Angie, na véspera do Natal. Ele não aparecera na casa dos pais para a tradicional comemoração em família.
Angie, em casa de férias do curso de pedagogia, havia deixado alguns recados na secretária eletrônica dele na semana anterior, tentando marcar um encontro para um
drinque. Andy não respondera, mas aquilo não era incomum. Ele sempre fora dedicado ao trabalho, mas, desde que a greve havia começado, tornara-se um verdadeiro workaholic.
Então, na tarde da véspera de Natal, a Sra. Kerr admitira que Andy estava de licença por depressão. Angie convenceu o pai a levá-la de carro até o sítio de Andy,
no bosque de Wemyss. O lugar estava frio e deserto, sem qualquer comida fresca na geladeira. Havia um bilhete encostado no açucareiro sobre a mesa da cozinha. Incrivelmente,
o bilhete havia sido embalado e incluído no arquivo. Se você estiver lendo isto, provavelmente é porque está preocupado comigo. Não fique. Já aguentei o suficiente.
É uma coisa depois da outra, e não suporto mais. Fui embora para tentar colocar a cabeça no lugar. Andy.
Não era exatamente um bilhete de suicídio, mas, se você encontrasse um corpo ao lado de uma mensagem dessas, não esperaria que fosse uma vítima de assassinato. E
a irmã dissera que Andy gostava de fazer caminhada pela montanha. Ela podia entender por que o oficial que investigara o sítio e o bosque ao redor houvesse recomendado
que não se tomassem outras medidas além de fazer a informação circular entre as demais forças da Escócia. Uma anotação no arquivo, escrito com caligrafia diferente,
atestava que Angie Kerr havia entrado com um pedido para que seu irmão fosse declarado legalmente morto em 1992 e que o pedido fora concedido.
A última página estava na caligrafia familiar de Phil. "Os pais de Kerr morreram no desastre de balsa de Zeebrugge, em 1987. Angie não poderia reclamar sua herança
enquanto Andy não fosse declarado morto. Quando ela, finalmente, conseguiu legitimar a sucessão, em 1993, vendeu tudo e emigrou para a Nova Zelândia. Ela ensina
piano em Nelson, em South Island; trabalha em casa." Seguiam o endereço completo e o número de telefone de Angie Kerr.
Ela havia sofrido bastante com tudo aquilo, pensou Karen. Perder o irmão e os pais no espaço de alguns anos já era duro, e ainda por cima ter de passar pelo processo
de obter a declaração de morte legal para Andy. Não era de admirar que ela tivesse desejado se mudar para o outro lado do mundo. Onde, ela notou, seriam onze e meia
da manhã. Uma hora perfeitamente civilizada para se ligar para alguém.
Uma das poucas coisas que Karen havia comprado para sua casa era uma secretária eletrônica que lhe permitia gravar digitalmente as ligações telefônicas, que ela,
então, podia transferir via conexão USB para seu computador. Tentara convencer Biscoito a comprar algumas para o escritório, mas ele não se interessava. Provavelmente
porque não tinha sido ideia dele. Karen podia apostar que, muito em breve, algo parecido surgiria no escritório principal do Departamento de Investigação Criminal,
uma invenção do próprio subchefe Lees. Tudo bem. Pelo menos ela podia usar o sistema em casa e pedir ressarcimento pelas ligações.
Uma mulher atendeu no terceiro toque, o sotaque escocês evidente até mesmo nas duas sílabas de "Alô?".
Karen se apresentou e, então, disse:
- É Angie Kerr?
- Antes era Kerr. Agora é Mackenzie. É a respeito do meu irmão? Vocês o encontraram? - Ela parecia ansiosa, quase satisfeita.
- Não. Infelizmente, não.
- Ele não se matou, sabe? Sempre achei que sofreu um acidente. Caiu de alguma montanha, em algum lugar. Por mais deprimido que estivesse, Andy jamais se mataria.
Ele não era covarde. - O tom de desafio era claro em sua voz.
- Sinto muito - disse Karen. - Realmente não tenho respostas para você. Mas estamos examinando novamente os fatos da época em que ele
desapareceu. Estamos investigando o desaparecimento de Mick Prentice, e o nome do seu irmão veio à tona.
- Mick Prentice. - Angie parecia enojada. - Que belo amigo ele se revelou.
- O que você quer dizer?
- Não acho que seja coincidência que ele tenha fugido da greve justamente antes de Andy partir.
- Por que você diz isso?
Uma pausa curta, então Angie continuou:
- Porque seria o pior tipo de traição. Aqueles caras eram amigos desde o primeiro dia de escola. O fato de Mick ter furado a greve arrasaria Andy. E eu acho
que ele previu que isso aconteceria.
- O que a faz dizer isso?
- A última vez que o vi, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo com Mick.
Domingo, 2 de dezembro de 1984; Bosque de Wemyss
Nenhuma visita à casa de sua família seria completa, para Angie, se não passasse algum tempo com o irmão. Ela tentava vir pelo menos uma vez por semestre, mas, embora
a viagem de ônibus de Edimburgo levasse apenas uma hora, às vezes parecia demais para suportar. Ela sabia que o problema era o diferente tipo de distância que estava
crescendo entre ela e os pais, conforme se movimentava com maior liberdade num universo que era estranho para eles: palestras, sociedades estudantis, festas nas
quais as drogas eram tão comuns quanto um drinque, e uma gama de assuntos que ultrapassava tudo que ela já houvesse encontrado em Fife. Não que não existissem oportunidades
para ampliar os horizontes intelectuais por lá. Mas as salas de leitura, os cursos da WEA e os Bums Clubs eram para os homens. As mulheres nunca tiveram acesso nem
tempo para eles. Os homens cumpriam seus turnos no subterrâneo e, depois, seu tempo era só deles. Mas o trabalho das mulheres nunca terminava de verdade, principalmente
para aquelas cujos senhorios eram as antigas empresas carboníferas ou a comissão nacional do carvão. A própria avó de Angie não tivera água quente corrente nem um
banheiro em sua casa até já ter mais de sessenta
anos. Portanto, os homens não se sentiam facilmente atraídos por mulheres com formação escolar.
Andy era uma exceção. Sua mudança da frente mineira para o trabalho no sindicato o havia exposto às políticas igualitárias aspiradas pelo movimento sindicalista.
Ainda que não existissem mulheres trabalhando nas minas, o contato com outros sindicatos havia convencido Andy de que o mundo não acabaria se as mulheres fossem
tratadas como companheiras igualitárias da raça humana. E, assim, irmão e irmã tornaram-se mais próximos, substituindo as brigas da infância por discussões legítimas.
Agora, Angie esperava com ansiedade pelas tardes de domingo passadas com o irmão, passeando pelo bosque ou segurando canecas de chocolate quente diante da lareira.
Naquela tarde, Andy a esperara na parada de ônibus no final da estrada que descia até seu sítio, adentrando o bosque. Eles haviam planejado contornar o bosque e
caminhar até a orla, mas o céu ameaçava chuva, então optaram por voltar ao sítio.
- Acendi a lareira para a sua chegada - Andy dissera quando começaram a caminhada. - Me sinto culpado por ter dinheiro para o carvão, então, geralmente, não
a acendo. Simplesmente visto mais um suéter.
- Isso é uma tolice. Ninguém o culpa por ainda receber um salário.
Andy balançou a cabeça.
- É aí que você se engana. Tem um monte de gente que acha que deveríamos devolver nosso salário para o fundo do sindicato.
- E a quem isso beneficia? Você está fazendo um trabalho. Está apoiando os homens em greve. Merece ser remunerado. - Ela passou o braço pelo de Andy, compreendendo
como ele devia estar se sentindo acuado.
- Pois é, e muitos dos grevistas acham que também deveriam receber alguma coisa do sindicato. Ouvi alguns deles, lá no Serviço Social, dizendo que, se o sindicato
estivesse pagando salário-greve, não teriam que estar trabalhando tanto para manter os fundos a salvo das mãos dos confiscadores. Eles questionam para que servem
os fundos do sindicato se não é para ajudar seus membros quando há uma greve. - Ele suspirou, a cabeça baixa como se estivesse caminhando contra um vento forte.
- E eles têm razão, sabe?
- Imagino que sim. Mas se você delega a tomada de decisões a seus líderes, que foi o que eles fizeram ao concordar com a greve sem uma votação
nacional, então não pode começar a reclamar quando eles tomam decisões com as quais você não concorda muito. - Angie olhou atentamente para o irmão, observando como
as linhas de tensão ao redor de seus olhos haviam se aprofundado, desde a última vez que o vira. Sua pele parecia pálida e pouco saudável, como a de um homem que
viesse passando tempo demais em ambientes fechados e sem suplementos vitamínicos. - E se você se deixar intimidar a esse respeito, não ajudará a ninguém.
- Não sinto que esteja sendo de muita ajuda no momento - ele disse, tão baixinho que a fala quase se perdeu no ruído das folhas mortas sob seus pés.
- Isso é uma bobagem - Angie protestou, sabendo que não era suficiente, mas sem saber o que mais poderia dizer.
- Não, é a verdade. A vida dos homens que eu represento está desmoronando. Eles estão perdendo a casa porque não conseguem pagar a hipoteca. A esposa já vendeu
o anel de casamento. Os filhos vão para a escola com fome. Têm furos nos sapatos. Aqui mais parece um maldito país de Terceiro Mundo, só que não temos nenhuma instituição
de caridade arrecadando dinheiro para nos ajudar com nosso desastre. E não posso fazer nada a respeito. Como você acha que me sinto com isso?
- Bem mal - disse Angie, agarrando seu braço com mais força. Não havia resistência; era como abraçar o protetor estofado contra correntes de ar que sua mãe
usava para manter a sala o mais abafada possível. - Mas você pode fazer apenas o melhor que conseguir. Ninguém espera que você solucione todos os problemas da greve.
- Eu sei - ele suspirou. - Mas me sentia parte desta comunidade. Pertenci a ela minha vida inteira. Agora, parece que os caras em greve estão num lado da
cerca e todos os demais estão no outro. Funcionários do sindicato, auxiliares das minas, gerentes, a porra do governo Toiy... somos todos inimigos.
- Agora é que você está realmente dizendo bobagens. De jeito nenhum estamos no mesmo lado que os Tories. Todo mundo sabe disso. - Eles caminharam em silêncio,
apressando o passo quando a promessa de chuva se tornou realidade. Caiu torrencialmente em gotas frias e duras. Os galhos nus acima de sua cabeça ofereciam pouca
proteção contra o aguaceiro penetrante. Angie soltou o braço dele e começou a correr. - Vamos apostar uma corrida? - ela disse, animada, de alguma forma, pelo aguaceiro
gelado.
Não olhou para verificar se ele a estava seguindo. Apenas correu de forma desordenada em meio às árvores, seguindo a trilha sinuosa. Como sempre, emergir na clareira
onde o sítio se incrustava era incrivelmente repentino. A casa aparecia como algo saído dos contos dos Irmãos Grimm, uma construção baixa sem qualquer outro charme
além do seu isolamento. O teto de ardósia, o estuque cinza, a porta e as janelas pretas levariam qualquer criança que passasse por ali a identificá-la como a casa
da bruxa malvada. Um alpendre de madeira abrigava um recipiente para carvão, uma pilha de madeira e a motocicleta com sidecar de Andy.
Angie correu até a varanda e se virou, ofegante. Não havia sinal de Andy. Alguns minutos se passaram antes que ele surgisse entre as árvores, caminhando com dificuldade,
o cabelo castanho-claro grudado à cabeça. Angie sentiu-se murchar diante do fracasso de sua tentativa de animá-lo um pouco. Ele não disse nada ao entrar primeiro
na casa, tão organizada e espartana quanto um quartel. A única decoração era uma série de pôsteres de animais selvagens que haviam sido dados como brinde junto com
um dos jornais dominicais escoceses. Um conjunto de prateleiras estava lotado de livros sobre história natural e política; outro, de LPs. Não poderia ser mais diferente
dos quartos que ela frequentava em Edimburgo, mas Angie gostava mais dali do que de qualquer um deles. Ela sacudiu a cabeça como um cachorro para tirar as gotas
de chuva do cabelo louro-escuro, atirou o casaco sobre uma cadeira e se encolheu em uma das poltronas de segunda mão que estavam ao lado da lareira. Andy foi direto
até a cozinha para preparar o chocolate quente.
Enquanto esperava que ele se juntasse a ela, Angie tentava imaginar uma forma de animá-lo. Geralmente, ela o fazia rir com as histórias de seus colegas da universidade
e suas travessuras, mas sentia que isso não iria funcionar naquele dia. Iriam parecer histórias insensíveis sobre os privilegiados. Talvez a solução fosse lembrá-lo
das pessoas que ainda acreditavam nele.
Ele voltou com duas canecas fumegantes numa bandeja. Geralmente, eles comiam biscoitos, mas qualquer coisa que cheirasse a luxo estava fora do cardápio daquele dia.
- Tenho doado a maior parte do meu salário para o fundo de emergência - ele disse, percebendo que ela havia notado. - Só guardo o suficiente para o aluguel
e as coisas básicas.
Sentaram-se de frente um para o outro, aferrando-se à bebida quente para deixar que o calor penetrasse em suas mãos geladas. Angie falou primeiro.
- Você não deveria dar atenção a eles. As pessoas que realmente o conhecem não acham que você seja um dos inimigos. Você deveria ouvir gente como Mick, que
sabe quem você é. O que você é.
- Você acha mesmo? - Sua boca se retorceu numa expressão amargurada. - Como é que pessoas da laia de Mick podem saber quem eu sou, se nem sequer sabem mais
quem elas mesmas são?
- O que você quer dizer com não saber mais quem é Mick? Vocês são amigos há mais de vinte anos. Não acredito que a greve tenha mudado nenhum de vocês tanto
assim.
- É o que se poderia pensar, não? - Andy olhou fixamente para o fogo com os olhos embotados e os ombros caídos. - Os homens daqui... não é comum a gente conversar
sobre nossos sentimentos. Vivemos nesta atmosfera de camaradagem, lealdade e dependência mútua, mas nunca falamos sobre o que acontece dentro da gente. Mas eu e
o Mick, nós não éramos assim. Costumávamos contar tudo um ao outro. Não havia nada sobre o que não pudéssemos conversar. - Ele afastou o cabelo molhado da testa
alta e estreita. - Mas, ultimamente, algo mudou. Sinto que ele está escondendo alguma coisa. Parece que há alguma questão realmente importante sobre a qual ele não
consegue se obrigar a falar.
- Mas pode ser qualquer coisa - disse Angie. - Algo entre ele e Jenny, talvez. Algo que não seria certo discutir com você.
Andy fungou.
- Você acha que ele não fala sobre Jenny? Eu sei tudo sobre aquele casamento, pode acreditar. Poderia desenhar um mapa das falhas geológicas entre aqueles
dois. Não, não é Jenny. A única coisa que posso pensar é que ele concorda com os outros. Que ache que eu não esteja servindo de nada para eles, no momento.
- Tem certeza de que não é sua imaginação? Isso não parece coisa do Mick.
- Bem que eu gostaria. Mas não é imaginação. Nem mesmo meu melhor amigo acha que eu mereça confiança. Só não sei quanto tempo conseguirei fazer meu trabalho,
me sentindo deste jeito.
Angie começou a se preocupar de verdade. O desespero de Andy estava claramente além de qualquer coisa com a qual ela soubesse lidar.
- Andy, não me leve a mal, mas você precisa ir ao médico.
Ele emitiu um som que parecia o de uma risada sufocada antes mesmo de se formar.
- Quem? O Dr. Aspirina e o Dr. Melhorai, os gêmeos analgésicos? Você acha que estou perdendo o juízo? Acha que esses dois saberiam o que fazer a respeito,
se eu estivesse mesmo? Acha que preciso de temazepam, como a porra da metade das mulheres daqui? Pílulas da felicidade, para fazer com que nada mais importe?
- Eu quero ajudar você, Andy. E não tenho competência para isso. Você precisa conversar com alguém que saiba o que fazer, e os médicos são um bom começo.
Até mesmo o Aspirina e o Melhoral sabem mais do que eu sobre depressão. Acho que você está deprimido, Andy. Uma depressão clínica mesmo, e não apenas tristeza.
Ele pareceu que ia chorar.
- Sabe o que é o pior de tudo isso que você acabou de falar? Que eu acho que você pode ter razão.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Kirkcaldy
Parecia plausível. Andy Kerr havia sentido que Mick Prentice escondia alguma coisa dele. Quando pareceu que Mick havia se unido aos fura-greves e ido para Nottingham,
deve ter sido o suficiente para empurrar alguém já fragilizado para o abismo. Mas aparentemente Mick Prentice, afinal, não havia ido para Nottingham. A questão,
pensou Karen, era se Andy Kerr sabia o que realmente havia acontecido com seu melhor amigo. E se ele estava envolvido no desaparecimento dele.
- E você nunca mais falou com Andy, depois daquele domingo? - ela perguntou.
- Não. Tentei telefonar para ele algumas vezes, mas só caía na secretária eletrônica. Eu não tinha telefone onde estava morando, então ele não tinha como
me ligar de volta. Minha mãe me disse que o médico lhe dera uma licença do trabalho, por causa da depressão, mas isso foi tudo que eu soube.
- Você acha que é possível que ele e Mick tenham ido a algum lugar juntos?
- O quê? Você quer dizer que tenham dado as costas para todo mundo e ido em direção ao pôr do sol, como Butch Cassidy e Sundance Kid?
Karen recuou.
- Não exatamente assim. Mas como se os dois tivessem se fartado e não conseguissem ver outra saída. Não há dúvida de que Andy estava com problemas. E você
sugeriu que Mick e Jenny também não estavam se entendendo. Talvez eles tenham se decidido por um rompimento limpo.
Ela podia ouvir Angie respirando, no outro lado do mundo.
- Andy não faria isso conosco. Ele jamais teria nos magoado dessa forma.
- Mick poderia tê-lo convencido? Você disse que eles eram amigos desde a escola. Quem era o líder? Quem era o seguidor? Sempre há um que lidera e outro que
segue. Você sabe disso, Angie. Mick era o líder? - Ninguém conseguia ser mais insistente do que Karen, quando estava inspirada.
- Acho que sim. Mick era o extrovertido, Andy era muito mais quieto. Mas eles formavam uma dupla. Estavam sempre metidos em problemas, mas não de forma negativa.
Não com a polícia. Apenas enrolados na escola. Eles sabotavam as experiências de química com fogos de artifício. Grudavam a tampa da mesa da professora. Andy era
bom com as palavras, e Mick era artístico, então eles imprimiam pôsteres com anúncios falsos da escola. Ou Mick falsificava bilhetes dos professores, dando aos dois
permissão para sair das aulas de que eles não gostavam. Ou bagunçavam a biblioteca, trocando as capas dos livros. Eu teria um ataque de nervos se tivesse alunos
como eles. Mas eles amadureceram. Na época da greve, os dois já estavam assentados na vida. - Havia mais do que um toque de pesar em sua voz. - Portanto, sim, teoricamente,
Mick poderia ter convencido Andy a dar no pé. Mas não teria sido por muito tempo. Eles teriam voltado. Não poderiam ficar longe. Tinham raízes profundas demais.
- Você cortou as suas - Karen observou.
- Eu me apaixonei por um neozelandês, e minha família inteira estava morta - Angie disse, simplesmente. - Eu não estava deixando para trás ninguém para chorar
por mim.
- É justo. Podemos voltar para o Mick? Você disse que Andy sugerira que havia problemas no casamento dele.
- Ela o obrigou a casar, sabe? Andy sempre achou que ela ficara grávida de propósito. Ela deveria estar tomando pílula, mas, incrivelmente, não funcionou
e, em seguida, Misha estava a caminho. Ela sabia que Mick vinha de uma família decente, o tipo de gente que não foge das responsabilidades. Então, é claro que ele
se casou com ela.
Havia um toque de amargura em seu tom de voz que fez Karen se perguntar se ela havia sido apaixonada por Mick Prentice antes que seu neozelandês aparecesse.
- Não foi o melhor dos começos, então.
- No início, eles pareciam bem felizes. - A admissão rancorosa de Angie custou a vir. - Mick a tratava como uma princesinha, e ela se aproveitava disso. Mas
não gostou nada quando chegaram os tempos difíceis. Achei, na época, que ela o havia forçado a furar a greve porque tinha se cansado de viver na miséria.
- Mas ela sofreu muito, depois que ele foi embora - disse Karen. - Foi um estigma terrível ser a esposa de um fura-greve. Ela não teria permitido que ele
a deixasse enfrentar aquilo sozinha.
Angie emitiu um ruído de desdém.
- Ela não tinha ideia de como seria, até que aconteceu. Ela não entendia. Não era das nossas, sabe? As pessoas falam da classe trabalhadora como se fosse
um bolo só, mas as linhas demarcatórias são tão bem definidas quanto em qualquer outra classe. Ela nasceu e foi criada em East Wemyss, mas não era uma de nós. Seu
pai não sujava as mãos. Ele trabalhava na cooperativa. Ficava atrás de um balcão de loja. Vestia camisa e gravata para trabalhar. Aposto que ele nunca votou no Partido
Trabalhista na vida. Então, não tenho certeza de que ela entendesse bem o que iria acontecer com ela, se Mick entrasse em greve.
Fazia sentido. Karen compreendia visceralmente o que Angie estava dizendo. Ela conhecia pessoas assim em sua própria comunidade. Pessoas que não se encaixavam em
lugar algum, que tinham a bunda calejada de tanto ficarem sentadas em cima do muro. Acrescentava peso à ideia de que Mick Prentice poderia ter fugido da greve. Exceto
pelo fato de ele não ter feito isso.
- O negócio, Angie, é que parece que Mick não fugiu da greve, naquela noite. Nossos inquéritos preliminares indicam que ele não se uniu àqueles cinco homens
que foram para Nottingham.
Um silêncio chocado. Então, Angie disse:
- Ele poderia ter ido para outro lugar, sozinho.
- Ele não tinha dinheiro. Nem um meio de transporte. Não levou nada consigo quando saiu naquela manhã, além de seu material de pintura. Seja o que for que
aconteceu com ele, não acho que ele tenha fugido da greve.
- Então, o que aconteceu com ele?
- Ainda não sei - disse Karen. - Mas planejo descobrir. E esta é a pergunta que preciso começar a fazer: vamos supor que Mick não tenha furado a greve. Quem
poderia ter motivos para querê-lo fora do caminho?
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Nottingham
Femi Otitoju digitou o quarto endereço no Google Earth e estudou o resultado.
- Vamos, Fem - resmungou Mark Hall. - O inspetor-chefe está de olho na gente. Ele está se perguntando que diabo você está fazendo, brincando com o computador,
depois de ele ter nos mandado numa missão.
- Estou calculando a ordem mais eficiente para fazer as entrevistas, assim não teremos que perder a metade do dia voltando aos lugares. - Ela olhou para os
quatro nomes e endereços fornecidos por um detetive de Fife e os numerou de acordo com sua lógica. - E eu já falei: não me chame de Fem. - Ela imprimiu a lista e
a dobrou com esmero, guardando-a em sua impecável bolsa de mão. - Meu nome é Femi.
Mark girou os olhos e a seguiu, saindo do escritório de Revisão de Casos Arquivados, lançando um sorriso nervoso para o inspetor-chefe Mottram no caminho. Ele havia
esperado ansiosamente por sua transferência para o Departamento de Investigações Criminais, mas, se tivesse sido avisado de que isso significaria trabalhar com Femi
Otitoju, ele poderia ter reconsiderado a questão. O comentário na delegacia, quando ambos ainda usavam uniformes, era que, no caso de Otitoju, a sigla AP (agente
policial) queria dizer Além da Perfeição. Seu uniforme sempre fora imaculado e os sapatos, lustrados no padrão militar. Suas roupas civis seguiam o mesmo estilo:
um discreto
terninho cinza impecavelmente passado, camisa de um branco ofuscante, cabelo impecável. E sapatos mais polidos que um espelho. Tudo que ela fazia era dentro das
regras;
tudo era preciso. Não que Mark tivesse algo contra as coisas serem feitas adequadamente. Mas ele sempre acreditara que havia espaço para a espontaneidade, principalmente
numa entrevista. Se a pessoa com quem você estivesse falando saísse pela tangente, não havia mal algum em segui-la por um tempo. Às vezes, era entre as tangentes
que a verdade estava oculta.
- Então, esses quatro eram mineiros de Fife que furaram a greve para vir trabalhar nas minas daqui? - ele perguntou.
- Exatamente. Originalmente, havia cinco, mas um deles, Stuart McAdam, morreu há dois anos, de câncer de pulmão.
Como é que ela se lembrava daquelas coisas? E por que se importava em memorizá-las?
- E quem você vai ver primeiro?
- William John Fraser. Conhecido como Billy. Cinquenta e três anos, casado, dois filhos adultos, um na Universidade de Leeds, o outro em Loughborough. Ele
é eletricista autônomo agora. - Ela pendurou a bolsa no ombro. - Eu dirijo; sei aonde estamos indo.
Saíram para o estacionamento descoberto atrás da delegacia e se dirigiram para um carro sem identificação de uso comum do DIC (Departamento de Investigação Criminal).
Mark sabia que o carro estaria cheio de lixo deixado por outros policiais. Conforme descobria, o DIC e os carros eram como cães e postes.
- Ele não vai estar no trabalho agora?
Ele abriu a porta do passageiro e constatou que o assoalho do carro estava coberto de embalagens de sanduíches, latas de Coca-Cola vazias e cinco papéis de chocolate
Snickers. Algo branco esvoaçou no canto de sua visão periférica. Otitoju sacudia uma sacolinha plástica vazia.
- Tome - ela disse. - Enfie o lixo aqui para eu jogar na lixeira.
Mark pensou que, afinal, ela servia para alguma coisa. Seguiram pela
estrada principal, ainda movimentada mesmo depois da hora do rush matinal, e foram na direção oeste. A estrada era margeada por casas de tijolos vermelhos sujos
e pelo tipo de comércio que mal conseguia sobreviver, devido às opções mais sofisticadas em outros lugares. Lojas de conveniência,
salões de manicure, lojas de ferramentas, lavanderias, lanchonetes de fast-food e cabeleireiros. Era deprimente passar por ali. Mark ficou agradecido por seu apartamento
no centro da cidade, em uma fábrica de rendas que fora reformada. Podia ser pequeno, mas ele não tinha de lidar com essa pobreza em sua vida pessoal. E havia um
excelente restaurante chinês bem na esquina, que entregava em domicílio.
Quinze minutos percorrendo a estrada que contornava a cidade e eles viraram para um enclave de casinhas geminadas. Pareciam ter sido construídas na década de 1930;
sólidas, despretensiosas e de boa proporção. A casa de Billy Fraser ficava num terreno de esquina, com um jardim considerável e bem cuidado.
- Morei nesta cidade a vida toda e nem sequer sabia que este lugar existia - comentou Mark.
Ele seguiu Otitoju pela entrada da casa. A porta foi aberta por uma mulher que não podia ter mais de um metro e cinquenta de altura. Tinha a aparência de alguém
que já perdera sua melhor forma: mechas grisalhas no chanel castanho-claro, o queixo começando a ficar flácido, e alguns quilos a mais do que o ideal. Mark achou
que ela até que estava bem para a idade. Sua abordagem foi direta, antes que Otitoju tivesse a chance de assustá-la.
- Sra. Fraser?
A mulher assentiu, parecendo ansiosa.
- Sim, sou eu. - Sotaque local, notou Mark. Então, ele não havia trazido uma esposa de Fife. - E vocês são...?
- Sou Mark Hall, e esta é minha colega, Femi Otitoju. Somos policiais e precisamos conversar com Billy. Não é nada para se preocupar - acrescentou rapidamente,
ao ver o olhar de pânico no rosto da Sra. Fraser. - Uma pessoa que ele conhecia, lá em Fife, foi dada como desaparecida, e nós precisamos fazer algumas perguntas
a Billy.
A mulher balançou a cabeça.
- Você vai perder seu tempo, meu bem. Billy não manteve contato com ninguém de Fife a não ser os rapazes que vieram com ele para cá. E isso já faz mais de
vinte anos.
- O homem no qual estamos interessados desapareceu há mais de vinte anos - Otitoju disse, asperamente. - Então, precisamos falar com seu marido. Ele está
em casa?
Mark sentiu vontade de chutá-la, ao ver o rosto da Sra. Fraser se fechar para eles. Otitoju, definitivamente, não havia entrado na fila da simpatia.
- Ele está no trabalho.
- Você poderia nos dizer onde ele está trabalhando, minha flor? - perguntou Mark, tentando recuperar o rumo da conversa.
Ele quase podia enxergar o debate mental no rosto da mulher.
- Espere um pouco - ela disse, enfim. Voltou com uma agenda grande aberta na página daquele dia. Virou-a para que ele a olhasse. - Aqui está.
Otitoju já estava anotando o endereço em sua preciosa folha de papel. A Sra. Fraser viu os nomes.
- Vocês estão com sorte - ela disse. - Johnny Ferguson está trabalhando com ele hoje. Vocês poderão matar dois coelhos com uma cajadada só. - Pela expressão
em seu rosto, ela não estava muito convencida de que fosse apenas uma metáfora.
Os dois ex-mineiros estavam trabalhando a apenas cinco minutos de carro dali, reformando uma loja na rua principal.
- De casa de espetinhos de carne a oficina de molduras de quadros num passe de mágica - disse Mark, lendo as placas.
Fraser e Ferguson trabalhavam duro. Fraser abria um canal para passar os fios elétricos enquanto Ferguson derrubava o banco que havia em uma das paredes para facilitar
os clientes que compravam para viagem. Ambos pararam o que estavam fazendo quando os dois policiais entraram, olhando-os cautelosamente. Era engraçado, pensou Mark,
como algumas pessoas sempre reconheciam policiais instantaneamente, ao passo que outras pareciam ignorar quaisquer sinais que ele e seus colegas pudessem emitir.
Não tinha nada a ver com ser culpado ou inocente, como ele havia pensado, ingenuamente, no começo. Era só um instinto para identificar o caçador.
Otitoju os apresentou e explicou por que estavam ali. Fraser e Ferguson pareceram confusos.
- Por que alguém pensaria que ele veio conosco? - perguntou Ferguson.
- Mais objetivamente, por que alguém pensaria que nós o traríamos?
- Billy Fraser passou as costas da mão pela boca, num gesto de repulsa. -
Mick Prentice achava que nós estávamos abaixo dele. Mesmo antes de nós furarmos a greve, ele desprezava a gente. Achava que era melhor do que nós.
- Por que ele pensaria isso? - Mark perguntou.
Fraser tirou um maço de Bensons do bolso do macacão. Antes que ele pudesse pegar um cigarro, Otitoju já havia colocado a mão macia sobre a aspereza da dele.
- Isso agora é contra a lei, Sr. Fraser. Este é um local de trabalho. O senhor não pode fumar aqui.
- Ah, puta que pariu - Fraser reclamou, virando-se enquanto enfiava os cigarros de volta no bolso.
- Por que Mick Prentice achava que era melhor do que vocês? - Mark perguntou novamente.
Ferguson aceitou o desafio.
- Alguns homens entraram em greve porque o sindicato mandou que fizessem isso. E outros porque estavam convencidos de sua razão e de que sabiam o que era
melhor para o restante de nós. Mick Prentice era um dos que achavam que sabiam mais do que os outros.
- Isso - Fraser concordou, com amargura. - E ele tinha seus amigos do sindicato para cuidarem dele. - Ele esfregou o polegar e o indicador no gesto universal
que representava dinheiro.
- Não entendo - disse Mark. - Sinto muito, companheiro, sou jovem demais para me lembrar da greve. Mas achei que um dos maiores problemas era que vocês não
recebiam salário-greve.
- Você está certo, filho - disse Fraser. - Mas, por algum tempo, os rapazes que participavam dos piquetes móveis recebiam dinheiro vivo. Então, quando havia
qualquer necessidade de ir aos piquetes, eram sempre os mesmos que recebiam autorização. E se você não servisse para aquilo, não havia nada mais para você. Acontece
que o Mick servia mais do que a maioria. Seu melhor amigo era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores, percebe?
- Era mais difícil para uns do que para outros - acrescentou Ferguson. - Imagino que o amiguinho de Prentice lhe dava uma graninha ou um pacote de comida
quando terminava o dinheiro dos piquetes. A maioria de nós não tinha tanta sorte. Portanto, não, Mick Prentice não veio conosco. E Billy tem razão. Nós não o teríamos
aceitado, se ele tivesse pedido para vir.
Otitoju andava pela sala, vistoriando o trabalho deles como se fosse uma inspetora de obras.
- No dia em que vocês partiram... Vocês chegaram a ver Mick Prentice?
Os dois homens trocaram um olhar que pareceu furtivo para Mark. Ferguson, rapidamente, sacudiu a cabeça.
- Mais ou menos - ele disse.
- Como é possível ver alguém "mais ou menos"? - Otitoju inquiriu, virando-se na direção deles.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984
Johnny Ferguson estava no escuro, na janela do quarto, de onde podia ver a estrada principal que atravessava o vilarejo. O quarto não estava frio, mas ele tiritava
um pouco, e a mão que segurava o cigarro enrolado tremia, recortando a elevação suave da fumaça.
- Vamos, Stuart - ele resmungou a meia-voz. Deu outra tragada no cigarro e olhou novamente para o relógio barato em seu pulso. Dez minutos de atraso. Seu
pé direito começou, involuntariamente, a tamborilar no chão.
Nada se movia. Ainda não eram nove horas, mas quase não havia luz. As pessoas não tinham dinheiro para pagar a eletricidade. Elas iam até o Serviço Social para usufruir
um pouco de luz e de aquecimento, ou iam para a cama, esperando dormir o suficiente para que o pesadelo tivesse terminado quando despertassem. Pela primeira vez,
entretanto, o silêncio das ruas não incomodou Ferguson. Quanto menos pessoas testemunhassem o que aconteceria naquela noite, melhor. Ele sabia exatamente o que estava
prestes a fazer, e estava morrendo de medo.
De repente, viu um par de faróis virando a esquina da Main Street. Contra as luzes fracas da rua, Ferguson pôde definir a silhueta de uma van Transit. Modelo antigo,
não o novo, que a polícia usava para transportar as tropas em suas operações contra os mineiros. Conforme a van se aproximou, ele pôde ver que era de cor escura.
Finalmente, Stuart havia chegado.
Ferguson apagou o cigarro. Deu uma última olhada no quarto em que havia dormido nos últimos três anos, desde que alugara aquela casinha minúscula. Estava escuro
demais para ver muita coisa, mas, também, ali
não havia muito o que ver. O que não podia ser vendido tinha sido quebrado para usar como lenha. Agora só havia o colchão no assoalho com um cinzeiro e um livro
rasgado de Sven Hassel ao lado. Nada que se arrependeria de abandonar. Helen já partira havia muito tempo, então, ele podia muito bem dar as costas para aquele bando
de desgraçados.
Desceu ruidosamente as escadas até o andar de baixo e abriu a porta bem no instante em que Stuart ia bater.
- Preparado? - perguntou-lhe Stuart.
Um suspiro profundo:
- Mais preparado, impossível.
Ele empurrou uma bolsa de viagem com o pé na direção de Stuart, agarrou a outra e apanhou também um saco preto de lixo. Dez anos de merda trabalhando na mina de
carvão e aquilo era tudo que tinha.
Deram dois passos, dos quatro que os conduziriam até a van e, de repente, já não estavam mais sozinhos. Uma figura virou a esquina, apressadamente, como alguém que
estivesse numa missão. Alguns metros mais perto, e a forma se definiu como Mick Prentice. Ferguson sentiu como se uma gelada mão lhe apertasse o peito. Era só o
que faltava! Prentice vir atacá-los, gritando insultos e fazendo com que todas as portas da rua se abrissem.
Stuart jogou a bolsa na traseira da van, onde Billy Fraser já estava acomodado sobre uma pilha de sacolas. Ele se virou para encarar Prentice, pronto para agir,
se fosse necessário.
Mas a raiva que tinham esperado que chovesse sobre eles não veio. Em vez disso, Prentice apenas ficou ali parado, parecendo prestes a romper em lágrimas. Olhou para
eles e balançou a cabeça.
- Não, rapazes. Não. Não façam isso - disse.
Ele continuou repetindo aquilo. Ferguson mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que os atormentava, convocando-os e incitando-os para que continuassem
leais ao sindicato. Isso era, pensou ele, uma amostra de como aquela greve os havia derrotado.
Ferguson passou por Prentice, guardou suas bolsas no carro e sentou-se ao lado de Fraser, que puxou as portas para fechá-las atrás dele.
- Inacreditável, porra - disse Fraser.
- Parece que ele acabou de levar um soco no estômago - disse Ferguson. - O cara pirou de vez.
- Dê graças a Deus - disse Fraser. - A última coisa de que precisávamos era que ele explodisse como uma porra de um foguete e fizesse a casa cair para a gente.
- Ele ergueu a voz quando o motor deu a partida. - Vamos, Stu. A vida nova começa agora.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007
- Houve alguma testemunha desse encontro? - perguntou Otitoju.
- Stuart já morreu, então sou a única testemunha que resta - Fraser disse. - Eu estava na van. A porta traseira estava aberta e eu vi tudo. Johnny tem razão:
Prentice parecia devastado. Como se o que estávamos fazendo fosse uma afronta pessoal.
- Poderia ter sido bem diferente se, em vez de você na van, estivesse o Iain - disse Ferguson.
- Por que isso teria feito diferença? - perguntou Mark.
- Iain e ele eram amigos. Prentice talvez sentisse a necessidade de ten tar convencê-lo a mudar de ideia. Mas Iain foi o último a ser apanhado, então achei
que havíamos nos livrado de uma boa. E essa foi a última vez que vimos Prentice - disse Ferguson. - Ainda tenho família por lá. Ouvi dizer que ele tinha dado no
pé, mas supus que ele houvesse ido com aquele amigo dele, o cara do sindicato. Não consigo me lembrar do nome dele...
- Andy alguma coisa - disse Fraser. - Isso mesmo, quando você me disse que os dois estavam na lista de desaparecidos, pensei que tivessem decidido dar o fora
e começar do zero em outro lugar. Vocês têm que entender, a vida das pessoas estava se desfazendo, naquela época. Os homens faziam coisas que jamais imaginaríamos
que fossem capazes. - Ele se virou, caminhou até a porta e saiu, tirando os cigarros do bolso.
- Ele está certo - disse Ferguson. - E, na maioria das vezes, não queríamos pensar muito a respeito. Pensando bem, ainda não queremos. Portanto, a não ser
que haja mais alguma coisa, desejamos a vocês um bom dia. - Ele apanhou o pé de cabra e voltou à sua tarefa.
Incapaz de pensar em mais perguntas, Mark se dirigiu para a porta. Otitoju hesitou um instante, antes de segui-lo até o carro. Ficaram sentados em silêncio por um
momento e, então, Mark disse:
- Deve ter sido horrível.
- Não justifica o desrespeito deles pela lei - disse Otitoju. - A greve dos mineiros provocou um distanciamento entre nós e as pessoas a quem servimos. Eles
nos fizeram parecer brutais, apesar de termos sido provocados. Dizem que até a rainha ficou chocada com a batalha de Orgreave, mas o que as pessoas esperavam? Supostamente,
devemos manter a paz. Se as pessoas não consentem em ser policiadas, o que mais podemos fazer?
Mark a encarou.
- Você me assusta - ele disse.
Ela pareceu surpresa.
- Às vezes me pergunto se você está no trabalho certo - ela retrucou.
Mark olhou para longe.
- Então somos dois, minha flor.
Castelo de Rotheswell
A despeito de sua determinação de lidar com Sir Broderick Maclennan Grant exatamente da mesma forma como lidaria com qualquer outra pessoa, Karen tinha de admitir
que seu estômago não estava colaborando. A ansiedade sempre havia afetado seu sistema digestivo, tirando-lhe o apetite e obrigando-a a fazer visitas urgentes ao
banheiro.
- Se eu tivesse que fazer mais entrevistas assim, não precisaria me preocupar com dieta - disse, quando ela e Phil partiram em direção ao Castelo de Rotheswell.
- Ach, andam valorizando demais as dietas - disse Phil, da confortável posição de um homem cujo peso não se alterara desde que completara dezoito anos, independentemente
do que comesse ou bebesse. - Você está bem assim.
Karen queria acreditar nele, mas não conseguia. Ninguém acharia atraente sua figura gorducha, a não ser que estivesse muito mais necessitado de companhia feminina
do que Phil.
- Ah, sei.
Ela abriu sua maleta e revisou os pontos principais do arquivo do caso, para o bem de Phil. Mal havia chegado ao final de seu resumo quando viraram para tomar a
entrada de Rotheswell. Para além dos galhos secos de um grupo de árvores, podiam avistar o castelo, mas, antes de se aproximarem
mais, sua identidade precisava ser verificada. Tiveram de sair do carro e mostrar a credencial para a câmera do circuito fechado de televisão. Então, os sólidos
portões de madeira se abriram, permitindo que o carro chegasse a uma espécie de antecâmara de segurança. Phil foi dirigindo, enquanto Karen caminhava ao lado do
carro. Os portões de madeira se fecharam atrás deles, deixando-os presos num tipo de curral gigante. Dois guardas saíram de uma guarita e revistaram o exterior e
o interior do carro, a maleta de Karen e os bolsos do casaco esportivo de Phil.
- Ele tem um sistema de segurança melhor que o do primeiro-ministro - disse Karen, quando finalmente puderam seguir de carro até o castelo.
- É mais fácil conseguir um primeiro-ministro novo do que outro Brodie Grant - disse Phil. - De qualquer forma, aposto que é isso que ele pensa.
Ao se aproximarem da casa, um senhor de idade, vestindo um casaco impermeável e um quepe de lã, contornou a torre mais próxima e acenou para que eles seguissem até
o extremo do pátio de cascalho, em frente à casa. Quando eles finalmente estacionaram, ele já havia desaparecido, sem deixar-lhes outra opção senão a de se aproximar
das imensas portas de madeira com tachas de ferro, no centro da fachada.
- Onde está o Mel Gibson quando precisamos dele? - Karen resmungou, levantando uma aldrava pesada de ferro e deixando-a cair com um estrondo considerável.
- Parece um filme ruim.
- E nós ainda nem sabemos por que estamos aqui. - Phil parecia aborrecido. - Difícil entender o que poderia justificar tamanha preparação.
Antes que Karen pudesse responder, a porta se abriu, girando em dobradiças silenciosas. Uma mulher, que lembrara sua professora do primário, disse:
- Bem-vindos a Rotheswell. Sou Susan Charleson, assistente pessoal de Sir Broderick. Entrem.
Eles entraram em um saguão onde, não fosse pela grandiosa escadaria, poderia caber a casa inteira de Karen. Antes que pudessem observar mais do que as cores intensas
e a atmosfera de aconchego, eles foram impelidos a seguir por um amplo corredor, por uma curta distância.
- Suponho que seja a inspetora Pirie - disse Susan Charleson. - Mas não estou a par do nome e do posto do seu colega.
- Sargento detetive Phil Parhatka - ele disse, com toda a pompa de que era capaz diante da formalidade dela.
- Ótimo, agora posso apresentá-los - ela disse, dando um passo para o lado e abrindo uma porta.
Ela acenou para que entrassem em uma sala onde o DIC poderia facilmente realizar seu Bums' Supper* anual. Teriam de empurrar alguns dos móveis para junto das paredes,
só para abrir espaço para as danças tradicionais, mas, ainda assim, não ficariam muito apertados.
Havia três pessoas na sala, mas Karen instantaneamente se concentrou naquela que irradiava carisma. Brodie Grant podia já ter passado dos setenta anos, mas ainda
tinha mais glamour que as duas mulheres que o rodeavam. Ele estava próximo à notável cornija de pedra entalhada da lareira, com a mão esquerda sob o cotovelo direito
e a mão direita segurando casualmente um charuto fino; o rosto estava tão imóvel e impressionante quanto na capa de revista que ela havia encontrado, ao buscar por
imagens dele no Google. Vestia um paletó de tweed cinza e branco cujo caimento sugeria ser de caxemira e seda, em vez do tradicional Harris and Donegal, uma camiseta
polo preta, calça combinando e aquele tipo de sapatos que Karen somente havia visto nos pés de americanos ricos. Ela achava que se chamavam sapatos oxford ou algo
parecido. Assemelhavam-se a alguma coisa que se veria num boneco escocês com traje típico, e não num capitão da indústria. Ela estava tão ocupada observando seus
sapatos estranhos que quase perdeu as apresentações.
Ergueu os olhos a tempo de captar o levíssimo esboço de sorriso nos lábios de Lady Grant, elegante em um terninho de mescla de lã com o clássico colarinho aveludado
que, por alguma razão, Karen sempre associava a dinheiro e classe. O sorriso, porém, parecia estranhamente cúmplice.
Susan Charleson apresentou a outra mulher.
- Esta é Annabel Richmond, uma jornalista freelancer.
Agora, cautelosa, Karen assentiu, expressando reconhecimento. Que diabos fazia uma jornalista ali? Se havia uma coisa que Karen sabia a respeito de Brodie Grant
era que ele era tão alérgico à mídia que poderia entrar em choque anafilático a qualquer momento na presença de alguém da imprensa.
* O aniversário do poeta Robert Bums é comemorado em toda a Escócia com um jantar escocês tradicional, acompanhado por leituras de obras e canções de Bums, no dia 25 de janeiro. (N.T.)
Brodie Grant deu um passo à frente e indicou, com um ondular de seu charuto, que eles deveriam se sentar num sofá, a quilômetros de distância da lareira. Karen se
sentou na beirada, ciente de que aquele era o tipo de sofá que a engoliria, impossibilitando uma saída que não fosse extremamente desastrada.
- A Srta. Richmond está aqui a meu pedido, por dois motivos - disse Grant. - O primeiro deles explicarei em breve. O outro é que ela vai atuar como uma ligação
entre a mídia e a família. Não concederei entrevistas coletivas nem farei apelos sentimentais pela televisão. Ela é, portanto, a primeira a ser procurada se vocês
estiverem atrás de alguma coisa para alimentar os répteis.
Karen inclinou a cabeça.
- Essa é uma prerrogativa sua - ela disse, tentando soar como se estivesse fazendo uma concessão, por pura bondade. Qualquer coisa que lhe garantisse recuperar
um pouco do controle. - O Sr. Lees me comunicou que o senhor acredita que tenham surgido novas provas no que se refere ao sequestro de sua filha e neto. Correto?
- São novas provas, sim. Disso não resta dúvida. Susan?
Ele olhou para a assistente, com expectativa. Suficientemente esperta para antecipar-se às exigências do chefe, ela já avançava na direção deles com uma folha de
compensado de madeira, coberta por um plástico. Ao se aproximar, virou-a de frente para Karen e Phil.
Karen sentiu um lampejo de decepção.
- Esta não é a primeira vez que vemos algo assim - ela disse, estudando a impressão monocromática de um titereiro com suas marionetes sinistras. - Deparci-me
com três ou quatro exemplares, nos arquivos.
- Cinco, na verdade - disse Grant. - Mas nenhum como este. Todos os anteriores foram desconsiderados porque divergiam de alguma maneira dos originais. As
reproduções que o inspetor-chefe Lawson distribuiu para a mídia, na época, foram alteradas sutilmente para que pudéssemos eliminar quaisquer imitadores. Todos os
que apareceram desde então eram cópias das versões alteradas.
- E esta aqui é diferente? - perguntou Karen.
Grant assentiu.
- Exatamente, inspetora. É idêntica em todos os aspectos. Estou ciente de que a recompensa que ofereci seja uma tentação para certas pessoas.
Mantive minha própria cópia do original para que pudesse comparar com qualquer coisa que me fosse trazida diretamente. Como esta. - Ele deu um sorriso cansado. -
Não que eu precise de uma cópia. Jamais me esquecerei de nenhum detalhe. A primeira vez que pus os olhos nesta imagem, ela ficou gravada na minha memória.
Sábado, 19 de janeiro de 1985
Mary Grant serviu uma segunda xícara de café ao marido antes que ele percebesse que havia terminado a primeira. Ela vinha fazendo aquilo havia tantos anos que ainda
o surpreendia o fato de sua xícara precisar ser enchida tantas vezes, quando se hospedava em hotéis. Ele virou a página de seu jornal e resmungou.
- Enfim, uma notícia boa. Lord Wolfenden libertou-se do invólucro mortal.
A expressão de Mary era mais de resignação cansada do que de choque.
- Que coisa horrível de se dizer, Brodie.
Sem levantar os olhos, ele continuou:
- O homem fez do mundo um lugar pior, Mary. Portanto, não fico triste por ele ter partido.
Anos de casamento haviam eliminado a maior parte da beligerância de Mary Grant. Mas, mesmo que ela houvesse pensado em dizer alguma coisa, não teria tido a oportunidade.
Para a surpresa de ambos, a porta da sala de café da manhã se abriu de repente, sem nenhuma batida prévia, e Susan Charleson entrou quase correndo. Brodie deixou
cair o jornal sobre os ovos mexidos, notando-lhe as bochechas rosadas e a respiração ofegante.
- Desculpem-me - ela balbuciou. - Mas o senhor precisa ver isto. - Ela empurrou um grande envelope de papel manilha na direção dele. Na frente, liam-se seu
nome e endereço e as palavras "particular" e "confidencial" escritas em hidrocor preto, acima e abaixo.
- Em nome de Deus, o que é isto que não pode esperar até depois do café? - ele perguntou, enfiando dois dedos sob a aba do envelope, revelando um papel grosso
dobrado em quatro.
- Isto - disse Susan, apontando para o envelope. - Coloquei de volta no envelope porque não quis que mais ninguém visse.
Com um resmungo de impaciência, Grant pegou o papel e o desdobrou. Parecia um pôster de propaganda de um show macabro de marionetes. Totalmente em preto e branco,
um titereiro se inclinava sobre o palco, manipulando um grupo de marionetes que incluíam um esqueleto e um bode. Lembrou-lhe aquele tipo de impressões que ele vira
uma vez, num programa da TV sobre a arte que Hitler odiava. Enquanto pensava isso, seus olhos examinaram a parte inferior do pôster. Onde se esperaria encontrar
detalhes sobre o show de marionetes havia uma mensagem muito diferente.
Seu capitalismo explorador e gerenciado está prestes a ser castigado.
Nós temos uma filha e um neto em nosso poder. Faça exatamente o que
mandarmos se quiser vê-los novamente. Nada de polícia. Apenas siga sua
vida normalmente. Estamos te observando. Entraremos em contato com você
em breve.
Pacto Anarquista da Escócia.
- É alguma brincadeira de mau gosto? - perguntou Grant, atirando-o sobre a mesa e empurrando a cadeira para trás. Quando ele se levantou, Mary apanhou o pôster
e, então, o deixou cair, como se tivesse queimado seus dedos.
- Ah, meu Deus - ela arfou. - Brodie?
- É um trote - ele disse. - Algum filho da puta doente está tentando nos assustar.
- Não - disse Susan. - Tem mais. Ela apanhou o envelope no chão e sacudiu-o pára que uma fotografia Polaroid caísse de dentro dele. Em silêncio, entregou-a
a Grant.
Ele viu sua única filha amarrada a uma cadeira. Um pedaço de fita adesiva cobria-lhe a boca. O cabelo estava despenteado e uma mancha de sujeira, ou um hematoma,
marcava-lhe a face esquerda. Entre ela e a câmera, uma mão enluvada segurava a primeira página do Daily Record do dia anterior para não deixar margem a dúvida. Ele
sentiu as pernas cederem e deixou-se cair na cadeira, as pálpebras tremendo enquanto tentava recuperar o autocontrole. Mary estendeu a mão pedindo a fotografia,
mas ele sacudiu a cabeça e segurou-a de encontro ao peito.
- Não - ele disse. - Não, Mary.
Houve um longo silêncio e, então, Susan disse:
- O que o senhor quer que eu faça?
Grant não conseguia articular as palavras. Não sabia o que estava pensando, o que estava sentindo nem o que queria dizer. Era uma experiência tão estranha e improvável
quanto usar drogas alucinógenas. Ele sempre estava no controle de si mesmo, assim como da maior parte do que acontecia ao seu redor. Sentir-se impotente era algo
que não lhe acontecia havia tanto tempo, que até se esquecera de como era lidar com aquilo.
- O senhor quer que eu telefone para o chefe de polícia? - perguntou Susan.
- Aqui fala para não fazer isso - disse Mary. - Não podemos colocar em risco a vida de Catriona e Adam.
- Ao diabo com isso - disse Grant, numa pálida aproximação à sua voz normal. - Não vou ser manipulado por um bando de anarquistas malditos. - Ele se forçou
a levantar, sua força de vontade superando o medo que já o devorava. - Susan, telefone para o chefe de polícia. Explique a situação. Diga a ele que quero o melhor
agente que tiver, que não se pareça com um policial. Quero que ele esteja no meu escritório dentro de uma hora. E, agora, vou para o escritório. Seguir com minha
vida normal, caso eles estejam realmente observando.
- Brodie, como você pode fazer isso? - Com o rosto lívido, Mary parecia chocada. - Temos que fazer o que eles mandarem.
- Não temos, não. Apenas temos que aparentar estar fazendo. - Agora, sua voz estava mais forte. Ter estabelecido os princípios básicos de um plano lhe dera
forças para se recuperar. Ele poderia lidar com o medo desde que pudesse se obrigar a acreditar que estava fazendo alguma coisa para resolver a situação. - Susan,
comece a tomar as providências. - Ele foi até Mary e lhe deu um tapinha no ombro. - Vai ficar tudo bem, Mary. Eu prometo.
Se ele não visse o rosto dela, não teria de lidar com suas dúvidas ou seu pavor. Já tinha o suficiente com que se preocupar, sem aquela carga extra.
Dysart, Fife
Outros homens teriam caminhado de um lado para o outro, esperando que a polícia chegasse. Brodie Grant nunca fora de desperdiçar energia em
atividades inúteis. Permaneceu sentado em sua cadeira no escritório, virada de costas para a escrivaninha, para que pudesse ver a vista espetacular por cima do estuário
do Forth até Berwick Law, Edimburgo e as montanhas Pentlands. Olhou por sobre a água cinzenta, ordenando seus pensamentos para evitar qualquer perda de tempo quando
a polícia chegasse. Ele detestava desperdiçar qualquer coisa, mesmo aquilo que podia ser facilmente reposto.
Susan, que o havia seguido para o trabalho na hora de costume, entrou pela porta que separava seu escritório do dele.
- A polícia está aqui - ela disse. - Devo fazê-los entrar?
Grant se virou em sua cadeira.
- Sim. Depois, deixe-nos a sós.
Ele notou o olhar de surpresa no rosto dela. Estava acostumada a participar de todos os seus segredos, a conhecer mais coisas do que Mary se daria ao trabalho de
saber. Mas, dessa vez, ele queria que o círculo fosse o menor possível. Até mesmo Susan seria demais.
Ela fez entrar dois homens vestidos com macacão de pintor e, então, fechou dramaticamente a porta atrás de si. Grant ficou satisfeito com o disfarce.
- Obrigado por terem vindo tão rápido. E tão discretamente - ele disse, observando os dois. Pareciam jovens demais para uma tarefa tão importante. O mais
velho, magro e moreno, tinha provavelmente uns trinta e poucos anos, e o outro, louro e avermelhado, uns vinte e tantos.
O moreno falou primeiro. Para surpresa de Grant, sua apresentação atingiu diretamente suas restrições.
- Sou o inspetor James Lawson - ele disse. - E este é o agente Rennie. Fomos instruídos pessoalmente pelo chefe de polícia. Sei que o senhor deve estar pensando
que sou muito novo para comandar uma operação como esta, mas fui escolhido devido à minha experiência. No ano passado, a esposa de um dos jogadores do time de futebol
East Fife foi sequestrada. Conseguimos resolver o assunto sem que ninguém se machucasse.
- Não me lembro de ter ouvido falar sobre isso - disse Grant.
- Fomos muito bem-sucedidos em manter segredo - disse Lawson, com o mais tênue sorriso de orgulho no rosto.
- Não houve julgamento? Como vocês conseguiram manter isso fora dos jornais?
Lawson deu de ombros.
- O sequestrador se confessou culpado. O caso estava resolvido e encerrado antes que a imprensa sequer percebesse. Somos bastante bons em lidar com a imprensa,
aqui em Fife. - De novo, um sorriso ligeiro. - Como pode ver, senhor, tenho uma experiência relevante.
Grant lançou-lhe um olhar demorado e avaliador.
- Fico satisfeito em saber disso. - Tirou uma pinça da gaveta e, delicadamente, deslocou a folha de papel que havia colocado por cima do pôster de resgate.
- Foi isto que chegou pelo correio, hoje de manhã. Acompanhado por isto... - Erguendo-a cuidadosamente pelas extremidades, ele virou a foto Polaroid.
Lawson se aproximou e os analisou atentamente.
- E o senhor tem certeza de que esta é sua filha?
Pela primeira vez, o autocontrole de Grant vacilou por uma fração de segundo.
- Você acha que não conheço minha própria filha?
- Não é isso, senhor. Mas, para que fique registrado, preciso ter certeza de que o senhor tem certeza absoluta.
- Tenho certeza.
- Neste caso, não há qualquer dúvida - disse Lawson. - Quando foi a última vez que o senhor viu ou falou com sua filha?
Grant fez um gesto de impaciência com a mão.
- Não sei. Suponho que a tenha visto pela última vez há umas duas semanas. Ela trouxe Adam para nos visitar. A mãe dela deve ter conversado com ela ou a visto
desde então. Você sabe como são as mulheres.
A culpa repentina que ele sentiu foi mais uma vibração lenta do que uma pontada. Ele não se arrependia de nada do que havia feito ou dito; só se arrependia de que
houvesse provocado uma ruptura entre ele e Cat.
- Falaremos com sua esposa - disse Lawson. - Será útil para nós termos uma ideia de quando isso aconteceu.
- Catriona é dona de seu próprio negócio. Creio que alguém perceberia, se sua galeria estivesse fechada. Deve haver centenas, milhares de pessoas que passam
de carro por ali todos os dias. Ela era bem escrupulosa com relação à placa de aberto e fechado. - Ele deu um sorriso rígido e frio.
- Ela é boa para negócios. - Puxou um bloco de anotações em sua direção e escreveu o endereço e as indicações de como chegar à galeria de Catriona.
- É claro - disse Lawson. - Mas achei que o senhor não quisesse que os seqüestradores soubessem que nos procurou.
Grant foi pego de surpresa por sua própria estupidez.
- Desculpe-me. Você tem razão. Não estou raciocinando direito. Eu...
- Esse é meu dever, não seu. - Havia gentileza no tom de voz de Lawson. - O senhor pode estar certo de que não faremos perguntas que levantem suspeitas. Se
não conseguirmos descobrir nada de forma aparentemente natural, deixaremos de lado. A segurança de Catriona e Adam está acima de tudo. Isso eu prometo ao senhor.
- É uma promessa que espero que cumpra. Agora, qual é o próximo passo? - Grant estava novamente no comando de si mesmo, porém desconcertado pelas emoções
que o desequilibravam.
- Colocaremos uma escuta e um rastreador em suas linhas telefônicas para o caso de eles tentarem entrar em contato com o senhor através do telefone. E vou
precisar que o senhor vá à casa de Catriona. É o que os seqüestradores esperariam. O senhor terá de ser os meus olhos dentro da casa. O senhor deverá registrar qualquer
coisa fora do lugar, qualquer coisa incomum. Terá de levar uma maleta ou algo assim para que, se por exemplo, houver duas canecas sobre a mesa, o senhor possa trazê-las
para nós. Também precisaremos de alguma coisa de Catriona para obtermos suas impressões digitais. Uma escova de cabelo seria ideal, pois teríamos também um pouco
de seu cabelo. - Lawson parecia ansioso.
Grant balançou a cabeça.
- Você terá que pedir à minha esposa para fazer isso. Não sou muito observador. - Não queria admitir que só havia cruzado a porta da casa da filha uma vez
e, mesmo assim, com relutância. - Ela ficará feliz por ter alguma coisa a fazer. Por se sentir útil.
- Muito bem, providenciaremos isso. - Lawson tocou o pôster com uma caneta. - Aparentemente esse é mais um ato político do que pessoal. E vamos verificar
informações a respeito de qualquer grupo que possa ter os recursos e a determinação para planejar algo assim. Preciso lhe perguntar, no entanto... o senhor teve
algum desentendimento com qualquer grupo de interesse específico? Uma organização que pudesse ter alguns caras mais exaltados em suas facções, capazes de achar que
era uma boa ideia fazer isso?
Grant já havia se perguntado aquilo enquanto esperava pela polícia.
- A única coisa em que posso pensar é um problema que tivemos há mais ou menos um ano com uma dessas organizações do tipo "salvem as baleias". Nós tínhamos
um empreendimento imobiliário em Black Isle que eles alegavam que afetaria de forma adversa o habitat de uns golfinhos no Moray Firth. Tudo bobagem, é claro. Eles
tentaram deter nosso pessoal da construção... aquela coisa de sempre, deitando-se em frente às retroescavadeiras. Um deles se machucou. Foi culpa de sua própria
estupidez, como disseram as autoridades. Mas foi apenas isso. Eles se foram, com o rabo entre as pernas, e nós continuamos com o empreendimento. E, a propósito,
os golfinhos estão perfeitamente bem.
Lawson ficou visivelmente animado com a informação de Grant.
- Mesmo assim, teremos que verificar essa possibilidade - ele disse.
- A Srta. Charleson tem todos os arquivos. Ela poderá lhes dizer o que vocês precisarem.
- Obrigado. Também preciso lhe perguntar se existe alguém que possa ter algum motivo de reclamação pessoal contra o senhor. Ou contra alguém de sua família.
Grant balançou a cabeça.
- Já incomodei muita gente nesta vida. Mas não consigo pensar em algo que tenha feito capaz de levar alguém a fazer isso. Certamente isto se relaciona com
dinheiro, não com ódio. Todo mundo sabe que sou um dos homens mais ricos da Escócia. Não é nenhum segredo. Para mim, esse é o motivo óbvio por trás disso. Alguns
filhos da puta tentando pôr as mãos no meu dinheiro suado. E eles acham que é dessa forma que irão conseguir.
- É possível - concordou Lawson.
- É mais do que possível. É o mais provável. E nem morto vou deixar que escapem ilesos dessa. Quero minha família de volta, e quero que eles voltem sem ter
de ceder um milímetro a esses desgraçados! - Grant bateu na mesa com a mão espalmada e os dois policiais deram um pulo com o estrondo repentino.
- É por isso que estamos aqui - disse Lawson. - Faremos tudo que for possível para obter o resultado que o senhor deseja.
Naquele momento, a confiança de Grant ainda estava intacta.
- Não espero nada menos do que isso - ele disse.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
Ao ouvir o relato de Grant sobre aquela primeira manhã depois de o mundo ter mudado, o que mais chamou a atenção de Karen foi a suposição, por parte de todos, de
que tudo tinha a ver com Brodie Grant. Ninguém parecia haver considerado que a pessoa que estava sendo punida não era Grant, e sim sua filha.
- Catriona tinha algum inimigo?
Grant olhou-a, com impaciência.
- Catriona? Como ela poderia ter inimigos? Era uma mãe solteira e uma artesã do vidro. Não levava o tipo de vida que gerasse animosidade pessoal. - Com um
suspiro, ele apertou os lábios.
Karen disse a si mesma que não deveria se intimidar com sua atitude.
- Desculpe-me. Eu me expressei mal. Deveria ter perguntado se o senhor sabe de alguém a quem ela houvesse desagradado.
Grant dirigiu-lhe um pequeno gesto de satisfação, como se ela houvesse passado num teste que nem sequer sabia existir.
- O pai de seu filho. Ele estava, de fato, bastante contrariado. Mas nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim, e os seus colegas da polícia nunca puderam
encontrar nenhuma prova que o conectasse ao crime.
- O senhor está se referindo a Fergus Sinclair? - Karen perguntou.
- E quem mais poderia ser? Pensei que você tivesse se atualizado com relação ao caso - cobrou Grant.
Karen começava a sentir pena de qualquer pessoa que fosse obrigada a suportar o alto nível de irritação de Brodie Grant. Desconfiava que não fosse reservada apenas
para ela.
- Só existe uma menção a Sinclair no arquivo - ela disse. - Nas anotações de uma entrevista com Lady Grant, Sinclair é mencionado como suposto pai de Adam.
Grant bufou.
- Suposto? É claro que ele era o pai do garoto. Eles vinham se encontrando de maneira intermitente havia anos. Mas o que você quer dizer com só existe uma
referência a Sinclair? Deve haver mais. Eles foram até a Áustria para interrogá-lo.
- Áustria?
- Ele trabalhava lá. É formado em administração rural. Trabalhou também na França e na Suíça, mas voltou para a Áustria cerca de quatro anos atrás. Susan
pode lhe dar todos os detalhes.
- O senhor o tem vigiado? - O que não seria nenhuma surpresa, pensou Karen.
- Não, inspetora. Eu já lhe disse: nunca achei que Sinclair tivesse a coragem para fazer algo assim. Então, por que o vigiaria? A única razão pela qual sei
onde Sinclair mora é porque seu pai ainda é meu caseiro. - Grant balançou a cabeça. - Não posso acreditar que tudo isso não esteja nos arquivos.
Karen estava pensando a mesma coisa, mas não quis admitir.
- E, que o senhor saiba, havia mais alguém que Catriona pudesse ter desagradado?
O rosto de Grant estava tão cinzento quanto seu cabelo.
- Só a mim, inspetora. Olhe, é óbvio, pelo lugar onde apareceu esta nova prova, que isso não tem nada a ver pessoalmente com Cat. É obviamente político. O
que faz com que tenha a ver com meus princípios pessoais, e não com quem Cat possa ter incomodado.
- Então, onde foi que este pôster apareceu? - perguntou Phil.
Karen ficou agradecida pela interrupção. Ele era bom em interromper e guiar as entrevistas em direções mais produtivas quando ela estava correndo o risco de estancar.
- Em uma fazenda em ruínas na Toscana. Parece que o local vinha sendo usado por posseiros. - Ele estendeu o braço na direção da jornalista. - Este é o outro
motivo pelo qual a Srta. Richmond está aqui. Foi ela que o encontrou. Sem dúvida, vocês vão querer conversar com ela. - Ele indicou o pôster. - Também vão querer
levar isto com vocês. Imagino que farão alguns testes. E, inspetora...?
Karen recuperou o fôlego, diante da arrogância dele.
- Sim?
- Não quero ler a respeito disso no jornal amanhã cedo. - Ele olhou feio para ela como se a desafiasse a responder.
Karen se controlou por um momento, tentando compor uma resposta que abrangesse tudo que ela queria dizer e deixasse de fora qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.
A expressão de Grant mudou rapidamente.
- O que quer que comuniquemos à mídia, assim como o momento de qualquer comunicação, será uma decisão operacional - ela disse, por fim.
- Será tomada por mim e, quando apropriado, por meus oficiais superiores. Entendo plenamente como tudo isso é doloroso para o senhor, mas sinto muito. Temos
de basear nossas decisões naquilo que pensamos que, provavelmente, irá produzir o melhor resultado. O senhor pode nem sempre concordar, mas, infelizmente, não tem
nenhum direito de veto. - Ela esperou a explosão, mas esta não se fez. Supôs que ele a estivesse reservando para o Biscoito ou para os chefes dele.
Em vez disso, Grant assentiu.
- Confio em você, inspetora. Tudo que peço é que se comunique com a Srta. Richmond antes, para que possamos nos precaver contra a máfia. - Ele correu os dedos
pelos densos cabelos grisalhos num gesto que parecia bem ensaiado. - Tenho muita esperança de que, desta vez, a polícia chegue à verdade. Com todos os avanços nas
ciências criminais, vocês devem estar em vantagem com relação ao inspetor Lawson. - Ele se virou, claramente os dispensando.
- Creio que ainda teremos algumas perguntas a lhe fazer - disse Karen, determinada a não ceder todo o controle do encontro. - Se Catriona não tinha inimigos,
talvez o senhor pudesse pensar em alguns amigos dela que possam nos ajudar. O sargento Parhatka lhe informará quando eu quiser falar novamente com o senhor. Nesse
meio-tempo... Srta. Richmond?
A mulher inclinou a cabeça e sorriu.
- Estou à sua disposição, inspetora.
Até que enfim alguém por ali com uma vaga noção de como as coisas deveriam funcionar.
- Gostaria de vê-la no meu escritório esta tarde. Podemos marcar para as quatro horas?
- Qual é o problema em entrevistar a Srta. Richmond aqui? E agora? - perguntou Grant.
- Esta investigação é minha - disse Karen. - Conduzirei minhas entrevistas onde me convier. E, devido a outros inquéritos em andamento, me convém que seja
no meu escritório, esta tarde. Agora, se o senhor nos der licença.
Ela se levantou, notando o divertimento cauteloso da Lady Grant e a desaprovação sombria de Susan Charleson. O próprio Grant permaneceu imóvel feito uma estátua.
- Tudo bem, Susan, eu acompanho os policiais - disse Lady Grant, levantando-se rapidamente e caminhando em direção à porta antes que a assistente recuperasse
o autocontrole.
Enquanto a seguiam pelo corredor, Karen disse:
- Isso deve ser muito difícil para a senhora.
Lady Grant voltou-se para eles, andando de costas com a segurança de alguém que conhece cada centímetro de seu território.
- Por que você diz isso?
- Ver seu marido reviver uma época tão difícil... Eu não gostaria de ver alguém de quem eu gostasse passando por tudo isso.
Lady Grant pareceu confusa.
- Ele convive com isso todos os dias, inspetora. Pode ser que não o demonstre, mas não tira isso da cabeça. Às vezes o vejo olhando para nosso filho, Alec,
e sei que ele está pensando em como poderia ter sido, com Adam. Pensando no que perdeu. Ter algo novo em que focar é quase um alívio para ele.
Ela girou nos calcanhares e deu-lhes as costas novamente. Enquanto a seguiam, Karen encontrou o olhar de Phil e ficou surpresa com a raiva que viu ali.
- Ainda assim, a senhora não seria humana se uma parte sua não desejasse que nunca encontrássemos Adam são e salvo - Phil disse, a leveza do tom contrastando
diretamente com a severidade de sua expressão.
Lady Grant se deteve e voltou-se para eles, franzindo as sobrancelhas. Um rubor rosado subiu por seu pescoço.
- Que diabos você quer dizer com isso?
- Acho que a senhora sabe exatamente o que quero dizer, Lady Grant. Nós encontramos Adam e, de repente, seu filho Alec não é mais o único herdeiro de Brodie
- disse Phil. Era preciso ter coragem, pensou Karen, para assumir o papel de para-raios da investigação.
Por um momento, Lady Grant pareceu estar a ponto de estapeá-lo. Karen podia ver seu peito subindo e descendo com o esforço de se controlar. Finalmente, ela se obrigou
a assumir a pose habitual de civilidade.
- Na verdade - ela disse secamente -, você está vendo a situação precisamente pelo ângulo errado. O comprometimento absoluto de Brodie em descobrir o destino
de seu neto me enche de confiança com relação ao futuro de Alec. Um homem tão preso aos deveres para com sua própria
carne e seu próprio sangue jamais decepcionará nosso filho. Acredite se quiser, sargento, a busca de Brodie pela verdade me dá esperança. Não medo.
- Ela se virou nos calcanhares e marchou até a porta da frente, que manteve enfaticamente aberta para eles.
Depois que a porta se fechou, Karen disse:
- Caramba, Phil, por que você não diz o que realmente está pensando? O que provocou aquilo?
- Me desculpe. - Ele abriu a porta do passageiro para ela, uma pequena cortesia a que raramente se dava ao trabalho. - Eu já estava cheio de brincar de Miss
Marple, a detetive, e aquela palhaçada toda de crime na casa de campo. Tudo muito limpo e civilizado. Só queria ver se conseguia provocar uma reação honesta.
Karen sorriu.
- Acho que se pode dizer que conseguiu. Só espero que não sejamos atingidos pelas faíscas.
Phil bufou.
- Você não fica muito atrás, quando se trata de ser durona. "Esta investigação é minha" - ele a imitou, sem maldade.
Ela se acomodou no carro.
- É, tudo bem. A ilusão de estar no comando. Foi bom, enquanto durou.
Nottingham
As belezas do parque Nottingham Arboretum não só haviam sido obscurecidas como praticamente ficaram invisíveis com a chuva torrencial que cegava o agente Mark Hall
enquanto seguia Femi Otitoju, subindo pela trilha que levava ao Campanário Chinês. Ela finalmente havia mostrado alguma emoção, mas não era exatamente o que Mark
havia esperado.
Logan Laidlaw tinha ficado ainda menos contente do que Ferguson e Fraser ao vê-los. Ele não só se recusara a permitir que entrassem em seu apartamento, como lhes
dissera que não tinha a menor intenção de repetir o que já tinha contado à filha de Mick Prentice.
- Esta droga de vida é curta demais para desperdiçar minha energia falando duas vezes sobre a mesma coisa - ele dissera e, então, batera a porta na cara deles.
Otitoju havia ficado mais púrpura do que uma beterraba em conserva, respirando pesadamente pelo nariz. Cerrou os punhos e chegou a levar o pé para trás como se fosse
chutar a porta. Bastante violento, levando em conta que não havia muita violência nela. Mark colocara a mão em seu braço.
- Deixe estar, Femi. Ele está no direito dele. Não é obrigado a falar conosco.
Otitoju dera meia-volta, seu corpo inteiro tenso de raiva.
- Não deveria ser permitido - ela disse. - Eles deveriam ser obrigados a falar com a gente. Deveria ser contra a lei que as pessoas se recusassem a responder
a nossas perguntas. Deveria ser crime.
- Ele é uma testemunha, não um criminoso - disse Mark, assustado com a veemência dela. - Foi o que nos disseram em nosso treinamento: policiais por consentimento,
não por coerção.
- Isso não está certo - disse Otitoju, voltando furiosamente para o carro. - Eles esperam que a gente solucione crimes, mas não nos dão as ferramentas para
fazer o serviço. Que diabos ele pensa que é?
- Ele é alguém cuja opinião sobre a polícia foi gravada em pedra nos idos de 1984. Você nunca viu as reportagens de jornal dessa época? Policiais a cavalo
atacavam os piquetes como se fossem cossacos ou coisa parecida. Se usássemos hoje o cassetete daquele jeito, seríamos presos. Não foi um de nossos melhores momentos.
Portanto, não é de surpreender que o Sr. Laidlaw não queira falar conosco.
Ela balançou a cabeça.
- Faz com que eu me pergunte o que ele pode ter a esconder.
O trajeto da casa de Iain Maclean até o Arboretum, cruzando a cidade, não havia ajudado a melhorar o humor dela. Mark a alcançou.
- Deixe isso comigo, ok? - ele disse.
- Você acha que não sei conduzir uma entrevista?
- Não, não é isso. Mas conheço o suficiente sobre ex-mineiros para saber que são bastante machistas. Você viu como foi com Ferguson e Fraser... eles não ficaram
muito contentes com o fato de você fazer as perguntas.
Otitoju parou abruptamente e atirou a cabeça para trás, deixando que a chuva escorresse por seu rosto como lágrimas geladas. Recompondo-se, suspirou.
- Está bem. Vamos tirar vantagem de seus preconceitos. Você conduz a conversa. - Então, ela voltou a andar, dessa vez num passo mais comedido.
Chegaram ao Campanário Chinês e encontraram dois homens de meia-idade, vestindo macacão da prefeitura e abrigando-se da tempestade. Os pilares estreitos, que davam
suporte ao teto elegante, não ofereciam muita proteção aos respingos de chuva espalhados pelas rajadas de vento, mas era melhor do que ficar totalmente exposto.
- Estou procurando Iain Maclean - disse Mark, olhando um e outro.
- Sou eu - disse o mais baixo dos dois, com olhos azuis cintilando no rosto bronzeado. - E quem são vocês?
Mark apresentou os dois.
- Tem algum lugar aonde possamos ir tomar uma xícara de chá?
Os dois homens trocaram um olhar.
- Deveríamos estar podando as margens, mas estávamos prestes a desistir e voltar para as estufas - disse Maclean. - Não há nenhum café por aqui, mas vocês
podem nos acompanhar até as estufas, e nós preparamos o chá.
Dez minutos depois, eles estavam espremidos num canto, nos fundos de um amplo túnel de polietileno, e fora do caminho dos demais jardineiros, cujos olhares curiosos
se haviam acalmado ao perceberem que não haveria nada espetacular. Um forte cheiro de húmus pairava no ar, lembrando Mark do barracão no jardim de seu avô. Iain
Maclean segurou a xícara com as mãos enormes e esperou que eles falassem. Ele não havia mostrado qualquer surpresa com a chegada dos policiais e tampouco lhes havia
perguntado por que estavam ali. Mark desconfiava que Fraser ou Ferguson já o tivessem avisado.
- Queremos conversar com você sobre Mick Prentice - ele começou.
- O que tem o Mick? Não o vejo desde que nos mudamos para o sul - disse Maclean.
- Nem você nem mais ninguém - disse Mark. - Todos presumiram que ele houvesse viajado para o sul com vocês, mas não é isso que estão nos dizendo hoje.
Maclean coçou as cerdas prateadas que cobriam sua cabeça num corte de cabelo militar.
- É, bem. Eu tinha ouvido falar que as pessoas achavam isso, lá em Newton. É só para mostrar a você como as pessoas sempre preferem pensar o pior. De jeito
nenhum Mick teria se juntado a nós. Não imagino como alguém que o conhecesse poderia pensar isso.
- E você nunca os corrigiu?
- Para quê? Na cabeça deles, eu sou um mineiro fura-greve e desonesto. Nada do que eu pudesse dizer em defesa de alguém teria muito peso, lá em Newton.
- Para ser justo, não é apenas uma questão de tirar conclusões precipitadas. A esposa dele recebia dinheiro ocasionalmente, depois que ele foi embora. O carimbo
do correio era de Nottingham. Essa é uma das principais razões pelas quais todos acharam que ele houvesse feito o impensável.
- Não sei qual é a explicação para isso. Mas te digo uma coisa: seria mais fácil Mick Prentice ir para a Lua do que furar a greve.
- Isso é o que todos nos dizem - disse Mark. - Mas as pessoas fazem coisas que parecem insólitas, quando estão desesperadas. E, segundo consta, Mick Prentice
estava desesperado.
- Não tanto a ponto de fazer isso.
- Você fez.
Maclean olhou fixamente para sua xícara.
- Fiz. E nunca me envergonhei tanto de algo. Mas minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. Eu sabia que não havia maneira alguma de trazer mais
um bebê àquela vida. Então, fiz o que fiz. Eu conversei a respeito com o Mick, antes. - Ele lançou um olhar rápido a Mark. - Éramos amigos, ele e eu. Estudamos juntos
na escola. Eu queria explicar para ele por que estava fazendo aquilo. - Ele suspirou. - Ele disse que entendia a minha decisão. Que ele também tinha vontade de ir
embora. Mas que furar greve não era para ele. Não sei para onde ele foi; mas eu sei que, com certeza, não foi para outra mina.
- Quando você soube que ele havia desaparecido?
Ele contorceu o rosto enquanto pensava.
- É difícil dizer. Acho que quando minha esposa veio para ficar comigo. Isso quer dizer que foi por volta de fevereiro. Mas pode ter sido depois disso. Minha
esposa, ela ainda tem família lá em Wemyss. Nós não voltamos lá. Não seríamos bem-vindos. As pessoas têm memória boa, sabe? Mas
nos mantemos em contato e, às vezes, eles vêm aqui nos visitar. - Um pálido sorriso de desculpa passou por seu rosto. - O sobrinho da minha mulher, ele é estudante
na universidade daqui. Está terminando o segundo ano. Ele vem jantar aqui em casa de vez em quando. Então, sim, eu ouvi falar que Mick havia entrado na lista dos
desaparecidos, mas não saberia te dizer com certeza quando foi que fiquei sabendo.
- Aonde você acha que ele foi? O que você acha que aconteceu? - Em sua ansiedade, Mark se esqueceu da regra fundamental de fazer apenas uma pergunta por vez.
Maclean ignorou ambas.
- Por que cargas d'água vocês ficaram interessados no Mick, assim de repente? - ele perguntou. - Ninguém veio procurar por ele, em todos esses anos. Por que
tanto alvoroço agora?
Mark explicou por que Misha Gibson havia, finalmente, informado a polícia sobre o desaparecimento de seu pai. Maclean se mexeu na cadeira, sem jeito, fazendo o chá
se derramar sobre os dedos.
- Que coisa horrível. Me lembro de quando a própria Misha não passava de uma garotinha. Gostaria de poder ajudar. Mas não sei para onde ele foi - ele disse.
- Como eu falei antes, não o vi mais desde que saí de Newton.
- Ouviu falar alguma coisa sobre ele? - acrescentou Otitoju.
Maclean lhe lançou um olhar duro. Em seu rosto curtido pelo sol, o olhar parecia tão impassível quanto o Monte Rushmore.
- Não tente dar uma de esperta pra cima de mim, querida. Não, não ouvi nada sobre ele. No que me diz respeito, Mick Prentice sumiu do planeta no dia em que
vim para cá. E foi exatamente o que esperei que fosse acontecer.
Mark tentou restabelecer a camaradagem, infiltrando solidariedade em sua voz:
- Entendo perfeitamente - disse. - Mas o que você acha que aconteceu com Mick? Você era amigo dele. Se alguém pode pensar numa resposta, esse alguém é você.
Maclean balançou a cabeça.
- Não sei mesmo.
- E se tivesse que fazer uma suposição?
Novamente ele coçou a cabeça.
- Te digo uma coisa. Achei que ele e Andy tivessem fugido juntos. Achei que os dois estivessem cheios, que houvessem ido para algum outro lugar para começar
do zero. Vida nova e essas coisas.
Mark se lembrava do nome do amigo de Prentice, que vira no relatório informativo sobre o caso. Mas não houvera qualquer menção de terem fugido juntos.
- Aonde eles iriam? Como poderiam simplesmente desaparecer, sem deixar rastros?
Maclean bateu com o dedo na lateral do nariz.
- Andy era comunista, sabe? E, nessa época, Lech Walesa e o Solidariedade eram importantíssimos na Polônia. Sempre achei que aqueles dois tivessem ido para
lá. Havia um monte de minas na Polônia e não iria parecer que eles estivessem furando a greve. De jeito nenhum.
- Polônia? - Mark sentiu que precisava de um curso rápido sobre a história política do século XX.
- Eles estavam tentando derrubar o comunismo totalitário - Otitoju disse, asperamente. - Para substituí-lo por uma espécie de socialismo dos trabalhadores.
Maclean assentiu.
- Isso teria sido bem do gosto de Andy. Acho que ele deve ter convencido Mick a ir com ele. Isso explicaria por que ninguém nunca mais soube deles. Presos
nas minas de carvão atrás da Cortina de Ferro.
- Mas já faz algum tempo que essa Cortina de Ferro cheira a naftalina - Mark disse.
- Sim, mas quem sabe que tipo de vida eles conseguiram estabelecer por lá? Poderiam estar casados, com filhos, poderiam ter deixado o passado para trás. Se
Mick tivesse uma nova família, não iria querer que a antiga aparecesse do nada, não é?
De repente, Mark teve um daqueles momentos de revelação em que pôde ver o cenário completo.
- Era você quem mandava o dinheiro, não era? Você colocava dinheiro num envelope e enviava a Jenny Prentice, porque achava que Mick não enviaria dinheiro
para ela da Polônia.
Maclean pareceu se encolher contra a parede translúcida de polietileno. Seu rosto se franziu tanto, que era difícil ver seus brilhantes olhos azuis.
- Só estava tentando ajudar. Tenho ganhado bem desde que vim para cá. Sempre senti pena de Jenny. Parecia que ela havia ficado com a pior parte porque Mick
não teve coragem para assumir suas responsabilidades.
Aquela era uma forma estranha de se expressar, pensou Mark. Ele podia muito bem deixar por isso mesmo; aquele caso não era seu, afinal, e ele não precisaria enfrentar
os problemas que poderiam advir de se investigar algo aparentemente sem conexão. Mas, por outro lado, ele queria cumprir aquela missão da melhor forma possível.
Queria explorar a posição de assistente do DIC para conseguir uma transferência permanente para a divisão de detetives. Então, fazer esforços extras era definitivamente
parte do seu plano.
- Tem alguma coisa que você não esteja nos dizendo, Iain? - ele perguntou. - Alguma outra razão para Mick ter fugido da forma como fez, sem dizer uma palavra
a ninguém?
Maclean tomou o resto do seu chá e colocou a xícara de lado. Suas mãos, desproporcionalmente grandes devido a uma vida inteira de trabalho manual intenso, se entrelaçaram
e se soltaram. Ele parecia alguém pouco à vontade com o conteúdo de sua própria mente. Respirou fundo e disse:
- Imagino que agora já não faça diferença. Não se pode punir alguém que já tenha ido desta pra melhor.
Otitoju estava prestes a romper o silêncio de Maclean, mas Mark agarrou seu braço, numa advertência. Ela cedeu, sua boca formou uma linha estreita, e eles esperaram.
Finalmente, Maclean falou.
- Nunca contei isso a ninguém. Até parece que adiantou de alguma coisa manter segredo. Vocês têm de entender, Mick era um defensor ferrenho do sindicato.
E, claro, Andy era funcionário em tempo integral do Sindicato Nacional dos Mineradores. Estava totalmente em casa, íntimo dos altos escalões. Não duvido que Andy
tenha contado a Mick muitas coisas que talvez não devesse. - Ele deu um sorriso melancólico. - Ele estava sempre tentando impressionar Mick, ser seu melhor amigo.
Frequentamos a mesma classe, na escola. Nós três costumávamos andar juntos. Mas você sabe como são os trios. Sempre existe um líder e os outros dois ficam tentando
agradá-lo, tentando tirar o outro da jogada. Era assim conosco. Mick
no meio, tentando manter a paz. Ele era bom nisso, esperto em encontrar formas de deixar nós dois contentes. Nunca permitia que um de nós ficasse por cima. Bem,
não por muito tempo, pelo menos.
Mark podia perceber que Maclean relaxava ao lembrar-se da calma relativa daqueles dias.
- Sei bem o que você quer dizer - ele disse, baixinho.
- Enfim, nós todos continuamos amigos. Eu e minha mulher costumávamos sair com Mick e Jenny, os quatro. Ele e Andy jogavam futebol juntos. Como eu disse,
ele era bom em encontrar coisas que faziam com que seus dois amigos se sentissem especiais. Pois então, algumas semanas antes de eu vir para cá, passamos o dia juntos.
Caminhamos até o porto de Dysart. Ele montou o cavalete e pintou, e eu pesquei. Contei a ele o que havia planejado fazer, e ele tentou me dissuadir. Mas eu podia
ver que ele não estava prestando muita atenção. Então, perguntei a ele o que o estava incomodando. - Ele parou novamente, seus dedos fortes apoiavam-se uns contra
os outros.
- E o que era? - perguntou Mark, inclinando-se para a frente para afastar a presença rígida de Otitoju e fazendo daquele um círculo puramente masculino.
- Ele disse que achava que um dos funcionários do sindicato estava roubando. - Olhou fixamente nos olhos de Mark. Ele podia sentir a terrível traição que
havia por trás das palavras de Maclean. - Nós todos estávamos sem um tostão e passando fome, e um dos caras que, supostamente, deveria ficar do nosso lado estava
enchendo os próprios bolsos. Pode não parecer muita coisa agora, mas naquela época, isso me abalou profundamente.
Quinta-feira, 30 de novembro de 1984; Dysart
Uma cavala estava puxando seu anzol, mas Iain Maclean não lhe prestava a menor atenção.
- Você só pode estar brincando! - ele disse. - Ninguém faria uma coisa dessas.
Mick Prentice deu de ombros, sem tirar os olhos do papel grosso preso em seu cavalete.
- Você não precisa acreditar em mim. Eu sei o que sei.
- Você deve ter entendido errado. Nenhum funcionário do sindicato roubaria da gente. Não aqui. Não agora. - Maclean parecia estar à beira das lágrimas.
- Olhe, vou lhe contar o que sei. - Mick passou o pincel rapidamente pelo papel, deixando uma mancha de cor ao longo do horizonte. - Eu estava no escritório
na terça passada. Andy tinha me pedido para ir lá ajudá-lo com os requerimentos da assistência, então eu estava folheando as cartas que havíamos recebido. Digo uma
coisa a você: ver o que as pessoas estavam passando era de partir o coração. - Ele limpou o pincel e misturou uma cor cinza esverdeada em sua palheta de bolso. -
Então, estou eu lá naquele cubículo, ao lado do escritório principal, examinando essas coisas, e esse outro funcionário está lá na frente. Enfim, vem uma mulher
de Lundin Links. Terninho de lã e uma boina idiota de pelo de angorá. Você conhece o tipo: a ricaça metida a Madre Teresa de Calcutá. Ela disse que eles haviam realizado
um café da manhã beneficente no clube de golfe e que tinham arrecadado 232 libras para ajudar as famílias pobres dos mineiros em greve.
- Fizeram muito bem - disse Maclean. - Melhor vir diretamente até nós do que falar com aquela maldita equipe da Tatcher.
- Certamente. Então, ele lhe agradece e ela vai embora. Agora, eu não vi exatamente para onde foi o dinheiro, mas posso lhe dizer que não foi para dentro
do cofre.
- Ah, tenha dó, Mick. Isso não prova nada. Pode ser que o cara tenha levado diretamente para a subseção do sindicato. Ou para o banco.
- Sei. - Mick deu uma risada sem humor nenhum. - Como se, nos dias de hoje colocássemos dinheiro no banco com os confiscadores atrás da gente.
- Mesmo assim - disse Maclean, sentindo-se ofendido, por alguma razão.
- Olhe, se fosse só isso, eu não teria me incomodado. Mas tem mais. Uma das tarefas de Andy é manter um registro do dinheiro que vem de doações e coisas do
tipo. Todo esse dinheiro deve ser repassado para a subseção. Não sei o que acontece com ele, então, se volta para a gente em forma de doações ou se vai parar na
corte do Rei Arthur, escondido em alguma maldita conta bancária na Suíça. Mas qualquer pessoa que arrecade dinheiro deve dizer a Andy, e ele anota num livrinho.
Maclean assentiu.
- Me lembro de ter de dizer a ele quanto tínhamos conseguido juntar, quando fizemos as arrecadações na rua, no último verão.
Mick fez uma breve pausa e olhou para o ponto onde o mar se encontrava com a terra.
- Eu estava na casa de Andy, na outra noite. O livro estava em cima da mesa. E a doação de Lundin Links não estava anotada nele.
Maclean puxou a linha com tanta força que quase perdeu o peixe.
- Merda - ele disse, girando a carretilha furiosamente. - Talvez Andy estivesse atrasado com as anotações.
- Gostaria que fosse tão simples assim. Mas não é isso. As últimas anotações no livro de Andy eram de quatro dias depois que aquele dinheiro foi entregue.
Maclean jogou a vara nas lajotas de pedra a seus pés. Ele podia sentir as lágrimas queimando nos olhos.
- Que porra de situação desgraçada. E você espera que eu sinta remorso por estar indo para Nottingham? Pelo menos é trabalho honesto, por um pagamento honesto,
e não roubo. Não posso acreditar numa coisa dessas.
- Eu também não. Mas de que outra forma se poderia explicar isso? - Mick balançou a cabeça. - E vindo de um cara que ainda está recebendo salário.
- Quem é ele?
- Não posso lhe dizer. Não até que tenha decidido o que fazer a respeito.
- É óbvio o que você tem de fazer. Tem que contar ao Andy. Se houver uma explicação inocente, ele saberá.
- Não posso contar ao Andy - Mick protestou. -Jesus, às vezes sinto vontade de fugir desta merda de confusão toda. Passar a régua e começar do zero em outro
lugar. - Ele balançou a cabeça. - Não posso contar a Andy, Iain. Ele já está deprimido. Se eu contar isso, poderia estar empurrando-o de uma vez para o fundo do
abismo.
- Bem, conte para outra pessoa, então. Para alguém da subseção. Você tem que pegar esse filho da puta. Quem é ele? Me conte. Mais algumas semanas e estarei
longe daqui. Para quem eu iria contar? - Maclean sentia a necessidade de saber queimando-o por dentro. Era mais uma coisa que o ajudaria a acreditar que estava fazendo
a coisa certa. - Me conte, Mick.
O vento fez o cabelo de Mick entrar em seus olhos, salvando-o do desespero no rosto de Maclean. Mas a necessidade de compartilhar seu fardo era pesada demais para
ignorar. Ele afastou o cabelo e olhou nos olhos do amigo.
- Ben Reekie.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Glenrothes
Karen tinha de admitir que estava impressionada. Não só a equipe de Nottingham havia feito um excelente trabalho, mas a agente Femi Otitoju tinha digitado seu relatório
e o enviado por e-mail em tempo recorde. Veja bem, pensou Karen, eu provavelmente teria feito a mesma coisa, no lugar dela. Dada a qualidade das informações que
ela e seu parceiro haviam conseguido obter, qualquer policial candidato ao DIG ficaria desesperado para tirar a maior vantagem possível.
E realmente havia algo ali para explorar ao máximo. A agente Otitoju e seu colega em Nottingham haviam descoberto quem tinha confundido a todos, enviando dinheiro
a Jenny Prentice. E, crucialmente, ela também tinha fornecido a primeira resposta possível à questão de quem ficaria feliz ao ver Mick Prentice pelas costas. Os
ânimos andaram bastante exaltados na época, e a impopularidade do sindicato crescia em várias partes. A violência já havia irrompido mais vezes do que se poderia
contar, e nem sempre entre a polícia e os grevistas. Mick Prentice poderia ter sido consumido pelo fogo com o qual brincava. Caso houvesse confrontado Ben Reekie
com o que sabia, se ele fosse culpado da acusação e se Andy Kerr tivesse sido arrastado para a confusão, devido à sua conexão com os outros dois, então, havia motivo
para Reekie se livrar dos dois homens, que desapareceram aproximadamente na mesma época. Talvez Angie Kerr estivesse certa a respeito do irmão. Talvez ele não tivesse
se matado. Talvez Mick Prentice e Andy Kerr fossem vítimas de um assassino - ou assassinos - desesperado para proteger a reputação de um funcionário desonesto do
sindicato.
Karen estremeceu.
- É imaginação demais - ela disse, em voz alta.
- O quê? - Phil afastou os olhos da tela do computador, franzindo a testa.
- Desculpe. Só estou me dando uma bronca por ser melodramática demais. Mas lhe digo uma coisa, se essa Femi Otitoju algum dia decidir se mudar para o norte,
vou colocá-la no lugar do Novo em Folha tão rápido que ele não vai nem saber o que está acontecendo.
- Não que isso seja muito difícil - disse Phil. - A propósito, o que você está fazendo aqui? Não deveria estar conversando com a adorável Srta. Richmond?
- Ela deixou um recado. - Karen olhou para seu relógio. - Chegará dentro de alguns minutos.
- Por que o atraso?
- Parece que teve que conversar com o advogado de algum jornal sobre um artigo que ela escreveu.
Phil reclamou.
- Que nem o tal do Brodie Grant. Ainda pensam que somos da classe serviçal, aqueles lá. Talvez você devesse deixá-la esperando.
- Não posso me dar ao luxo de entrar nesse jogo idiota. Olhe só isto aqui. O parágrafo que eu marquei. - Ela passou o relatório de Otitoju para Phil e esperou
que ele o lesse. Assim que ele levantou os olhos da página, ela disse: - Alguém afirmando que viu Mick Prentice umas doze horas depois de ele ter saído de casa.
E parece que ele não estava agindo de forma normal.
- Que estranho. Se ele estava fugindo, por que ainda estaria por ali, àquela hora da noite? Onde havia estado antes? E para onde estava indo? O que estava
esperando? - Phil coçou o queixo. - Não faz nenhum sentido para mim.
- Nem para mim. Mas vamos ter que tentar descobrir. Vou acrescentar à minha lista - ela suspirou. - Um pouco abaixo de "ter uma conversa decente com a polícia
italiana".
- Pensei que você houvesse conversado com eles.
Ela assentiu.
- Com um policial no quartel-general de Siena, um cara chamado di Stefano, com quem Peter Spinks, da Proteção Infantil, trabalhou há uns anos. Ele fala inglês
razoavelmente bem, mas precisa de mais informações.
- Então, você vai entrar em contato com eles novamente na segunda-feira?
Karen assentiu.
- Isso. Ele disse para não esperarmos encontrar ninguém no escritório deles depois das duas da tarde de uma sexta-feira.
- Será ótimo, se você conseguir - disse Phil. - Falando nisso, quer ir tomar um drinque rápido depois que terminar a conversa com Annabel Richmond? Tenho
que ir jantar na casa do meu irmão, mas tenho tempo para uma cervejinha.


CONTINUA

Christie. Uma dívida que não é pequena.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss
A voz é suave, como a escuridão que os cerca.
- Está preparado?
- Mais preparado do que nunca.
- Você disse a ela o que fazer? - As palavras agora rolam, tropeçando umas nas outras num emaranhado único de sons.
- Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabilizado se isto der errado. - Palavras ásperas, num tom áspero. - Não é com ela que estou
preocupado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. - As palavras possuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. - Vamos, terminemos logo com isto.
Assim é como tudo começa.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/DOMINIO_SOMBRIO.jpg

 

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziam uma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas. Parecia alguém com
uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conforme ela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a
mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras informações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmente ignorados por aqueles
que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhão de sua determinação.
Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não era feia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali, não estava em seus melhores
dias. Ela poderia ter colocado um pouquinho mais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algo que lhe caísse melhor do que jeans e blusa
de capuz. David Cruickshank assumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se preparando para defesa.
- Quero informar o desaparecimento de uma pessoa.
Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desaparecidas. Aquela ali estava
calma demais para que se tratasse de um filho pequeno, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga com o namorado, era disso que se tratava.
Ou um avô senil perdido. A mesma perda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo balcão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta.
Nem chegou a destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondida antes que ele anotasse quaisquer detalhes.
- E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?
- Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, para ser exata. - Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seu semblante. -
Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?
O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a tela do computador.
- Vou te dizer uma coisa - ele falou -, se existe uma época excelente para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.
A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo que estava atualizando.
- Como assim?
- Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, na Downing Street,
10, com a patroa a tiracolo. - Ele se levantou num salto e foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. - O que você prefere fazer? Solucionar casos arquivados
e receber os louros por isso, ou tentar prevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?
- Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministro faz de Fife um alvo? - Karen marcou onde estava no documento com o dedo indicador e dirigiu
toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou de que tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não considerara as possibilidades atuais. - Nunca
se incomodaram com o distrito eleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.
- Isso é verdade. - Phil espiou para dentro da geladeira, decidindo entre um refrigerante Im Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e ele ainda não
se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer em sua infância. - Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, e Gordon é filho de um pastor
presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugar do chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja do pai dele.
Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio.
- Não sei como você consegue beber isso aí - ela disse. - Nunca reparou que o nome é um anagrama de "vomit"?
Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.
- Faz crescer cabelo no peito - ele disse.
- É melhor você tomar duas latas, então. - Havia uma ponta de inveja na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gorduras saturadas,
mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os dois eram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suas medidas aumentando. Isso, definitivamente,
não era justo.
Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.
- Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um pouco mais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaça agora é maior.
Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.
- Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon aja de um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?
Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojava a Equipe de Revisão
de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alterado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquer telefone que tocasse perto dela.
- Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando - ela disse distraidamente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, no fundo, ele não
sentia saudade de estar envolvido com a ação.
- Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com uma pessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. - Cruickshank parecia um tanto inseguro.
Aquilo era incomum o bastante para chamar a atenção de Karen.
- Do que se trata?
- De uma pessoa desaparecida - ele disse.
- É um dos nossos?
- Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.
Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por tempo suficiente.
- Então ela precisa falar com o Departamento de Investigações Criminais, Dave.
- Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este caso está um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor que passasse por
você primeiro, entendeu?
Vá logo ao que interessa.
- Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com investigações recentes. - Karen girou os olhos para Phil, que devolveu um sorriso falso
diante da óbvia frustração dela.
- Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vinte e dois anos.
Karen se endireitou na cadeira.
- Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?
- Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?
Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar a mulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre se sentia atraída por coisas
que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros no escuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazido duas promoções em três anos, superando
alguns colegas de igual posição e deixando muitos outros incomodados.
- Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela.
Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.
- Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o desaparecimento de uma pessoa? - ela perguntou, mais para si mesma do que para Phil, vasculhando
a mesa à procura de um caderno vazio e de uma caneta.
Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.
- Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.
- E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. - O sorriso de Karen
era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse o Gato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.
Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do elevador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatlética da Gap. Modelos
e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos e sem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro na altura do quadril. O cabelo castanho-médio
tinha um bom corte chanel longo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava, portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social.
Tampouco, provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulher agradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantos anos, olhos azuis
com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima de maquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um. Ao perceber a avaliação de Karen,
a pele ao redor de seus olhos se apertou.
- Sou a inspetora Pirie - ela disse, abreviando o impasse em potencial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. - Karen Pirie.
Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gorducha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio
precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, caso fosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen se descrevia daquela
maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela era lindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela não concordava. Tinha uma opinião
razoavelmente boa sobre si mesma. Mas, quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, no entanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.
Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu mais segura.
- Graças a Deus por isso - ela disse. O sotaque de Fife era claro, embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela distância.
- Perdão?
A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes de leite de uma criança.
- Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enrolando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.
- Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo chá - Karen disse secamente. - Por acaso, fui a pessoa que atendeu ao telefone. - Ela deu
meia-volta, olhou para trás e disse: - Você me acompanha?
Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma salinha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, para o verde artificialmente
uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofadas de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfície de cerejeira fora polida até adquirir
um brilho opaco. A única indicação do propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas na parede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda
vez que usava aquele local, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhido fotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algo
muito ruim acontece.
A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou uma cadeira e lhe indicou que sentasse.
- Não é assim na televisão - ela disse.
- Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão - Karen respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em
relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição, menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entrevista de testemunha.
- Cadê o gravador? - A mulher se sentou, sem aproximar a cadeira nem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.
Karen sorriu.
- Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interrogatório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interrogada sobre um
crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável e olhar pela janela. - Ela abriu seu bloco de anotações. - Creio que está aqui para informar sobre uma pessoa
desaparecida.
- Isso mesmo. O nome dele é...
- Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para começar, qual é seu nome?
- Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobrenome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha.
- Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone.
Misha informou todos os detalhes.
- Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome dela, se é que você me entende.
Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus mineiros de carvão, numa
época em que estes lhe pertenciam tanto quanto as minas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquer ligação com o lugar ou seu passado.
- Mesmo assim - ela disse -, preciso de seus dados também.
As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então, ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujo conhecimento da geografia
social da capital, a apenas cinquenta quilômetros de distância, era provincianamente escasso.
- E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa - ela disse.
Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.
- Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser exata.
- E quando foi que seu pai desapareceu? - Ali, pensou Karen, era onde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.
- Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio. Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. - As sobrancelhas
de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.
- É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desaparecimento - disse Karen.
Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.
- Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente.
- Não estou entendendo. O que quer dizer com "não exatamente"?
Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.
- Você fala como alguém desta região.
Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:
- Cresci em Methil.
- Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984.
- A greve dos mineiros?
Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.
- Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pessoas costumavam dizer
por aqui: que ninguém era mais militante do que os mineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro, depois de nove meses de greve, em que meia
dúzia deles desapareceu. Bem, eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eles haviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. - Seu rosto
se franziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. - Com relação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo. Mas,
segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu pai tinha ido com eles. Inclusive ela. - Lançou a Karen um olhar defensivo. - Eu era pequena demais
para me lembrar. Mas todos dizem que ele era um sindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.
- Ela balançou a cabeça. - Porém, o que mais ela iria pensar?
Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia ter significado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a solidariedade era reservada
apenas para aqueles que aguentavam o tranco. A atitude de Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.
- Não deve ter sido nada fácil para sua mãe - ela disse.
- Em um aspecto, foi muito fácil. - Misha disse com amargura. - Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria mais saber dele.
Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergência. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para a Assistência Social dos Mineiros. Fui
criada numa casa em que o nome do meu pai jamais era pronunciado.
Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.
- Ele nunca entrou em contato com vocês?
- Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o carimbo do correio de Nottingham.
- Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai seja uma pessoa desaparecida. - Karen tentou fazer sua voz soar o mais gentil possível.
- Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim, inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. É preciso que o encontrem.
O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela, aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.
- Por quê? - ela perguntou.
Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo
Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquela sensação de ultraje pelo
fato de que o mundo seguia seu caminho, a despeito do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara em contar porque nunca havia se permitido acreditar
que aquela poderia ser a última vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polegares deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadas
por suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de alguma forma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviam atirado contra
sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicção tinha, finalmente, sido testada ao extremo.
Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol, desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda
não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e um apartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso. John não
estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia saber sobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido no trabalho alguma questão
complexa com que só ele pudesse lidar.
Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de arenito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, o pulmão verde do centro sul
da cidade, onde ela adorava caminhar com Luke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia também checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma
bola de rúgbi rodeada de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam a bola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pela
superfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha. Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a caminhar ali com Luke.
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, era disso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em perspectiva. Uma caminhada
rápida através do Meadows e, daí, atravessaria a Ponte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou um restaurante.
Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa de fundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Ela não permitiria que fosse
o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outra chance a Luke.
Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que o segurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelo trabalho de parto, ela
soubera. John estava em estado de negação, recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho, ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo
havia agarrado o coração de Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão em sua mente, então, fora: quão diferente?
O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorte era o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do Hospital Real para Crianças
Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nas histórias "milagrosas" que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito
para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem para explicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.
Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano; ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encantadora das palavras disfarçava
seu conteúdo letal. Escondidos no DNA de ambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado para criar uma condição rara que condenaria seu filho
a uma vida curta e dolorosa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que certamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula
óssea que, no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatível. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medula óssea,
Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.
Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que, sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria de algum membro da família;
era o que os médicos chamavam de doador aparentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Ela havia lido sobre os registros de transplante de
medula e deduzido que sua melhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, de acordo com o especialista, a doação de um membro da família não compatível,
que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um risco menor de complicações do que a de um doador compatível que não tivesse qualquer parentesco com o paciente.
Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos dois lados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e até mesmo oferecendo recompensas
a primos distantes e tias idosas. Aquilo havia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária. John se fechara atrás de uma muralha de otimismo
pouco realista. Haveria um avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar, descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes compartilhados.
Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro. John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à procura de casos que provassem
que os médicos estavam errados. Aparecia semanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis. E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura
incessante de Misha. Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de negação era olímpica.
Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo.
Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seu último beco sem saída
apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrível julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamente aquela que havia rezado para não ter de
levar em conta.
Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquele caminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pronta para ser agressiva com
quem quer que estivesse invadindo seu espaço.
- John - ela disse, com cansaço.
- Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento
- ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamente até ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para que se tocassem,
se algum deles quisesse.
- Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.
- Não, isso eu posso ver. O que eles disseram?
Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do veredito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filho era invencível,
de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reação dela.
Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto o consolo.
- Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. - Sua voz parecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. A emoção derreteria
seu estado congelado e ali não era o lugar para demonstrações de pesar ou amor.
John apertou os dedos dela com força.
- Talvez não seja tarde demais - ele disse. - Talvez eles...
- Por favor, John. Agora não.
Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensionava conforme ele controlava sua discordância.
- Então - ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que outra coisa -, imagino que você vá procurar o filho da puta?
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen coçou a cabeça com a caneta. Por que eu sempre pego os melhores?
- Por que você deixou passar tanto tempo, antes de tentar rastrear seu pai?
Ela captou uma expressão fugaz de irritação em volta dos olhos e da boca de Misha.
- Porque eu havia crescido achando que meu pai fosse um filho da puta fura-greve e egoísta. O que ele fez alijou minha mãe de sua própria comunidade. Fez
com que eu fosse maltratada no parque e na escola. Não achei que um homem que houvesse abandonado a família na merda fosse se incomodar com o neto.
- Ele mandava dinheiro - disse Karen.
- Uns trocados aqui e ali. Dinheiro maldito - disse Misha. - Como eu disse, minha mãe se recusava a usá-lo. Ela o doava. Nunca tirei proveito dele.
- Talvez ele tenha tentado compensar a sua mãe. Os pais nem sempre nos contam as verdades incômodas.
Misha balançou a cabeça.
- Você não conhece a minha mãe. Mesmo com a vida de Luke em jogo, ela não ficou nada contente que eu estivesse tentando encontrar meu pai.
Para Karen, aquele parecia um motivo insuficiente para evitar o homem que poderia fornecer a chave para o futuro de um garoto. Mas ela sabia como os sentimentos
eram profundos nas velhas comunidades mineiras, deixou estar, portanto.
- Você diz que ele não estava onde se supunha. O que aconteceu, quando você foi procurar por ele?
Quinta-feira, 21 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Jenny Prentice tirou um saco de batatas da prateleira de verduras e se pôs a descascá-las, o corpo inclinado sobre a pia e as costas voltadas para a filha. A pergunta
de Misha pairou sem resposta entre as duas, lembrando ambas da barreira que a ausência do pai havia colocado entre elas desde o início. Misha tentou novamente.
- Eu perguntei...
- Eu te ouvi muito bem. Não há nada de errado com a minha audição - disse Jenny. - E a resposta é: não tenho a menor ideia. Como eu saberia onde começar
a procurar por aquele merda de fura-greve egoísta? Nós nos viramos muito bem sem ele nos últimos vinte e dois anos. Nunca houve razão para procurá-lo.
- Bem, existe uma razão agora.
Misha olhou para os ombros curvados da mãe. A luz fraca que entrava pela pequena janela da cozinha acentuava o branco de seus cabelos não pintados. Ela mal havia
completado cinquenta anos, mas parecia ter pulado a meia-idade e adquirido logo o encurvamento vulnerável de uma anciã. Era como se ela soubesse que o ataque um
dia chegaria e houvesse optado por se defender tornando-se patética.
- Ele não irá ajudar - Jenny zombou. - Ele deixou claro o que pensava de nós, quando nos abandonou para que nos virássemos sozinhas. Ele só pensava em si
mesmo.
- Pode ser. Mas mesmo assim tenho que tentar, pelo bem de Luke - Misha disse. - Havia algum endereço de remetente nos envelopes em que vinha o dinheiro?
Jenny cortou uma batata descascada ao meio e deixou cair numa panela com água salgada.
- Não. Ele nem sequer se dava ao trabalho de colocar uma cartinha no envelope. Apenas um punhado de cédulas sujas, só isso.
- E os caras com quem ele foi embora?
Jenny lançou um olhar rápido e desdenhoso para Misha.
- O que têm eles? Não dão as caras por aqui.
- Mas alguns ainda devem ter família aqui, ou em East Wemyss. Irmãos, primos. Eles podem saber alguma coisa sobre o meu pai.
Jenny sacudiu a cabeça com firmeza.
- Nunca mais ouvi falar dele, desde o dia em que se foi. Nem um pio, bom ou ruim. Os outros homens com quem ele foi embora não eram seus amigos. A única razão
pela qual ele pegou carona com eles foi porque não tinha dinheiro para ir sozinho para o sul. Ele deve ter usado os caras assim como usou a gente e, depois, deve
ter seguido seu próprio caminho, quando chegou aonde queria. - Ela deixou cair outra batata na panela e disse sem qualquer entusiasmo: - Você vai ficar para a janta?
- Não, tenho algumas coisas para resolver - Misha disse, impaciente com a recusa da mãe em levar a sério sua busca. - Deve haver alguém com quem ele tenha
mantido contato. Com quem ele poderia ter falado? A quem ele teria contado o que estava planejando fazer?
Jenny se empertigou e colocou a panela no velho fogão a gás. Misha e John se ofereciam para trocar o fogão desconjuntado toda vez que se sentavam para aquele ato
teatral que era o jantar de domingo, mas Jenny sempre recusava, com o ar de martírio frustrado com que normalmente respondia às ofertas de gentileza.
- Nisso você também deu azar. - Ela se acomodou numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa minúscula na cozinha apertada. - Ele só tinha um amigo
de verdade. Andy Kerr. Era um comunista fervoroso, o Andy. Te digo uma coisa: em 1984 não eram muitos os que ainda erguiam a bandeira vermelha, mas Andy era um deles.
Ele já era sindicalista bem antes da greve. Ele e seu pai eram amigos desde a escola. - Seu rosto se suavizou por um momento, e Misha quase pôde ver a jovem que
ela havia sido. - Eles estavam sempre aprontando alguma, aqueles dois.
- Então, onde é que encontro esse tal de Andy Kerr? - Misha se sentou em frente à mãe, seu desejo de ir embora temporariamente abandonado.
O rosto da mãe se contorceu em uma expressão irônica.
- Coitada. Se você conseguir encontrar Andy, será uma detetive e tanto. - Ela se inclinou para a frente e deu um tapinha na mão de Misha. - Ele é mais
uma das vítimas do seu pai.
- Como assim?
- Andy adorava seu pai. Para ele, era Deus no céu e seu pai na terra. Pobre Andy. A greve o colocou sob uma enorme pressão. Ele acreditava na greve, acreditava
na luta. Mas ficou arrasado ao ver as dificuldades pelas quais seus homens estavam passando. Ele estava à beira de um ataque de nervos, e o diretor local o obrigou
a tirar uma licença médica, não muito antes de seu pai dar o fora. Ninguém o viu depois disso. Ele vivia lá nos cafundós, então ninguém percebeu que ele havia partido.
- Ela soltou um suspiro longo e cansado. - Ele mandou um cartão-postal para o seu pai, de algum lugar no norte. Mas, é claro, seu pai já tinha fugido da greve e,
portanto, nunca o recebeu. Mais tarde, quando Andy voltou, deixou um bilhete para a irmã dele dizendo que não suportava mais. O pobre coitado se matou.
- E o que isso tem a ver com o meu pai? - perguntou Misha.
- Sempre achei que o fato de seu pai ter furado a greve foi a gota d'água. - A expressão de Jenny era uma mistura de piedade e convencimento. - Foi o que
condenou Andy.
- Você não tem como saber isso. - Misha se afastou, aborrecida.
- Não sou a única por aqui que pensa assim. Se seu pai tivesse confiado em alguém, teria sido em Andy. E isso deve ter sido demais para aquela pobre alma
fragilizada. Ele tirou a própria vida, sabendo que seu único amigo de verdade havia traído tudo aquilo que ele defendia.
Naquele tom melodramático, Jenny se levantou e pegou um saco de cenouras da prateleira. Estava claro que ela dera por encerrado o assunto Mick Prentice.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen deu uma espiada no relógio. Quaisquer que fossem as qualidades de Misha Gibson, a brevidade não era uma delas.
- Então Andy Kerr provou ser, literalmente, um caso morto e enterrado?
- Minha mãe acha que sim. Mas parece que nunca encontraram o corpo. Talvez ele não tenha se matado, afinal - disse Misha.
- Eles nem sempre aparecem - Karen disse. - Às vezes, o mar os reivindica. Ou a floresta, que seja. Ainda existe muito espaço vazio nesta terra.
A resignação tomou conta do rosto de Misha. Karen percebeu que ela era uma mulher inclinada a acreditar no que lhe diziam. Se havia alguém que sabia disso, era sua
mãe. Talvez as coisas não fossem tão preto no branco quanto Jenny Prentice queria que sua filha pensasse.
- Isso é verdade - disse Misha. - E minha mãe falou mesmo que ele havia deixado um bilhete. Será que a polícia ainda o tem?
Karen balançou a cabeça.
- Duvido. Se em algum momento esteve com a gente, foi devolvido à família dele.
- Não teria havido um inquérito? Não teriam precisado do bilhete para isso?
- Você se refere a uma Investigação de Acidente Fatal - disse Karen.
- Não sem um corpo. Se existir um arquivo desse caso, é a respeito de pessoa desaparecida.
- Mas ele não está desaparecido. A irmã dele conseguiu que ele fosse declarado morto. Seus pais morreram no acidente da balsa de Zeebrugge, mas parece que
o pai sempre se recusou a acreditar que Andy tivesse morrido; então, não alterou o testamento para deixar a casa para a filha. Ela teve que ir ao tribunal e pedir
que declarassem Andy morto, para que ela pudesse herdá-la. De qualquer modo, foi o que minha mãe me contou. - Nenhum sinal de dúvida perturbava a expressão de Misha.
Karen anotou irmã de Andy Kerr e acrescentou um pequeno asterisco à observação.
- Portanto, se Andy se matou, voltamos a ter como única explicação racional para seu pai ter desaparecido o fato de ele querer furar a greve. Você fez alguma
tentativa de contatar os caras com quem se supõe que ele tenha fugido?
Segunda-feira, 25 de junho de 2007; Edimburgo
Nove e dez da manhã de uma segunda-feira e Misha já se sentia exausta. Ela já deveria estar com Luke no hospital. Brincando com ele, lendo para ele, bajulando os
terapeutas para que ampliassem seus procedimentos, discutindo planos de tratamento com a equipe médica e usando toda a sua energia para contagiá-los com a sua convicção
de que era possível salvar o filho. E, se era possível, todos eles tinham a obrigação de lhe proporcionar até a última gota de intervenção médica.
Mas, em vez disso, Misha estava sentada no chão, com as costas contra a parede, os joelhos dobrados, o telefone no colo e o bloco de anotações a seu lado. Ela disse
a si mesma que estava tomando coragem para dar um telefonema, mas no fundo sabia que a exaustão era o verdadeiro motivo por trás da inatividade.
Outras famílias aproveitavam os fins de semana para relaxar, recarregar as baterias. Mas não os Gibson. Para começar, havia menos funcionários trabalhando no hospital,
então Misha e John se sentiam obrigados a dedicar
mais energia que o habitual a Luke. Tampouco havia descanso quando eles voltavam para casa. O fato de Misha acreditar que a última esperança para o filho era encontrar
seu pai havia simplesmente agravado o conflito entre seu ardor missionário e o otimismo passivo de John.
Esse fim de semana havia sido mais difícil que o normal. Ter um limite de tempo definido para a vida de Luke impregnava de valor e intensidade cada momento que compartilhavam.
Era difícil evitar uma espécie de sentimentalismo melodramático. Assim que saíram do hospital no domingo, Misha retomou o refrão que vinha repetindo desde que visitara
a mãe:
- Eu tenho que ir a Nottingham, John. Você sabe disso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta impermeável e curvou a cabeça para a frente, como se estivesse lutando contra um vento forte.
- Telefone para o cara - John falou. - Se ele tiver alguma coisa a dizer, dirá pelo telefone.
- Talvez não. - Ela correu um pouco para acertar o passo com ele. - As pessoas sempre contam mais coisas cara a cara. Talvez possa me dar alguma informação
sobre os outros que foram para lá com ele. Pode ser que eles saibam de alguma coisa.
John bufou.
- E como é que a sua mãe só se lembra do nome de um cara? Por que ela não pode te dar informações a respeito dos outros?
- Eu já disse. Ela apagou da memória tudo sobre aquela época. Tive que pressioná-la muito até ela me dar o nome de Logan Laidlaw.
- E você não acha incrível que o único cara de quem ela se lembra não tenha nenhum parente na região? Nenhuma maneira óbvia de ser rastreado?
Misha enganchou seu braço no dele, em parte para fazê-lo ir mais devagar.
- Mas eu o rastreei, não foi? Você é desconfiado demais.
- Não sou, não. Sua mãe não conhece o poder da Internet. Ela não sabe dos cadastros eleitorais on-line nem do site 192.com. Ela acha que, se não houver nenhum
ser humano a quem perguntar, você está ferrada. Pensou que não estava lhe dando nada que você pudesse usar. Ela não quer ver você bisbilhotando a respeito desse
assunto, ela não vai te ajudar.
- Então você e ela podem dar as mãos. - Misha soltou o braço do dele e caminhou rapidamente à sua frente.
John a alcançou na esquina da rua deles.
- Isso não é justo - ele disse. - Eu só não quero que você se machuque à toa.
- Você acha que ver meu filho morrer sem fazer nada para salvá-lo não está me machucando?
Misha sentiu o calor da raiva em seu rosto, soube que as lágrimas de ira estavam à espreita. Virou o rosto, piscando desesperadamente para os prédios altos de arenito.
- Encontraremos um doador. Ou eles encontrarão um tratamento. Toda essa pesquisa com células-tronco está avançando muito rápido.
- Não rápido o bastante para Luke - Misha disse, a familiar sensação de peso no estômago desacelerando seus passos. - John, por favor. Preciso ir a Nottingham.
Preciso que você tire uns dias de folga do trabalho para ficar com Luke.
- Você não precisa ir. Pode falar com o cara pelo telefone.
- Não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você não negocia com clientes pelo telefone. Não quando é alguma coisa importante. Você vai até eles pessoalmente.
Quer olhar em seus olhos. Tudo que estou pedindo é que você tire uns dias de folga para passar um tempo com seu filho.
Os olhos dele brilharam perigosamente, e ela soube que tinha ido longe demais. John balançou a cabeça com teimosia.
- Telefone para ele, Misha.
E isso foi tudo. Sua longa experiência com o marido havia lhe ensinado que, quando John assumia uma postura que acreditava estar certa, insistir no mesmo ponto
apenas lhe dava a oportunidade de construir defesas mais fortes. Ela não tinha argumentos novos que pudessem mudar sua decisão. Portanto, ali estava ela, sentada
no chão, tentando formular frases capazes de convencer Logan Laidlaw a lhe dizer o que havia acontecido com seu pai desde que ele a abandonara, havia mais de vinte
anos.
Sua mãe não lhe dera muita coisa para criar uma estratégia. Laidlaw era um esbanjador, um mulherengo, um homem que, aos trinta anos, ainda agia como um adolescente.
Aos vinte e cinco anos, já se divorciara com a péssima reputação de ser um homem habilidoso demais com os punhos quando perto das mulheres. A imagem que Misha guardava
do pai era incompleta e parcial, mas, mesmo com a visão imposta pela mãe, Mick Prentice não
parecia ser o tipo de homem que tivesse tempo a perder com Logan Laidlaw. Ainda assim, tempos difíceis criam os companheiros mais estranhos.
Finalmente, Misha pegou o telefone e digitou os números que ela havia encontrado através de buscas na Internet e em listas telefônicas. Provavelmente ele saíra para
trabalhar, ela pensou no quarto toque. Ou então estava dormindo.
O sexto toque foi interrompido abruptamente. Uma voz rouca grunhiu algo parecido com alô.
- É Logan Laidlaw? - Misha perguntou, lutando para manter a voz sob controle.
- Já tenho uma cozinha montada e não quero nenhum seguro. - O sotaque de Fife ainda era forte, as palavras se atropelando com o familiar sobe e desce.
- Não quero lhe vender nada, Sr. Laidlaw. Só preciso falar com o senhor um instante.
- É, sei. E eu sou o primeiro-ministro.
Ela podia sentir que ele estava a ponto de desligar.
- Sou a filha de Mick Prentice - ela revelou, sua estratégia tinha ido por água abaixo. Através da distância, ela podia ouvir o chiado líquido da respiração
dele. - Mick Prentice, de Newton of Wemyss - ela tentou.
- Eu sei de onde Mick Prentice é. Só não sei o que Mick Prentice tem a ver comigo.
- Olhe, sei que vocês dois não se veem muito, ultimamente, mas eu agradeceria qualquer informação que o senhor pudesse me dar. Realmente preciso encontrá-lo.
- O sotaque de Misha pulou algumas marchas até voltar à pronúncia carregada.
Uma pausa. Então, com um tom desconcertado:
- Por que você está me ligando? Não vejo Mick Prentice desde que saí de Newton of Wemyss, em 1984.
- Tudo bem, mas mesmo que vocês tenham se separado logo que chegaram a Nottingham, o senhor deve ter uma ideia de onde ele foi parar, aonde ele estava indo.
- Escuta aqui, docinho, não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim, nos separamos logo que chegamos a Nottingham? - ele parecia irritado,
a pouca paciência que tinha evaporava com as perguntas dela.
Misha engoliu um suspiro profundo e, então, disse lentamente:
- Só quero saber o que aconteceu com meu pai depois que vocês chegaram a Nottingham. Preciso encontrá-lo.
- Por acaso, você tem algum problema na cabeça, menina? Não faço a menor ideia do que aconteceu com seu pai depois que vim para Nottingham e sabe por quê?
Porque eu estava em Nottingham e ele, em Newton of Wemyss. E mesmo quando nós dois estávamos na mesma cidade, não éramos o que se pode chamar de compadres.
As palavras a atingiram como um balde de água fria. Será que havia algo errado com a memória de Logan Laidlaw? Estaria se esquecendo do passado?
- Não, isso não está certo - ela disse. - Ele foi para Nottingham com você.
Uma explosão de risadas, então uma tosse seca.
- Alguém está te enrolando, menina - ele ofegou. - Trotsky teria furado um piquete de greve antes do Mick Prentice que eu conheci. O que te faz pensar que
ele veio para Nottingham?
- Não sou só eu. Todo mundo pensa que ele foi para Nottingham com você e com os outros homens.
- Isso é loucura. Por que iriam pensar isso? Você não conhece a história da sua própria família?
- O que você quer dizer?
- Por Deus, menina, o seu bisavô. O avô do seu pai. Você não sabe a respeito dele?
Misha não fazia a mínima ideia de onde aquilo iria parar, mas pelo menos ele não tinha desligado na cara dela, como havia temido que fizesse.
- Ele morreu antes de eu nascer. Não sei nada sobre ele, a não ser que também era mineiro.
- Jackie Prentice - disse Laidlaw com algo que se aproximava à satisfação. - Ele foi um fura-greve em 1926. Depois do acordo sindical, ele teve de ser transferido
para um posto na superfície. Quando sua vida depende dos homens da sua equipe, você não quer ser um fura-greve no subterrâneo. A não ser que todo mundo esteja no
mesmo barco, como era nosso caso. Só Deus sabe por que Jackie permaneceu na cidade. Ele tinha que tomar um ônibus até Dysart só para conseguir uma bebida. Não havia
um só bar, em nenhum dos vilarejos de Wemyss, que o servisse. Então, seu pai e seu avô tiveram que trabalhar duas vezes mais que qualquer outra pessoa para serem
aceitos na mina. Nem morto Mick Prentice jogaria fora esse respeito. Ele preferiria morrer de fome. Isso mesmo, e deixar que você morresse junto com ele. Onde quer
que você tenha conseguido essa informação, eles não sabem de que diabos estão falando.
- Minha mãe me contou. É o que todos dizem em Newton. - O impacto das palavras dele a fizeram sentir como se todo ar houvesse sido sugado de seus pulmões.
- Bem, eles estão errados. Por que iriam pensar isso?
- Porque a noite em que você foi para Nottingham foi a última noite em que alguém em Newton o viu ou ouviu falar dele. E porque minha mãe, ocasionalmente,
recebe dinheiro pelo correio, com o carimbo de Nottingham.
Laidlaw respirou com dificuldade, uma exalação de sanfona no ouvido dela.
- Jesus, isso é espantoso. Bem, querida, sinto muito decepcioná-la. Cinco de nós partiram de Newton of Wemyss naquela noite de dezembro. Mas seu pai não estava
entre a gente.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen parou na lanchonete para comprar um sanduíche de salpicão de frango, quando voltava para sua mesa. Criminosos e testemunhas raramente conseguiam enganar Karen,
mas, quando se tratava de comida, ela podia enganar a si mesma dezessete vezes antes do café da manhã. O sanduíche, por exemplo. Pão integral, um pedaço de alface
murcha, algumas fatias de tomate e pepino e, pronto: passava a ser um alimento saudável. Esqueça a manteiga e a maionese. Na sua cabeça, as calorias eram canceladas
pelo benefício. Ela enfiou o caderno embaixo do braço e rasgou a embalagem plástica do sanduíche enquanto caminhava.
Phil Parhatka levantou os olhos quando Karen se deixou cair, pesadamente, na cadeira. Não pela primeira vez, o ângulo da cabeça dele a lembrou de que ele parecia
uma versão mais morena e mais magra de Matt Damon. Havia o mesmo nariz e queixo protuberantes, as sobrancelhas retas, o corte de cabelo à la Identidade Boume, e
a expressão que podia variar, de aberta a resguardada, num segundo. Só as cores eram diferentes.
A ascendência polonesa de Phil era responsável por seus cabelos escuros, os olhos castanhos e a pele intensamente branca; sua personalidade contribuíra com o minúsculo
furo em sua orelha esquerda, que geralmente acomodava um brinco de diamante, quando ele não estava de serviço.
- Como foi? - ele perguntou.
- Mais interessante do que eu esperava - ela admitiu, levantando-se novamente para pegar uma Coca Diet.
Entre mordidas e goles, ela fez um resumo conciso da história de Misha Gibson.
- E ela acredita no que esse velho caduco de Nottingham lhe contou? - ele perguntou, recostando-se na cadeira e entrelaçando os dedos atrás da cabeça.
- Acho que ela é o tipo de mulher que normalmente acredita no que as pessoas lhe dizem - disse Karen.
- Ela seria uma péssima policial, então. Portanto, imagino que você irá passar o caso para a Divisão Central investigar.
Karen deu uma dentada no sanduíche e mastigou vigorosamente, os músculos da mandíbula e têmpora se projetavam e contraíam como uma bola antiestresse sob pressão.
Ela engoliu antes de ter terminado de mastigar direito, empurrando o que sobrou com um gole de Coca Diet.
- Não tenho certeza - ela disse. - É um caso interessante.
Phil lançou um olhar cauteloso.
- Karen, não se trata de um caso arquivado. Não é nossa praia.
- Se eu passá-lo para a Central, vai acabar não dando em nada. Ninguém dé lá vai se incomodar com um caso em que as pistas esfriaram há vinte e dois anos.
- Ela se recusou a encarar o olhar desaprovador dele. - Você sabe disso tão bem quanto eu. E, segundo Misha Gibson, essa seria a última chance do filho dela.
- Ainda não faz com que seja um caso arquivado.
- Só porque não foi aberto em 1984 não significa que agora não esteja arquivado. - Karen sacudiu o resto de seu sanduíche apontando para arquivos sobre sua
mesa. - E nenhum destes aqui irá a qualquer lugar, a curto prazo. Darren Anderson: não há nada que eu possa fazer até que os policiais nas Canárias se mexam e descubram
em que bar a ex-namorada dele está trabalhando. Ishbel Mackindoe: aguardo que o laboratório me
diga se eles podem obter amostras viáveis de DNA das cartas anônimas. Patsy Millar: não posso seguir adiante com esse caso até que a Polícia Metropolitana de Londres
termine de cavar aquele jardim no bairro de Heringey e faça as análises criminais.
- Há testemunhas no caso de Patsy Millar com quem poderíamos falar novamente.
Karen deu de ombros. Ela sabia que podia usar a hierarquia para calar a boca de Phil, mas precisava demais da tranquilidade que havia entre eles.
- Elas não irão a lugar algum. Ou, senão, você pode pegar um dos detetives e lhe dar um pouco de treinamento em ação.
- Se você acha que eles precisam de treinamento em ação, deveria lhes dar esse caso arquivadíssimo de pessoa desaparecida. Você é uma inspetora agora, Karen.
Não se espera que saia investigando esse tipo de coisa. - Ele indicou com a mão os dois detetives sentados frente a seus computadores. - Isso é para gente como eles.
O que acontece é que você está entediada. - Karen tentou protestar, mas Phil continuou, sem lhe dar atenção. - Eu lhe disse, quando você aceitou essa promoção, que
iria ficar louca, sentada atrás de uma mesa. E agora, olhe só. Surrupiando os casos dos agentes da Central. O próximo passo é você sair para fazer pessoalmente os
interrogatórios.
- E daí? - Karen amassou a embalagem do sanduíche com mais força que o necessário e a atirou no lixo. - É bom manter a mão na massa. E vou garantir que tudo
seja feito de forma honesta. Levarei o detetive Murray comigo.
- O Novo em Folha? - O tom da voz de Phil era de incredulidade, seu semblante estava ofendido. - Você preferiria o Novo em Folha a mim?
Karen sorriu com doçura.
- Você agora é sargento, Phil. Um sargento com ambições. Ficar no escritório e esquentar minha cadeira ajudará suas aspirações a se tornarem realidade. Além
disso, o Novo em Folha não é tão ruim quanto você pensa. Ele faz aquilo que o mandam fazer.
- Isso um cachorro collie também faz. Só que o cão mostraria mais iniciativa.
- A vida de uma criança está em jogo, Phil. Eu tenho bastante iniciativa para nós dois. Isso deve ser feito da maneira correta e vou garantir que
seja. - Ela se virou para o computador com um ar de ter terminado a conversa.
Phil abriu a boca para falar mais, então, pensou melhor, ao ver o olhar repressivo que Karen lançou em sua direção. Eles se sentiram atraídos um pelo outro desde
o começo da carreira, reconhecendo a tendência comum de não se conformar. O fato de haverem galgado postos juntos lhes havia conferido uma amizade capaz de sobreviver
ao desafio da mudança de cargo. Mas ele sabia que havia um limite até onde podia pressionar Karen, e tinha a sensação de haver acabado de atingi-lo.
- Então, eu lhe darei cobertura por aqui - ele disse.
- Por mim, está ótimo - Karen disse, enquanto seus dedos voavam pelas teclas. - Marque a minha saída para amanhã de manhã. Tenho a impressão de que Jenny
Prentice será um pouquinho mais receptiva a uma dupla de policiais do que foi com a filha.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Aprender a esperar era uma das lições do jornalismo que as faculdades não ensinavam. Quando Bel Richmond tivera um emprego de tempo integral, em um jornal dominical,
sempre defendera que era paga não por uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, e sim pelos cinco minutos em que conseguia, com sua lábia, passar por uma
porta que ninguém antes conseguira cruzar. O que deixava bastante tempo livre para esperar. Esperar que alguém retornasse um telefonema. Esperar que o passo seguinte
da história acontecesse. Esperar que um contato se transformasse em informante. Bel havia passado por várias esperas e, embora tivesse se tornado habilidosa na atividade,
nunca havia aprendido a apreciá-la.
Tinha de admitir que já precisara esperar em ambientes muito menos salubres que aquele. Ali, havia o conforto do café, biscoitos e jornais. E a sala na qual havia
sido deixada oferecia a vista panorâmica que já enfeitara um milhão de latas de biscoitos amanteigados. Ocupando toda a extensão da Princess Street, exibia um punhado
de atrações turísticas: o castelo, o Scott Monument, a National Gallery e o parque Prince Street Gardens. Bel notou outra beleza arquitetônica significativa, mas
não sabia o suficiente sobre a cidade para identificá-la. Ela só visitara a capital escocesa algumas
vezes e não fora escolha sua realizar aquela reunião ali. Teria preferido Londres; porém, a relutância em mostrar seus trunfos antecipadamente a havia deslocado
do assento do motorista para o posto de suplicante.
De forma um tanto incomum para uma jornalista freelance, ela contava com um assistente de pesquisa. Jonathan era estudante de jornalismo na City University e pedira
a seu orientador que o indicasse para estagiar com Bel. Aparentemente, ele gostava do estilo dela. Bel ficara levemente agradecida pelo elogio, mas profundamente
maravilhada com a perspectiva de ter oito semanas livres de todo trabalho pesado. Sendo assim, Jonathan fizera o primeiro contato com a Maclennan Grant Enterprises.
Voltou com uma resposta bem simples: se a Srta. Richmond não estava preparada para declarar seu motivo para querer um encontro com Sir Broderick Maclennan Grant,
Sir Broderick não estava preparado para se encontrar com ela. Sir Broderick não dava entrevistas. Após algumas negociações adicionais a distância, ela chegara ao
presente acordo.
E agora, pensou Bel, ela estava sendo colocada em seu lugar. Obrigada a ficar esperando numa sala de reuniões de hotel. Forçada a entender que alguém tão importante
quanto a assistente pessoal do presidente e acionista principal da décima segunda empresa mais valiosa do país tinha compromissos mais urgentes em sua agenda do
que fazer sala para uma escritorazinha de Londres.
Gostaria de se levantar e caminhar um pouco, mas não queria revelar qualquer falta de compostura. Ceder terreno nunca fora natural para ela. Em vez disso, ajeitou
a jaqueta, verificou se a blusa estava adequadamente arrumada e tirou uma sujeirinha dos sapatos de camurça verde-esmeralda.
Afinal, precisamente quinze minutos depois da hora marcada, a porta se abriu. A mulher que entrou, num turbilhão de lã e caxemira, lembrava uma professora de colégio,
de idade indeterminada, mas acostumada a impor disciplina aos alunos. Por um momento insano, Bel quase se levantou de um pulo, num reflexo pavloviano às suas recordações
adolescentes de freiras terroristas. No entanto, conseguiu se conter e se levantou de forma mais lenta.
- Susan Charleson - disse a mulher, estendendo a mão. - Desculpe-me por tê-la feito esperar. Como Harold Macmillan disse uma vez: "Acontecimentos, caro rapaz.
Acontecimentos."
Bel decidiu não ressaltar que Harold Macmillan referia-se ao trabalho de primeiro-ministro, e não à função de babá de um líder industrial. Segurou os dedos mornos
e secos, em um aperto rápido e rígido, e, então, teve a mão liberada.
- Annabel Richmond.
Susan Charleson ignorou a poltrona em frente a Bel e dirigiu-se à mesa perto da janela. Pega de surpresa, Bel apanhou a bolsa e a pasta de couro e a seguiu. Sentaram-se
em lados opostos e Susan sorriu, os dentes pareciam uma linha de creme dental calcária em meio ao batom rosa-escuro.
- Você queria ver Sir Broderick - ela disse. Sem preâmbulos, sem conversa fiada sobre a vista. Simplesmente direta. Era uma técnica que Bel havia utilizado
algumas vezes, o que não queria dizer que a apreciasse quando a situação era inversa.
- Exatamente.
Susan balançou a cabeça.
- Sir Broderick não fala com a imprensa. Temo que você tenha desperdiçado seu tempo. Expliquei tudo isso a seu assistente, mas ele se recusou a aceitar uma
resposta negativa.
Foi a vez de Bel sorrir com frieza.
- E fez muito bem. Eu, obviamente, lhe dei um bom treinamento. Mas parece haver um mal-entendido. Não estou aqui para implorar por uma entrevista. Estou aqui
porque acho que tenho algo em que Sir Broderick ficará interessado. - Ela ergueu a pasta até a mesa e abriu o zíper. De dentro, retirou uma única folha de papel
A3 grosso, virada para baixo. Estava manchada e exalava um cheiro sutil, uma mistura curiosa de poeira, urina e lavanda. Bel não resistiu a lançar uma olhadela provocadora
para Susan Charleson. - Você gostaria de ver? - ela perguntou, virando o papel.
Susan tirou um estojo de couro do bolso da saia e extraiu dele uns óculos de aro de casco de tartaruga. Equilibrou-os no nariz, calmamente, mas sem tirar os olhos
das imagens em preto e branco à sua frente. O silêncio entre as mulheres pareceu crescer, e Bel sentiu-se sem ar enquanto esperava por uma resposta.
- Onde você encontrou isto? - Susan perguntou, seu tom de voz estava tão afetado quanto o de uma professora de latim.
Segunda-feira, 18 de junho de 2007; Campora, Toscana, Itália
Às sete da manhã era quase possível acreditar que o calor intenso dos últimos dez dias não fosse dar as caras. A luz perolada do dia cintilava entre a abóbada de
folhas de carvalho e castanheira, deixando visíveis as partículas de poeira que espiralavam, emitidas pelos pés de Bel. Ela se movia devagar o bastante para notá-las
porque a trilha destruída que descia em meio às árvores era sulcada e esburacada, coberta com pedras irregulares o bastante para conscientizar qualquer corredor
da fragilidade de seus tornozelos.
Apenas mais duas daquelas corridas matinais tão apreciadas antes de retornar às sufocantes ruas de Londres. O pensamento provocou uma ferroada de arrependimento.
Bel adorava escapulir da villa enquanto todos ainda estavam dormindo. Ela podia andar descalça pelo chão frio de mármore, fingindo ser a castelã do lugar, e não
simplesmente outra arrendatária tentando tirar uma casquinha da elegância toscana.
Ela vinha tirando férias com o mesmo grupo de cinco amigas desde que dividiram uma casa, em seu último ano na universidade de Durham. Naquela primeira vez, elas
estavam estudando arduamente para os exames finais. Os pais de uma delas tinham uma casa de campo na Comualha, que elas ocuparam por uma semana. Haviam chamado aquilo
de pausa nos estudos; na verdade, foram umas férias em que descansaram e relaxaram, ficando em melhores condições para prestar os exames do que se tivessem se exaurido
com livros e artigos. E, apesar de serem jovens modernas e nem um pouco dadas a superstições, todas sentiram que a semana que haviam passado juntas tinha, de alguma
forma, sido responsável por suas boas notas. Desde então, vinham se reunindo todos os anos, em junho, com o compromisso de se divertir.
Ao longo dos anos, seus hábitos alcoólicos haviam se tornado mais apurados; os alimentícios, mais epicuristas; e as conversas, mais escandalosas. Os lugares haviam
se tornado cada vez mais luxuosos. Amantes jamais eram convidados para compartilhar aquela semana das garotas. Ocasionalmente, uma delas hesitava, alegando muita
pressão no trabalho ou obrigações familiares, mas, geralmente, era ameaçada e mudava de ideia rapidamente e sem dar muito trabalho.
Para Bel, aquele era um elemento significativo de sua vida. Todas aquelas mulheres eram bem-sucedidas, todas eram fontes com as quais podia
contar para suavizar seu caminho, de tempos em tempos. Mas, apesar disso, não era essa a razão principal de suas férias serem tão importantes. Parceiros haviam chegado
e partido, mas aquelas amigas sempre foram uma constante. Em um mundo no qual se era julgado de acordo com sua última manchete, era agradável ter um refúgio onde
nada disso importava. Onde ela era apreciada simplesmente porque o grupo se divertia mais quando ela estava presente. Elas se conheciam havia muito tempo para perdoar
os defeitos umas das outras, para aceitar as opiniões políticas umas das outras e para dizer aquilo que seria impronunciável diante de qualquer outra pessoa. Essas
férias faziam parte da fortaleza que ela constantemente levantava contra suas próprias inseguranças. Além disso, atualmente, eram as únicas férias que ela tirava
que estavam de acordo com o que ela queria fazer. Nos últimos seis anos, ela estivera presa à sua irmã viúva, Vivianne, e seu filho Harry. A morte repentina do marido
de Vivianne, vítima de um ataque cardíaco, a deixara emocionalmente abalada e muito carente. Bel não hesitara em unir seu destino ao da irmã e do sobrinho. No final,
tinha sido uma boa decisão, mas, ainda assim, ela valorizava muito a pausa anual daquela vida familiar que nunca imaginou que viveria. Principalmente agora, quando
Harry se encontrava à beira da crise existencial da adolescência. Este ano, portanto, mais ainda do que no passado, as férias tinham de ser especiais, precisavam
superar tudo que já havia existido.
Era difícil imaginar como elas superariam isso, ela pensou, enquanto emergia das árvores e virava num campo de girassóis que se preparavam para florescer. Ela se
apressou um pouco ao percorrer seu caminho pela margem, o-nariz franzindo com o aromático perfume da vegetação. Não havia nada que ela desejasse mudar naquele lugar,
nenhum defeito que pudesse encontrar nos jardins e nas árvores frutíferas que rodeavam a varanda e a piscina. A vista do Val d'Eisa era deslumbrante, com as cidadezinhas
de Volterra e San Gimignano no horizonte distante.
E havia o bônus adicional da culinária de Grazia. Quando elas descobriram que a "chef local" descrita no site da Internet era a esposa do criador de porcos que vivia
ali perto, desistiram de chamá-la até a villa para preparar uma refeição tipicamente toscana. Na tarde do terceiro dia, no entanto, todas estavam incomodadas demais
com o calor para se dar ao trabalho de cozinhar; então, chamaram Grazia. O marido, Maurizio, a levou até a villa
num Fiat Panda caindo aos pedaços, que parecia se manter inteiro à custa de barbantes e fé. Ele descarregou caixas de comida cobertas de musselina. Num inglês macarrônico,
Grazia as expulsou da cozinha e mandou que fossem relaxar na varanda com um drinque.
A comida foi uma revelação: salames com frutas secas e prosciutto feito dos raros porcos Cinta di Siena que Maurizio criava, combinados com figos perfumados colhidos
em seu pomar; espaguete ao pesto de estragão e manjericão; codornas assadas com os vegetais cultivados por Maurizio e tiras compridas de batata temperadas com alecrim
e alho; queijos produzidos em fazendas da região e, finalmente, um delicioso bolo de amêndoas embebido com limoncello.
As mulheres nunca mais cozinharam.
A culinária de Grazia fez com que as corridas matinais de Bel se tornassem ainda mais necessárias. Ao aproximar-se dos quarenta, ela lutava cada vez mais para manter
o que pensava ser seu peso ideal. Naquela manhã, seu estômago ainda parecia uma bola rígida, após as suaves e deliciosas berinjelas alia parmigiana que a haviam
tentado a repetir generosamente o prato. Iria correr um pouco mais longe do que o normal, decidiu. Em vez de fazer o circuito do campo de girassóis e subir de volta
à villa, tomaria uma trilha que ia da extremidade mais distante e cruzava o terreno coberto de vegetação de uma casa colonica em ruínas, que ela avistara ao passar
de carro. Desde que vira a casa, na primeira manhã, tinha alimentado a fantasia de comprar a ruína e transformá-la no melhor dos refúgios toscanos, com direito
a piscina e jardim de oliveiras. E, é claro, com Grazia à disposição para cozinhar. Bel não tinha muitos escrúpulos com relação à invasão de propriedades, em fantasia
ou na realidade.
Mas ela se conhecia o suficiente para saber que aquilo nunca passaria de um sonho. Ser proprietária de um refúgio implicava o desejo, que ela não tinha, de abandonar
seu universo de trabalho. Talvez, quando estivesse pronta para se aposentar, pudesse considerar a possibilidade de devotar-se a um projeto de restauração como aquele.
A não ser pelo fato de admitir que esse era outro sonho pouco realista. Jornalistas jamais se aposentavam de verdade. Sempre havia outra história no horizonte, outro
alvo a perseguir. Sem falar do horror de ser esquecido. Todos motivos pelos quais seus relacionamentos passados não haviam durado, todos motivos pelos quais seu
futuro provavelmente reservasse as mesmas imperfeições. Ainda assim,
seria divertido dar uma olhada mais de perto na velha casa para ver seu estado. Quando mencionara a ideia a Grazia, ela fizera uma careta e a chamara de rovina.
Bel, cujo italiano era fluente, havia traduzido para as demais: "ruína". Hora de descobrir se Grazia estava dizendo a verdade ou apenas tentando desviar o interesse
de algumas ricaças inglesas.
O caminho através da grama alta ainda estava surpreendentemente limpo, o solo nu endurecido por anos de pisadas. Bel aproveitou a oportunidade para ir mais rápido,
até diminuir a velocidade ao chegar ao pátio fechado por portões, em frente à velha fazenda. Os portões estavam dilapidados, pendendo frouxamente das dobradiças
que mal se apegavam aos pilares de pedra. Uma corrente pesada e um cadeado os mantinham fechados. Mais além, o pavimento quebrado do pátio estava demarcado por tufos
rasteiros de tomilho, camomila e mato. Bel sacudiu os portões sem muita esperança. Mas foi o suficiente para revelar que o canto inferior do portão direito havia
se soltado completamente do suporte. Poderia ser facilmente afastado para que um adulto passasse pela abertura. Bel deslizou por ali e soltou o portão, que rangeu
suavemente ao voltar para sua posição de origem, aparentemente fechado.
De perto, ela pôde entender a descrição de Grazia. Qualquer um que assumisse a restauração ficaria escravo dos pedreiros por um longo, longo tempo. A casa rodeava
o pátio em três lados, uma ala central delimitada por dois braços iguais. Havia dois andares, com uma varanda percorrendo todo o segundo andar, na qual se abriam
portas e janelas, conferindo aos quartos fácil acesso ao ar livre e ao espaço de uso comum. Mas o chão da varanda havia cedido, as portas que restavam estavam tortas
e as vergas sobre as janelas estavam rachadas, pendendo em ângulos estranhos. As vidraças, em ambos os andares, estavam imundas, rachadas ou haviam desaparecido.
Mas as linhas sólidas da atraente arquitetura local ainda eram visíveis, e as pedras ásperas brilhavam calorosamente ao sol da manhã.
Bel não teria conseguido explicar por que, mas a casa a atraía. Tinha o charme desgastado de uma beldade suficientemente segura de si para permitir-se envelhecer
sem luta. Buganvílias sem poda estendiam-se sobre o estuque ocre descascado e cobriam a parede inferior da varanda. Se ninguém decidisse se apaixonar logo pela casa,
muito em breve ela estaria tomada pela vegetação. Em algumas gerações, não seria nada além de um
aterro inexplicável na ladeira da colina. Mas, naquele instante, ela ainda tinha o poder de enfeitiçar.
Bel atravessou o pátio que se esfarelava, passando por vasos de terracota rachados e tombados; as ervas que estes um dia haviam contido agora se espalhavam e brotavam
livremente, condimentando o ar com suas fragrâncias. Ela empurrou uma porta pesada, feita de tábuas de madeira que pendiam de uma única dobradiça. A madeira raspou
ruidosamente contra o piso desnivelado, de tijolos assentados em ziguezague, mas se abriu o suficiente para que Bel entrasse na sala ampla sem ter de se espremer.
Sua primeira impressão foi de sujeira e abandono. Teias de aranha se entrelaçavam num emaranhado que ia de parede a parede. As janelas estavam manchadas de poeira.
Um ruído de algo rastejando, a distância, fez com que Bel olhasse em volta, em pânico. Ela não tinha medo dos editores de jornais, mas ratos de quatro patas a enchiam
de repulsa.
Conforme ia se acostumando à obscuridade, Bel percebeu que a sala não estava completamente vazia. Havia uma mesa comprida contra uma parede. No lado oposto, um sofá
com o assento afundado. A julgar pelo resto do lugar, deveria estar podre e imundo, mas o tecido vermelho-escuro que o forrava ainda se mantinha relativamente limpo.
Ela arquivou aquele dado estranho para posterior consideração.
Bel hesitou por um instante. Tinha certeza de que nenhuma de suas amigas a encorajaria a prosseguir na exploração daquela estranha casa deserta. Mas ela havia construído
sua carreira com base em uma reputação de audácia. Só ela sabia com que frequência sua aparência ocultava níveis de ansiedade e incerteza que a haviam feito vomitar
em sarjetas e banheiros nos lugares mais estranhos. Depois de tudo que ela já havia enfrentado, em sua determinação de conseguir uma boa história, até que ponto
uma ruína deserta poderia ser assustadora?
Uma porta na extremidade mais distante conduzia a um corredor apertado, com uma escadaria gasta de pedra que levava à varanda. Mais à frente, ela podia ver outra
sala escura e suja. Espiou lá dentro, surpresa em ver um varal pendurado a um canto, com meia dúzia de cabides de metal. Pendurado em um dos cabides, havia um cachecol
de tricô. Por baixo, uma pilha amarrotada de roupa de camuflagem. Parecia uma daquelas jaquetas de caça, geralmente à venda na caminhonete que ficava no estacionamento
em frente ao café, na estrada principal de Colle di Val d'Eisa. As mulheres tinham rido daquilo uns dias atrás, se perguntando quando é que tinha virado moda os
italianos de todas as idades vestirem-se como recém-saídos do serviço militar nos Bálcãs. Estranho, ela pensou. Bel subiu cautelosamente as escadas até a varanda,
esperando encontrar a mesma sensação de lugar havia muito desabitado.
Porém, assim que emergiu da escadaria, percebeu que penetrara em algo muito diferente. Quando se virou para a esquerda e espiou pela primeira porta, entendeu que
aquela casa não era o que parecia. O bolor úmido do andar térreo era infinitamente menor ali, e o ar estava quase tão fresco quanto lá fora. O cômodo havia, obviamente,
sido um quarto, e não fazia muito tempo. Havia um colchão no chão com uma colcha atirada casualmente por cima, da metade para os pés. Estava empoeirado, mas não
havia nada comparável à sujeira impregnada do andar de baixo. De novo, havia um varal no canto. Tinha uma dúzia de cabides vazios, mas os últimos três seguravam
camisas levemente amarrotadas. Mesmo a distância, ela podia ver que não estavam em seu melhor estado, desbotadas nas mangas e nos colarinhos.
Um par de caixotes de tomate funcionava como criados-mudos. Sobre um deles, um toco de vela num pires. Uma edição amarelada do jornal Frankfurter AUgemeine Zeitung
jazia no chão, ao lado do colchão. Bel o apanhou, notando que a data era de menos de quatro meses atrás. Teve então uma ideia de quando o lugar havia sido abandonado
pela última vez. Ela ergueu a manga de uma das camisas e a pressionou contra o nariz. Alecrim e maconha. Suave, mas inconfundível.
Voltou para a varanda e verificou os demais quartos. O padrão era semelhante. Mais três quartos contendo uma porção de restos: algumas camisetas, livros e revistas
em inglês, italiano e alemão, meia garrafa de vinho, um resto de batom, uma sandália de couro cuja sola havia se soltado da parte de cima - o tipo de coisa que alguém
deixaria para trás, caso estivesse se mudando sem a mínima ideia de quem viria em seguida. Em um dos quartos, um buquê de flores enfiado num pote de azeitonas havia
secado a ponto de se desfazer.
O último quarto no lado oeste era o maior, até agora. Suas janelas haviam sido limpas mais recentemente do que as dos outros, as persianas
tinham sido reformadas e as paredes, caiadas. No meio do quarto, no chão, havia uma tela de silk-screen. Sobre mesas de cavaletes, encostadas numa parede, havia
copos plásticos manchados com pigmentos ressecados e pincéis endurecidos de forma negligente. Manchas e borrões espalhados marcavam o piso. Bel estava intrigada,
sua curiosidade superava qualquer vestígio de nervosismo por estar sozinha naquele lugar tão peculiar. Quem quer que houvesse estado ali, devia ter partido apressadamente.
Deixar uma sólida tela de silk-screen para trás não era algo que se fizesse, numa partida planejada.
Ela retornou à varanda e dirigiu-se à ala oposta. Teve o cuidado de permanecer próximo à parede, não confiando que o piso ondulado de tijolos suportasse seu peso.
Passou pelas portas dos quartos, sentindo-se como uma intrusa no Mary Celeste*. Um silêncio que não era quebrado nem mesmo por cantos de pássaros acentuava aquela
impressão. O último cômodo antes do canto era um banheiro cuja mescla nauseante de odores ainda pairava no ar. Um rolo de mangueira estava no chão, uma das extremidades
desaparecia através de um buraco perto da janela. Eles haviam, portanto, improvisado um pouco de água corrente, embora não o suficiente para deixar o vaso sanitário
menos asqueroso. Ela franziu o nariz e retrocedeu.
Bel virou a esquina da varanda no instante em que o sol se elevava acima das árvores, banhando-a num repentino calor. Fez com que sua entrada no último quarto fosse
ainda mais assustadora. Estremecendo com o ar úmido, ela se aventurou lá dentro. As persianas estavam bem fechadas, deixando o interior escuro demais para enxergar
qualquer coisa. Mas, conforme seus olhos se ajustaram, ela obteve uma impressão do quarto. Tinha as mesmas dimensões do estúdio, mas sua função era bem diferente.
Ela o atravessou até a janela mais próxima e forçou até finalmente abrir a persiana pela metade. Era o suficiente para confirmar sua primeira impressão. Aquele havia
sido o centro da ocupação da casa rovina. Havia um velho fogão desgastado, conectado a um botijão de gás, ao lado da pia de pedra. A mesa de jantar estava arranhada
e era de madeira nua, porém sólida, e com pernas lindamente esculpidas. Havia sete cadeiras díspares ao redor, e uma oitava encontrava-se tombada, a alguns metros
de distância. Contra as
* Barco encontrado à deriva, em 1872, no estreito de Gibraltar, cuja tripulação desapareceu. (N.E.)
paredes, uma cadeira de balanço e alguns sofás. Peças avulsas de louça e talheres estavam espalhadas, como se os moradores não se tivessem dado ao trabalho de recolhê-las
de onde haviam deixado.
Quando Bel se afastou da janela, uma mesa bamba chamou sua atenção. Como estava atrás da porta, era fácil não percebê-la. Uma coleção do que pareciam ser pôsteres
se espalhava sobre ela. Fascinada, ela foi em direção à mesa. Dois passos e parou, sua respiração ofegante ecoava no ar poeirento.
Diante dela, no piso de pedra calcária, havia uma mancha irregular, de talvez noventa por quarenta e cinco centímetros. Marrom-ferrugem, bordas arredondadas e lisas,
como se houvesse escorrido e empoçado, em vez de espirrado. Era densa o bastante para obscurecer o piso de pedra sob ela. Uma porção, na extremidade mais distante,
parecia borrada e diluída, como se alguém houvesse tentado limpar, esfregando-a, para logo desistir. Bel já havia feito coberturas de histórias de violência doméstica
e de homicídio sexual o suficiente para reconhecer uma mancha de sangue relevante quando a via.
Assustada, deu um passo atrás, sentia-se tonta, o coração batia com tanta força que achou que fosse sufocá-la. Que diabos havia acontecido ali? Ela olhou em volta
de forma desordenada, percebendo outras manchas escuras marcando o piso além da mesa. Hora de sair daqui, gritava a parte sensata de sua mente. Mas o demônio da
curiosidade sussurrava em seu ouvido. Há meses não há ninguém aqui. Olhe para a poeira. Já faz tempo que se foram. Não vão voltar num futuro próximo. Seja o que
for que tenha acontecido aqui, foi motivo suficiente para que dessem o fora. Dê uma olhada nos pôsteres...
Bel rodeou a mancha, passando o mais longe possível para não tocar em nenhum móvel. De repente, ela sentiu o ar pesado. Sabia que era só imaginação, mas, ainda assim,
parecia real. De costas para o quarto e com o rosto voltado para a porta, ela foi andando de lado até a mesa e olhou para baixo, para os pôsteres que a cobriam.
O segundo choque foi quase tão forte quanto o primeiro.
Bel sabia que estava correndo rápido demais morro acima, mas não podia diminuir o passo. Podia sentir o suor da mão cobrir o papel de boa qualidade do pôster enrolado.
Por fim, a trilha emergiu do meio das árvores e ficou menos traiçoeira, ao aproximar-se de sua villa de férias. A estrada descia
quase imperceptivelmente, mas a gravidade era suficiente para dar a suas pernas cansadas um impulso extra, e ela ainda ia rápido ao virar a curva da casa e encontrar
Lisa Martyn deitada à sombra, no terraço, em uma espreguiçadeira e com a edição de sexta-feira do Guardian como companhia. Bel ficou aliviada. Precisava falar com
alguém e, de todas as suas companheiras, era menos provável que Lisa transformasse suas revelações em fofocas da hora do jantar. Lisa, como advogada de direitos
humanos, cuja compaixão e feminismo pareciam tão inevitáveis quanto o ato de respirar, entenderia o potencial da descoberta que Bel pensava ter feito. Assim como
seu direito de lidar com aquilo do jeito que achasse melhor.
Lisa afastou lentamente os olhos do jornal, perturbada pelo arfar incomum da respiração de Bel.
- Meu Deus - ela disse. - Você parece a ponto de infartar.
Bel colocou o pôster numa cadeira e se curvou, as mãos apoiadas nos joelhos, puxando o ar para dentro dos pulmões, arrependida dos cigarros surrupiados em segredo.
- Ficarei... bem... num minuto.
Lisa se levantou desajeitadamente da espreguiçadeira e correu até a cozinha, voltando com uma toalha e uma garrafa de água. Bel se empertigou, pegou a água e derramou
metade sobre a cabeça, fungando ao inalar um pouco acidentalmente. Então, esfregou a cabeça com a toalha e se deixou cair numa cadeira. Tomou um gole comprido de
água enquanto Lisa voltava para a espreguiçadeira.
- O que aconteceu? - Lisa perguntou. - Você é a corredora mais digna que eu conheço. Nunca vi uma Bel sem fôlego na vida. O que foi que a deixou neste estado?
- Encontrei uma coisa - Bel disse. Seu peito ainda lutava, mas ela conseguiu emitir alguns sopros de fala. - Pelo menos, acho que encontrei. E se estiver
certa, será a história da minha carreira. - Ela estendeu a mão para apanhar o pôster. - Espero que você possa me dizer se perdi completamente a cabeça.
Intrigada, Lisa jogou o jornal no chão e se endireitou.
- Então, o que é... essa coisa que pode ser alguma coisa?
Bel desenrolou o papel grosso, prendendo-o nos cantos com um moedor de pimenta, uma caneca de café e dois cinzeiros sujos. A imagem na folha
A3 era impressionante. Havia sido desenhada para que parecesse uma simples xilogravura em preto e branco, no estilo impressionista alemão. No alto da página, um
homem barbado, com um topete de cabelo duro, se inclinava por cima de uma tela, e suas mãos seguravam cruzes de madeira, das quais pendiam três marionetes. Mas não
eram marionetes comuns. Uma era um esqueleto, a segunda era um bode, e a terceira, uma representação da Morte, com o manto encapuzado e a foice. Havia algo indiscutivelmente
sinistro na imagem. Abaixo, contornada por uma borda negra funesta, havia uma área em branco, de aproximadamente oito centímetros de profundidade. Era o tipo de
espaço onde se poderia colocar um aviso anunciando uma apresentação teatral.
- Puta que me pariu! - disse Lisa. Finalmente, ela ergueu os olhos. - Catriona Maclennan Grant - ela disse. Havia espanto em sua voz. - Bel... onde diabos
você encontrou isto?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Bel sorriu.
- Antes de responder a isso, quero deixar algumas coisas claras.
Susan Charleson revirou os olhos.
- Você não pode estar achando que é a primeira pessoa que passa por esta porta com uma cópia falsificada do pôster de resgate. Vou lhe dizer o mesmo que disse
a todos os outros. A recompensa está condicionada à localização do neto de Sir Broderick vivo, ou à demonstração, de forma conclusiva, de que ele esteja morto. Sem
falar em levar os assassinos de Catriona Maclennan Grant à Justiça.
- Você não está me entendendo - Bel disse, com um sorriso provocador, mas sem ceder um só milímetro. - Srta. Charleson, não estou nem um pouco interessada
no dinheiro de Sir Broderick. Mas tenho uma condição.
- Você está cometendo um erro. - A voz de Susan Charleson havia adquirido um toque ácido. - Este assunto é um caso policial. Você não está em posição de impor
condições.
Bel colocou a mão firmemente sobre o pôster.
- Posso sair agora mesmo por aquela porta com este pôster e esquecer que o vi. Não teria qualquer dificuldade em mentir para a polícia. Sou uma
jornalista, afinal. - Ela estava começando a se divertir muito mais do que havia previsto. - É a sua palavra contra a minha, Srta. Charleson. E eu sei que você não
quer que eu vá embora. Uma das habilidades que um jornalista bem-sucedido deve aprender é como ler as pessoas. E vi a forma como você reagiu ao olhar para isto.
Você sabe que é verdadeiro, e não uma cópia falsificada.
- Você tem uma postura bem agressiva - Susan Charleson parecia quase indiferente.
- Prefiro dizer que sou assertiva. Não vim aqui para discutir com você, Srta. Charleson. Quero ajudar. Mas não de graça. Pela minha experiência, os ricos
não dão valor a nada daquilo por que não tenham de pagar.
- Você disse que não estava interessada em dinheiro.
- É verdade. Não estou. No entanto, estou interessada em reputação. E a minha reputação está construída sobre o fato de não ser, simplesmente, a primeira
a aparecer com a história, mas em obter a história por trás da história. Acho que existem áreas em que posso ajudar a desvendar isso com mais eficácia do que os
canais oficiais. Tenho certeza de que você irá concordar, quando eu explicar de onde veio este pôster. Tudo o que peço é que você não me impeça de investigar o caso.
E, além disso, que você e seu chefe cooperem compartilhando informações sobre o que estava acontecendo na época em que Catriona foi sequestrada.
- Esse é um pedido bastante significativo. Sir Broderick não é um homem que aceite abrir mão facilmente de sua privacidade. Você há de convir que não tenho
autoridade para lhe garantir o que está pedindo.
Bel ergueu um ombro delicadamente.
- Então, podemos nos encontrar novamente quando você tiver uma resposta. - Ela deslizou o pôster pela mesa, abrindo a pasta para guardá-lo novamente.
Susan Charleson se levantou.
- Se você puder me dar alguns minutos, pode ser que eu consiga lhe dar uma resposta agora.
Bel soube, neste ponto, que havia ganhado. Susan Charleson queria demais aquilo. Ela convenceria o chefe a aceitar o acordo. Fazia anos que Bel não se sentia tão
excitada. Não significava simplesmente uma enxurrada de notícias e colunas jornalísticas, embora não houvesse um só jornal no
mundo que não fosse ficar interessado. Principalmente depois do caso Madeleine McCain. Com acesso ao misterioso Brodie Grant, mais a chance de descobrir o paradeiro
de seu neto, aquilo era um best-seller em potencial. O A Sangue Frio do novo milênio. Seria sua porta de entrada para o mundo do dinheiro fácil.
Bel sorriu. Talvez ela pudesse usar os ganhos na compra da casa ravina e assim completar o círculo. Era difícil imaginar algo mais perfeito.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Já fazia alguns anos desde a última vez que Karen tomara a estrada de mão única que conduzia a Newton of Wemyss. Mas era óbvio que o vilarejo tinha passado pelas
mesmas transformações que as vilas vizinhas, que margeavam a estrada principal. Aqueles que trabalhavam nas cidades próximas tinham atacado avidamente as quatro
vilas de Wemyss, enxergando possíveis casas rústicas no que um dia foram tristes casebres de mineiros. Cabanas de um quarto tinham sido demolidas para que se construíssem
amplas casas de campo, quintais transformados por estufas de plantas que enchiam de luz as cozinhas obscuras. Vilarejos que tinham fenecido e morrido após o desastre
na mina Michael, em 1967, e devido aos fechamentos que se seguiram à greve de 1984, haviam renascido como cidades-dormitório, cuja ideia de comunidade se restringia
às noites de jogos no pub local. Nas lojinhas da vila se podia comprar uma vela perfumada, mas não um litro de leite. A única forma de saber que já houvera uma comunidade
mineira ali era através de uma maquete do sistema de elevador do poço da mina, que se erguia sobre o ponto em que a ferrovia particular a vapor havia, no passado,
cruzado com a estrada principal, carregada com vagões abertos de carvão destinados ao fim da linha, em Thomton Junction. Agora, as casas caiadas dos mineiros pareciam
uma opção deliberada do arquiteto, como uma vila típica deveria parecer. O passado tinha sido superado por um presente de design.
Desde sua última visita, Newton of Wemyss havia melhorado muito. O modesto memorial de guerra ficava num triângulo de grama aparada no centro. Floreiros de madeira
o circulavam a intervalos perfeitos. Imaculadas casas de campo térreas bordejavam o parque da cidade, e a única exceção à baixa linha de construção era o imponente
volume do pub local, o Laird
o' Wemyss. Antigamente, havia sido propriedade coletiva da comunidade local sob o sistema Gothenburg*, mas os tempos difíceis nos anos oitenta o haviam obrigado
a fechar as portas. Agora, era um restaurante, e sua "cozinha de fusão escocesa" era capaz de atrair à cidade visitantes de lugares tão remotos quanto Dundee e Edimburgo,
e seus preços se elevavam bem acima do orçamento. Ela se perguntou quanto Mick Prentice teria de se deslocar para uma simples cerveja, se houvesse permanecido em
Newton.
Consultou as orientações que havia imprimido do site Mapquest e indicou uma estrada no ápice do triângulo a seu motorista, o detetive Jason "Novo em Folha" Murray.
- Você tem que descer esta rua aqui - ela disse. - Em direção ao mar. Onde ficava a mina.
Logo deixaram o centro da vila para trás. Arbustos desgrenhados bordejavam um exuberante campo de trigo verde à direita.
- Toda essa chuva, está fazendo tudo crescer de forma desenfreada - disse o Novo em Folha. Ele levara os 25 minutos do escritório até ali para produzir aquele
comentário.
Karen não estava interessada em conversar sobre o clima. O que havia para dizer? Tinha chovido o maldito verão inteiro, até agora. Só porque não estava chovendo
naquele exato instante, não significava que não choveria no fim do dia. Ela olhou à sua esquerda, onde os prédios da mina de carvão haviam estado. Tinha uma vaga
lembrança de haver escritórios, banheiros e uma cantina. Agora, tudo se reduzia ao alicerce de concreto, com o mato abrindo caminho entre as rachaduras irregulares
para reivindicar o terreno. Mais adiante, havia uma série de casebres intactos dos mineiros; oito casas deterioradas, no meio do nada devido à demolição dos prédios
que um dia deram razão à sua existência. Além delas havia um denso grupo de sicômoros e faias, um compacto quebra-vento entre as casas e a borda do penhasco, que
descia nove metros até a faixa costeira.
- Era ali que ficava a Lady Charlotte - ela disse.
- Hã? - o Novo em Folha pareceu espantado.
- A mina, Jason.
- Ah. Certo. Claro. Não é do meu tempo. - Ele espiou pelo para-brisa, fazendo-a se perguntar, com certa irritação, se ele precisaria de óculos. - Qual é a
casa, chefe?
* Aplicava-se ao controle do consumo e da comercialização de bebidas alcoólicas. (N.E.)
Ela apontou para a penúltima. O Novo em Folha desviou o carro dos buracos com tanto cuidado quanto se fosse seu e parou no final da rua de Jenny Prentice.
Apesar do telefonema de Karen marcando o encontro, Jenny não teve pressa em abrir a porta, o que deu a eles tempo suficiente para examinar as lajotas de concreto
rachadas e a deprimente entrada de cascalhos cheia de mato.
- Se esta casa fosse minha... - começou o Novo em Folha e, então, abandonou o pensamento, como se fosse algo grande demais para considerar.
A mulher que atendeu à porta tinha o ar de alguém que passava seus dias deitada para que a vida pudesse pisoteá-la mais facilmente. Seu cabelo escorrido e grisalho
estava preso atrás com descuido, mechas escapando dos dois lados. A pele era enrugada, com veias irregulares mapeando as bochechas. Usava um jaleco de náilon que
vinha até o meio das coxas, por cima de uma calça preta barata cujo tecido estava repleto de bolinhas. O jaleco era de um tom de lavanda impossível de se encontrar
na natureza. Os pais de Karen ainda viviam em uma rua habitada por ex-mineiros e suas famílias, na ultrapassada cidade de Methil, mas até o mais desequilibrado de
seus vizinhos teria tido um pouco mais de trabalho com a aparência, ao saber que receberia uma visita oficial. Karen nem tentou não julgar Jenny Prentice pela aparência.
- Bom dia, Sra. Prentice - ela disse energicamente. - Sou a inspetora Pirie. Conversamos pelo telefone. Este é o detetive Murray.
Jenny balançou a cabeça e fungou.
- É melhor vocês entrarem.
A sala era apertada, mas limpa. Os móveis, assim como o carpete, estavam fora de moda, mas nem um pouco surrados. Era uma sala para ocasiões especiais, pensou Karen,
em uma vida na qual não havia muitas.
Jenny acenou para que eles se sentassem no sofá e se postou na beirada da poltrona, no lado oposto. Estava claro que não lhes ofereceria nada para beber.
- Então, vocês estão aqui por causa da nossa Misha. Pensei que tivessem mais o que fazer, com todas essas coisas horríveis que sempre leio nos jornais.
- Um marido e um pai desaparecido é algo bastante horrível, a senhora não acha? - disse Karen.
Os lábios de Jenny se apertaram, como se ela sentisse a queimação de uma azia.
- Depende do homem, inspetora. O tipo de cara com quem a senhora costuma se deparar no seu trabalho... não creio que muitas esposas e filhos se incomodem,
quando eles são levados embora.
- A senhora ficaria surpresa. A maioria das famílias fica inconsolável. E pelo menos elas sabem onde o homem delas está. Não precisam viver com a incerteza.
- Não pensei que estivesse vivendo com a incerteza. Achava que sabia muito bem onde Mick estava, até que a nossa Misha começasse a fuçar por aí tentando encontrá-lo.
Karen assentiu.
- A senhora achava que ele estivesse em Nottingham.
- Isso. Achava que ele tivesse ido furar greve. Para ser sincera, não fiquei muito chateada de vê-lo pelas costas. Mas fiquei furiosa por ele ter colocado
aquele rótulo na gente. Preferiria que ele estivesse morto a que fosse um fura-greve, se é o que você quer saber. - Ela apontou para Karen.
- Você fala com sotaque da região. Deve saber como é ficar marcada desse jeito.
Karen assentiu.
- Pior então é saber agora que parece que ele não furou greve nenhuma.
Jenny desviou o olhar.
- Não sei de nada disso. Tudo que sei é que ele não foi para Nottingham naquela noite com aquele grupo de fura-greves.
- Bem, estamos aqui para desvendar o que realmente aconteceu. Meu colega fará algumas anotações, apenas para garantir que eu me lembre direitinho de tudo
o que a senhora me disser. - O Novo em Folha, apressadamente, pegou o caderno, folheando-o com nervosismo. Talvez Phil estivesse certo a respeito das deficiências
dele, pensou Karen. - Agora, preciso do nome completo dele e sua data de nascimento.
- Michael James Prentice. Nascido em 20 de janeiro de 1955.
- E vocês todos moravam aqui na época? A senhora, Michael e Misha?
- Isso. Morei aqui durante toda a minha vida de casada. Nunca tive escolha quanto a isso.
- A senhora tem uma foto de Mick que possa nos dar? Sei que já faz muito tempo, mas poderia ser útil.
- Vocês podem colocar no computador e envelhecer, não podem? - Jenny foi até um aparador e abriu uma gaveta.
- Às vezes, é possível. - Mas caro demais, a não ser que houvesse um motivo mais urgente que a leucemia do seu neto.
Jenny pegou um álbum de couro preto e o trouxe até a poltrona. Quando o abriu, a capa rangeu. Mesmo de cabeça para baixo e do outro lado da sala, Karen podia ver
que era um álbum de casamento. Jenny rapidamente passou pelas fotos formais de casamento até chegar a um envelope na parte de trás, repleto de fotografias avulsas.
Pegou um maço de fotos e as examinou. Parou em algumas e, então, finalmente optou por uma. Entregou a Karen uma fotografia retangular. Mostrava a cabeça e os ombros
de dois jovens, sorrindo para a câmera, o topo dos copos de cerveja aparecendo na imagem ao brindarem o fotógrafo.
- Este é o Mick, à esquerda - disse Jenny. - O bonitão.
Ela não estava mentindo. Mick Prentice tinha cabelo louro-escuro despenteado, cortado mais ou menos como o mullet que George Michael ostentara em sua fase com o
Wham. Mick tinha olhos azuis, cílios ridiculamente longos e um sorriso perigoso. Uma tatuagem de carvão, em forma de foice, atravessava sua sobrancelha direita,
impedindo-o de parecer bonito demais. Karen podia ver exatamente por que Jenny Prentice havia se apaixonado pelo marido.
- Obrigada - ela disse. - Quem é o outro cara?
Um tufo áspero de cabelo castanho, rosto comprido e ossudo, algumas cicatrizes de acne esburacando as bochechas fundas, olhos vivos e um sorriso triangular, como
o do Coringa dos quadrinhos do Batman. Não era bonito como seu companheiro, mas, mesmo assim, havia algo de sedutor nele.
- Seu melhor amigo. Andy Kerr.
O melhor amigo que se matou, segundo Misha.
- Misha me contou que seu marido desapareceu na sexta-feira, 14 de dezembro de 1984. É essa sua lembrança?
- Isso mesmo. Ele saiu de manhã com suas malditas tintas e disse que voltaria para o jantar. Foi a última vez que o vi.
- Tintas? Ele estava fazendo trabalhos extras?
Jenny emitiu um som de desdém.
- Até parece. Bem que precisávamos do dinheiro. Que nada, Mick pintava aquarelas. Pode acreditar? Dá para imaginar uma coisa mais inútil durante a greve de
1984 do que um mineiro pintando aquarelas?
- Ele não poderia vendê-las? - intrometeu-se o Novo em Folha, inclinando-se para a frente e parecendo perspicaz.
- Para quem? Todo mundo aqui estava duro e não havia dinheiro para que ele se arriscasse a tentar ir vender em outro lugar. - Jenny indicou a parede atrás
deles. - Ele teria tido sorte se conseguisse algumas libras por peça.
Karen se virou e olhou para as três pinturas pobremente emolduradas na parede. West Wemyss, Macduff Castle e a Lady's Rock. A seus olhos leigos, as pinturas pareciam
vívidas e expressivas. Ela as teria levado para casa, embora não soubesse quanto estaria disposta a pagar pelo privilégio, nos idos de 1984.
- Como foi que ele começou com isso? - Karen perguntou, virando-se para Jenny.
- Ele fez um curso no Serviço Social dos Mineiros, no ano em que Misha nasceu. A professora disse que ele tinha jeito para aquilo. Acho que ela dizia a mesma
coisa para qualquer um que fosse bonitinho.
- Mas ele deu continuidade?
- Permitia a ele sair de casa. Ficar longe das fraldas sujas e do barulho.
A amargura parecia emanar de Jenny Prentice em ondas. Era curioso, embora animador, que parecesse não ter contaminado a filha. Talvez aquilo tivesse alguma coisa
a ver com o padrasto de quem ela havia falado. Karen lembrou a si mesma de perguntar sobre o outro homem da vida de Jenny, que também parecia fazer-se notar pela
ausência.
- Ele pintou muito, durante a greve?
- Todo dia ele saía com sua sacola e o cavalete. Se estivesse chovendo, ele descia às cavernas com seus companheiros da Sociedade de Preservação.
- A senhora se refere às cavernas de Wemyss?
Karen conhecia as cavernas que retrocediam a partir da costa, afundando-se nos penhascos de pedra calcária entre East Wemyss e Buckhaven. Ela havia brincado ali
algumas vezes, quando criança, inconsciente de sua
importância histórica como um dos principais sítios pictos. As crianças locais as haviam tratado como áreas de diversão, uma das razões pelas quais se havia estabelecido
a Sociedade de Preservação. Agora, havia grades fechando as seções mais profundas e perigosas da rede de salões das cavernas, e historiadores e arqueólogos amadores
as haviam preservado como parque de diversões para adultos.
- Mick estava envolvido com as cavernas?
- Mick estava envolvido em tudo. Ele jogava futebol, pintava seus quadros, fuçava nas cavernas, estava metido até os dentes no sindicato. Tudo e qualquer
coisa era mais importante do que passar tempo com sua família.
- Jenny cruzou uma perna por cima da outra e os braços sobre o peito. - Ele dizia que isso o mantinha mentalmente são durante a greve. Acho que simplesmente
o mantinha longe de suas responsabilidades.
Karen sabia que aquele era um solo fértil para suas investigações, mas podia se dar ao luxo de deixar para mais tarde. A raiva reprimida de Jenny permanecia após
vinte e dois anos. Não iria a lugar algum. Havia algo muito mais imediato que a interessava.
- Então, durante a greve, onde Mick conseguia dinheiro para as tintas? Não conheço muito de arte, porém sei que papel e tintas adequados custam uma grana.
Ela não podia imaginar um mineiro em greve gastando com materiais artísticos quando não havia dinheiro para comida nem aquecimento.
- Não quero deixar ninguém em apuros - ela disse.
Sei.
- Foi há vinte e dois anos - Karen disse sem rodeios. - Não estou interessada em contrabando em pequena escala da época da greve dos mineiros.
- Um dos professores de arte da escola secundária vivia lá em Coaltown. Era um carinha bem esquisito. Uma perna mais curta que a outra e corcunda. Mick costumava
limpar o jardim para ele. O cara o pagava com tintas. - Ela deu uma fungada. - Perguntei se ele não podia pagar com dinheiro ou comida. Mas parece que o cara estava
dando todo o seu salário para a ex-mulher. As tintas ele podia surrupiar da escola. - Ela cruzou novamente os braços. - De qualquer jeito, ele já morreu.
Karen tentou afastar a sua aversão pela mulher, tão diferente da filha que a havia seduzido a entrar no caso.
- Então, como estavam as coisas entre vocês antes de Mick desaparecer?
- Eu culpo a greve. Tudo bem, nós tínhamos nossos altos e baixos. Mas foi a greve que colocou uma barreira entre nós. E não sou a única mulher nesta parte
do mundo que diz isso.
Karen sabia que aquilo era verdade. Naquela época, as terríveis privações da greve haviam deixado suas marcas em praticamente todo casal que ela conhecia. A violência
doméstica havia irrompido nos lugares mais improváveis; os índices de suicídio aumentaram; casamentos haviam se despedaçado diante da pobreza implacável. Ela não
compreendera isso na época, mas agora sim.
- Pode ser. Mas cada um tem uma história diferente. Eu gostaria de ouvir a sua.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
- Volto para o jantar - disse Mick Prentice, pendurando a grande bolsa de pano atravessada no corpo e pegando o pacote estreito com o cavalete dobrado.
- Jantar? Que jantar? Não tem nada nesta casa para comer. Você precisa sair para arranjar comida para sua família, não para pintar o maldito mar pela enésima
vez -Jenny gritou, tentando obrigá-lo a parar a caminho da porta.
Ele se virou, o rosto magro contorcido pela vergonha e pela dor.
- Você acha que não sei disso? Você acha que somos os únicos? Você acha que se eu tivesse alguma ideia de como melhorar as coisas, eu não estaria fazendo?
Ninguém tem porra nenhuma de comida. Ninguém tem porra nenhuma de dinheiro. - Sua voz entalou na garganta como um soluço. Ele fechou os olhos e respirou fundo. -
Ontem à noite, lá no Serviço Social, Sam Thomson disse que falaram de uma entrega de comida, vinda da Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas. Se você
for até lá, parece que vai chegar às duas horas. - Estava tão frio na cozinha que suas palavras formavam uma nuvem diante dos lábios.
- Mais esmolas. Não consigo me lembrar da última vez que, de fato, escolhi o que iria preparar para o jantar. - Jenny, repentinamente, se
sentou em uma das cadeiras da cozinha. Ergueu os olhos para ele. - Será que algum dia vamos superar isso?
- Só temos que aguentar mais um pouco. Já chegamos até aqui. Podemos vencer. - Ele parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a ela.
- Eles estão voltando a trabalhar, Mick. O tempo todo, estão voltando. Deu no noticiário na outra noite. Mais de um quarto das minas voltou a funcionar. Seja
o que for que digam Arthur Scargill e o resto da diretoria do sindicato, não há forma de ganharmos. É só uma questão de quanto aquela vaca da Thatcher nos fará perder.
Ele balançou a cabeça com veemência.
- Não diga isso, Jenny. Só há alguns focos lá no sul em que os mineiros cederam. Aqui no norte, estamos firmes como rochas. Em Yorkshire também. E em Gales
do Sul. E nós somos quem realmente importa.
Suas palavras soaram vazias e não havia convicção em seu rosto. Todos eles, pensou ela, estavam derrotados. Apenas não sabiam quando cair ao chão.
- Se você diz... - ela murmurou, virando-se.
Esperou até ouvir a porta se fechar atrás dele e, então, levantou-se lentamente e vestiu o casaco. Apanhou uma bolsa de plástico resistente e deixou o frio congelante
da cozinha para sair para o frio úmido da manhã. Essa era sua rotina, atualmente. Levantar-se e levar Misha à escola. No portão da escola, a pequena receberia uma
maçã ou uma laranja, um saco de batatas fritas e um biscoito de chocolate da associação Amigos de Lady Charlotte, um grupo desorganizado de estudantes e funcionários
públicos de Kirkcaldy, que garantiam que nenhuma criança começasse o dia de estômago vazio. Pelo menos os dias úteis.
E então, voltava para casa. Eles já haviam desistido de tomar leite junto com o chá, quando tinham chá. Em algumas manhãs, uma xícara de água quente era tudo o que
Mick e Jenny tinham para começar o dia. Aquilo não havia acontecido com frequência, mas uma só vez já era suficiente para lembrar como era fácil cair no abismo.
Depois de uma bebida quente, Jenny geralmente ia com a sacola até o bosque e tentava catar lenha suficiente para garantir algumas horas de calor à noite. Entre os
membros executivos do sindicato, sempre os chamando de
"camaradas", e a coleta de lenha, ela se sentia uma camponesa da Sibéria. Pelo menos eles tinham a sorte de viver perto de uma fonte de combustível. Ela sabia que
era muito mais difícil para outras pessoas. Tiveram a sorte de manter a lareira, graças ao benefício do carvão barato para os mineiros.
Ela cumpria aquela tarefa de forma mecânica, sem prestar muita atenção aos arredores, relembrando a última discussão entre ela e Mick. Às vezes, parecia que era
só a dificuldade que os mantinha unidos, só a necessidade de calor que os mantinha na mesma cama. A greve tinha aproximado alguns casais, mas muitos outros haviam
se separado como uma tora de madeira sob o fio do machado, após os primeiros meses, quando suas reservas de dinheiro se esgotaram.
Não havia sido tão ruim no começo. Desde a última onda de greves nos anos setenta, os mineiros tinham ganhado bastante dinheiro. Eles eram os reis do movimento sindicalista:
bem remunerados, organizados e confiantes. Afinal, haviam derrubado o governo de Ted Heath, na época. Eram intocáveis. E tinham dinheiro para provar.
Alguns haviam gastado até o último centavo: férias no exterior em que podiam expor ao sol a pele branca como leite e as tatuagens de carvão, carros exuberantes com
rádios caros, casas novas que pareciam ótimas quando eles se mudaram, mas que começaram a se deteriorar quase que imediatamente. Mas a maioria deles, cautelosa devido
à história passada, havia guardado um pouco do dinheiro. O bastante para cobrir o aluguel ou a hipoteca, o bastante para alimentar a família e pagar as contas de
combustíveis durante alguns meses. Foi a velocidade com que aquelas parcas economias desapareceram que os deixou aterrorizados. No início, o sindicato pagara salários
decentes aos homens que se amontoassem em carros, vans e microônibus para se unir a piquetes móveis, nas minas em funcionamento, usinas e plantas de coqueificação.
Mas a polícia tornara-se cada vez mais opressora para garantir que os grevistas itinerantes nunca chegassem ao destino, e não havia muito entusiasmo em pagar homens
para não atingir os objetivos. Além disso, nesses dias, os líderes sindicais estavam ocupados demais tentando esconder seus milhões dos confiscadores do governo
para se importar em desperdiçar dinheiro numa briga que deviam saber que estava fadada ao fracasso. Portanto, até mesmo aquela pequena fonte de renda havia se esgotado,
e a única coisa que as comunidades mineiras tinham para engolir era seu orgulho.
Jenny já havia engolido muito do seu durante os últimos nove meses. Havia começado logo de cara, quando ela ouvira que os mineiros escoceses iriam apoiar a região
carbonífera de Yorkshire na convocação de uma greve nacional, não da boca de Mick, mas de Arthur Scargill, presidente do Sindicato Nacional dos Mineradores. Não
pessoalmente, claro. Apenas sua conversa mole no noticiário da TV. Em vez de voltar direto da reunião no Serviço Social dos Mineiros para lhe contar, Mick havia
ficado com Andy e os outros colegas do sindicato, bebendo no bar como se dinheiro não fosse problema. Comemorando com a forma consagrada no grito de batalha do Rei
Arthur: Mineiros unidos jamais serão vencidos.
Desde o começo, as esposas sabiam bem que tudo aquilo era inútil. Uma greve de carvão deve ser feita no começo do inverno, quando a procura, por parte das usinas
elétricas, está no auge. Não na primavera, quando todos começam a desligar a calefação. E quando se parte para uma intensa ação industrial contra uma vaca como Margaret
Thatcher, deve-se proteger a retaguarda. Devem-se cumprir as leis trabalhistas. Devem-se cumprir suas próprias regras. Estipula-se uma eleição nacional. Não se deve
confiar numa interpretação dúbia de uma resolução aprovada três anos antes para um propósito distinto. Ah, sim, as esposas souberam que não daria em nada. Mas haviam
ficado de boca fechada e, pela primeira vez na vida, haviam formado sua própria organização para apoiar seus homens. Lealdade - era isso que contava nas vilas e
nas comunidades mineradoras.
E, portanto, Mick e Jenny ainda estavam juntos. Jenny às vezes se perguntava se a única razão pela qual Mick ainda estava com ela e Misha era porque não tinha aonde
ir. Pais falecidos, nenhum irmão ou irmã, não havia nenhum refúgio óbvio para ele. Ela havia lhe perguntado, uma vez, e ele ficara imóvel como uma estátua, por um
momento. Então, caçoara dela, negando que quisesse ir embora, lembrando-a de que Andy sempre o acolheria em seu sítio, se ele quisesse se afastar. Portanto, não
havia motivo para que ela imaginasse que aquela sexta-feira seria diferente de qualquer outra.
Quinta-feira; 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Então, aquela não foi a primeira vez que ele saiu com suas tintas para passar o dia fora? - perguntou Karen. O que quer que estivesse passando
pela cabeça de Jenny Prentice, claramente era muito mais que os fatos básicos que ela estava entregando.
- Quatro ou cinco vezes por semana.
- E a senhora? O que fazia no resto do dia?
- Ia até o bosque buscar gravetos, então voltava e assistia ao noticiário na TV. Foi um dia bastante especial, aquela sexta-feira. O Rei Arthur estava no
tribunal por obstrução da polícia, na Batalha de Orgreave. O Band Aid* chegou ao topo da parada de sucesso. Te digo uma coisa, eu poderia cuspir na cara deles. Todo
aquele esforço para arrecadar dinheiro para crianças a milhares de quilômetros, enquanto havia crianças famintas bem na porta deles. Onde estavam Bono e Bob Geldof,
quando nossos filhos despertaram na manhã de Natal e não havia nada em suas meias?
- Deve ter sido duro de encarar - Karen comentou.
- Foi como um tapa na cara. Não havia nenhum glamour em ajudar os mineiros, havia? - Um sorrisinho amargo iluminou seu rosto. - Mas poderia ter sido pior.
Poderíamos ter sido obrigados a aturar aquele merda hipócrita do Sting. Sem falar naquele maldito alaúde dele.
- Isso é verdade. - Karen estava se divertindo, dava para ver. Rir da própria desgraça era uma constante naquelas comunidades mineradoras. - E então, o que
a senhora fez depois do noticiário?
- Desci até o Serviço Social. Mick tinha falado alguma coisa sobre uma distribuição de comida. Entrei na fila e voltei para casa com um pacote de macarrão,
uma lata de tomates e duas cebolas. E um pacote de sopa desidratada. Lembro que fiquei bastante satisfeita. Peguei Misha na escola e achei que decorar a casa para
o Natal poderia nos animar um pouco, então, foi isso que fizemos.
- Quando a senhora percebeu que já era tarde para que Mick voltasse para casa?
Jenny fez uma pausa, a mão remexendo num botão do jaleco.
- Naquela época do ano, fica escuro cedo. Geralmente, ele voltaria não muito depois de mim e Misha. Mas como ficamos montando os enfeites de Natal, não percebi
o tempo passar.
Ela estava mentindo, Karen pensou. Mas por quê? E sobre o quê?
* Grupo criado por Bob Geldof, em 1984, que reuniu os mais conhecidos artistas do Reino Unido com a finalidade de arrecadar fundos para combater a fome na
Etiópia. A música-tema era "Do they know it's Christmas" (N.T.)
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Jenny tinha sido uma das primeiras na fila do Serviço Social dos Mineradores e havia voltado rapidamente para casa com sua lamentável comida, determinada a cozinhar
uma panela de sopa para que tivessem alguma coisa saborosa para o jantar. Ela contornou o prédio dos banheiros da mina, notando que todas as casas dos vizinhos estavam
no escuro. Naqueles dias, ninguém deixava uma luz acesa acolhedora quando saía. Cada centavo contava, quando chegavam as contas de combustível.
Quando ela chegou ao portão de sua casa, quase morreu de susto. Uma figura indefinida saiu da escuridão, parecendo agigantar-se na sua imaginação. Ela emitiu um
ruído que era em parte ofego, em parte gemido.
- Jenny, Jenny, acalme-se. Sou eu. Tom. Tom Campbell. Me desculpe, não quis te assustar. - A figura tomou forma, e ela reconheceu o homenzarrão, próximo à
porta da frente.
- Cristo, Tom, você quase me matou de susto - ela reclamou, passando por ele e abrindo a porta. Ciente do frio assombroso na casa, ela seguiu até a cozinha.
Sem hesitação, encheu a panela de água e a colocou no fogão, o anel de gás emitia um pouco de calor. Então, ela se virou para encará-lo na penumbra da luz da tarde.
- Como você está?
Tom Campbell ergueu os grandes ombros e deu um sorriso desanimado.
- Mais ou menos - ele disse. - É irônico. A única vez na vida em que realmente preciso dos meus amigos e acontece esta greve.
- Pelo menos você tem a mim e a Mick - Jenny disse, indicando-lhe uma cadeira.
- Bem, tenho a você, de qualquer jeito. Não acho que esteja na lista de cartões de Natal do Mick, supondo que alguém envie cartões este ano. Não depois de
outubro. Ele não falou mais comigo, desde então.
- Isso passa - ela disse, sem um pingo de convicção.
Mick sempre tivera certas reservas no que se referia à extensão da amizade escolar entre Jenny e a esposa de Tom, Moira. As mulheres eram amigas desde sempre, e
Moira fora dama de honra no casamento de Jenny e Mick. Quando chegou a vez de retribuir o favor, Jenny estava grávida de Misha. Mick havia ressaltado que seu aumento
de peso era a desculpa perfeita para recusar o convite de Moira, já que o vestido de dama de honra
tinha de ser comprado com antecedência. Não era uma sugestão, e sim uma ordem. Isso porque embora Tom Campbell fosse, sem dúvida alguma, um homem decente, bem-apessoado
e honesto, ele não era mineiro. Verdade, ele trabalhava na Lady Charlotte. Descia até a mina no subsolo, naquela gaiola de revirar o estômago. Às vezes, até mesmo
sujava as mãos. Mas não era mineiro. Era um auxiliar de minas. Membro de um sindicato diferente. Um homem da administração, que estava ali para verificar o cumprimento
das regras de saúde e segurança, e que os rapazes fizessem o que deviam fazer. Os mineiros tinham um termo para se referir à parte mais fácil de qualquer tarefa:
"a parte do auxiliar". Parecia bastante inocente, mas num ambiente em que cada membro do grupo sabia que sua vida dependia dos colegas, aquilo expressava um desdém
enorme. E, portanto, Mick Prentice sempre tivera certa reserva no que se referia à sua relação com Tom Campbell.
Ele havia se ofendido com os convites para jantar em sua casa afastada em West Wemyss. Desconfiava dos convites de Tom para que fosse jogar futebol com ele. Tinha
até mesmo se ressentido das horas que Jenny passara ao lado da cama de Moira, durante sua morte pouco digna, porém rápida, de câncer, alguns anos atrás. E, quando
o sindicato de Tom havia hesitado e ficado indeciso com relação a se unir à greve, alguns meses antes, Mick se enfurecera como uma criança mimada, quando eles finalmente
se colocaram do lado dos patrões.
Jenny desconfiava que parte do motivo de sua raiva era a bondade que Tom havia lhes demonstrado desde que a greve começara a afetá-los. Ele criara o hábito de passar
por sua casa com presentinhos: uma sacola de maçãs, um saco de batatas, um brinquedo de pelúcia para Misha. Sempre vinham acompanhados de desculpas plausíveis: a
árvore do vizinho estava carregada, vieram mais batatas na sua porção do que ele iria precisar, um prêmio ganho na rifa do clube de boliche. Mick sempre reclamava
depois.
- Idiota condescendente - ele dizia.
- Ele está tentando ajudar sem nos envergonhar - Jenny respondia.
Tampouco era ruim o fato de que a presença de Tom sempre a fazia se lembrar de tempos mais felizes. De alguma forma, quando ele estava ali, ela tinha novamente a
sensação de novas possibilidades. Ela via a si mesma refletida em seus olhos, como se fosse uma mulher jovem, uma mulher que tinha ambições de uma vida diferente.
Então, embora soubesse que irritaria Mick, Jenny ficava feliz quando Tom se sentava em sua cozinha e conversava com ela.
Ele tirou um pacote meio mole, mas pesado, do bolso.
- Você aproveitaria uns gramas extras de toucinho? - ele disse, a sobrancelha se franzindo de ansiedade. - Minha cunhada trouxe da fazenda de sua família
na Irlanda. Mas é defumado, sabe, e eu não consigo comer toucinho defumado. Tenho aversão. Então pensei que, melhor do que jogar fora... - Ele o entregou a ela.
Jenny pegou o pacote sem hesitar um só segundo. Suspirou desanimada.
- Olhe só para mim. Meu coração disparou por causa de um pedaço de toucinho. Foi isso que Margaret Thatcher e Arthur Scargill conseguiram fazer com a gente.
- Ela balançou a cabeça. - Obrigada, Tom. Você é um bom homem.
Ele desviou o olhar, incerto do que falar ou fazer. Seus olhos se fixaram no relógio.
- Você não tem que ir buscar a menina? Me desculpe, nem me liguei na hora, quando estava te esperando. Só queria... - ele se levantou, o rosto enrubescido.
- Volto depois.
Ela ouviu suas botas tropeçarem no corredor e, então, o ruído do trinco. Jogou o toucinho sobre a pia e desligou o fogo da panela de água. Agora, seria uma sopa
diferente.
Moira sempre tinha sido a sortuda.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Os olhos de Jenny voltaram da distância e se fixaram em Karen.
- Imagino que fossem umas sete horas, quando percebi que Mick não havia voltado para casa. Eu estava furiosa, porque tinha conseguido um jantar razoável para
pôr na mesa. Então, coloquei a pequena na cama, pedi à vizinha para cuidar dela para que eu pudesse correr até o Serviço e ver se Mick estava lá. - Ela balançou
a cabeça, ainda surpresa após tantos anos.
- E, é claro, ele não estava.
- Alguém o havia visto?
- Aparentemente, não.
- A senhora deve ter ficado preocupada - disse Karen.
Jenny ergueu um ombro.
- Não muito. Como eu disse, nós não tínhamos nos despedido no melhor dos ânimos. Simplesmente pensei que ele tivesse ficado irritado e ido para a casa do
Andy.
- O cara da foto?
- Isso. Andy Kerr. Era funcionário do sindicato. Mas estava de licença médica do trabalho. Estresse, disseram. E estavam certos. Ele se matou um mês depois.
Sempre achei que o fato de Mick decidir furar a greve foi a última gota para Andy. Ele idolatrava Mick. Aquilo teria acabado com ele.
- Então foi lá que a senhora deduziu que ele estivesse? - Karen a provocou.
- Isso mesmo. Andy tinha um sítio no bosque, no meio do nada. Ele dizia que gostava da paz e do silêncio. Mick me levou lá uma vez. Me deu arrepios. Era como
a casa da bruxa de um dos contos de fada de Misha; não se via a casa até que, de repente, você dava de cara com ela, bem na sua frente. Eu é que não moraria lá.
- A senhora não podia ter telefonado para confirmar? - intrometeu-se o Novo em Folha. As duas mulheres olharam para ele com uma mistura de diversão e indulgência.
- Nosso telefone tinha sido cortado meses antes, filho - disse Jenny, trocando um olhar com Karen. - E isso foi muito antes dos celulares.
Naquele ponto, Karen já estava seca por uma xícara de chá, mas nem morta iria se colocar em dívida com Jenny Prentice. Ela pigarreou e prosseguiu:
- Quando foi que a senhora começou a se preocupar?
- Quando a menina me acordou de manhã e ele ainda não estava em casa. Ele nunca tinha feito isso. Não havia sido uma briga de verdade, na sexta-feira. Foram
só umas palavras ásperas. Já tínhamos tido piores, acredite. Quando vi que ele não estava ali de manhã, comecei realmente a pensar que havia alguma coisa terrivelmente
errada.
- O que a senhora fez?
- Dei comida a Misha, troquei sua roupa e a levei até a casa de Lauren, uma amiguinha dela. Daí, atravessei o bosque até a casa de Andy. Mas não havia ninguém
lá. Então, me lembrei que Mick dissera que talvez Andy subisse até as Highlands para passar uns dias, já que estava de licença. Afastar-se de tudo. Pôr a cabeça
no lugar. Então, é lógico que ele não estava lá. Nesse ponto eu já estava bastante assustada. E se houvesse acontecido um acidente? E se ele tivesse ficado doente?
A lembrança ainda tinha o poder de perturbar Jenny. Seus dedos cutucavam sem parar a barra do jaleco.
- Subi até o Serviço Social para ver os representantes do sindicato. Pensei que se alguém soubesse onde Mick estava, seriam eles. Ou que, pelo menos, eles
saberiam onde começar a procurar. - Ela olhou fixamente para o chão, as mãos entrelaçadas no colo. - Foi então que as coisas começaram a degringolar na minha vida.
Sábado, 15 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Mesmo pela manhã, sem a presença de pessoas para elevar a temperatura, o Instituto do Serviço Social dos Mineradores estava mais quente do que sua casa, notou Jenny
ao entrar. Não muito, mas o suficiente para ser perceptível. Não era algo que geralmente chamava sua atenção, mas hoje ela tentava pensar em qualquer coisa que não
fosse a ausência do marido. Parou por um momento, hesitante, no hall de entrada, tentando decidir aonde ir. Os escritórios do Sindicato Nacional dos Mineradores
ficavam no andar de cima, ela se lembrava vagamente; caminhou, portanto, até a escadaria extravagantemente esculpida. Chegando ao primeiro andar, tudo ficou mais
fácil. Era só seguir o burburinho das vozes e a fumaça de cigarro.
Mais adiante no corredor, havia uma porta entreaberta, de onde vinham o som e o cheiro. Jenny bateu nervosamente, e a sala ficou em silêncio. Por fim, uma voz cautelosa
disse:
- Entre.
Ela esgueirou-se pela porta como se fosse uma pedinte. A sala era tomada por uma mesa em forma de U coberta por um oleado axadrezado. Alguns homens estavam sentados
em torno dela, demonstrando níveis variados de desânimo. Jenny vacilou quando percebeu que o homem na ponta mais distante era alguém que ela reconhecia, mas que
não conhecia pessoalmente. Mick McGahey, ex-comunista, líder dos mineiros escoceses. O único homem, dizia-se, que podia enfrentar o Rei Arthur e fazer-se ouvir.
O homem que fora mantido deliberadamente longe do primeiro posto por seu antecessor. Se Jenny ganhasse uma libra cada vez que ouvia alguém dizer que tudo teria sido
muito diferente se McGahey estivesse no comando, sua família teria sido a mais bem alimentada e mais bem-vestida em Newton of Wemyss.
- Me desculpem - ela gaguejou. - Eu só queria dar uma palavrinha... - Seus olhos passearam pela sala, em dúvida sobre em qual dos homens que conhecia
seria melhor fixar a atenção.
- Tudo bem, Jenny - disse Ben Reekie. - Era só uma reuniãozinha. Já terminamos, não é, rapazes? - Houve um murmúrio descontente de assentimento. Mas Reekie,
o secretário local, era habilidoso em avaliar o andamento de uma reunião e fazer as coisas avançarem. - Então, Jenny, como podemos te ajudar?
Ela gostaria de ficar a sós com ele, mas não tinha coragem de pedir. As mulheres tinham aprendido muito no processo de apoiar seus homens, mas, cara a cara, sua
assertividade ainda tendia a se esvair. Mas tudo ficaria bem, ela disse a si mesma. Vivera nesse universo encasulado durante toda a vida adulta, um mundo que se
centrava na mina e na Associação, no qual não havia segredos e onde o sindicato era sua mãe e seu pai.
- Estou preocupada com Mick - ela disse. Não adiantava fazer rodeios. - Ele saiu ontem de manhã e não voltou. Eu estava pensando se, talvez...?
Reekie apoiou a testa nos dedos, esfregando-a com tanta força que deixou marcas alternadas em vermelho e branco no centro.
- Deus do céu - ele sibilou entre os dentes cerrados.
- E você espera que acreditemos que você não sabe onde ele está?
A acusação veio de Ezra Macafferty, o último sobrevivente na vila das greves dos mineiros e das greves patronais da década de vinte.
- É claro que não sei onde ele está. - A voz soou melancólica, mas um medo sombrio começara a espalhar seu gelo pelo peito dela. - Pensei que talvez ele tivesse
passado por aqui. Achei que alguém pudesse saber.
- Isso eleva o número a seis - disse McGahey. Ela reconheceu o tom grave e áspero de sua voz das entrevistas na TV e comícios ao ar livre. Era estranho estar
na mesma sala que ele.
- Não entendo - ela disse. - Seis o quê? O que está acontecendo? - Todos os olhos estavam voltados para ela, perfurando-a. Podia sentir seu desprezo, mas
não entendia o motivo. - Aconteceu alguma coisa com Mick? Um acidente?
- Aconteceu uma coisa, sim - disse McGahey. - Parece que o seu marido furou a greve e fugiu para Nottingham.
Suas palavras pareceram sugar todo o ar dos pulmões dela. Jenny parou de respirar, deixando que se formasse uma bolha ao seu redor para protegê-la. Não podia ser
verdade. Não o Mick. Muda, ela sacudiu a cabeça com força. As palavras começaram a penetrar a barreira, mas ainda não faziam sentido.
- Sabíamos de cinco... pensamos que haveria mais... sempre um traidor no grupo... decepcionados... sempre um do sindicato.
- Não - ela disse. - Ele não faria isso.
- De que outra forma você explica o fato de ele não estar aqui? - disse Reekie. - Foi você que veio até nós procurando por ele. Sabemos que uma van cheia
deles foi embora ontem à noite. E ao menos um deles é amigo do seu Mick. Onde mais ele poderia estar?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu não teria me sentido pior se eles tivessem me chamado de prostituta - disse Jenny. - Imagino que, aos olhos deles, era exatamente isso que eu era. Meu
marido fugindo da greve, não demoraria nada até que eu começasse a viver de forma imoral.
- A senhora nunca duvidou de que eles estivessem certos?
Jenny afastou o cabelo do rosto, removendo momentaneamente um pouco de sua idade e docilidade.
- Na verdade, não. Mick era amigo de Iain Maclean, um dos que foram para Nottingham. Isso eu não discutia. E não se esqueça de como era, naquela épóca. Os
homens controlavam o jogo, e o sindicato controlava os homens. Quando as mulheres quiseram participar da greve, a primeira batalha que tivemos que travar foi contra
o sindicato. Tivemos que implorar que nos deixassem entrar. Eles nos queriam onde sempre havíamos estado: no cômodo dos fundos, cuidando do fogão. Não ao lado da
fogueira, nas linhas de piquete. Mas embora tivéssemos conseguido formar a Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas, ainda conhecíamos bem nosso lugar.
Teríamos que ser muito fortes, ou muito burras, para tentar ir contra a corrente por aqui.
Não era a primeira vez que Karen ouvia uma versão daquela verdade. Ela se perguntou se teria feito diferente, na mesma situação. Era bom pensar
que teria ficado ao lado de seu homem com um pouco mais de firmeza. Mas, diante da hostilidade que Jenny Prentice devia ter enfrentado por parte da comunidade, Karen
achava que também teria cedido.
- Entendo - ela disse. - Mas agora que parece que, afinal, Mick pode não ter fugido da greve, a senhora tem alguma ideia do que pode ter acontecido com ele?
Jenny balançou a cabeça.
- Nenhuma? Ainda que eu não pudesse acreditar, a fuga fazia algum sentido. Então, nunca considerei outra possibilidade.
- A senhora acha que ele pode ter simplesmente se enchido? Simplesmente caiu fora?
Ela franziu a testa.
- Olha, isso não seria do feitio de Mick. Ir embora sem falar nada? Acho que não. Ele faria questão que eu soubesse que tinha sido por minha culpa. - Ela
soltou uma risada amarga.
- A senhora não acha que ele pode ter ido embora sem dizer nada como uma forma de fazer com que a senhora sofresse ainda mais?
Jenny levantou a cabeça.
- Isso é asqueroso demais - ela protestou. - Você o faz parecer um sádico. Ele não era um homem cruel, inspetora. Apenas insensível e egoísta, como todos
eles.
Karen fez uma pausa. Aquela era sempre a parte mais difícil, quando se entrevistava os parentes de um desaparecido.
- Ele havia discutido com alguém? Tinha algum inimigo, Sra. Prentice?
Jenny a olhou como se Karen tivesse, de repente, passado a falar grego.
- Inimigo? Tipo, alguém que quisesse matá-lo?
- Talvez não matá-lo. Apenas brigar com ele.
Dessa vez, a risada de Jenny tinha um calor genuíno.
- Meu Jesus, isso é engraçado, vindo de você. - Ela balançou a cabeça. - As únicas brigas físicas em que Mick se meteu, durante todos os anos em que estivemos
casados, foi com o seu pessoal. Nas linhas de piquete. Nas manifestações. Se ele tinha inimigos? Claro, os de uniforme azul. Mas aqui não é a América Latina e não
me lembro de ouvir falar de desaparecidos nas greves dos mineiros. Portanto, a resposta para sua pergunta é não, ele não tinha o tipo de inimigo com quem teria uma
briga séria.
Karen observou o carpete por um longo tempo. A violência exagerada da polícia, contra os grevistas, havia envenenado os relacionamentos nas comunidades por mais
de uma geração. Não importava que os piores transgressores viessem de forças externas, trazidos ali para aumentar os números, e a quem se pagavam quantias obscenas
de dinheiro para oprimir seus concidadãos de formas que a maioria das pessoas preferia nem saber. O resultado de sua ignorância e arrogância havia afetado a todos
os policiais, em todas as corporações das cidades mineradoras. Ainda afetava, pensou Karen. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
- Sinto muito - ela disse. - A forma como trataram os mineiros foi imperdoável. Prefiro pensar que não agiríamos dessa maneira hoje em dia, mas é provável
que esteja enganada. A senhora tem certeza de que não havia ninguém com quem ele houvesse se desentendido?
Jenny nem sequer parou para pensar.
- Não que eu soubesse. Ele não era encrenqueiro. Tinha seus princípios, mas não os usava para provocar brigas. Defendia aquilo em que acreditava, mas era
só de falar, não de partir para a briga.
- E se falar não adiantasse? Ele retrocederia?
- Não tenho certeza se entendi a pergunta.
Karen falou vagarosamente, tateando a ideia.
- Estou pensando se ele não topou com esse tal de Iain Maclean naquele dia e tentou convencê-lo a não ir para Nottingham. E se Iain se recusou a mudar de
ideia, e talvez tivesse seus amigos para apoiá-lo... Será que Mick entraria numa briga com eles?
Jenny balançou firmemente a cabeça.
- De jeito nenhum. Ele diria o que pensava e, se não adiantasse, se afastaria.
Karen se sentiu frustrada. Mesmo depois de tanto tempo, os casos arquivados geralmente ofereciam um ou dois fios soltos por onde começar. Mas, até agora, parecia
não haver nada ali. Uma última pergunta e, depois, ela iria embora.
- A senhora tem alguma ideia de aonde Mick pode ter ido para pintar naquele dia?
- Ele não disse. A única coisa que posso dizer é que, no inverno, ele geralmente seguia pelo litoral até East Wemyss. Assim, se começasse a
chover, ele poderia descer até as cavernas e se abrigar lá. Os caras do grupo de preservação tinham uma cabaninha no fundo de uma das cavernas, com um fogareiro
onde podiam fazer chá. Ele tinha as chaves, podia ficar à vontade - ela acrescentou, a acidez de volta à sua voz. - Mas não tenho ideia se ele esteve ali nesse dia
ou não. Ele poderia estar em qualquer lugar entre Dysart e Buckhaven. - Ela olhou para o relógio. - Isso é tudo que sei.
Karen se levantou.
- Agradeço muito por seu tempo, Sra. Prentice. Continuaremos fazendo nossas investigações e a manteremos informada.
Novo em Folha se levantou desajeitadamente e seguiu Karen e Jenny até a porta da frente.
- Não estou preocupada por mim, entende? - Jenny disse, quando eles estavam a meio caminho da rua. - Mas veja se você consegue encontrá-lo pelo bem da criança.
Aquele era, pensou Karen, o primeiro sinal de emoção que ela demonstrava durante toda a manhã.
- Pegue seu caderno - ela disse a Novo em Folha, quando entraram no carro. - Próximos passos. Falar com a vizinha. Ver se ela se lembra de alguma coisa sobre
o dia em que Mick Prentice desapareceu. Falar com alguém do grupo da caverna, ver quem ainda está lá desde 1984. Obter outra visão de como realmente era Mick Prentice.
Procurar nos arquivos alguma coisa a respeito desse Andy Kerr, funcionário do Sindicato dos Mineiros, que supostamente cometeu suicídio na época em que Mick desapareceu.
Como é essa história? E precisamos rastrear esses cinco fura-greves e pedir que a polícia fale com eles em Nottingham. - Ela abriu a porta do passageiro novamente,
enquanto Novo em Folha terminava de escrever. - E já que estamos aqui, vamos dar uma olhada nessa vizinha.
Ela mal se afastara dois passos do carro quando seu telefone tocou.
- Phil - ela disse.
Nenhuma piadinha, ele simplesmente foi direto aos fatos:
- Você precisa voltar aqui agora mesmo.
- Por quê?
- O Biscoito está furioso. Quer saber por que diabos você não está na sua mesa.
Simon Lees, subchefe de Polícia (Criminal), tinha um temperamento muito diferente do de Karen. Ela estava convencida de que, antes de dormir, ele lia o Código de
Polícia, Ordem Pública e Justiça Criminal de 2006 (da Escócia). Sabia que ele era casado e tinha dois filhos adolescentes, mas não fazia ideia de como aquilo podia
ter acontecido com um homem tão obsessivamente organizado. Era Lei de Murphy que, na primeira manhã, em meses, que ela estava fazendo algo fora das normas, o Biscoito
viesse procurá-la. Ele parecia acreditar que tinha o direito divino de saber o paradeiro de qualquer oficial sob seu comando, quer estivesse ou não de serviço. Karen
se perguntou o quão próximo de um derrame ele teria chegado ao descobrir que ela não estava ocupando a mesa onde esperava encontrá-la. Pelo jeito, não próximo o
bastante.
- O que você disse a ele?
- Disse que você estava numa reunião com a equipe de armazenamento de provas, discutindo uma forma de agilizar o procedimento de catalogação deles - disse
Phil. - Ele gostou da ideia, mas não do fato de que isto não estivesse registrado em sua lista eletrônica de compromissos.
- Estou a caminho - Karen disse, confundindo Novo em Folha ao entrar novamente no carro. - Ele disse por que estava me procurando?
- Para mim? Um mero sargento? Dá um tempo, Karen. Ele apenas disse que era "muito importante". Alguém provavelmente roubou os biscoitinhos digestivos dele.
Karen gesticulou impacientemente para Novo em Folha.
- Para casa, James, e não poupe os cavalos. - Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido, mas deu partida no carro e saiu dirigindo. - Estou indo - ela
disse. - Ponha a água para ferver.
Glenrothes
A dupla hélice de frustração e irritação se retorceu nas entranhas de Simon Lees. Ele se mexeu na cadeira e rearrumou as fotos da família sobre a mesa. Qual era
o problema dessa gente? Quando fora procurar a inspetora Pirie e não a encontrara onde deveria estar, o sargento Parhatka agira como se aquilo estivesse perfeitamente
bem. Havia algo fundamentalmente indiferente nos detetives de Fife. Ele havia percebido aquilo dias após ter chegado de Glasgow. Surpreendia-se que eles houvessem
conseguido colocar
alguém atrás das grades, antes que ele chegasse com seus métodos analíticos, suas investigações eficientes, análises sofisticadas de vínculos criminais e o inevitável
aumento nos níveis de detecção.
O que o irritava ainda mais era o fato de que eles pareciam não ter qualquer gratidão pelos métodos modernos que ele trouxera para o trabalho. Ele até mesmo suspeitava
que riam dele. Seu apelido, por exemplo. Todo mundo no prédio parecia ter um apelido, a maioria deles podendo ser interpretados como levemente carinhosos. Mas não
ele. Logo descobrira que fora apelidado de Biscoito, porque compartilhava o sobrenome com uma fábrica de doces; seu produto mais famoso ficara conhecido devido a
um antiquíssimo jingle de propaganda, cujo racismo brincalhão causaria tumulto nas ruas se fosse veiculado na Escócia do século XXI. Ele culpava Karen Pirie; não
era coincidência que o apelido houvesse surgido após seu primeiro desentendimento com ela. Algo que se tornaria comum na maioria de seus encontros. Ele não tinha
certeza de como acontecia, mas ela sempre parecia confundi-lo.
Lees ainda se ressentia com aquela primeira lembrança. Mal havia chegado, já começara a dar as ordens, promovendo uma série de treinamentos. Não os de praxe, numa
postura machista, nem a tediosa revisão das regras de comportamento, mas abordagens originais de temas referentes ao policiamento moderno. A primeira leva de oficiais
tinha se reunido na sala de treinamento e Lees dera início a seu prólogo, explicando como eles passariam o dia desenvolvendo estratégias para o policiamento em uma
sociedade multicultural. Seus espectadores pareceram rebeldes, e Karen Pirie liderara o ataque:
- Senhor, posso fazer uma observação?
- É claro, inspetora Pirie. - Seu sorriso havia sido cordial, ocultando a irritação de ser interrompido antes de sequer ter revelado o programa.
- Bem, senhor, Fife não é realmente o que se poderia chamar de multicultural. Não temos muitas pessoas aqui que não sejam britânicas nativas. À exceção dos
italianos e poloneses, quero dizer, e eles já estão aqui há tanto tempo que nos esquecemos que não são daqui.
- Então o racismo parece estar bem para você; é isso, inspetora Pirie?
Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas ele fora levado àquilo pela atitude aparentemente retrógrada expressada por ela. Sem falar daquela
cara de bolacha impassível que ostentava sempre que dizia alguma coisa que pudesse ser interpretada como provocadora.
- Em absoluto, senhor. - Ela sorrira, de forma quase piedosa. - O que eu queria dizer é que, já que temos um orçamento limitado para treinamentos, pode fazer
mais sentido lidar primeiro com o tipo de situação que é mais provável que encontremos no dia a dia.
- Tais como?... Com quanta força devemos bater nas pessoas, quando as prendemos?
- Eu estava pensando em estratégias para lidar com a violência doméstica. É um tipo de chamada frequente e que pode facilmente se agravar. Gente demais ainda
morre todos os anos porque uma briga doméstica escapa ao controle. E nem sempre sabemos lidar com elas, sem piorar a situação. Eu diria que essa seria minha prioridade
número um no momento, senhor.
E com aquele discurso, ela havia tirado o chão dele. Não tinha volta. Poderia seguir adiante com o treinamento planejado, sabendo que todos na sala estariam rindo
dele. Ou poderia adiá-lo, organizando algo relacionado à sugestão da inspetora Pirie, e então perderia completamente a moral. No fim, ele disse a eles para passarem
o resto do dia pesquisando sobre o assunto da violência doméstica, preparando-se para outro dia de treinamento.
Dois dias depois, ouviu sem querer alguém se referindo a ele como o Biscoito. Ah, sim, ele sabia a quem culpar. Mas assim como em tudo que ela fazia para sabotá-lo,
não havia nada que ele pudesse atribuir diretamente a ela. Ela simplesmente ficaria ali, tão desgrenhada, impassível e inescrutável quanto uma vaca escocesa das
Highlands, nunca dizendo ou fazendo nada de que ele pudesse se queixar. E ela estabeleceu o padrão para todos os demais, mesmo estando isolada nos cafundós, na Equipe
de Revisão de Casos Arquivados, onde não deveria ser capaz de exercer nenhuma espécie de influência. Mas, de alguma forma, graças a Pirie, lidar com os detetives
das três divisões era como pastorear gatos.
Ele tentava evitá-la, tentava desviar-se dela através de suas diretrizes operacionais. Até então pensava que estava funcionando. Mas aí o telefone tinha tocado.
- Subchefe de Polícia Lees - anunciara ao atender. - Em que posso ajudar?
- Bom dia, subchefe Lees. Meu nome é Susan Charleson. Sou assistente pessoal de Sir Broderick Maclennan Grant. Meu chefe gostaria de falar com o senhor. Agora
seria um bom momento?
Lees se endireitou na cadeira, alinhando os ombros. Broderick Maclennan Grant era conhecido por três coisas: sua fortuna, seu isolamento misantrópico e pelo sequestro
e assassinato da filha Catriona, há vinte e poucos anos. Por mais improvável que pudesse parecer, um telefonema de sua assistente para o subchefe criminal só poderia
significar que havia ocorrido algum tipo de mudança no caso.
- Sim, claro, o momento perfeito, não poderia ser melhor.
Ele escavou a memória em busca de detalhes, ouvindo apenas em parte à mulher no telefone. Filha e neto sequestrados, tinha sido isso. Filha morta durante uma entrega
de resgate que deu errado, neto nunca mais visto. E, agora, ele parecia ter a chance de, finalmente, solucionar o caso. Concentrou-se novamente na voz da mulher.
- Se o senhor puder fazer a gentileza de aguardar, colocarei Sir Broderick na linha agora mesmo - ela disse.
O som oco de uma interrupção e, então, uma voz soturna e pesada disse:
- Aqui fala Broderick Maclennan Grant. Você é o subchefe de Polícia?
- Exatamente, Sir Broderick. Subchefe de Polícia Lees. Simon Lees.
- Você está ciente do assassinato não solucionado da minha filha, Catriona? E do sequestro do meu neto, Adam?
- É claro, naturalmente, não existe um só policial na região que não...
- Achamos que surgiu uma prova nova. Eu ficaria agradecido se você tomasse todas as providências para que a inspetora Pirie venha até a minha casa amanhã
cedo, para discutir o assunto comigo.
Lees literalmente afastou o telefone do rosto e ficou olhando para o aparelho. Seria algum trote sofisticado?
- Inspetora Pirie? Eu não... eu poderia ir - ele balbuciou.
- Você é um funcionário administrativo. Não preciso de um funcionário administrativo. - O tom de Brodie Grant era desdenhoso. - A inspetora Pirie é detetive.
Gostei da forma como ela lidou com o caso Lawson.
- Mas... mas, para tratar disso, deveria ser um oficial mais graduado - protestou Lees.
- Não é a inspetora Pirie quem está no comando da sua Equipe de Revisão de Casos Arquivados? - Grant começava a parecer impaciente. - Isso é graduação suficiente
para mim. Não me importo com postos, me importo com eficiência. É por isso que quero a inspetora Pirie na minha casa amanhã às dez. Isso deve lhe dar tempo suficiente
para se familiarizar com as informações básicas do caso. Tenha um bom dia, Sr. Lees. - A linha emudeceu e Simon Lees ficou sozinho, com seu mau humor e a pressão
arterial que se elevava.
Por mais que aquilo o angustiasse, ele não tinha escolha senão encontrar a inspetora Pirie e lhe dar as ordens. Pelo menos, poderia fazer com que aquilo parecesse
ter sido ideia dele. Embora não houvesse nenhum compromisso marcado no sistema de agendamento eletrônico que ele instituíra para seus detetives mais antigos, ela
não estava em sua mesa. Tudo bem que os policiais fizessem coisas por iniciativa própria, mas tinham de aprender a deixar um registro de seus movimentos.
Ele estava prestes a voltar para a sala da Revisão de Casos Arquivados para descobrir por que a inspetora Pirie ainda não havia aparecido quando uma batida incisiva
na porta foi seguida, sem qualquer intervalo, pela entrada dela.
- Eu disse que poderia entrar? - perguntou Lees, olhando-a com raiva do outro lado da sala.
- Pensei que fosse urgente, senhor. - Ela continuou andando e se sentou na cadeira do outro lado da mesa dele. - O sargento Parhatka me deu a impressão de
que, qualquer que fosse o motivo pelo qual o senhor estivesse me procurando, não podia esperar.
Que referência para o serviço policial, ele pensou, irritado. Cabelo desgrenhado caindo sobre os olhos, pouquíssima maquiagem e dentes que precisavam seriamente
de um aparelho ortodôntico. Ele supunha que ela fosse lésbica, dada sua atração por terninhos de calça comprida, o que era realmente um erro, devido à largura de
seus quadris. Não que ele tivesse qualquer coisa contra lésbicas, lembrou-lhe seu censor interno. Apenas achava que dava às pessoas a impressão errada sobre o serviço
policial de hoje.
- Sir Broderick Maclennan Grant me telefonou hoje de manhã - ele disse. O único sinal de interesse foi um ligeiro entreabrir dos lábios. - Suponho que saiba
quem é Broderick Maclennan Grant.
Karen pareceu surpresa com a pergunta. Ela se reclinou na cadeira e recitou:
- Terceiro homem mais rico da Escócia, é dono de metade da porção rentável das Highlands. Ganhou seu dinheiro construindo estradas e casas, e administrando
os sistemas de transporte que as servem. Possui uma ilha nas Hébridas, mas passa a maior parte do tempo no Castelo de Rotheswell, perto de Falkland. A maioria das
terras entre lá e o mar pertence a ele ou a Wemyss. Sua filha Cat e o filhinho dela, Adam, foram sequestrados por um grupo anarquista em 1985. Cat foi morta com
um tiro quando a entrega do resgate deu errado. Ninguém sabe o que aconteceu com Adam. A esposa de Grant suicidou-se alguns anos depois. Ele se casou novamente há
cerca de dez anos. Tem um filho pequeno que deve estar com cinco ou seis anos. - Ela riu. - Como fui?
- Não é um concurso, inspetora. - Lees sentiu que cerrou os punhos e os manteve embaixo da mesa. - Parece que há novas provas. E já que você está no comando
dos casos arquivados achei que deveria cuidar deste.
- Que tipo de provas? - Ela se reclinou sobre o braço da cadeira, numa postura relaxada.
- Achei melhor que você conversasse diretamente com Sir Broderick. Assim, não haverá qualquer possibilidade de confusão.
- Então, ele realmente não lhe disse nada a respeito?
Lees poderia jurar que ela estava gostando daquilo.
- Marquei de você se encontrar com ele no Castelo de Rotheswell amanhã de manhã às dez. Não preciso lhe dizer o quanto é importante que fique bem claro que
estamos levando isso a sério. Quero que Sir Broderick entenda que este assunto receberá toda a nossa atenção.
Karen se levantou abruptamente, os olhos repentinamente frios.
- Ele receberá exatamente a mesma atenção que todos os outros pais enlutados com quem trato. Não faço distinção entre os mortos, senhor. Agora, se isso é
tudo, tenho um arquivo para estudar até amanhã cedo.
Ela não esperou por uma dispensa. Apenas virou nos calcanhares e saiu, deixando Lees com a sensação de que ela tampouco fazia distinção entre os vivos.
Mais uma vez, Karen Pirie o havia feito se sentir um idiota.
Castelo de Rotheswell
Bel Richmond deu uma última olhada em seu arquivo sobre Catriona Maclennan Grant, certificando-se de que sua lista de perguntas cobria todos os ângulos. A intolerância
a bobagens por parte de Broderick Maclennan Grant era tão notória quanto sua aversão à publicidade. Bel suspeitava de que ele fosse atacar ao primeiro sinal de falta
de preparo de sua parte e usá-la como desculpa para romper o acordo que ela havia negociado com Susan Charleson.
Para dizer a verdade, ela ainda estava surpresa por haver conseguido. Levantou-se, fechou o laptop e deu uma olhada no espelho. Vestida para matar. Afinal, a primeira
impressão é a que fica. Fim de semana no campo. Era esse o look que ela havia adotado. Sempre fora boa em camuflagem. Mais uma das muitas razões pelas quais ela
era tão boa naquilo que fazia. Integrar-se, tornar-se "parte do grupo", qualquer que fosse ele, era um mal necessário. Portanto, se ela iria dormir sob o teto aristocrático
de Brodie Grant, precisava se vestir a caráter. Alisou o vestido axadrezado Black Watch que havia tomado emprestado de Vivianne, conferiu se não havia arranhões
nos sapatos de salto sabrina, ajeitou o cabelo, negro como um corvo, para trás da orelha e entreabriu os lábios rubros num sorriso. Uma olhada em seu relógio confirmou
que estava na hora de descer as escadas e descobrir o que a formidável Susan Charleson havia preparado.
Ao virar uma curva da ampla escadaria, teve de se desviar para evitar um garotinho que subia a toda velocidade. Ele conseguiu controlar os gestos desgovernados no
patamar entre dois lances, ofegou um "Desculpe", e voou escada acima. Bel piscou e ergueu as sobrancelhas. Já fazia algum tempo que não esbarrava assim num garotinho
e não havia sentido a menor falta. Continuou descendo, mas, antes de chegar ao pé da escada, uma mulher com calças de veludo bege e uma blusa vermelho-escura circulou
a coluna da escadaria e parou de repente, pega de surpresa.
- Oh, me desculpe, não quis assustá-la - ela disse. - Viu um garotinho passar por aqui?
Bel apontou com o polegar por sobre o ombro.
- Ele foi por ali.
A mulher assentiu. Agora que estava mais próxima, Bel podia ver que era uns dez anos mais velha do que pensara de início, trinta e tantos, no mínimo. A pele tratada,
o cabelo castanho grosso e o porte elegante ajudavam a confundir.
- Monstrinho - disse a mulher. Elas se encontraram a alguns degraus do patamar. - Você deve ser Annabel Richmond - ela disse, estendendo a mão delgada que
estava fria, apesar da temperatura agradável dentro das grossas paredes do castelo. - Sou Judith. Esposa de Brodie.
Claro que sim. Como Bel poderia ter imaginado uma babá tão bem arrumada?
- Lady Grant - ela disse, estremecendo por dentro.
- Judith, por favor. Mesmo depois de todos esses anos casada com Brodie, ainda tenho vontade de olhar para trás quando alguém me chama de Lady Grant. - Ela
não parecia dizer aquilo apenas por falsa modéstia.
- E eu sou Bel. Vamos deixar para lá o nome que uso profissionalmente.
Lady Grant sorriu, os olhos já examinando os degraus acima.
- Bel então. Olhe, não posso parar agora, tenho de capturar aquele monstrinho. Vejo você no jantar. - E lá foi ela, subindo dois degraus de cada vez.
Sentindo que havia exagerado ao se vestir, em comparação à castelã de Rotheswell, Bel seguiu pelos corredores de lajotas de pedra até o escritório de Susan Charleson.
A porta estava aberta e Susan, que falava ao telefone, acenou para que ela entrasse.
- Muito bem. Obrigada por arranjar tudo, Sr. Lees. - Ela recolocou o fone no gancho e contornou a mesa, conduzindo Bel de volta à porta. - Bem na hora - ela
disse. - Ele aprecia a pontualidade. Gostou do quarto? Tem tudo de que precisa? O acesso wi-fi está funcionando?
- Tudo está perfeito - disse Bel. - A vista também é linda.
Sentindo-se como se tivesse entrado num drama da BBC2 escrito por Stephen Poliakoff, ela deixou-se conduzir pelo labirinto de corredores, cujas
paredes estavam forradas de fotografias de paisagens escocesas enormes impressas em telas para parecerem quadros pintados. Ficou surpresa de tudo lhe parecer tão
aconchegante. Mas, também, aquela não era a ideia que fazia de um castelo. Esperara algo como Windsor ou Alnwick. Em vez disso, Rotheswell parecia-se mais a uma
mansão fortificada e com torres. O interior lembrava mais uma casa de campo do que um salão de banquetes medieval. Sólido, mas não tão intimidador quanto ela temera.
Quando finalmente pararam diante de uma porta dupla de mogno alta e abobadada, Bel já estava começando a se arrepender de não ter deixado uma trilha de migalhas
de pão.
- Chegamos - disse Susan, abrindo uma das portas e conduzindo Bel para o interior de uma sala de bilhar, forrada de painéis de madeira escura e com persianas
nas janelas. A única luz provinha de uma série de lustres sobre a mesa de bilhar de tamanho oficial. Quando elas entraram, Broderick Maclennan Grant levantou os
olhos do taco que posicionava para a jogada. Uma massa densa de cabelo impressionantemente grisalho caía jovialmente sobre a testa ampla, sobrancelhas como um par
de muralhas prateadas sobre olhos tão fundos que sua cor só podia ser adivinhada, nariz como o bico de um papagaio, e uma boca ampla e fina sobre um queixo quadrado,
eram características que o tornavam instantaneamente reconhecível. A iluminação do lugar dava um ar dramático a sua figura.
Por conta de fotografias, Bel sabia o que esperar, mas ficou surpresa com a eletricidade crepitante que sentiu em sua presença. Já estivera na presença de homens
e mulheres poderosos antes, mas poucas vezes sentira aquele carisma instantâneo. Entendeu, de imediato, como Brodie Grant havia construído seu império do nada.
Ele se endireitou e apoiou-se no taco.
- Srta. Richmond, suponho. - Sua voz era profunda e quase relutante, como se não a usasse muito.
- Exatamente, Sir Broderick. - Bel não tinha certeza se deveria avançar ou permanecer onde estava.
- Obrigado, Susan - disse Grant. Quando a porta se fechou atrás dela, ele acenou na direção de um par de poltronas de couro desgastadas ao lado de uma lareira
de mármore entalhado. - Sente-se. Posso jogar e conversar
ao mesmo tempo. - Ele voltou a estudar a tacada enquanto Bel deslocava uma das poltronas para que pudesse observá-lo de forma mais direta.
Ela esperou enquanto ele fez mais algumas jogadas, o silêncio se erguia entre eles como uma maré ameaçadora.
- É uma linda casa - ela disse afinal.
Ele resmungou:
- Não sou de papo furado, Srta. Richmond. - Deu uma tacada rápida e duas bolas colidiram num estalo que pareceu um tiro. Passou giz no taco e a observou por
um longo momento. - Você provavelmente está se perguntando como conseguiu isso. Acesso direto a um homem famoso por sua aversão à exposição na mídia. Que conquista,
hein? Bem, sinto muito em decepcioná-la, mas você apenas teve sorte. - Ele circulou a mesa, franzindo a testa diante da posição das bolas, movendo-se como um homem
vinte anos mais jovem.
- Foi assim que consegui algumas das minhas melhores histórias - Bel disse calmamente. - Grande parte do jornalismo de sucesso deve-se a isso: a habilidade
de estar no lugar certo, na hora certa. Não tenho problema algum com relação à sorte.
- Que seja. - Ele estudou as bolas, inclinando a cabeça para obter um ângulo diferente. - Então, você não está se perguntando por que escolhi romper meu silêncio,
após todos esses anos?
- Sim, é claro que estou. Mas, para ser honesta, não acho que suas razões para falar agora terão muito a ver com o que acabarei escrevendo. Portanto, é mais
uma curiosidade pessoal do que profissional.
Ele parou a meio caminho de sua preparação para uma tacada e empertigou-se, encarando-a com uma expressão que ela não podia decifrar. Ele poderia estar furioso ou
curioso.
- Você não é como eu esperava - ele disse. - É mais durona. Isso é bom.
Bel estava acostumada a ser subestimada pelos homens, em seu universo. Estava menos acostumada, porém, a que eles admitissem seu erro.
- Pode ter certeza de que sou durona. Não confio a mais ninguém as minhas batalhas.
Ele se virou para olhá-la, apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o taco.
- Não gosto de ficar exposto ao público - ele disse. - Mas sou realista. Em 1985 era possível que alguém como eu exercesse um determinado grau de influência
sobre a mídia. Quando Catriona e Adam foram sequestrados, controlamos em grande parte o que foi impresso e transmitido. A polícia também cooperou conosco. - Ele
suspirou e balançou a cabeça. - Olhe só de que adiantou. - Deixou o taco na mesa e veio se sentar de frente para Bel.
Sentou-se na posição clássica do macho dominante: joelhos bem abertos, mãos sobre as coxas, ombros para trás.
- O mundo é um lugar diferente agora - ele disse. - Eu vi o que vocês fazem com pais que perderam seus filhos. Mohamed Al Fayed, retratado como um palhaço
paranoico. Kate McCann, transformada em uma Medeia moderna. Dê um passo em falso e eles o enterram. Bem, não vou deixar que isso aconteça. Sou um homem muito bem-sucedido,
Srta. Richmond. E cheguei até aqui aceitando que existem coisas que eu não sei e entendendo que a forma de superar isso é contratando especialistas e ouvindo-os.
No que se refere a esse ramo de negócios, você é minha especialista. Quando souber que existem novas provas, a mídia enlouquecerá. Mas não falarei com ninguém além
de você. Tudo passará por você. Portanto, qualquer que seja a imagem que chegue ao público, será a que você gerar. Este lugar foi construído para resistir a um cerco,
e meu sistema de segurança é o melhor que existe. Nenhum dos répteis chega perto de mim, de Judith ou de Alec.
Bel sentiu um sorriso repuxar os cantos da boca. Acesso exclusivo era o sonho erótico de todo redator. Geralmente, tinha de se matar para conseguir algo assim. Mas,
ali estava, numa bandeja e de graça. Contudo, deixou-o continuar pensando que era ela quem estava lhe fazendo um favor.
- E o que eu ganho com isso? Além de me tornar a jornalista que todo mundo adora odiar?
A linha estreita dos lábios de Grant se comprimiu ainda mais, e o peito se ergueu numa respiração profunda.
- Eu falarei com você. -As palavras saíram como se tivessem sido trituradas entre duas pedras de moinho. Claramente, sua intenção era que aquele fosse um
momento comparado a quando Moisés desceu do Monte Sinai.
Bel estava determinada a não se deixar impressionar.
- Excelente. Podemos começar, então? - Enfiou a mão dentro da bolsa e tirou um gravador digital. - Sei que isto não será fácil para o senhor, mas preciso
que me conte sobre Catriona. Chegaremos ao sequestro e suas consequências, mas teremos que voltar um pouco antes disso. Quero ter um panorama de como ela era e de
como vivia.
Ele olhou para o nada e, pela primeira vez, Bel viu um homem que parecia ter setenta e dois anos.
- Não tenho certeza se sou a pessoa mais adequada para isso - ele disse. - Éramos parecidos demais. Sempre foi uma disputa, entre mim e Catriona. - Ele se
levantou da poltrona e voltou à mesa de bilhar. - Ela sempre foi voluntariosa, mesmo quando pequena. Tinha ataques de fúria que podiam balançar as paredes deste
lugar. Ela cresceu e deixou os ataques para trás, mas não o temperamento. Contudo, sempre conseguia reconquistar a boa vontade das pessoas. Quando ela queria. -
Ergueu os olhos para Bel e sorriu. - Ela sabia bem o que queria. E não era possível fazê-la mudar de ideia, uma vez que estivesse decidida sobre algo.
Grant se moveu em torno da mesa, estudando as bolas, alinhando sua próxima jogada.
- E tinha talento. Quando criança, nunca estava sem um lápis ou um pincel nas mãos. Desenho, pintura, modelagem em argila. Ela nunca parava. Não deixou de
fazer isso com o tempo, como a maioria das crianças. Simplesmente se aprimorou. Então, ela descobriu o vidro. - Ele se inclinou sobre a mesa e acertou a bola vermelha
com a bola da vez, encaçapando-a no buraco do meio. Então, reposicionou a vermelha e estudou os ângulos.
- O senhor disse que sempre houve disputa entre vocês. Quais eram os pontos críticos? - Bel perguntou, quando ele não demonstrou sinais de que continuaria
com suas reminiscências.
Grant deu uma risadinha irônica.
- Tudo e qualquer coisa. Política. Religião. Se a comida italiana era melhor do que a indiana. Se Mozart era melhor do que Beethoven. Se a arte abstrata tinha
algum significado. Se deveríamos plantar faia, bétula ou pinho escocês no bosque de Check Bar. - Ele se endireitou lentamente. - Por que ela não queria assumir a
companhia. Esse era o ponto mais crítico. Eu não tinha um filho homem, naquela época. E nunca tive problemas para
aceitar mulheres nos negócios. Não via razão alguma para que ela não pudesse assumir a MGE, desde que aprendesse como tudo funcionava. Ela dizia que preferiria furar
os próprios olhos com uma agulha.
- Ela não aprovava a MGE? - perguntou Bel.
- Não, não tinha nada a ver com a companhia ou com sua política. Ela queria era ser uma artista do vidro. Esculpir, soprar, modelar... tudo que fosse possível
fazer com vidro, ela queria ser a melhor. E isso não deixava espaço para a construção de rodovias ou casas.
- Deve ter sido uma grande decepção.
- Fiquei arrasado. - Grant pigarreou. - Fiz tudo o que podia para convencê-la a desistir daquilo. Mas ela não me dava ouvidos. Agiu à minha revelia e se candidatou
a uma vaga na universidade Goldsmiths, em Londres. E conseguiu. - Ele balançou a cabeça. - Eu queria cortar qualquer ajuda financeira a ela, mas Mary, minha esposa,
mãe de Cat, me compeliu a concordar em sustentá-la. Ela disse que, para alguém que detestava se expor ao público, eu estava dando uma imensa colher de chá para os
tabloides. Então, deixei-me convencer. - Ele deu um sorriso amargo. - Quase me conformei com tudo, também. Então, descobri o que realmente estava acontecendo.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1978; Castelo de Rotheswell
Brodie Grant girou o Land Rover numa curva que espalhou cascalho para os lados e freou a metros da porta da cozinha do Castelo de Rotheswell. Entrou pisando forte
na casa, com um labrador chocolate nos calcanhares. Atravessou a cozinha, deixando um redemoinho de ar gelado à sua passagem, e gritou para o cão ficar ali. Moveu-se
pela casa com a velocidade e a segurança de um homem que sabe precisamente aonde está indo.
Finalmente, irrompeu na sala belamente decorada onde a esposa se entregava à sua paixão pela costura de colchas de retalhos.
- Você sabia disto? - ele indagou. Mary ergueu os olhos, assustada. Podia ouvir a intensidade de sua respiração, do outro lado da sala.
- Disto o quê, Brodie? - perguntou. Ela estava casada com uma força da natureza havia tempo suficiente para não se espantar com uma entrada dramática.
- Foi você que me convenceu a isto. - Ele se jogou numa poltrona baixa, lutando para ajeitar as pernas. - "É o que ela quer, Brodie. Ela jamais o perdoará
se você ficar no caminho dela. Você seguiu seus sonhos, Brodie. Deixe-a seguir os dela." Foi o que você disse. Então, foi o que fiz. Contrariando o que achava certo,
eu disse que iria apoiá-la. Financiar seu maldito diploma. Ficar de boca fechada sobre a maldita perda de tempo que é tudo isso. Parar de lembrá-la que são pouquíssimos
os artistas que conseguem se sustentar com essa bobajada indulgente. Não enquanto estão vivos, pelo menos. - Ele bateu o punho fechado no braço da poltrona.
Mary continuou a enfiar a agulha no tecido e sorriu.
- Você fez isso mesmo, Brodie. E estou orgulhosa de você.
- E olhe só aonde isso nos levou. Olhe só o que realmente está acontecendo!
- Brodie, não tenho ideia do que está falando. Você poderia explicar? E não se esqueça da sua pressão.
Ela tinha o dom de provocá-lo gentilmente e demovê-lo de suas posturas tão extremas. Mas, naquele dia, não estava dando certo. A irritação de Brodie estava no auge,
e seria necessária mais que uma dose de racionalidade amável para fazê-lo voltar a seu humor normal.
- Saí com Sinclair. Fomos verificar as trilhas para a caçada na sexta-feira.
- E como estavam as trilhas?
- Ótimas. Sempre ótimas. Ele é um bom caseiro. Mas não é essa a questão, Mary. - Sua voz se elevou novamente, incompatível com o ambiente aconchegante, cheio
de tecidos nas prateleiras.
- Claro que não, Brodie. Percebi isso. Qual é exatamente a questão?
- Aquele maldito do Fergus Sinclair. Eu disse ao Sinclair. No verão passado, quando seu maldito filho estava farejando atrás da Cat. Eu disse a ele para manter
o garoto longe da minha filha, e achei que ele tivesse me ouvido. E agora, isto! - Sacudiu as mãos como se estivesse jogando uma pilha de feno para o ar.
Mary finalmente abaixou seu trabalho.
- Qual é o problema, Brodie? O que aconteceu?
- É o que vai acontecer. Você se lembra de como respiramos aliviados quando ele se matriculou no maldito curso de administração de propriedades
em Edimburgo? Bem, acontece que essa não era sua única opção. Ele simplesmente aceitou uma vaga na Universidade de Londres. Vai estar na mesma droga de cidade que
a nossa filha. Vai ficar em cima dela o tempo todo, como uma sarna. Maldito caipira oportunista. - Fechou a cara e socou novamente a poltrona. - Vou acabar com a
raça dele, você vai ver.
Para espanto dele, Mary desandou a rir em sua mesinha de trabalho, com lágrimas cintilando nos cantos dos olhos.
- Ai, Brodie - ela ofegou. - Nem consigo lhe dizer como isso é engraçado.
- Engraçado? - ele berrou. - Aquele garoto dos infernos vai arruinar a vida de Cat e você acha engraçado?
Mary se levantou de um salto e cruzou a sala até o marido. Ignorando seus protestos, sentou-se no colo dele e passou os dedos por seu cabelo grosso.
- Está tudo bem, Brodie. Tudo ficará bem.
- Não vejo como. - Ele se afastou da mão dela.
- Durante a última semana, eu e a Cat tentávamos arranjar uma forma de lhe contar.
- Contar o quê, mulher?
- Ela não vai para Londres, Brodie.
Ele se endireitou, quase derrubando Mary no chão.
- O que você quer dizer com não vai para Londres? Ela vai desistir dessa idiotice? Virá trabalhar comigo?
Mary suspirou.
- Não Seja bobo. Você sabe, no fundo do seu coração, que ela está fazendo o que deveria fazer. Não, ela recebeu a oferta de uma bolsa de estudos. É uma combinação
de formação acadêmica e trabalho em uma fábrica de vidro artístico. Brodie, é simplesmente a melhor escola do mundo. E eles querem a nossa Catriona.
Por um longo momento, ele se permitiu ficar dividido entre o orgulho e o medo.
- E onde é isso? - disse, por fim.
- Não é muito longe, Brodie. - Mary passou as costas da mão pelo rosto dele. - É na Suécia.
- Suécia? Na maldita Suécia? Por Deus, Mary. Suécia?
- Você fala como se fosse o fim do mundo. Pode-se voar para lá de Edimburgo, sabe? Leva menos de duas horas. Sinceramente, Brodie. Escute o que está dizendo.
Isso é maravilhoso. É o melhor começo possível para ela. E você não terá de se preocupar com o fato de Fergus estar no mesmo lugar. Não é provável que ele apareça
numa cidadezinha perdida entre Estocolmo e Uppsala, é?
Grant passou os braços em volta da esposa e descansou o queixo sobre sua cabeça.
- Só você mesmo para encontrar o lado bom disso. - Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. - Com certeza, isso irá colocar o maldito do Fergus Sinclair
no lugar dele.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
- Então o senhor também discutia com Cat a respeito de namorados? - Bel perguntou. - Era com relação a todos eles, ou apenas no caso de Fergus Sinclair?
- Ela não teve tantos namorados assim. Estava concentrada demais no trabalho. Saiu durante alguns meses com um dos escultores da fábrica de vidro. Eu o encontrei
algumas vezes. Sueco, mas mesmo assim um rapaz bastante sensato. Eu podia ver que ela não estava levando muito a sério; então não havia necessidade de discutirmos
sobre ele. Mas Fergus Sinclair era outra história. - Ele contornou a mesa, e sua raiva era óbvia.
- A polícia nunca o considerou suspeito, mas questionei, na época, se ele poderia estar por trás do que aconteceu com Cat e Adam. Ele, logicamente, não havia
aceitado, quando ela finalmente rompeu os laços entre eles. E não aceitava que ela não o reconhecesse como pai de Adam. Na época, pensei que era possível que ele
tivesse feito justiça com as próprias mãos. Embora fosse difícil imaginar que tivesse inteligência para armar algo tão complicado.
- Mas Cat continuou o relacionamento com Fergus, depois de ir para a Suécia?
Subitamente o cansaço pareceu dominá-lo, e Grant se deixou cair na poltrona, de frente para Bel.
- Eles eram muito próximos. Haviam brincado juntos quando crianças. Eu deveria ter colocado um ponto final naquilo, mas nunca passou pela minha cabeça que
se transformaria em alguma coisa. Eles eram muito diferentes. Cat, com sua arte, e Sinclair, sem outra ambição a não ser a de seguir os passos do pai e ser caseiro.
Classes sociais diferentes, aspirações diferentes. A única coisa que os aproximava era o fato de a vida os ter colocado no mesmo lugar. Portanto, sim, quando ela
voltava, nas férias, e ele estava por perto, eles se juntavam novamente. Ela não fazia segredo sobre isso, ainda que soubesse minha opinião a respeito de Sinclair.
Eu continuava com a esperança de que ela conhecesse alguém que fosse digno dela, mas isso nunca aconteceu. Ela continuava voltando para Sinclair.
- E, apesar disso, o senhor não despediu o pai dele. Não o retirou da propriedade.
Grant pareceu chocado.
- Meu Deus, claro que não. Você tem ideia de como é difícil encontrar um caseiro tão bom quanto Willie Sinclair? Você poderia entrevistar cem homens antes
de encontrar alguém com os instintos que ele tem sobre pássaros e sobre as terras. E também é um sujeito decente. Ele sabia que o filho não estava à altura de Cat.
Sentia vergonha por não conseguir impedir que Fergus andasse atrás dela. Queria proibi-lo de frequentar a casa deles, mas sua esposa não permitiu. - Ele deu de ombros.
- Não posso culpá-la. As mulheres são sempre moles com os filhos.
Bel tentou ocultar sua surpresa. Ela havia presumido que Grant não respeitaria qualquer limite para que tudo fosse como ele queria, no que dizia respeito à filha.
Aparentemente, ele era mais complexo do que ela havia imaginado.
- O que aconteceu quando ela voltou da Suécia?
Grant esfregou o rosto com as mãos.
- Não foi nada agradável. Ela queria se mudar. Montar um estúdio onde pudesse trabalhar e vender suas coisas, um lugar onde também houvesse um espaço separado
para ela morar. Ela estava de olho numas propriedades nas minhas terras. Eu disse que o preço da minha ajuda era que ela parasse de se encontrar com Sinclair. -
Pela primeira vez, Bel viu tristeza se infiltrando através da raiva fervilhante. - Foi burrice da minha parte. Mary disse isso, na época, e ela estava com a razão.
As duas ficaram
furiosas comigo, mas eu não quis ceder. Então, Cat seguiu seu próprio caminho. Ela entrou em contato com a corretora da propriedade rural de Wemyss e alugou um imóvel
deles. Uma velha casa, próxima à entrada da propriedade, juntamente com o que havia sido um depósito de lenha, entrando pela estrada principal. Perfeito para atrair
a clientela. Área para estacionamento na frente dos antigos portões, um estúdio e espaço para exposição, além de dependências para ela morar, por trás dos muros.
Toda a privacidade que ela poderia desejar. E todo mundo ficou sabendo que Catriona Maclennan Grant fora morar em Wemyss só para contrariar seu velho pai.
- Se ela dependia do senhor, como é que pôde pagar por tudo isso? - perguntou Bel.
- A mãe dela equipou o estúdio, pagou o aluguel referente ao primeiro ano e encheu a despensa de Cat até ela começar a vender suas peças. - Ele não conseguiu
evitar um sorriso. - O que não demorou muito. Ela era boa, sabe? Muito boa. E a mãe cuidou que todos os seus amigos fossem até lá para comprar presentes de casamento
e de aniversário. Nunca fiquei tão bravo com Mary quanto naquela época. Estava ultrajado. Sentia-me frustrado e desrespeitado, e a situação só piorou quando o desgraçado
do Sinclair voltou da universidade e retornou de onde havia parado.
- Eles moravam juntos?
- Não. Cat tinha bom-senso o bastante para não fazer isso. Agora eu olho para trás e, às vezes, penso que ela só continuava se encontrando com ele para me
irritar. Não durou muito, depois que ela abriu o estúdio. Estava praticamente terminado cerca de um ano e meio antes que... que ela morresse.
Bel fez as contas mentalmente e concluiu que havia algo errado.
- Mas Adam só tinha seis meses quando eles foram sequestrados. Então, como Fergus Sinclair podia ser o pai, se ele se separou de Cat um ano e meio antes?
Grant suspirou.
- De acordo com Mary, não foi um rompimento definitivo. Cat ficava repetindo para Sinclair que tudo havia terminado, mas ele não queria aceitar. Hoje em dia,
isso se chama assédio. Parece que ele vivia aparecendo com aquela cara de cão sem dono, e Cat nem sempre tinha forças para
mandá-lo embora. E daí, ela ficou grávida. - Ele olhou para o chão. - Sempre imaginei como seria ser avô. Ver a família continuar. Mas, quando Cat nos contou, tudo
o que senti foi raiva. Aquele filho da puta do Sinclair havia arruinado o futuro dela. Ele a sobrecarregou com seu bebê, destruiu suas chances de ter a carreira
que ela havia sonhado. A única coisa boa que ela fez foi se recusar a manter qualquer contato com ele. Não quis reconhecê-lo como pai da criança, não queria vê-lo
nem falar com ele. Deixou muito claro que, daquela vez, estava realmente tudo acabado entre eles.
- Como ele reagiu a isso?
- Mais uma vez, eu soube indiretamente. Dessa vez por Willie Sinclair. Ele disse que o garoto estava devastado. Mas só o que me importava era que ele finalmente
tivesse entendido o recado de que nunca faria parte da nossa família. Willie aconselhou-o a manter distância de Cat e, pela primeira vez na vida, ele ouviu. Em poucas
semanas, arranjou um emprego na Áustria para trabalhar numa propriedade de caça perto de Salzburg. Desde então ele trabalha na Europa.
- E hoje? O senhor ainda acha que ele pode ter sido responsável pelo que aconteceu?
Grant fez uma careta.
- Se é para ser honesto, não. Acho que não. Não creio que ele tivesse inteligência suficiente para criar um plano tão complicado. Tenho certeza de que ele
adoraria ter colocado as mãos no filho e ao mesmo tempo se vingar de Cat, mas é muito mais provável que tenham sido alguns filhos da puta com motivos políticos que
pensaram que seria muito inteligente me fazer financiar sua revolução. - Fatigado, ele se levantou. - Agora estou cansado. A polícia virá amanhã de manhã e teremos
que repassar tudo. Nós a veremos no jantar, Srta. Richmond.
Ele saiu da sala, deixando Bel cheia de coisas a considerar. E anotar. Quando Brodie Grant dissera que falaria com ela, não havia imaginado, nem por um minuto, que
ele lhe entregaria esse precioso filão de informações. Ela teria de pensar com muito cuidado em como apresentá-lo à mídia mundial. Um passo em falso e sabia que
a mina seria fechada. Agora que tivera um gostinho do que jazia adiante, isso era, definitivamente, a última coisa que ela queria.
Glenrothes
Novo em Folha olhava fixamente para a tela do computador, como se fosse um artefato alienígena, quando Karen voltou a seu escritório.
- O que você tem aí para mim? - ela perguntou. -Já conseguiu ras-trear os cinco fura-greves?
- Nenhum deles tem registro criminal - ele disse.
- E?
- Eu não sabia onde mais procurar.
Karen revirou os olhos. Sua convicção de que Novo em Folha havia sido imposto a ela por Biscoito como uma forma de sabotagem se intensificava a cada dia.
- Google. Registro eleitoral. O site 192.com. Registro de carteiras de habilitação. Comece por aí, Jason. E depois marque para mim uma visita, em terreno,
com o responsável pela preservação de cavernas. É melhor deixar o dia de amanhã livre; veja se você consegue que ele me receba no sábado cedo.
- Nós geralmente não trabalhamos aos sábados - disse Novo em Folha.
- Você é que está dizendo - Karen murmurou, lembrando-se de pedir a Phil que fosse com ela. A insistência da lei escocesa na corroboração para todo tipo de
prova fazia com que ficasse difícil dar uma de justiceiro solitário.
Ela despertou seu computador da hibernação e rastreou as informações de contato de seu equivalente em Nottingham. Para seu alívio, o inspetor Des Mottram estava
em sua mesa e foi receptivo a seu pedido.
- Acho provável que seja um beco sem saída, mas é algo que precisa ser verificado - ela disse.
- E não lhe atrai nem um pouco uma viagem até Costa dei Trent - ele disse, com uma resignação divertida na voz.
- Não é isso. Tive um caso importantíssimo reaberto hoje e não tenho como desperdiçar pessoas com algo que, provavelmente, não nos trará qualquer avanço,
exceto num caminho negativo.
- Não se preocupe. Eu sei como é isso. Hoje é seu dia de sorte, Karen. Teremos dois novos assistentes no Departamento de Investigação Criminal na segunda-feira
e isso é exatamente o tipo de coisa que posso usar para treiná-los. Nada muito complicado, não exige muita manha.
Karen passou para ele os nomes dos homens.
- Um dos meus rapazes está procurando pelos últimos endereços conhecidos. Assim que ele achar alguma coisa, pedirei que lhe mande um e-mail. - Mais alguns
detalhes e ela terminou. Bem naquele instante, Phil Parhatka voltou a entrar na sala, com um enrolado de bacon que transmitiu uma mensagem diretamente para os centros
de prazer do cérebro de Karen. - Hummm - ela gemeu. - Deus, isto está com um cheiro delicioso.
- Se eu soubesse que você havia voltado, teria lhe trazido um. Bom, vamos dividir esse.
Ele pegou uma faca em sua gaveta e cortou o enrolado na metade, espirrando molho de tomate nos dedos. Passou a ela sua metade e, então, lambeu os dedos. O que mais,
pensou Karen, uma mulher poderia querer de um homem?
- O que o Biscoito queria? - perguntou Phil.
Karen deu uma mordida no enrolado e falou com a boca cheia da massa adocicada com bacon salgado.
- Novos desdobramentos no caso Catriona Maclennan Grant.
- É mesmo? O que aconteceu?
Karen sorriu.
- Não sei. O Rei Brodie não se preocupou em dizer ao Biscoito. Só disse a ele para me mandar lá amanhã de manhã. Então, preciso me atualizar rapidinho. Já
mandei buscar os arquivos, mas vou checar on-line primeiro. Olhe só... - Ela o puxou para um lado. - O assunto Mick Prentice. Preciso falar com alguém no sábado
e é óbvio que o Novo em Folha não trabalha aos sábados. Existe alguma chance de eu convencer você a ir comigo?
- Ir aonde?
- Às cavernas de Wemyss.
- Sério? - Phil se animou. - Poderemos passar para o outro lado das grades?
- Imagino que sim - disse Karen. - Não sabia que você se interessava por cavernas.
- Karen, eu já fui garoto um dia.
Ela revirou os olhos.
- Isso é bem verdade.
- Além disso, as cavernas têm coisas realmente legais. Inscrições e desenhos pictos. Entalhes da Idade do Ferro. Gosto da ideia de ser um
esquilo-agente-secreto e poder dar uma espiada nas coisas que geralmente não podem ser vistas. Claro que irei com você. Você já fez os registros do
caso?
Karen pareceu envergonhada.
- Quero ver aonde vai dar. Foi uma época difícil por aqui. Se alguma coisa ruim aconteceu a Mick Prentice, quero ir até o fundo. E você sabe como a mídia
está sempre se metendo no que fazemos no setor de Casos Arquivados. Tenho a sensação de que esse é um caso em que temos mais chance de descobrir o que aconteceu
se mantivermos segredo por um tempo.
Phil terminou seu enrolado e limpou a boca com as costas da mão.
- Parece justo. Você é a chefe. Só se assegure de que o Biscoito não possa usar isso contra você.
- Vou tomar cuidado. Escute, você está ocupado agora?
Ele atirou o saco de papel vazio na lixeira com uma jogada por cima da cabeça, comemorando quando acertou.
- Nada que eu não possa adiar.
- Veja o que você consegue descobrir sobre um cara chamado Andy Kerr. Ele era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores durante a greve. Morava num
sítio no meio do bosque de Wemyss. Estava de licença médica, com depressão, na época em que Mick desapareceu. Dizem que deu fim à própria vida, mas nunca encontraram
o corpo.
Phil assentiu.
- Verei o que consigo descobrir.
Enquanto ele voltava à própria mesa, Karen procurava Catriona Maclennan Grant no Google. O primeiro resultado a levou a uma publicação em formato de jornal, de dois
anos antes, marcando o vigésimo aniversário da morte da jovem escultora. Depois de ler três parágrafos, Karen sentiu um golpe no meio de seu peito. "É incrível como
são poucas as pessoas que se dispõem a falar sobre este caso", ela leu. "O pai de Cat Grant jamais falou com a imprensa sobre o que aconteceu. Sua mãe se matou dois
anos após a morte da filha. Seu ex-namorado, Fergus Sinclair, se recusa a dar entrevistas. E o policial encarregado do caso também está fora do nosso alcance, já
que ele mesmo cumpre pena por assassinato."
- Ai, Jesus - ela gemeu. Nem sequer tinha visto o arquivo do caso e aquela já estava se transformando numa missão dos infernos.
Kirkcaldy
Já passava das dez quando Karen entrou em casa com um pacote de arquivos e uma porção de peixe para o jantar. A ideia de que estava brincando de casinha nunca a
tinha abandonado. Talvez tivesse algo a ver com a casa em si, uma caixa pré-fabricada num empreendimento imobiliário popular de 1960, no norte de Kirkcaldy. O tipo
de lugar no qual as pessoas começavam a vida, aferrando-se à esperança de que não a terminariam ali. Um subúrbio com baixos índices de criminalidade, onde se podia
deixar as crianças brincar na rua, desde que não se morasse em uma das estradas. Acidentes de trânsito, e não sequestros, eram o que os pais mais temiam por ali.
Karen nunca se lembrava ao certo por que havia comprado a casa, embora, na época, tivesse parecido uma boa ideia. Suspeitava que o apelo estivera no fato de ela
vir completamente mobiliada, provavelmente por alguém que havia tirado a ideia de um programa de TV sobre decoração. Comprara a mobília junto com a casa, até mesmo
os quadros nas paredes. Não ligava para o fato de não ter sido ela a escolher as coisas entre as quais vivia. De qualquer maneira, era o tipo de coisa que ela provavelmente
teria escolhido, e aquilo lhe havia economizado o trabalho de passar um domingo numa loja da IKEA. E ninguém podia negar que era um milhão de vezes mais agradável
do que a confusão floral desbotada em que viviam seus pais. Sua mãe continuava esperando que ela se tornasse como todo mundo, mas isso não iria acontecer. Quando
tinha um fim de semana livre, Karen não desejava nada além de um prato de carne e legumes com curry com os amigos e passar um bom tempo estirada no sofá, assistindo
a jogos de futebol e a filmes antigos. Nada de arrumar a casa.
Ela colocou tudo sobre a mesa de jantar e foi à procura de um prato e talheres. Ainda conservava alguns padrões, pelo amor de Deus. Atirou o casaco sobre uma cadeira
e sentou-se com a refeição, abrindo um dos arquivos para ler enquanto comia. Ela já havia estudado os arquivos do caso Grant antes e tomado nota das perguntas para
as quais queria respostas. Agora, finalmente, tinha a chance de analisar o material que Phil compilara para ela.
Como havia esperado, o relatório de pessoa desaparecida original não poderia estar mais incompleto. Naquela época, o desaparecimento de um homem adulto, solteiro
e sem filhos, com histórico de depressão clínica, não teria muita atenção da polícia. Não tinha nada a ver com o fato de que a greve dos mineiros houvesse sobrecarregado
a força policial até o limite, e tudo a ver com o fato de que, naquele tempo, pessoas desaparecidas não eram prioridade. A não ser que fossem crianças pequenas ou
mulheres jovens e atraentes. Mesmo nos dias atuais, somente os problemas clínicos de Andy Kerr teriam garantido um leve interesse.
Seu desaparecimento havia sido informado por sua irmã, Angie, na véspera do Natal. Ele não aparecera na casa dos pais para a tradicional comemoração em família.
Angie, em casa de férias do curso de pedagogia, havia deixado alguns recados na secretária eletrônica dele na semana anterior, tentando marcar um encontro para um
drinque. Andy não respondera, mas aquilo não era incomum. Ele sempre fora dedicado ao trabalho, mas, desde que a greve havia começado, tornara-se um verdadeiro workaholic.
Então, na tarde da véspera de Natal, a Sra. Kerr admitira que Andy estava de licença por depressão. Angie convenceu o pai a levá-la de carro até o sítio de Andy,
no bosque de Wemyss. O lugar estava frio e deserto, sem qualquer comida fresca na geladeira. Havia um bilhete encostado no açucareiro sobre a mesa da cozinha. Incrivelmente,
o bilhete havia sido embalado e incluído no arquivo. Se você estiver lendo isto, provavelmente é porque está preocupado comigo. Não fique. Já aguentei o suficiente.
É uma coisa depois da outra, e não suporto mais. Fui embora para tentar colocar a cabeça no lugar. Andy.
Não era exatamente um bilhete de suicídio, mas, se você encontrasse um corpo ao lado de uma mensagem dessas, não esperaria que fosse uma vítima de assassinato. E
a irmã dissera que Andy gostava de fazer caminhada pela montanha. Ela podia entender por que o oficial que investigara o sítio e o bosque ao redor houvesse recomendado
que não se tomassem outras medidas além de fazer a informação circular entre as demais forças da Escócia. Uma anotação no arquivo, escrito com caligrafia diferente,
atestava que Angie Kerr havia entrado com um pedido para que seu irmão fosse declarado legalmente morto em 1992 e que o pedido fora concedido.
A última página estava na caligrafia familiar de Phil. "Os pais de Kerr morreram no desastre de balsa de Zeebrugge, em 1987. Angie não poderia reclamar sua herança
enquanto Andy não fosse declarado morto. Quando ela, finalmente, conseguiu legitimar a sucessão, em 1993, vendeu tudo e emigrou para a Nova Zelândia. Ela ensina
piano em Nelson, em South Island; trabalha em casa." Seguiam o endereço completo e o número de telefone de Angie Kerr.
Ela havia sofrido bastante com tudo aquilo, pensou Karen. Perder o irmão e os pais no espaço de alguns anos já era duro, e ainda por cima ter de passar pelo processo
de obter a declaração de morte legal para Andy. Não era de admirar que ela tivesse desejado se mudar para o outro lado do mundo. Onde, ela notou, seriam onze e meia
da manhã. Uma hora perfeitamente civilizada para se ligar para alguém.
Uma das poucas coisas que Karen havia comprado para sua casa era uma secretária eletrônica que lhe permitia gravar digitalmente as ligações telefônicas, que ela,
então, podia transferir via conexão USB para seu computador. Tentara convencer Biscoito a comprar algumas para o escritório, mas ele não se interessava. Provavelmente
porque não tinha sido ideia dele. Karen podia apostar que, muito em breve, algo parecido surgiria no escritório principal do Departamento de Investigação Criminal,
uma invenção do próprio subchefe Lees. Tudo bem. Pelo menos ela podia usar o sistema em casa e pedir ressarcimento pelas ligações.
Uma mulher atendeu no terceiro toque, o sotaque escocês evidente até mesmo nas duas sílabas de "Alô?".
Karen se apresentou e, então, disse:
- É Angie Kerr?
- Antes era Kerr. Agora é Mackenzie. É a respeito do meu irmão? Vocês o encontraram? - Ela parecia ansiosa, quase satisfeita.
- Não. Infelizmente, não.
- Ele não se matou, sabe? Sempre achei que sofreu um acidente. Caiu de alguma montanha, em algum lugar. Por mais deprimido que estivesse, Andy jamais se mataria.
Ele não era covarde. - O tom de desafio era claro em sua voz.
- Sinto muito - disse Karen. - Realmente não tenho respostas para você. Mas estamos examinando novamente os fatos da época em que ele
desapareceu. Estamos investigando o desaparecimento de Mick Prentice, e o nome do seu irmão veio à tona.
- Mick Prentice. - Angie parecia enojada. - Que belo amigo ele se revelou.
- O que você quer dizer?
- Não acho que seja coincidência que ele tenha fugido da greve justamente antes de Andy partir.
- Por que você diz isso?
Uma pausa curta, então Angie continuou:
- Porque seria o pior tipo de traição. Aqueles caras eram amigos desde o primeiro dia de escola. O fato de Mick ter furado a greve arrasaria Andy. E eu acho
que ele previu que isso aconteceria.
- O que a faz dizer isso?
- A última vez que o vi, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo com Mick.
Domingo, 2 de dezembro de 1984; Bosque de Wemyss
Nenhuma visita à casa de sua família seria completa, para Angie, se não passasse algum tempo com o irmão. Ela tentava vir pelo menos uma vez por semestre, mas, embora
a viagem de ônibus de Edimburgo levasse apenas uma hora, às vezes parecia demais para suportar. Ela sabia que o problema era o diferente tipo de distância que estava
crescendo entre ela e os pais, conforme se movimentava com maior liberdade num universo que era estranho para eles: palestras, sociedades estudantis, festas nas
quais as drogas eram tão comuns quanto um drinque, e uma gama de assuntos que ultrapassava tudo que ela já houvesse encontrado em Fife. Não que não existissem oportunidades
para ampliar os horizontes intelectuais por lá. Mas as salas de leitura, os cursos da WEA e os Bums Clubs eram para os homens. As mulheres nunca tiveram acesso nem
tempo para eles. Os homens cumpriam seus turnos no subterrâneo e, depois, seu tempo era só deles. Mas o trabalho das mulheres nunca terminava de verdade, principalmente
para aquelas cujos senhorios eram as antigas empresas carboníferas ou a comissão nacional do carvão. A própria avó de Angie não tivera água quente corrente nem um
banheiro em sua casa até já ter mais de sessenta
anos. Portanto, os homens não se sentiam facilmente atraídos por mulheres com formação escolar.
Andy era uma exceção. Sua mudança da frente mineira para o trabalho no sindicato o havia exposto às políticas igualitárias aspiradas pelo movimento sindicalista.
Ainda que não existissem mulheres trabalhando nas minas, o contato com outros sindicatos havia convencido Andy de que o mundo não acabaria se as mulheres fossem
tratadas como companheiras igualitárias da raça humana. E, assim, irmão e irmã tornaram-se mais próximos, substituindo as brigas da infância por discussões legítimas.
Agora, Angie esperava com ansiedade pelas tardes de domingo passadas com o irmão, passeando pelo bosque ou segurando canecas de chocolate quente diante da lareira.
Naquela tarde, Andy a esperara na parada de ônibus no final da estrada que descia até seu sítio, adentrando o bosque. Eles haviam planejado contornar o bosque e
caminhar até a orla, mas o céu ameaçava chuva, então optaram por voltar ao sítio.
- Acendi a lareira para a sua chegada - Andy dissera quando começaram a caminhada. - Me sinto culpado por ter dinheiro para o carvão, então, geralmente, não
a acendo. Simplesmente visto mais um suéter.
- Isso é uma tolice. Ninguém o culpa por ainda receber um salário.
Andy balançou a cabeça.
- É aí que você se engana. Tem um monte de gente que acha que deveríamos devolver nosso salário para o fundo do sindicato.
- E a quem isso beneficia? Você está fazendo um trabalho. Está apoiando os homens em greve. Merece ser remunerado. - Ela passou o braço pelo de Andy, compreendendo
como ele devia estar se sentindo acuado.
- Pois é, e muitos dos grevistas acham que também deveriam receber alguma coisa do sindicato. Ouvi alguns deles, lá no Serviço Social, dizendo que, se o sindicato
estivesse pagando salário-greve, não teriam que estar trabalhando tanto para manter os fundos a salvo das mãos dos confiscadores. Eles questionam para que servem
os fundos do sindicato se não é para ajudar seus membros quando há uma greve. - Ele suspirou, a cabeça baixa como se estivesse caminhando contra um vento forte.
- E eles têm razão, sabe?
- Imagino que sim. Mas se você delega a tomada de decisões a seus líderes, que foi o que eles fizeram ao concordar com a greve sem uma votação
nacional, então não pode começar a reclamar quando eles tomam decisões com as quais você não concorda muito. - Angie olhou atentamente para o irmão, observando como
as linhas de tensão ao redor de seus olhos haviam se aprofundado, desde a última vez que o vira. Sua pele parecia pálida e pouco saudável, como a de um homem que
viesse passando tempo demais em ambientes fechados e sem suplementos vitamínicos. - E se você se deixar intimidar a esse respeito, não ajudará a ninguém.
- Não sinto que esteja sendo de muita ajuda no momento - ele disse, tão baixinho que a fala quase se perdeu no ruído das folhas mortas sob seus pés.
- Isso é uma bobagem - Angie protestou, sabendo que não era suficiente, mas sem saber o que mais poderia dizer.
- Não, é a verdade. A vida dos homens que eu represento está desmoronando. Eles estão perdendo a casa porque não conseguem pagar a hipoteca. A esposa já vendeu
o anel de casamento. Os filhos vão para a escola com fome. Têm furos nos sapatos. Aqui mais parece um maldito país de Terceiro Mundo, só que não temos nenhuma instituição
de caridade arrecadando dinheiro para nos ajudar com nosso desastre. E não posso fazer nada a respeito. Como você acha que me sinto com isso?
- Bem mal - disse Angie, agarrando seu braço com mais força. Não havia resistência; era como abraçar o protetor estofado contra correntes de ar que sua mãe
usava para manter a sala o mais abafada possível. - Mas você pode fazer apenas o melhor que conseguir. Ninguém espera que você solucione todos os problemas da greve.
- Eu sei - ele suspirou. - Mas me sentia parte desta comunidade. Pertenci a ela minha vida inteira. Agora, parece que os caras em greve estão num lado da
cerca e todos os demais estão no outro. Funcionários do sindicato, auxiliares das minas, gerentes, a porra do governo Toiy... somos todos inimigos.
- Agora é que você está realmente dizendo bobagens. De jeito nenhum estamos no mesmo lado que os Tories. Todo mundo sabe disso. - Eles caminharam em silêncio,
apressando o passo quando a promessa de chuva se tornou realidade. Caiu torrencialmente em gotas frias e duras. Os galhos nus acima de sua cabeça ofereciam pouca
proteção contra o aguaceiro penetrante. Angie soltou o braço dele e começou a correr. - Vamos apostar uma corrida? - ela disse, animada, de alguma forma, pelo aguaceiro
gelado.
Não olhou para verificar se ele a estava seguindo. Apenas correu de forma desordenada em meio às árvores, seguindo a trilha sinuosa. Como sempre, emergir na clareira
onde o sítio se incrustava era incrivelmente repentino. A casa aparecia como algo saído dos contos dos Irmãos Grimm, uma construção baixa sem qualquer outro charme
além do seu isolamento. O teto de ardósia, o estuque cinza, a porta e as janelas pretas levariam qualquer criança que passasse por ali a identificá-la como a casa
da bruxa malvada. Um alpendre de madeira abrigava um recipiente para carvão, uma pilha de madeira e a motocicleta com sidecar de Andy.
Angie correu até a varanda e se virou, ofegante. Não havia sinal de Andy. Alguns minutos se passaram antes que ele surgisse entre as árvores, caminhando com dificuldade,
o cabelo castanho-claro grudado à cabeça. Angie sentiu-se murchar diante do fracasso de sua tentativa de animá-lo um pouco. Ele não disse nada ao entrar primeiro
na casa, tão organizada e espartana quanto um quartel. A única decoração era uma série de pôsteres de animais selvagens que haviam sido dados como brinde junto com
um dos jornais dominicais escoceses. Um conjunto de prateleiras estava lotado de livros sobre história natural e política; outro, de LPs. Não poderia ser mais diferente
dos quartos que ela frequentava em Edimburgo, mas Angie gostava mais dali do que de qualquer um deles. Ela sacudiu a cabeça como um cachorro para tirar as gotas
de chuva do cabelo louro-escuro, atirou o casaco sobre uma cadeira e se encolheu em uma das poltronas de segunda mão que estavam ao lado da lareira. Andy foi direto
até a cozinha para preparar o chocolate quente.
Enquanto esperava que ele se juntasse a ela, Angie tentava imaginar uma forma de animá-lo. Geralmente, ela o fazia rir com as histórias de seus colegas da universidade
e suas travessuras, mas sentia que isso não iria funcionar naquele dia. Iriam parecer histórias insensíveis sobre os privilegiados. Talvez a solução fosse lembrá-lo
das pessoas que ainda acreditavam nele.
Ele voltou com duas canecas fumegantes numa bandeja. Geralmente, eles comiam biscoitos, mas qualquer coisa que cheirasse a luxo estava fora do cardápio daquele dia.
- Tenho doado a maior parte do meu salário para o fundo de emergência - ele disse, percebendo que ela havia notado. - Só guardo o suficiente para o aluguel
e as coisas básicas.
Sentaram-se de frente um para o outro, aferrando-se à bebida quente para deixar que o calor penetrasse em suas mãos geladas. Angie falou primeiro.
- Você não deveria dar atenção a eles. As pessoas que realmente o conhecem não acham que você seja um dos inimigos. Você deveria ouvir gente como Mick, que
sabe quem você é. O que você é.
- Você acha mesmo? - Sua boca se retorceu numa expressão amargurada. - Como é que pessoas da laia de Mick podem saber quem eu sou, se nem sequer sabem mais
quem elas mesmas são?
- O que você quer dizer com não saber mais quem é Mick? Vocês são amigos há mais de vinte anos. Não acredito que a greve tenha mudado nenhum de vocês tanto
assim.
- É o que se poderia pensar, não? - Andy olhou fixamente para o fogo com os olhos embotados e os ombros caídos. - Os homens daqui... não é comum a gente conversar
sobre nossos sentimentos. Vivemos nesta atmosfera de camaradagem, lealdade e dependência mútua, mas nunca falamos sobre o que acontece dentro da gente. Mas eu e
o Mick, nós não éramos assim. Costumávamos contar tudo um ao outro. Não havia nada sobre o que não pudéssemos conversar. - Ele afastou o cabelo molhado da testa
alta e estreita. - Mas, ultimamente, algo mudou. Sinto que ele está escondendo alguma coisa. Parece que há alguma questão realmente importante sobre a qual ele não
consegue se obrigar a falar.
- Mas pode ser qualquer coisa - disse Angie. - Algo entre ele e Jenny, talvez. Algo que não seria certo discutir com você.
Andy fungou.
- Você acha que ele não fala sobre Jenny? Eu sei tudo sobre aquele casamento, pode acreditar. Poderia desenhar um mapa das falhas geológicas entre aqueles
dois. Não, não é Jenny. A única coisa que posso pensar é que ele concorda com os outros. Que ache que eu não esteja servindo de nada para eles, no momento.
- Tem certeza de que não é sua imaginação? Isso não parece coisa do Mick.
- Bem que eu gostaria. Mas não é imaginação. Nem mesmo meu melhor amigo acha que eu mereça confiança. Só não sei quanto tempo conseguirei fazer meu trabalho,
me sentindo deste jeito.
Angie começou a se preocupar de verdade. O desespero de Andy estava claramente além de qualquer coisa com a qual ela soubesse lidar.
- Andy, não me leve a mal, mas você precisa ir ao médico.
Ele emitiu um som que parecia o de uma risada sufocada antes mesmo de se formar.
- Quem? O Dr. Aspirina e o Dr. Melhorai, os gêmeos analgésicos? Você acha que estou perdendo o juízo? Acha que esses dois saberiam o que fazer a respeito,
se eu estivesse mesmo? Acha que preciso de temazepam, como a porra da metade das mulheres daqui? Pílulas da felicidade, para fazer com que nada mais importe?
- Eu quero ajudar você, Andy. E não tenho competência para isso. Você precisa conversar com alguém que saiba o que fazer, e os médicos são um bom começo.
Até mesmo o Aspirina e o Melhoral sabem mais do que eu sobre depressão. Acho que você está deprimido, Andy. Uma depressão clínica mesmo, e não apenas tristeza.
Ele pareceu que ia chorar.
- Sabe o que é o pior de tudo isso que você acabou de falar? Que eu acho que você pode ter razão.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Kirkcaldy
Parecia plausível. Andy Kerr havia sentido que Mick Prentice escondia alguma coisa dele. Quando pareceu que Mick havia se unido aos fura-greves e ido para Nottingham,
deve ter sido o suficiente para empurrar alguém já fragilizado para o abismo. Mas aparentemente Mick Prentice, afinal, não havia ido para Nottingham. A questão,
pensou Karen, era se Andy Kerr sabia o que realmente havia acontecido com seu melhor amigo. E se ele estava envolvido no desaparecimento dele.
- E você nunca mais falou com Andy, depois daquele domingo? - ela perguntou.
- Não. Tentei telefonar para ele algumas vezes, mas só caía na secretária eletrônica. Eu não tinha telefone onde estava morando, então ele não tinha como
me ligar de volta. Minha mãe me disse que o médico lhe dera uma licença do trabalho, por causa da depressão, mas isso foi tudo que eu soube.
- Você acha que é possível que ele e Mick tenham ido a algum lugar juntos?
- O quê? Você quer dizer que tenham dado as costas para todo mundo e ido em direção ao pôr do sol, como Butch Cassidy e Sundance Kid?
Karen recuou.
- Não exatamente assim. Mas como se os dois tivessem se fartado e não conseguissem ver outra saída. Não há dúvida de que Andy estava com problemas. E você
sugeriu que Mick e Jenny também não estavam se entendendo. Talvez eles tenham se decidido por um rompimento limpo.
Ela podia ouvir Angie respirando, no outro lado do mundo.
- Andy não faria isso conosco. Ele jamais teria nos magoado dessa forma.
- Mick poderia tê-lo convencido? Você disse que eles eram amigos desde a escola. Quem era o líder? Quem era o seguidor? Sempre há um que lidera e outro que
segue. Você sabe disso, Angie. Mick era o líder? - Ninguém conseguia ser mais insistente do que Karen, quando estava inspirada.
- Acho que sim. Mick era o extrovertido, Andy era muito mais quieto. Mas eles formavam uma dupla. Estavam sempre metidos em problemas, mas não de forma negativa.
Não com a polícia. Apenas enrolados na escola. Eles sabotavam as experiências de química com fogos de artifício. Grudavam a tampa da mesa da professora. Andy era
bom com as palavras, e Mick era artístico, então eles imprimiam pôsteres com anúncios falsos da escola. Ou Mick falsificava bilhetes dos professores, dando aos dois
permissão para sair das aulas de que eles não gostavam. Ou bagunçavam a biblioteca, trocando as capas dos livros. Eu teria um ataque de nervos se tivesse alunos
como eles. Mas eles amadureceram. Na época da greve, os dois já estavam assentados na vida. - Havia mais do que um toque de pesar em sua voz. - Portanto, sim, teoricamente,
Mick poderia ter convencido Andy a dar no pé. Mas não teria sido por muito tempo. Eles teriam voltado. Não poderiam ficar longe. Tinham raízes profundas demais.
- Você cortou as suas - Karen observou.
- Eu me apaixonei por um neozelandês, e minha família inteira estava morta - Angie disse, simplesmente. - Eu não estava deixando para trás ninguém para chorar
por mim.
- É justo. Podemos voltar para o Mick? Você disse que Andy sugerira que havia problemas no casamento dele.
- Ela o obrigou a casar, sabe? Andy sempre achou que ela ficara grávida de propósito. Ela deveria estar tomando pílula, mas, incrivelmente, não funcionou
e, em seguida, Misha estava a caminho. Ela sabia que Mick vinha de uma família decente, o tipo de gente que não foge das responsabilidades. Então, é claro que ele
se casou com ela.
Havia um toque de amargura em seu tom de voz que fez Karen se perguntar se ela havia sido apaixonada por Mick Prentice antes que seu neozelandês aparecesse.
- Não foi o melhor dos começos, então.
- No início, eles pareciam bem felizes. - A admissão rancorosa de Angie custou a vir. - Mick a tratava como uma princesinha, e ela se aproveitava disso. Mas
não gostou nada quando chegaram os tempos difíceis. Achei, na época, que ela o havia forçado a furar a greve porque tinha se cansado de viver na miséria.
- Mas ela sofreu muito, depois que ele foi embora - disse Karen. - Foi um estigma terrível ser a esposa de um fura-greve. Ela não teria permitido que ele
a deixasse enfrentar aquilo sozinha.
Angie emitiu um ruído de desdém.
- Ela não tinha ideia de como seria, até que aconteceu. Ela não entendia. Não era das nossas, sabe? As pessoas falam da classe trabalhadora como se fosse
um bolo só, mas as linhas demarcatórias são tão bem definidas quanto em qualquer outra classe. Ela nasceu e foi criada em East Wemyss, mas não era uma de nós. Seu
pai não sujava as mãos. Ele trabalhava na cooperativa. Ficava atrás de um balcão de loja. Vestia camisa e gravata para trabalhar. Aposto que ele nunca votou no Partido
Trabalhista na vida. Então, não tenho certeza de que ela entendesse bem o que iria acontecer com ela, se Mick entrasse em greve.
Fazia sentido. Karen compreendia visceralmente o que Angie estava dizendo. Ela conhecia pessoas assim em sua própria comunidade. Pessoas que não se encaixavam em
lugar algum, que tinham a bunda calejada de tanto ficarem sentadas em cima do muro. Acrescentava peso à ideia de que Mick Prentice poderia ter fugido da greve. Exceto
pelo fato de ele não ter feito isso.
- O negócio, Angie, é que parece que Mick não fugiu da greve, naquela noite. Nossos inquéritos preliminares indicam que ele não se uniu àqueles cinco homens
que foram para Nottingham.
Um silêncio chocado. Então, Angie disse:
- Ele poderia ter ido para outro lugar, sozinho.
- Ele não tinha dinheiro. Nem um meio de transporte. Não levou nada consigo quando saiu naquela manhã, além de seu material de pintura. Seja o que for que
aconteceu com ele, não acho que ele tenha fugido da greve.
- Então, o que aconteceu com ele?
- Ainda não sei - disse Karen. - Mas planejo descobrir. E esta é a pergunta que preciso começar a fazer: vamos supor que Mick não tenha furado a greve. Quem
poderia ter motivos para querê-lo fora do caminho?
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Nottingham
Femi Otitoju digitou o quarto endereço no Google Earth e estudou o resultado.
- Vamos, Fem - resmungou Mark Hall. - O inspetor-chefe está de olho na gente. Ele está se perguntando que diabo você está fazendo, brincando com o computador,
depois de ele ter nos mandado numa missão.
- Estou calculando a ordem mais eficiente para fazer as entrevistas, assim não teremos que perder a metade do dia voltando aos lugares. - Ela olhou para os
quatro nomes e endereços fornecidos por um detetive de Fife e os numerou de acordo com sua lógica. - E eu já falei: não me chame de Fem. - Ela imprimiu a lista e
a dobrou com esmero, guardando-a em sua impecável bolsa de mão. - Meu nome é Femi.
Mark girou os olhos e a seguiu, saindo do escritório de Revisão de Casos Arquivados, lançando um sorriso nervoso para o inspetor-chefe Mottram no caminho. Ele havia
esperado ansiosamente por sua transferência para o Departamento de Investigações Criminais, mas, se tivesse sido avisado de que isso significaria trabalhar com Femi
Otitoju, ele poderia ter reconsiderado a questão. O comentário na delegacia, quando ambos ainda usavam uniformes, era que, no caso de Otitoju, a sigla AP (agente
policial) queria dizer Além da Perfeição. Seu uniforme sempre fora imaculado e os sapatos, lustrados no padrão militar. Suas roupas civis seguiam o mesmo estilo:
um discreto
terninho cinza impecavelmente passado, camisa de um branco ofuscante, cabelo impecável. E sapatos mais polidos que um espelho. Tudo que ela fazia era dentro das
regras;
tudo era preciso. Não que Mark tivesse algo contra as coisas serem feitas adequadamente. Mas ele sempre acreditara que havia espaço para a espontaneidade, principalmente
numa entrevista. Se a pessoa com quem você estivesse falando saísse pela tangente, não havia mal algum em segui-la por um tempo. Às vezes, era entre as tangentes
que a verdade estava oculta.
- Então, esses quatro eram mineiros de Fife que furaram a greve para vir trabalhar nas minas daqui? - ele perguntou.
- Exatamente. Originalmente, havia cinco, mas um deles, Stuart McAdam, morreu há dois anos, de câncer de pulmão.
Como é que ela se lembrava daquelas coisas? E por que se importava em memorizá-las?
- E quem você vai ver primeiro?
- William John Fraser. Conhecido como Billy. Cinquenta e três anos, casado, dois filhos adultos, um na Universidade de Leeds, o outro em Loughborough. Ele
é eletricista autônomo agora. - Ela pendurou a bolsa no ombro. - Eu dirijo; sei aonde estamos indo.
Saíram para o estacionamento descoberto atrás da delegacia e se dirigiram para um carro sem identificação de uso comum do DIC (Departamento de Investigação Criminal).
Mark sabia que o carro estaria cheio de lixo deixado por outros policiais. Conforme descobria, o DIC e os carros eram como cães e postes.
- Ele não vai estar no trabalho agora?
Ele abriu a porta do passageiro e constatou que o assoalho do carro estava coberto de embalagens de sanduíches, latas de Coca-Cola vazias e cinco papéis de chocolate
Snickers. Algo branco esvoaçou no canto de sua visão periférica. Otitoju sacudia uma sacolinha plástica vazia.
- Tome - ela disse. - Enfie o lixo aqui para eu jogar na lixeira.
Mark pensou que, afinal, ela servia para alguma coisa. Seguiram pela
estrada principal, ainda movimentada mesmo depois da hora do rush matinal, e foram na direção oeste. A estrada era margeada por casas de tijolos vermelhos sujos
e pelo tipo de comércio que mal conseguia sobreviver, devido às opções mais sofisticadas em outros lugares. Lojas de conveniência,
salões de manicure, lojas de ferramentas, lavanderias, lanchonetes de fast-food e cabeleireiros. Era deprimente passar por ali. Mark ficou agradecido por seu apartamento
no centro da cidade, em uma fábrica de rendas que fora reformada. Podia ser pequeno, mas ele não tinha de lidar com essa pobreza em sua vida pessoal. E havia um
excelente restaurante chinês bem na esquina, que entregava em domicílio.
Quinze minutos percorrendo a estrada que contornava a cidade e eles viraram para um enclave de casinhas geminadas. Pareciam ter sido construídas na década de 1930;
sólidas, despretensiosas e de boa proporção. A casa de Billy Fraser ficava num terreno de esquina, com um jardim considerável e bem cuidado.
- Morei nesta cidade a vida toda e nem sequer sabia que este lugar existia - comentou Mark.
Ele seguiu Otitoju pela entrada da casa. A porta foi aberta por uma mulher que não podia ter mais de um metro e cinquenta de altura. Tinha a aparência de alguém
que já perdera sua melhor forma: mechas grisalhas no chanel castanho-claro, o queixo começando a ficar flácido, e alguns quilos a mais do que o ideal. Mark achou
que ela até que estava bem para a idade. Sua abordagem foi direta, antes que Otitoju tivesse a chance de assustá-la.
- Sra. Fraser?
A mulher assentiu, parecendo ansiosa.
- Sim, sou eu. - Sotaque local, notou Mark. Então, ele não havia trazido uma esposa de Fife. - E vocês são...?
- Sou Mark Hall, e esta é minha colega, Femi Otitoju. Somos policiais e precisamos conversar com Billy. Não é nada para se preocupar - acrescentou rapidamente,
ao ver o olhar de pânico no rosto da Sra. Fraser. - Uma pessoa que ele conhecia, lá em Fife, foi dada como desaparecida, e nós precisamos fazer algumas perguntas
a Billy.
A mulher balançou a cabeça.
- Você vai perder seu tempo, meu bem. Billy não manteve contato com ninguém de Fife a não ser os rapazes que vieram com ele para cá. E isso já faz mais de
vinte anos.
- O homem no qual estamos interessados desapareceu há mais de vinte anos - Otitoju disse, asperamente. - Então, precisamos falar com seu marido. Ele está
em casa?
Mark sentiu vontade de chutá-la, ao ver o rosto da Sra. Fraser se fechar para eles. Otitoju, definitivamente, não havia entrado na fila da simpatia.
- Ele está no trabalho.
- Você poderia nos dizer onde ele está trabalhando, minha flor? - perguntou Mark, tentando recuperar o rumo da conversa.
Ele quase podia enxergar o debate mental no rosto da mulher.
- Espere um pouco - ela disse, enfim. Voltou com uma agenda grande aberta na página daquele dia. Virou-a para que ele a olhasse. - Aqui está.
Otitoju já estava anotando o endereço em sua preciosa folha de papel. A Sra. Fraser viu os nomes.
- Vocês estão com sorte - ela disse. - Johnny Ferguson está trabalhando com ele hoje. Vocês poderão matar dois coelhos com uma cajadada só. - Pela expressão
em seu rosto, ela não estava muito convencida de que fosse apenas uma metáfora.
Os dois ex-mineiros estavam trabalhando a apenas cinco minutos de carro dali, reformando uma loja na rua principal.
- De casa de espetinhos de carne a oficina de molduras de quadros num passe de mágica - disse Mark, lendo as placas.
Fraser e Ferguson trabalhavam duro. Fraser abria um canal para passar os fios elétricos enquanto Ferguson derrubava o banco que havia em uma das paredes para facilitar
os clientes que compravam para viagem. Ambos pararam o que estavam fazendo quando os dois policiais entraram, olhando-os cautelosamente. Era engraçado, pensou Mark,
como algumas pessoas sempre reconheciam policiais instantaneamente, ao passo que outras pareciam ignorar quaisquer sinais que ele e seus colegas pudessem emitir.
Não tinha nada a ver com ser culpado ou inocente, como ele havia pensado, ingenuamente, no começo. Era só um instinto para identificar o caçador.
Otitoju os apresentou e explicou por que estavam ali. Fraser e Ferguson pareceram confusos.
- Por que alguém pensaria que ele veio conosco? - perguntou Ferguson.
- Mais objetivamente, por que alguém pensaria que nós o traríamos?
- Billy Fraser passou as costas da mão pela boca, num gesto de repulsa. -
Mick Prentice achava que nós estávamos abaixo dele. Mesmo antes de nós furarmos a greve, ele desprezava a gente. Achava que era melhor do que nós.
- Por que ele pensaria isso? - Mark perguntou.
Fraser tirou um maço de Bensons do bolso do macacão. Antes que ele pudesse pegar um cigarro, Otitoju já havia colocado a mão macia sobre a aspereza da dele.
- Isso agora é contra a lei, Sr. Fraser. Este é um local de trabalho. O senhor não pode fumar aqui.
- Ah, puta que pariu - Fraser reclamou, virando-se enquanto enfiava os cigarros de volta no bolso.
- Por que Mick Prentice achava que era melhor do que vocês? - Mark perguntou novamente.
Ferguson aceitou o desafio.
- Alguns homens entraram em greve porque o sindicato mandou que fizessem isso. E outros porque estavam convencidos de sua razão e de que sabiam o que era
melhor para o restante de nós. Mick Prentice era um dos que achavam que sabiam mais do que os outros.
- Isso - Fraser concordou, com amargura. - E ele tinha seus amigos do sindicato para cuidarem dele. - Ele esfregou o polegar e o indicador no gesto universal
que representava dinheiro.
- Não entendo - disse Mark. - Sinto muito, companheiro, sou jovem demais para me lembrar da greve. Mas achei que um dos maiores problemas era que vocês não
recebiam salário-greve.
- Você está certo, filho - disse Fraser. - Mas, por algum tempo, os rapazes que participavam dos piquetes móveis recebiam dinheiro vivo. Então, quando havia
qualquer necessidade de ir aos piquetes, eram sempre os mesmos que recebiam autorização. E se você não servisse para aquilo, não havia nada mais para você. Acontece
que o Mick servia mais do que a maioria. Seu melhor amigo era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores, percebe?
- Era mais difícil para uns do que para outros - acrescentou Ferguson. - Imagino que o amiguinho de Prentice lhe dava uma graninha ou um pacote de comida
quando terminava o dinheiro dos piquetes. A maioria de nós não tinha tanta sorte. Portanto, não, Mick Prentice não veio conosco. E Billy tem razão. Nós não o teríamos
aceitado, se ele tivesse pedido para vir.
Otitoju andava pela sala, vistoriando o trabalho deles como se fosse uma inspetora de obras.
- No dia em que vocês partiram... Vocês chegaram a ver Mick Prentice?
Os dois homens trocaram um olhar que pareceu furtivo para Mark. Ferguson, rapidamente, sacudiu a cabeça.
- Mais ou menos - ele disse.
- Como é possível ver alguém "mais ou menos"? - Otitoju inquiriu, virando-se na direção deles.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984
Johnny Ferguson estava no escuro, na janela do quarto, de onde podia ver a estrada principal que atravessava o vilarejo. O quarto não estava frio, mas ele tiritava
um pouco, e a mão que segurava o cigarro enrolado tremia, recortando a elevação suave da fumaça.
- Vamos, Stuart - ele resmungou a meia-voz. Deu outra tragada no cigarro e olhou novamente para o relógio barato em seu pulso. Dez minutos de atraso. Seu
pé direito começou, involuntariamente, a tamborilar no chão.
Nada se movia. Ainda não eram nove horas, mas quase não havia luz. As pessoas não tinham dinheiro para pagar a eletricidade. Elas iam até o Serviço Social para usufruir
um pouco de luz e de aquecimento, ou iam para a cama, esperando dormir o suficiente para que o pesadelo tivesse terminado quando despertassem. Pela primeira vez,
entretanto, o silêncio das ruas não incomodou Ferguson. Quanto menos pessoas testemunhassem o que aconteceria naquela noite, melhor. Ele sabia exatamente o que estava
prestes a fazer, e estava morrendo de medo.
De repente, viu um par de faróis virando a esquina da Main Street. Contra as luzes fracas da rua, Ferguson pôde definir a silhueta de uma van Transit. Modelo antigo,
não o novo, que a polícia usava para transportar as tropas em suas operações contra os mineiros. Conforme a van se aproximou, ele pôde ver que era de cor escura.
Finalmente, Stuart havia chegado.
Ferguson apagou o cigarro. Deu uma última olhada no quarto em que havia dormido nos últimos três anos, desde que alugara aquela casinha minúscula. Estava escuro
demais para ver muita coisa, mas, também, ali
não havia muito o que ver. O que não podia ser vendido tinha sido quebrado para usar como lenha. Agora só havia o colchão no assoalho com um cinzeiro e um livro
rasgado de Sven Hassel ao lado. Nada que se arrependeria de abandonar. Helen já partira havia muito tempo, então, ele podia muito bem dar as costas para aquele bando
de desgraçados.
Desceu ruidosamente as escadas até o andar de baixo e abriu a porta bem no instante em que Stuart ia bater.
- Preparado? - perguntou-lhe Stuart.
Um suspiro profundo:
- Mais preparado, impossível.
Ele empurrou uma bolsa de viagem com o pé na direção de Stuart, agarrou a outra e apanhou também um saco preto de lixo. Dez anos de merda trabalhando na mina de
carvão e aquilo era tudo que tinha.
Deram dois passos, dos quatro que os conduziriam até a van e, de repente, já não estavam mais sozinhos. Uma figura virou a esquina, apressadamente, como alguém que
estivesse numa missão. Alguns metros mais perto, e a forma se definiu como Mick Prentice. Ferguson sentiu como se uma gelada mão lhe apertasse o peito. Era só o
que faltava! Prentice vir atacá-los, gritando insultos e fazendo com que todas as portas da rua se abrissem.
Stuart jogou a bolsa na traseira da van, onde Billy Fraser já estava acomodado sobre uma pilha de sacolas. Ele se virou para encarar Prentice, pronto para agir,
se fosse necessário.
Mas a raiva que tinham esperado que chovesse sobre eles não veio. Em vez disso, Prentice apenas ficou ali parado, parecendo prestes a romper em lágrimas. Olhou para
eles e balançou a cabeça.
- Não, rapazes. Não. Não façam isso - disse.
Ele continuou repetindo aquilo. Ferguson mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que os atormentava, convocando-os e incitando-os para que continuassem
leais ao sindicato. Isso era, pensou ele, uma amostra de como aquela greve os havia derrotado.
Ferguson passou por Prentice, guardou suas bolsas no carro e sentou-se ao lado de Fraser, que puxou as portas para fechá-las atrás dele.
- Inacreditável, porra - disse Fraser.
- Parece que ele acabou de levar um soco no estômago - disse Ferguson. - O cara pirou de vez.
- Dê graças a Deus - disse Fraser. - A última coisa de que precisávamos era que ele explodisse como uma porra de um foguete e fizesse a casa cair para a gente.
- Ele ergueu a voz quando o motor deu a partida. - Vamos, Stu. A vida nova começa agora.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007
- Houve alguma testemunha desse encontro? - perguntou Otitoju.
- Stuart já morreu, então sou a única testemunha que resta - Fraser disse. - Eu estava na van. A porta traseira estava aberta e eu vi tudo. Johnny tem razão:
Prentice parecia devastado. Como se o que estávamos fazendo fosse uma afronta pessoal.
- Poderia ter sido bem diferente se, em vez de você na van, estivesse o Iain - disse Ferguson.
- Por que isso teria feito diferença? - perguntou Mark.
- Iain e ele eram amigos. Prentice talvez sentisse a necessidade de ten tar convencê-lo a mudar de ideia. Mas Iain foi o último a ser apanhado, então achei
que havíamos nos livrado de uma boa. E essa foi a última vez que vimos Prentice - disse Ferguson. - Ainda tenho família por lá. Ouvi dizer que ele tinha dado no
pé, mas supus que ele houvesse ido com aquele amigo dele, o cara do sindicato. Não consigo me lembrar do nome dele...
- Andy alguma coisa - disse Fraser. - Isso mesmo, quando você me disse que os dois estavam na lista de desaparecidos, pensei que tivessem decidido dar o fora
e começar do zero em outro lugar. Vocês têm que entender, a vida das pessoas estava se desfazendo, naquela época. Os homens faziam coisas que jamais imaginaríamos
que fossem capazes. - Ele se virou, caminhou até a porta e saiu, tirando os cigarros do bolso.
- Ele está certo - disse Ferguson. - E, na maioria das vezes, não queríamos pensar muito a respeito. Pensando bem, ainda não queremos. Portanto, a não ser
que haja mais alguma coisa, desejamos a vocês um bom dia. - Ele apanhou o pé de cabra e voltou à sua tarefa.
Incapaz de pensar em mais perguntas, Mark se dirigiu para a porta. Otitoju hesitou um instante, antes de segui-lo até o carro. Ficaram sentados em silêncio por um
momento e, então, Mark disse:
- Deve ter sido horrível.
- Não justifica o desrespeito deles pela lei - disse Otitoju. - A greve dos mineiros provocou um distanciamento entre nós e as pessoas a quem servimos. Eles
nos fizeram parecer brutais, apesar de termos sido provocados. Dizem que até a rainha ficou chocada com a batalha de Orgreave, mas o que as pessoas esperavam? Supostamente,
devemos manter a paz. Se as pessoas não consentem em ser policiadas, o que mais podemos fazer?
Mark a encarou.
- Você me assusta - ele disse.
Ela pareceu surpresa.
- Às vezes me pergunto se você está no trabalho certo - ela retrucou.
Mark olhou para longe.
- Então somos dois, minha flor.
Castelo de Rotheswell
A despeito de sua determinação de lidar com Sir Broderick Maclennan Grant exatamente da mesma forma como lidaria com qualquer outra pessoa, Karen tinha de admitir
que seu estômago não estava colaborando. A ansiedade sempre havia afetado seu sistema digestivo, tirando-lhe o apetite e obrigando-a a fazer visitas urgentes ao
banheiro.
- Se eu tivesse que fazer mais entrevistas assim, não precisaria me preocupar com dieta - disse, quando ela e Phil partiram em direção ao Castelo de Rotheswell.
- Ach, andam valorizando demais as dietas - disse Phil, da confortável posição de um homem cujo peso não se alterara desde que completara dezoito anos, independentemente
do que comesse ou bebesse. - Você está bem assim.
Karen queria acreditar nele, mas não conseguia. Ninguém acharia atraente sua figura gorducha, a não ser que estivesse muito mais necessitado de companhia feminina
do que Phil.
- Ah, sei.
Ela abriu sua maleta e revisou os pontos principais do arquivo do caso, para o bem de Phil. Mal havia chegado ao final de seu resumo quando viraram para tomar a
entrada de Rotheswell. Para além dos galhos secos de um grupo de árvores, podiam avistar o castelo, mas, antes de se aproximarem
mais, sua identidade precisava ser verificada. Tiveram de sair do carro e mostrar a credencial para a câmera do circuito fechado de televisão. Então, os sólidos
portões de madeira se abriram, permitindo que o carro chegasse a uma espécie de antecâmara de segurança. Phil foi dirigindo, enquanto Karen caminhava ao lado do
carro. Os portões de madeira se fecharam atrás deles, deixando-os presos num tipo de curral gigante. Dois guardas saíram de uma guarita e revistaram o exterior e
o interior do carro, a maleta de Karen e os bolsos do casaco esportivo de Phil.
- Ele tem um sistema de segurança melhor que o do primeiro-ministro - disse Karen, quando finalmente puderam seguir de carro até o castelo.
- É mais fácil conseguir um primeiro-ministro novo do que outro Brodie Grant - disse Phil. - De qualquer forma, aposto que é isso que ele pensa.
Ao se aproximarem da casa, um senhor de idade, vestindo um casaco impermeável e um quepe de lã, contornou a torre mais próxima e acenou para que eles seguissem até
o extremo do pátio de cascalho, em frente à casa. Quando eles finalmente estacionaram, ele já havia desaparecido, sem deixar-lhes outra opção senão a de se aproximar
das imensas portas de madeira com tachas de ferro, no centro da fachada.
- Onde está o Mel Gibson quando precisamos dele? - Karen resmungou, levantando uma aldrava pesada de ferro e deixando-a cair com um estrondo considerável.
- Parece um filme ruim.
- E nós ainda nem sabemos por que estamos aqui. - Phil parecia aborrecido. - Difícil entender o que poderia justificar tamanha preparação.
Antes que Karen pudesse responder, a porta se abriu, girando em dobradiças silenciosas. Uma mulher, que lembrara sua professora do primário, disse:
- Bem-vindos a Rotheswell. Sou Susan Charleson, assistente pessoal de Sir Broderick. Entrem.
Eles entraram em um saguão onde, não fosse pela grandiosa escadaria, poderia caber a casa inteira de Karen. Antes que pudessem observar mais do que as cores intensas
e a atmosfera de aconchego, eles foram impelidos a seguir por um amplo corredor, por uma curta distância.
- Suponho que seja a inspetora Pirie - disse Susan Charleson. - Mas não estou a par do nome e do posto do seu colega.
- Sargento detetive Phil Parhatka - ele disse, com toda a pompa de que era capaz diante da formalidade dela.
- Ótimo, agora posso apresentá-los - ela disse, dando um passo para o lado e abrindo uma porta.
Ela acenou para que entrassem em uma sala onde o DIC poderia facilmente realizar seu Bums' Supper* anual. Teriam de empurrar alguns dos móveis para junto das paredes,
só para abrir espaço para as danças tradicionais, mas, ainda assim, não ficariam muito apertados.
Havia três pessoas na sala, mas Karen instantaneamente se concentrou naquela que irradiava carisma. Brodie Grant podia já ter passado dos setenta anos, mas ainda
tinha mais glamour que as duas mulheres que o rodeavam. Ele estava próximo à notável cornija de pedra entalhada da lareira, com a mão esquerda sob o cotovelo direito
e a mão direita segurando casualmente um charuto fino; o rosto estava tão imóvel e impressionante quanto na capa de revista que ela havia encontrado, ao buscar por
imagens dele no Google. Vestia um paletó de tweed cinza e branco cujo caimento sugeria ser de caxemira e seda, em vez do tradicional Harris and Donegal, uma camiseta
polo preta, calça combinando e aquele tipo de sapatos que Karen somente havia visto nos pés de americanos ricos. Ela achava que se chamavam sapatos oxford ou algo
parecido. Assemelhavam-se a alguma coisa que se veria num boneco escocês com traje típico, e não num capitão da indústria. Ela estava tão ocupada observando seus
sapatos estranhos que quase perdeu as apresentações.
Ergueu os olhos a tempo de captar o levíssimo esboço de sorriso nos lábios de Lady Grant, elegante em um terninho de mescla de lã com o clássico colarinho aveludado
que, por alguma razão, Karen sempre associava a dinheiro e classe. O sorriso, porém, parecia estranhamente cúmplice.
Susan Charleson apresentou a outra mulher.
- Esta é Annabel Richmond, uma jornalista freelancer.
Agora, cautelosa, Karen assentiu, expressando reconhecimento. Que diabos fazia uma jornalista ali? Se havia uma coisa que Karen sabia a respeito de Brodie Grant
era que ele era tão alérgico à mídia que poderia entrar em choque anafilático a qualquer momento na presença de alguém da imprensa.
* O aniversário do poeta Robert Bums é comemorado em toda a Escócia com um jantar escocês tradicional, acompanhado por leituras de obras e canções de Bums, no dia 25 de janeiro. (N.T.)
Brodie Grant deu um passo à frente e indicou, com um ondular de seu charuto, que eles deveriam se sentar num sofá, a quilômetros de distância da lareira. Karen se
sentou na beirada, ciente de que aquele era o tipo de sofá que a engoliria, impossibilitando uma saída que não fosse extremamente desastrada.
- A Srta. Richmond está aqui a meu pedido, por dois motivos - disse Grant. - O primeiro deles explicarei em breve. O outro é que ela vai atuar como uma ligação
entre a mídia e a família. Não concederei entrevistas coletivas nem farei apelos sentimentais pela televisão. Ela é, portanto, a primeira a ser procurada se vocês
estiverem atrás de alguma coisa para alimentar os répteis.
Karen inclinou a cabeça.
- Essa é uma prerrogativa sua - ela disse, tentando soar como se estivesse fazendo uma concessão, por pura bondade. Qualquer coisa que lhe garantisse recuperar
um pouco do controle. - O Sr. Lees me comunicou que o senhor acredita que tenham surgido novas provas no que se refere ao sequestro de sua filha e neto. Correto?
- São novas provas, sim. Disso não resta dúvida. Susan?
Ele olhou para a assistente, com expectativa. Suficientemente esperta para antecipar-se às exigências do chefe, ela já avançava na direção deles com uma folha de
compensado de madeira, coberta por um plástico. Ao se aproximar, virou-a de frente para Karen e Phil.
Karen sentiu um lampejo de decepção.
- Esta não é a primeira vez que vemos algo assim - ela disse, estudando a impressão monocromática de um titereiro com suas marionetes sinistras. - Deparci-me
com três ou quatro exemplares, nos arquivos.
- Cinco, na verdade - disse Grant. - Mas nenhum como este. Todos os anteriores foram desconsiderados porque divergiam de alguma maneira dos originais. As
reproduções que o inspetor-chefe Lawson distribuiu para a mídia, na época, foram alteradas sutilmente para que pudéssemos eliminar quaisquer imitadores. Todos os
que apareceram desde então eram cópias das versões alteradas.
- E esta aqui é diferente? - perguntou Karen.
Grant assentiu.
- Exatamente, inspetora. É idêntica em todos os aspectos. Estou ciente de que a recompensa que ofereci seja uma tentação para certas pessoas.
Mantive minha própria cópia do original para que pudesse comparar com qualquer coisa que me fosse trazida diretamente. Como esta. - Ele deu um sorriso cansado. -
Não que eu precise de uma cópia. Jamais me esquecerei de nenhum detalhe. A primeira vez que pus os olhos nesta imagem, ela ficou gravada na minha memória.
Sábado, 19 de janeiro de 1985
Mary Grant serviu uma segunda xícara de café ao marido antes que ele percebesse que havia terminado a primeira. Ela vinha fazendo aquilo havia tantos anos que ainda
o surpreendia o fato de sua xícara precisar ser enchida tantas vezes, quando se hospedava em hotéis. Ele virou a página de seu jornal e resmungou.
- Enfim, uma notícia boa. Lord Wolfenden libertou-se do invólucro mortal.
A expressão de Mary era mais de resignação cansada do que de choque.
- Que coisa horrível de se dizer, Brodie.
Sem levantar os olhos, ele continuou:
- O homem fez do mundo um lugar pior, Mary. Portanto, não fico triste por ele ter partido.
Anos de casamento haviam eliminado a maior parte da beligerância de Mary Grant. Mas, mesmo que ela houvesse pensado em dizer alguma coisa, não teria tido a oportunidade.
Para a surpresa de ambos, a porta da sala de café da manhã se abriu de repente, sem nenhuma batida prévia, e Susan Charleson entrou quase correndo. Brodie deixou
cair o jornal sobre os ovos mexidos, notando-lhe as bochechas rosadas e a respiração ofegante.
- Desculpem-me - ela balbuciou. - Mas o senhor precisa ver isto. - Ela empurrou um grande envelope de papel manilha na direção dele. Na frente, liam-se seu
nome e endereço e as palavras "particular" e "confidencial" escritas em hidrocor preto, acima e abaixo.
- Em nome de Deus, o que é isto que não pode esperar até depois do café? - ele perguntou, enfiando dois dedos sob a aba do envelope, revelando um papel grosso
dobrado em quatro.
- Isto - disse Susan, apontando para o envelope. - Coloquei de volta no envelope porque não quis que mais ninguém visse.
Com um resmungo de impaciência, Grant pegou o papel e o desdobrou. Parecia um pôster de propaganda de um show macabro de marionetes. Totalmente em preto e branco,
um titereiro se inclinava sobre o palco, manipulando um grupo de marionetes que incluíam um esqueleto e um bode. Lembrou-lhe aquele tipo de impressões que ele vira
uma vez, num programa da TV sobre a arte que Hitler odiava. Enquanto pensava isso, seus olhos examinaram a parte inferior do pôster. Onde se esperaria encontrar
detalhes sobre o show de marionetes havia uma mensagem muito diferente.
Seu capitalismo explorador e gerenciado está prestes a ser castigado.
Nós temos uma filha e um neto em nosso poder. Faça exatamente o que
mandarmos se quiser vê-los novamente. Nada de polícia. Apenas siga sua
vida normalmente. Estamos te observando. Entraremos em contato com você
em breve.
Pacto Anarquista da Escócia.
- É alguma brincadeira de mau gosto? - perguntou Grant, atirando-o sobre a mesa e empurrando a cadeira para trás. Quando ele se levantou, Mary apanhou o pôster
e, então, o deixou cair, como se tivesse queimado seus dedos.
- Ah, meu Deus - ela arfou. - Brodie?
- É um trote - ele disse. - Algum filho da puta doente está tentando nos assustar.
- Não - disse Susan. - Tem mais. Ela apanhou o envelope no chão e sacudiu-o pára que uma fotografia Polaroid caísse de dentro dele. Em silêncio, entregou-a
a Grant.
Ele viu sua única filha amarrada a uma cadeira. Um pedaço de fita adesiva cobria-lhe a boca. O cabelo estava despenteado e uma mancha de sujeira, ou um hematoma,
marcava-lhe a face esquerda. Entre ela e a câmera, uma mão enluvada segurava a primeira página do Daily Record do dia anterior para não deixar margem a dúvida. Ele
sentiu as pernas cederem e deixou-se cair na cadeira, as pálpebras tremendo enquanto tentava recuperar o autocontrole. Mary estendeu a mão pedindo a fotografia,
mas ele sacudiu a cabeça e segurou-a de encontro ao peito.
- Não - ele disse. - Não, Mary.
Houve um longo silêncio e, então, Susan disse:
- O que o senhor quer que eu faça?
Grant não conseguia articular as palavras. Não sabia o que estava pensando, o que estava sentindo nem o que queria dizer. Era uma experiência tão estranha e improvável
quanto usar drogas alucinógenas. Ele sempre estava no controle de si mesmo, assim como da maior parte do que acontecia ao seu redor. Sentir-se impotente era algo
que não lhe acontecia havia tanto tempo, que até se esquecera de como era lidar com aquilo.
- O senhor quer que eu telefone para o chefe de polícia? - perguntou Susan.
- Aqui fala para não fazer isso - disse Mary. - Não podemos colocar em risco a vida de Catriona e Adam.
- Ao diabo com isso - disse Grant, numa pálida aproximação à sua voz normal. - Não vou ser manipulado por um bando de anarquistas malditos. - Ele se forçou
a levantar, sua força de vontade superando o medo que já o devorava. - Susan, telefone para o chefe de polícia. Explique a situação. Diga a ele que quero o melhor
agente que tiver, que não se pareça com um policial. Quero que ele esteja no meu escritório dentro de uma hora. E, agora, vou para o escritório. Seguir com minha
vida normal, caso eles estejam realmente observando.
- Brodie, como você pode fazer isso? - Com o rosto lívido, Mary parecia chocada. - Temos que fazer o que eles mandarem.
- Não temos, não. Apenas temos que aparentar estar fazendo. - Agora, sua voz estava mais forte. Ter estabelecido os princípios básicos de um plano lhe dera
forças para se recuperar. Ele poderia lidar com o medo desde que pudesse se obrigar a acreditar que estava fazendo alguma coisa para resolver a situação. - Susan,
comece a tomar as providências. - Ele foi até Mary e lhe deu um tapinha no ombro. - Vai ficar tudo bem, Mary. Eu prometo.
Se ele não visse o rosto dela, não teria de lidar com suas dúvidas ou seu pavor. Já tinha o suficiente com que se preocupar, sem aquela carga extra.
Dysart, Fife
Outros homens teriam caminhado de um lado para o outro, esperando que a polícia chegasse. Brodie Grant nunca fora de desperdiçar energia em
atividades inúteis. Permaneceu sentado em sua cadeira no escritório, virada de costas para a escrivaninha, para que pudesse ver a vista espetacular por cima do estuário
do Forth até Berwick Law, Edimburgo e as montanhas Pentlands. Olhou por sobre a água cinzenta, ordenando seus pensamentos para evitar qualquer perda de tempo quando
a polícia chegasse. Ele detestava desperdiçar qualquer coisa, mesmo aquilo que podia ser facilmente reposto.
Susan, que o havia seguido para o trabalho na hora de costume, entrou pela porta que separava seu escritório do dele.
- A polícia está aqui - ela disse. - Devo fazê-los entrar?
Grant se virou em sua cadeira.
- Sim. Depois, deixe-nos a sós.
Ele notou o olhar de surpresa no rosto dela. Estava acostumada a participar de todos os seus segredos, a conhecer mais coisas do que Mary se daria ao trabalho de
saber. Mas, dessa vez, ele queria que o círculo fosse o menor possível. Até mesmo Susan seria demais.
Ela fez entrar dois homens vestidos com macacão de pintor e, então, fechou dramaticamente a porta atrás de si. Grant ficou satisfeito com o disfarce.
- Obrigado por terem vindo tão rápido. E tão discretamente - ele disse, observando os dois. Pareciam jovens demais para uma tarefa tão importante. O mais
velho, magro e moreno, tinha provavelmente uns trinta e poucos anos, e o outro, louro e avermelhado, uns vinte e tantos.
O moreno falou primeiro. Para surpresa de Grant, sua apresentação atingiu diretamente suas restrições.
- Sou o inspetor James Lawson - ele disse. - E este é o agente Rennie. Fomos instruídos pessoalmente pelo chefe de polícia. Sei que o senhor deve estar pensando
que sou muito novo para comandar uma operação como esta, mas fui escolhido devido à minha experiência. No ano passado, a esposa de um dos jogadores do time de futebol
East Fife foi sequestrada. Conseguimos resolver o assunto sem que ninguém se machucasse.
- Não me lembro de ter ouvido falar sobre isso - disse Grant.
- Fomos muito bem-sucedidos em manter segredo - disse Lawson, com o mais tênue sorriso de orgulho no rosto.
- Não houve julgamento? Como vocês conseguiram manter isso fora dos jornais?
Lawson deu de ombros.
- O sequestrador se confessou culpado. O caso estava resolvido e encerrado antes que a imprensa sequer percebesse. Somos bastante bons em lidar com a imprensa,
aqui em Fife. - De novo, um sorriso ligeiro. - Como pode ver, senhor, tenho uma experiência relevante.
Grant lançou-lhe um olhar demorado e avaliador.
- Fico satisfeito em saber disso. - Tirou uma pinça da gaveta e, delicadamente, deslocou a folha de papel que havia colocado por cima do pôster de resgate.
- Foi isto que chegou pelo correio, hoje de manhã. Acompanhado por isto... - Erguendo-a cuidadosamente pelas extremidades, ele virou a foto Polaroid.
Lawson se aproximou e os analisou atentamente.
- E o senhor tem certeza de que esta é sua filha?
Pela primeira vez, o autocontrole de Grant vacilou por uma fração de segundo.
- Você acha que não conheço minha própria filha?
- Não é isso, senhor. Mas, para que fique registrado, preciso ter certeza de que o senhor tem certeza absoluta.
- Tenho certeza.
- Neste caso, não há qualquer dúvida - disse Lawson. - Quando foi a última vez que o senhor viu ou falou com sua filha?
Grant fez um gesto de impaciência com a mão.
- Não sei. Suponho que a tenha visto pela última vez há umas duas semanas. Ela trouxe Adam para nos visitar. A mãe dela deve ter conversado com ela ou a visto
desde então. Você sabe como são as mulheres.
A culpa repentina que ele sentiu foi mais uma vibração lenta do que uma pontada. Ele não se arrependia de nada do que havia feito ou dito; só se arrependia de que
houvesse provocado uma ruptura entre ele e Cat.
- Falaremos com sua esposa - disse Lawson. - Será útil para nós termos uma ideia de quando isso aconteceu.
- Catriona é dona de seu próprio negócio. Creio que alguém perceberia, se sua galeria estivesse fechada. Deve haver centenas, milhares de pessoas que passam
de carro por ali todos os dias. Ela era bem escrupulosa com relação à placa de aberto e fechado. - Ele deu um sorriso rígido e frio.
- Ela é boa para negócios. - Puxou um bloco de anotações em sua direção e escreveu o endereço e as indicações de como chegar à galeria de Catriona.
- É claro - disse Lawson. - Mas achei que o senhor não quisesse que os seqüestradores soubessem que nos procurou.
Grant foi pego de surpresa por sua própria estupidez.
- Desculpe-me. Você tem razão. Não estou raciocinando direito. Eu...
- Esse é meu dever, não seu. - Havia gentileza no tom de voz de Lawson. - O senhor pode estar certo de que não faremos perguntas que levantem suspeitas. Se
não conseguirmos descobrir nada de forma aparentemente natural, deixaremos de lado. A segurança de Catriona e Adam está acima de tudo. Isso eu prometo ao senhor.
- É uma promessa que espero que cumpra. Agora, qual é o próximo passo? - Grant estava novamente no comando de si mesmo, porém desconcertado pelas emoções
que o desequilibravam.
- Colocaremos uma escuta e um rastreador em suas linhas telefônicas para o caso de eles tentarem entrar em contato com o senhor através do telefone. E vou
precisar que o senhor vá à casa de Catriona. É o que os seqüestradores esperariam. O senhor terá de ser os meus olhos dentro da casa. O senhor deverá registrar qualquer
coisa fora do lugar, qualquer coisa incomum. Terá de levar uma maleta ou algo assim para que, se por exemplo, houver duas canecas sobre a mesa, o senhor possa trazê-las
para nós. Também precisaremos de alguma coisa de Catriona para obtermos suas impressões digitais. Uma escova de cabelo seria ideal, pois teríamos também um pouco
de seu cabelo. - Lawson parecia ansioso.
Grant balançou a cabeça.
- Você terá que pedir à minha esposa para fazer isso. Não sou muito observador. - Não queria admitir que só havia cruzado a porta da casa da filha uma vez
e, mesmo assim, com relutância. - Ela ficará feliz por ter alguma coisa a fazer. Por se sentir útil.
- Muito bem, providenciaremos isso. - Lawson tocou o pôster com uma caneta. - Aparentemente esse é mais um ato político do que pessoal. E vamos verificar
informações a respeito de qualquer grupo que possa ter os recursos e a determinação para planejar algo assim. Preciso lhe perguntar, no entanto... o senhor teve
algum desentendimento com qualquer grupo de interesse específico? Uma organização que pudesse ter alguns caras mais exaltados em suas facções, capazes de achar que
era uma boa ideia fazer isso?
Grant já havia se perguntado aquilo enquanto esperava pela polícia.
- A única coisa em que posso pensar é um problema que tivemos há mais ou menos um ano com uma dessas organizações do tipo "salvem as baleias". Nós tínhamos
um empreendimento imobiliário em Black Isle que eles alegavam que afetaria de forma adversa o habitat de uns golfinhos no Moray Firth. Tudo bobagem, é claro. Eles
tentaram deter nosso pessoal da construção... aquela coisa de sempre, deitando-se em frente às retroescavadeiras. Um deles se machucou. Foi culpa de sua própria
estupidez, como disseram as autoridades. Mas foi apenas isso. Eles se foram, com o rabo entre as pernas, e nós continuamos com o empreendimento. E, a propósito,
os golfinhos estão perfeitamente bem.
Lawson ficou visivelmente animado com a informação de Grant.
- Mesmo assim, teremos que verificar essa possibilidade - ele disse.
- A Srta. Charleson tem todos os arquivos. Ela poderá lhes dizer o que vocês precisarem.
- Obrigado. Também preciso lhe perguntar se existe alguém que possa ter algum motivo de reclamação pessoal contra o senhor. Ou contra alguém de sua família.
Grant balançou a cabeça.
- Já incomodei muita gente nesta vida. Mas não consigo pensar em algo que tenha feito capaz de levar alguém a fazer isso. Certamente isto se relaciona com
dinheiro, não com ódio. Todo mundo sabe que sou um dos homens mais ricos da Escócia. Não é nenhum segredo. Para mim, esse é o motivo óbvio por trás disso. Alguns
filhos da puta tentando pôr as mãos no meu dinheiro suado. E eles acham que é dessa forma que irão conseguir.
- É possível - concordou Lawson.
- É mais do que possível. É o mais provável. E nem morto vou deixar que escapem ilesos dessa. Quero minha família de volta, e quero que eles voltem sem ter
de ceder um milímetro a esses desgraçados! - Grant bateu na mesa com a mão espalmada e os dois policiais deram um pulo com o estrondo repentino.
- É por isso que estamos aqui - disse Lawson. - Faremos tudo que for possível para obter o resultado que o senhor deseja.
Naquele momento, a confiança de Grant ainda estava intacta.
- Não espero nada menos do que isso - ele disse.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
Ao ouvir o relato de Grant sobre aquela primeira manhã depois de o mundo ter mudado, o que mais chamou a atenção de Karen foi a suposição, por parte de todos, de
que tudo tinha a ver com Brodie Grant. Ninguém parecia haver considerado que a pessoa que estava sendo punida não era Grant, e sim sua filha.
- Catriona tinha algum inimigo?
Grant olhou-a, com impaciência.
- Catriona? Como ela poderia ter inimigos? Era uma mãe solteira e uma artesã do vidro. Não levava o tipo de vida que gerasse animosidade pessoal. - Com um
suspiro, ele apertou os lábios.
Karen disse a si mesma que não deveria se intimidar com sua atitude.
- Desculpe-me. Eu me expressei mal. Deveria ter perguntado se o senhor sabe de alguém a quem ela houvesse desagradado.
Grant dirigiu-lhe um pequeno gesto de satisfação, como se ela houvesse passado num teste que nem sequer sabia existir.
- O pai de seu filho. Ele estava, de fato, bastante contrariado. Mas nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim, e os seus colegas da polícia nunca puderam
encontrar nenhuma prova que o conectasse ao crime.
- O senhor está se referindo a Fergus Sinclair? - Karen perguntou.
- E quem mais poderia ser? Pensei que você tivesse se atualizado com relação ao caso - cobrou Grant.
Karen começava a sentir pena de qualquer pessoa que fosse obrigada a suportar o alto nível de irritação de Brodie Grant. Desconfiava que não fosse reservada apenas
para ela.
- Só existe uma menção a Sinclair no arquivo - ela disse. - Nas anotações de uma entrevista com Lady Grant, Sinclair é mencionado como suposto pai de Adam.
Grant bufou.
- Suposto? É claro que ele era o pai do garoto. Eles vinham se encontrando de maneira intermitente havia anos. Mas o que você quer dizer com só existe uma
referência a Sinclair? Deve haver mais. Eles foram até a Áustria para interrogá-lo.
- Áustria?
- Ele trabalhava lá. É formado em administração rural. Trabalhou também na França e na Suíça, mas voltou para a Áustria cerca de quatro anos atrás. Susan
pode lhe dar todos os detalhes.
- O senhor o tem vigiado? - O que não seria nenhuma surpresa, pensou Karen.
- Não, inspetora. Eu já lhe disse: nunca achei que Sinclair tivesse a coragem para fazer algo assim. Então, por que o vigiaria? A única razão pela qual sei
onde Sinclair mora é porque seu pai ainda é meu caseiro. - Grant balançou a cabeça. - Não posso acreditar que tudo isso não esteja nos arquivos.
Karen estava pensando a mesma coisa, mas não quis admitir.
- E, que o senhor saiba, havia mais alguém que Catriona pudesse ter desagradado?
O rosto de Grant estava tão cinzento quanto seu cabelo.
- Só a mim, inspetora. Olhe, é óbvio, pelo lugar onde apareceu esta nova prova, que isso não tem nada a ver pessoalmente com Cat. É obviamente político. O
que faz com que tenha a ver com meus princípios pessoais, e não com quem Cat possa ter incomodado.
- Então, onde foi que este pôster apareceu? - perguntou Phil.
Karen ficou agradecida pela interrupção. Ele era bom em interromper e guiar as entrevistas em direções mais produtivas quando ela estava correndo o risco de estancar.
- Em uma fazenda em ruínas na Toscana. Parece que o local vinha sendo usado por posseiros. - Ele estendeu o braço na direção da jornalista. - Este é o outro
motivo pelo qual a Srta. Richmond está aqui. Foi ela que o encontrou. Sem dúvida, vocês vão querer conversar com ela. - Ele indicou o pôster. - Também vão querer
levar isto com vocês. Imagino que farão alguns testes. E, inspetora...?
Karen recuperou o fôlego, diante da arrogância dele.
- Sim?
- Não quero ler a respeito disso no jornal amanhã cedo. - Ele olhou feio para ela como se a desafiasse a responder.
Karen se controlou por um momento, tentando compor uma resposta que abrangesse tudo que ela queria dizer e deixasse de fora qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.
A expressão de Grant mudou rapidamente.
- O que quer que comuniquemos à mídia, assim como o momento de qualquer comunicação, será uma decisão operacional - ela disse, por fim.
- Será tomada por mim e, quando apropriado, por meus oficiais superiores. Entendo plenamente como tudo isso é doloroso para o senhor, mas sinto muito. Temos
de basear nossas decisões naquilo que pensamos que, provavelmente, irá produzir o melhor resultado. O senhor pode nem sempre concordar, mas, infelizmente, não tem
nenhum direito de veto. - Ela esperou a explosão, mas esta não se fez. Supôs que ele a estivesse reservando para o Biscoito ou para os chefes dele.
Em vez disso, Grant assentiu.
- Confio em você, inspetora. Tudo que peço é que se comunique com a Srta. Richmond antes, para que possamos nos precaver contra a máfia. - Ele correu os dedos
pelos densos cabelos grisalhos num gesto que parecia bem ensaiado. - Tenho muita esperança de que, desta vez, a polícia chegue à verdade. Com todos os avanços nas
ciências criminais, vocês devem estar em vantagem com relação ao inspetor Lawson. - Ele se virou, claramente os dispensando.
- Creio que ainda teremos algumas perguntas a lhe fazer - disse Karen, determinada a não ceder todo o controle do encontro. - Se Catriona não tinha inimigos,
talvez o senhor pudesse pensar em alguns amigos dela que possam nos ajudar. O sargento Parhatka lhe informará quando eu quiser falar novamente com o senhor. Nesse
meio-tempo... Srta. Richmond?
A mulher inclinou a cabeça e sorriu.
- Estou à sua disposição, inspetora.
Até que enfim alguém por ali com uma vaga noção de como as coisas deveriam funcionar.
- Gostaria de vê-la no meu escritório esta tarde. Podemos marcar para as quatro horas?
- Qual é o problema em entrevistar a Srta. Richmond aqui? E agora? - perguntou Grant.
- Esta investigação é minha - disse Karen. - Conduzirei minhas entrevistas onde me convier. E, devido a outros inquéritos em andamento, me convém que seja
no meu escritório, esta tarde. Agora, se o senhor nos der licença.
Ela se levantou, notando o divertimento cauteloso da Lady Grant e a desaprovação sombria de Susan Charleson. O próprio Grant permaneceu imóvel feito uma estátua.
- Tudo bem, Susan, eu acompanho os policiais - disse Lady Grant, levantando-se rapidamente e caminhando em direção à porta antes que a assistente recuperasse
o autocontrole.
Enquanto a seguiam pelo corredor, Karen disse:
- Isso deve ser muito difícil para a senhora.
Lady Grant voltou-se para eles, andando de costas com a segurança de alguém que conhece cada centímetro de seu território.
- Por que você diz isso?
- Ver seu marido reviver uma época tão difícil... Eu não gostaria de ver alguém de quem eu gostasse passando por tudo isso.
Lady Grant pareceu confusa.
- Ele convive com isso todos os dias, inspetora. Pode ser que não o demonstre, mas não tira isso da cabeça. Às vezes o vejo olhando para nosso filho, Alec,
e sei que ele está pensando em como poderia ter sido, com Adam. Pensando no que perdeu. Ter algo novo em que focar é quase um alívio para ele.
Ela girou nos calcanhares e deu-lhes as costas novamente. Enquanto a seguiam, Karen encontrou o olhar de Phil e ficou surpresa com a raiva que viu ali.
- Ainda assim, a senhora não seria humana se uma parte sua não desejasse que nunca encontrássemos Adam são e salvo - Phil disse, a leveza do tom contrastando
diretamente com a severidade de sua expressão.
Lady Grant se deteve e voltou-se para eles, franzindo as sobrancelhas. Um rubor rosado subiu por seu pescoço.
- Que diabos você quer dizer com isso?
- Acho que a senhora sabe exatamente o que quero dizer, Lady Grant. Nós encontramos Adam e, de repente, seu filho Alec não é mais o único herdeiro de Brodie
- disse Phil. Era preciso ter coragem, pensou Karen, para assumir o papel de para-raios da investigação.
Por um momento, Lady Grant pareceu estar a ponto de estapeá-lo. Karen podia ver seu peito subindo e descendo com o esforço de se controlar. Finalmente, ela se obrigou
a assumir a pose habitual de civilidade.
- Na verdade - ela disse secamente -, você está vendo a situação precisamente pelo ângulo errado. O comprometimento absoluto de Brodie em descobrir o destino
de seu neto me enche de confiança com relação ao futuro de Alec. Um homem tão preso aos deveres para com sua própria
carne e seu próprio sangue jamais decepcionará nosso filho. Acredite se quiser, sargento, a busca de Brodie pela verdade me dá esperança. Não medo.
- Ela se virou nos calcanhares e marchou até a porta da frente, que manteve enfaticamente aberta para eles.
Depois que a porta se fechou, Karen disse:
- Caramba, Phil, por que você não diz o que realmente está pensando? O que provocou aquilo?
- Me desculpe. - Ele abriu a porta do passageiro para ela, uma pequena cortesia a que raramente se dava ao trabalho. - Eu já estava cheio de brincar de Miss
Marple, a detetive, e aquela palhaçada toda de crime na casa de campo. Tudo muito limpo e civilizado. Só queria ver se conseguia provocar uma reação honesta.
Karen sorriu.
- Acho que se pode dizer que conseguiu. Só espero que não sejamos atingidos pelas faíscas.
Phil bufou.
- Você não fica muito atrás, quando se trata de ser durona. "Esta investigação é minha" - ele a imitou, sem maldade.
Ela se acomodou no carro.
- É, tudo bem. A ilusão de estar no comando. Foi bom, enquanto durou.
Nottingham
As belezas do parque Nottingham Arboretum não só haviam sido obscurecidas como praticamente ficaram invisíveis com a chuva torrencial que cegava o agente Mark Hall
enquanto seguia Femi Otitoju, subindo pela trilha que levava ao Campanário Chinês. Ela finalmente havia mostrado alguma emoção, mas não era exatamente o que Mark
havia esperado.
Logan Laidlaw tinha ficado ainda menos contente do que Ferguson e Fraser ao vê-los. Ele não só se recusara a permitir que entrassem em seu apartamento, como lhes
dissera que não tinha a menor intenção de repetir o que já tinha contado à filha de Mick Prentice.
- Esta droga de vida é curta demais para desperdiçar minha energia falando duas vezes sobre a mesma coisa - ele dissera e, então, batera a porta na cara deles.
Otitoju havia ficado mais púrpura do que uma beterraba em conserva, respirando pesadamente pelo nariz. Cerrou os punhos e chegou a levar o pé para trás como se fosse
chutar a porta. Bastante violento, levando em conta que não havia muita violência nela. Mark colocara a mão em seu braço.
- Deixe estar, Femi. Ele está no direito dele. Não é obrigado a falar conosco.
Otitoju dera meia-volta, seu corpo inteiro tenso de raiva.
- Não deveria ser permitido - ela disse. - Eles deveriam ser obrigados a falar com a gente. Deveria ser contra a lei que as pessoas se recusassem a responder
a nossas perguntas. Deveria ser crime.
- Ele é uma testemunha, não um criminoso - disse Mark, assustado com a veemência dela. - Foi o que nos disseram em nosso treinamento: policiais por consentimento,
não por coerção.
- Isso não está certo - disse Otitoju, voltando furiosamente para o carro. - Eles esperam que a gente solucione crimes, mas não nos dão as ferramentas para
fazer o serviço. Que diabos ele pensa que é?
- Ele é alguém cuja opinião sobre a polícia foi gravada em pedra nos idos de 1984. Você nunca viu as reportagens de jornal dessa época? Policiais a cavalo
atacavam os piquetes como se fossem cossacos ou coisa parecida. Se usássemos hoje o cassetete daquele jeito, seríamos presos. Não foi um de nossos melhores momentos.
Portanto, não é de surpreender que o Sr. Laidlaw não queira falar conosco.
Ela balançou a cabeça.
- Faz com que eu me pergunte o que ele pode ter a esconder.
O trajeto da casa de Iain Maclean até o Arboretum, cruzando a cidade, não havia ajudado a melhorar o humor dela. Mark a alcançou.
- Deixe isso comigo, ok? - ele disse.
- Você acha que não sei conduzir uma entrevista?
- Não, não é isso. Mas conheço o suficiente sobre ex-mineiros para saber que são bastante machistas. Você viu como foi com Ferguson e Fraser... eles não ficaram
muito contentes com o fato de você fazer as perguntas.
Otitoju parou abruptamente e atirou a cabeça para trás, deixando que a chuva escorresse por seu rosto como lágrimas geladas. Recompondo-se, suspirou.
- Está bem. Vamos tirar vantagem de seus preconceitos. Você conduz a conversa. - Então, ela voltou a andar, dessa vez num passo mais comedido.
Chegaram ao Campanário Chinês e encontraram dois homens de meia-idade, vestindo macacão da prefeitura e abrigando-se da tempestade. Os pilares estreitos, que davam
suporte ao teto elegante, não ofereciam muita proteção aos respingos de chuva espalhados pelas rajadas de vento, mas era melhor do que ficar totalmente exposto.
- Estou procurando Iain Maclean - disse Mark, olhando um e outro.
- Sou eu - disse o mais baixo dos dois, com olhos azuis cintilando no rosto bronzeado. - E quem são vocês?
Mark apresentou os dois.
- Tem algum lugar aonde possamos ir tomar uma xícara de chá?
Os dois homens trocaram um olhar.
- Deveríamos estar podando as margens, mas estávamos prestes a desistir e voltar para as estufas - disse Maclean. - Não há nenhum café por aqui, mas vocês
podem nos acompanhar até as estufas, e nós preparamos o chá.
Dez minutos depois, eles estavam espremidos num canto, nos fundos de um amplo túnel de polietileno, e fora do caminho dos demais jardineiros, cujos olhares curiosos
se haviam acalmado ao perceberem que não haveria nada espetacular. Um forte cheiro de húmus pairava no ar, lembrando Mark do barracão no jardim de seu avô. Iain
Maclean segurou a xícara com as mãos enormes e esperou que eles falassem. Ele não havia mostrado qualquer surpresa com a chegada dos policiais e tampouco lhes havia
perguntado por que estavam ali. Mark desconfiava que Fraser ou Ferguson já o tivessem avisado.
- Queremos conversar com você sobre Mick Prentice - ele começou.
- O que tem o Mick? Não o vejo desde que nos mudamos para o sul - disse Maclean.
- Nem você nem mais ninguém - disse Mark. - Todos presumiram que ele houvesse viajado para o sul com vocês, mas não é isso que estão nos dizendo hoje.
Maclean coçou as cerdas prateadas que cobriam sua cabeça num corte de cabelo militar.
- É, bem. Eu tinha ouvido falar que as pessoas achavam isso, lá em Newton. É só para mostrar a você como as pessoas sempre preferem pensar o pior. De jeito
nenhum Mick teria se juntado a nós. Não imagino como alguém que o conhecesse poderia pensar isso.
- E você nunca os corrigiu?
- Para quê? Na cabeça deles, eu sou um mineiro fura-greve e desonesto. Nada do que eu pudesse dizer em defesa de alguém teria muito peso, lá em Newton.
- Para ser justo, não é apenas uma questão de tirar conclusões precipitadas. A esposa dele recebia dinheiro ocasionalmente, depois que ele foi embora. O carimbo
do correio era de Nottingham. Essa é uma das principais razões pelas quais todos acharam que ele houvesse feito o impensável.
- Não sei qual é a explicação para isso. Mas te digo uma coisa: seria mais fácil Mick Prentice ir para a Lua do que furar a greve.
- Isso é o que todos nos dizem - disse Mark. - Mas as pessoas fazem coisas que parecem insólitas, quando estão desesperadas. E, segundo consta, Mick Prentice
estava desesperado.
- Não tanto a ponto de fazer isso.
- Você fez.
Maclean olhou fixamente para sua xícara.
- Fiz. E nunca me envergonhei tanto de algo. Mas minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. Eu sabia que não havia maneira alguma de trazer mais
um bebê àquela vida. Então, fiz o que fiz. Eu conversei a respeito com o Mick, antes. - Ele lançou um olhar rápido a Mark. - Éramos amigos, ele e eu. Estudamos juntos
na escola. Eu queria explicar para ele por que estava fazendo aquilo. - Ele suspirou. - Ele disse que entendia a minha decisão. Que ele também tinha vontade de ir
embora. Mas que furar greve não era para ele. Não sei para onde ele foi; mas eu sei que, com certeza, não foi para outra mina.
- Quando você soube que ele havia desaparecido?
Ele contorceu o rosto enquanto pensava.
- É difícil dizer. Acho que quando minha esposa veio para ficar comigo. Isso quer dizer que foi por volta de fevereiro. Mas pode ter sido depois disso. Minha
esposa, ela ainda tem família lá em Wemyss. Nós não voltamos lá. Não seríamos bem-vindos. As pessoas têm memória boa, sabe? Mas
nos mantemos em contato e, às vezes, eles vêm aqui nos visitar. - Um pálido sorriso de desculpa passou por seu rosto. - O sobrinho da minha mulher, ele é estudante
na universidade daqui. Está terminando o segundo ano. Ele vem jantar aqui em casa de vez em quando. Então, sim, eu ouvi falar que Mick havia entrado na lista dos
desaparecidos, mas não saberia te dizer com certeza quando foi que fiquei sabendo.
- Aonde você acha que ele foi? O que você acha que aconteceu? - Em sua ansiedade, Mark se esqueceu da regra fundamental de fazer apenas uma pergunta por vez.
Maclean ignorou ambas.
- Por que cargas d'água vocês ficaram interessados no Mick, assim de repente? - ele perguntou. - Ninguém veio procurar por ele, em todos esses anos. Por que
tanto alvoroço agora?
Mark explicou por que Misha Gibson havia, finalmente, informado a polícia sobre o desaparecimento de seu pai. Maclean se mexeu na cadeira, sem jeito, fazendo o chá
se derramar sobre os dedos.
- Que coisa horrível. Me lembro de quando a própria Misha não passava de uma garotinha. Gostaria de poder ajudar. Mas não sei para onde ele foi - ele disse.
- Como eu falei antes, não o vi mais desde que saí de Newton.
- Ouviu falar alguma coisa sobre ele? - acrescentou Otitoju.
Maclean lhe lançou um olhar duro. Em seu rosto curtido pelo sol, o olhar parecia tão impassível quanto o Monte Rushmore.
- Não tente dar uma de esperta pra cima de mim, querida. Não, não ouvi nada sobre ele. No que me diz respeito, Mick Prentice sumiu do planeta no dia em que
vim para cá. E foi exatamente o que esperei que fosse acontecer.
Mark tentou restabelecer a camaradagem, infiltrando solidariedade em sua voz:
- Entendo perfeitamente - disse. - Mas o que você acha que aconteceu com Mick? Você era amigo dele. Se alguém pode pensar numa resposta, esse alguém é você.
Maclean balançou a cabeça.
- Não sei mesmo.
- E se tivesse que fazer uma suposição?
Novamente ele coçou a cabeça.
- Te digo uma coisa. Achei que ele e Andy tivessem fugido juntos. Achei que os dois estivessem cheios, que houvessem ido para algum outro lugar para começar
do zero. Vida nova e essas coisas.
Mark se lembrava do nome do amigo de Prentice, que vira no relatório informativo sobre o caso. Mas não houvera qualquer menção de terem fugido juntos.
- Aonde eles iriam? Como poderiam simplesmente desaparecer, sem deixar rastros?
Maclean bateu com o dedo na lateral do nariz.
- Andy era comunista, sabe? E, nessa época, Lech Walesa e o Solidariedade eram importantíssimos na Polônia. Sempre achei que aqueles dois tivessem ido para
lá. Havia um monte de minas na Polônia e não iria parecer que eles estivessem furando a greve. De jeito nenhum.
- Polônia? - Mark sentiu que precisava de um curso rápido sobre a história política do século XX.
- Eles estavam tentando derrubar o comunismo totalitário - Otitoju disse, asperamente. - Para substituí-lo por uma espécie de socialismo dos trabalhadores.
Maclean assentiu.
- Isso teria sido bem do gosto de Andy. Acho que ele deve ter convencido Mick a ir com ele. Isso explicaria por que ninguém nunca mais soube deles. Presos
nas minas de carvão atrás da Cortina de Ferro.
- Mas já faz algum tempo que essa Cortina de Ferro cheira a naftalina - Mark disse.
- Sim, mas quem sabe que tipo de vida eles conseguiram estabelecer por lá? Poderiam estar casados, com filhos, poderiam ter deixado o passado para trás. Se
Mick tivesse uma nova família, não iria querer que a antiga aparecesse do nada, não é?
De repente, Mark teve um daqueles momentos de revelação em que pôde ver o cenário completo.
- Era você quem mandava o dinheiro, não era? Você colocava dinheiro num envelope e enviava a Jenny Prentice, porque achava que Mick não enviaria dinheiro
para ela da Polônia.
Maclean pareceu se encolher contra a parede translúcida de polietileno. Seu rosto se franziu tanto, que era difícil ver seus brilhantes olhos azuis.
- Só estava tentando ajudar. Tenho ganhado bem desde que vim para cá. Sempre senti pena de Jenny. Parecia que ela havia ficado com a pior parte porque Mick
não teve coragem para assumir suas responsabilidades.
Aquela era uma forma estranha de se expressar, pensou Mark. Ele podia muito bem deixar por isso mesmo; aquele caso não era seu, afinal, e ele não precisaria enfrentar
os problemas que poderiam advir de se investigar algo aparentemente sem conexão. Mas, por outro lado, ele queria cumprir aquela missão da melhor forma possível.
Queria explorar a posição de assistente do DIC para conseguir uma transferência permanente para a divisão de detetives. Então, fazer esforços extras era definitivamente
parte do seu plano.
- Tem alguma coisa que você não esteja nos dizendo, Iain? - ele perguntou. - Alguma outra razão para Mick ter fugido da forma como fez, sem dizer uma palavra
a ninguém?
Maclean tomou o resto do seu chá e colocou a xícara de lado. Suas mãos, desproporcionalmente grandes devido a uma vida inteira de trabalho manual intenso, se entrelaçaram
e se soltaram. Ele parecia alguém pouco à vontade com o conteúdo de sua própria mente. Respirou fundo e disse:
- Imagino que agora já não faça diferença. Não se pode punir alguém que já tenha ido desta pra melhor.
Otitoju estava prestes a romper o silêncio de Maclean, mas Mark agarrou seu braço, numa advertência. Ela cedeu, sua boca formou uma linha estreita, e eles esperaram.
Finalmente, Maclean falou.
- Nunca contei isso a ninguém. Até parece que adiantou de alguma coisa manter segredo. Vocês têm de entender, Mick era um defensor ferrenho do sindicato.
E, claro, Andy era funcionário em tempo integral do Sindicato Nacional dos Mineradores. Estava totalmente em casa, íntimo dos altos escalões. Não duvido que Andy
tenha contado a Mick muitas coisas que talvez não devesse. - Ele deu um sorriso melancólico. - Ele estava sempre tentando impressionar Mick, ser seu melhor amigo.
Frequentamos a mesma classe, na escola. Nós três costumávamos andar juntos. Mas você sabe como são os trios. Sempre existe um líder e os outros dois ficam tentando
agradá-lo, tentando tirar o outro da jogada. Era assim conosco. Mick
no meio, tentando manter a paz. Ele era bom nisso, esperto em encontrar formas de deixar nós dois contentes. Nunca permitia que um de nós ficasse por cima. Bem,
não por muito tempo, pelo menos.
Mark podia perceber que Maclean relaxava ao lembrar-se da calma relativa daqueles dias.
- Sei bem o que você quer dizer - ele disse, baixinho.
- Enfim, nós todos continuamos amigos. Eu e minha mulher costumávamos sair com Mick e Jenny, os quatro. Ele e Andy jogavam futebol juntos. Como eu disse,
ele era bom em encontrar coisas que faziam com que seus dois amigos se sentissem especiais. Pois então, algumas semanas antes de eu vir para cá, passamos o dia juntos.
Caminhamos até o porto de Dysart. Ele montou o cavalete e pintou, e eu pesquei. Contei a ele o que havia planejado fazer, e ele tentou me dissuadir. Mas eu podia
ver que ele não estava prestando muita atenção. Então, perguntei a ele o que o estava incomodando. - Ele parou novamente, seus dedos fortes apoiavam-se uns contra
os outros.
- E o que era? - perguntou Mark, inclinando-se para a frente para afastar a presença rígida de Otitoju e fazendo daquele um círculo puramente masculino.
- Ele disse que achava que um dos funcionários do sindicato estava roubando. - Olhou fixamente nos olhos de Mark. Ele podia sentir a terrível traição que
havia por trás das palavras de Maclean. - Nós todos estávamos sem um tostão e passando fome, e um dos caras que, supostamente, deveria ficar do nosso lado estava
enchendo os próprios bolsos. Pode não parecer muita coisa agora, mas naquela época, isso me abalou profundamente.
Quinta-feira, 30 de novembro de 1984; Dysart
Uma cavala estava puxando seu anzol, mas Iain Maclean não lhe prestava a menor atenção.
- Você só pode estar brincando! - ele disse. - Ninguém faria uma coisa dessas.
Mick Prentice deu de ombros, sem tirar os olhos do papel grosso preso em seu cavalete.
- Você não precisa acreditar em mim. Eu sei o que sei.
- Você deve ter entendido errado. Nenhum funcionário do sindicato roubaria da gente. Não aqui. Não agora. - Maclean parecia estar à beira das lágrimas.
- Olhe, vou lhe contar o que sei. - Mick passou o pincel rapidamente pelo papel, deixando uma mancha de cor ao longo do horizonte. - Eu estava no escritório
na terça passada. Andy tinha me pedido para ir lá ajudá-lo com os requerimentos da assistência, então eu estava folheando as cartas que havíamos recebido. Digo uma
coisa a você: ver o que as pessoas estavam passando era de partir o coração. - Ele limpou o pincel e misturou uma cor cinza esverdeada em sua palheta de bolso. -
Então, estou eu lá naquele cubículo, ao lado do escritório principal, examinando essas coisas, e esse outro funcionário está lá na frente. Enfim, vem uma mulher
de Lundin Links. Terninho de lã e uma boina idiota de pelo de angorá. Você conhece o tipo: a ricaça metida a Madre Teresa de Calcutá. Ela disse que eles haviam realizado
um café da manhã beneficente no clube de golfe e que tinham arrecadado 232 libras para ajudar as famílias pobres dos mineiros em greve.
- Fizeram muito bem - disse Maclean. - Melhor vir diretamente até nós do que falar com aquela maldita equipe da Tatcher.
- Certamente. Então, ele lhe agradece e ela vai embora. Agora, eu não vi exatamente para onde foi o dinheiro, mas posso lhe dizer que não foi para dentro
do cofre.
- Ah, tenha dó, Mick. Isso não prova nada. Pode ser que o cara tenha levado diretamente para a subseção do sindicato. Ou para o banco.
- Sei. - Mick deu uma risada sem humor nenhum. - Como se, nos dias de hoje colocássemos dinheiro no banco com os confiscadores atrás da gente.
- Mesmo assim - disse Maclean, sentindo-se ofendido, por alguma razão.
- Olhe, se fosse só isso, eu não teria me incomodado. Mas tem mais. Uma das tarefas de Andy é manter um registro do dinheiro que vem de doações e coisas do
tipo. Todo esse dinheiro deve ser repassado para a subseção. Não sei o que acontece com ele, então, se volta para a gente em forma de doações ou se vai parar na
corte do Rei Arthur, escondido em alguma maldita conta bancária na Suíça. Mas qualquer pessoa que arrecade dinheiro deve dizer a Andy, e ele anota num livrinho.
Maclean assentiu.
- Me lembro de ter de dizer a ele quanto tínhamos conseguido juntar, quando fizemos as arrecadações na rua, no último verão.
Mick fez uma breve pausa e olhou para o ponto onde o mar se encontrava com a terra.
- Eu estava na casa de Andy, na outra noite. O livro estava em cima da mesa. E a doação de Lundin Links não estava anotada nele.
Maclean puxou a linha com tanta força que quase perdeu o peixe.
- Merda - ele disse, girando a carretilha furiosamente. - Talvez Andy estivesse atrasado com as anotações.
- Gostaria que fosse tão simples assim. Mas não é isso. As últimas anotações no livro de Andy eram de quatro dias depois que aquele dinheiro foi entregue.
Maclean jogou a vara nas lajotas de pedra a seus pés. Ele podia sentir as lágrimas queimando nos olhos.
- Que porra de situação desgraçada. E você espera que eu sinta remorso por estar indo para Nottingham? Pelo menos é trabalho honesto, por um pagamento honesto,
e não roubo. Não posso acreditar numa coisa dessas.
- Eu também não. Mas de que outra forma se poderia explicar isso? - Mick balançou a cabeça. - E vindo de um cara que ainda está recebendo salário.
- Quem é ele?
- Não posso lhe dizer. Não até que tenha decidido o que fazer a respeito.
- É óbvio o que você tem de fazer. Tem que contar ao Andy. Se houver uma explicação inocente, ele saberá.
- Não posso contar ao Andy - Mick protestou. -Jesus, às vezes sinto vontade de fugir desta merda de confusão toda. Passar a régua e começar do zero em outro
lugar. - Ele balançou a cabeça. - Não posso contar a Andy, Iain. Ele já está deprimido. Se eu contar isso, poderia estar empurrando-o de uma vez para o fundo do
abismo.
- Bem, conte para outra pessoa, então. Para alguém da subseção. Você tem que pegar esse filho da puta. Quem é ele? Me conte. Mais algumas semanas e estarei
longe daqui. Para quem eu iria contar? - Maclean sentia a necessidade de saber queimando-o por dentro. Era mais uma coisa que o ajudaria a acreditar que estava fazendo
a coisa certa. - Me conte, Mick.
O vento fez o cabelo de Mick entrar em seus olhos, salvando-o do desespero no rosto de Maclean. Mas a necessidade de compartilhar seu fardo era pesada demais para
ignorar. Ele afastou o cabelo e olhou nos olhos do amigo.
- Ben Reekie.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Glenrothes
Karen tinha de admitir que estava impressionada. Não só a equipe de Nottingham havia feito um excelente trabalho, mas a agente Femi Otitoju tinha digitado seu relatório
e o enviado por e-mail em tempo recorde. Veja bem, pensou Karen, eu provavelmente teria feito a mesma coisa, no lugar dela. Dada a qualidade das informações que
ela e seu parceiro haviam conseguido obter, qualquer policial candidato ao DIG ficaria desesperado para tirar a maior vantagem possível.
E realmente havia algo ali para explorar ao máximo. A agente Otitoju e seu colega em Nottingham haviam descoberto quem tinha confundido a todos, enviando dinheiro
a Jenny Prentice. E, crucialmente, ela também tinha fornecido a primeira resposta possível à questão de quem ficaria feliz ao ver Mick Prentice pelas costas. Os
ânimos andaram bastante exaltados na época, e a impopularidade do sindicato crescia em várias partes. A violência já havia irrompido mais vezes do que se poderia
contar, e nem sempre entre a polícia e os grevistas. Mick Prentice poderia ter sido consumido pelo fogo com o qual brincava. Caso houvesse confrontado Ben Reekie
com o que sabia, se ele fosse culpado da acusação e se Andy Kerr tivesse sido arrastado para a confusão, devido à sua conexão com os outros dois, então, havia motivo
para Reekie se livrar dos dois homens, que desapareceram aproximadamente na mesma época. Talvez Angie Kerr estivesse certa a respeito do irmão. Talvez ele não tivesse
se matado. Talvez Mick Prentice e Andy Kerr fossem vítimas de um assassino - ou assassinos - desesperado para proteger a reputação de um funcionário desonesto do
sindicato.
Karen estremeceu.
- É imaginação demais - ela disse, em voz alta.
- O quê? - Phil afastou os olhos da tela do computador, franzindo a testa.
- Desculpe. Só estou me dando uma bronca por ser melodramática demais. Mas lhe digo uma coisa, se essa Femi Otitoju algum dia decidir se mudar para o norte,
vou colocá-la no lugar do Novo em Folha tão rápido que ele não vai nem saber o que está acontecendo.
- Não que isso seja muito difícil - disse Phil. - A propósito, o que você está fazendo aqui? Não deveria estar conversando com a adorável Srta. Richmond?
- Ela deixou um recado. - Karen olhou para seu relógio. - Chegará dentro de alguns minutos.
- Por que o atraso?
- Parece que teve que conversar com o advogado de algum jornal sobre um artigo que ela escreveu.
Phil reclamou.
- Que nem o tal do Brodie Grant. Ainda pensam que somos da classe serviçal, aqueles lá. Talvez você devesse deixá-la esperando.
- Não posso me dar ao luxo de entrar nesse jogo idiota. Olhe só isto aqui. O parágrafo que eu marquei. - Ela passou o relatório de Otitoju para Phil e esperou
que ele o lesse. Assim que ele levantou os olhos da página, ela disse: - Alguém afirmando que viu Mick Prentice umas doze horas depois de ele ter saído de casa.
E parece que ele não estava agindo de forma normal.
- Que estranho. Se ele estava fugindo, por que ainda estaria por ali, àquela hora da noite? Onde havia estado antes? E para onde estava indo? O que estava
esperando? - Phil coçou o queixo. - Não faz nenhum sentido para mim.
- Nem para mim. Mas vamos ter que tentar descobrir. Vou acrescentar à minha lista - ela suspirou. - Um pouco abaixo de "ter uma conversa decente com a polícia
italiana".
- Pensei que você houvesse conversado com eles.
Ela assentiu.
- Com um policial no quartel-general de Siena, um cara chamado di Stefano, com quem Peter Spinks, da Proteção Infantil, trabalhou há uns anos. Ele fala inglês
razoavelmente bem, mas precisa de mais informações.
- Então, você vai entrar em contato com eles novamente na segunda-feira?
Karen assentiu.
- Isso. Ele disse para não esperarmos encontrar ninguém no escritório deles depois das duas da tarde de uma sexta-feira.
- Será ótimo, se você conseguir - disse Phil. - Falando nisso, quer ir tomar um drinque rápido depois que terminar a conversa com Annabel Richmond? Tenho
que ir jantar na casa do meu irmão, mas tenho tempo para uma cervejinha.


CONTINUA

Christie. Uma dívida que não é pequena.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss
A voz é suave, como a escuridão que os cerca.
- Está preparado?
- Mais preparado do que nunca.
- Você disse a ela o que fazer? - As palavras agora rolam, tropeçando umas nas outras num emaranhado único de sons.
- Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabilizado se isto der errado. - Palavras ásperas, num tom áspero. - Não é com ela que estou
preocupado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. - As palavras possuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. - Vamos, terminemos logo com isto.
Assim é como tudo começa.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/DOMINIO_SOMBRIO.jpg

 

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziam uma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas. Parecia alguém com
uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conforme ela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a
mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras informações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmente ignorados por aqueles
que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhão de sua determinação.
Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não era feia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali, não estava em seus melhores
dias. Ela poderia ter colocado um pouquinho mais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algo que lhe caísse melhor do que jeans e blusa
de capuz. David Cruickshank assumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se preparando para defesa.
- Quero informar o desaparecimento de uma pessoa.
Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desaparecidas. Aquela ali estava
calma demais para que se tratasse de um filho pequeno, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga com o namorado, era disso que se tratava.
Ou um avô senil perdido. A mesma perda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo balcão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta.
Nem chegou a destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondida antes que ele anotasse quaisquer detalhes.
- E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?
- Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, para ser exata. - Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seu semblante. -
Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?
O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a tela do computador.
- Vou te dizer uma coisa - ele falou -, se existe uma época excelente para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.
A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo que estava atualizando.
- Como assim?
- Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, na Downing Street,
10, com a patroa a tiracolo. - Ele se levantou num salto e foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. - O que você prefere fazer? Solucionar casos arquivados
e receber os louros por isso, ou tentar prevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?
- Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministro faz de Fife um alvo? - Karen marcou onde estava no documento com o dedo indicador e dirigiu
toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou de que tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não considerara as possibilidades atuais. - Nunca
se incomodaram com o distrito eleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.
- Isso é verdade. - Phil espiou para dentro da geladeira, decidindo entre um refrigerante Im Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e ele ainda não
se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer em sua infância. - Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, e Gordon é filho de um pastor
presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugar do chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja do pai dele.
Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio.
- Não sei como você consegue beber isso aí - ela disse. - Nunca reparou que o nome é um anagrama de "vomit"?
Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.
- Faz crescer cabelo no peito - ele disse.
- É melhor você tomar duas latas, então. - Havia uma ponta de inveja na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gorduras saturadas,
mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os dois eram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suas medidas aumentando. Isso, definitivamente,
não era justo.
Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.
- Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um pouco mais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaça agora é maior.
Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.
- Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon aja de um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?
Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojava a Equipe de Revisão
de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alterado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquer telefone que tocasse perto dela.
- Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando - ela disse distraidamente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, no fundo, ele não
sentia saudade de estar envolvido com a ação.
- Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com uma pessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. - Cruickshank parecia um tanto inseguro.
Aquilo era incomum o bastante para chamar a atenção de Karen.
- Do que se trata?
- De uma pessoa desaparecida - ele disse.
- É um dos nossos?
- Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.
Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por tempo suficiente.
- Então ela precisa falar com o Departamento de Investigações Criminais, Dave.
- Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este caso está um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor que passasse por
você primeiro, entendeu?
Vá logo ao que interessa.
- Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com investigações recentes. - Karen girou os olhos para Phil, que devolveu um sorriso falso
diante da óbvia frustração dela.
- Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vinte e dois anos.
Karen se endireitou na cadeira.
- Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?
- Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?
Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar a mulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre se sentia atraída por coisas
que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros no escuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazido duas promoções em três anos, superando
alguns colegas de igual posição e deixando muitos outros incomodados.
- Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela.
Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.
- Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o desaparecimento de uma pessoa? - ela perguntou, mais para si mesma do que para Phil, vasculhando
a mesa à procura de um caderno vazio e de uma caneta.
Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.
- Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.
- E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. - O sorriso de Karen
era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse o Gato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.
Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do elevador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatlética da Gap. Modelos
e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos e sem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro na altura do quadril. O cabelo castanho-médio
tinha um bom corte chanel longo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava, portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social.
Tampouco, provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulher agradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantos anos, olhos azuis
com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima de maquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um. Ao perceber a avaliação de Karen,
a pele ao redor de seus olhos se apertou.
- Sou a inspetora Pirie - ela disse, abreviando o impasse em potencial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. - Karen Pirie.
Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gorducha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio
precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, caso fosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen se descrevia daquela
maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela era lindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela não concordava. Tinha uma opinião
razoavelmente boa sobre si mesma. Mas, quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, no entanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.
Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu mais segura.
- Graças a Deus por isso - ela disse. O sotaque de Fife era claro, embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela distância.
- Perdão?
A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes de leite de uma criança.
- Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enrolando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.
- Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo chá - Karen disse secamente. - Por acaso, fui a pessoa que atendeu ao telefone. - Ela deu
meia-volta, olhou para trás e disse: - Você me acompanha?
Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma salinha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, para o verde artificialmente
uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofadas de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfície de cerejeira fora polida até adquirir
um brilho opaco. A única indicação do propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas na parede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda
vez que usava aquele local, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhido fotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algo
muito ruim acontece.
A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou uma cadeira e lhe indicou que sentasse.
- Não é assim na televisão - ela disse.
- Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão - Karen respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em
relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição, menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entrevista de testemunha.
- Cadê o gravador? - A mulher se sentou, sem aproximar a cadeira nem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.
Karen sorriu.
- Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interrogatório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interrogada sobre um
crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável e olhar pela janela. - Ela abriu seu bloco de anotações. - Creio que está aqui para informar sobre uma pessoa
desaparecida.
- Isso mesmo. O nome dele é...
- Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para começar, qual é seu nome?
- Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobrenome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha.
- Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone.
Misha informou todos os detalhes.
- Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome dela, se é que você me entende.
Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus mineiros de carvão, numa
época em que estes lhe pertenciam tanto quanto as minas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquer ligação com o lugar ou seu passado.
- Mesmo assim - ela disse -, preciso de seus dados também.
As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então, ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujo conhecimento da geografia
social da capital, a apenas cinquenta quilômetros de distância, era provincianamente escasso.
- E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa - ela disse.
Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.
- Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser exata.
- E quando foi que seu pai desapareceu? - Ali, pensou Karen, era onde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.
- Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio. Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. - As sobrancelhas
de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.
- É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desaparecimento - disse Karen.
Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.
- Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente.
- Não estou entendendo. O que quer dizer com "não exatamente"?
Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.
- Você fala como alguém desta região.
Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:
- Cresci em Methil.
- Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984.
- A greve dos mineiros?
Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.
- Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pessoas costumavam dizer
por aqui: que ninguém era mais militante do que os mineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro, depois de nove meses de greve, em que meia
dúzia deles desapareceu. Bem, eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eles haviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. - Seu rosto
se franziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. - Com relação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo. Mas,
segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu pai tinha ido com eles. Inclusive ela. - Lançou a Karen um olhar defensivo. - Eu era pequena demais
para me lembrar. Mas todos dizem que ele era um sindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.
- Ela balançou a cabeça. - Porém, o que mais ela iria pensar?
Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia ter significado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a solidariedade era reservada
apenas para aqueles que aguentavam o tranco. A atitude de Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.
- Não deve ter sido nada fácil para sua mãe - ela disse.
- Em um aspecto, foi muito fácil. - Misha disse com amargura. - Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria mais saber dele.
Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergência. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para a Assistência Social dos Mineiros. Fui
criada numa casa em que o nome do meu pai jamais era pronunciado.
Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.
- Ele nunca entrou em contato com vocês?
- Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o carimbo do correio de Nottingham.
- Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai seja uma pessoa desaparecida. - Karen tentou fazer sua voz soar o mais gentil possível.
- Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim, inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. É preciso que o encontrem.
O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela, aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.
- Por quê? - ela perguntou.
Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo
Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquela sensação de ultraje pelo
fato de que o mundo seguia seu caminho, a despeito do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara em contar porque nunca havia se permitido acreditar
que aquela poderia ser a última vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polegares deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadas
por suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de alguma forma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviam atirado contra
sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicção tinha, finalmente, sido testada ao extremo.
Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol, desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda
não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e um apartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso. John não
estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia saber sobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido no trabalho alguma questão
complexa com que só ele pudesse lidar.
Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de arenito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, o pulmão verde do centro sul
da cidade, onde ela adorava caminhar com Luke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia também checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma
bola de rúgbi rodeada de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam a bola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pela
superfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha. Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a caminhar ali com Luke.
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, era disso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em perspectiva. Uma caminhada
rápida através do Meadows e, daí, atravessaria a Ponte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou um restaurante.
Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa de fundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Ela não permitiria que fosse
o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outra chance a Luke.
Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que o segurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelo trabalho de parto, ela
soubera. John estava em estado de negação, recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho, ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo
havia agarrado o coração de Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão em sua mente, então, fora: quão diferente?
O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorte era o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do Hospital Real para Crianças
Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nas histórias "milagrosas" que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito
para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem para explicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.
Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano; ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encantadora das palavras disfarçava
seu conteúdo letal. Escondidos no DNA de ambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado para criar uma condição rara que condenaria seu filho
a uma vida curta e dolorosa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que certamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula
óssea que, no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatível. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medula óssea,
Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.
Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que, sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria de algum membro da família;
era o que os médicos chamavam de doador aparentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Ela havia lido sobre os registros de transplante de
medula e deduzido que sua melhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, de acordo com o especialista, a doação de um membro da família não compatível,
que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um risco menor de complicações do que a de um doador compatível que não tivesse qualquer parentesco com o paciente.
Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos dois lados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e até mesmo oferecendo recompensas
a primos distantes e tias idosas. Aquilo havia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária. John se fechara atrás de uma muralha de otimismo
pouco realista. Haveria um avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar, descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes compartilhados.
Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro. John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à procura de casos que provassem
que os médicos estavam errados. Aparecia semanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis. E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura
incessante de Misha. Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de negação era olímpica.
Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo.
Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seu último beco sem saída
apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrível julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamente aquela que havia rezado para não ter de
levar em conta.
Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquele caminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pronta para ser agressiva com
quem quer que estivesse invadindo seu espaço.
- John - ela disse, com cansaço.
- Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento
- ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamente até ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para que se tocassem,
se algum deles quisesse.
- Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.
- Não, isso eu posso ver. O que eles disseram?
Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do veredito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filho era invencível,
de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reação dela.
Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto o consolo.
- Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. - Sua voz parecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. A emoção derreteria
seu estado congelado e ali não era o lugar para demonstrações de pesar ou amor.
John apertou os dedos dela com força.
- Talvez não seja tarde demais - ele disse. - Talvez eles...
- Por favor, John. Agora não.
Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensionava conforme ele controlava sua discordância.
- Então - ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que outra coisa -, imagino que você vá procurar o filho da puta?
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen coçou a cabeça com a caneta. Por que eu sempre pego os melhores?
- Por que você deixou passar tanto tempo, antes de tentar rastrear seu pai?
Ela captou uma expressão fugaz de irritação em volta dos olhos e da boca de Misha.
- Porque eu havia crescido achando que meu pai fosse um filho da puta fura-greve e egoísta. O que ele fez alijou minha mãe de sua própria comunidade. Fez
com que eu fosse maltratada no parque e na escola. Não achei que um homem que houvesse abandonado a família na merda fosse se incomodar com o neto.
- Ele mandava dinheiro - disse Karen.
- Uns trocados aqui e ali. Dinheiro maldito - disse Misha. - Como eu disse, minha mãe se recusava a usá-lo. Ela o doava. Nunca tirei proveito dele.
- Talvez ele tenha tentado compensar a sua mãe. Os pais nem sempre nos contam as verdades incômodas.
Misha balançou a cabeça.
- Você não conhece a minha mãe. Mesmo com a vida de Luke em jogo, ela não ficou nada contente que eu estivesse tentando encontrar meu pai.
Para Karen, aquele parecia um motivo insuficiente para evitar o homem que poderia fornecer a chave para o futuro de um garoto. Mas ela sabia como os sentimentos
eram profundos nas velhas comunidades mineiras, deixou estar, portanto.
- Você diz que ele não estava onde se supunha. O que aconteceu, quando você foi procurar por ele?
Quinta-feira, 21 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Jenny Prentice tirou um saco de batatas da prateleira de verduras e se pôs a descascá-las, o corpo inclinado sobre a pia e as costas voltadas para a filha. A pergunta
de Misha pairou sem resposta entre as duas, lembrando ambas da barreira que a ausência do pai havia colocado entre elas desde o início. Misha tentou novamente.
- Eu perguntei...
- Eu te ouvi muito bem. Não há nada de errado com a minha audição - disse Jenny. - E a resposta é: não tenho a menor ideia. Como eu saberia onde começar
a procurar por aquele merda de fura-greve egoísta? Nós nos viramos muito bem sem ele nos últimos vinte e dois anos. Nunca houve razão para procurá-lo.
- Bem, existe uma razão agora.
Misha olhou para os ombros curvados da mãe. A luz fraca que entrava pela pequena janela da cozinha acentuava o branco de seus cabelos não pintados. Ela mal havia
completado cinquenta anos, mas parecia ter pulado a meia-idade e adquirido logo o encurvamento vulnerável de uma anciã. Era como se ela soubesse que o ataque um
dia chegaria e houvesse optado por se defender tornando-se patética.
- Ele não irá ajudar - Jenny zombou. - Ele deixou claro o que pensava de nós, quando nos abandonou para que nos virássemos sozinhas. Ele só pensava em si
mesmo.
- Pode ser. Mas mesmo assim tenho que tentar, pelo bem de Luke - Misha disse. - Havia algum endereço de remetente nos envelopes em que vinha o dinheiro?
Jenny cortou uma batata descascada ao meio e deixou cair numa panela com água salgada.
- Não. Ele nem sequer se dava ao trabalho de colocar uma cartinha no envelope. Apenas um punhado de cédulas sujas, só isso.
- E os caras com quem ele foi embora?
Jenny lançou um olhar rápido e desdenhoso para Misha.
- O que têm eles? Não dão as caras por aqui.
- Mas alguns ainda devem ter família aqui, ou em East Wemyss. Irmãos, primos. Eles podem saber alguma coisa sobre o meu pai.
Jenny sacudiu a cabeça com firmeza.
- Nunca mais ouvi falar dele, desde o dia em que se foi. Nem um pio, bom ou ruim. Os outros homens com quem ele foi embora não eram seus amigos. A única razão
pela qual ele pegou carona com eles foi porque não tinha dinheiro para ir sozinho para o sul. Ele deve ter usado os caras assim como usou a gente e, depois, deve
ter seguido seu próprio caminho, quando chegou aonde queria. - Ela deixou cair outra batata na panela e disse sem qualquer entusiasmo: - Você vai ficar para a janta?
- Não, tenho algumas coisas para resolver - Misha disse, impaciente com a recusa da mãe em levar a sério sua busca. - Deve haver alguém com quem ele tenha
mantido contato. Com quem ele poderia ter falado? A quem ele teria contado o que estava planejando fazer?
Jenny se empertigou e colocou a panela no velho fogão a gás. Misha e John se ofereciam para trocar o fogão desconjuntado toda vez que se sentavam para aquele ato
teatral que era o jantar de domingo, mas Jenny sempre recusava, com o ar de martírio frustrado com que normalmente respondia às ofertas de gentileza.
- Nisso você também deu azar. - Ela se acomodou numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa minúscula na cozinha apertada. - Ele só tinha um amigo
de verdade. Andy Kerr. Era um comunista fervoroso, o Andy. Te digo uma coisa: em 1984 não eram muitos os que ainda erguiam a bandeira vermelha, mas Andy era um deles.
Ele já era sindicalista bem antes da greve. Ele e seu pai eram amigos desde a escola. - Seu rosto se suavizou por um momento, e Misha quase pôde ver a jovem que
ela havia sido. - Eles estavam sempre aprontando alguma, aqueles dois.
- Então, onde é que encontro esse tal de Andy Kerr? - Misha se sentou em frente à mãe, seu desejo de ir embora temporariamente abandonado.
O rosto da mãe se contorceu em uma expressão irônica.
- Coitada. Se você conseguir encontrar Andy, será uma detetive e tanto. - Ela se inclinou para a frente e deu um tapinha na mão de Misha. - Ele é mais
uma das vítimas do seu pai.
- Como assim?
- Andy adorava seu pai. Para ele, era Deus no céu e seu pai na terra. Pobre Andy. A greve o colocou sob uma enorme pressão. Ele acreditava na greve, acreditava
na luta. Mas ficou arrasado ao ver as dificuldades pelas quais seus homens estavam passando. Ele estava à beira de um ataque de nervos, e o diretor local o obrigou
a tirar uma licença médica, não muito antes de seu pai dar o fora. Ninguém o viu depois disso. Ele vivia lá nos cafundós, então ninguém percebeu que ele havia partido.
- Ela soltou um suspiro longo e cansado. - Ele mandou um cartão-postal para o seu pai, de algum lugar no norte. Mas, é claro, seu pai já tinha fugido da greve e,
portanto, nunca o recebeu. Mais tarde, quando Andy voltou, deixou um bilhete para a irmã dele dizendo que não suportava mais. O pobre coitado se matou.
- E o que isso tem a ver com o meu pai? - perguntou Misha.
- Sempre achei que o fato de seu pai ter furado a greve foi a gota d'água. - A expressão de Jenny era uma mistura de piedade e convencimento. - Foi o que
condenou Andy.
- Você não tem como saber isso. - Misha se afastou, aborrecida.
- Não sou a única por aqui que pensa assim. Se seu pai tivesse confiado em alguém, teria sido em Andy. E isso deve ter sido demais para aquela pobre alma
fragilizada. Ele tirou a própria vida, sabendo que seu único amigo de verdade havia traído tudo aquilo que ele defendia.
Naquele tom melodramático, Jenny se levantou e pegou um saco de cenouras da prateleira. Estava claro que ela dera por encerrado o assunto Mick Prentice.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen deu uma espiada no relógio. Quaisquer que fossem as qualidades de Misha Gibson, a brevidade não era uma delas.
- Então Andy Kerr provou ser, literalmente, um caso morto e enterrado?
- Minha mãe acha que sim. Mas parece que nunca encontraram o corpo. Talvez ele não tenha se matado, afinal - disse Misha.
- Eles nem sempre aparecem - Karen disse. - Às vezes, o mar os reivindica. Ou a floresta, que seja. Ainda existe muito espaço vazio nesta terra.
A resignação tomou conta do rosto de Misha. Karen percebeu que ela era uma mulher inclinada a acreditar no que lhe diziam. Se havia alguém que sabia disso, era sua
mãe. Talvez as coisas não fossem tão preto no branco quanto Jenny Prentice queria que sua filha pensasse.
- Isso é verdade - disse Misha. - E minha mãe falou mesmo que ele havia deixado um bilhete. Será que a polícia ainda o tem?
Karen balançou a cabeça.
- Duvido. Se em algum momento esteve com a gente, foi devolvido à família dele.
- Não teria havido um inquérito? Não teriam precisado do bilhete para isso?
- Você se refere a uma Investigação de Acidente Fatal - disse Karen.
- Não sem um corpo. Se existir um arquivo desse caso, é a respeito de pessoa desaparecida.
- Mas ele não está desaparecido. A irmã dele conseguiu que ele fosse declarado morto. Seus pais morreram no acidente da balsa de Zeebrugge, mas parece que
o pai sempre se recusou a acreditar que Andy tivesse morrido; então, não alterou o testamento para deixar a casa para a filha. Ela teve que ir ao tribunal e pedir
que declarassem Andy morto, para que ela pudesse herdá-la. De qualquer modo, foi o que minha mãe me contou. - Nenhum sinal de dúvida perturbava a expressão de Misha.
Karen anotou irmã de Andy Kerr e acrescentou um pequeno asterisco à observação.
- Portanto, se Andy se matou, voltamos a ter como única explicação racional para seu pai ter desaparecido o fato de ele querer furar a greve. Você fez alguma
tentativa de contatar os caras com quem se supõe que ele tenha fugido?
Segunda-feira, 25 de junho de 2007; Edimburgo
Nove e dez da manhã de uma segunda-feira e Misha já se sentia exausta. Ela já deveria estar com Luke no hospital. Brincando com ele, lendo para ele, bajulando os
terapeutas para que ampliassem seus procedimentos, discutindo planos de tratamento com a equipe médica e usando toda a sua energia para contagiá-los com a sua convicção
de que era possível salvar o filho. E, se era possível, todos eles tinham a obrigação de lhe proporcionar até a última gota de intervenção médica.
Mas, em vez disso, Misha estava sentada no chão, com as costas contra a parede, os joelhos dobrados, o telefone no colo e o bloco de anotações a seu lado. Ela disse
a si mesma que estava tomando coragem para dar um telefonema, mas no fundo sabia que a exaustão era o verdadeiro motivo por trás da inatividade.
Outras famílias aproveitavam os fins de semana para relaxar, recarregar as baterias. Mas não os Gibson. Para começar, havia menos funcionários trabalhando no hospital,
então Misha e John se sentiam obrigados a dedicar
mais energia que o habitual a Luke. Tampouco havia descanso quando eles voltavam para casa. O fato de Misha acreditar que a última esperança para o filho era encontrar
seu pai havia simplesmente agravado o conflito entre seu ardor missionário e o otimismo passivo de John.
Esse fim de semana havia sido mais difícil que o normal. Ter um limite de tempo definido para a vida de Luke impregnava de valor e intensidade cada momento que compartilhavam.
Era difícil evitar uma espécie de sentimentalismo melodramático. Assim que saíram do hospital no domingo, Misha retomou o refrão que vinha repetindo desde que visitara
a mãe:
- Eu tenho que ir a Nottingham, John. Você sabe disso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta impermeável e curvou a cabeça para a frente, como se estivesse lutando contra um vento forte.
- Telefone para o cara - John falou. - Se ele tiver alguma coisa a dizer, dirá pelo telefone.
- Talvez não. - Ela correu um pouco para acertar o passo com ele. - As pessoas sempre contam mais coisas cara a cara. Talvez possa me dar alguma informação
sobre os outros que foram para lá com ele. Pode ser que eles saibam de alguma coisa.
John bufou.
- E como é que a sua mãe só se lembra do nome de um cara? Por que ela não pode te dar informações a respeito dos outros?
- Eu já disse. Ela apagou da memória tudo sobre aquela época. Tive que pressioná-la muito até ela me dar o nome de Logan Laidlaw.
- E você não acha incrível que o único cara de quem ela se lembra não tenha nenhum parente na região? Nenhuma maneira óbvia de ser rastreado?
Misha enganchou seu braço no dele, em parte para fazê-lo ir mais devagar.
- Mas eu o rastreei, não foi? Você é desconfiado demais.
- Não sou, não. Sua mãe não conhece o poder da Internet. Ela não sabe dos cadastros eleitorais on-line nem do site 192.com. Ela acha que, se não houver nenhum
ser humano a quem perguntar, você está ferrada. Pensou que não estava lhe dando nada que você pudesse usar. Ela não quer ver você bisbilhotando a respeito desse
assunto, ela não vai te ajudar.
- Então você e ela podem dar as mãos. - Misha soltou o braço do dele e caminhou rapidamente à sua frente.
John a alcançou na esquina da rua deles.
- Isso não é justo - ele disse. - Eu só não quero que você se machuque à toa.
- Você acha que ver meu filho morrer sem fazer nada para salvá-lo não está me machucando?
Misha sentiu o calor da raiva em seu rosto, soube que as lágrimas de ira estavam à espreita. Virou o rosto, piscando desesperadamente para os prédios altos de arenito.
- Encontraremos um doador. Ou eles encontrarão um tratamento. Toda essa pesquisa com células-tronco está avançando muito rápido.
- Não rápido o bastante para Luke - Misha disse, a familiar sensação de peso no estômago desacelerando seus passos. - John, por favor. Preciso ir a Nottingham.
Preciso que você tire uns dias de folga do trabalho para ficar com Luke.
- Você não precisa ir. Pode falar com o cara pelo telefone.
- Não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você não negocia com clientes pelo telefone. Não quando é alguma coisa importante. Você vai até eles pessoalmente.
Quer olhar em seus olhos. Tudo que estou pedindo é que você tire uns dias de folga para passar um tempo com seu filho.
Os olhos dele brilharam perigosamente, e ela soube que tinha ido longe demais. John balançou a cabeça com teimosia.
- Telefone para ele, Misha.
E isso foi tudo. Sua longa experiência com o marido havia lhe ensinado que, quando John assumia uma postura que acreditava estar certa, insistir no mesmo ponto
apenas lhe dava a oportunidade de construir defesas mais fortes. Ela não tinha argumentos novos que pudessem mudar sua decisão. Portanto, ali estava ela, sentada
no chão, tentando formular frases capazes de convencer Logan Laidlaw a lhe dizer o que havia acontecido com seu pai desde que ele a abandonara, havia mais de vinte
anos.
Sua mãe não lhe dera muita coisa para criar uma estratégia. Laidlaw era um esbanjador, um mulherengo, um homem que, aos trinta anos, ainda agia como um adolescente.
Aos vinte e cinco anos, já se divorciara com a péssima reputação de ser um homem habilidoso demais com os punhos quando perto das mulheres. A imagem que Misha guardava
do pai era incompleta e parcial, mas, mesmo com a visão imposta pela mãe, Mick Prentice não
parecia ser o tipo de homem que tivesse tempo a perder com Logan Laidlaw. Ainda assim, tempos difíceis criam os companheiros mais estranhos.
Finalmente, Misha pegou o telefone e digitou os números que ela havia encontrado através de buscas na Internet e em listas telefônicas. Provavelmente ele saíra para
trabalhar, ela pensou no quarto toque. Ou então estava dormindo.
O sexto toque foi interrompido abruptamente. Uma voz rouca grunhiu algo parecido com alô.
- É Logan Laidlaw? - Misha perguntou, lutando para manter a voz sob controle.
- Já tenho uma cozinha montada e não quero nenhum seguro. - O sotaque de Fife ainda era forte, as palavras se atropelando com o familiar sobe e desce.
- Não quero lhe vender nada, Sr. Laidlaw. Só preciso falar com o senhor um instante.
- É, sei. E eu sou o primeiro-ministro.
Ela podia sentir que ele estava a ponto de desligar.
- Sou a filha de Mick Prentice - ela revelou, sua estratégia tinha ido por água abaixo. Através da distância, ela podia ouvir o chiado líquido da respiração
dele. - Mick Prentice, de Newton of Wemyss - ela tentou.
- Eu sei de onde Mick Prentice é. Só não sei o que Mick Prentice tem a ver comigo.
- Olhe, sei que vocês dois não se veem muito, ultimamente, mas eu agradeceria qualquer informação que o senhor pudesse me dar. Realmente preciso encontrá-lo.
- O sotaque de Misha pulou algumas marchas até voltar à pronúncia carregada.
Uma pausa. Então, com um tom desconcertado:
- Por que você está me ligando? Não vejo Mick Prentice desde que saí de Newton of Wemyss, em 1984.
- Tudo bem, mas mesmo que vocês tenham se separado logo que chegaram a Nottingham, o senhor deve ter uma ideia de onde ele foi parar, aonde ele estava indo.
- Escuta aqui, docinho, não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim, nos separamos logo que chegamos a Nottingham? - ele parecia irritado,
a pouca paciência que tinha evaporava com as perguntas dela.
Misha engoliu um suspiro profundo e, então, disse lentamente:
- Só quero saber o que aconteceu com meu pai depois que vocês chegaram a Nottingham. Preciso encontrá-lo.
- Por acaso, você tem algum problema na cabeça, menina? Não faço a menor ideia do que aconteceu com seu pai depois que vim para Nottingham e sabe por quê?
Porque eu estava em Nottingham e ele, em Newton of Wemyss. E mesmo quando nós dois estávamos na mesma cidade, não éramos o que se pode chamar de compadres.
As palavras a atingiram como um balde de água fria. Será que havia algo errado com a memória de Logan Laidlaw? Estaria se esquecendo do passado?
- Não, isso não está certo - ela disse. - Ele foi para Nottingham com você.
Uma explosão de risadas, então uma tosse seca.
- Alguém está te enrolando, menina - ele ofegou. - Trotsky teria furado um piquete de greve antes do Mick Prentice que eu conheci. O que te faz pensar que
ele veio para Nottingham?
- Não sou só eu. Todo mundo pensa que ele foi para Nottingham com você e com os outros homens.
- Isso é loucura. Por que iriam pensar isso? Você não conhece a história da sua própria família?
- O que você quer dizer?
- Por Deus, menina, o seu bisavô. O avô do seu pai. Você não sabe a respeito dele?
Misha não fazia a mínima ideia de onde aquilo iria parar, mas pelo menos ele não tinha desligado na cara dela, como havia temido que fizesse.
- Ele morreu antes de eu nascer. Não sei nada sobre ele, a não ser que também era mineiro.
- Jackie Prentice - disse Laidlaw com algo que se aproximava à satisfação. - Ele foi um fura-greve em 1926. Depois do acordo sindical, ele teve de ser transferido
para um posto na superfície. Quando sua vida depende dos homens da sua equipe, você não quer ser um fura-greve no subterrâneo. A não ser que todo mundo esteja no
mesmo barco, como era nosso caso. Só Deus sabe por que Jackie permaneceu na cidade. Ele tinha que tomar um ônibus até Dysart só para conseguir uma bebida. Não havia
um só bar, em nenhum dos vilarejos de Wemyss, que o servisse. Então, seu pai e seu avô tiveram que trabalhar duas vezes mais que qualquer outra pessoa para serem
aceitos na mina. Nem morto Mick Prentice jogaria fora esse respeito. Ele preferiria morrer de fome. Isso mesmo, e deixar que você morresse junto com ele. Onde quer
que você tenha conseguido essa informação, eles não sabem de que diabos estão falando.
- Minha mãe me contou. É o que todos dizem em Newton. - O impacto das palavras dele a fizeram sentir como se todo ar houvesse sido sugado de seus pulmões.
- Bem, eles estão errados. Por que iriam pensar isso?
- Porque a noite em que você foi para Nottingham foi a última noite em que alguém em Newton o viu ou ouviu falar dele. E porque minha mãe, ocasionalmente,
recebe dinheiro pelo correio, com o carimbo de Nottingham.
Laidlaw respirou com dificuldade, uma exalação de sanfona no ouvido dela.
- Jesus, isso é espantoso. Bem, querida, sinto muito decepcioná-la. Cinco de nós partiram de Newton of Wemyss naquela noite de dezembro. Mas seu pai não estava
entre a gente.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen parou na lanchonete para comprar um sanduíche de salpicão de frango, quando voltava para sua mesa. Criminosos e testemunhas raramente conseguiam enganar Karen,
mas, quando se tratava de comida, ela podia enganar a si mesma dezessete vezes antes do café da manhã. O sanduíche, por exemplo. Pão integral, um pedaço de alface
murcha, algumas fatias de tomate e pepino e, pronto: passava a ser um alimento saudável. Esqueça a manteiga e a maionese. Na sua cabeça, as calorias eram canceladas
pelo benefício. Ela enfiou o caderno embaixo do braço e rasgou a embalagem plástica do sanduíche enquanto caminhava.
Phil Parhatka levantou os olhos quando Karen se deixou cair, pesadamente, na cadeira. Não pela primeira vez, o ângulo da cabeça dele a lembrou de que ele parecia
uma versão mais morena e mais magra de Matt Damon. Havia o mesmo nariz e queixo protuberantes, as sobrancelhas retas, o corte de cabelo à la Identidade Boume, e
a expressão que podia variar, de aberta a resguardada, num segundo. Só as cores eram diferentes.
A ascendência polonesa de Phil era responsável por seus cabelos escuros, os olhos castanhos e a pele intensamente branca; sua personalidade contribuíra com o minúsculo
furo em sua orelha esquerda, que geralmente acomodava um brinco de diamante, quando ele não estava de serviço.
- Como foi? - ele perguntou.
- Mais interessante do que eu esperava - ela admitiu, levantando-se novamente para pegar uma Coca Diet.
Entre mordidas e goles, ela fez um resumo conciso da história de Misha Gibson.
- E ela acredita no que esse velho caduco de Nottingham lhe contou? - ele perguntou, recostando-se na cadeira e entrelaçando os dedos atrás da cabeça.
- Acho que ela é o tipo de mulher que normalmente acredita no que as pessoas lhe dizem - disse Karen.
- Ela seria uma péssima policial, então. Portanto, imagino que você irá passar o caso para a Divisão Central investigar.
Karen deu uma dentada no sanduíche e mastigou vigorosamente, os músculos da mandíbula e têmpora se projetavam e contraíam como uma bola antiestresse sob pressão.
Ela engoliu antes de ter terminado de mastigar direito, empurrando o que sobrou com um gole de Coca Diet.
- Não tenho certeza - ela disse. - É um caso interessante.
Phil lançou um olhar cauteloso.
- Karen, não se trata de um caso arquivado. Não é nossa praia.
- Se eu passá-lo para a Central, vai acabar não dando em nada. Ninguém dé lá vai se incomodar com um caso em que as pistas esfriaram há vinte e dois anos.
- Ela se recusou a encarar o olhar desaprovador dele. - Você sabe disso tão bem quanto eu. E, segundo Misha Gibson, essa seria a última chance do filho dela.
- Ainda não faz com que seja um caso arquivado.
- Só porque não foi aberto em 1984 não significa que agora não esteja arquivado. - Karen sacudiu o resto de seu sanduíche apontando para arquivos sobre sua
mesa. - E nenhum destes aqui irá a qualquer lugar, a curto prazo. Darren Anderson: não há nada que eu possa fazer até que os policiais nas Canárias se mexam e descubram
em que bar a ex-namorada dele está trabalhando. Ishbel Mackindoe: aguardo que o laboratório me
diga se eles podem obter amostras viáveis de DNA das cartas anônimas. Patsy Millar: não posso seguir adiante com esse caso até que a Polícia Metropolitana de Londres
termine de cavar aquele jardim no bairro de Heringey e faça as análises criminais.
- Há testemunhas no caso de Patsy Millar com quem poderíamos falar novamente.
Karen deu de ombros. Ela sabia que podia usar a hierarquia para calar a boca de Phil, mas precisava demais da tranquilidade que havia entre eles.
- Elas não irão a lugar algum. Ou, senão, você pode pegar um dos detetives e lhe dar um pouco de treinamento em ação.
- Se você acha que eles precisam de treinamento em ação, deveria lhes dar esse caso arquivadíssimo de pessoa desaparecida. Você é uma inspetora agora, Karen.
Não se espera que saia investigando esse tipo de coisa. - Ele indicou com a mão os dois detetives sentados frente a seus computadores. - Isso é para gente como eles.
O que acontece é que você está entediada. - Karen tentou protestar, mas Phil continuou, sem lhe dar atenção. - Eu lhe disse, quando você aceitou essa promoção, que
iria ficar louca, sentada atrás de uma mesa. E agora, olhe só. Surrupiando os casos dos agentes da Central. O próximo passo é você sair para fazer pessoalmente os
interrogatórios.
- E daí? - Karen amassou a embalagem do sanduíche com mais força que o necessário e a atirou no lixo. - É bom manter a mão na massa. E vou garantir que tudo
seja feito de forma honesta. Levarei o detetive Murray comigo.
- O Novo em Folha? - O tom da voz de Phil era de incredulidade, seu semblante estava ofendido. - Você preferiria o Novo em Folha a mim?
Karen sorriu com doçura.
- Você agora é sargento, Phil. Um sargento com ambições. Ficar no escritório e esquentar minha cadeira ajudará suas aspirações a se tornarem realidade. Além
disso, o Novo em Folha não é tão ruim quanto você pensa. Ele faz aquilo que o mandam fazer.
- Isso um cachorro collie também faz. Só que o cão mostraria mais iniciativa.
- A vida de uma criança está em jogo, Phil. Eu tenho bastante iniciativa para nós dois. Isso deve ser feito da maneira correta e vou garantir que
seja. - Ela se virou para o computador com um ar de ter terminado a conversa.
Phil abriu a boca para falar mais, então, pensou melhor, ao ver o olhar repressivo que Karen lançou em sua direção. Eles se sentiram atraídos um pelo outro desde
o começo da carreira, reconhecendo a tendência comum de não se conformar. O fato de haverem galgado postos juntos lhes havia conferido uma amizade capaz de sobreviver
ao desafio da mudança de cargo. Mas ele sabia que havia um limite até onde podia pressionar Karen, e tinha a sensação de haver acabado de atingi-lo.
- Então, eu lhe darei cobertura por aqui - ele disse.
- Por mim, está ótimo - Karen disse, enquanto seus dedos voavam pelas teclas. - Marque a minha saída para amanhã de manhã. Tenho a impressão de que Jenny
Prentice será um pouquinho mais receptiva a uma dupla de policiais do que foi com a filha.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Aprender a esperar era uma das lições do jornalismo que as faculdades não ensinavam. Quando Bel Richmond tivera um emprego de tempo integral, em um jornal dominical,
sempre defendera que era paga não por uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, e sim pelos cinco minutos em que conseguia, com sua lábia, passar por uma
porta que ninguém antes conseguira cruzar. O que deixava bastante tempo livre para esperar. Esperar que alguém retornasse um telefonema. Esperar que o passo seguinte
da história acontecesse. Esperar que um contato se transformasse em informante. Bel havia passado por várias esperas e, embora tivesse se tornado habilidosa na atividade,
nunca havia aprendido a apreciá-la.
Tinha de admitir que já precisara esperar em ambientes muito menos salubres que aquele. Ali, havia o conforto do café, biscoitos e jornais. E a sala na qual havia
sido deixada oferecia a vista panorâmica que já enfeitara um milhão de latas de biscoitos amanteigados. Ocupando toda a extensão da Princess Street, exibia um punhado
de atrações turísticas: o castelo, o Scott Monument, a National Gallery e o parque Prince Street Gardens. Bel notou outra beleza arquitetônica significativa, mas
não sabia o suficiente sobre a cidade para identificá-la. Ela só visitara a capital escocesa algumas
vezes e não fora escolha sua realizar aquela reunião ali. Teria preferido Londres; porém, a relutância em mostrar seus trunfos antecipadamente a havia deslocado
do assento do motorista para o posto de suplicante.
De forma um tanto incomum para uma jornalista freelance, ela contava com um assistente de pesquisa. Jonathan era estudante de jornalismo na City University e pedira
a seu orientador que o indicasse para estagiar com Bel. Aparentemente, ele gostava do estilo dela. Bel ficara levemente agradecida pelo elogio, mas profundamente
maravilhada com a perspectiva de ter oito semanas livres de todo trabalho pesado. Sendo assim, Jonathan fizera o primeiro contato com a Maclennan Grant Enterprises.
Voltou com uma resposta bem simples: se a Srta. Richmond não estava preparada para declarar seu motivo para querer um encontro com Sir Broderick Maclennan Grant,
Sir Broderick não estava preparado para se encontrar com ela. Sir Broderick não dava entrevistas. Após algumas negociações adicionais a distância, ela chegara ao
presente acordo.
E agora, pensou Bel, ela estava sendo colocada em seu lugar. Obrigada a ficar esperando numa sala de reuniões de hotel. Forçada a entender que alguém tão importante
quanto a assistente pessoal do presidente e acionista principal da décima segunda empresa mais valiosa do país tinha compromissos mais urgentes em sua agenda do
que fazer sala para uma escritorazinha de Londres.
Gostaria de se levantar e caminhar um pouco, mas não queria revelar qualquer falta de compostura. Ceder terreno nunca fora natural para ela. Em vez disso, ajeitou
a jaqueta, verificou se a blusa estava adequadamente arrumada e tirou uma sujeirinha dos sapatos de camurça verde-esmeralda.
Afinal, precisamente quinze minutos depois da hora marcada, a porta se abriu. A mulher que entrou, num turbilhão de lã e caxemira, lembrava uma professora de colégio,
de idade indeterminada, mas acostumada a impor disciplina aos alunos. Por um momento insano, Bel quase se levantou de um pulo, num reflexo pavloviano às suas recordações
adolescentes de freiras terroristas. No entanto, conseguiu se conter e se levantou de forma mais lenta.
- Susan Charleson - disse a mulher, estendendo a mão. - Desculpe-me por tê-la feito esperar. Como Harold Macmillan disse uma vez: "Acontecimentos, caro rapaz.
Acontecimentos."
Bel decidiu não ressaltar que Harold Macmillan referia-se ao trabalho de primeiro-ministro, e não à função de babá de um líder industrial. Segurou os dedos mornos
e secos, em um aperto rápido e rígido, e, então, teve a mão liberada.
- Annabel Richmond.
Susan Charleson ignorou a poltrona em frente a Bel e dirigiu-se à mesa perto da janela. Pega de surpresa, Bel apanhou a bolsa e a pasta de couro e a seguiu. Sentaram-se
em lados opostos e Susan sorriu, os dentes pareciam uma linha de creme dental calcária em meio ao batom rosa-escuro.
- Você queria ver Sir Broderick - ela disse. Sem preâmbulos, sem conversa fiada sobre a vista. Simplesmente direta. Era uma técnica que Bel havia utilizado
algumas vezes, o que não queria dizer que a apreciasse quando a situação era inversa.
- Exatamente.
Susan balançou a cabeça.
- Sir Broderick não fala com a imprensa. Temo que você tenha desperdiçado seu tempo. Expliquei tudo isso a seu assistente, mas ele se recusou a aceitar uma
resposta negativa.
Foi a vez de Bel sorrir com frieza.
- E fez muito bem. Eu, obviamente, lhe dei um bom treinamento. Mas parece haver um mal-entendido. Não estou aqui para implorar por uma entrevista. Estou aqui
porque acho que tenho algo em que Sir Broderick ficará interessado. - Ela ergueu a pasta até a mesa e abriu o zíper. De dentro, retirou uma única folha de papel
A3 grosso, virada para baixo. Estava manchada e exalava um cheiro sutil, uma mistura curiosa de poeira, urina e lavanda. Bel não resistiu a lançar uma olhadela provocadora
para Susan Charleson. - Você gostaria de ver? - ela perguntou, virando o papel.
Susan tirou um estojo de couro do bolso da saia e extraiu dele uns óculos de aro de casco de tartaruga. Equilibrou-os no nariz, calmamente, mas sem tirar os olhos
das imagens em preto e branco à sua frente. O silêncio entre as mulheres pareceu crescer, e Bel sentiu-se sem ar enquanto esperava por uma resposta.
- Onde você encontrou isto? - Susan perguntou, seu tom de voz estava tão afetado quanto o de uma professora de latim.
Segunda-feira, 18 de junho de 2007; Campora, Toscana, Itália
Às sete da manhã era quase possível acreditar que o calor intenso dos últimos dez dias não fosse dar as caras. A luz perolada do dia cintilava entre a abóbada de
folhas de carvalho e castanheira, deixando visíveis as partículas de poeira que espiralavam, emitidas pelos pés de Bel. Ela se movia devagar o bastante para notá-las
porque a trilha destruída que descia em meio às árvores era sulcada e esburacada, coberta com pedras irregulares o bastante para conscientizar qualquer corredor
da fragilidade de seus tornozelos.
Apenas mais duas daquelas corridas matinais tão apreciadas antes de retornar às sufocantes ruas de Londres. O pensamento provocou uma ferroada de arrependimento.
Bel adorava escapulir da villa enquanto todos ainda estavam dormindo. Ela podia andar descalça pelo chão frio de mármore, fingindo ser a castelã do lugar, e não
simplesmente outra arrendatária tentando tirar uma casquinha da elegância toscana.
Ela vinha tirando férias com o mesmo grupo de cinco amigas desde que dividiram uma casa, em seu último ano na universidade de Durham. Naquela primeira vez, elas
estavam estudando arduamente para os exames finais. Os pais de uma delas tinham uma casa de campo na Comualha, que elas ocuparam por uma semana. Haviam chamado aquilo
de pausa nos estudos; na verdade, foram umas férias em que descansaram e relaxaram, ficando em melhores condições para prestar os exames do que se tivessem se exaurido
com livros e artigos. E, apesar de serem jovens modernas e nem um pouco dadas a superstições, todas sentiram que a semana que haviam passado juntas tinha, de alguma
forma, sido responsável por suas boas notas. Desde então, vinham se reunindo todos os anos, em junho, com o compromisso de se divertir.
Ao longo dos anos, seus hábitos alcoólicos haviam se tornado mais apurados; os alimentícios, mais epicuristas; e as conversas, mais escandalosas. Os lugares haviam
se tornado cada vez mais luxuosos. Amantes jamais eram convidados para compartilhar aquela semana das garotas. Ocasionalmente, uma delas hesitava, alegando muita
pressão no trabalho ou obrigações familiares, mas, geralmente, era ameaçada e mudava de ideia rapidamente e sem dar muito trabalho.
Para Bel, aquele era um elemento significativo de sua vida. Todas aquelas mulheres eram bem-sucedidas, todas eram fontes com as quais podia
contar para suavizar seu caminho, de tempos em tempos. Mas, apesar disso, não era essa a razão principal de suas férias serem tão importantes. Parceiros haviam chegado
e partido, mas aquelas amigas sempre foram uma constante. Em um mundo no qual se era julgado de acordo com sua última manchete, era agradável ter um refúgio onde
nada disso importava. Onde ela era apreciada simplesmente porque o grupo se divertia mais quando ela estava presente. Elas se conheciam havia muito tempo para perdoar
os defeitos umas das outras, para aceitar as opiniões políticas umas das outras e para dizer aquilo que seria impronunciável diante de qualquer outra pessoa. Essas
férias faziam parte da fortaleza que ela constantemente levantava contra suas próprias inseguranças. Além disso, atualmente, eram as únicas férias que ela tirava
que estavam de acordo com o que ela queria fazer. Nos últimos seis anos, ela estivera presa à sua irmã viúva, Vivianne, e seu filho Harry. A morte repentina do marido
de Vivianne, vítima de um ataque cardíaco, a deixara emocionalmente abalada e muito carente. Bel não hesitara em unir seu destino ao da irmã e do sobrinho. No final,
tinha sido uma boa decisão, mas, ainda assim, ela valorizava muito a pausa anual daquela vida familiar que nunca imaginou que viveria. Principalmente agora, quando
Harry se encontrava à beira da crise existencial da adolescência. Este ano, portanto, mais ainda do que no passado, as férias tinham de ser especiais, precisavam
superar tudo que já havia existido.
Era difícil imaginar como elas superariam isso, ela pensou, enquanto emergia das árvores e virava num campo de girassóis que se preparavam para florescer. Ela se
apressou um pouco ao percorrer seu caminho pela margem, o-nariz franzindo com o aromático perfume da vegetação. Não havia nada que ela desejasse mudar naquele lugar,
nenhum defeito que pudesse encontrar nos jardins e nas árvores frutíferas que rodeavam a varanda e a piscina. A vista do Val d'Eisa era deslumbrante, com as cidadezinhas
de Volterra e San Gimignano no horizonte distante.
E havia o bônus adicional da culinária de Grazia. Quando elas descobriram que a "chef local" descrita no site da Internet era a esposa do criador de porcos que vivia
ali perto, desistiram de chamá-la até a villa para preparar uma refeição tipicamente toscana. Na tarde do terceiro dia, no entanto, todas estavam incomodadas demais
com o calor para se dar ao trabalho de cozinhar; então, chamaram Grazia. O marido, Maurizio, a levou até a villa
num Fiat Panda caindo aos pedaços, que parecia se manter inteiro à custa de barbantes e fé. Ele descarregou caixas de comida cobertas de musselina. Num inglês macarrônico,
Grazia as expulsou da cozinha e mandou que fossem relaxar na varanda com um drinque.
A comida foi uma revelação: salames com frutas secas e prosciutto feito dos raros porcos Cinta di Siena que Maurizio criava, combinados com figos perfumados colhidos
em seu pomar; espaguete ao pesto de estragão e manjericão; codornas assadas com os vegetais cultivados por Maurizio e tiras compridas de batata temperadas com alecrim
e alho; queijos produzidos em fazendas da região e, finalmente, um delicioso bolo de amêndoas embebido com limoncello.
As mulheres nunca mais cozinharam.
A culinária de Grazia fez com que as corridas matinais de Bel se tornassem ainda mais necessárias. Ao aproximar-se dos quarenta, ela lutava cada vez mais para manter
o que pensava ser seu peso ideal. Naquela manhã, seu estômago ainda parecia uma bola rígida, após as suaves e deliciosas berinjelas alia parmigiana que a haviam
tentado a repetir generosamente o prato. Iria correr um pouco mais longe do que o normal, decidiu. Em vez de fazer o circuito do campo de girassóis e subir de volta
à villa, tomaria uma trilha que ia da extremidade mais distante e cruzava o terreno coberto de vegetação de uma casa colonica em ruínas, que ela avistara ao passar
de carro. Desde que vira a casa, na primeira manhã, tinha alimentado a fantasia de comprar a ruína e transformá-la no melhor dos refúgios toscanos, com direito
a piscina e jardim de oliveiras. E, é claro, com Grazia à disposição para cozinhar. Bel não tinha muitos escrúpulos com relação à invasão de propriedades, em fantasia
ou na realidade.
Mas ela se conhecia o suficiente para saber que aquilo nunca passaria de um sonho. Ser proprietária de um refúgio implicava o desejo, que ela não tinha, de abandonar
seu universo de trabalho. Talvez, quando estivesse pronta para se aposentar, pudesse considerar a possibilidade de devotar-se a um projeto de restauração como aquele.
A não ser pelo fato de admitir que esse era outro sonho pouco realista. Jornalistas jamais se aposentavam de verdade. Sempre havia outra história no horizonte, outro
alvo a perseguir. Sem falar do horror de ser esquecido. Todos motivos pelos quais seus relacionamentos passados não haviam durado, todos motivos pelos quais seu
futuro provavelmente reservasse as mesmas imperfeições. Ainda assim,
seria divertido dar uma olhada mais de perto na velha casa para ver seu estado. Quando mencionara a ideia a Grazia, ela fizera uma careta e a chamara de rovina.
Bel, cujo italiano era fluente, havia traduzido para as demais: "ruína". Hora de descobrir se Grazia estava dizendo a verdade ou apenas tentando desviar o interesse
de algumas ricaças inglesas.
O caminho através da grama alta ainda estava surpreendentemente limpo, o solo nu endurecido por anos de pisadas. Bel aproveitou a oportunidade para ir mais rápido,
até diminuir a velocidade ao chegar ao pátio fechado por portões, em frente à velha fazenda. Os portões estavam dilapidados, pendendo frouxamente das dobradiças
que mal se apegavam aos pilares de pedra. Uma corrente pesada e um cadeado os mantinham fechados. Mais além, o pavimento quebrado do pátio estava demarcado por tufos
rasteiros de tomilho, camomila e mato. Bel sacudiu os portões sem muita esperança. Mas foi o suficiente para revelar que o canto inferior do portão direito havia
se soltado completamente do suporte. Poderia ser facilmente afastado para que um adulto passasse pela abertura. Bel deslizou por ali e soltou o portão, que rangeu
suavemente ao voltar para sua posição de origem, aparentemente fechado.
De perto, ela pôde entender a descrição de Grazia. Qualquer um que assumisse a restauração ficaria escravo dos pedreiros por um longo, longo tempo. A casa rodeava
o pátio em três lados, uma ala central delimitada por dois braços iguais. Havia dois andares, com uma varanda percorrendo todo o segundo andar, na qual se abriam
portas e janelas, conferindo aos quartos fácil acesso ao ar livre e ao espaço de uso comum. Mas o chão da varanda havia cedido, as portas que restavam estavam tortas
e as vergas sobre as janelas estavam rachadas, pendendo em ângulos estranhos. As vidraças, em ambos os andares, estavam imundas, rachadas ou haviam desaparecido.
Mas as linhas sólidas da atraente arquitetura local ainda eram visíveis, e as pedras ásperas brilhavam calorosamente ao sol da manhã.
Bel não teria conseguido explicar por que, mas a casa a atraía. Tinha o charme desgastado de uma beldade suficientemente segura de si para permitir-se envelhecer
sem luta. Buganvílias sem poda estendiam-se sobre o estuque ocre descascado e cobriam a parede inferior da varanda. Se ninguém decidisse se apaixonar logo pela casa,
muito em breve ela estaria tomada pela vegetação. Em algumas gerações, não seria nada além de um
aterro inexplicável na ladeira da colina. Mas, naquele instante, ela ainda tinha o poder de enfeitiçar.
Bel atravessou o pátio que se esfarelava, passando por vasos de terracota rachados e tombados; as ervas que estes um dia haviam contido agora se espalhavam e brotavam
livremente, condimentando o ar com suas fragrâncias. Ela empurrou uma porta pesada, feita de tábuas de madeira que pendiam de uma única dobradiça. A madeira raspou
ruidosamente contra o piso desnivelado, de tijolos assentados em ziguezague, mas se abriu o suficiente para que Bel entrasse na sala ampla sem ter de se espremer.
Sua primeira impressão foi de sujeira e abandono. Teias de aranha se entrelaçavam num emaranhado que ia de parede a parede. As janelas estavam manchadas de poeira.
Um ruído de algo rastejando, a distância, fez com que Bel olhasse em volta, em pânico. Ela não tinha medo dos editores de jornais, mas ratos de quatro patas a enchiam
de repulsa.
Conforme ia se acostumando à obscuridade, Bel percebeu que a sala não estava completamente vazia. Havia uma mesa comprida contra uma parede. No lado oposto, um sofá
com o assento afundado. A julgar pelo resto do lugar, deveria estar podre e imundo, mas o tecido vermelho-escuro que o forrava ainda se mantinha relativamente limpo.
Ela arquivou aquele dado estranho para posterior consideração.
Bel hesitou por um instante. Tinha certeza de que nenhuma de suas amigas a encorajaria a prosseguir na exploração daquela estranha casa deserta. Mas ela havia construído
sua carreira com base em uma reputação de audácia. Só ela sabia com que frequência sua aparência ocultava níveis de ansiedade e incerteza que a haviam feito vomitar
em sarjetas e banheiros nos lugares mais estranhos. Depois de tudo que ela já havia enfrentado, em sua determinação de conseguir uma boa história, até que ponto
uma ruína deserta poderia ser assustadora?
Uma porta na extremidade mais distante conduzia a um corredor apertado, com uma escadaria gasta de pedra que levava à varanda. Mais à frente, ela podia ver outra
sala escura e suja. Espiou lá dentro, surpresa em ver um varal pendurado a um canto, com meia dúzia de cabides de metal. Pendurado em um dos cabides, havia um cachecol
de tricô. Por baixo, uma pilha amarrotada de roupa de camuflagem. Parecia uma daquelas jaquetas de caça, geralmente à venda na caminhonete que ficava no estacionamento
em frente ao café, na estrada principal de Colle di Val d'Eisa. As mulheres tinham rido daquilo uns dias atrás, se perguntando quando é que tinha virado moda os
italianos de todas as idades vestirem-se como recém-saídos do serviço militar nos Bálcãs. Estranho, ela pensou. Bel subiu cautelosamente as escadas até a varanda,
esperando encontrar a mesma sensação de lugar havia muito desabitado.
Porém, assim que emergiu da escadaria, percebeu que penetrara em algo muito diferente. Quando se virou para a esquerda e espiou pela primeira porta, entendeu que
aquela casa não era o que parecia. O bolor úmido do andar térreo era infinitamente menor ali, e o ar estava quase tão fresco quanto lá fora. O cômodo havia, obviamente,
sido um quarto, e não fazia muito tempo. Havia um colchão no chão com uma colcha atirada casualmente por cima, da metade para os pés. Estava empoeirado, mas não
havia nada comparável à sujeira impregnada do andar de baixo. De novo, havia um varal no canto. Tinha uma dúzia de cabides vazios, mas os últimos três seguravam
camisas levemente amarrotadas. Mesmo a distância, ela podia ver que não estavam em seu melhor estado, desbotadas nas mangas e nos colarinhos.
Um par de caixotes de tomate funcionava como criados-mudos. Sobre um deles, um toco de vela num pires. Uma edição amarelada do jornal Frankfurter AUgemeine Zeitung
jazia no chão, ao lado do colchão. Bel o apanhou, notando que a data era de menos de quatro meses atrás. Teve então uma ideia de quando o lugar havia sido abandonado
pela última vez. Ela ergueu a manga de uma das camisas e a pressionou contra o nariz. Alecrim e maconha. Suave, mas inconfundível.
Voltou para a varanda e verificou os demais quartos. O padrão era semelhante. Mais três quartos contendo uma porção de restos: algumas camisetas, livros e revistas
em inglês, italiano e alemão, meia garrafa de vinho, um resto de batom, uma sandália de couro cuja sola havia se soltado da parte de cima - o tipo de coisa que alguém
deixaria para trás, caso estivesse se mudando sem a mínima ideia de quem viria em seguida. Em um dos quartos, um buquê de flores enfiado num pote de azeitonas havia
secado a ponto de se desfazer.
O último quarto no lado oeste era o maior, até agora. Suas janelas haviam sido limpas mais recentemente do que as dos outros, as persianas
tinham sido reformadas e as paredes, caiadas. No meio do quarto, no chão, havia uma tela de silk-screen. Sobre mesas de cavaletes, encostadas numa parede, havia
copos plásticos manchados com pigmentos ressecados e pincéis endurecidos de forma negligente. Manchas e borrões espalhados marcavam o piso. Bel estava intrigada,
sua curiosidade superava qualquer vestígio de nervosismo por estar sozinha naquele lugar tão peculiar. Quem quer que houvesse estado ali, devia ter partido apressadamente.
Deixar uma sólida tela de silk-screen para trás não era algo que se fizesse, numa partida planejada.
Ela retornou à varanda e dirigiu-se à ala oposta. Teve o cuidado de permanecer próximo à parede, não confiando que o piso ondulado de tijolos suportasse seu peso.
Passou pelas portas dos quartos, sentindo-se como uma intrusa no Mary Celeste*. Um silêncio que não era quebrado nem mesmo por cantos de pássaros acentuava aquela
impressão. O último cômodo antes do canto era um banheiro cuja mescla nauseante de odores ainda pairava no ar. Um rolo de mangueira estava no chão, uma das extremidades
desaparecia através de um buraco perto da janela. Eles haviam, portanto, improvisado um pouco de água corrente, embora não o suficiente para deixar o vaso sanitário
menos asqueroso. Ela franziu o nariz e retrocedeu.
Bel virou a esquina da varanda no instante em que o sol se elevava acima das árvores, banhando-a num repentino calor. Fez com que sua entrada no último quarto fosse
ainda mais assustadora. Estremecendo com o ar úmido, ela se aventurou lá dentro. As persianas estavam bem fechadas, deixando o interior escuro demais para enxergar
qualquer coisa. Mas, conforme seus olhos se ajustaram, ela obteve uma impressão do quarto. Tinha as mesmas dimensões do estúdio, mas sua função era bem diferente.
Ela o atravessou até a janela mais próxima e forçou até finalmente abrir a persiana pela metade. Era o suficiente para confirmar sua primeira impressão. Aquele havia
sido o centro da ocupação da casa rovina. Havia um velho fogão desgastado, conectado a um botijão de gás, ao lado da pia de pedra. A mesa de jantar estava arranhada
e era de madeira nua, porém sólida, e com pernas lindamente esculpidas. Havia sete cadeiras díspares ao redor, e uma oitava encontrava-se tombada, a alguns metros
de distância. Contra as
* Barco encontrado à deriva, em 1872, no estreito de Gibraltar, cuja tripulação desapareceu. (N.E.)
paredes, uma cadeira de balanço e alguns sofás. Peças avulsas de louça e talheres estavam espalhadas, como se os moradores não se tivessem dado ao trabalho de recolhê-las
de onde haviam deixado.
Quando Bel se afastou da janela, uma mesa bamba chamou sua atenção. Como estava atrás da porta, era fácil não percebê-la. Uma coleção do que pareciam ser pôsteres
se espalhava sobre ela. Fascinada, ela foi em direção à mesa. Dois passos e parou, sua respiração ofegante ecoava no ar poeirento.
Diante dela, no piso de pedra calcária, havia uma mancha irregular, de talvez noventa por quarenta e cinco centímetros. Marrom-ferrugem, bordas arredondadas e lisas,
como se houvesse escorrido e empoçado, em vez de espirrado. Era densa o bastante para obscurecer o piso de pedra sob ela. Uma porção, na extremidade mais distante,
parecia borrada e diluída, como se alguém houvesse tentado limpar, esfregando-a, para logo desistir. Bel já havia feito coberturas de histórias de violência doméstica
e de homicídio sexual o suficiente para reconhecer uma mancha de sangue relevante quando a via.
Assustada, deu um passo atrás, sentia-se tonta, o coração batia com tanta força que achou que fosse sufocá-la. Que diabos havia acontecido ali? Ela olhou em volta
de forma desordenada, percebendo outras manchas escuras marcando o piso além da mesa. Hora de sair daqui, gritava a parte sensata de sua mente. Mas o demônio da
curiosidade sussurrava em seu ouvido. Há meses não há ninguém aqui. Olhe para a poeira. Já faz tempo que se foram. Não vão voltar num futuro próximo. Seja o que
for que tenha acontecido aqui, foi motivo suficiente para que dessem o fora. Dê uma olhada nos pôsteres...
Bel rodeou a mancha, passando o mais longe possível para não tocar em nenhum móvel. De repente, ela sentiu o ar pesado. Sabia que era só imaginação, mas, ainda assim,
parecia real. De costas para o quarto e com o rosto voltado para a porta, ela foi andando de lado até a mesa e olhou para baixo, para os pôsteres que a cobriam.
O segundo choque foi quase tão forte quanto o primeiro.
Bel sabia que estava correndo rápido demais morro acima, mas não podia diminuir o passo. Podia sentir o suor da mão cobrir o papel de boa qualidade do pôster enrolado.
Por fim, a trilha emergiu do meio das árvores e ficou menos traiçoeira, ao aproximar-se de sua villa de férias. A estrada descia
quase imperceptivelmente, mas a gravidade era suficiente para dar a suas pernas cansadas um impulso extra, e ela ainda ia rápido ao virar a curva da casa e encontrar
Lisa Martyn deitada à sombra, no terraço, em uma espreguiçadeira e com a edição de sexta-feira do Guardian como companhia. Bel ficou aliviada. Precisava falar com
alguém e, de todas as suas companheiras, era menos provável que Lisa transformasse suas revelações em fofocas da hora do jantar. Lisa, como advogada de direitos
humanos, cuja compaixão e feminismo pareciam tão inevitáveis quanto o ato de respirar, entenderia o potencial da descoberta que Bel pensava ter feito. Assim como
seu direito de lidar com aquilo do jeito que achasse melhor.
Lisa afastou lentamente os olhos do jornal, perturbada pelo arfar incomum da respiração de Bel.
- Meu Deus - ela disse. - Você parece a ponto de infartar.
Bel colocou o pôster numa cadeira e se curvou, as mãos apoiadas nos joelhos, puxando o ar para dentro dos pulmões, arrependida dos cigarros surrupiados em segredo.
- Ficarei... bem... num minuto.
Lisa se levantou desajeitadamente da espreguiçadeira e correu até a cozinha, voltando com uma toalha e uma garrafa de água. Bel se empertigou, pegou a água e derramou
metade sobre a cabeça, fungando ao inalar um pouco acidentalmente. Então, esfregou a cabeça com a toalha e se deixou cair numa cadeira. Tomou um gole comprido de
água enquanto Lisa voltava para a espreguiçadeira.
- O que aconteceu? - Lisa perguntou. - Você é a corredora mais digna que eu conheço. Nunca vi uma Bel sem fôlego na vida. O que foi que a deixou neste estado?
- Encontrei uma coisa - Bel disse. Seu peito ainda lutava, mas ela conseguiu emitir alguns sopros de fala. - Pelo menos, acho que encontrei. E se estiver
certa, será a história da minha carreira. - Ela estendeu a mão para apanhar o pôster. - Espero que você possa me dizer se perdi completamente a cabeça.
Intrigada, Lisa jogou o jornal no chão e se endireitou.
- Então, o que é... essa coisa que pode ser alguma coisa?
Bel desenrolou o papel grosso, prendendo-o nos cantos com um moedor de pimenta, uma caneca de café e dois cinzeiros sujos. A imagem na folha
A3 era impressionante. Havia sido desenhada para que parecesse uma simples xilogravura em preto e branco, no estilo impressionista alemão. No alto da página, um
homem barbado, com um topete de cabelo duro, se inclinava por cima de uma tela, e suas mãos seguravam cruzes de madeira, das quais pendiam três marionetes. Mas não
eram marionetes comuns. Uma era um esqueleto, a segunda era um bode, e a terceira, uma representação da Morte, com o manto encapuzado e a foice. Havia algo indiscutivelmente
sinistro na imagem. Abaixo, contornada por uma borda negra funesta, havia uma área em branco, de aproximadamente oito centímetros de profundidade. Era o tipo de
espaço onde se poderia colocar um aviso anunciando uma apresentação teatral.
- Puta que me pariu! - disse Lisa. Finalmente, ela ergueu os olhos. - Catriona Maclennan Grant - ela disse. Havia espanto em sua voz. - Bel... onde diabos
você encontrou isto?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Bel sorriu.
- Antes de responder a isso, quero deixar algumas coisas claras.
Susan Charleson revirou os olhos.
- Você não pode estar achando que é a primeira pessoa que passa por esta porta com uma cópia falsificada do pôster de resgate. Vou lhe dizer o mesmo que disse
a todos os outros. A recompensa está condicionada à localização do neto de Sir Broderick vivo, ou à demonstração, de forma conclusiva, de que ele esteja morto. Sem
falar em levar os assassinos de Catriona Maclennan Grant à Justiça.
- Você não está me entendendo - Bel disse, com um sorriso provocador, mas sem ceder um só milímetro. - Srta. Charleson, não estou nem um pouco interessada
no dinheiro de Sir Broderick. Mas tenho uma condição.
- Você está cometendo um erro. - A voz de Susan Charleson havia adquirido um toque ácido. - Este assunto é um caso policial. Você não está em posição de impor
condições.
Bel colocou a mão firmemente sobre o pôster.
- Posso sair agora mesmo por aquela porta com este pôster e esquecer que o vi. Não teria qualquer dificuldade em mentir para a polícia. Sou uma
jornalista, afinal. - Ela estava começando a se divertir muito mais do que havia previsto. - É a sua palavra contra a minha, Srta. Charleson. E eu sei que você não
quer que eu vá embora. Uma das habilidades que um jornalista bem-sucedido deve aprender é como ler as pessoas. E vi a forma como você reagiu ao olhar para isto.
Você sabe que é verdadeiro, e não uma cópia falsificada.
- Você tem uma postura bem agressiva - Susan Charleson parecia quase indiferente.
- Prefiro dizer que sou assertiva. Não vim aqui para discutir com você, Srta. Charleson. Quero ajudar. Mas não de graça. Pela minha experiência, os ricos
não dão valor a nada daquilo por que não tenham de pagar.
- Você disse que não estava interessada em dinheiro.
- É verdade. Não estou. No entanto, estou interessada em reputação. E a minha reputação está construída sobre o fato de não ser, simplesmente, a primeira
a aparecer com a história, mas em obter a história por trás da história. Acho que existem áreas em que posso ajudar a desvendar isso com mais eficácia do que os
canais oficiais. Tenho certeza de que você irá concordar, quando eu explicar de onde veio este pôster. Tudo o que peço é que você não me impeça de investigar o caso.
E, além disso, que você e seu chefe cooperem compartilhando informações sobre o que estava acontecendo na época em que Catriona foi sequestrada.
- Esse é um pedido bastante significativo. Sir Broderick não é um homem que aceite abrir mão facilmente de sua privacidade. Você há de convir que não tenho
autoridade para lhe garantir o que está pedindo.
Bel ergueu um ombro delicadamente.
- Então, podemos nos encontrar novamente quando você tiver uma resposta. - Ela deslizou o pôster pela mesa, abrindo a pasta para guardá-lo novamente.
Susan Charleson se levantou.
- Se você puder me dar alguns minutos, pode ser que eu consiga lhe dar uma resposta agora.
Bel soube, neste ponto, que havia ganhado. Susan Charleson queria demais aquilo. Ela convenceria o chefe a aceitar o acordo. Fazia anos que Bel não se sentia tão
excitada. Não significava simplesmente uma enxurrada de notícias e colunas jornalísticas, embora não houvesse um só jornal no
mundo que não fosse ficar interessado. Principalmente depois do caso Madeleine McCain. Com acesso ao misterioso Brodie Grant, mais a chance de descobrir o paradeiro
de seu neto, aquilo era um best-seller em potencial. O A Sangue Frio do novo milênio. Seria sua porta de entrada para o mundo do dinheiro fácil.
Bel sorriu. Talvez ela pudesse usar os ganhos na compra da casa ravina e assim completar o círculo. Era difícil imaginar algo mais perfeito.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Já fazia alguns anos desde a última vez que Karen tomara a estrada de mão única que conduzia a Newton of Wemyss. Mas era óbvio que o vilarejo tinha passado pelas
mesmas transformações que as vilas vizinhas, que margeavam a estrada principal. Aqueles que trabalhavam nas cidades próximas tinham atacado avidamente as quatro
vilas de Wemyss, enxergando possíveis casas rústicas no que um dia foram tristes casebres de mineiros. Cabanas de um quarto tinham sido demolidas para que se construíssem
amplas casas de campo, quintais transformados por estufas de plantas que enchiam de luz as cozinhas obscuras. Vilarejos que tinham fenecido e morrido após o desastre
na mina Michael, em 1967, e devido aos fechamentos que se seguiram à greve de 1984, haviam renascido como cidades-dormitório, cuja ideia de comunidade se restringia
às noites de jogos no pub local. Nas lojinhas da vila se podia comprar uma vela perfumada, mas não um litro de leite. A única forma de saber que já houvera uma comunidade
mineira ali era através de uma maquete do sistema de elevador do poço da mina, que se erguia sobre o ponto em que a ferrovia particular a vapor havia, no passado,
cruzado com a estrada principal, carregada com vagões abertos de carvão destinados ao fim da linha, em Thomton Junction. Agora, as casas caiadas dos mineiros pareciam
uma opção deliberada do arquiteto, como uma vila típica deveria parecer. O passado tinha sido superado por um presente de design.
Desde sua última visita, Newton of Wemyss havia melhorado muito. O modesto memorial de guerra ficava num triângulo de grama aparada no centro. Floreiros de madeira
o circulavam a intervalos perfeitos. Imaculadas casas de campo térreas bordejavam o parque da cidade, e a única exceção à baixa linha de construção era o imponente
volume do pub local, o Laird
o' Wemyss. Antigamente, havia sido propriedade coletiva da comunidade local sob o sistema Gothenburg*, mas os tempos difíceis nos anos oitenta o haviam obrigado
a fechar as portas. Agora, era um restaurante, e sua "cozinha de fusão escocesa" era capaz de atrair à cidade visitantes de lugares tão remotos quanto Dundee e Edimburgo,
e seus preços se elevavam bem acima do orçamento. Ela se perguntou quanto Mick Prentice teria de se deslocar para uma simples cerveja, se houvesse permanecido em
Newton.
Consultou as orientações que havia imprimido do site Mapquest e indicou uma estrada no ápice do triângulo a seu motorista, o detetive Jason "Novo em Folha" Murray.
- Você tem que descer esta rua aqui - ela disse. - Em direção ao mar. Onde ficava a mina.
Logo deixaram o centro da vila para trás. Arbustos desgrenhados bordejavam um exuberante campo de trigo verde à direita.
- Toda essa chuva, está fazendo tudo crescer de forma desenfreada - disse o Novo em Folha. Ele levara os 25 minutos do escritório até ali para produzir aquele
comentário.
Karen não estava interessada em conversar sobre o clima. O que havia para dizer? Tinha chovido o maldito verão inteiro, até agora. Só porque não estava chovendo
naquele exato instante, não significava que não choveria no fim do dia. Ela olhou à sua esquerda, onde os prédios da mina de carvão haviam estado. Tinha uma vaga
lembrança de haver escritórios, banheiros e uma cantina. Agora, tudo se reduzia ao alicerce de concreto, com o mato abrindo caminho entre as rachaduras irregulares
para reivindicar o terreno. Mais adiante, havia uma série de casebres intactos dos mineiros; oito casas deterioradas, no meio do nada devido à demolição dos prédios
que um dia deram razão à sua existência. Além delas havia um denso grupo de sicômoros e faias, um compacto quebra-vento entre as casas e a borda do penhasco, que
descia nove metros até a faixa costeira.
- Era ali que ficava a Lady Charlotte - ela disse.
- Hã? - o Novo em Folha pareceu espantado.
- A mina, Jason.
- Ah. Certo. Claro. Não é do meu tempo. - Ele espiou pelo para-brisa, fazendo-a se perguntar, com certa irritação, se ele precisaria de óculos. - Qual é a
casa, chefe?
* Aplicava-se ao controle do consumo e da comercialização de bebidas alcoólicas. (N.E.)
Ela apontou para a penúltima. O Novo em Folha desviou o carro dos buracos com tanto cuidado quanto se fosse seu e parou no final da rua de Jenny Prentice.
Apesar do telefonema de Karen marcando o encontro, Jenny não teve pressa em abrir a porta, o que deu a eles tempo suficiente para examinar as lajotas de concreto
rachadas e a deprimente entrada de cascalhos cheia de mato.
- Se esta casa fosse minha... - começou o Novo em Folha e, então, abandonou o pensamento, como se fosse algo grande demais para considerar.
A mulher que atendeu à porta tinha o ar de alguém que passava seus dias deitada para que a vida pudesse pisoteá-la mais facilmente. Seu cabelo escorrido e grisalho
estava preso atrás com descuido, mechas escapando dos dois lados. A pele era enrugada, com veias irregulares mapeando as bochechas. Usava um jaleco de náilon que
vinha até o meio das coxas, por cima de uma calça preta barata cujo tecido estava repleto de bolinhas. O jaleco era de um tom de lavanda impossível de se encontrar
na natureza. Os pais de Karen ainda viviam em uma rua habitada por ex-mineiros e suas famílias, na ultrapassada cidade de Methil, mas até o mais desequilibrado de
seus vizinhos teria tido um pouco mais de trabalho com a aparência, ao saber que receberia uma visita oficial. Karen nem tentou não julgar Jenny Prentice pela aparência.
- Bom dia, Sra. Prentice - ela disse energicamente. - Sou a inspetora Pirie. Conversamos pelo telefone. Este é o detetive Murray.
Jenny balançou a cabeça e fungou.
- É melhor vocês entrarem.
A sala era apertada, mas limpa. Os móveis, assim como o carpete, estavam fora de moda, mas nem um pouco surrados. Era uma sala para ocasiões especiais, pensou Karen,
em uma vida na qual não havia muitas.
Jenny acenou para que eles se sentassem no sofá e se postou na beirada da poltrona, no lado oposto. Estava claro que não lhes ofereceria nada para beber.
- Então, vocês estão aqui por causa da nossa Misha. Pensei que tivessem mais o que fazer, com todas essas coisas horríveis que sempre leio nos jornais.
- Um marido e um pai desaparecido é algo bastante horrível, a senhora não acha? - disse Karen.
Os lábios de Jenny se apertaram, como se ela sentisse a queimação de uma azia.
- Depende do homem, inspetora. O tipo de cara com quem a senhora costuma se deparar no seu trabalho... não creio que muitas esposas e filhos se incomodem,
quando eles são levados embora.
- A senhora ficaria surpresa. A maioria das famílias fica inconsolável. E pelo menos elas sabem onde o homem delas está. Não precisam viver com a incerteza.
- Não pensei que estivesse vivendo com a incerteza. Achava que sabia muito bem onde Mick estava, até que a nossa Misha começasse a fuçar por aí tentando encontrá-lo.
Karen assentiu.
- A senhora achava que ele estivesse em Nottingham.
- Isso. Achava que ele tivesse ido furar greve. Para ser sincera, não fiquei muito chateada de vê-lo pelas costas. Mas fiquei furiosa por ele ter colocado
aquele rótulo na gente. Preferiria que ele estivesse morto a que fosse um fura-greve, se é o que você quer saber. - Ela apontou para Karen.
- Você fala com sotaque da região. Deve saber como é ficar marcada desse jeito.
Karen assentiu.
- Pior então é saber agora que parece que ele não furou greve nenhuma.
Jenny desviou o olhar.
- Não sei de nada disso. Tudo que sei é que ele não foi para Nottingham naquela noite com aquele grupo de fura-greves.
- Bem, estamos aqui para desvendar o que realmente aconteceu. Meu colega fará algumas anotações, apenas para garantir que eu me lembre direitinho de tudo
o que a senhora me disser. - O Novo em Folha, apressadamente, pegou o caderno, folheando-o com nervosismo. Talvez Phil estivesse certo a respeito das deficiências
dele, pensou Karen. - Agora, preciso do nome completo dele e sua data de nascimento.
- Michael James Prentice. Nascido em 20 de janeiro de 1955.
- E vocês todos moravam aqui na época? A senhora, Michael e Misha?
- Isso. Morei aqui durante toda a minha vida de casada. Nunca tive escolha quanto a isso.
- A senhora tem uma foto de Mick que possa nos dar? Sei que já faz muito tempo, mas poderia ser útil.
- Vocês podem colocar no computador e envelhecer, não podem? - Jenny foi até um aparador e abriu uma gaveta.
- Às vezes, é possível. - Mas caro demais, a não ser que houvesse um motivo mais urgente que a leucemia do seu neto.
Jenny pegou um álbum de couro preto e o trouxe até a poltrona. Quando o abriu, a capa rangeu. Mesmo de cabeça para baixo e do outro lado da sala, Karen podia ver
que era um álbum de casamento. Jenny rapidamente passou pelas fotos formais de casamento até chegar a um envelope na parte de trás, repleto de fotografias avulsas.
Pegou um maço de fotos e as examinou. Parou em algumas e, então, finalmente optou por uma. Entregou a Karen uma fotografia retangular. Mostrava a cabeça e os ombros
de dois jovens, sorrindo para a câmera, o topo dos copos de cerveja aparecendo na imagem ao brindarem o fotógrafo.
- Este é o Mick, à esquerda - disse Jenny. - O bonitão.
Ela não estava mentindo. Mick Prentice tinha cabelo louro-escuro despenteado, cortado mais ou menos como o mullet que George Michael ostentara em sua fase com o
Wham. Mick tinha olhos azuis, cílios ridiculamente longos e um sorriso perigoso. Uma tatuagem de carvão, em forma de foice, atravessava sua sobrancelha direita,
impedindo-o de parecer bonito demais. Karen podia ver exatamente por que Jenny Prentice havia se apaixonado pelo marido.
- Obrigada - ela disse. - Quem é o outro cara?
Um tufo áspero de cabelo castanho, rosto comprido e ossudo, algumas cicatrizes de acne esburacando as bochechas fundas, olhos vivos e um sorriso triangular, como
o do Coringa dos quadrinhos do Batman. Não era bonito como seu companheiro, mas, mesmo assim, havia algo de sedutor nele.
- Seu melhor amigo. Andy Kerr.
O melhor amigo que se matou, segundo Misha.
- Misha me contou que seu marido desapareceu na sexta-feira, 14 de dezembro de 1984. É essa sua lembrança?
- Isso mesmo. Ele saiu de manhã com suas malditas tintas e disse que voltaria para o jantar. Foi a última vez que o vi.
- Tintas? Ele estava fazendo trabalhos extras?
Jenny emitiu um som de desdém.
- Até parece. Bem que precisávamos do dinheiro. Que nada, Mick pintava aquarelas. Pode acreditar? Dá para imaginar uma coisa mais inútil durante a greve de
1984 do que um mineiro pintando aquarelas?
- Ele não poderia vendê-las? - intrometeu-se o Novo em Folha, inclinando-se para a frente e parecendo perspicaz.
- Para quem? Todo mundo aqui estava duro e não havia dinheiro para que ele se arriscasse a tentar ir vender em outro lugar. - Jenny indicou a parede atrás
deles. - Ele teria tido sorte se conseguisse algumas libras por peça.
Karen se virou e olhou para as três pinturas pobremente emolduradas na parede. West Wemyss, Macduff Castle e a Lady's Rock. A seus olhos leigos, as pinturas pareciam
vívidas e expressivas. Ela as teria levado para casa, embora não soubesse quanto estaria disposta a pagar pelo privilégio, nos idos de 1984.
- Como foi que ele começou com isso? - Karen perguntou, virando-se para Jenny.
- Ele fez um curso no Serviço Social dos Mineiros, no ano em que Misha nasceu. A professora disse que ele tinha jeito para aquilo. Acho que ela dizia a mesma
coisa para qualquer um que fosse bonitinho.
- Mas ele deu continuidade?
- Permitia a ele sair de casa. Ficar longe das fraldas sujas e do barulho.
A amargura parecia emanar de Jenny Prentice em ondas. Era curioso, embora animador, que parecesse não ter contaminado a filha. Talvez aquilo tivesse alguma coisa
a ver com o padrasto de quem ela havia falado. Karen lembrou a si mesma de perguntar sobre o outro homem da vida de Jenny, que também parecia fazer-se notar pela
ausência.
- Ele pintou muito, durante a greve?
- Todo dia ele saía com sua sacola e o cavalete. Se estivesse chovendo, ele descia às cavernas com seus companheiros da Sociedade de Preservação.
- A senhora se refere às cavernas de Wemyss?
Karen conhecia as cavernas que retrocediam a partir da costa, afundando-se nos penhascos de pedra calcária entre East Wemyss e Buckhaven. Ela havia brincado ali
algumas vezes, quando criança, inconsciente de sua
importância histórica como um dos principais sítios pictos. As crianças locais as haviam tratado como áreas de diversão, uma das razões pelas quais se havia estabelecido
a Sociedade de Preservação. Agora, havia grades fechando as seções mais profundas e perigosas da rede de salões das cavernas, e historiadores e arqueólogos amadores
as haviam preservado como parque de diversões para adultos.
- Mick estava envolvido com as cavernas?
- Mick estava envolvido em tudo. Ele jogava futebol, pintava seus quadros, fuçava nas cavernas, estava metido até os dentes no sindicato. Tudo e qualquer
coisa era mais importante do que passar tempo com sua família.
- Jenny cruzou uma perna por cima da outra e os braços sobre o peito. - Ele dizia que isso o mantinha mentalmente são durante a greve. Acho que simplesmente
o mantinha longe de suas responsabilidades.
Karen sabia que aquele era um solo fértil para suas investigações, mas podia se dar ao luxo de deixar para mais tarde. A raiva reprimida de Jenny permanecia após
vinte e dois anos. Não iria a lugar algum. Havia algo muito mais imediato que a interessava.
- Então, durante a greve, onde Mick conseguia dinheiro para as tintas? Não conheço muito de arte, porém sei que papel e tintas adequados custam uma grana.
Ela não podia imaginar um mineiro em greve gastando com materiais artísticos quando não havia dinheiro para comida nem aquecimento.
- Não quero deixar ninguém em apuros - ela disse.
Sei.
- Foi há vinte e dois anos - Karen disse sem rodeios. - Não estou interessada em contrabando em pequena escala da época da greve dos mineiros.
- Um dos professores de arte da escola secundária vivia lá em Coaltown. Era um carinha bem esquisito. Uma perna mais curta que a outra e corcunda. Mick costumava
limpar o jardim para ele. O cara o pagava com tintas. - Ela deu uma fungada. - Perguntei se ele não podia pagar com dinheiro ou comida. Mas parece que o cara estava
dando todo o seu salário para a ex-mulher. As tintas ele podia surrupiar da escola. - Ela cruzou novamente os braços. - De qualquer jeito, ele já morreu.
Karen tentou afastar a sua aversão pela mulher, tão diferente da filha que a havia seduzido a entrar no caso.
- Então, como estavam as coisas entre vocês antes de Mick desaparecer?
- Eu culpo a greve. Tudo bem, nós tínhamos nossos altos e baixos. Mas foi a greve que colocou uma barreira entre nós. E não sou a única mulher nesta parte
do mundo que diz isso.
Karen sabia que aquilo era verdade. Naquela época, as terríveis privações da greve haviam deixado suas marcas em praticamente todo casal que ela conhecia. A violência
doméstica havia irrompido nos lugares mais improváveis; os índices de suicídio aumentaram; casamentos haviam se despedaçado diante da pobreza implacável. Ela não
compreendera isso na época, mas agora sim.
- Pode ser. Mas cada um tem uma história diferente. Eu gostaria de ouvir a sua.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
- Volto para o jantar - disse Mick Prentice, pendurando a grande bolsa de pano atravessada no corpo e pegando o pacote estreito com o cavalete dobrado.
- Jantar? Que jantar? Não tem nada nesta casa para comer. Você precisa sair para arranjar comida para sua família, não para pintar o maldito mar pela enésima
vez -Jenny gritou, tentando obrigá-lo a parar a caminho da porta.
Ele se virou, o rosto magro contorcido pela vergonha e pela dor.
- Você acha que não sei disso? Você acha que somos os únicos? Você acha que se eu tivesse alguma ideia de como melhorar as coisas, eu não estaria fazendo?
Ninguém tem porra nenhuma de comida. Ninguém tem porra nenhuma de dinheiro. - Sua voz entalou na garganta como um soluço. Ele fechou os olhos e respirou fundo. -
Ontem à noite, lá no Serviço Social, Sam Thomson disse que falaram de uma entrega de comida, vinda da Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas. Se você
for até lá, parece que vai chegar às duas horas. - Estava tão frio na cozinha que suas palavras formavam uma nuvem diante dos lábios.
- Mais esmolas. Não consigo me lembrar da última vez que, de fato, escolhi o que iria preparar para o jantar. - Jenny, repentinamente, se
sentou em uma das cadeiras da cozinha. Ergueu os olhos para ele. - Será que algum dia vamos superar isso?
- Só temos que aguentar mais um pouco. Já chegamos até aqui. Podemos vencer. - Ele parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a ela.
- Eles estão voltando a trabalhar, Mick. O tempo todo, estão voltando. Deu no noticiário na outra noite. Mais de um quarto das minas voltou a funcionar. Seja
o que for que digam Arthur Scargill e o resto da diretoria do sindicato, não há forma de ganharmos. É só uma questão de quanto aquela vaca da Thatcher nos fará perder.
Ele balançou a cabeça com veemência.
- Não diga isso, Jenny. Só há alguns focos lá no sul em que os mineiros cederam. Aqui no norte, estamos firmes como rochas. Em Yorkshire também. E em Gales
do Sul. E nós somos quem realmente importa.
Suas palavras soaram vazias e não havia convicção em seu rosto. Todos eles, pensou ela, estavam derrotados. Apenas não sabiam quando cair ao chão.
- Se você diz... - ela murmurou, virando-se.
Esperou até ouvir a porta se fechar atrás dele e, então, levantou-se lentamente e vestiu o casaco. Apanhou uma bolsa de plástico resistente e deixou o frio congelante
da cozinha para sair para o frio úmido da manhã. Essa era sua rotina, atualmente. Levantar-se e levar Misha à escola. No portão da escola, a pequena receberia uma
maçã ou uma laranja, um saco de batatas fritas e um biscoito de chocolate da associação Amigos de Lady Charlotte, um grupo desorganizado de estudantes e funcionários
públicos de Kirkcaldy, que garantiam que nenhuma criança começasse o dia de estômago vazio. Pelo menos os dias úteis.
E então, voltava para casa. Eles já haviam desistido de tomar leite junto com o chá, quando tinham chá. Em algumas manhãs, uma xícara de água quente era tudo o que
Mick e Jenny tinham para começar o dia. Aquilo não havia acontecido com frequência, mas uma só vez já era suficiente para lembrar como era fácil cair no abismo.
Depois de uma bebida quente, Jenny geralmente ia com a sacola até o bosque e tentava catar lenha suficiente para garantir algumas horas de calor à noite. Entre os
membros executivos do sindicato, sempre os chamando de
"camaradas", e a coleta de lenha, ela se sentia uma camponesa da Sibéria. Pelo menos eles tinham a sorte de viver perto de uma fonte de combustível. Ela sabia que
era muito mais difícil para outras pessoas. Tiveram a sorte de manter a lareira, graças ao benefício do carvão barato para os mineiros.
Ela cumpria aquela tarefa de forma mecânica, sem prestar muita atenção aos arredores, relembrando a última discussão entre ela e Mick. Às vezes, parecia que era
só a dificuldade que os mantinha unidos, só a necessidade de calor que os mantinha na mesma cama. A greve tinha aproximado alguns casais, mas muitos outros haviam
se separado como uma tora de madeira sob o fio do machado, após os primeiros meses, quando suas reservas de dinheiro se esgotaram.
Não havia sido tão ruim no começo. Desde a última onda de greves nos anos setenta, os mineiros tinham ganhado bastante dinheiro. Eles eram os reis do movimento sindicalista:
bem remunerados, organizados e confiantes. Afinal, haviam derrubado o governo de Ted Heath, na época. Eram intocáveis. E tinham dinheiro para provar.
Alguns haviam gastado até o último centavo: férias no exterior em que podiam expor ao sol a pele branca como leite e as tatuagens de carvão, carros exuberantes com
rádios caros, casas novas que pareciam ótimas quando eles se mudaram, mas que começaram a se deteriorar quase que imediatamente. Mas a maioria deles, cautelosa devido
à história passada, havia guardado um pouco do dinheiro. O bastante para cobrir o aluguel ou a hipoteca, o bastante para alimentar a família e pagar as contas de
combustíveis durante alguns meses. Foi a velocidade com que aquelas parcas economias desapareceram que os deixou aterrorizados. No início, o sindicato pagara salários
decentes aos homens que se amontoassem em carros, vans e microônibus para se unir a piquetes móveis, nas minas em funcionamento, usinas e plantas de coqueificação.
Mas a polícia tornara-se cada vez mais opressora para garantir que os grevistas itinerantes nunca chegassem ao destino, e não havia muito entusiasmo em pagar homens
para não atingir os objetivos. Além disso, nesses dias, os líderes sindicais estavam ocupados demais tentando esconder seus milhões dos confiscadores do governo
para se importar em desperdiçar dinheiro numa briga que deviam saber que estava fadada ao fracasso. Portanto, até mesmo aquela pequena fonte de renda havia se esgotado,
e a única coisa que as comunidades mineiras tinham para engolir era seu orgulho.
Jenny já havia engolido muito do seu durante os últimos nove meses. Havia começado logo de cara, quando ela ouvira que os mineiros escoceses iriam apoiar a região
carbonífera de Yorkshire na convocação de uma greve nacional, não da boca de Mick, mas de Arthur Scargill, presidente do Sindicato Nacional dos Mineradores. Não
pessoalmente, claro. Apenas sua conversa mole no noticiário da TV. Em vez de voltar direto da reunião no Serviço Social dos Mineiros para lhe contar, Mick havia
ficado com Andy e os outros colegas do sindicato, bebendo no bar como se dinheiro não fosse problema. Comemorando com a forma consagrada no grito de batalha do Rei
Arthur: Mineiros unidos jamais serão vencidos.
Desde o começo, as esposas sabiam bem que tudo aquilo era inútil. Uma greve de carvão deve ser feita no começo do inverno, quando a procura, por parte das usinas
elétricas, está no auge. Não na primavera, quando todos começam a desligar a calefação. E quando se parte para uma intensa ação industrial contra uma vaca como Margaret
Thatcher, deve-se proteger a retaguarda. Devem-se cumprir as leis trabalhistas. Devem-se cumprir suas próprias regras. Estipula-se uma eleição nacional. Não se deve
confiar numa interpretação dúbia de uma resolução aprovada três anos antes para um propósito distinto. Ah, sim, as esposas souberam que não daria em nada. Mas haviam
ficado de boca fechada e, pela primeira vez na vida, haviam formado sua própria organização para apoiar seus homens. Lealdade - era isso que contava nas vilas e
nas comunidades mineradoras.
E, portanto, Mick e Jenny ainda estavam juntos. Jenny às vezes se perguntava se a única razão pela qual Mick ainda estava com ela e Misha era porque não tinha aonde
ir. Pais falecidos, nenhum irmão ou irmã, não havia nenhum refúgio óbvio para ele. Ela havia lhe perguntado, uma vez, e ele ficara imóvel como uma estátua, por um
momento. Então, caçoara dela, negando que quisesse ir embora, lembrando-a de que Andy sempre o acolheria em seu sítio, se ele quisesse se afastar. Portanto, não
havia motivo para que ela imaginasse que aquela sexta-feira seria diferente de qualquer outra.
Quinta-feira; 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Então, aquela não foi a primeira vez que ele saiu com suas tintas para passar o dia fora? - perguntou Karen. O que quer que estivesse passando
pela cabeça de Jenny Prentice, claramente era muito mais que os fatos básicos que ela estava entregando.
- Quatro ou cinco vezes por semana.
- E a senhora? O que fazia no resto do dia?
- Ia até o bosque buscar gravetos, então voltava e assistia ao noticiário na TV. Foi um dia bastante especial, aquela sexta-feira. O Rei Arthur estava no
tribunal por obstrução da polícia, na Batalha de Orgreave. O Band Aid* chegou ao topo da parada de sucesso. Te digo uma coisa, eu poderia cuspir na cara deles. Todo
aquele esforço para arrecadar dinheiro para crianças a milhares de quilômetros, enquanto havia crianças famintas bem na porta deles. Onde estavam Bono e Bob Geldof,
quando nossos filhos despertaram na manhã de Natal e não havia nada em suas meias?
- Deve ter sido duro de encarar - Karen comentou.
- Foi como um tapa na cara. Não havia nenhum glamour em ajudar os mineiros, havia? - Um sorrisinho amargo iluminou seu rosto. - Mas poderia ter sido pior.
Poderíamos ter sido obrigados a aturar aquele merda hipócrita do Sting. Sem falar naquele maldito alaúde dele.
- Isso é verdade. - Karen estava se divertindo, dava para ver. Rir da própria desgraça era uma constante naquelas comunidades mineradoras. - E então, o que
a senhora fez depois do noticiário?
- Desci até o Serviço Social. Mick tinha falado alguma coisa sobre uma distribuição de comida. Entrei na fila e voltei para casa com um pacote de macarrão,
uma lata de tomates e duas cebolas. E um pacote de sopa desidratada. Lembro que fiquei bastante satisfeita. Peguei Misha na escola e achei que decorar a casa para
o Natal poderia nos animar um pouco, então, foi isso que fizemos.
- Quando a senhora percebeu que já era tarde para que Mick voltasse para casa?
Jenny fez uma pausa, a mão remexendo num botão do jaleco.
- Naquela época do ano, fica escuro cedo. Geralmente, ele voltaria não muito depois de mim e Misha. Mas como ficamos montando os enfeites de Natal, não percebi
o tempo passar.
Ela estava mentindo, Karen pensou. Mas por quê? E sobre o quê?
* Grupo criado por Bob Geldof, em 1984, que reuniu os mais conhecidos artistas do Reino Unido com a finalidade de arrecadar fundos para combater a fome na
Etiópia. A música-tema era "Do they know it's Christmas" (N.T.)
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Jenny tinha sido uma das primeiras na fila do Serviço Social dos Mineradores e havia voltado rapidamente para casa com sua lamentável comida, determinada a cozinhar
uma panela de sopa para que tivessem alguma coisa saborosa para o jantar. Ela contornou o prédio dos banheiros da mina, notando que todas as casas dos vizinhos estavam
no escuro. Naqueles dias, ninguém deixava uma luz acesa acolhedora quando saía. Cada centavo contava, quando chegavam as contas de combustível.
Quando ela chegou ao portão de sua casa, quase morreu de susto. Uma figura indefinida saiu da escuridão, parecendo agigantar-se na sua imaginação. Ela emitiu um
ruído que era em parte ofego, em parte gemido.
- Jenny, Jenny, acalme-se. Sou eu. Tom. Tom Campbell. Me desculpe, não quis te assustar. - A figura tomou forma, e ela reconheceu o homenzarrão, próximo à
porta da frente.
- Cristo, Tom, você quase me matou de susto - ela reclamou, passando por ele e abrindo a porta. Ciente do frio assombroso na casa, ela seguiu até a cozinha.
Sem hesitação, encheu a panela de água e a colocou no fogão, o anel de gás emitia um pouco de calor. Então, ela se virou para encará-lo na penumbra da luz da tarde.
- Como você está?
Tom Campbell ergueu os grandes ombros e deu um sorriso desanimado.
- Mais ou menos - ele disse. - É irônico. A única vez na vida em que realmente preciso dos meus amigos e acontece esta greve.
- Pelo menos você tem a mim e a Mick - Jenny disse, indicando-lhe uma cadeira.
- Bem, tenho a você, de qualquer jeito. Não acho que esteja na lista de cartões de Natal do Mick, supondo que alguém envie cartões este ano. Não depois de
outubro. Ele não falou mais comigo, desde então.
- Isso passa - ela disse, sem um pingo de convicção.
Mick sempre tivera certas reservas no que se referia à extensão da amizade escolar entre Jenny e a esposa de Tom, Moira. As mulheres eram amigas desde sempre, e
Moira fora dama de honra no casamento de Jenny e Mick. Quando chegou a vez de retribuir o favor, Jenny estava grávida de Misha. Mick havia ressaltado que seu aumento
de peso era a desculpa perfeita para recusar o convite de Moira, já que o vestido de dama de honra
tinha de ser comprado com antecedência. Não era uma sugestão, e sim uma ordem. Isso porque embora Tom Campbell fosse, sem dúvida alguma, um homem decente, bem-apessoado
e honesto, ele não era mineiro. Verdade, ele trabalhava na Lady Charlotte. Descia até a mina no subsolo, naquela gaiola de revirar o estômago. Às vezes, até mesmo
sujava as mãos. Mas não era mineiro. Era um auxiliar de minas. Membro de um sindicato diferente. Um homem da administração, que estava ali para verificar o cumprimento
das regras de saúde e segurança, e que os rapazes fizessem o que deviam fazer. Os mineiros tinham um termo para se referir à parte mais fácil de qualquer tarefa:
"a parte do auxiliar". Parecia bastante inocente, mas num ambiente em que cada membro do grupo sabia que sua vida dependia dos colegas, aquilo expressava um desdém
enorme. E, portanto, Mick Prentice sempre tivera certa reserva no que se referia à sua relação com Tom Campbell.
Ele havia se ofendido com os convites para jantar em sua casa afastada em West Wemyss. Desconfiava dos convites de Tom para que fosse jogar futebol com ele. Tinha
até mesmo se ressentido das horas que Jenny passara ao lado da cama de Moira, durante sua morte pouco digna, porém rápida, de câncer, alguns anos atrás. E, quando
o sindicato de Tom havia hesitado e ficado indeciso com relação a se unir à greve, alguns meses antes, Mick se enfurecera como uma criança mimada, quando eles finalmente
se colocaram do lado dos patrões.
Jenny desconfiava que parte do motivo de sua raiva era a bondade que Tom havia lhes demonstrado desde que a greve começara a afetá-los. Ele criara o hábito de passar
por sua casa com presentinhos: uma sacola de maçãs, um saco de batatas, um brinquedo de pelúcia para Misha. Sempre vinham acompanhados de desculpas plausíveis: a
árvore do vizinho estava carregada, vieram mais batatas na sua porção do que ele iria precisar, um prêmio ganho na rifa do clube de boliche. Mick sempre reclamava
depois.
- Idiota condescendente - ele dizia.
- Ele está tentando ajudar sem nos envergonhar - Jenny respondia.
Tampouco era ruim o fato de que a presença de Tom sempre a fazia se lembrar de tempos mais felizes. De alguma forma, quando ele estava ali, ela tinha novamente a
sensação de novas possibilidades. Ela via a si mesma refletida em seus olhos, como se fosse uma mulher jovem, uma mulher que tinha ambições de uma vida diferente.
Então, embora soubesse que irritaria Mick, Jenny ficava feliz quando Tom se sentava em sua cozinha e conversava com ela.
Ele tirou um pacote meio mole, mas pesado, do bolso.
- Você aproveitaria uns gramas extras de toucinho? - ele disse, a sobrancelha se franzindo de ansiedade. - Minha cunhada trouxe da fazenda de sua família
na Irlanda. Mas é defumado, sabe, e eu não consigo comer toucinho defumado. Tenho aversão. Então pensei que, melhor do que jogar fora... - Ele o entregou a ela.
Jenny pegou o pacote sem hesitar um só segundo. Suspirou desanimada.
- Olhe só para mim. Meu coração disparou por causa de um pedaço de toucinho. Foi isso que Margaret Thatcher e Arthur Scargill conseguiram fazer com a gente.
- Ela balançou a cabeça. - Obrigada, Tom. Você é um bom homem.
Ele desviou o olhar, incerto do que falar ou fazer. Seus olhos se fixaram no relógio.
- Você não tem que ir buscar a menina? Me desculpe, nem me liguei na hora, quando estava te esperando. Só queria... - ele se levantou, o rosto enrubescido.
- Volto depois.
Ela ouviu suas botas tropeçarem no corredor e, então, o ruído do trinco. Jogou o toucinho sobre a pia e desligou o fogo da panela de água. Agora, seria uma sopa
diferente.
Moira sempre tinha sido a sortuda.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Os olhos de Jenny voltaram da distância e se fixaram em Karen.
- Imagino que fossem umas sete horas, quando percebi que Mick não havia voltado para casa. Eu estava furiosa, porque tinha conseguido um jantar razoável para
pôr na mesa. Então, coloquei a pequena na cama, pedi à vizinha para cuidar dela para que eu pudesse correr até o Serviço e ver se Mick estava lá. - Ela balançou
a cabeça, ainda surpresa após tantos anos.
- E, é claro, ele não estava.
- Alguém o havia visto?
- Aparentemente, não.
- A senhora deve ter ficado preocupada - disse Karen.
Jenny ergueu um ombro.
- Não muito. Como eu disse, nós não tínhamos nos despedido no melhor dos ânimos. Simplesmente pensei que ele tivesse ficado irritado e ido para a casa do
Andy.
- O cara da foto?
- Isso. Andy Kerr. Era funcionário do sindicato. Mas estava de licença médica do trabalho. Estresse, disseram. E estavam certos. Ele se matou um mês depois.
Sempre achei que o fato de Mick decidir furar a greve foi a última gota para Andy. Ele idolatrava Mick. Aquilo teria acabado com ele.
- Então foi lá que a senhora deduziu que ele estivesse? - Karen a provocou.
- Isso mesmo. Andy tinha um sítio no bosque, no meio do nada. Ele dizia que gostava da paz e do silêncio. Mick me levou lá uma vez. Me deu arrepios. Era como
a casa da bruxa de um dos contos de fada de Misha; não se via a casa até que, de repente, você dava de cara com ela, bem na sua frente. Eu é que não moraria lá.
- A senhora não podia ter telefonado para confirmar? - intrometeu-se o Novo em Folha. As duas mulheres olharam para ele com uma mistura de diversão e indulgência.
- Nosso telefone tinha sido cortado meses antes, filho - disse Jenny, trocando um olhar com Karen. - E isso foi muito antes dos celulares.
Naquele ponto, Karen já estava seca por uma xícara de chá, mas nem morta iria se colocar em dívida com Jenny Prentice. Ela pigarreou e prosseguiu:
- Quando foi que a senhora começou a se preocupar?
- Quando a menina me acordou de manhã e ele ainda não estava em casa. Ele nunca tinha feito isso. Não havia sido uma briga de verdade, na sexta-feira. Foram
só umas palavras ásperas. Já tínhamos tido piores, acredite. Quando vi que ele não estava ali de manhã, comecei realmente a pensar que havia alguma coisa terrivelmente
errada.
- O que a senhora fez?
- Dei comida a Misha, troquei sua roupa e a levei até a casa de Lauren, uma amiguinha dela. Daí, atravessei o bosque até a casa de Andy. Mas não havia ninguém
lá. Então, me lembrei que Mick dissera que talvez Andy subisse até as Highlands para passar uns dias, já que estava de licença. Afastar-se de tudo. Pôr a cabeça
no lugar. Então, é lógico que ele não estava lá. Nesse ponto eu já estava bastante assustada. E se houvesse acontecido um acidente? E se ele tivesse ficado doente?
A lembrança ainda tinha o poder de perturbar Jenny. Seus dedos cutucavam sem parar a barra do jaleco.
- Subi até o Serviço Social para ver os representantes do sindicato. Pensei que se alguém soubesse onde Mick estava, seriam eles. Ou que, pelo menos, eles
saberiam onde começar a procurar. - Ela olhou fixamente para o chão, as mãos entrelaçadas no colo. - Foi então que as coisas começaram a degringolar na minha vida.
Sábado, 15 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Mesmo pela manhã, sem a presença de pessoas para elevar a temperatura, o Instituto do Serviço Social dos Mineradores estava mais quente do que sua casa, notou Jenny
ao entrar. Não muito, mas o suficiente para ser perceptível. Não era algo que geralmente chamava sua atenção, mas hoje ela tentava pensar em qualquer coisa que não
fosse a ausência do marido. Parou por um momento, hesitante, no hall de entrada, tentando decidir aonde ir. Os escritórios do Sindicato Nacional dos Mineradores
ficavam no andar de cima, ela se lembrava vagamente; caminhou, portanto, até a escadaria extravagantemente esculpida. Chegando ao primeiro andar, tudo ficou mais
fácil. Era só seguir o burburinho das vozes e a fumaça de cigarro.
Mais adiante no corredor, havia uma porta entreaberta, de onde vinham o som e o cheiro. Jenny bateu nervosamente, e a sala ficou em silêncio. Por fim, uma voz cautelosa
disse:
- Entre.
Ela esgueirou-se pela porta como se fosse uma pedinte. A sala era tomada por uma mesa em forma de U coberta por um oleado axadrezado. Alguns homens estavam sentados
em torno dela, demonstrando níveis variados de desânimo. Jenny vacilou quando percebeu que o homem na ponta mais distante era alguém que ela reconhecia, mas que
não conhecia pessoalmente. Mick McGahey, ex-comunista, líder dos mineiros escoceses. O único homem, dizia-se, que podia enfrentar o Rei Arthur e fazer-se ouvir.
O homem que fora mantido deliberadamente longe do primeiro posto por seu antecessor. Se Jenny ganhasse uma libra cada vez que ouvia alguém dizer que tudo teria sido
muito diferente se McGahey estivesse no comando, sua família teria sido a mais bem alimentada e mais bem-vestida em Newton of Wemyss.
- Me desculpem - ela gaguejou. - Eu só queria dar uma palavrinha... - Seus olhos passearam pela sala, em dúvida sobre em qual dos homens que conhecia
seria melhor fixar a atenção.
- Tudo bem, Jenny - disse Ben Reekie. - Era só uma reuniãozinha. Já terminamos, não é, rapazes? - Houve um murmúrio descontente de assentimento. Mas Reekie,
o secretário local, era habilidoso em avaliar o andamento de uma reunião e fazer as coisas avançarem. - Então, Jenny, como podemos te ajudar?
Ela gostaria de ficar a sós com ele, mas não tinha coragem de pedir. As mulheres tinham aprendido muito no processo de apoiar seus homens, mas, cara a cara, sua
assertividade ainda tendia a se esvair. Mas tudo ficaria bem, ela disse a si mesma. Vivera nesse universo encasulado durante toda a vida adulta, um mundo que se
centrava na mina e na Associação, no qual não havia segredos e onde o sindicato era sua mãe e seu pai.
- Estou preocupada com Mick - ela disse. Não adiantava fazer rodeios. - Ele saiu ontem de manhã e não voltou. Eu estava pensando se, talvez...?
Reekie apoiou a testa nos dedos, esfregando-a com tanta força que deixou marcas alternadas em vermelho e branco no centro.
- Deus do céu - ele sibilou entre os dentes cerrados.
- E você espera que acreditemos que você não sabe onde ele está?
A acusação veio de Ezra Macafferty, o último sobrevivente na vila das greves dos mineiros e das greves patronais da década de vinte.
- É claro que não sei onde ele está. - A voz soou melancólica, mas um medo sombrio começara a espalhar seu gelo pelo peito dela. - Pensei que talvez ele tivesse
passado por aqui. Achei que alguém pudesse saber.
- Isso eleva o número a seis - disse McGahey. Ela reconheceu o tom grave e áspero de sua voz das entrevistas na TV e comícios ao ar livre. Era estranho estar
na mesma sala que ele.
- Não entendo - ela disse. - Seis o quê? O que está acontecendo? - Todos os olhos estavam voltados para ela, perfurando-a. Podia sentir seu desprezo, mas
não entendia o motivo. - Aconteceu alguma coisa com Mick? Um acidente?
- Aconteceu uma coisa, sim - disse McGahey. - Parece que o seu marido furou a greve e fugiu para Nottingham.
Suas palavras pareceram sugar todo o ar dos pulmões dela. Jenny parou de respirar, deixando que se formasse uma bolha ao seu redor para protegê-la. Não podia ser
verdade. Não o Mick. Muda, ela sacudiu a cabeça com força. As palavras começaram a penetrar a barreira, mas ainda não faziam sentido.
- Sabíamos de cinco... pensamos que haveria mais... sempre um traidor no grupo... decepcionados... sempre um do sindicato.
- Não - ela disse. - Ele não faria isso.
- De que outra forma você explica o fato de ele não estar aqui? - disse Reekie. - Foi você que veio até nós procurando por ele. Sabemos que uma van cheia
deles foi embora ontem à noite. E ao menos um deles é amigo do seu Mick. Onde mais ele poderia estar?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu não teria me sentido pior se eles tivessem me chamado de prostituta - disse Jenny. - Imagino que, aos olhos deles, era exatamente isso que eu era. Meu
marido fugindo da greve, não demoraria nada até que eu começasse a viver de forma imoral.
- A senhora nunca duvidou de que eles estivessem certos?
Jenny afastou o cabelo do rosto, removendo momentaneamente um pouco de sua idade e docilidade.
- Na verdade, não. Mick era amigo de Iain Maclean, um dos que foram para Nottingham. Isso eu não discutia. E não se esqueça de como era, naquela épóca. Os
homens controlavam o jogo, e o sindicato controlava os homens. Quando as mulheres quiseram participar da greve, a primeira batalha que tivemos que travar foi contra
o sindicato. Tivemos que implorar que nos deixassem entrar. Eles nos queriam onde sempre havíamos estado: no cômodo dos fundos, cuidando do fogão. Não ao lado da
fogueira, nas linhas de piquete. Mas embora tivéssemos conseguido formar a Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas, ainda conhecíamos bem nosso lugar.
Teríamos que ser muito fortes, ou muito burras, para tentar ir contra a corrente por aqui.
Não era a primeira vez que Karen ouvia uma versão daquela verdade. Ela se perguntou se teria feito diferente, na mesma situação. Era bom pensar
que teria ficado ao lado de seu homem com um pouco mais de firmeza. Mas, diante da hostilidade que Jenny Prentice devia ter enfrentado por parte da comunidade, Karen
achava que também teria cedido.
- Entendo - ela disse. - Mas agora que parece que, afinal, Mick pode não ter fugido da greve, a senhora tem alguma ideia do que pode ter acontecido com ele?
Jenny balançou a cabeça.
- Nenhuma? Ainda que eu não pudesse acreditar, a fuga fazia algum sentido. Então, nunca considerei outra possibilidade.
- A senhora acha que ele pode ter simplesmente se enchido? Simplesmente caiu fora?
Ela franziu a testa.
- Olha, isso não seria do feitio de Mick. Ir embora sem falar nada? Acho que não. Ele faria questão que eu soubesse que tinha sido por minha culpa. - Ela
soltou uma risada amarga.
- A senhora não acha que ele pode ter ido embora sem dizer nada como uma forma de fazer com que a senhora sofresse ainda mais?
Jenny levantou a cabeça.
- Isso é asqueroso demais - ela protestou. - Você o faz parecer um sádico. Ele não era um homem cruel, inspetora. Apenas insensível e egoísta, como todos
eles.
Karen fez uma pausa. Aquela era sempre a parte mais difícil, quando se entrevistava os parentes de um desaparecido.
- Ele havia discutido com alguém? Tinha algum inimigo, Sra. Prentice?
Jenny a olhou como se Karen tivesse, de repente, passado a falar grego.
- Inimigo? Tipo, alguém que quisesse matá-lo?
- Talvez não matá-lo. Apenas brigar com ele.
Dessa vez, a risada de Jenny tinha um calor genuíno.
- Meu Jesus, isso é engraçado, vindo de você. - Ela balançou a cabeça. - As únicas brigas físicas em que Mick se meteu, durante todos os anos em que estivemos
casados, foi com o seu pessoal. Nas linhas de piquete. Nas manifestações. Se ele tinha inimigos? Claro, os de uniforme azul. Mas aqui não é a América Latina e não
me lembro de ouvir falar de desaparecidos nas greves dos mineiros. Portanto, a resposta para sua pergunta é não, ele não tinha o tipo de inimigo com quem teria uma
briga séria.
Karen observou o carpete por um longo tempo. A violência exagerada da polícia, contra os grevistas, havia envenenado os relacionamentos nas comunidades por mais
de uma geração. Não importava que os piores transgressores viessem de forças externas, trazidos ali para aumentar os números, e a quem se pagavam quantias obscenas
de dinheiro para oprimir seus concidadãos de formas que a maioria das pessoas preferia nem saber. O resultado de sua ignorância e arrogância havia afetado a todos
os policiais, em todas as corporações das cidades mineradoras. Ainda afetava, pensou Karen. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
- Sinto muito - ela disse. - A forma como trataram os mineiros foi imperdoável. Prefiro pensar que não agiríamos dessa maneira hoje em dia, mas é provável
que esteja enganada. A senhora tem certeza de que não havia ninguém com quem ele houvesse se desentendido?
Jenny nem sequer parou para pensar.
- Não que eu soubesse. Ele não era encrenqueiro. Tinha seus princípios, mas não os usava para provocar brigas. Defendia aquilo em que acreditava, mas era
só de falar, não de partir para a briga.
- E se falar não adiantasse? Ele retrocederia?
- Não tenho certeza se entendi a pergunta.
Karen falou vagarosamente, tateando a ideia.
- Estou pensando se ele não topou com esse tal de Iain Maclean naquele dia e tentou convencê-lo a não ir para Nottingham. E se Iain se recusou a mudar de
ideia, e talvez tivesse seus amigos para apoiá-lo... Será que Mick entraria numa briga com eles?
Jenny balançou firmemente a cabeça.
- De jeito nenhum. Ele diria o que pensava e, se não adiantasse, se afastaria.
Karen se sentiu frustrada. Mesmo depois de tanto tempo, os casos arquivados geralmente ofereciam um ou dois fios soltos por onde começar. Mas, até agora, parecia
não haver nada ali. Uma última pergunta e, depois, ela iria embora.
- A senhora tem alguma ideia de aonde Mick pode ter ido para pintar naquele dia?
- Ele não disse. A única coisa que posso dizer é que, no inverno, ele geralmente seguia pelo litoral até East Wemyss. Assim, se começasse a
chover, ele poderia descer até as cavernas e se abrigar lá. Os caras do grupo de preservação tinham uma cabaninha no fundo de uma das cavernas, com um fogareiro
onde podiam fazer chá. Ele tinha as chaves, podia ficar à vontade - ela acrescentou, a acidez de volta à sua voz. - Mas não tenho ideia se ele esteve ali nesse dia
ou não. Ele poderia estar em qualquer lugar entre Dysart e Buckhaven. - Ela olhou para o relógio. - Isso é tudo que sei.
Karen se levantou.
- Agradeço muito por seu tempo, Sra. Prentice. Continuaremos fazendo nossas investigações e a manteremos informada.
Novo em Folha se levantou desajeitadamente e seguiu Karen e Jenny até a porta da frente.
- Não estou preocupada por mim, entende? - Jenny disse, quando eles estavam a meio caminho da rua. - Mas veja se você consegue encontrá-lo pelo bem da criança.
Aquele era, pensou Karen, o primeiro sinal de emoção que ela demonstrava durante toda a manhã.
- Pegue seu caderno - ela disse a Novo em Folha, quando entraram no carro. - Próximos passos. Falar com a vizinha. Ver se ela se lembra de alguma coisa sobre
o dia em que Mick Prentice desapareceu. Falar com alguém do grupo da caverna, ver quem ainda está lá desde 1984. Obter outra visão de como realmente era Mick Prentice.
Procurar nos arquivos alguma coisa a respeito desse Andy Kerr, funcionário do Sindicato dos Mineiros, que supostamente cometeu suicídio na época em que Mick desapareceu.
Como é essa história? E precisamos rastrear esses cinco fura-greves e pedir que a polícia fale com eles em Nottingham. - Ela abriu a porta do passageiro novamente,
enquanto Novo em Folha terminava de escrever. - E já que estamos aqui, vamos dar uma olhada nessa vizinha.
Ela mal se afastara dois passos do carro quando seu telefone tocou.
- Phil - ela disse.
Nenhuma piadinha, ele simplesmente foi direto aos fatos:
- Você precisa voltar aqui agora mesmo.
- Por quê?
- O Biscoito está furioso. Quer saber por que diabos você não está na sua mesa.
Simon Lees, subchefe de Polícia (Criminal), tinha um temperamento muito diferente do de Karen. Ela estava convencida de que, antes de dormir, ele lia o Código de
Polícia, Ordem Pública e Justiça Criminal de 2006 (da Escócia). Sabia que ele era casado e tinha dois filhos adolescentes, mas não fazia ideia de como aquilo podia
ter acontecido com um homem tão obsessivamente organizado. Era Lei de Murphy que, na primeira manhã, em meses, que ela estava fazendo algo fora das normas, o Biscoito
viesse procurá-la. Ele parecia acreditar que tinha o direito divino de saber o paradeiro de qualquer oficial sob seu comando, quer estivesse ou não de serviço. Karen
se perguntou o quão próximo de um derrame ele teria chegado ao descobrir que ela não estava ocupando a mesa onde esperava encontrá-la. Pelo jeito, não próximo o
bastante.
- O que você disse a ele?
- Disse que você estava numa reunião com a equipe de armazenamento de provas, discutindo uma forma de agilizar o procedimento de catalogação deles - disse
Phil. - Ele gostou da ideia, mas não do fato de que isto não estivesse registrado em sua lista eletrônica de compromissos.
- Estou a caminho - Karen disse, confundindo Novo em Folha ao entrar novamente no carro. - Ele disse por que estava me procurando?
- Para mim? Um mero sargento? Dá um tempo, Karen. Ele apenas disse que era "muito importante". Alguém provavelmente roubou os biscoitinhos digestivos dele.
Karen gesticulou impacientemente para Novo em Folha.
- Para casa, James, e não poupe os cavalos. - Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido, mas deu partida no carro e saiu dirigindo. - Estou indo - ela
disse. - Ponha a água para ferver.
Glenrothes
A dupla hélice de frustração e irritação se retorceu nas entranhas de Simon Lees. Ele se mexeu na cadeira e rearrumou as fotos da família sobre a mesa. Qual era
o problema dessa gente? Quando fora procurar a inspetora Pirie e não a encontrara onde deveria estar, o sargento Parhatka agira como se aquilo estivesse perfeitamente
bem. Havia algo fundamentalmente indiferente nos detetives de Fife. Ele havia percebido aquilo dias após ter chegado de Glasgow. Surpreendia-se que eles houvessem
conseguido colocar
alguém atrás das grades, antes que ele chegasse com seus métodos analíticos, suas investigações eficientes, análises sofisticadas de vínculos criminais e o inevitável
aumento nos níveis de detecção.
O que o irritava ainda mais era o fato de que eles pareciam não ter qualquer gratidão pelos métodos modernos que ele trouxera para o trabalho. Ele até mesmo suspeitava
que riam dele. Seu apelido, por exemplo. Todo mundo no prédio parecia ter um apelido, a maioria deles podendo ser interpretados como levemente carinhosos. Mas não
ele. Logo descobrira que fora apelidado de Biscoito, porque compartilhava o sobrenome com uma fábrica de doces; seu produto mais famoso ficara conhecido devido a
um antiquíssimo jingle de propaganda, cujo racismo brincalhão causaria tumulto nas ruas se fosse veiculado na Escócia do século XXI. Ele culpava Karen Pirie; não
era coincidência que o apelido houvesse surgido após seu primeiro desentendimento com ela. Algo que se tornaria comum na maioria de seus encontros. Ele não tinha
certeza de como acontecia, mas ela sempre parecia confundi-lo.
Lees ainda se ressentia com aquela primeira lembrança. Mal havia chegado, já começara a dar as ordens, promovendo uma série de treinamentos. Não os de praxe, numa
postura machista, nem a tediosa revisão das regras de comportamento, mas abordagens originais de temas referentes ao policiamento moderno. A primeira leva de oficiais
tinha se reunido na sala de treinamento e Lees dera início a seu prólogo, explicando como eles passariam o dia desenvolvendo estratégias para o policiamento em uma
sociedade multicultural. Seus espectadores pareceram rebeldes, e Karen Pirie liderara o ataque:
- Senhor, posso fazer uma observação?
- É claro, inspetora Pirie. - Seu sorriso havia sido cordial, ocultando a irritação de ser interrompido antes de sequer ter revelado o programa.
- Bem, senhor, Fife não é realmente o que se poderia chamar de multicultural. Não temos muitas pessoas aqui que não sejam britânicas nativas. À exceção dos
italianos e poloneses, quero dizer, e eles já estão aqui há tanto tempo que nos esquecemos que não são daqui.
- Então o racismo parece estar bem para você; é isso, inspetora Pirie?
Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas ele fora levado àquilo pela atitude aparentemente retrógrada expressada por ela. Sem falar daquela
cara de bolacha impassível que ostentava sempre que dizia alguma coisa que pudesse ser interpretada como provocadora.
- Em absoluto, senhor. - Ela sorrira, de forma quase piedosa. - O que eu queria dizer é que, já que temos um orçamento limitado para treinamentos, pode fazer
mais sentido lidar primeiro com o tipo de situação que é mais provável que encontremos no dia a dia.
- Tais como?... Com quanta força devemos bater nas pessoas, quando as prendemos?
- Eu estava pensando em estratégias para lidar com a violência doméstica. É um tipo de chamada frequente e que pode facilmente se agravar. Gente demais ainda
morre todos os anos porque uma briga doméstica escapa ao controle. E nem sempre sabemos lidar com elas, sem piorar a situação. Eu diria que essa seria minha prioridade
número um no momento, senhor.
E com aquele discurso, ela havia tirado o chão dele. Não tinha volta. Poderia seguir adiante com o treinamento planejado, sabendo que todos na sala estariam rindo
dele. Ou poderia adiá-lo, organizando algo relacionado à sugestão da inspetora Pirie, e então perderia completamente a moral. No fim, ele disse a eles para passarem
o resto do dia pesquisando sobre o assunto da violência doméstica, preparando-se para outro dia de treinamento.
Dois dias depois, ouviu sem querer alguém se referindo a ele como o Biscoito. Ah, sim, ele sabia a quem culpar. Mas assim como em tudo que ela fazia para sabotá-lo,
não havia nada que ele pudesse atribuir diretamente a ela. Ela simplesmente ficaria ali, tão desgrenhada, impassível e inescrutável quanto uma vaca escocesa das
Highlands, nunca dizendo ou fazendo nada de que ele pudesse se queixar. E ela estabeleceu o padrão para todos os demais, mesmo estando isolada nos cafundós, na Equipe
de Revisão de Casos Arquivados, onde não deveria ser capaz de exercer nenhuma espécie de influência. Mas, de alguma forma, graças a Pirie, lidar com os detetives
das três divisões era como pastorear gatos.
Ele tentava evitá-la, tentava desviar-se dela através de suas diretrizes operacionais. Até então pensava que estava funcionando. Mas aí o telefone tinha tocado.
- Subchefe de Polícia Lees - anunciara ao atender. - Em que posso ajudar?
- Bom dia, subchefe Lees. Meu nome é Susan Charleson. Sou assistente pessoal de Sir Broderick Maclennan Grant. Meu chefe gostaria de falar com o senhor. Agora
seria um bom momento?
Lees se endireitou na cadeira, alinhando os ombros. Broderick Maclennan Grant era conhecido por três coisas: sua fortuna, seu isolamento misantrópico e pelo sequestro
e assassinato da filha Catriona, há vinte e poucos anos. Por mais improvável que pudesse parecer, um telefonema de sua assistente para o subchefe criminal só poderia
significar que havia ocorrido algum tipo de mudança no caso.
- Sim, claro, o momento perfeito, não poderia ser melhor.
Ele escavou a memória em busca de detalhes, ouvindo apenas em parte à mulher no telefone. Filha e neto sequestrados, tinha sido isso. Filha morta durante uma entrega
de resgate que deu errado, neto nunca mais visto. E, agora, ele parecia ter a chance de, finalmente, solucionar o caso. Concentrou-se novamente na voz da mulher.
- Se o senhor puder fazer a gentileza de aguardar, colocarei Sir Broderick na linha agora mesmo - ela disse.
O som oco de uma interrupção e, então, uma voz soturna e pesada disse:
- Aqui fala Broderick Maclennan Grant. Você é o subchefe de Polícia?
- Exatamente, Sir Broderick. Subchefe de Polícia Lees. Simon Lees.
- Você está ciente do assassinato não solucionado da minha filha, Catriona? E do sequestro do meu neto, Adam?
- É claro, naturalmente, não existe um só policial na região que não...
- Achamos que surgiu uma prova nova. Eu ficaria agradecido se você tomasse todas as providências para que a inspetora Pirie venha até a minha casa amanhã
cedo, para discutir o assunto comigo.
Lees literalmente afastou o telefone do rosto e ficou olhando para o aparelho. Seria algum trote sofisticado?
- Inspetora Pirie? Eu não... eu poderia ir - ele balbuciou.
- Você é um funcionário administrativo. Não preciso de um funcionário administrativo. - O tom de Brodie Grant era desdenhoso. - A inspetora Pirie é detetive.
Gostei da forma como ela lidou com o caso Lawson.
- Mas... mas, para tratar disso, deveria ser um oficial mais graduado - protestou Lees.
- Não é a inspetora Pirie quem está no comando da sua Equipe de Revisão de Casos Arquivados? - Grant começava a parecer impaciente. - Isso é graduação suficiente
para mim. Não me importo com postos, me importo com eficiência. É por isso que quero a inspetora Pirie na minha casa amanhã às dez. Isso deve lhe dar tempo suficiente
para se familiarizar com as informações básicas do caso. Tenha um bom dia, Sr. Lees. - A linha emudeceu e Simon Lees ficou sozinho, com seu mau humor e a pressão
arterial que se elevava.
Por mais que aquilo o angustiasse, ele não tinha escolha senão encontrar a inspetora Pirie e lhe dar as ordens. Pelo menos, poderia fazer com que aquilo parecesse
ter sido ideia dele. Embora não houvesse nenhum compromisso marcado no sistema de agendamento eletrônico que ele instituíra para seus detetives mais antigos, ela
não estava em sua mesa. Tudo bem que os policiais fizessem coisas por iniciativa própria, mas tinham de aprender a deixar um registro de seus movimentos.
Ele estava prestes a voltar para a sala da Revisão de Casos Arquivados para descobrir por que a inspetora Pirie ainda não havia aparecido quando uma batida incisiva
na porta foi seguida, sem qualquer intervalo, pela entrada dela.
- Eu disse que poderia entrar? - perguntou Lees, olhando-a com raiva do outro lado da sala.
- Pensei que fosse urgente, senhor. - Ela continuou andando e se sentou na cadeira do outro lado da mesa dele. - O sargento Parhatka me deu a impressão de
que, qualquer que fosse o motivo pelo qual o senhor estivesse me procurando, não podia esperar.
Que referência para o serviço policial, ele pensou, irritado. Cabelo desgrenhado caindo sobre os olhos, pouquíssima maquiagem e dentes que precisavam seriamente
de um aparelho ortodôntico. Ele supunha que ela fosse lésbica, dada sua atração por terninhos de calça comprida, o que era realmente um erro, devido à largura de
seus quadris. Não que ele tivesse qualquer coisa contra lésbicas, lembrou-lhe seu censor interno. Apenas achava que dava às pessoas a impressão errada sobre o serviço
policial de hoje.
- Sir Broderick Maclennan Grant me telefonou hoje de manhã - ele disse. O único sinal de interesse foi um ligeiro entreabrir dos lábios. - Suponho que saiba
quem é Broderick Maclennan Grant.
Karen pareceu surpresa com a pergunta. Ela se reclinou na cadeira e recitou:
- Terceiro homem mais rico da Escócia, é dono de metade da porção rentável das Highlands. Ganhou seu dinheiro construindo estradas e casas, e administrando
os sistemas de transporte que as servem. Possui uma ilha nas Hébridas, mas passa a maior parte do tempo no Castelo de Rotheswell, perto de Falkland. A maioria das
terras entre lá e o mar pertence a ele ou a Wemyss. Sua filha Cat e o filhinho dela, Adam, foram sequestrados por um grupo anarquista em 1985. Cat foi morta com
um tiro quando a entrega do resgate deu errado. Ninguém sabe o que aconteceu com Adam. A esposa de Grant suicidou-se alguns anos depois. Ele se casou novamente há
cerca de dez anos. Tem um filho pequeno que deve estar com cinco ou seis anos. - Ela riu. - Como fui?
- Não é um concurso, inspetora. - Lees sentiu que cerrou os punhos e os manteve embaixo da mesa. - Parece que há novas provas. E já que você está no comando
dos casos arquivados achei que deveria cuidar deste.
- Que tipo de provas? - Ela se reclinou sobre o braço da cadeira, numa postura relaxada.
- Achei melhor que você conversasse diretamente com Sir Broderick. Assim, não haverá qualquer possibilidade de confusão.
- Então, ele realmente não lhe disse nada a respeito?
Lees poderia jurar que ela estava gostando daquilo.
- Marquei de você se encontrar com ele no Castelo de Rotheswell amanhã de manhã às dez. Não preciso lhe dizer o quanto é importante que fique bem claro que
estamos levando isso a sério. Quero que Sir Broderick entenda que este assunto receberá toda a nossa atenção.
Karen se levantou abruptamente, os olhos repentinamente frios.
- Ele receberá exatamente a mesma atenção que todos os outros pais enlutados com quem trato. Não faço distinção entre os mortos, senhor. Agora, se isso é
tudo, tenho um arquivo para estudar até amanhã cedo.
Ela não esperou por uma dispensa. Apenas virou nos calcanhares e saiu, deixando Lees com a sensação de que ela tampouco fazia distinção entre os vivos.
Mais uma vez, Karen Pirie o havia feito se sentir um idiota.
Castelo de Rotheswell
Bel Richmond deu uma última olhada em seu arquivo sobre Catriona Maclennan Grant, certificando-se de que sua lista de perguntas cobria todos os ângulos. A intolerância
a bobagens por parte de Broderick Maclennan Grant era tão notória quanto sua aversão à publicidade. Bel suspeitava de que ele fosse atacar ao primeiro sinal de falta
de preparo de sua parte e usá-la como desculpa para romper o acordo que ela havia negociado com Susan Charleson.
Para dizer a verdade, ela ainda estava surpresa por haver conseguido. Levantou-se, fechou o laptop e deu uma olhada no espelho. Vestida para matar. Afinal, a primeira
impressão é a que fica. Fim de semana no campo. Era esse o look que ela havia adotado. Sempre fora boa em camuflagem. Mais uma das muitas razões pelas quais ela
era tão boa naquilo que fazia. Integrar-se, tornar-se "parte do grupo", qualquer que fosse ele, era um mal necessário. Portanto, se ela iria dormir sob o teto aristocrático
de Brodie Grant, precisava se vestir a caráter. Alisou o vestido axadrezado Black Watch que havia tomado emprestado de Vivianne, conferiu se não havia arranhões
nos sapatos de salto sabrina, ajeitou o cabelo, negro como um corvo, para trás da orelha e entreabriu os lábios rubros num sorriso. Uma olhada em seu relógio confirmou
que estava na hora de descer as escadas e descobrir o que a formidável Susan Charleson havia preparado.
Ao virar uma curva da ampla escadaria, teve de se desviar para evitar um garotinho que subia a toda velocidade. Ele conseguiu controlar os gestos desgovernados no
patamar entre dois lances, ofegou um "Desculpe", e voou escada acima. Bel piscou e ergueu as sobrancelhas. Já fazia algum tempo que não esbarrava assim num garotinho
e não havia sentido a menor falta. Continuou descendo, mas, antes de chegar ao pé da escada, uma mulher com calças de veludo bege e uma blusa vermelho-escura circulou
a coluna da escadaria e parou de repente, pega de surpresa.
- Oh, me desculpe, não quis assustá-la - ela disse. - Viu um garotinho passar por aqui?
Bel apontou com o polegar por sobre o ombro.
- Ele foi por ali.
A mulher assentiu. Agora que estava mais próxima, Bel podia ver que era uns dez anos mais velha do que pensara de início, trinta e tantos, no mínimo. A pele tratada,
o cabelo castanho grosso e o porte elegante ajudavam a confundir.
- Monstrinho - disse a mulher. Elas se encontraram a alguns degraus do patamar. - Você deve ser Annabel Richmond - ela disse, estendendo a mão delgada que
estava fria, apesar da temperatura agradável dentro das grossas paredes do castelo. - Sou Judith. Esposa de Brodie.
Claro que sim. Como Bel poderia ter imaginado uma babá tão bem arrumada?
- Lady Grant - ela disse, estremecendo por dentro.
- Judith, por favor. Mesmo depois de todos esses anos casada com Brodie, ainda tenho vontade de olhar para trás quando alguém me chama de Lady Grant. - Ela
não parecia dizer aquilo apenas por falsa modéstia.
- E eu sou Bel. Vamos deixar para lá o nome que uso profissionalmente.
Lady Grant sorriu, os olhos já examinando os degraus acima.
- Bel então. Olhe, não posso parar agora, tenho de capturar aquele monstrinho. Vejo você no jantar. - E lá foi ela, subindo dois degraus de cada vez.
Sentindo que havia exagerado ao se vestir, em comparação à castelã de Rotheswell, Bel seguiu pelos corredores de lajotas de pedra até o escritório de Susan Charleson.
A porta estava aberta e Susan, que falava ao telefone, acenou para que ela entrasse.
- Muito bem. Obrigada por arranjar tudo, Sr. Lees. - Ela recolocou o fone no gancho e contornou a mesa, conduzindo Bel de volta à porta. - Bem na hora - ela
disse. - Ele aprecia a pontualidade. Gostou do quarto? Tem tudo de que precisa? O acesso wi-fi está funcionando?
- Tudo está perfeito - disse Bel. - A vista também é linda.
Sentindo-se como se tivesse entrado num drama da BBC2 escrito por Stephen Poliakoff, ela deixou-se conduzir pelo labirinto de corredores, cujas
paredes estavam forradas de fotografias de paisagens escocesas enormes impressas em telas para parecerem quadros pintados. Ficou surpresa de tudo lhe parecer tão
aconchegante. Mas, também, aquela não era a ideia que fazia de um castelo. Esperara algo como Windsor ou Alnwick. Em vez disso, Rotheswell parecia-se mais a uma
mansão fortificada e com torres. O interior lembrava mais uma casa de campo do que um salão de banquetes medieval. Sólido, mas não tão intimidador quanto ela temera.
Quando finalmente pararam diante de uma porta dupla de mogno alta e abobadada, Bel já estava começando a se arrepender de não ter deixado uma trilha de migalhas
de pão.
- Chegamos - disse Susan, abrindo uma das portas e conduzindo Bel para o interior de uma sala de bilhar, forrada de painéis de madeira escura e com persianas
nas janelas. A única luz provinha de uma série de lustres sobre a mesa de bilhar de tamanho oficial. Quando elas entraram, Broderick Maclennan Grant levantou os
olhos do taco que posicionava para a jogada. Uma massa densa de cabelo impressionantemente grisalho caía jovialmente sobre a testa ampla, sobrancelhas como um par
de muralhas prateadas sobre olhos tão fundos que sua cor só podia ser adivinhada, nariz como o bico de um papagaio, e uma boca ampla e fina sobre um queixo quadrado,
eram características que o tornavam instantaneamente reconhecível. A iluminação do lugar dava um ar dramático a sua figura.
Por conta de fotografias, Bel sabia o que esperar, mas ficou surpresa com a eletricidade crepitante que sentiu em sua presença. Já estivera na presença de homens
e mulheres poderosos antes, mas poucas vezes sentira aquele carisma instantâneo. Entendeu, de imediato, como Brodie Grant havia construído seu império do nada.
Ele se endireitou e apoiou-se no taco.
- Srta. Richmond, suponho. - Sua voz era profunda e quase relutante, como se não a usasse muito.
- Exatamente, Sir Broderick. - Bel não tinha certeza se deveria avançar ou permanecer onde estava.
- Obrigado, Susan - disse Grant. Quando a porta se fechou atrás dela, ele acenou na direção de um par de poltronas de couro desgastadas ao lado de uma lareira
de mármore entalhado. - Sente-se. Posso jogar e conversar
ao mesmo tempo. - Ele voltou a estudar a tacada enquanto Bel deslocava uma das poltronas para que pudesse observá-lo de forma mais direta.
Ela esperou enquanto ele fez mais algumas jogadas, o silêncio se erguia entre eles como uma maré ameaçadora.
- É uma linda casa - ela disse afinal.
Ele resmungou:
- Não sou de papo furado, Srta. Richmond. - Deu uma tacada rápida e duas bolas colidiram num estalo que pareceu um tiro. Passou giz no taco e a observou por
um longo momento. - Você provavelmente está se perguntando como conseguiu isso. Acesso direto a um homem famoso por sua aversão à exposição na mídia. Que conquista,
hein? Bem, sinto muito em decepcioná-la, mas você apenas teve sorte. - Ele circulou a mesa, franzindo a testa diante da posição das bolas, movendo-se como um homem
vinte anos mais jovem.
- Foi assim que consegui algumas das minhas melhores histórias - Bel disse calmamente. - Grande parte do jornalismo de sucesso deve-se a isso: a habilidade
de estar no lugar certo, na hora certa. Não tenho problema algum com relação à sorte.
- Que seja. - Ele estudou as bolas, inclinando a cabeça para obter um ângulo diferente. - Então, você não está se perguntando por que escolhi romper meu silêncio,
após todos esses anos?
- Sim, é claro que estou. Mas, para ser honesta, não acho que suas razões para falar agora terão muito a ver com o que acabarei escrevendo. Portanto, é mais
uma curiosidade pessoal do que profissional.
Ele parou a meio caminho de sua preparação para uma tacada e empertigou-se, encarando-a com uma expressão que ela não podia decifrar. Ele poderia estar furioso ou
curioso.
- Você não é como eu esperava - ele disse. - É mais durona. Isso é bom.
Bel estava acostumada a ser subestimada pelos homens, em seu universo. Estava menos acostumada, porém, a que eles admitissem seu erro.
- Pode ter certeza de que sou durona. Não confio a mais ninguém as minhas batalhas.
Ele se virou para olhá-la, apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o taco.
- Não gosto de ficar exposto ao público - ele disse. - Mas sou realista. Em 1985 era possível que alguém como eu exercesse um determinado grau de influência
sobre a mídia. Quando Catriona e Adam foram sequestrados, controlamos em grande parte o que foi impresso e transmitido. A polícia também cooperou conosco. - Ele
suspirou e balançou a cabeça. - Olhe só de que adiantou. - Deixou o taco na mesa e veio se sentar de frente para Bel.
Sentou-se na posição clássica do macho dominante: joelhos bem abertos, mãos sobre as coxas, ombros para trás.
- O mundo é um lugar diferente agora - ele disse. - Eu vi o que vocês fazem com pais que perderam seus filhos. Mohamed Al Fayed, retratado como um palhaço
paranoico. Kate McCann, transformada em uma Medeia moderna. Dê um passo em falso e eles o enterram. Bem, não vou deixar que isso aconteça. Sou um homem muito bem-sucedido,
Srta. Richmond. E cheguei até aqui aceitando que existem coisas que eu não sei e entendendo que a forma de superar isso é contratando especialistas e ouvindo-os.
No que se refere a esse ramo de negócios, você é minha especialista. Quando souber que existem novas provas, a mídia enlouquecerá. Mas não falarei com ninguém além
de você. Tudo passará por você. Portanto, qualquer que seja a imagem que chegue ao público, será a que você gerar. Este lugar foi construído para resistir a um cerco,
e meu sistema de segurança é o melhor que existe. Nenhum dos répteis chega perto de mim, de Judith ou de Alec.
Bel sentiu um sorriso repuxar os cantos da boca. Acesso exclusivo era o sonho erótico de todo redator. Geralmente, tinha de se matar para conseguir algo assim. Mas,
ali estava, numa bandeja e de graça. Contudo, deixou-o continuar pensando que era ela quem estava lhe fazendo um favor.
- E o que eu ganho com isso? Além de me tornar a jornalista que todo mundo adora odiar?
A linha estreita dos lábios de Grant se comprimiu ainda mais, e o peito se ergueu numa respiração profunda.
- Eu falarei com você. -As palavras saíram como se tivessem sido trituradas entre duas pedras de moinho. Claramente, sua intenção era que aquele fosse um
momento comparado a quando Moisés desceu do Monte Sinai.
Bel estava determinada a não se deixar impressionar.
- Excelente. Podemos começar, então? - Enfiou a mão dentro da bolsa e tirou um gravador digital. - Sei que isto não será fácil para o senhor, mas preciso
que me conte sobre Catriona. Chegaremos ao sequestro e suas consequências, mas teremos que voltar um pouco antes disso. Quero ter um panorama de como ela era e de
como vivia.
Ele olhou para o nada e, pela primeira vez, Bel viu um homem que parecia ter setenta e dois anos.
- Não tenho certeza se sou a pessoa mais adequada para isso - ele disse. - Éramos parecidos demais. Sempre foi uma disputa, entre mim e Catriona. - Ele se
levantou da poltrona e voltou à mesa de bilhar. - Ela sempre foi voluntariosa, mesmo quando pequena. Tinha ataques de fúria que podiam balançar as paredes deste
lugar. Ela cresceu e deixou os ataques para trás, mas não o temperamento. Contudo, sempre conseguia reconquistar a boa vontade das pessoas. Quando ela queria. -
Ergueu os olhos para Bel e sorriu. - Ela sabia bem o que queria. E não era possível fazê-la mudar de ideia, uma vez que estivesse decidida sobre algo.
Grant se moveu em torno da mesa, estudando as bolas, alinhando sua próxima jogada.
- E tinha talento. Quando criança, nunca estava sem um lápis ou um pincel nas mãos. Desenho, pintura, modelagem em argila. Ela nunca parava. Não deixou de
fazer isso com o tempo, como a maioria das crianças. Simplesmente se aprimorou. Então, ela descobriu o vidro. - Ele se inclinou sobre a mesa e acertou a bola vermelha
com a bola da vez, encaçapando-a no buraco do meio. Então, reposicionou a vermelha e estudou os ângulos.
- O senhor disse que sempre houve disputa entre vocês. Quais eram os pontos críticos? - Bel perguntou, quando ele não demonstrou sinais de que continuaria
com suas reminiscências.
Grant deu uma risadinha irônica.
- Tudo e qualquer coisa. Política. Religião. Se a comida italiana era melhor do que a indiana. Se Mozart era melhor do que Beethoven. Se a arte abstrata tinha
algum significado. Se deveríamos plantar faia, bétula ou pinho escocês no bosque de Check Bar. - Ele se endireitou lentamente. - Por que ela não queria assumir a
companhia. Esse era o ponto mais crítico. Eu não tinha um filho homem, naquela época. E nunca tive problemas para
aceitar mulheres nos negócios. Não via razão alguma para que ela não pudesse assumir a MGE, desde que aprendesse como tudo funcionava. Ela dizia que preferiria furar
os próprios olhos com uma agulha.
- Ela não aprovava a MGE? - perguntou Bel.
- Não, não tinha nada a ver com a companhia ou com sua política. Ela queria era ser uma artista do vidro. Esculpir, soprar, modelar... tudo que fosse possível
fazer com vidro, ela queria ser a melhor. E isso não deixava espaço para a construção de rodovias ou casas.
- Deve ter sido uma grande decepção.
- Fiquei arrasado. - Grant pigarreou. - Fiz tudo o que podia para convencê-la a desistir daquilo. Mas ela não me dava ouvidos. Agiu à minha revelia e se candidatou
a uma vaga na universidade Goldsmiths, em Londres. E conseguiu. - Ele balançou a cabeça. - Eu queria cortar qualquer ajuda financeira a ela, mas Mary, minha esposa,
mãe de Cat, me compeliu a concordar em sustentá-la. Ela disse que, para alguém que detestava se expor ao público, eu estava dando uma imensa colher de chá para os
tabloides. Então, deixei-me convencer. - Ele deu um sorriso amargo. - Quase me conformei com tudo, também. Então, descobri o que realmente estava acontecendo.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1978; Castelo de Rotheswell
Brodie Grant girou o Land Rover numa curva que espalhou cascalho para os lados e freou a metros da porta da cozinha do Castelo de Rotheswell. Entrou pisando forte
na casa, com um labrador chocolate nos calcanhares. Atravessou a cozinha, deixando um redemoinho de ar gelado à sua passagem, e gritou para o cão ficar ali. Moveu-se
pela casa com a velocidade e a segurança de um homem que sabe precisamente aonde está indo.
Finalmente, irrompeu na sala belamente decorada onde a esposa se entregava à sua paixão pela costura de colchas de retalhos.
- Você sabia disto? - ele indagou. Mary ergueu os olhos, assustada. Podia ouvir a intensidade de sua respiração, do outro lado da sala.
- Disto o quê, Brodie? - perguntou. Ela estava casada com uma força da natureza havia tempo suficiente para não se espantar com uma entrada dramática.
- Foi você que me convenceu a isto. - Ele se jogou numa poltrona baixa, lutando para ajeitar as pernas. - "É o que ela quer, Brodie. Ela jamais o perdoará
se você ficar no caminho dela. Você seguiu seus sonhos, Brodie. Deixe-a seguir os dela." Foi o que você disse. Então, foi o que fiz. Contrariando o que achava certo,
eu disse que iria apoiá-la. Financiar seu maldito diploma. Ficar de boca fechada sobre a maldita perda de tempo que é tudo isso. Parar de lembrá-la que são pouquíssimos
os artistas que conseguem se sustentar com essa bobajada indulgente. Não enquanto estão vivos, pelo menos. - Ele bateu o punho fechado no braço da poltrona.
Mary continuou a enfiar a agulha no tecido e sorriu.
- Você fez isso mesmo, Brodie. E estou orgulhosa de você.
- E olhe só aonde isso nos levou. Olhe só o que realmente está acontecendo!
- Brodie, não tenho ideia do que está falando. Você poderia explicar? E não se esqueça da sua pressão.
Ela tinha o dom de provocá-lo gentilmente e demovê-lo de suas posturas tão extremas. Mas, naquele dia, não estava dando certo. A irritação de Brodie estava no auge,
e seria necessária mais que uma dose de racionalidade amável para fazê-lo voltar a seu humor normal.
- Saí com Sinclair. Fomos verificar as trilhas para a caçada na sexta-feira.
- E como estavam as trilhas?
- Ótimas. Sempre ótimas. Ele é um bom caseiro. Mas não é essa a questão, Mary. - Sua voz se elevou novamente, incompatível com o ambiente aconchegante, cheio
de tecidos nas prateleiras.
- Claro que não, Brodie. Percebi isso. Qual é exatamente a questão?
- Aquele maldito do Fergus Sinclair. Eu disse ao Sinclair. No verão passado, quando seu maldito filho estava farejando atrás da Cat. Eu disse a ele para manter
o garoto longe da minha filha, e achei que ele tivesse me ouvido. E agora, isto! - Sacudiu as mãos como se estivesse jogando uma pilha de feno para o ar.
Mary finalmente abaixou seu trabalho.
- Qual é o problema, Brodie? O que aconteceu?
- É o que vai acontecer. Você se lembra de como respiramos aliviados quando ele se matriculou no maldito curso de administração de propriedades
em Edimburgo? Bem, acontece que essa não era sua única opção. Ele simplesmente aceitou uma vaga na Universidade de Londres. Vai estar na mesma droga de cidade que
a nossa filha. Vai ficar em cima dela o tempo todo, como uma sarna. Maldito caipira oportunista. - Fechou a cara e socou novamente a poltrona. - Vou acabar com a
raça dele, você vai ver.
Para espanto dele, Mary desandou a rir em sua mesinha de trabalho, com lágrimas cintilando nos cantos dos olhos.
- Ai, Brodie - ela ofegou. - Nem consigo lhe dizer como isso é engraçado.
- Engraçado? - ele berrou. - Aquele garoto dos infernos vai arruinar a vida de Cat e você acha engraçado?
Mary se levantou de um salto e cruzou a sala até o marido. Ignorando seus protestos, sentou-se no colo dele e passou os dedos por seu cabelo grosso.
- Está tudo bem, Brodie. Tudo ficará bem.
- Não vejo como. - Ele se afastou da mão dela.
- Durante a última semana, eu e a Cat tentávamos arranjar uma forma de lhe contar.
- Contar o quê, mulher?
- Ela não vai para Londres, Brodie.
Ele se endireitou, quase derrubando Mary no chão.
- O que você quer dizer com não vai para Londres? Ela vai desistir dessa idiotice? Virá trabalhar comigo?
Mary suspirou.
- Não Seja bobo. Você sabe, no fundo do seu coração, que ela está fazendo o que deveria fazer. Não, ela recebeu a oferta de uma bolsa de estudos. É uma combinação
de formação acadêmica e trabalho em uma fábrica de vidro artístico. Brodie, é simplesmente a melhor escola do mundo. E eles querem a nossa Catriona.
Por um longo momento, ele se permitiu ficar dividido entre o orgulho e o medo.
- E onde é isso? - disse, por fim.
- Não é muito longe, Brodie. - Mary passou as costas da mão pelo rosto dele. - É na Suécia.
- Suécia? Na maldita Suécia? Por Deus, Mary. Suécia?
- Você fala como se fosse o fim do mundo. Pode-se voar para lá de Edimburgo, sabe? Leva menos de duas horas. Sinceramente, Brodie. Escute o que está dizendo.
Isso é maravilhoso. É o melhor começo possível para ela. E você não terá de se preocupar com o fato de Fergus estar no mesmo lugar. Não é provável que ele apareça
numa cidadezinha perdida entre Estocolmo e Uppsala, é?
Grant passou os braços em volta da esposa e descansou o queixo sobre sua cabeça.
- Só você mesmo para encontrar o lado bom disso. - Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. - Com certeza, isso irá colocar o maldito do Fergus Sinclair
no lugar dele.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
- Então o senhor também discutia com Cat a respeito de namorados? - Bel perguntou. - Era com relação a todos eles, ou apenas no caso de Fergus Sinclair?
- Ela não teve tantos namorados assim. Estava concentrada demais no trabalho. Saiu durante alguns meses com um dos escultores da fábrica de vidro. Eu o encontrei
algumas vezes. Sueco, mas mesmo assim um rapaz bastante sensato. Eu podia ver que ela não estava levando muito a sério; então não havia necessidade de discutirmos
sobre ele. Mas Fergus Sinclair era outra história. - Ele contornou a mesa, e sua raiva era óbvia.
- A polícia nunca o considerou suspeito, mas questionei, na época, se ele poderia estar por trás do que aconteceu com Cat e Adam. Ele, logicamente, não havia
aceitado, quando ela finalmente rompeu os laços entre eles. E não aceitava que ela não o reconhecesse como pai de Adam. Na época, pensei que era possível que ele
tivesse feito justiça com as próprias mãos. Embora fosse difícil imaginar que tivesse inteligência para armar algo tão complicado.
- Mas Cat continuou o relacionamento com Fergus, depois de ir para a Suécia?
Subitamente o cansaço pareceu dominá-lo, e Grant se deixou cair na poltrona, de frente para Bel.
- Eles eram muito próximos. Haviam brincado juntos quando crianças. Eu deveria ter colocado um ponto final naquilo, mas nunca passou pela minha cabeça que
se transformaria em alguma coisa. Eles eram muito diferentes. Cat, com sua arte, e Sinclair, sem outra ambição a não ser a de seguir os passos do pai e ser caseiro.
Classes sociais diferentes, aspirações diferentes. A única coisa que os aproximava era o fato de a vida os ter colocado no mesmo lugar. Portanto, sim, quando ela
voltava, nas férias, e ele estava por perto, eles se juntavam novamente. Ela não fazia segredo sobre isso, ainda que soubesse minha opinião a respeito de Sinclair.
Eu continuava com a esperança de que ela conhecesse alguém que fosse digno dela, mas isso nunca aconteceu. Ela continuava voltando para Sinclair.
- E, apesar disso, o senhor não despediu o pai dele. Não o retirou da propriedade.
Grant pareceu chocado.
- Meu Deus, claro que não. Você tem ideia de como é difícil encontrar um caseiro tão bom quanto Willie Sinclair? Você poderia entrevistar cem homens antes
de encontrar alguém com os instintos que ele tem sobre pássaros e sobre as terras. E também é um sujeito decente. Ele sabia que o filho não estava à altura de Cat.
Sentia vergonha por não conseguir impedir que Fergus andasse atrás dela. Queria proibi-lo de frequentar a casa deles, mas sua esposa não permitiu. - Ele deu de ombros.
- Não posso culpá-la. As mulheres são sempre moles com os filhos.
Bel tentou ocultar sua surpresa. Ela havia presumido que Grant não respeitaria qualquer limite para que tudo fosse como ele queria, no que dizia respeito à filha.
Aparentemente, ele era mais complexo do que ela havia imaginado.
- O que aconteceu quando ela voltou da Suécia?
Grant esfregou o rosto com as mãos.
- Não foi nada agradável. Ela queria se mudar. Montar um estúdio onde pudesse trabalhar e vender suas coisas, um lugar onde também houvesse um espaço separado
para ela morar. Ela estava de olho numas propriedades nas minhas terras. Eu disse que o preço da minha ajuda era que ela parasse de se encontrar com Sinclair. -
Pela primeira vez, Bel viu tristeza se infiltrando através da raiva fervilhante. - Foi burrice da minha parte. Mary disse isso, na época, e ela estava com a razão.
As duas ficaram
furiosas comigo, mas eu não quis ceder. Então, Cat seguiu seu próprio caminho. Ela entrou em contato com a corretora da propriedade rural de Wemyss e alugou um imóvel
deles. Uma velha casa, próxima à entrada da propriedade, juntamente com o que havia sido um depósito de lenha, entrando pela estrada principal. Perfeito para atrair
a clientela. Área para estacionamento na frente dos antigos portões, um estúdio e espaço para exposição, além de dependências para ela morar, por trás dos muros.
Toda a privacidade que ela poderia desejar. E todo mundo ficou sabendo que Catriona Maclennan Grant fora morar em Wemyss só para contrariar seu velho pai.
- Se ela dependia do senhor, como é que pôde pagar por tudo isso? - perguntou Bel.
- A mãe dela equipou o estúdio, pagou o aluguel referente ao primeiro ano e encheu a despensa de Cat até ela começar a vender suas peças. - Ele não conseguiu
evitar um sorriso. - O que não demorou muito. Ela era boa, sabe? Muito boa. E a mãe cuidou que todos os seus amigos fossem até lá para comprar presentes de casamento
e de aniversário. Nunca fiquei tão bravo com Mary quanto naquela época. Estava ultrajado. Sentia-me frustrado e desrespeitado, e a situação só piorou quando o desgraçado
do Sinclair voltou da universidade e retornou de onde havia parado.
- Eles moravam juntos?
- Não. Cat tinha bom-senso o bastante para não fazer isso. Agora eu olho para trás e, às vezes, penso que ela só continuava se encontrando com ele para me
irritar. Não durou muito, depois que ela abriu o estúdio. Estava praticamente terminado cerca de um ano e meio antes que... que ela morresse.
Bel fez as contas mentalmente e concluiu que havia algo errado.
- Mas Adam só tinha seis meses quando eles foram sequestrados. Então, como Fergus Sinclair podia ser o pai, se ele se separou de Cat um ano e meio antes?
Grant suspirou.
- De acordo com Mary, não foi um rompimento definitivo. Cat ficava repetindo para Sinclair que tudo havia terminado, mas ele não queria aceitar. Hoje em dia,
isso se chama assédio. Parece que ele vivia aparecendo com aquela cara de cão sem dono, e Cat nem sempre tinha forças para
mandá-lo embora. E daí, ela ficou grávida. - Ele olhou para o chão. - Sempre imaginei como seria ser avô. Ver a família continuar. Mas, quando Cat nos contou, tudo
o que senti foi raiva. Aquele filho da puta do Sinclair havia arruinado o futuro dela. Ele a sobrecarregou com seu bebê, destruiu suas chances de ter a carreira
que ela havia sonhado. A única coisa boa que ela fez foi se recusar a manter qualquer contato com ele. Não quis reconhecê-lo como pai da criança, não queria vê-lo
nem falar com ele. Deixou muito claro que, daquela vez, estava realmente tudo acabado entre eles.
- Como ele reagiu a isso?
- Mais uma vez, eu soube indiretamente. Dessa vez por Willie Sinclair. Ele disse que o garoto estava devastado. Mas só o que me importava era que ele finalmente
tivesse entendido o recado de que nunca faria parte da nossa família. Willie aconselhou-o a manter distância de Cat e, pela primeira vez na vida, ele ouviu. Em poucas
semanas, arranjou um emprego na Áustria para trabalhar numa propriedade de caça perto de Salzburg. Desde então ele trabalha na Europa.
- E hoje? O senhor ainda acha que ele pode ter sido responsável pelo que aconteceu?
Grant fez uma careta.
- Se é para ser honesto, não. Acho que não. Não creio que ele tivesse inteligência suficiente para criar um plano tão complicado. Tenho certeza de que ele
adoraria ter colocado as mãos no filho e ao mesmo tempo se vingar de Cat, mas é muito mais provável que tenham sido alguns filhos da puta com motivos políticos que
pensaram que seria muito inteligente me fazer financiar sua revolução. - Fatigado, ele se levantou. - Agora estou cansado. A polícia virá amanhã de manhã e teremos
que repassar tudo. Nós a veremos no jantar, Srta. Richmond.
Ele saiu da sala, deixando Bel cheia de coisas a considerar. E anotar. Quando Brodie Grant dissera que falaria com ela, não havia imaginado, nem por um minuto, que
ele lhe entregaria esse precioso filão de informações. Ela teria de pensar com muito cuidado em como apresentá-lo à mídia mundial. Um passo em falso e sabia que
a mina seria fechada. Agora que tivera um gostinho do que jazia adiante, isso era, definitivamente, a última coisa que ela queria.
Glenrothes
Novo em Folha olhava fixamente para a tela do computador, como se fosse um artefato alienígena, quando Karen voltou a seu escritório.
- O que você tem aí para mim? - ela perguntou. -Já conseguiu ras-trear os cinco fura-greves?
- Nenhum deles tem registro criminal - ele disse.
- E?
- Eu não sabia onde mais procurar.
Karen revirou os olhos. Sua convicção de que Novo em Folha havia sido imposto a ela por Biscoito como uma forma de sabotagem se intensificava a cada dia.
- Google. Registro eleitoral. O site 192.com. Registro de carteiras de habilitação. Comece por aí, Jason. E depois marque para mim uma visita, em terreno,
com o responsável pela preservação de cavernas. É melhor deixar o dia de amanhã livre; veja se você consegue que ele me receba no sábado cedo.
- Nós geralmente não trabalhamos aos sábados - disse Novo em Folha.
- Você é que está dizendo - Karen murmurou, lembrando-se de pedir a Phil que fosse com ela. A insistência da lei escocesa na corroboração para todo tipo de
prova fazia com que ficasse difícil dar uma de justiceiro solitário.
Ela despertou seu computador da hibernação e rastreou as informações de contato de seu equivalente em Nottingham. Para seu alívio, o inspetor Des Mottram estava
em sua mesa e foi receptivo a seu pedido.
- Acho provável que seja um beco sem saída, mas é algo que precisa ser verificado - ela disse.
- E não lhe atrai nem um pouco uma viagem até Costa dei Trent - ele disse, com uma resignação divertida na voz.
- Não é isso. Tive um caso importantíssimo reaberto hoje e não tenho como desperdiçar pessoas com algo que, provavelmente, não nos trará qualquer avanço,
exceto num caminho negativo.
- Não se preocupe. Eu sei como é isso. Hoje é seu dia de sorte, Karen. Teremos dois novos assistentes no Departamento de Investigação Criminal na segunda-feira
e isso é exatamente o tipo de coisa que posso usar para treiná-los. Nada muito complicado, não exige muita manha.
Karen passou para ele os nomes dos homens.
- Um dos meus rapazes está procurando pelos últimos endereços conhecidos. Assim que ele achar alguma coisa, pedirei que lhe mande um e-mail. - Mais alguns
detalhes e ela terminou. Bem naquele instante, Phil Parhatka voltou a entrar na sala, com um enrolado de bacon que transmitiu uma mensagem diretamente para os centros
de prazer do cérebro de Karen. - Hummm - ela gemeu. - Deus, isto está com um cheiro delicioso.
- Se eu soubesse que você havia voltado, teria lhe trazido um. Bom, vamos dividir esse.
Ele pegou uma faca em sua gaveta e cortou o enrolado na metade, espirrando molho de tomate nos dedos. Passou a ela sua metade e, então, lambeu os dedos. O que mais,
pensou Karen, uma mulher poderia querer de um homem?
- O que o Biscoito queria? - perguntou Phil.
Karen deu uma mordida no enrolado e falou com a boca cheia da massa adocicada com bacon salgado.
- Novos desdobramentos no caso Catriona Maclennan Grant.
- É mesmo? O que aconteceu?
Karen sorriu.
- Não sei. O Rei Brodie não se preocupou em dizer ao Biscoito. Só disse a ele para me mandar lá amanhã de manhã. Então, preciso me atualizar rapidinho. Já
mandei buscar os arquivos, mas vou checar on-line primeiro. Olhe só... - Ela o puxou para um lado. - O assunto Mick Prentice. Preciso falar com alguém no sábado
e é óbvio que o Novo em Folha não trabalha aos sábados. Existe alguma chance de eu convencer você a ir comigo?
- Ir aonde?
- Às cavernas de Wemyss.
- Sério? - Phil se animou. - Poderemos passar para o outro lado das grades?
- Imagino que sim - disse Karen. - Não sabia que você se interessava por cavernas.
- Karen, eu já fui garoto um dia.
Ela revirou os olhos.
- Isso é bem verdade.
- Além disso, as cavernas têm coisas realmente legais. Inscrições e desenhos pictos. Entalhes da Idade do Ferro. Gosto da ideia de ser um
esquilo-agente-secreto e poder dar uma espiada nas coisas que geralmente não podem ser vistas. Claro que irei com você. Você já fez os registros do
caso?
Karen pareceu envergonhada.
- Quero ver aonde vai dar. Foi uma época difícil por aqui. Se alguma coisa ruim aconteceu a Mick Prentice, quero ir até o fundo. E você sabe como a mídia
está sempre se metendo no que fazemos no setor de Casos Arquivados. Tenho a sensação de que esse é um caso em que temos mais chance de descobrir o que aconteceu
se mantivermos segredo por um tempo.
Phil terminou seu enrolado e limpou a boca com as costas da mão.
- Parece justo. Você é a chefe. Só se assegure de que o Biscoito não possa usar isso contra você.
- Vou tomar cuidado. Escute, você está ocupado agora?
Ele atirou o saco de papel vazio na lixeira com uma jogada por cima da cabeça, comemorando quando acertou.
- Nada que eu não possa adiar.
- Veja o que você consegue descobrir sobre um cara chamado Andy Kerr. Ele era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores durante a greve. Morava num
sítio no meio do bosque de Wemyss. Estava de licença médica, com depressão, na época em que Mick desapareceu. Dizem que deu fim à própria vida, mas nunca encontraram
o corpo.
Phil assentiu.
- Verei o que consigo descobrir.
Enquanto ele voltava à própria mesa, Karen procurava Catriona Maclennan Grant no Google. O primeiro resultado a levou a uma publicação em formato de jornal, de dois
anos antes, marcando o vigésimo aniversário da morte da jovem escultora. Depois de ler três parágrafos, Karen sentiu um golpe no meio de seu peito. "É incrível como
são poucas as pessoas que se dispõem a falar sobre este caso", ela leu. "O pai de Cat Grant jamais falou com a imprensa sobre o que aconteceu. Sua mãe se matou dois
anos após a morte da filha. Seu ex-namorado, Fergus Sinclair, se recusa a dar entrevistas. E o policial encarregado do caso também está fora do nosso alcance, já
que ele mesmo cumpre pena por assassinato."
- Ai, Jesus - ela gemeu. Nem sequer tinha visto o arquivo do caso e aquela já estava se transformando numa missão dos infernos.
Kirkcaldy
Já passava das dez quando Karen entrou em casa com um pacote de arquivos e uma porção de peixe para o jantar. A ideia de que estava brincando de casinha nunca a
tinha abandonado. Talvez tivesse algo a ver com a casa em si, uma caixa pré-fabricada num empreendimento imobiliário popular de 1960, no norte de Kirkcaldy. O tipo
de lugar no qual as pessoas começavam a vida, aferrando-se à esperança de que não a terminariam ali. Um subúrbio com baixos índices de criminalidade, onde se podia
deixar as crianças brincar na rua, desde que não se morasse em uma das estradas. Acidentes de trânsito, e não sequestros, eram o que os pais mais temiam por ali.
Karen nunca se lembrava ao certo por que havia comprado a casa, embora, na época, tivesse parecido uma boa ideia. Suspeitava que o apelo estivera no fato de ela
vir completamente mobiliada, provavelmente por alguém que havia tirado a ideia de um programa de TV sobre decoração. Comprara a mobília junto com a casa, até mesmo
os quadros nas paredes. Não ligava para o fato de não ter sido ela a escolher as coisas entre as quais vivia. De qualquer maneira, era o tipo de coisa que ela provavelmente
teria escolhido, e aquilo lhe havia economizado o trabalho de passar um domingo numa loja da IKEA. E ninguém podia negar que era um milhão de vezes mais agradável
do que a confusão floral desbotada em que viviam seus pais. Sua mãe continuava esperando que ela se tornasse como todo mundo, mas isso não iria acontecer. Quando
tinha um fim de semana livre, Karen não desejava nada além de um prato de carne e legumes com curry com os amigos e passar um bom tempo estirada no sofá, assistindo
a jogos de futebol e a filmes antigos. Nada de arrumar a casa.
Ela colocou tudo sobre a mesa de jantar e foi à procura de um prato e talheres. Ainda conservava alguns padrões, pelo amor de Deus. Atirou o casaco sobre uma cadeira
e sentou-se com a refeição, abrindo um dos arquivos para ler enquanto comia. Ela já havia estudado os arquivos do caso Grant antes e tomado nota das perguntas para
as quais queria respostas. Agora, finalmente, tinha a chance de analisar o material que Phil compilara para ela.
Como havia esperado, o relatório de pessoa desaparecida original não poderia estar mais incompleto. Naquela época, o desaparecimento de um homem adulto, solteiro
e sem filhos, com histórico de depressão clínica, não teria muita atenção da polícia. Não tinha nada a ver com o fato de que a greve dos mineiros houvesse sobrecarregado
a força policial até o limite, e tudo a ver com o fato de que, naquele tempo, pessoas desaparecidas não eram prioridade. A não ser que fossem crianças pequenas ou
mulheres jovens e atraentes. Mesmo nos dias atuais, somente os problemas clínicos de Andy Kerr teriam garantido um leve interesse.
Seu desaparecimento havia sido informado por sua irmã, Angie, na véspera do Natal. Ele não aparecera na casa dos pais para a tradicional comemoração em família.
Angie, em casa de férias do curso de pedagogia, havia deixado alguns recados na secretária eletrônica dele na semana anterior, tentando marcar um encontro para um
drinque. Andy não respondera, mas aquilo não era incomum. Ele sempre fora dedicado ao trabalho, mas, desde que a greve havia começado, tornara-se um verdadeiro workaholic.
Então, na tarde da véspera de Natal, a Sra. Kerr admitira que Andy estava de licença por depressão. Angie convenceu o pai a levá-la de carro até o sítio de Andy,
no bosque de Wemyss. O lugar estava frio e deserto, sem qualquer comida fresca na geladeira. Havia um bilhete encostado no açucareiro sobre a mesa da cozinha. Incrivelmente,
o bilhete havia sido embalado e incluído no arquivo. Se você estiver lendo isto, provavelmente é porque está preocupado comigo. Não fique. Já aguentei o suficiente.
É uma coisa depois da outra, e não suporto mais. Fui embora para tentar colocar a cabeça no lugar. Andy.
Não era exatamente um bilhete de suicídio, mas, se você encontrasse um corpo ao lado de uma mensagem dessas, não esperaria que fosse uma vítima de assassinato. E
a irmã dissera que Andy gostava de fazer caminhada pela montanha. Ela podia entender por que o oficial que investigara o sítio e o bosque ao redor houvesse recomendado
que não se tomassem outras medidas além de fazer a informação circular entre as demais forças da Escócia. Uma anotação no arquivo, escrito com caligrafia diferente,
atestava que Angie Kerr havia entrado com um pedido para que seu irmão fosse declarado legalmente morto em 1992 e que o pedido fora concedido.
A última página estava na caligrafia familiar de Phil. "Os pais de Kerr morreram no desastre de balsa de Zeebrugge, em 1987. Angie não poderia reclamar sua herança
enquanto Andy não fosse declarado morto. Quando ela, finalmente, conseguiu legitimar a sucessão, em 1993, vendeu tudo e emigrou para a Nova Zelândia. Ela ensina
piano em Nelson, em South Island; trabalha em casa." Seguiam o endereço completo e o número de telefone de Angie Kerr.
Ela havia sofrido bastante com tudo aquilo, pensou Karen. Perder o irmão e os pais no espaço de alguns anos já era duro, e ainda por cima ter de passar pelo processo
de obter a declaração de morte legal para Andy. Não era de admirar que ela tivesse desejado se mudar para o outro lado do mundo. Onde, ela notou, seriam onze e meia
da manhã. Uma hora perfeitamente civilizada para se ligar para alguém.
Uma das poucas coisas que Karen havia comprado para sua casa era uma secretária eletrônica que lhe permitia gravar digitalmente as ligações telefônicas, que ela,
então, podia transferir via conexão USB para seu computador. Tentara convencer Biscoito a comprar algumas para o escritório, mas ele não se interessava. Provavelmente
porque não tinha sido ideia dele. Karen podia apostar que, muito em breve, algo parecido surgiria no escritório principal do Departamento de Investigação Criminal,
uma invenção do próprio subchefe Lees. Tudo bem. Pelo menos ela podia usar o sistema em casa e pedir ressarcimento pelas ligações.
Uma mulher atendeu no terceiro toque, o sotaque escocês evidente até mesmo nas duas sílabas de "Alô?".
Karen se apresentou e, então, disse:
- É Angie Kerr?
- Antes era Kerr. Agora é Mackenzie. É a respeito do meu irmão? Vocês o encontraram? - Ela parecia ansiosa, quase satisfeita.
- Não. Infelizmente, não.
- Ele não se matou, sabe? Sempre achei que sofreu um acidente. Caiu de alguma montanha, em algum lugar. Por mais deprimido que estivesse, Andy jamais se mataria.
Ele não era covarde. - O tom de desafio era claro em sua voz.
- Sinto muito - disse Karen. - Realmente não tenho respostas para você. Mas estamos examinando novamente os fatos da época em que ele
desapareceu. Estamos investigando o desaparecimento de Mick Prentice, e o nome do seu irmão veio à tona.
- Mick Prentice. - Angie parecia enojada. - Que belo amigo ele se revelou.
- O que você quer dizer?
- Não acho que seja coincidência que ele tenha fugido da greve justamente antes de Andy partir.
- Por que você diz isso?
Uma pausa curta, então Angie continuou:
- Porque seria o pior tipo de traição. Aqueles caras eram amigos desde o primeiro dia de escola. O fato de Mick ter furado a greve arrasaria Andy. E eu acho
que ele previu que isso aconteceria.
- O que a faz dizer isso?
- A última vez que o vi, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo com Mick.
Domingo, 2 de dezembro de 1984; Bosque de Wemyss
Nenhuma visita à casa de sua família seria completa, para Angie, se não passasse algum tempo com o irmão. Ela tentava vir pelo menos uma vez por semestre, mas, embora
a viagem de ônibus de Edimburgo levasse apenas uma hora, às vezes parecia demais para suportar. Ela sabia que o problema era o diferente tipo de distância que estava
crescendo entre ela e os pais, conforme se movimentava com maior liberdade num universo que era estranho para eles: palestras, sociedades estudantis, festas nas
quais as drogas eram tão comuns quanto um drinque, e uma gama de assuntos que ultrapassava tudo que ela já houvesse encontrado em Fife. Não que não existissem oportunidades
para ampliar os horizontes intelectuais por lá. Mas as salas de leitura, os cursos da WEA e os Bums Clubs eram para os homens. As mulheres nunca tiveram acesso nem
tempo para eles. Os homens cumpriam seus turnos no subterrâneo e, depois, seu tempo era só deles. Mas o trabalho das mulheres nunca terminava de verdade, principalmente
para aquelas cujos senhorios eram as antigas empresas carboníferas ou a comissão nacional do carvão. A própria avó de Angie não tivera água quente corrente nem um
banheiro em sua casa até já ter mais de sessenta
anos. Portanto, os homens não se sentiam facilmente atraídos por mulheres com formação escolar.
Andy era uma exceção. Sua mudança da frente mineira para o trabalho no sindicato o havia exposto às políticas igualitárias aspiradas pelo movimento sindicalista.
Ainda que não existissem mulheres trabalhando nas minas, o contato com outros sindicatos havia convencido Andy de que o mundo não acabaria se as mulheres fossem
tratadas como companheiras igualitárias da raça humana. E, assim, irmão e irmã tornaram-se mais próximos, substituindo as brigas da infância por discussões legítimas.
Agora, Angie esperava com ansiedade pelas tardes de domingo passadas com o irmão, passeando pelo bosque ou segurando canecas de chocolate quente diante da lareira.
Naquela tarde, Andy a esperara na parada de ônibus no final da estrada que descia até seu sítio, adentrando o bosque. Eles haviam planejado contornar o bosque e
caminhar até a orla, mas o céu ameaçava chuva, então optaram por voltar ao sítio.
- Acendi a lareira para a sua chegada - Andy dissera quando começaram a caminhada. - Me sinto culpado por ter dinheiro para o carvão, então, geralmente, não
a acendo. Simplesmente visto mais um suéter.
- Isso é uma tolice. Ninguém o culpa por ainda receber um salário.
Andy balançou a cabeça.
- É aí que você se engana. Tem um monte de gente que acha que deveríamos devolver nosso salário para o fundo do sindicato.
- E a quem isso beneficia? Você está fazendo um trabalho. Está apoiando os homens em greve. Merece ser remunerado. - Ela passou o braço pelo de Andy, compreendendo
como ele devia estar se sentindo acuado.
- Pois é, e muitos dos grevistas acham que também deveriam receber alguma coisa do sindicato. Ouvi alguns deles, lá no Serviço Social, dizendo que, se o sindicato
estivesse pagando salário-greve, não teriam que estar trabalhando tanto para manter os fundos a salvo das mãos dos confiscadores. Eles questionam para que servem
os fundos do sindicato se não é para ajudar seus membros quando há uma greve. - Ele suspirou, a cabeça baixa como se estivesse caminhando contra um vento forte.
- E eles têm razão, sabe?
- Imagino que sim. Mas se você delega a tomada de decisões a seus líderes, que foi o que eles fizeram ao concordar com a greve sem uma votação
nacional, então não pode começar a reclamar quando eles tomam decisões com as quais você não concorda muito. - Angie olhou atentamente para o irmão, observando como
as linhas de tensão ao redor de seus olhos haviam se aprofundado, desde a última vez que o vira. Sua pele parecia pálida e pouco saudável, como a de um homem que
viesse passando tempo demais em ambientes fechados e sem suplementos vitamínicos. - E se você se deixar intimidar a esse respeito, não ajudará a ninguém.
- Não sinto que esteja sendo de muita ajuda no momento - ele disse, tão baixinho que a fala quase se perdeu no ruído das folhas mortas sob seus pés.
- Isso é uma bobagem - Angie protestou, sabendo que não era suficiente, mas sem saber o que mais poderia dizer.
- Não, é a verdade. A vida dos homens que eu represento está desmoronando. Eles estão perdendo a casa porque não conseguem pagar a hipoteca. A esposa já vendeu
o anel de casamento. Os filhos vão para a escola com fome. Têm furos nos sapatos. Aqui mais parece um maldito país de Terceiro Mundo, só que não temos nenhuma instituição
de caridade arrecadando dinheiro para nos ajudar com nosso desastre. E não posso fazer nada a respeito. Como você acha que me sinto com isso?
- Bem mal - disse Angie, agarrando seu braço com mais força. Não havia resistência; era como abraçar o protetor estofado contra correntes de ar que sua mãe
usava para manter a sala o mais abafada possível. - Mas você pode fazer apenas o melhor que conseguir. Ninguém espera que você solucione todos os problemas da greve.
- Eu sei - ele suspirou. - Mas me sentia parte desta comunidade. Pertenci a ela minha vida inteira. Agora, parece que os caras em greve estão num lado da
cerca e todos os demais estão no outro. Funcionários do sindicato, auxiliares das minas, gerentes, a porra do governo Toiy... somos todos inimigos.
- Agora é que você está realmente dizendo bobagens. De jeito nenhum estamos no mesmo lado que os Tories. Todo mundo sabe disso. - Eles caminharam em silêncio,
apressando o passo quando a promessa de chuva se tornou realidade. Caiu torrencialmente em gotas frias e duras. Os galhos nus acima de sua cabeça ofereciam pouca
proteção contra o aguaceiro penetrante. Angie soltou o braço dele e começou a correr. - Vamos apostar uma corrida? - ela disse, animada, de alguma forma, pelo aguaceiro
gelado.
Não olhou para verificar se ele a estava seguindo. Apenas correu de forma desordenada em meio às árvores, seguindo a trilha sinuosa. Como sempre, emergir na clareira
onde o sítio se incrustava era incrivelmente repentino. A casa aparecia como algo saído dos contos dos Irmãos Grimm, uma construção baixa sem qualquer outro charme
além do seu isolamento. O teto de ardósia, o estuque cinza, a porta e as janelas pretas levariam qualquer criança que passasse por ali a identificá-la como a casa
da bruxa malvada. Um alpendre de madeira abrigava um recipiente para carvão, uma pilha de madeira e a motocicleta com sidecar de Andy.
Angie correu até a varanda e se virou, ofegante. Não havia sinal de Andy. Alguns minutos se passaram antes que ele surgisse entre as árvores, caminhando com dificuldade,
o cabelo castanho-claro grudado à cabeça. Angie sentiu-se murchar diante do fracasso de sua tentativa de animá-lo um pouco. Ele não disse nada ao entrar primeiro
na casa, tão organizada e espartana quanto um quartel. A única decoração era uma série de pôsteres de animais selvagens que haviam sido dados como brinde junto com
um dos jornais dominicais escoceses. Um conjunto de prateleiras estava lotado de livros sobre história natural e política; outro, de LPs. Não poderia ser mais diferente
dos quartos que ela frequentava em Edimburgo, mas Angie gostava mais dali do que de qualquer um deles. Ela sacudiu a cabeça como um cachorro para tirar as gotas
de chuva do cabelo louro-escuro, atirou o casaco sobre uma cadeira e se encolheu em uma das poltronas de segunda mão que estavam ao lado da lareira. Andy foi direto
até a cozinha para preparar o chocolate quente.
Enquanto esperava que ele se juntasse a ela, Angie tentava imaginar uma forma de animá-lo. Geralmente, ela o fazia rir com as histórias de seus colegas da universidade
e suas travessuras, mas sentia que isso não iria funcionar naquele dia. Iriam parecer histórias insensíveis sobre os privilegiados. Talvez a solução fosse lembrá-lo
das pessoas que ainda acreditavam nele.
Ele voltou com duas canecas fumegantes numa bandeja. Geralmente, eles comiam biscoitos, mas qualquer coisa que cheirasse a luxo estava fora do cardápio daquele dia.
- Tenho doado a maior parte do meu salário para o fundo de emergência - ele disse, percebendo que ela havia notado. - Só guardo o suficiente para o aluguel
e as coisas básicas.
Sentaram-se de frente um para o outro, aferrando-se à bebida quente para deixar que o calor penetrasse em suas mãos geladas. Angie falou primeiro.
- Você não deveria dar atenção a eles. As pessoas que realmente o conhecem não acham que você seja um dos inimigos. Você deveria ouvir gente como Mick, que
sabe quem você é. O que você é.
- Você acha mesmo? - Sua boca se retorceu numa expressão amargurada. - Como é que pessoas da laia de Mick podem saber quem eu sou, se nem sequer sabem mais
quem elas mesmas são?
- O que você quer dizer com não saber mais quem é Mick? Vocês são amigos há mais de vinte anos. Não acredito que a greve tenha mudado nenhum de vocês tanto
assim.
- É o que se poderia pensar, não? - Andy olhou fixamente para o fogo com os olhos embotados e os ombros caídos. - Os homens daqui... não é comum a gente conversar
sobre nossos sentimentos. Vivemos nesta atmosfera de camaradagem, lealdade e dependência mútua, mas nunca falamos sobre o que acontece dentro da gente. Mas eu e
o Mick, nós não éramos assim. Costumávamos contar tudo um ao outro. Não havia nada sobre o que não pudéssemos conversar. - Ele afastou o cabelo molhado da testa
alta e estreita. - Mas, ultimamente, algo mudou. Sinto que ele está escondendo alguma coisa. Parece que há alguma questão realmente importante sobre a qual ele não
consegue se obrigar a falar.
- Mas pode ser qualquer coisa - disse Angie. - Algo entre ele e Jenny, talvez. Algo que não seria certo discutir com você.
Andy fungou.
- Você acha que ele não fala sobre Jenny? Eu sei tudo sobre aquele casamento, pode acreditar. Poderia desenhar um mapa das falhas geológicas entre aqueles
dois. Não, não é Jenny. A única coisa que posso pensar é que ele concorda com os outros. Que ache que eu não esteja servindo de nada para eles, no momento.
- Tem certeza de que não é sua imaginação? Isso não parece coisa do Mick.
- Bem que eu gostaria. Mas não é imaginação. Nem mesmo meu melhor amigo acha que eu mereça confiança. Só não sei quanto tempo conseguirei fazer meu trabalho,
me sentindo deste jeito.
Angie começou a se preocupar de verdade. O desespero de Andy estava claramente além de qualquer coisa com a qual ela soubesse lidar.
- Andy, não me leve a mal, mas você precisa ir ao médico.
Ele emitiu um som que parecia o de uma risada sufocada antes mesmo de se formar.
- Quem? O Dr. Aspirina e o Dr. Melhorai, os gêmeos analgésicos? Você acha que estou perdendo o juízo? Acha que esses dois saberiam o que fazer a respeito,
se eu estivesse mesmo? Acha que preciso de temazepam, como a porra da metade das mulheres daqui? Pílulas da felicidade, para fazer com que nada mais importe?
- Eu quero ajudar você, Andy. E não tenho competência para isso. Você precisa conversar com alguém que saiba o que fazer, e os médicos são um bom começo.
Até mesmo o Aspirina e o Melhoral sabem mais do que eu sobre depressão. Acho que você está deprimido, Andy. Uma depressão clínica mesmo, e não apenas tristeza.
Ele pareceu que ia chorar.
- Sabe o que é o pior de tudo isso que você acabou de falar? Que eu acho que você pode ter razão.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Kirkcaldy
Parecia plausível. Andy Kerr havia sentido que Mick Prentice escondia alguma coisa dele. Quando pareceu que Mick havia se unido aos fura-greves e ido para Nottingham,
deve ter sido o suficiente para empurrar alguém já fragilizado para o abismo. Mas aparentemente Mick Prentice, afinal, não havia ido para Nottingham. A questão,
pensou Karen, era se Andy Kerr sabia o que realmente havia acontecido com seu melhor amigo. E se ele estava envolvido no desaparecimento dele.
- E você nunca mais falou com Andy, depois daquele domingo? - ela perguntou.
- Não. Tentei telefonar para ele algumas vezes, mas só caía na secretária eletrônica. Eu não tinha telefone onde estava morando, então ele não tinha como
me ligar de volta. Minha mãe me disse que o médico lhe dera uma licença do trabalho, por causa da depressão, mas isso foi tudo que eu soube.
- Você acha que é possível que ele e Mick tenham ido a algum lugar juntos?
- O quê? Você quer dizer que tenham dado as costas para todo mundo e ido em direção ao pôr do sol, como Butch Cassidy e Sundance Kid?
Karen recuou.
- Não exatamente assim. Mas como se os dois tivessem se fartado e não conseguissem ver outra saída. Não há dúvida de que Andy estava com problemas. E você
sugeriu que Mick e Jenny também não estavam se entendendo. Talvez eles tenham se decidido por um rompimento limpo.
Ela podia ouvir Angie respirando, no outro lado do mundo.
- Andy não faria isso conosco. Ele jamais teria nos magoado dessa forma.
- Mick poderia tê-lo convencido? Você disse que eles eram amigos desde a escola. Quem era o líder? Quem era o seguidor? Sempre há um que lidera e outro que
segue. Você sabe disso, Angie. Mick era o líder? - Ninguém conseguia ser mais insistente do que Karen, quando estava inspirada.
- Acho que sim. Mick era o extrovertido, Andy era muito mais quieto. Mas eles formavam uma dupla. Estavam sempre metidos em problemas, mas não de forma negativa.
Não com a polícia. Apenas enrolados na escola. Eles sabotavam as experiências de química com fogos de artifício. Grudavam a tampa da mesa da professora. Andy era
bom com as palavras, e Mick era artístico, então eles imprimiam pôsteres com anúncios falsos da escola. Ou Mick falsificava bilhetes dos professores, dando aos dois
permissão para sair das aulas de que eles não gostavam. Ou bagunçavam a biblioteca, trocando as capas dos livros. Eu teria um ataque de nervos se tivesse alunos
como eles. Mas eles amadureceram. Na época da greve, os dois já estavam assentados na vida. - Havia mais do que um toque de pesar em sua voz. - Portanto, sim, teoricamente,
Mick poderia ter convencido Andy a dar no pé. Mas não teria sido por muito tempo. Eles teriam voltado. Não poderiam ficar longe. Tinham raízes profundas demais.
- Você cortou as suas - Karen observou.
- Eu me apaixonei por um neozelandês, e minha família inteira estava morta - Angie disse, simplesmente. - Eu não estava deixando para trás ninguém para chorar
por mim.
- É justo. Podemos voltar para o Mick? Você disse que Andy sugerira que havia problemas no casamento dele.
- Ela o obrigou a casar, sabe? Andy sempre achou que ela ficara grávida de propósito. Ela deveria estar tomando pílula, mas, incrivelmente, não funcionou
e, em seguida, Misha estava a caminho. Ela sabia que Mick vinha de uma família decente, o tipo de gente que não foge das responsabilidades. Então, é claro que ele
se casou com ela.
Havia um toque de amargura em seu tom de voz que fez Karen se perguntar se ela havia sido apaixonada por Mick Prentice antes que seu neozelandês aparecesse.
- Não foi o melhor dos começos, então.
- No início, eles pareciam bem felizes. - A admissão rancorosa de Angie custou a vir. - Mick a tratava como uma princesinha, e ela se aproveitava disso. Mas
não gostou nada quando chegaram os tempos difíceis. Achei, na época, que ela o havia forçado a furar a greve porque tinha se cansado de viver na miséria.
- Mas ela sofreu muito, depois que ele foi embora - disse Karen. - Foi um estigma terrível ser a esposa de um fura-greve. Ela não teria permitido que ele
a deixasse enfrentar aquilo sozinha.
Angie emitiu um ruído de desdém.
- Ela não tinha ideia de como seria, até que aconteceu. Ela não entendia. Não era das nossas, sabe? As pessoas falam da classe trabalhadora como se fosse
um bolo só, mas as linhas demarcatórias são tão bem definidas quanto em qualquer outra classe. Ela nasceu e foi criada em East Wemyss, mas não era uma de nós. Seu
pai não sujava as mãos. Ele trabalhava na cooperativa. Ficava atrás de um balcão de loja. Vestia camisa e gravata para trabalhar. Aposto que ele nunca votou no Partido
Trabalhista na vida. Então, não tenho certeza de que ela entendesse bem o que iria acontecer com ela, se Mick entrasse em greve.
Fazia sentido. Karen compreendia visceralmente o que Angie estava dizendo. Ela conhecia pessoas assim em sua própria comunidade. Pessoas que não se encaixavam em
lugar algum, que tinham a bunda calejada de tanto ficarem sentadas em cima do muro. Acrescentava peso à ideia de que Mick Prentice poderia ter fugido da greve. Exceto
pelo fato de ele não ter feito isso.
- O negócio, Angie, é que parece que Mick não fugiu da greve, naquela noite. Nossos inquéritos preliminares indicam que ele não se uniu àqueles cinco homens
que foram para Nottingham.
Um silêncio chocado. Então, Angie disse:
- Ele poderia ter ido para outro lugar, sozinho.
- Ele não tinha dinheiro. Nem um meio de transporte. Não levou nada consigo quando saiu naquela manhã, além de seu material de pintura. Seja o que for que
aconteceu com ele, não acho que ele tenha fugido da greve.
- Então, o que aconteceu com ele?
- Ainda não sei - disse Karen. - Mas planejo descobrir. E esta é a pergunta que preciso começar a fazer: vamos supor que Mick não tenha furado a greve. Quem
poderia ter motivos para querê-lo fora do caminho?
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Nottingham
Femi Otitoju digitou o quarto endereço no Google Earth e estudou o resultado.
- Vamos, Fem - resmungou Mark Hall. - O inspetor-chefe está de olho na gente. Ele está se perguntando que diabo você está fazendo, brincando com o computador,
depois de ele ter nos mandado numa missão.
- Estou calculando a ordem mais eficiente para fazer as entrevistas, assim não teremos que perder a metade do dia voltando aos lugares. - Ela olhou para os
quatro nomes e endereços fornecidos por um detetive de Fife e os numerou de acordo com sua lógica. - E eu já falei: não me chame de Fem. - Ela imprimiu a lista e
a dobrou com esmero, guardando-a em sua impecável bolsa de mão. - Meu nome é Femi.
Mark girou os olhos e a seguiu, saindo do escritório de Revisão de Casos Arquivados, lançando um sorriso nervoso para o inspetor-chefe Mottram no caminho. Ele havia
esperado ansiosamente por sua transferência para o Departamento de Investigações Criminais, mas, se tivesse sido avisado de que isso significaria trabalhar com Femi
Otitoju, ele poderia ter reconsiderado a questão. O comentário na delegacia, quando ambos ainda usavam uniformes, era que, no caso de Otitoju, a sigla AP (agente
policial) queria dizer Além da Perfeição. Seu uniforme sempre fora imaculado e os sapatos, lustrados no padrão militar. Suas roupas civis seguiam o mesmo estilo:
um discreto
terninho cinza impecavelmente passado, camisa de um branco ofuscante, cabelo impecável. E sapatos mais polidos que um espelho. Tudo que ela fazia era dentro das
regras;
tudo era preciso. Não que Mark tivesse algo contra as coisas serem feitas adequadamente. Mas ele sempre acreditara que havia espaço para a espontaneidade, principalmente
numa entrevista. Se a pessoa com quem você estivesse falando saísse pela tangente, não havia mal algum em segui-la por um tempo. Às vezes, era entre as tangentes
que a verdade estava oculta.
- Então, esses quatro eram mineiros de Fife que furaram a greve para vir trabalhar nas minas daqui? - ele perguntou.
- Exatamente. Originalmente, havia cinco, mas um deles, Stuart McAdam, morreu há dois anos, de câncer de pulmão.
Como é que ela se lembrava daquelas coisas? E por que se importava em memorizá-las?
- E quem você vai ver primeiro?
- William John Fraser. Conhecido como Billy. Cinquenta e três anos, casado, dois filhos adultos, um na Universidade de Leeds, o outro em Loughborough. Ele
é eletricista autônomo agora. - Ela pendurou a bolsa no ombro. - Eu dirijo; sei aonde estamos indo.
Saíram para o estacionamento descoberto atrás da delegacia e se dirigiram para um carro sem identificação de uso comum do DIC (Departamento de Investigação Criminal).
Mark sabia que o carro estaria cheio de lixo deixado por outros policiais. Conforme descobria, o DIC e os carros eram como cães e postes.
- Ele não vai estar no trabalho agora?
Ele abriu a porta do passageiro e constatou que o assoalho do carro estava coberto de embalagens de sanduíches, latas de Coca-Cola vazias e cinco papéis de chocolate
Snickers. Algo branco esvoaçou no canto de sua visão periférica. Otitoju sacudia uma sacolinha plástica vazia.
- Tome - ela disse. - Enfie o lixo aqui para eu jogar na lixeira.
Mark pensou que, afinal, ela servia para alguma coisa. Seguiram pela
estrada principal, ainda movimentada mesmo depois da hora do rush matinal, e foram na direção oeste. A estrada era margeada por casas de tijolos vermelhos sujos
e pelo tipo de comércio que mal conseguia sobreviver, devido às opções mais sofisticadas em outros lugares. Lojas de conveniência,
salões de manicure, lojas de ferramentas, lavanderias, lanchonetes de fast-food e cabeleireiros. Era deprimente passar por ali. Mark ficou agradecido por seu apartamento
no centro da cidade, em uma fábrica de rendas que fora reformada. Podia ser pequeno, mas ele não tinha de lidar com essa pobreza em sua vida pessoal. E havia um
excelente restaurante chinês bem na esquina, que entregava em domicílio.
Quinze minutos percorrendo a estrada que contornava a cidade e eles viraram para um enclave de casinhas geminadas. Pareciam ter sido construídas na década de 1930;
sólidas, despretensiosas e de boa proporção. A casa de Billy Fraser ficava num terreno de esquina, com um jardim considerável e bem cuidado.
- Morei nesta cidade a vida toda e nem sequer sabia que este lugar existia - comentou Mark.
Ele seguiu Otitoju pela entrada da casa. A porta foi aberta por uma mulher que não podia ter mais de um metro e cinquenta de altura. Tinha a aparência de alguém
que já perdera sua melhor forma: mechas grisalhas no chanel castanho-claro, o queixo começando a ficar flácido, e alguns quilos a mais do que o ideal. Mark achou
que ela até que estava bem para a idade. Sua abordagem foi direta, antes que Otitoju tivesse a chance de assustá-la.
- Sra. Fraser?
A mulher assentiu, parecendo ansiosa.
- Sim, sou eu. - Sotaque local, notou Mark. Então, ele não havia trazido uma esposa de Fife. - E vocês são...?
- Sou Mark Hall, e esta é minha colega, Femi Otitoju. Somos policiais e precisamos conversar com Billy. Não é nada para se preocupar - acrescentou rapidamente,
ao ver o olhar de pânico no rosto da Sra. Fraser. - Uma pessoa que ele conhecia, lá em Fife, foi dada como desaparecida, e nós precisamos fazer algumas perguntas
a Billy.
A mulher balançou a cabeça.
- Você vai perder seu tempo, meu bem. Billy não manteve contato com ninguém de Fife a não ser os rapazes que vieram com ele para cá. E isso já faz mais de
vinte anos.
- O homem no qual estamos interessados desapareceu há mais de vinte anos - Otitoju disse, asperamente. - Então, precisamos falar com seu marido. Ele está
em casa?
Mark sentiu vontade de chutá-la, ao ver o rosto da Sra. Fraser se fechar para eles. Otitoju, definitivamente, não havia entrado na fila da simpatia.
- Ele está no trabalho.
- Você poderia nos dizer onde ele está trabalhando, minha flor? - perguntou Mark, tentando recuperar o rumo da conversa.
Ele quase podia enxergar o debate mental no rosto da mulher.
- Espere um pouco - ela disse, enfim. Voltou com uma agenda grande aberta na página daquele dia. Virou-a para que ele a olhasse. - Aqui está.
Otitoju já estava anotando o endereço em sua preciosa folha de papel. A Sra. Fraser viu os nomes.
- Vocês estão com sorte - ela disse. - Johnny Ferguson está trabalhando com ele hoje. Vocês poderão matar dois coelhos com uma cajadada só. - Pela expressão
em seu rosto, ela não estava muito convencida de que fosse apenas uma metáfora.
Os dois ex-mineiros estavam trabalhando a apenas cinco minutos de carro dali, reformando uma loja na rua principal.
- De casa de espetinhos de carne a oficina de molduras de quadros num passe de mágica - disse Mark, lendo as placas.
Fraser e Ferguson trabalhavam duro. Fraser abria um canal para passar os fios elétricos enquanto Ferguson derrubava o banco que havia em uma das paredes para facilitar
os clientes que compravam para viagem. Ambos pararam o que estavam fazendo quando os dois policiais entraram, olhando-os cautelosamente. Era engraçado, pensou Mark,
como algumas pessoas sempre reconheciam policiais instantaneamente, ao passo que outras pareciam ignorar quaisquer sinais que ele e seus colegas pudessem emitir.
Não tinha nada a ver com ser culpado ou inocente, como ele havia pensado, ingenuamente, no começo. Era só um instinto para identificar o caçador.
Otitoju os apresentou e explicou por que estavam ali. Fraser e Ferguson pareceram confusos.
- Por que alguém pensaria que ele veio conosco? - perguntou Ferguson.
- Mais objetivamente, por que alguém pensaria que nós o traríamos?
- Billy Fraser passou as costas da mão pela boca, num gesto de repulsa. -
Mick Prentice achava que nós estávamos abaixo dele. Mesmo antes de nós furarmos a greve, ele desprezava a gente. Achava que era melhor do que nós.
- Por que ele pensaria isso? - Mark perguntou.
Fraser tirou um maço de Bensons do bolso do macacão. Antes que ele pudesse pegar um cigarro, Otitoju já havia colocado a mão macia sobre a aspereza da dele.
- Isso agora é contra a lei, Sr. Fraser. Este é um local de trabalho. O senhor não pode fumar aqui.
- Ah, puta que pariu - Fraser reclamou, virando-se enquanto enfiava os cigarros de volta no bolso.
- Por que Mick Prentice achava que era melhor do que vocês? - Mark perguntou novamente.
Ferguson aceitou o desafio.
- Alguns homens entraram em greve porque o sindicato mandou que fizessem isso. E outros porque estavam convencidos de sua razão e de que sabiam o que era
melhor para o restante de nós. Mick Prentice era um dos que achavam que sabiam mais do que os outros.
- Isso - Fraser concordou, com amargura. - E ele tinha seus amigos do sindicato para cuidarem dele. - Ele esfregou o polegar e o indicador no gesto universal
que representava dinheiro.
- Não entendo - disse Mark. - Sinto muito, companheiro, sou jovem demais para me lembrar da greve. Mas achei que um dos maiores problemas era que vocês não
recebiam salário-greve.
- Você está certo, filho - disse Fraser. - Mas, por algum tempo, os rapazes que participavam dos piquetes móveis recebiam dinheiro vivo. Então, quando havia
qualquer necessidade de ir aos piquetes, eram sempre os mesmos que recebiam autorização. E se você não servisse para aquilo, não havia nada mais para você. Acontece
que o Mick servia mais do que a maioria. Seu melhor amigo era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores, percebe?
- Era mais difícil para uns do que para outros - acrescentou Ferguson. - Imagino que o amiguinho de Prentice lhe dava uma graninha ou um pacote de comida
quando terminava o dinheiro dos piquetes. A maioria de nós não tinha tanta sorte. Portanto, não, Mick Prentice não veio conosco. E Billy tem razão. Nós não o teríamos
aceitado, se ele tivesse pedido para vir.
Otitoju andava pela sala, vistoriando o trabalho deles como se fosse uma inspetora de obras.
- No dia em que vocês partiram... Vocês chegaram a ver Mick Prentice?
Os dois homens trocaram um olhar que pareceu furtivo para Mark. Ferguson, rapidamente, sacudiu a cabeça.
- Mais ou menos - ele disse.
- Como é possível ver alguém "mais ou menos"? - Otitoju inquiriu, virando-se na direção deles.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984
Johnny Ferguson estava no escuro, na janela do quarto, de onde podia ver a estrada principal que atravessava o vilarejo. O quarto não estava frio, mas ele tiritava
um pouco, e a mão que segurava o cigarro enrolado tremia, recortando a elevação suave da fumaça.
- Vamos, Stuart - ele resmungou a meia-voz. Deu outra tragada no cigarro e olhou novamente para o relógio barato em seu pulso. Dez minutos de atraso. Seu
pé direito começou, involuntariamente, a tamborilar no chão.
Nada se movia. Ainda não eram nove horas, mas quase não havia luz. As pessoas não tinham dinheiro para pagar a eletricidade. Elas iam até o Serviço Social para usufruir
um pouco de luz e de aquecimento, ou iam para a cama, esperando dormir o suficiente para que o pesadelo tivesse terminado quando despertassem. Pela primeira vez,
entretanto, o silêncio das ruas não incomodou Ferguson. Quanto menos pessoas testemunhassem o que aconteceria naquela noite, melhor. Ele sabia exatamente o que estava
prestes a fazer, e estava morrendo de medo.
De repente, viu um par de faróis virando a esquina da Main Street. Contra as luzes fracas da rua, Ferguson pôde definir a silhueta de uma van Transit. Modelo antigo,
não o novo, que a polícia usava para transportar as tropas em suas operações contra os mineiros. Conforme a van se aproximou, ele pôde ver que era de cor escura.
Finalmente, Stuart havia chegado.
Ferguson apagou o cigarro. Deu uma última olhada no quarto em que havia dormido nos últimos três anos, desde que alugara aquela casinha minúscula. Estava escuro
demais para ver muita coisa, mas, também, ali
não havia muito o que ver. O que não podia ser vendido tinha sido quebrado para usar como lenha. Agora só havia o colchão no assoalho com um cinzeiro e um livro
rasgado de Sven Hassel ao lado. Nada que se arrependeria de abandonar. Helen já partira havia muito tempo, então, ele podia muito bem dar as costas para aquele bando
de desgraçados.
Desceu ruidosamente as escadas até o andar de baixo e abriu a porta bem no instante em que Stuart ia bater.
- Preparado? - perguntou-lhe Stuart.
Um suspiro profundo:
- Mais preparado, impossível.
Ele empurrou uma bolsa de viagem com o pé na direção de Stuart, agarrou a outra e apanhou também um saco preto de lixo. Dez anos de merda trabalhando na mina de
carvão e aquilo era tudo que tinha.
Deram dois passos, dos quatro que os conduziriam até a van e, de repente, já não estavam mais sozinhos. Uma figura virou a esquina, apressadamente, como alguém que
estivesse numa missão. Alguns metros mais perto, e a forma se definiu como Mick Prentice. Ferguson sentiu como se uma gelada mão lhe apertasse o peito. Era só o
que faltava! Prentice vir atacá-los, gritando insultos e fazendo com que todas as portas da rua se abrissem.
Stuart jogou a bolsa na traseira da van, onde Billy Fraser já estava acomodado sobre uma pilha de sacolas. Ele se virou para encarar Prentice, pronto para agir,
se fosse necessário.
Mas a raiva que tinham esperado que chovesse sobre eles não veio. Em vez disso, Prentice apenas ficou ali parado, parecendo prestes a romper em lágrimas. Olhou para
eles e balançou a cabeça.
- Não, rapazes. Não. Não façam isso - disse.
Ele continuou repetindo aquilo. Ferguson mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que os atormentava, convocando-os e incitando-os para que continuassem
leais ao sindicato. Isso era, pensou ele, uma amostra de como aquela greve os havia derrotado.
Ferguson passou por Prentice, guardou suas bolsas no carro e sentou-se ao lado de Fraser, que puxou as portas para fechá-las atrás dele.
- Inacreditável, porra - disse Fraser.
- Parece que ele acabou de levar um soco no estômago - disse Ferguson. - O cara pirou de vez.
- Dê graças a Deus - disse Fraser. - A última coisa de que precisávamos era que ele explodisse como uma porra de um foguete e fizesse a casa cair para a gente.
- Ele ergueu a voz quando o motor deu a partida. - Vamos, Stu. A vida nova começa agora.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007
- Houve alguma testemunha desse encontro? - perguntou Otitoju.
- Stuart já morreu, então sou a única testemunha que resta - Fraser disse. - Eu estava na van. A porta traseira estava aberta e eu vi tudo. Johnny tem razão:
Prentice parecia devastado. Como se o que estávamos fazendo fosse uma afronta pessoal.
- Poderia ter sido bem diferente se, em vez de você na van, estivesse o Iain - disse Ferguson.
- Por que isso teria feito diferença? - perguntou Mark.
- Iain e ele eram amigos. Prentice talvez sentisse a necessidade de ten tar convencê-lo a mudar de ideia. Mas Iain foi o último a ser apanhado, então achei
que havíamos nos livrado de uma boa. E essa foi a última vez que vimos Prentice - disse Ferguson. - Ainda tenho família por lá. Ouvi dizer que ele tinha dado no
pé, mas supus que ele houvesse ido com aquele amigo dele, o cara do sindicato. Não consigo me lembrar do nome dele...
- Andy alguma coisa - disse Fraser. - Isso mesmo, quando você me disse que os dois estavam na lista de desaparecidos, pensei que tivessem decidido dar o fora
e começar do zero em outro lugar. Vocês têm que entender, a vida das pessoas estava se desfazendo, naquela época. Os homens faziam coisas que jamais imaginaríamos
que fossem capazes. - Ele se virou, caminhou até a porta e saiu, tirando os cigarros do bolso.
- Ele está certo - disse Ferguson. - E, na maioria das vezes, não queríamos pensar muito a respeito. Pensando bem, ainda não queremos. Portanto, a não ser
que haja mais alguma coisa, desejamos a vocês um bom dia. - Ele apanhou o pé de cabra e voltou à sua tarefa.
Incapaz de pensar em mais perguntas, Mark se dirigiu para a porta. Otitoju hesitou um instante, antes de segui-lo até o carro. Ficaram sentados em silêncio por um
momento e, então, Mark disse:
- Deve ter sido horrível.
- Não justifica o desrespeito deles pela lei - disse Otitoju. - A greve dos mineiros provocou um distanciamento entre nós e as pessoas a quem servimos. Eles
nos fizeram parecer brutais, apesar de termos sido provocados. Dizem que até a rainha ficou chocada com a batalha de Orgreave, mas o que as pessoas esperavam? Supostamente,
devemos manter a paz. Se as pessoas não consentem em ser policiadas, o que mais podemos fazer?
Mark a encarou.
- Você me assusta - ele disse.
Ela pareceu surpresa.
- Às vezes me pergunto se você está no trabalho certo - ela retrucou.
Mark olhou para longe.
- Então somos dois, minha flor.
Castelo de Rotheswell
A despeito de sua determinação de lidar com Sir Broderick Maclennan Grant exatamente da mesma forma como lidaria com qualquer outra pessoa, Karen tinha de admitir
que seu estômago não estava colaborando. A ansiedade sempre havia afetado seu sistema digestivo, tirando-lhe o apetite e obrigando-a a fazer visitas urgentes ao
banheiro.
- Se eu tivesse que fazer mais entrevistas assim, não precisaria me preocupar com dieta - disse, quando ela e Phil partiram em direção ao Castelo de Rotheswell.
- Ach, andam valorizando demais as dietas - disse Phil, da confortável posição de um homem cujo peso não se alterara desde que completara dezoito anos, independentemente
do que comesse ou bebesse. - Você está bem assim.
Karen queria acreditar nele, mas não conseguia. Ninguém acharia atraente sua figura gorducha, a não ser que estivesse muito mais necessitado de companhia feminina
do que Phil.
- Ah, sei.
Ela abriu sua maleta e revisou os pontos principais do arquivo do caso, para o bem de Phil. Mal havia chegado ao final de seu resumo quando viraram para tomar a
entrada de Rotheswell. Para além dos galhos secos de um grupo de árvores, podiam avistar o castelo, mas, antes de se aproximarem
mais, sua identidade precisava ser verificada. Tiveram de sair do carro e mostrar a credencial para a câmera do circuito fechado de televisão. Então, os sólidos
portões de madeira se abriram, permitindo que o carro chegasse a uma espécie de antecâmara de segurança. Phil foi dirigindo, enquanto Karen caminhava ao lado do
carro. Os portões de madeira se fecharam atrás deles, deixando-os presos num tipo de curral gigante. Dois guardas saíram de uma guarita e revistaram o exterior e
o interior do carro, a maleta de Karen e os bolsos do casaco esportivo de Phil.
- Ele tem um sistema de segurança melhor que o do primeiro-ministro - disse Karen, quando finalmente puderam seguir de carro até o castelo.
- É mais fácil conseguir um primeiro-ministro novo do que outro Brodie Grant - disse Phil. - De qualquer forma, aposto que é isso que ele pensa.
Ao se aproximarem da casa, um senhor de idade, vestindo um casaco impermeável e um quepe de lã, contornou a torre mais próxima e acenou para que eles seguissem até
o extremo do pátio de cascalho, em frente à casa. Quando eles finalmente estacionaram, ele já havia desaparecido, sem deixar-lhes outra opção senão a de se aproximar
das imensas portas de madeira com tachas de ferro, no centro da fachada.
- Onde está o Mel Gibson quando precisamos dele? - Karen resmungou, levantando uma aldrava pesada de ferro e deixando-a cair com um estrondo considerável.
- Parece um filme ruim.
- E nós ainda nem sabemos por que estamos aqui. - Phil parecia aborrecido. - Difícil entender o que poderia justificar tamanha preparação.
Antes que Karen pudesse responder, a porta se abriu, girando em dobradiças silenciosas. Uma mulher, que lembrara sua professora do primário, disse:
- Bem-vindos a Rotheswell. Sou Susan Charleson, assistente pessoal de Sir Broderick. Entrem.
Eles entraram em um saguão onde, não fosse pela grandiosa escadaria, poderia caber a casa inteira de Karen. Antes que pudessem observar mais do que as cores intensas
e a atmosfera de aconchego, eles foram impelidos a seguir por um amplo corredor, por uma curta distância.
- Suponho que seja a inspetora Pirie - disse Susan Charleson. - Mas não estou a par do nome e do posto do seu colega.
- Sargento detetive Phil Parhatka - ele disse, com toda a pompa de que era capaz diante da formalidade dela.
- Ótimo, agora posso apresentá-los - ela disse, dando um passo para o lado e abrindo uma porta.
Ela acenou para que entrassem em uma sala onde o DIC poderia facilmente realizar seu Bums' Supper* anual. Teriam de empurrar alguns dos móveis para junto das paredes,
só para abrir espaço para as danças tradicionais, mas, ainda assim, não ficariam muito apertados.
Havia três pessoas na sala, mas Karen instantaneamente se concentrou naquela que irradiava carisma. Brodie Grant podia já ter passado dos setenta anos, mas ainda
tinha mais glamour que as duas mulheres que o rodeavam. Ele estava próximo à notável cornija de pedra entalhada da lareira, com a mão esquerda sob o cotovelo direito
e a mão direita segurando casualmente um charuto fino; o rosto estava tão imóvel e impressionante quanto na capa de revista que ela havia encontrado, ao buscar por
imagens dele no Google. Vestia um paletó de tweed cinza e branco cujo caimento sugeria ser de caxemira e seda, em vez do tradicional Harris and Donegal, uma camiseta
polo preta, calça combinando e aquele tipo de sapatos que Karen somente havia visto nos pés de americanos ricos. Ela achava que se chamavam sapatos oxford ou algo
parecido. Assemelhavam-se a alguma coisa que se veria num boneco escocês com traje típico, e não num capitão da indústria. Ela estava tão ocupada observando seus
sapatos estranhos que quase perdeu as apresentações.
Ergueu os olhos a tempo de captar o levíssimo esboço de sorriso nos lábios de Lady Grant, elegante em um terninho de mescla de lã com o clássico colarinho aveludado
que, por alguma razão, Karen sempre associava a dinheiro e classe. O sorriso, porém, parecia estranhamente cúmplice.
Susan Charleson apresentou a outra mulher.
- Esta é Annabel Richmond, uma jornalista freelancer.
Agora, cautelosa, Karen assentiu, expressando reconhecimento. Que diabos fazia uma jornalista ali? Se havia uma coisa que Karen sabia a respeito de Brodie Grant
era que ele era tão alérgico à mídia que poderia entrar em choque anafilático a qualquer momento na presença de alguém da imprensa.
* O aniversário do poeta Robert Bums é comemorado em toda a Escócia com um jantar escocês tradicional, acompanhado por leituras de obras e canções de Bums, no dia 25 de janeiro. (N.T.)
Brodie Grant deu um passo à frente e indicou, com um ondular de seu charuto, que eles deveriam se sentar num sofá, a quilômetros de distância da lareira. Karen se
sentou na beirada, ciente de que aquele era o tipo de sofá que a engoliria, impossibilitando uma saída que não fosse extremamente desastrada.
- A Srta. Richmond está aqui a meu pedido, por dois motivos - disse Grant. - O primeiro deles explicarei em breve. O outro é que ela vai atuar como uma ligação
entre a mídia e a família. Não concederei entrevistas coletivas nem farei apelos sentimentais pela televisão. Ela é, portanto, a primeira a ser procurada se vocês
estiverem atrás de alguma coisa para alimentar os répteis.
Karen inclinou a cabeça.
- Essa é uma prerrogativa sua - ela disse, tentando soar como se estivesse fazendo uma concessão, por pura bondade. Qualquer coisa que lhe garantisse recuperar
um pouco do controle. - O Sr. Lees me comunicou que o senhor acredita que tenham surgido novas provas no que se refere ao sequestro de sua filha e neto. Correto?
- São novas provas, sim. Disso não resta dúvida. Susan?
Ele olhou para a assistente, com expectativa. Suficientemente esperta para antecipar-se às exigências do chefe, ela já avançava na direção deles com uma folha de
compensado de madeira, coberta por um plástico. Ao se aproximar, virou-a de frente para Karen e Phil.
Karen sentiu um lampejo de decepção.
- Esta não é a primeira vez que vemos algo assim - ela disse, estudando a impressão monocromática de um titereiro com suas marionetes sinistras. - Deparci-me
com três ou quatro exemplares, nos arquivos.
- Cinco, na verdade - disse Grant. - Mas nenhum como este. Todos os anteriores foram desconsiderados porque divergiam de alguma maneira dos originais. As
reproduções que o inspetor-chefe Lawson distribuiu para a mídia, na época, foram alteradas sutilmente para que pudéssemos eliminar quaisquer imitadores. Todos os
que apareceram desde então eram cópias das versões alteradas.
- E esta aqui é diferente? - perguntou Karen.
Grant assentiu.
- Exatamente, inspetora. É idêntica em todos os aspectos. Estou ciente de que a recompensa que ofereci seja uma tentação para certas pessoas.
Mantive minha própria cópia do original para que pudesse comparar com qualquer coisa que me fosse trazida diretamente. Como esta. - Ele deu um sorriso cansado. -
Não que eu precise de uma cópia. Jamais me esquecerei de nenhum detalhe. A primeira vez que pus os olhos nesta imagem, ela ficou gravada na minha memória.
Sábado, 19 de janeiro de 1985
Mary Grant serviu uma segunda xícara de café ao marido antes que ele percebesse que havia terminado a primeira. Ela vinha fazendo aquilo havia tantos anos que ainda
o surpreendia o fato de sua xícara precisar ser enchida tantas vezes, quando se hospedava em hotéis. Ele virou a página de seu jornal e resmungou.
- Enfim, uma notícia boa. Lord Wolfenden libertou-se do invólucro mortal.
A expressão de Mary era mais de resignação cansada do que de choque.
- Que coisa horrível de se dizer, Brodie.
Sem levantar os olhos, ele continuou:
- O homem fez do mundo um lugar pior, Mary. Portanto, não fico triste por ele ter partido.
Anos de casamento haviam eliminado a maior parte da beligerância de Mary Grant. Mas, mesmo que ela houvesse pensado em dizer alguma coisa, não teria tido a oportunidade.
Para a surpresa de ambos, a porta da sala de café da manhã se abriu de repente, sem nenhuma batida prévia, e Susan Charleson entrou quase correndo. Brodie deixou
cair o jornal sobre os ovos mexidos, notando-lhe as bochechas rosadas e a respiração ofegante.
- Desculpem-me - ela balbuciou. - Mas o senhor precisa ver isto. - Ela empurrou um grande envelope de papel manilha na direção dele. Na frente, liam-se seu
nome e endereço e as palavras "particular" e "confidencial" escritas em hidrocor preto, acima e abaixo.
- Em nome de Deus, o que é isto que não pode esperar até depois do café? - ele perguntou, enfiando dois dedos sob a aba do envelope, revelando um papel grosso
dobrado em quatro.
- Isto - disse Susan, apontando para o envelope. - Coloquei de volta no envelope porque não quis que mais ninguém visse.
Com um resmungo de impaciência, Grant pegou o papel e o desdobrou. Parecia um pôster de propaganda de um show macabro de marionetes. Totalmente em preto e branco,
um titereiro se inclinava sobre o palco, manipulando um grupo de marionetes que incluíam um esqueleto e um bode. Lembrou-lhe aquele tipo de impressões que ele vira
uma vez, num programa da TV sobre a arte que Hitler odiava. Enquanto pensava isso, seus olhos examinaram a parte inferior do pôster. Onde se esperaria encontrar
detalhes sobre o show de marionetes havia uma mensagem muito diferente.
Seu capitalismo explorador e gerenciado está prestes a ser castigado.
Nós temos uma filha e um neto em nosso poder. Faça exatamente o que
mandarmos se quiser vê-los novamente. Nada de polícia. Apenas siga sua
vida normalmente. Estamos te observando. Entraremos em contato com você
em breve.
Pacto Anarquista da Escócia.
- É alguma brincadeira de mau gosto? - perguntou Grant, atirando-o sobre a mesa e empurrando a cadeira para trás. Quando ele se levantou, Mary apanhou o pôster
e, então, o deixou cair, como se tivesse queimado seus dedos.
- Ah, meu Deus - ela arfou. - Brodie?
- É um trote - ele disse. - Algum filho da puta doente está tentando nos assustar.
- Não - disse Susan. - Tem mais. Ela apanhou o envelope no chão e sacudiu-o pára que uma fotografia Polaroid caísse de dentro dele. Em silêncio, entregou-a
a Grant.
Ele viu sua única filha amarrada a uma cadeira. Um pedaço de fita adesiva cobria-lhe a boca. O cabelo estava despenteado e uma mancha de sujeira, ou um hematoma,
marcava-lhe a face esquerda. Entre ela e a câmera, uma mão enluvada segurava a primeira página do Daily Record do dia anterior para não deixar margem a dúvida. Ele
sentiu as pernas cederem e deixou-se cair na cadeira, as pálpebras tremendo enquanto tentava recuperar o autocontrole. Mary estendeu a mão pedindo a fotografia,
mas ele sacudiu a cabeça e segurou-a de encontro ao peito.
- Não - ele disse. - Não, Mary.
Houve um longo silêncio e, então, Susan disse:
- O que o senhor quer que eu faça?
Grant não conseguia articular as palavras. Não sabia o que estava pensando, o que estava sentindo nem o que queria dizer. Era uma experiência tão estranha e improvável
quanto usar drogas alucinógenas. Ele sempre estava no controle de si mesmo, assim como da maior parte do que acontecia ao seu redor. Sentir-se impotente era algo
que não lhe acontecia havia tanto tempo, que até se esquecera de como era lidar com aquilo.
- O senhor quer que eu telefone para o chefe de polícia? - perguntou Susan.
- Aqui fala para não fazer isso - disse Mary. - Não podemos colocar em risco a vida de Catriona e Adam.
- Ao diabo com isso - disse Grant, numa pálida aproximação à sua voz normal. - Não vou ser manipulado por um bando de anarquistas malditos. - Ele se forçou
a levantar, sua força de vontade superando o medo que já o devorava. - Susan, telefone para o chefe de polícia. Explique a situação. Diga a ele que quero o melhor
agente que tiver, que não se pareça com um policial. Quero que ele esteja no meu escritório dentro de uma hora. E, agora, vou para o escritório. Seguir com minha
vida normal, caso eles estejam realmente observando.
- Brodie, como você pode fazer isso? - Com o rosto lívido, Mary parecia chocada. - Temos que fazer o que eles mandarem.
- Não temos, não. Apenas temos que aparentar estar fazendo. - Agora, sua voz estava mais forte. Ter estabelecido os princípios básicos de um plano lhe dera
forças para se recuperar. Ele poderia lidar com o medo desde que pudesse se obrigar a acreditar que estava fazendo alguma coisa para resolver a situação. - Susan,
comece a tomar as providências. - Ele foi até Mary e lhe deu um tapinha no ombro. - Vai ficar tudo bem, Mary. Eu prometo.
Se ele não visse o rosto dela, não teria de lidar com suas dúvidas ou seu pavor. Já tinha o suficiente com que se preocupar, sem aquela carga extra.
Dysart, Fife
Outros homens teriam caminhado de um lado para o outro, esperando que a polícia chegasse. Brodie Grant nunca fora de desperdiçar energia em
atividades inúteis. Permaneceu sentado em sua cadeira no escritório, virada de costas para a escrivaninha, para que pudesse ver a vista espetacular por cima do estuário
do Forth até Berwick Law, Edimburgo e as montanhas Pentlands. Olhou por sobre a água cinzenta, ordenando seus pensamentos para evitar qualquer perda de tempo quando
a polícia chegasse. Ele detestava desperdiçar qualquer coisa, mesmo aquilo que podia ser facilmente reposto.
Susan, que o havia seguido para o trabalho na hora de costume, entrou pela porta que separava seu escritório do dele.
- A polícia está aqui - ela disse. - Devo fazê-los entrar?
Grant se virou em sua cadeira.
- Sim. Depois, deixe-nos a sós.
Ele notou o olhar de surpresa no rosto dela. Estava acostumada a participar de todos os seus segredos, a conhecer mais coisas do que Mary se daria ao trabalho de
saber. Mas, dessa vez, ele queria que o círculo fosse o menor possível. Até mesmo Susan seria demais.
Ela fez entrar dois homens vestidos com macacão de pintor e, então, fechou dramaticamente a porta atrás de si. Grant ficou satisfeito com o disfarce.
- Obrigado por terem vindo tão rápido. E tão discretamente - ele disse, observando os dois. Pareciam jovens demais para uma tarefa tão importante. O mais
velho, magro e moreno, tinha provavelmente uns trinta e poucos anos, e o outro, louro e avermelhado, uns vinte e tantos.
O moreno falou primeiro. Para surpresa de Grant, sua apresentação atingiu diretamente suas restrições.
- Sou o inspetor James Lawson - ele disse. - E este é o agente Rennie. Fomos instruídos pessoalmente pelo chefe de polícia. Sei que o senhor deve estar pensando
que sou muito novo para comandar uma operação como esta, mas fui escolhido devido à minha experiência. No ano passado, a esposa de um dos jogadores do time de futebol
East Fife foi sequestrada. Conseguimos resolver o assunto sem que ninguém se machucasse.
- Não me lembro de ter ouvido falar sobre isso - disse Grant.
- Fomos muito bem-sucedidos em manter segredo - disse Lawson, com o mais tênue sorriso de orgulho no rosto.
- Não houve julgamento? Como vocês conseguiram manter isso fora dos jornais?
Lawson deu de ombros.
- O sequestrador se confessou culpado. O caso estava resolvido e encerrado antes que a imprensa sequer percebesse. Somos bastante bons em lidar com a imprensa,
aqui em Fife. - De novo, um sorriso ligeiro. - Como pode ver, senhor, tenho uma experiência relevante.
Grant lançou-lhe um olhar demorado e avaliador.
- Fico satisfeito em saber disso. - Tirou uma pinça da gaveta e, delicadamente, deslocou a folha de papel que havia colocado por cima do pôster de resgate.
- Foi isto que chegou pelo correio, hoje de manhã. Acompanhado por isto... - Erguendo-a cuidadosamente pelas extremidades, ele virou a foto Polaroid.
Lawson se aproximou e os analisou atentamente.
- E o senhor tem certeza de que esta é sua filha?
Pela primeira vez, o autocontrole de Grant vacilou por uma fração de segundo.
- Você acha que não conheço minha própria filha?
- Não é isso, senhor. Mas, para que fique registrado, preciso ter certeza de que o senhor tem certeza absoluta.
- Tenho certeza.
- Neste caso, não há qualquer dúvida - disse Lawson. - Quando foi a última vez que o senhor viu ou falou com sua filha?
Grant fez um gesto de impaciência com a mão.
- Não sei. Suponho que a tenha visto pela última vez há umas duas semanas. Ela trouxe Adam para nos visitar. A mãe dela deve ter conversado com ela ou a visto
desde então. Você sabe como são as mulheres.
A culpa repentina que ele sentiu foi mais uma vibração lenta do que uma pontada. Ele não se arrependia de nada do que havia feito ou dito; só se arrependia de que
houvesse provocado uma ruptura entre ele e Cat.
- Falaremos com sua esposa - disse Lawson. - Será útil para nós termos uma ideia de quando isso aconteceu.
- Catriona é dona de seu próprio negócio. Creio que alguém perceberia, se sua galeria estivesse fechada. Deve haver centenas, milhares de pessoas que passam
de carro por ali todos os dias. Ela era bem escrupulosa com relação à placa de aberto e fechado. - Ele deu um sorriso rígido e frio.
- Ela é boa para negócios. - Puxou um bloco de anotações em sua direção e escreveu o endereço e as indicações de como chegar à galeria de Catriona.
- É claro - disse Lawson. - Mas achei que o senhor não quisesse que os seqüestradores soubessem que nos procurou.
Grant foi pego de surpresa por sua própria estupidez.
- Desculpe-me. Você tem razão. Não estou raciocinando direito. Eu...
- Esse é meu dever, não seu. - Havia gentileza no tom de voz de Lawson. - O senhor pode estar certo de que não faremos perguntas que levantem suspeitas. Se
não conseguirmos descobrir nada de forma aparentemente natural, deixaremos de lado. A segurança de Catriona e Adam está acima de tudo. Isso eu prometo ao senhor.
- É uma promessa que espero que cumpra. Agora, qual é o próximo passo? - Grant estava novamente no comando de si mesmo, porém desconcertado pelas emoções
que o desequilibravam.
- Colocaremos uma escuta e um rastreador em suas linhas telefônicas para o caso de eles tentarem entrar em contato com o senhor através do telefone. E vou
precisar que o senhor vá à casa de Catriona. É o que os seqüestradores esperariam. O senhor terá de ser os meus olhos dentro da casa. O senhor deverá registrar qualquer
coisa fora do lugar, qualquer coisa incomum. Terá de levar uma maleta ou algo assim para que, se por exemplo, houver duas canecas sobre a mesa, o senhor possa trazê-las
para nós. Também precisaremos de alguma coisa de Catriona para obtermos suas impressões digitais. Uma escova de cabelo seria ideal, pois teríamos também um pouco
de seu cabelo. - Lawson parecia ansioso.
Grant balançou a cabeça.
- Você terá que pedir à minha esposa para fazer isso. Não sou muito observador. - Não queria admitir que só havia cruzado a porta da casa da filha uma vez
e, mesmo assim, com relutância. - Ela ficará feliz por ter alguma coisa a fazer. Por se sentir útil.
- Muito bem, providenciaremos isso. - Lawson tocou o pôster com uma caneta. - Aparentemente esse é mais um ato político do que pessoal. E vamos verificar
informações a respeito de qualquer grupo que possa ter os recursos e a determinação para planejar algo assim. Preciso lhe perguntar, no entanto... o senhor teve
algum desentendimento com qualquer grupo de interesse específico? Uma organização que pudesse ter alguns caras mais exaltados em suas facções, capazes de achar que
era uma boa ideia fazer isso?
Grant já havia se perguntado aquilo enquanto esperava pela polícia.
- A única coisa em que posso pensar é um problema que tivemos há mais ou menos um ano com uma dessas organizações do tipo "salvem as baleias". Nós tínhamos
um empreendimento imobiliário em Black Isle que eles alegavam que afetaria de forma adversa o habitat de uns golfinhos no Moray Firth. Tudo bobagem, é claro. Eles
tentaram deter nosso pessoal da construção... aquela coisa de sempre, deitando-se em frente às retroescavadeiras. Um deles se machucou. Foi culpa de sua própria
estupidez, como disseram as autoridades. Mas foi apenas isso. Eles se foram, com o rabo entre as pernas, e nós continuamos com o empreendimento. E, a propósito,
os golfinhos estão perfeitamente bem.
Lawson ficou visivelmente animado com a informação de Grant.
- Mesmo assim, teremos que verificar essa possibilidade - ele disse.
- A Srta. Charleson tem todos os arquivos. Ela poderá lhes dizer o que vocês precisarem.
- Obrigado. Também preciso lhe perguntar se existe alguém que possa ter algum motivo de reclamação pessoal contra o senhor. Ou contra alguém de sua família.
Grant balançou a cabeça.
- Já incomodei muita gente nesta vida. Mas não consigo pensar em algo que tenha feito capaz de levar alguém a fazer isso. Certamente isto se relaciona com
dinheiro, não com ódio. Todo mundo sabe que sou um dos homens mais ricos da Escócia. Não é nenhum segredo. Para mim, esse é o motivo óbvio por trás disso. Alguns
filhos da puta tentando pôr as mãos no meu dinheiro suado. E eles acham que é dessa forma que irão conseguir.
- É possível - concordou Lawson.
- É mais do que possível. É o mais provável. E nem morto vou deixar que escapem ilesos dessa. Quero minha família de volta, e quero que eles voltem sem ter
de ceder um milímetro a esses desgraçados! - Grant bateu na mesa com a mão espalmada e os dois policiais deram um pulo com o estrondo repentino.
- É por isso que estamos aqui - disse Lawson. - Faremos tudo que for possível para obter o resultado que o senhor deseja.
Naquele momento, a confiança de Grant ainda estava intacta.
- Não espero nada menos do que isso - ele disse.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
Ao ouvir o relato de Grant sobre aquela primeira manhã depois de o mundo ter mudado, o que mais chamou a atenção de Karen foi a suposição, por parte de todos, de
que tudo tinha a ver com Brodie Grant. Ninguém parecia haver considerado que a pessoa que estava sendo punida não era Grant, e sim sua filha.
- Catriona tinha algum inimigo?
Grant olhou-a, com impaciência.
- Catriona? Como ela poderia ter inimigos? Era uma mãe solteira e uma artesã do vidro. Não levava o tipo de vida que gerasse animosidade pessoal. - Com um
suspiro, ele apertou os lábios.
Karen disse a si mesma que não deveria se intimidar com sua atitude.
- Desculpe-me. Eu me expressei mal. Deveria ter perguntado se o senhor sabe de alguém a quem ela houvesse desagradado.
Grant dirigiu-lhe um pequeno gesto de satisfação, como se ela houvesse passado num teste que nem sequer sabia existir.
- O pai de seu filho. Ele estava, de fato, bastante contrariado. Mas nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim, e os seus colegas da polícia nunca puderam
encontrar nenhuma prova que o conectasse ao crime.
- O senhor está se referindo a Fergus Sinclair? - Karen perguntou.
- E quem mais poderia ser? Pensei que você tivesse se atualizado com relação ao caso - cobrou Grant.
Karen começava a sentir pena de qualquer pessoa que fosse obrigada a suportar o alto nível de irritação de Brodie Grant. Desconfiava que não fosse reservada apenas
para ela.
- Só existe uma menção a Sinclair no arquivo - ela disse. - Nas anotações de uma entrevista com Lady Grant, Sinclair é mencionado como suposto pai de Adam.
Grant bufou.
- Suposto? É claro que ele era o pai do garoto. Eles vinham se encontrando de maneira intermitente havia anos. Mas o que você quer dizer com só existe uma
referência a Sinclair? Deve haver mais. Eles foram até a Áustria para interrogá-lo.
- Áustria?
- Ele trabalhava lá. É formado em administração rural. Trabalhou também na França e na Suíça, mas voltou para a Áustria cerca de quatro anos atrás. Susan
pode lhe dar todos os detalhes.
- O senhor o tem vigiado? - O que não seria nenhuma surpresa, pensou Karen.
- Não, inspetora. Eu já lhe disse: nunca achei que Sinclair tivesse a coragem para fazer algo assim. Então, por que o vigiaria? A única razão pela qual sei
onde Sinclair mora é porque seu pai ainda é meu caseiro. - Grant balançou a cabeça. - Não posso acreditar que tudo isso não esteja nos arquivos.
Karen estava pensando a mesma coisa, mas não quis admitir.
- E, que o senhor saiba, havia mais alguém que Catriona pudesse ter desagradado?
O rosto de Grant estava tão cinzento quanto seu cabelo.
- Só a mim, inspetora. Olhe, é óbvio, pelo lugar onde apareceu esta nova prova, que isso não tem nada a ver pessoalmente com Cat. É obviamente político. O
que faz com que tenha a ver com meus princípios pessoais, e não com quem Cat possa ter incomodado.
- Então, onde foi que este pôster apareceu? - perguntou Phil.
Karen ficou agradecida pela interrupção. Ele era bom em interromper e guiar as entrevistas em direções mais produtivas quando ela estava correndo o risco de estancar.
- Em uma fazenda em ruínas na Toscana. Parece que o local vinha sendo usado por posseiros. - Ele estendeu o braço na direção da jornalista. - Este é o outro
motivo pelo qual a Srta. Richmond está aqui. Foi ela que o encontrou. Sem dúvida, vocês vão querer conversar com ela. - Ele indicou o pôster. - Também vão querer
levar isto com vocês. Imagino que farão alguns testes. E, inspetora...?
Karen recuperou o fôlego, diante da arrogância dele.
- Sim?
- Não quero ler a respeito disso no jornal amanhã cedo. - Ele olhou feio para ela como se a desafiasse a responder.
Karen se controlou por um momento, tentando compor uma resposta que abrangesse tudo que ela queria dizer e deixasse de fora qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.
A expressão de Grant mudou rapidamente.
- O que quer que comuniquemos à mídia, assim como o momento de qualquer comunicação, será uma decisão operacional - ela disse, por fim.
- Será tomada por mim e, quando apropriado, por meus oficiais superiores. Entendo plenamente como tudo isso é doloroso para o senhor, mas sinto muito. Temos
de basear nossas decisões naquilo que pensamos que, provavelmente, irá produzir o melhor resultado. O senhor pode nem sempre concordar, mas, infelizmente, não tem
nenhum direito de veto. - Ela esperou a explosão, mas esta não se fez. Supôs que ele a estivesse reservando para o Biscoito ou para os chefes dele.
Em vez disso, Grant assentiu.
- Confio em você, inspetora. Tudo que peço é que se comunique com a Srta. Richmond antes, para que possamos nos precaver contra a máfia. - Ele correu os dedos
pelos densos cabelos grisalhos num gesto que parecia bem ensaiado. - Tenho muita esperança de que, desta vez, a polícia chegue à verdade. Com todos os avanços nas
ciências criminais, vocês devem estar em vantagem com relação ao inspetor Lawson. - Ele se virou, claramente os dispensando.
- Creio que ainda teremos algumas perguntas a lhe fazer - disse Karen, determinada a não ceder todo o controle do encontro. - Se Catriona não tinha inimigos,
talvez o senhor pudesse pensar em alguns amigos dela que possam nos ajudar. O sargento Parhatka lhe informará quando eu quiser falar novamente com o senhor. Nesse
meio-tempo... Srta. Richmond?
A mulher inclinou a cabeça e sorriu.
- Estou à sua disposição, inspetora.
Até que enfim alguém por ali com uma vaga noção de como as coisas deveriam funcionar.
- Gostaria de vê-la no meu escritório esta tarde. Podemos marcar para as quatro horas?
- Qual é o problema em entrevistar a Srta. Richmond aqui? E agora? - perguntou Grant.
- Esta investigação é minha - disse Karen. - Conduzirei minhas entrevistas onde me convier. E, devido a outros inquéritos em andamento, me convém que seja
no meu escritório, esta tarde. Agora, se o senhor nos der licença.
Ela se levantou, notando o divertimento cauteloso da Lady Grant e a desaprovação sombria de Susan Charleson. O próprio Grant permaneceu imóvel feito uma estátua.
- Tudo bem, Susan, eu acompanho os policiais - disse Lady Grant, levantando-se rapidamente e caminhando em direção à porta antes que a assistente recuperasse
o autocontrole.
Enquanto a seguiam pelo corredor, Karen disse:
- Isso deve ser muito difícil para a senhora.
Lady Grant voltou-se para eles, andando de costas com a segurança de alguém que conhece cada centímetro de seu território.
- Por que você diz isso?
- Ver seu marido reviver uma época tão difícil... Eu não gostaria de ver alguém de quem eu gostasse passando por tudo isso.
Lady Grant pareceu confusa.
- Ele convive com isso todos os dias, inspetora. Pode ser que não o demonstre, mas não tira isso da cabeça. Às vezes o vejo olhando para nosso filho, Alec,
e sei que ele está pensando em como poderia ter sido, com Adam. Pensando no que perdeu. Ter algo novo em que focar é quase um alívio para ele.
Ela girou nos calcanhares e deu-lhes as costas novamente. Enquanto a seguiam, Karen encontrou o olhar de Phil e ficou surpresa com a raiva que viu ali.
- Ainda assim, a senhora não seria humana se uma parte sua não desejasse que nunca encontrássemos Adam são e salvo - Phil disse, a leveza do tom contrastando
diretamente com a severidade de sua expressão.
Lady Grant se deteve e voltou-se para eles, franzindo as sobrancelhas. Um rubor rosado subiu por seu pescoço.
- Que diabos você quer dizer com isso?
- Acho que a senhora sabe exatamente o que quero dizer, Lady Grant. Nós encontramos Adam e, de repente, seu filho Alec não é mais o único herdeiro de Brodie
- disse Phil. Era preciso ter coragem, pensou Karen, para assumir o papel de para-raios da investigação.
Por um momento, Lady Grant pareceu estar a ponto de estapeá-lo. Karen podia ver seu peito subindo e descendo com o esforço de se controlar. Finalmente, ela se obrigou
a assumir a pose habitual de civilidade.
- Na verdade - ela disse secamente -, você está vendo a situação precisamente pelo ângulo errado. O comprometimento absoluto de Brodie em descobrir o destino
de seu neto me enche de confiança com relação ao futuro de Alec. Um homem tão preso aos deveres para com sua própria
carne e seu próprio sangue jamais decepcionará nosso filho. Acredite se quiser, sargento, a busca de Brodie pela verdade me dá esperança. Não medo.
- Ela se virou nos calcanhares e marchou até a porta da frente, que manteve enfaticamente aberta para eles.
Depois que a porta se fechou, Karen disse:
- Caramba, Phil, por que você não diz o que realmente está pensando? O que provocou aquilo?
- Me desculpe. - Ele abriu a porta do passageiro para ela, uma pequena cortesia a que raramente se dava ao trabalho. - Eu já estava cheio de brincar de Miss
Marple, a detetive, e aquela palhaçada toda de crime na casa de campo. Tudo muito limpo e civilizado. Só queria ver se conseguia provocar uma reação honesta.
Karen sorriu.
- Acho que se pode dizer que conseguiu. Só espero que não sejamos atingidos pelas faíscas.
Phil bufou.
- Você não fica muito atrás, quando se trata de ser durona. "Esta investigação é minha" - ele a imitou, sem maldade.
Ela se acomodou no carro.
- É, tudo bem. A ilusão de estar no comando. Foi bom, enquanto durou.
Nottingham
As belezas do parque Nottingham Arboretum não só haviam sido obscurecidas como praticamente ficaram invisíveis com a chuva torrencial que cegava o agente Mark Hall
enquanto seguia Femi Otitoju, subindo pela trilha que levava ao Campanário Chinês. Ela finalmente havia mostrado alguma emoção, mas não era exatamente o que Mark
havia esperado.
Logan Laidlaw tinha ficado ainda menos contente do que Ferguson e Fraser ao vê-los. Ele não só se recusara a permitir que entrassem em seu apartamento, como lhes
dissera que não tinha a menor intenção de repetir o que já tinha contado à filha de Mick Prentice.
- Esta droga de vida é curta demais para desperdiçar minha energia falando duas vezes sobre a mesma coisa - ele dissera e, então, batera a porta na cara deles.
Otitoju havia ficado mais púrpura do que uma beterraba em conserva, respirando pesadamente pelo nariz. Cerrou os punhos e chegou a levar o pé para trás como se fosse
chutar a porta. Bastante violento, levando em conta que não havia muita violência nela. Mark colocara a mão em seu braço.
- Deixe estar, Femi. Ele está no direito dele. Não é obrigado a falar conosco.
Otitoju dera meia-volta, seu corpo inteiro tenso de raiva.
- Não deveria ser permitido - ela disse. - Eles deveriam ser obrigados a falar com a gente. Deveria ser contra a lei que as pessoas se recusassem a responder
a nossas perguntas. Deveria ser crime.
- Ele é uma testemunha, não um criminoso - disse Mark, assustado com a veemência dela. - Foi o que nos disseram em nosso treinamento: policiais por consentimento,
não por coerção.
- Isso não está certo - disse Otitoju, voltando furiosamente para o carro. - Eles esperam que a gente solucione crimes, mas não nos dão as ferramentas para
fazer o serviço. Que diabos ele pensa que é?
- Ele é alguém cuja opinião sobre a polícia foi gravada em pedra nos idos de 1984. Você nunca viu as reportagens de jornal dessa época? Policiais a cavalo
atacavam os piquetes como se fossem cossacos ou coisa parecida. Se usássemos hoje o cassetete daquele jeito, seríamos presos. Não foi um de nossos melhores momentos.
Portanto, não é de surpreender que o Sr. Laidlaw não queira falar conosco.
Ela balançou a cabeça.
- Faz com que eu me pergunte o que ele pode ter a esconder.
O trajeto da casa de Iain Maclean até o Arboretum, cruzando a cidade, não havia ajudado a melhorar o humor dela. Mark a alcançou.
- Deixe isso comigo, ok? - ele disse.
- Você acha que não sei conduzir uma entrevista?
- Não, não é isso. Mas conheço o suficiente sobre ex-mineiros para saber que são bastante machistas. Você viu como foi com Ferguson e Fraser... eles não ficaram
muito contentes com o fato de você fazer as perguntas.
Otitoju parou abruptamente e atirou a cabeça para trás, deixando que a chuva escorresse por seu rosto como lágrimas geladas. Recompondo-se, suspirou.
- Está bem. Vamos tirar vantagem de seus preconceitos. Você conduz a conversa. - Então, ela voltou a andar, dessa vez num passo mais comedido.
Chegaram ao Campanário Chinês e encontraram dois homens de meia-idade, vestindo macacão da prefeitura e abrigando-se da tempestade. Os pilares estreitos, que davam
suporte ao teto elegante, não ofereciam muita proteção aos respingos de chuva espalhados pelas rajadas de vento, mas era melhor do que ficar totalmente exposto.
- Estou procurando Iain Maclean - disse Mark, olhando um e outro.
- Sou eu - disse o mais baixo dos dois, com olhos azuis cintilando no rosto bronzeado. - E quem são vocês?
Mark apresentou os dois.
- Tem algum lugar aonde possamos ir tomar uma xícara de chá?
Os dois homens trocaram um olhar.
- Deveríamos estar podando as margens, mas estávamos prestes a desistir e voltar para as estufas - disse Maclean. - Não há nenhum café por aqui, mas vocês
podem nos acompanhar até as estufas, e nós preparamos o chá.
Dez minutos depois, eles estavam espremidos num canto, nos fundos de um amplo túnel de polietileno, e fora do caminho dos demais jardineiros, cujos olhares curiosos
se haviam acalmado ao perceberem que não haveria nada espetacular. Um forte cheiro de húmus pairava no ar, lembrando Mark do barracão no jardim de seu avô. Iain
Maclean segurou a xícara com as mãos enormes e esperou que eles falassem. Ele não havia mostrado qualquer surpresa com a chegada dos policiais e tampouco lhes havia
perguntado por que estavam ali. Mark desconfiava que Fraser ou Ferguson já o tivessem avisado.
- Queremos conversar com você sobre Mick Prentice - ele começou.
- O que tem o Mick? Não o vejo desde que nos mudamos para o sul - disse Maclean.
- Nem você nem mais ninguém - disse Mark. - Todos presumiram que ele houvesse viajado para o sul com vocês, mas não é isso que estão nos dizendo hoje.
Maclean coçou as cerdas prateadas que cobriam sua cabeça num corte de cabelo militar.
- É, bem. Eu tinha ouvido falar que as pessoas achavam isso, lá em Newton. É só para mostrar a você como as pessoas sempre preferem pensar o pior. De jeito
nenhum Mick teria se juntado a nós. Não imagino como alguém que o conhecesse poderia pensar isso.
- E você nunca os corrigiu?
- Para quê? Na cabeça deles, eu sou um mineiro fura-greve e desonesto. Nada do que eu pudesse dizer em defesa de alguém teria muito peso, lá em Newton.
- Para ser justo, não é apenas uma questão de tirar conclusões precipitadas. A esposa dele recebia dinheiro ocasionalmente, depois que ele foi embora. O carimbo
do correio era de Nottingham. Essa é uma das principais razões pelas quais todos acharam que ele houvesse feito o impensável.
- Não sei qual é a explicação para isso. Mas te digo uma coisa: seria mais fácil Mick Prentice ir para a Lua do que furar a greve.
- Isso é o que todos nos dizem - disse Mark. - Mas as pessoas fazem coisas que parecem insólitas, quando estão desesperadas. E, segundo consta, Mick Prentice
estava desesperado.
- Não tanto a ponto de fazer isso.
- Você fez.
Maclean olhou fixamente para sua xícara.
- Fiz. E nunca me envergonhei tanto de algo. Mas minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. Eu sabia que não havia maneira alguma de trazer mais
um bebê àquela vida. Então, fiz o que fiz. Eu conversei a respeito com o Mick, antes. - Ele lançou um olhar rápido a Mark. - Éramos amigos, ele e eu. Estudamos juntos
na escola. Eu queria explicar para ele por que estava fazendo aquilo. - Ele suspirou. - Ele disse que entendia a minha decisão. Que ele também tinha vontade de ir
embora. Mas que furar greve não era para ele. Não sei para onde ele foi; mas eu sei que, com certeza, não foi para outra mina.
- Quando você soube que ele havia desaparecido?
Ele contorceu o rosto enquanto pensava.
- É difícil dizer. Acho que quando minha esposa veio para ficar comigo. Isso quer dizer que foi por volta de fevereiro. Mas pode ter sido depois disso. Minha
esposa, ela ainda tem família lá em Wemyss. Nós não voltamos lá. Não seríamos bem-vindos. As pessoas têm memória boa, sabe? Mas
nos mantemos em contato e, às vezes, eles vêm aqui nos visitar. - Um pálido sorriso de desculpa passou por seu rosto. - O sobrinho da minha mulher, ele é estudante
na universidade daqui. Está terminando o segundo ano. Ele vem jantar aqui em casa de vez em quando. Então, sim, eu ouvi falar que Mick havia entrado na lista dos
desaparecidos, mas não saberia te dizer com certeza quando foi que fiquei sabendo.
- Aonde você acha que ele foi? O que você acha que aconteceu? - Em sua ansiedade, Mark se esqueceu da regra fundamental de fazer apenas uma pergunta por vez.
Maclean ignorou ambas.
- Por que cargas d'água vocês ficaram interessados no Mick, assim de repente? - ele perguntou. - Ninguém veio procurar por ele, em todos esses anos. Por que
tanto alvoroço agora?
Mark explicou por que Misha Gibson havia, finalmente, informado a polícia sobre o desaparecimento de seu pai. Maclean se mexeu na cadeira, sem jeito, fazendo o chá
se derramar sobre os dedos.
- Que coisa horrível. Me lembro de quando a própria Misha não passava de uma garotinha. Gostaria de poder ajudar. Mas não sei para onde ele foi - ele disse.
- Como eu falei antes, não o vi mais desde que saí de Newton.
- Ouviu falar alguma coisa sobre ele? - acrescentou Otitoju.
Maclean lhe lançou um olhar duro. Em seu rosto curtido pelo sol, o olhar parecia tão impassível quanto o Monte Rushmore.
- Não tente dar uma de esperta pra cima de mim, querida. Não, não ouvi nada sobre ele. No que me diz respeito, Mick Prentice sumiu do planeta no dia em que
vim para cá. E foi exatamente o que esperei que fosse acontecer.
Mark tentou restabelecer a camaradagem, infiltrando solidariedade em sua voz:
- Entendo perfeitamente - disse. - Mas o que você acha que aconteceu com Mick? Você era amigo dele. Se alguém pode pensar numa resposta, esse alguém é você.
Maclean balançou a cabeça.
- Não sei mesmo.
- E se tivesse que fazer uma suposição?
Novamente ele coçou a cabeça.
- Te digo uma coisa. Achei que ele e Andy tivessem fugido juntos. Achei que os dois estivessem cheios, que houvessem ido para algum outro lugar para começar
do zero. Vida nova e essas coisas.
Mark se lembrava do nome do amigo de Prentice, que vira no relatório informativo sobre o caso. Mas não houvera qualquer menção de terem fugido juntos.
- Aonde eles iriam? Como poderiam simplesmente desaparecer, sem deixar rastros?
Maclean bateu com o dedo na lateral do nariz.
- Andy era comunista, sabe? E, nessa época, Lech Walesa e o Solidariedade eram importantíssimos na Polônia. Sempre achei que aqueles dois tivessem ido para
lá. Havia um monte de minas na Polônia e não iria parecer que eles estivessem furando a greve. De jeito nenhum.
- Polônia? - Mark sentiu que precisava de um curso rápido sobre a história política do século XX.
- Eles estavam tentando derrubar o comunismo totalitário - Otitoju disse, asperamente. - Para substituí-lo por uma espécie de socialismo dos trabalhadores.
Maclean assentiu.
- Isso teria sido bem do gosto de Andy. Acho que ele deve ter convencido Mick a ir com ele. Isso explicaria por que ninguém nunca mais soube deles. Presos
nas minas de carvão atrás da Cortina de Ferro.
- Mas já faz algum tempo que essa Cortina de Ferro cheira a naftalina - Mark disse.
- Sim, mas quem sabe que tipo de vida eles conseguiram estabelecer por lá? Poderiam estar casados, com filhos, poderiam ter deixado o passado para trás. Se
Mick tivesse uma nova família, não iria querer que a antiga aparecesse do nada, não é?
De repente, Mark teve um daqueles momentos de revelação em que pôde ver o cenário completo.
- Era você quem mandava o dinheiro, não era? Você colocava dinheiro num envelope e enviava a Jenny Prentice, porque achava que Mick não enviaria dinheiro
para ela da Polônia.
Maclean pareceu se encolher contra a parede translúcida de polietileno. Seu rosto se franziu tanto, que era difícil ver seus brilhantes olhos azuis.
- Só estava tentando ajudar. Tenho ganhado bem desde que vim para cá. Sempre senti pena de Jenny. Parecia que ela havia ficado com a pior parte porque Mick
não teve coragem para assumir suas responsabilidades.
Aquela era uma forma estranha de se expressar, pensou Mark. Ele podia muito bem deixar por isso mesmo; aquele caso não era seu, afinal, e ele não precisaria enfrentar
os problemas que poderiam advir de se investigar algo aparentemente sem conexão. Mas, por outro lado, ele queria cumprir aquela missão da melhor forma possível.
Queria explorar a posição de assistente do DIC para conseguir uma transferência permanente para a divisão de detetives. Então, fazer esforços extras era definitivamente
parte do seu plano.
- Tem alguma coisa que você não esteja nos dizendo, Iain? - ele perguntou. - Alguma outra razão para Mick ter fugido da forma como fez, sem dizer uma palavra
a ninguém?
Maclean tomou o resto do seu chá e colocou a xícara de lado. Suas mãos, desproporcionalmente grandes devido a uma vida inteira de trabalho manual intenso, se entrelaçaram
e se soltaram. Ele parecia alguém pouco à vontade com o conteúdo de sua própria mente. Respirou fundo e disse:
- Imagino que agora já não faça diferença. Não se pode punir alguém que já tenha ido desta pra melhor.
Otitoju estava prestes a romper o silêncio de Maclean, mas Mark agarrou seu braço, numa advertência. Ela cedeu, sua boca formou uma linha estreita, e eles esperaram.
Finalmente, Maclean falou.
- Nunca contei isso a ninguém. Até parece que adiantou de alguma coisa manter segredo. Vocês têm de entender, Mick era um defensor ferrenho do sindicato.
E, claro, Andy era funcionário em tempo integral do Sindicato Nacional dos Mineradores. Estava totalmente em casa, íntimo dos altos escalões. Não duvido que Andy
tenha contado a Mick muitas coisas que talvez não devesse. - Ele deu um sorriso melancólico. - Ele estava sempre tentando impressionar Mick, ser seu melhor amigo.
Frequentamos a mesma classe, na escola. Nós três costumávamos andar juntos. Mas você sabe como são os trios. Sempre existe um líder e os outros dois ficam tentando
agradá-lo, tentando tirar o outro da jogada. Era assim conosco. Mick
no meio, tentando manter a paz. Ele era bom nisso, esperto em encontrar formas de deixar nós dois contentes. Nunca permitia que um de nós ficasse por cima. Bem,
não por muito tempo, pelo menos.
Mark podia perceber que Maclean relaxava ao lembrar-se da calma relativa daqueles dias.
- Sei bem o que você quer dizer - ele disse, baixinho.
- Enfim, nós todos continuamos amigos. Eu e minha mulher costumávamos sair com Mick e Jenny, os quatro. Ele e Andy jogavam futebol juntos. Como eu disse,
ele era bom em encontrar coisas que faziam com que seus dois amigos se sentissem especiais. Pois então, algumas semanas antes de eu vir para cá, passamos o dia juntos.
Caminhamos até o porto de Dysart. Ele montou o cavalete e pintou, e eu pesquei. Contei a ele o que havia planejado fazer, e ele tentou me dissuadir. Mas eu podia
ver que ele não estava prestando muita atenção. Então, perguntei a ele o que o estava incomodando. - Ele parou novamente, seus dedos fortes apoiavam-se uns contra
os outros.
- E o que era? - perguntou Mark, inclinando-se para a frente para afastar a presença rígida de Otitoju e fazendo daquele um círculo puramente masculino.
- Ele disse que achava que um dos funcionários do sindicato estava roubando. - Olhou fixamente nos olhos de Mark. Ele podia sentir a terrível traição que
havia por trás das palavras de Maclean. - Nós todos estávamos sem um tostão e passando fome, e um dos caras que, supostamente, deveria ficar do nosso lado estava
enchendo os próprios bolsos. Pode não parecer muita coisa agora, mas naquela época, isso me abalou profundamente.
Quinta-feira, 30 de novembro de 1984; Dysart
Uma cavala estava puxando seu anzol, mas Iain Maclean não lhe prestava a menor atenção.
- Você só pode estar brincando! - ele disse. - Ninguém faria uma coisa dessas.
Mick Prentice deu de ombros, sem tirar os olhos do papel grosso preso em seu cavalete.
- Você não precisa acreditar em mim. Eu sei o que sei.
- Você deve ter entendido errado. Nenhum funcionário do sindicato roubaria da gente. Não aqui. Não agora. - Maclean parecia estar à beira das lágrimas.
- Olhe, vou lhe contar o que sei. - Mick passou o pincel rapidamente pelo papel, deixando uma mancha de cor ao longo do horizonte. - Eu estava no escritório
na terça passada. Andy tinha me pedido para ir lá ajudá-lo com os requerimentos da assistência, então eu estava folheando as cartas que havíamos recebido. Digo uma
coisa a você: ver o que as pessoas estavam passando era de partir o coração. - Ele limpou o pincel e misturou uma cor cinza esverdeada em sua palheta de bolso. -
Então, estou eu lá naquele cubículo, ao lado do escritório principal, examinando essas coisas, e esse outro funcionário está lá na frente. Enfim, vem uma mulher
de Lundin Links. Terninho de lã e uma boina idiota de pelo de angorá. Você conhece o tipo: a ricaça metida a Madre Teresa de Calcutá. Ela disse que eles haviam realizado
um café da manhã beneficente no clube de golfe e que tinham arrecadado 232 libras para ajudar as famílias pobres dos mineiros em greve.
- Fizeram muito bem - disse Maclean. - Melhor vir diretamente até nós do que falar com aquela maldita equipe da Tatcher.
- Certamente. Então, ele lhe agradece e ela vai embora. Agora, eu não vi exatamente para onde foi o dinheiro, mas posso lhe dizer que não foi para dentro
do cofre.
- Ah, tenha dó, Mick. Isso não prova nada. Pode ser que o cara tenha levado diretamente para a subseção do sindicato. Ou para o banco.
- Sei. - Mick deu uma risada sem humor nenhum. - Como se, nos dias de hoje colocássemos dinheiro no banco com os confiscadores atrás da gente.
- Mesmo assim - disse Maclean, sentindo-se ofendido, por alguma razão.
- Olhe, se fosse só isso, eu não teria me incomodado. Mas tem mais. Uma das tarefas de Andy é manter um registro do dinheiro que vem de doações e coisas do
tipo. Todo esse dinheiro deve ser repassado para a subseção. Não sei o que acontece com ele, então, se volta para a gente em forma de doações ou se vai parar na
corte do Rei Arthur, escondido em alguma maldita conta bancária na Suíça. Mas qualquer pessoa que arrecade dinheiro deve dizer a Andy, e ele anota num livrinho.
Maclean assentiu.
- Me lembro de ter de dizer a ele quanto tínhamos conseguido juntar, quando fizemos as arrecadações na rua, no último verão.
Mick fez uma breve pausa e olhou para o ponto onde o mar se encontrava com a terra.
- Eu estava na casa de Andy, na outra noite. O livro estava em cima da mesa. E a doação de Lundin Links não estava anotada nele.
Maclean puxou a linha com tanta força que quase perdeu o peixe.
- Merda - ele disse, girando a carretilha furiosamente. - Talvez Andy estivesse atrasado com as anotações.
- Gostaria que fosse tão simples assim. Mas não é isso. As últimas anotações no livro de Andy eram de quatro dias depois que aquele dinheiro foi entregue.
Maclean jogou a vara nas lajotas de pedra a seus pés. Ele podia sentir as lágrimas queimando nos olhos.
- Que porra de situação desgraçada. E você espera que eu sinta remorso por estar indo para Nottingham? Pelo menos é trabalho honesto, por um pagamento honesto,
e não roubo. Não posso acreditar numa coisa dessas.
- Eu também não. Mas de que outra forma se poderia explicar isso? - Mick balançou a cabeça. - E vindo de um cara que ainda está recebendo salário.
- Quem é ele?
- Não posso lhe dizer. Não até que tenha decidido o que fazer a respeito.
- É óbvio o que você tem de fazer. Tem que contar ao Andy. Se houver uma explicação inocente, ele saberá.
- Não posso contar ao Andy - Mick protestou. -Jesus, às vezes sinto vontade de fugir desta merda de confusão toda. Passar a régua e começar do zero em outro
lugar. - Ele balançou a cabeça. - Não posso contar a Andy, Iain. Ele já está deprimido. Se eu contar isso, poderia estar empurrando-o de uma vez para o fundo do
abismo.
- Bem, conte para outra pessoa, então. Para alguém da subseção. Você tem que pegar esse filho da puta. Quem é ele? Me conte. Mais algumas semanas e estarei
longe daqui. Para quem eu iria contar? - Maclean sentia a necessidade de saber queimando-o por dentro. Era mais uma coisa que o ajudaria a acreditar que estava fazendo
a coisa certa. - Me conte, Mick.
O vento fez o cabelo de Mick entrar em seus olhos, salvando-o do desespero no rosto de Maclean. Mas a necessidade de compartilhar seu fardo era pesada demais para
ignorar. Ele afastou o cabelo e olhou nos olhos do amigo.
- Ben Reekie.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Glenrothes
Karen tinha de admitir que estava impressionada. Não só a equipe de Nottingham havia feito um excelente trabalho, mas a agente Femi Otitoju tinha digitado seu relatório
e o enviado por e-mail em tempo recorde. Veja bem, pensou Karen, eu provavelmente teria feito a mesma coisa, no lugar dela. Dada a qualidade das informações que
ela e seu parceiro haviam conseguido obter, qualquer policial candidato ao DIG ficaria desesperado para tirar a maior vantagem possível.
E realmente havia algo ali para explorar ao máximo. A agente Otitoju e seu colega em Nottingham haviam descoberto quem tinha confundido a todos, enviando dinheiro
a Jenny Prentice. E, crucialmente, ela também tinha fornecido a primeira resposta possível à questão de quem ficaria feliz ao ver Mick Prentice pelas costas. Os
ânimos andaram bastante exaltados na época, e a impopularidade do sindicato crescia em várias partes. A violência já havia irrompido mais vezes do que se poderia
contar, e nem sempre entre a polícia e os grevistas. Mick Prentice poderia ter sido consumido pelo fogo com o qual brincava. Caso houvesse confrontado Ben Reekie
com o que sabia, se ele fosse culpado da acusação e se Andy Kerr tivesse sido arrastado para a confusão, devido à sua conexão com os outros dois, então, havia motivo
para Reekie se livrar dos dois homens, que desapareceram aproximadamente na mesma época. Talvez Angie Kerr estivesse certa a respeito do irmão. Talvez ele não tivesse
se matado. Talvez Mick Prentice e Andy Kerr fossem vítimas de um assassino - ou assassinos - desesperado para proteger a reputação de um funcionário desonesto do
sindicato.
Karen estremeceu.
- É imaginação demais - ela disse, em voz alta.
- O quê? - Phil afastou os olhos da tela do computador, franzindo a testa.
- Desculpe. Só estou me dando uma bronca por ser melodramática demais. Mas lhe digo uma coisa, se essa Femi Otitoju algum dia decidir se mudar para o norte,
vou colocá-la no lugar do Novo em Folha tão rápido que ele não vai nem saber o que está acontecendo.
- Não que isso seja muito difícil - disse Phil. - A propósito, o que você está fazendo aqui? Não deveria estar conversando com a adorável Srta. Richmond?
- Ela deixou um recado. - Karen olhou para seu relógio. - Chegará dentro de alguns minutos.
- Por que o atraso?
- Parece que teve que conversar com o advogado de algum jornal sobre um artigo que ela escreveu.
Phil reclamou.
- Que nem o tal do Brodie Grant. Ainda pensam que somos da classe serviçal, aqueles lá. Talvez você devesse deixá-la esperando.
- Não posso me dar ao luxo de entrar nesse jogo idiota. Olhe só isto aqui. O parágrafo que eu marquei. - Ela passou o relatório de Otitoju para Phil e esperou
que ele o lesse. Assim que ele levantou os olhos da página, ela disse: - Alguém afirmando que viu Mick Prentice umas doze horas depois de ele ter saído de casa.
E parece que ele não estava agindo de forma normal.
- Que estranho. Se ele estava fugindo, por que ainda estaria por ali, àquela hora da noite? Onde havia estado antes? E para onde estava indo? O que estava
esperando? - Phil coçou o queixo. - Não faz nenhum sentido para mim.
- Nem para mim. Mas vamos ter que tentar descobrir. Vou acrescentar à minha lista - ela suspirou. - Um pouco abaixo de "ter uma conversa decente com a polícia
italiana".
- Pensei que você houvesse conversado com eles.
Ela assentiu.
- Com um policial no quartel-general de Siena, um cara chamado di Stefano, com quem Peter Spinks, da Proteção Infantil, trabalhou há uns anos. Ele fala inglês
razoavelmente bem, mas precisa de mais informações.
- Então, você vai entrar em contato com eles novamente na segunda-feira?
Karen assentiu.
- Isso. Ele disse para não esperarmos encontrar ninguém no escritório deles depois das duas da tarde de uma sexta-feira.
- Será ótimo, se você conseguir - disse Phil. - Falando nisso, quer ir tomar um drinque rápido depois que terminar a conversa com Annabel Richmond? Tenho
que ir jantar na casa do meu irmão, mas tenho tempo para uma cervejinha.


CONTINUA

Christie. Uma dívida que não é pequena.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss
A voz é suave, como a escuridão que os cerca.
- Está preparado?
- Mais preparado do que nunca.
- Você disse a ela o que fazer? - As palavras agora rolam, tropeçando umas nas outras num emaranhado único de sons.
- Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabilizado se isto der errado. - Palavras ásperas, num tom áspero. - Não é com ela que estou
preocupado.
- O que você quer dizer com isso?
- Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. - As palavras possuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. - Vamos, terminemos logo com isto.
Assim é como tudo começa.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/DOMINIO_SOMBRIO.jpg

 

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziam uma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas. Parecia alguém com
uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conforme ela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a
mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras informações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmente ignorados por aqueles
que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhão de sua determinação.
Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não era feia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali, não estava em seus melhores
dias. Ela poderia ter colocado um pouquinho mais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algo que lhe caísse melhor do que jeans e blusa
de capuz. David Cruickshank assumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:
- Em que posso ajudá-la?
A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se preparando para defesa.
- Quero informar o desaparecimento de uma pessoa.
Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desaparecidas. Aquela ali estava
calma demais para que se tratasse de um filho pequeno, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga com o namorado, era disso que se tratava.
Ou um avô senil perdido. A mesma perda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo balcão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta.
Nem chegou a destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondida antes que ele anotasse quaisquer detalhes.
- E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?
- Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, para ser exata. - Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seu semblante. -
Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?
O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a tela do computador.
- Vou te dizer uma coisa - ele falou -, se existe uma época excelente para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.
A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo que estava atualizando.
- Como assim?
- Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, na Downing Street,
10, com a patroa a tiracolo. - Ele se levantou num salto e foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. - O que você prefere fazer? Solucionar casos arquivados
e receber os louros por isso, ou tentar prevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?
- Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministro faz de Fife um alvo? - Karen marcou onde estava no documento com o dedo indicador e dirigiu
toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou de que tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não considerara as possibilidades atuais. - Nunca
se incomodaram com o distrito eleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.
- Isso é verdade. - Phil espiou para dentro da geladeira, decidindo entre um refrigerante Im Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e ele ainda não
se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer em sua infância. - Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, e Gordon é filho de um pastor
presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugar do chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja do pai dele.
Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio.
- Não sei como você consegue beber isso aí - ela disse. - Nunca reparou que o nome é um anagrama de "vomit"?
Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.
- Faz crescer cabelo no peito - ele disse.
- É melhor você tomar duas latas, então. - Havia uma ponta de inveja na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gorduras saturadas,
mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os dois eram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suas medidas aumentando. Isso, definitivamente,
não era justo.
Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.
- Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um pouco mais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaça agora é maior.
Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.
- Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon aja de um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?
Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojava a Equipe de Revisão
de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alterado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquer telefone que tocasse perto dela.
- Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando - ela disse distraidamente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, no fundo, ele não
sentia saudade de estar envolvido com a ação.
- Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com uma pessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. - Cruickshank parecia um tanto inseguro.
Aquilo era incomum o bastante para chamar a atenção de Karen.
- Do que se trata?
- De uma pessoa desaparecida - ele disse.
- É um dos nossos?
- Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.
Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por tempo suficiente.
- Então ela precisa falar com o Departamento de Investigações Criminais, Dave.
- Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este caso está um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor que passasse por
você primeiro, entendeu?
Vá logo ao que interessa.
- Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com investigações recentes. - Karen girou os olhos para Phil, que devolveu um sorriso falso
diante da óbvia frustração dela.
- Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vinte e dois anos.
Karen se endireitou na cadeira.
- Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?
- Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?
Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar a mulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre se sentia atraída por coisas
que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros no escuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazido duas promoções em três anos, superando
alguns colegas de igual posição e deixando muitos outros incomodados.
- Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela.
Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.
- Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o desaparecimento de uma pessoa? - ela perguntou, mais para si mesma do que para Phil, vasculhando
a mesa à procura de um caderno vazio e de uma caneta.
Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.
- Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.
- E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. - O sorriso de Karen
era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse o Gato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.
Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do elevador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatlética da Gap. Modelos
e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos e sem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro na altura do quadril. O cabelo castanho-médio
tinha um bom corte chanel longo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava, portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social.
Tampouco, provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulher agradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantos anos, olhos azuis
com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima de maquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um. Ao perceber a avaliação de Karen,
a pele ao redor de seus olhos se apertou.
- Sou a inspetora Pirie - ela disse, abreviando o impasse em potencial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. - Karen Pirie.
Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gorducha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio
precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, caso fosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen se descrevia daquela
maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela era lindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela não concordava. Tinha uma opinião
razoavelmente boa sobre si mesma. Mas, quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, no entanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.
Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu mais segura.
- Graças a Deus por isso - ela disse. O sotaque de Fife era claro, embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela distância.
- Perdão?
A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes de leite de uma criança.
- Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enrolando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.
- Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo chá - Karen disse secamente. - Por acaso, fui a pessoa que atendeu ao telefone. - Ela deu
meia-volta, olhou para trás e disse: - Você me acompanha?
Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma salinha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, para o verde artificialmente
uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofadas de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfície de cerejeira fora polida até adquirir
um brilho opaco. A única indicação do propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas na parede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda
vez que usava aquele local, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhido fotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algo
muito ruim acontece.
A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou uma cadeira e lhe indicou que sentasse.
- Não é assim na televisão - ela disse.
- Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão - Karen respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em
relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição, menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entrevista de testemunha.
- Cadê o gravador? - A mulher se sentou, sem aproximar a cadeira nem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.
Karen sorriu.
- Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interrogatório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interrogada sobre um
crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável e olhar pela janela. - Ela abriu seu bloco de anotações. - Creio que está aqui para informar sobre uma pessoa
desaparecida.
- Isso mesmo. O nome dele é...
- Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para começar, qual é seu nome?
- Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobrenome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha.
- Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone.
Misha informou todos os detalhes.
- Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome dela, se é que você me entende.
Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus mineiros de carvão, numa
época em que estes lhe pertenciam tanto quanto as minas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquer ligação com o lugar ou seu passado.
- Mesmo assim - ela disse -, preciso de seus dados também.
As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então, ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujo conhecimento da geografia
social da capital, a apenas cinquenta quilômetros de distância, era provincianamente escasso.
- E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa - ela disse.
Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.
- Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser exata.
- E quando foi que seu pai desapareceu? - Ali, pensou Karen, era onde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.
- Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio. Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. - As sobrancelhas
de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.
- É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desaparecimento - disse Karen.
Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.
- Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente.
- Não estou entendendo. O que quer dizer com "não exatamente"?
Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.
- Você fala como alguém desta região.
Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:
- Cresci em Methil.
- Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984.
- A greve dos mineiros?
Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.
- Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pessoas costumavam dizer
por aqui: que ninguém era mais militante do que os mineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro, depois de nove meses de greve, em que meia
dúzia deles desapareceu. Bem, eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eles haviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. - Seu rosto
se franziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. - Com relação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo. Mas,
segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu pai tinha ido com eles. Inclusive ela. - Lançou a Karen um olhar defensivo. - Eu era pequena demais
para me lembrar. Mas todos dizem que ele era um sindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.
- Ela balançou a cabeça. - Porém, o que mais ela iria pensar?
Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia ter significado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a solidariedade era reservada
apenas para aqueles que aguentavam o tranco. A atitude de Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.
- Não deve ter sido nada fácil para sua mãe - ela disse.
- Em um aspecto, foi muito fácil. - Misha disse com amargura. - Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria mais saber dele.
Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergência. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para a Assistência Social dos Mineiros. Fui
criada numa casa em que o nome do meu pai jamais era pronunciado.
Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.
- Ele nunca entrou em contato com vocês?
- Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o carimbo do correio de Nottingham.
- Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai seja uma pessoa desaparecida. - Karen tentou fazer sua voz soar o mais gentil possível.
- Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim, inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. É preciso que o encontrem.
O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela, aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.
- Por quê? - ela perguntou.
Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo
Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquela sensação de ultraje pelo
fato de que o mundo seguia seu caminho, a despeito do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara em contar porque nunca havia se permitido acreditar
que aquela poderia ser a última vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polegares deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadas
por suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de alguma forma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviam atirado contra
sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicção tinha, finalmente, sido testada ao extremo.
Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol, desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda
não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e um apartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso. John não
estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia saber sobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido no trabalho alguma questão
complexa com que só ele pudesse lidar.
Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de arenito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, o pulmão verde do centro sul
da cidade, onde ela adorava caminhar com Luke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia também checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma
bola de rúgbi rodeada de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam a bola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pela
superfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha. Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a caminhar ali com Luke.
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, era disso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em perspectiva. Uma caminhada
rápida através do Meadows e, daí, atravessaria a Ponte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou um restaurante.
Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa de fundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Ela não permitiria que fosse
o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outra chance a Luke.
Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que o segurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelo trabalho de parto, ela
soubera. John estava em estado de negação, recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho, ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo
havia agarrado o coração de Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão em sua mente, então, fora: quão diferente?
O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorte era o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do Hospital Real para Crianças
Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nas histórias "milagrosas" que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito
para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem para explicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.
Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano; ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encantadora das palavras disfarçava
seu conteúdo letal. Escondidos no DNA de ambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado para criar uma condição rara que condenaria seu filho
a uma vida curta e dolorosa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que certamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula
óssea que, no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatível. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medula óssea,
Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.
Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que, sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria de algum membro da família;
era o que os médicos chamavam de doador aparentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Ela havia lido sobre os registros de transplante de
medula e deduzido que sua melhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, de acordo com o especialista, a doação de um membro da família não compatível,
que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um risco menor de complicações do que a de um doador compatível que não tivesse qualquer parentesco com o paciente.
Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos dois lados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e até mesmo oferecendo recompensas
a primos distantes e tias idosas. Aquilo havia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária. John se fechara atrás de uma muralha de otimismo
pouco realista. Haveria um avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar, descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes compartilhados.
Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro. John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à procura de casos que provassem
que os médicos estavam errados. Aparecia semanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis. E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura
incessante de Misha. Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de negação era olímpica.
Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo.
Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seu último beco sem saída
apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrível julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamente aquela que havia rezado para não ter de
levar em conta.
Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquele caminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pronta para ser agressiva com
quem quer que estivesse invadindo seu espaço.
- John - ela disse, com cansaço.
- Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento
- ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamente até ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para que se tocassem,
se algum deles quisesse.
- Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.
- Não, isso eu posso ver. O que eles disseram?
Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do veredito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filho era invencível,
de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reação dela.
Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto o consolo.
- Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. - Sua voz parecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. A emoção derreteria
seu estado congelado e ali não era o lugar para demonstrações de pesar ou amor.
John apertou os dedos dela com força.
- Talvez não seja tarde demais - ele disse. - Talvez eles...
- Por favor, John. Agora não.
Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensionava conforme ele controlava sua discordância.
- Então - ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que outra coisa -, imagino que você vá procurar o filho da puta?
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen coçou a cabeça com a caneta. Por que eu sempre pego os melhores?
- Por que você deixou passar tanto tempo, antes de tentar rastrear seu pai?
Ela captou uma expressão fugaz de irritação em volta dos olhos e da boca de Misha.
- Porque eu havia crescido achando que meu pai fosse um filho da puta fura-greve e egoísta. O que ele fez alijou minha mãe de sua própria comunidade. Fez
com que eu fosse maltratada no parque e na escola. Não achei que um homem que houvesse abandonado a família na merda fosse se incomodar com o neto.
- Ele mandava dinheiro - disse Karen.
- Uns trocados aqui e ali. Dinheiro maldito - disse Misha. - Como eu disse, minha mãe se recusava a usá-lo. Ela o doava. Nunca tirei proveito dele.
- Talvez ele tenha tentado compensar a sua mãe. Os pais nem sempre nos contam as verdades incômodas.
Misha balançou a cabeça.
- Você não conhece a minha mãe. Mesmo com a vida de Luke em jogo, ela não ficou nada contente que eu estivesse tentando encontrar meu pai.
Para Karen, aquele parecia um motivo insuficiente para evitar o homem que poderia fornecer a chave para o futuro de um garoto. Mas ela sabia como os sentimentos
eram profundos nas velhas comunidades mineiras, deixou estar, portanto.
- Você diz que ele não estava onde se supunha. O que aconteceu, quando você foi procurar por ele?
Quinta-feira, 21 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Jenny Prentice tirou um saco de batatas da prateleira de verduras e se pôs a descascá-las, o corpo inclinado sobre a pia e as costas voltadas para a filha. A pergunta
de Misha pairou sem resposta entre as duas, lembrando ambas da barreira que a ausência do pai havia colocado entre elas desde o início. Misha tentou novamente.
- Eu perguntei...
- Eu te ouvi muito bem. Não há nada de errado com a minha audição - disse Jenny. - E a resposta é: não tenho a menor ideia. Como eu saberia onde começar
a procurar por aquele merda de fura-greve egoísta? Nós nos viramos muito bem sem ele nos últimos vinte e dois anos. Nunca houve razão para procurá-lo.
- Bem, existe uma razão agora.
Misha olhou para os ombros curvados da mãe. A luz fraca que entrava pela pequena janela da cozinha acentuava o branco de seus cabelos não pintados. Ela mal havia
completado cinquenta anos, mas parecia ter pulado a meia-idade e adquirido logo o encurvamento vulnerável de uma anciã. Era como se ela soubesse que o ataque um
dia chegaria e houvesse optado por se defender tornando-se patética.
- Ele não irá ajudar - Jenny zombou. - Ele deixou claro o que pensava de nós, quando nos abandonou para que nos virássemos sozinhas. Ele só pensava em si
mesmo.
- Pode ser. Mas mesmo assim tenho que tentar, pelo bem de Luke - Misha disse. - Havia algum endereço de remetente nos envelopes em que vinha o dinheiro?
Jenny cortou uma batata descascada ao meio e deixou cair numa panela com água salgada.
- Não. Ele nem sequer se dava ao trabalho de colocar uma cartinha no envelope. Apenas um punhado de cédulas sujas, só isso.
- E os caras com quem ele foi embora?
Jenny lançou um olhar rápido e desdenhoso para Misha.
- O que têm eles? Não dão as caras por aqui.
- Mas alguns ainda devem ter família aqui, ou em East Wemyss. Irmãos, primos. Eles podem saber alguma coisa sobre o meu pai.
Jenny sacudiu a cabeça com firmeza.
- Nunca mais ouvi falar dele, desde o dia em que se foi. Nem um pio, bom ou ruim. Os outros homens com quem ele foi embora não eram seus amigos. A única razão
pela qual ele pegou carona com eles foi porque não tinha dinheiro para ir sozinho para o sul. Ele deve ter usado os caras assim como usou a gente e, depois, deve
ter seguido seu próprio caminho, quando chegou aonde queria. - Ela deixou cair outra batata na panela e disse sem qualquer entusiasmo: - Você vai ficar para a janta?
- Não, tenho algumas coisas para resolver - Misha disse, impaciente com a recusa da mãe em levar a sério sua busca. - Deve haver alguém com quem ele tenha
mantido contato. Com quem ele poderia ter falado? A quem ele teria contado o que estava planejando fazer?
Jenny se empertigou e colocou a panela no velho fogão a gás. Misha e John se ofereciam para trocar o fogão desconjuntado toda vez que se sentavam para aquele ato
teatral que era o jantar de domingo, mas Jenny sempre recusava, com o ar de martírio frustrado com que normalmente respondia às ofertas de gentileza.
- Nisso você também deu azar. - Ela se acomodou numa das duas cadeiras que estavam ao redor da mesa minúscula na cozinha apertada. - Ele só tinha um amigo
de verdade. Andy Kerr. Era um comunista fervoroso, o Andy. Te digo uma coisa: em 1984 não eram muitos os que ainda erguiam a bandeira vermelha, mas Andy era um deles.
Ele já era sindicalista bem antes da greve. Ele e seu pai eram amigos desde a escola. - Seu rosto se suavizou por um momento, e Misha quase pôde ver a jovem que
ela havia sido. - Eles estavam sempre aprontando alguma, aqueles dois.
- Então, onde é que encontro esse tal de Andy Kerr? - Misha se sentou em frente à mãe, seu desejo de ir embora temporariamente abandonado.
O rosto da mãe se contorceu em uma expressão irônica.
- Coitada. Se você conseguir encontrar Andy, será uma detetive e tanto. - Ela se inclinou para a frente e deu um tapinha na mão de Misha. - Ele é mais
uma das vítimas do seu pai.
- Como assim?
- Andy adorava seu pai. Para ele, era Deus no céu e seu pai na terra. Pobre Andy. A greve o colocou sob uma enorme pressão. Ele acreditava na greve, acreditava
na luta. Mas ficou arrasado ao ver as dificuldades pelas quais seus homens estavam passando. Ele estava à beira de um ataque de nervos, e o diretor local o obrigou
a tirar uma licença médica, não muito antes de seu pai dar o fora. Ninguém o viu depois disso. Ele vivia lá nos cafundós, então ninguém percebeu que ele havia partido.
- Ela soltou um suspiro longo e cansado. - Ele mandou um cartão-postal para o seu pai, de algum lugar no norte. Mas, é claro, seu pai já tinha fugido da greve e,
portanto, nunca o recebeu. Mais tarde, quando Andy voltou, deixou um bilhete para a irmã dele dizendo que não suportava mais. O pobre coitado se matou.
- E o que isso tem a ver com o meu pai? - perguntou Misha.
- Sempre achei que o fato de seu pai ter furado a greve foi a gota d'água. - A expressão de Jenny era uma mistura de piedade e convencimento. - Foi o que
condenou Andy.
- Você não tem como saber isso. - Misha se afastou, aborrecida.
- Não sou a única por aqui que pensa assim. Se seu pai tivesse confiado em alguém, teria sido em Andy. E isso deve ter sido demais para aquela pobre alma
fragilizada. Ele tirou a própria vida, sabendo que seu único amigo de verdade havia traído tudo aquilo que ele defendia.
Naquele tom melodramático, Jenny se levantou e pegou um saco de cenouras da prateleira. Estava claro que ela dera por encerrado o assunto Mick Prentice.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen deu uma espiada no relógio. Quaisquer que fossem as qualidades de Misha Gibson, a brevidade não era uma delas.
- Então Andy Kerr provou ser, literalmente, um caso morto e enterrado?
- Minha mãe acha que sim. Mas parece que nunca encontraram o corpo. Talvez ele não tenha se matado, afinal - disse Misha.
- Eles nem sempre aparecem - Karen disse. - Às vezes, o mar os reivindica. Ou a floresta, que seja. Ainda existe muito espaço vazio nesta terra.
A resignação tomou conta do rosto de Misha. Karen percebeu que ela era uma mulher inclinada a acreditar no que lhe diziam. Se havia alguém que sabia disso, era sua
mãe. Talvez as coisas não fossem tão preto no branco quanto Jenny Prentice queria que sua filha pensasse.
- Isso é verdade - disse Misha. - E minha mãe falou mesmo que ele havia deixado um bilhete. Será que a polícia ainda o tem?
Karen balançou a cabeça.
- Duvido. Se em algum momento esteve com a gente, foi devolvido à família dele.
- Não teria havido um inquérito? Não teriam precisado do bilhete para isso?
- Você se refere a uma Investigação de Acidente Fatal - disse Karen.
- Não sem um corpo. Se existir um arquivo desse caso, é a respeito de pessoa desaparecida.
- Mas ele não está desaparecido. A irmã dele conseguiu que ele fosse declarado morto. Seus pais morreram no acidente da balsa de Zeebrugge, mas parece que
o pai sempre se recusou a acreditar que Andy tivesse morrido; então, não alterou o testamento para deixar a casa para a filha. Ela teve que ir ao tribunal e pedir
que declarassem Andy morto, para que ela pudesse herdá-la. De qualquer modo, foi o que minha mãe me contou. - Nenhum sinal de dúvida perturbava a expressão de Misha.
Karen anotou irmã de Andy Kerr e acrescentou um pequeno asterisco à observação.
- Portanto, se Andy se matou, voltamos a ter como única explicação racional para seu pai ter desaparecido o fato de ele querer furar a greve. Você fez alguma
tentativa de contatar os caras com quem se supõe que ele tenha fugido?
Segunda-feira, 25 de junho de 2007; Edimburgo
Nove e dez da manhã de uma segunda-feira e Misha já se sentia exausta. Ela já deveria estar com Luke no hospital. Brincando com ele, lendo para ele, bajulando os
terapeutas para que ampliassem seus procedimentos, discutindo planos de tratamento com a equipe médica e usando toda a sua energia para contagiá-los com a sua convicção
de que era possível salvar o filho. E, se era possível, todos eles tinham a obrigação de lhe proporcionar até a última gota de intervenção médica.
Mas, em vez disso, Misha estava sentada no chão, com as costas contra a parede, os joelhos dobrados, o telefone no colo e o bloco de anotações a seu lado. Ela disse
a si mesma que estava tomando coragem para dar um telefonema, mas no fundo sabia que a exaustão era o verdadeiro motivo por trás da inatividade.
Outras famílias aproveitavam os fins de semana para relaxar, recarregar as baterias. Mas não os Gibson. Para começar, havia menos funcionários trabalhando no hospital,
então Misha e John se sentiam obrigados a dedicar
mais energia que o habitual a Luke. Tampouco havia descanso quando eles voltavam para casa. O fato de Misha acreditar que a última esperança para o filho era encontrar
seu pai havia simplesmente agravado o conflito entre seu ardor missionário e o otimismo passivo de John.
Esse fim de semana havia sido mais difícil que o normal. Ter um limite de tempo definido para a vida de Luke impregnava de valor e intensidade cada momento que compartilhavam.
Era difícil evitar uma espécie de sentimentalismo melodramático. Assim que saíram do hospital no domingo, Misha retomou o refrão que vinha repetindo desde que visitara
a mãe:
- Eu tenho que ir a Nottingham, John. Você sabe disso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta impermeável e curvou a cabeça para a frente, como se estivesse lutando contra um vento forte.
- Telefone para o cara - John falou. - Se ele tiver alguma coisa a dizer, dirá pelo telefone.
- Talvez não. - Ela correu um pouco para acertar o passo com ele. - As pessoas sempre contam mais coisas cara a cara. Talvez possa me dar alguma informação
sobre os outros que foram para lá com ele. Pode ser que eles saibam de alguma coisa.
John bufou.
- E como é que a sua mãe só se lembra do nome de um cara? Por que ela não pode te dar informações a respeito dos outros?
- Eu já disse. Ela apagou da memória tudo sobre aquela época. Tive que pressioná-la muito até ela me dar o nome de Logan Laidlaw.
- E você não acha incrível que o único cara de quem ela se lembra não tenha nenhum parente na região? Nenhuma maneira óbvia de ser rastreado?
Misha enganchou seu braço no dele, em parte para fazê-lo ir mais devagar.
- Mas eu o rastreei, não foi? Você é desconfiado demais.
- Não sou, não. Sua mãe não conhece o poder da Internet. Ela não sabe dos cadastros eleitorais on-line nem do site 192.com. Ela acha que, se não houver nenhum
ser humano a quem perguntar, você está ferrada. Pensou que não estava lhe dando nada que você pudesse usar. Ela não quer ver você bisbilhotando a respeito desse
assunto, ela não vai te ajudar.
- Então você e ela podem dar as mãos. - Misha soltou o braço do dele e caminhou rapidamente à sua frente.
John a alcançou na esquina da rua deles.
- Isso não é justo - ele disse. - Eu só não quero que você se machuque à toa.
- Você acha que ver meu filho morrer sem fazer nada para salvá-lo não está me machucando?
Misha sentiu o calor da raiva em seu rosto, soube que as lágrimas de ira estavam à espreita. Virou o rosto, piscando desesperadamente para os prédios altos de arenito.
- Encontraremos um doador. Ou eles encontrarão um tratamento. Toda essa pesquisa com células-tronco está avançando muito rápido.
- Não rápido o bastante para Luke - Misha disse, a familiar sensação de peso no estômago desacelerando seus passos. - John, por favor. Preciso ir a Nottingham.
Preciso que você tire uns dias de folga do trabalho para ficar com Luke.
- Você não precisa ir. Pode falar com o cara pelo telefone.
- Não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você não negocia com clientes pelo telefone. Não quando é alguma coisa importante. Você vai até eles pessoalmente.
Quer olhar em seus olhos. Tudo que estou pedindo é que você tire uns dias de folga para passar um tempo com seu filho.
Os olhos dele brilharam perigosamente, e ela soube que tinha ido longe demais. John balançou a cabeça com teimosia.
- Telefone para ele, Misha.
E isso foi tudo. Sua longa experiência com o marido havia lhe ensinado que, quando John assumia uma postura que acreditava estar certa, insistir no mesmo ponto
apenas lhe dava a oportunidade de construir defesas mais fortes. Ela não tinha argumentos novos que pudessem mudar sua decisão. Portanto, ali estava ela, sentada
no chão, tentando formular frases capazes de convencer Logan Laidlaw a lhe dizer o que havia acontecido com seu pai desde que ele a abandonara, havia mais de vinte
anos.
Sua mãe não lhe dera muita coisa para criar uma estratégia. Laidlaw era um esbanjador, um mulherengo, um homem que, aos trinta anos, ainda agia como um adolescente.
Aos vinte e cinco anos, já se divorciara com a péssima reputação de ser um homem habilidoso demais com os punhos quando perto das mulheres. A imagem que Misha guardava
do pai era incompleta e parcial, mas, mesmo com a visão imposta pela mãe, Mick Prentice não
parecia ser o tipo de homem que tivesse tempo a perder com Logan Laidlaw. Ainda assim, tempos difíceis criam os companheiros mais estranhos.
Finalmente, Misha pegou o telefone e digitou os números que ela havia encontrado através de buscas na Internet e em listas telefônicas. Provavelmente ele saíra para
trabalhar, ela pensou no quarto toque. Ou então estava dormindo.
O sexto toque foi interrompido abruptamente. Uma voz rouca grunhiu algo parecido com alô.
- É Logan Laidlaw? - Misha perguntou, lutando para manter a voz sob controle.
- Já tenho uma cozinha montada e não quero nenhum seguro. - O sotaque de Fife ainda era forte, as palavras se atropelando com o familiar sobe e desce.
- Não quero lhe vender nada, Sr. Laidlaw. Só preciso falar com o senhor um instante.
- É, sei. E eu sou o primeiro-ministro.
Ela podia sentir que ele estava a ponto de desligar.
- Sou a filha de Mick Prentice - ela revelou, sua estratégia tinha ido por água abaixo. Através da distância, ela podia ouvir o chiado líquido da respiração
dele. - Mick Prentice, de Newton of Wemyss - ela tentou.
- Eu sei de onde Mick Prentice é. Só não sei o que Mick Prentice tem a ver comigo.
- Olhe, sei que vocês dois não se veem muito, ultimamente, mas eu agradeceria qualquer informação que o senhor pudesse me dar. Realmente preciso encontrá-lo.
- O sotaque de Misha pulou algumas marchas até voltar à pronúncia carregada.
Uma pausa. Então, com um tom desconcertado:
- Por que você está me ligando? Não vejo Mick Prentice desde que saí de Newton of Wemyss, em 1984.
- Tudo bem, mas mesmo que vocês tenham se separado logo que chegaram a Nottingham, o senhor deve ter uma ideia de onde ele foi parar, aonde ele estava indo.
- Escuta aqui, docinho, não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim, nos separamos logo que chegamos a Nottingham? - ele parecia irritado,
a pouca paciência que tinha evaporava com as perguntas dela.
Misha engoliu um suspiro profundo e, então, disse lentamente:
- Só quero saber o que aconteceu com meu pai depois que vocês chegaram a Nottingham. Preciso encontrá-lo.
- Por acaso, você tem algum problema na cabeça, menina? Não faço a menor ideia do que aconteceu com seu pai depois que vim para Nottingham e sabe por quê?
Porque eu estava em Nottingham e ele, em Newton of Wemyss. E mesmo quando nós dois estávamos na mesma cidade, não éramos o que se pode chamar de compadres.
As palavras a atingiram como um balde de água fria. Será que havia algo errado com a memória de Logan Laidlaw? Estaria se esquecendo do passado?
- Não, isso não está certo - ela disse. - Ele foi para Nottingham com você.
Uma explosão de risadas, então uma tosse seca.
- Alguém está te enrolando, menina - ele ofegou. - Trotsky teria furado um piquete de greve antes do Mick Prentice que eu conheci. O que te faz pensar que
ele veio para Nottingham?
- Não sou só eu. Todo mundo pensa que ele foi para Nottingham com você e com os outros homens.
- Isso é loucura. Por que iriam pensar isso? Você não conhece a história da sua própria família?
- O que você quer dizer?
- Por Deus, menina, o seu bisavô. O avô do seu pai. Você não sabe a respeito dele?
Misha não fazia a mínima ideia de onde aquilo iria parar, mas pelo menos ele não tinha desligado na cara dela, como havia temido que fizesse.
- Ele morreu antes de eu nascer. Não sei nada sobre ele, a não ser que também era mineiro.
- Jackie Prentice - disse Laidlaw com algo que se aproximava à satisfação. - Ele foi um fura-greve em 1926. Depois do acordo sindical, ele teve de ser transferido
para um posto na superfície. Quando sua vida depende dos homens da sua equipe, você não quer ser um fura-greve no subterrâneo. A não ser que todo mundo esteja no
mesmo barco, como era nosso caso. Só Deus sabe por que Jackie permaneceu na cidade. Ele tinha que tomar um ônibus até Dysart só para conseguir uma bebida. Não havia
um só bar, em nenhum dos vilarejos de Wemyss, que o servisse. Então, seu pai e seu avô tiveram que trabalhar duas vezes mais que qualquer outra pessoa para serem
aceitos na mina. Nem morto Mick Prentice jogaria fora esse respeito. Ele preferiria morrer de fome. Isso mesmo, e deixar que você morresse junto com ele. Onde quer
que você tenha conseguido essa informação, eles não sabem de que diabos estão falando.
- Minha mãe me contou. É o que todos dizem em Newton. - O impacto das palavras dele a fizeram sentir como se todo ar houvesse sido sugado de seus pulmões.
- Bem, eles estão errados. Por que iriam pensar isso?
- Porque a noite em que você foi para Nottingham foi a última noite em que alguém em Newton o viu ou ouviu falar dele. E porque minha mãe, ocasionalmente,
recebe dinheiro pelo correio, com o carimbo de Nottingham.
Laidlaw respirou com dificuldade, uma exalação de sanfona no ouvido dela.
- Jesus, isso é espantoso. Bem, querida, sinto muito decepcioná-la. Cinco de nós partiram de Newton of Wemyss naquela noite de dezembro. Mas seu pai não estava
entre a gente.
Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes
Karen parou na lanchonete para comprar um sanduíche de salpicão de frango, quando voltava para sua mesa. Criminosos e testemunhas raramente conseguiam enganar Karen,
mas, quando se tratava de comida, ela podia enganar a si mesma dezessete vezes antes do café da manhã. O sanduíche, por exemplo. Pão integral, um pedaço de alface
murcha, algumas fatias de tomate e pepino e, pronto: passava a ser um alimento saudável. Esqueça a manteiga e a maionese. Na sua cabeça, as calorias eram canceladas
pelo benefício. Ela enfiou o caderno embaixo do braço e rasgou a embalagem plástica do sanduíche enquanto caminhava.
Phil Parhatka levantou os olhos quando Karen se deixou cair, pesadamente, na cadeira. Não pela primeira vez, o ângulo da cabeça dele a lembrou de que ele parecia
uma versão mais morena e mais magra de Matt Damon. Havia o mesmo nariz e queixo protuberantes, as sobrancelhas retas, o corte de cabelo à la Identidade Boume, e
a expressão que podia variar, de aberta a resguardada, num segundo. Só as cores eram diferentes.
A ascendência polonesa de Phil era responsável por seus cabelos escuros, os olhos castanhos e a pele intensamente branca; sua personalidade contribuíra com o minúsculo
furo em sua orelha esquerda, que geralmente acomodava um brinco de diamante, quando ele não estava de serviço.
- Como foi? - ele perguntou.
- Mais interessante do que eu esperava - ela admitiu, levantando-se novamente para pegar uma Coca Diet.
Entre mordidas e goles, ela fez um resumo conciso da história de Misha Gibson.
- E ela acredita no que esse velho caduco de Nottingham lhe contou? - ele perguntou, recostando-se na cadeira e entrelaçando os dedos atrás da cabeça.
- Acho que ela é o tipo de mulher que normalmente acredita no que as pessoas lhe dizem - disse Karen.
- Ela seria uma péssima policial, então. Portanto, imagino que você irá passar o caso para a Divisão Central investigar.
Karen deu uma dentada no sanduíche e mastigou vigorosamente, os músculos da mandíbula e têmpora se projetavam e contraíam como uma bola antiestresse sob pressão.
Ela engoliu antes de ter terminado de mastigar direito, empurrando o que sobrou com um gole de Coca Diet.
- Não tenho certeza - ela disse. - É um caso interessante.
Phil lançou um olhar cauteloso.
- Karen, não se trata de um caso arquivado. Não é nossa praia.
- Se eu passá-lo para a Central, vai acabar não dando em nada. Ninguém dé lá vai se incomodar com um caso em que as pistas esfriaram há vinte e dois anos.
- Ela se recusou a encarar o olhar desaprovador dele. - Você sabe disso tão bem quanto eu. E, segundo Misha Gibson, essa seria a última chance do filho dela.
- Ainda não faz com que seja um caso arquivado.
- Só porque não foi aberto em 1984 não significa que agora não esteja arquivado. - Karen sacudiu o resto de seu sanduíche apontando para arquivos sobre sua
mesa. - E nenhum destes aqui irá a qualquer lugar, a curto prazo. Darren Anderson: não há nada que eu possa fazer até que os policiais nas Canárias se mexam e descubram
em que bar a ex-namorada dele está trabalhando. Ishbel Mackindoe: aguardo que o laboratório me
diga se eles podem obter amostras viáveis de DNA das cartas anônimas. Patsy Millar: não posso seguir adiante com esse caso até que a Polícia Metropolitana de Londres
termine de cavar aquele jardim no bairro de Heringey e faça as análises criminais.
- Há testemunhas no caso de Patsy Millar com quem poderíamos falar novamente.
Karen deu de ombros. Ela sabia que podia usar a hierarquia para calar a boca de Phil, mas precisava demais da tranquilidade que havia entre eles.
- Elas não irão a lugar algum. Ou, senão, você pode pegar um dos detetives e lhe dar um pouco de treinamento em ação.
- Se você acha que eles precisam de treinamento em ação, deveria lhes dar esse caso arquivadíssimo de pessoa desaparecida. Você é uma inspetora agora, Karen.
Não se espera que saia investigando esse tipo de coisa. - Ele indicou com a mão os dois detetives sentados frente a seus computadores. - Isso é para gente como eles.
O que acontece é que você está entediada. - Karen tentou protestar, mas Phil continuou, sem lhe dar atenção. - Eu lhe disse, quando você aceitou essa promoção, que
iria ficar louca, sentada atrás de uma mesa. E agora, olhe só. Surrupiando os casos dos agentes da Central. O próximo passo é você sair para fazer pessoalmente os
interrogatórios.
- E daí? - Karen amassou a embalagem do sanduíche com mais força que o necessário e a atirou no lixo. - É bom manter a mão na massa. E vou garantir que tudo
seja feito de forma honesta. Levarei o detetive Murray comigo.
- O Novo em Folha? - O tom da voz de Phil era de incredulidade, seu semblante estava ofendido. - Você preferiria o Novo em Folha a mim?
Karen sorriu com doçura.
- Você agora é sargento, Phil. Um sargento com ambições. Ficar no escritório e esquentar minha cadeira ajudará suas aspirações a se tornarem realidade. Além
disso, o Novo em Folha não é tão ruim quanto você pensa. Ele faz aquilo que o mandam fazer.
- Isso um cachorro collie também faz. Só que o cão mostraria mais iniciativa.
- A vida de uma criança está em jogo, Phil. Eu tenho bastante iniciativa para nós dois. Isso deve ser feito da maneira correta e vou garantir que
seja. - Ela se virou para o computador com um ar de ter terminado a conversa.
Phil abriu a boca para falar mais, então, pensou melhor, ao ver o olhar repressivo que Karen lançou em sua direção. Eles se sentiram atraídos um pelo outro desde
o começo da carreira, reconhecendo a tendência comum de não se conformar. O fato de haverem galgado postos juntos lhes havia conferido uma amizade capaz de sobreviver
ao desafio da mudança de cargo. Mas ele sabia que havia um limite até onde podia pressionar Karen, e tinha a sensação de haver acabado de atingi-lo.
- Então, eu lhe darei cobertura por aqui - ele disse.
- Por mim, está ótimo - Karen disse, enquanto seus dedos voavam pelas teclas. - Marque a minha saída para amanhã de manhã. Tenho a impressão de que Jenny
Prentice será um pouquinho mais receptiva a uma dupla de policiais do que foi com a filha.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Aprender a esperar era uma das lições do jornalismo que as faculdades não ensinavam. Quando Bel Richmond tivera um emprego de tempo integral, em um jornal dominical,
sempre defendera que era paga não por uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, e sim pelos cinco minutos em que conseguia, com sua lábia, passar por uma
porta que ninguém antes conseguira cruzar. O que deixava bastante tempo livre para esperar. Esperar que alguém retornasse um telefonema. Esperar que o passo seguinte
da história acontecesse. Esperar que um contato se transformasse em informante. Bel havia passado por várias esperas e, embora tivesse se tornado habilidosa na atividade,
nunca havia aprendido a apreciá-la.
Tinha de admitir que já precisara esperar em ambientes muito menos salubres que aquele. Ali, havia o conforto do café, biscoitos e jornais. E a sala na qual havia
sido deixada oferecia a vista panorâmica que já enfeitara um milhão de latas de biscoitos amanteigados. Ocupando toda a extensão da Princess Street, exibia um punhado
de atrações turísticas: o castelo, o Scott Monument, a National Gallery e o parque Prince Street Gardens. Bel notou outra beleza arquitetônica significativa, mas
não sabia o suficiente sobre a cidade para identificá-la. Ela só visitara a capital escocesa algumas
vezes e não fora escolha sua realizar aquela reunião ali. Teria preferido Londres; porém, a relutância em mostrar seus trunfos antecipadamente a havia deslocado
do assento do motorista para o posto de suplicante.
De forma um tanto incomum para uma jornalista freelance, ela contava com um assistente de pesquisa. Jonathan era estudante de jornalismo na City University e pedira
a seu orientador que o indicasse para estagiar com Bel. Aparentemente, ele gostava do estilo dela. Bel ficara levemente agradecida pelo elogio, mas profundamente
maravilhada com a perspectiva de ter oito semanas livres de todo trabalho pesado. Sendo assim, Jonathan fizera o primeiro contato com a Maclennan Grant Enterprises.
Voltou com uma resposta bem simples: se a Srta. Richmond não estava preparada para declarar seu motivo para querer um encontro com Sir Broderick Maclennan Grant,
Sir Broderick não estava preparado para se encontrar com ela. Sir Broderick não dava entrevistas. Após algumas negociações adicionais a distância, ela chegara ao
presente acordo.
E agora, pensou Bel, ela estava sendo colocada em seu lugar. Obrigada a ficar esperando numa sala de reuniões de hotel. Forçada a entender que alguém tão importante
quanto a assistente pessoal do presidente e acionista principal da décima segunda empresa mais valiosa do país tinha compromissos mais urgentes em sua agenda do
que fazer sala para uma escritorazinha de Londres.
Gostaria de se levantar e caminhar um pouco, mas não queria revelar qualquer falta de compostura. Ceder terreno nunca fora natural para ela. Em vez disso, ajeitou
a jaqueta, verificou se a blusa estava adequadamente arrumada e tirou uma sujeirinha dos sapatos de camurça verde-esmeralda.
Afinal, precisamente quinze minutos depois da hora marcada, a porta se abriu. A mulher que entrou, num turbilhão de lã e caxemira, lembrava uma professora de colégio,
de idade indeterminada, mas acostumada a impor disciplina aos alunos. Por um momento insano, Bel quase se levantou de um pulo, num reflexo pavloviano às suas recordações
adolescentes de freiras terroristas. No entanto, conseguiu se conter e se levantou de forma mais lenta.
- Susan Charleson - disse a mulher, estendendo a mão. - Desculpe-me por tê-la feito esperar. Como Harold Macmillan disse uma vez: "Acontecimentos, caro rapaz.
Acontecimentos."
Bel decidiu não ressaltar que Harold Macmillan referia-se ao trabalho de primeiro-ministro, e não à função de babá de um líder industrial. Segurou os dedos mornos
e secos, em um aperto rápido e rígido, e, então, teve a mão liberada.
- Annabel Richmond.
Susan Charleson ignorou a poltrona em frente a Bel e dirigiu-se à mesa perto da janela. Pega de surpresa, Bel apanhou a bolsa e a pasta de couro e a seguiu. Sentaram-se
em lados opostos e Susan sorriu, os dentes pareciam uma linha de creme dental calcária em meio ao batom rosa-escuro.
- Você queria ver Sir Broderick - ela disse. Sem preâmbulos, sem conversa fiada sobre a vista. Simplesmente direta. Era uma técnica que Bel havia utilizado
algumas vezes, o que não queria dizer que a apreciasse quando a situação era inversa.
- Exatamente.
Susan balançou a cabeça.
- Sir Broderick não fala com a imprensa. Temo que você tenha desperdiçado seu tempo. Expliquei tudo isso a seu assistente, mas ele se recusou a aceitar uma
resposta negativa.
Foi a vez de Bel sorrir com frieza.
- E fez muito bem. Eu, obviamente, lhe dei um bom treinamento. Mas parece haver um mal-entendido. Não estou aqui para implorar por uma entrevista. Estou aqui
porque acho que tenho algo em que Sir Broderick ficará interessado. - Ela ergueu a pasta até a mesa e abriu o zíper. De dentro, retirou uma única folha de papel
A3 grosso, virada para baixo. Estava manchada e exalava um cheiro sutil, uma mistura curiosa de poeira, urina e lavanda. Bel não resistiu a lançar uma olhadela provocadora
para Susan Charleson. - Você gostaria de ver? - ela perguntou, virando o papel.
Susan tirou um estojo de couro do bolso da saia e extraiu dele uns óculos de aro de casco de tartaruga. Equilibrou-os no nariz, calmamente, mas sem tirar os olhos
das imagens em preto e branco à sua frente. O silêncio entre as mulheres pareceu crescer, e Bel sentiu-se sem ar enquanto esperava por uma resposta.
- Onde você encontrou isto? - Susan perguntou, seu tom de voz estava tão afetado quanto o de uma professora de latim.
Segunda-feira, 18 de junho de 2007; Campora, Toscana, Itália
Às sete da manhã era quase possível acreditar que o calor intenso dos últimos dez dias não fosse dar as caras. A luz perolada do dia cintilava entre a abóbada de
folhas de carvalho e castanheira, deixando visíveis as partículas de poeira que espiralavam, emitidas pelos pés de Bel. Ela se movia devagar o bastante para notá-las
porque a trilha destruída que descia em meio às árvores era sulcada e esburacada, coberta com pedras irregulares o bastante para conscientizar qualquer corredor
da fragilidade de seus tornozelos.
Apenas mais duas daquelas corridas matinais tão apreciadas antes de retornar às sufocantes ruas de Londres. O pensamento provocou uma ferroada de arrependimento.
Bel adorava escapulir da villa enquanto todos ainda estavam dormindo. Ela podia andar descalça pelo chão frio de mármore, fingindo ser a castelã do lugar, e não
simplesmente outra arrendatária tentando tirar uma casquinha da elegância toscana.
Ela vinha tirando férias com o mesmo grupo de cinco amigas desde que dividiram uma casa, em seu último ano na universidade de Durham. Naquela primeira vez, elas
estavam estudando arduamente para os exames finais. Os pais de uma delas tinham uma casa de campo na Comualha, que elas ocuparam por uma semana. Haviam chamado aquilo
de pausa nos estudos; na verdade, foram umas férias em que descansaram e relaxaram, ficando em melhores condições para prestar os exames do que se tivessem se exaurido
com livros e artigos. E, apesar de serem jovens modernas e nem um pouco dadas a superstições, todas sentiram que a semana que haviam passado juntas tinha, de alguma
forma, sido responsável por suas boas notas. Desde então, vinham se reunindo todos os anos, em junho, com o compromisso de se divertir.
Ao longo dos anos, seus hábitos alcoólicos haviam se tornado mais apurados; os alimentícios, mais epicuristas; e as conversas, mais escandalosas. Os lugares haviam
se tornado cada vez mais luxuosos. Amantes jamais eram convidados para compartilhar aquela semana das garotas. Ocasionalmente, uma delas hesitava, alegando muita
pressão no trabalho ou obrigações familiares, mas, geralmente, era ameaçada e mudava de ideia rapidamente e sem dar muito trabalho.
Para Bel, aquele era um elemento significativo de sua vida. Todas aquelas mulheres eram bem-sucedidas, todas eram fontes com as quais podia
contar para suavizar seu caminho, de tempos em tempos. Mas, apesar disso, não era essa a razão principal de suas férias serem tão importantes. Parceiros haviam chegado
e partido, mas aquelas amigas sempre foram uma constante. Em um mundo no qual se era julgado de acordo com sua última manchete, era agradável ter um refúgio onde
nada disso importava. Onde ela era apreciada simplesmente porque o grupo se divertia mais quando ela estava presente. Elas se conheciam havia muito tempo para perdoar
os defeitos umas das outras, para aceitar as opiniões políticas umas das outras e para dizer aquilo que seria impronunciável diante de qualquer outra pessoa. Essas
férias faziam parte da fortaleza que ela constantemente levantava contra suas próprias inseguranças. Além disso, atualmente, eram as únicas férias que ela tirava
que estavam de acordo com o que ela queria fazer. Nos últimos seis anos, ela estivera presa à sua irmã viúva, Vivianne, e seu filho Harry. A morte repentina do marido
de Vivianne, vítima de um ataque cardíaco, a deixara emocionalmente abalada e muito carente. Bel não hesitara em unir seu destino ao da irmã e do sobrinho. No final,
tinha sido uma boa decisão, mas, ainda assim, ela valorizava muito a pausa anual daquela vida familiar que nunca imaginou que viveria. Principalmente agora, quando
Harry se encontrava à beira da crise existencial da adolescência. Este ano, portanto, mais ainda do que no passado, as férias tinham de ser especiais, precisavam
superar tudo que já havia existido.
Era difícil imaginar como elas superariam isso, ela pensou, enquanto emergia das árvores e virava num campo de girassóis que se preparavam para florescer. Ela se
apressou um pouco ao percorrer seu caminho pela margem, o-nariz franzindo com o aromático perfume da vegetação. Não havia nada que ela desejasse mudar naquele lugar,
nenhum defeito que pudesse encontrar nos jardins e nas árvores frutíferas que rodeavam a varanda e a piscina. A vista do Val d'Eisa era deslumbrante, com as cidadezinhas
de Volterra e San Gimignano no horizonte distante.
E havia o bônus adicional da culinária de Grazia. Quando elas descobriram que a "chef local" descrita no site da Internet era a esposa do criador de porcos que vivia
ali perto, desistiram de chamá-la até a villa para preparar uma refeição tipicamente toscana. Na tarde do terceiro dia, no entanto, todas estavam incomodadas demais
com o calor para se dar ao trabalho de cozinhar; então, chamaram Grazia. O marido, Maurizio, a levou até a villa
num Fiat Panda caindo aos pedaços, que parecia se manter inteiro à custa de barbantes e fé. Ele descarregou caixas de comida cobertas de musselina. Num inglês macarrônico,
Grazia as expulsou da cozinha e mandou que fossem relaxar na varanda com um drinque.
A comida foi uma revelação: salames com frutas secas e prosciutto feito dos raros porcos Cinta di Siena que Maurizio criava, combinados com figos perfumados colhidos
em seu pomar; espaguete ao pesto de estragão e manjericão; codornas assadas com os vegetais cultivados por Maurizio e tiras compridas de batata temperadas com alecrim
e alho; queijos produzidos em fazendas da região e, finalmente, um delicioso bolo de amêndoas embebido com limoncello.
As mulheres nunca mais cozinharam.
A culinária de Grazia fez com que as corridas matinais de Bel se tornassem ainda mais necessárias. Ao aproximar-se dos quarenta, ela lutava cada vez mais para manter
o que pensava ser seu peso ideal. Naquela manhã, seu estômago ainda parecia uma bola rígida, após as suaves e deliciosas berinjelas alia parmigiana que a haviam
tentado a repetir generosamente o prato. Iria correr um pouco mais longe do que o normal, decidiu. Em vez de fazer o circuito do campo de girassóis e subir de volta
à villa, tomaria uma trilha que ia da extremidade mais distante e cruzava o terreno coberto de vegetação de uma casa colonica em ruínas, que ela avistara ao passar
de carro. Desde que vira a casa, na primeira manhã, tinha alimentado a fantasia de comprar a ruína e transformá-la no melhor dos refúgios toscanos, com direito
a piscina e jardim de oliveiras. E, é claro, com Grazia à disposição para cozinhar. Bel não tinha muitos escrúpulos com relação à invasão de propriedades, em fantasia
ou na realidade.
Mas ela se conhecia o suficiente para saber que aquilo nunca passaria de um sonho. Ser proprietária de um refúgio implicava o desejo, que ela não tinha, de abandonar
seu universo de trabalho. Talvez, quando estivesse pronta para se aposentar, pudesse considerar a possibilidade de devotar-se a um projeto de restauração como aquele.
A não ser pelo fato de admitir que esse era outro sonho pouco realista. Jornalistas jamais se aposentavam de verdade. Sempre havia outra história no horizonte, outro
alvo a perseguir. Sem falar do horror de ser esquecido. Todos motivos pelos quais seus relacionamentos passados não haviam durado, todos motivos pelos quais seu
futuro provavelmente reservasse as mesmas imperfeições. Ainda assim,
seria divertido dar uma olhada mais de perto na velha casa para ver seu estado. Quando mencionara a ideia a Grazia, ela fizera uma careta e a chamara de rovina.
Bel, cujo italiano era fluente, havia traduzido para as demais: "ruína". Hora de descobrir se Grazia estava dizendo a verdade ou apenas tentando desviar o interesse
de algumas ricaças inglesas.
O caminho através da grama alta ainda estava surpreendentemente limpo, o solo nu endurecido por anos de pisadas. Bel aproveitou a oportunidade para ir mais rápido,
até diminuir a velocidade ao chegar ao pátio fechado por portões, em frente à velha fazenda. Os portões estavam dilapidados, pendendo frouxamente das dobradiças
que mal se apegavam aos pilares de pedra. Uma corrente pesada e um cadeado os mantinham fechados. Mais além, o pavimento quebrado do pátio estava demarcado por tufos
rasteiros de tomilho, camomila e mato. Bel sacudiu os portões sem muita esperança. Mas foi o suficiente para revelar que o canto inferior do portão direito havia
se soltado completamente do suporte. Poderia ser facilmente afastado para que um adulto passasse pela abertura. Bel deslizou por ali e soltou o portão, que rangeu
suavemente ao voltar para sua posição de origem, aparentemente fechado.
De perto, ela pôde entender a descrição de Grazia. Qualquer um que assumisse a restauração ficaria escravo dos pedreiros por um longo, longo tempo. A casa rodeava
o pátio em três lados, uma ala central delimitada por dois braços iguais. Havia dois andares, com uma varanda percorrendo todo o segundo andar, na qual se abriam
portas e janelas, conferindo aos quartos fácil acesso ao ar livre e ao espaço de uso comum. Mas o chão da varanda havia cedido, as portas que restavam estavam tortas
e as vergas sobre as janelas estavam rachadas, pendendo em ângulos estranhos. As vidraças, em ambos os andares, estavam imundas, rachadas ou haviam desaparecido.
Mas as linhas sólidas da atraente arquitetura local ainda eram visíveis, e as pedras ásperas brilhavam calorosamente ao sol da manhã.
Bel não teria conseguido explicar por que, mas a casa a atraía. Tinha o charme desgastado de uma beldade suficientemente segura de si para permitir-se envelhecer
sem luta. Buganvílias sem poda estendiam-se sobre o estuque ocre descascado e cobriam a parede inferior da varanda. Se ninguém decidisse se apaixonar logo pela casa,
muito em breve ela estaria tomada pela vegetação. Em algumas gerações, não seria nada além de um
aterro inexplicável na ladeira da colina. Mas, naquele instante, ela ainda tinha o poder de enfeitiçar.
Bel atravessou o pátio que se esfarelava, passando por vasos de terracota rachados e tombados; as ervas que estes um dia haviam contido agora se espalhavam e brotavam
livremente, condimentando o ar com suas fragrâncias. Ela empurrou uma porta pesada, feita de tábuas de madeira que pendiam de uma única dobradiça. A madeira raspou
ruidosamente contra o piso desnivelado, de tijolos assentados em ziguezague, mas se abriu o suficiente para que Bel entrasse na sala ampla sem ter de se espremer.
Sua primeira impressão foi de sujeira e abandono. Teias de aranha se entrelaçavam num emaranhado que ia de parede a parede. As janelas estavam manchadas de poeira.
Um ruído de algo rastejando, a distância, fez com que Bel olhasse em volta, em pânico. Ela não tinha medo dos editores de jornais, mas ratos de quatro patas a enchiam
de repulsa.
Conforme ia se acostumando à obscuridade, Bel percebeu que a sala não estava completamente vazia. Havia uma mesa comprida contra uma parede. No lado oposto, um sofá
com o assento afundado. A julgar pelo resto do lugar, deveria estar podre e imundo, mas o tecido vermelho-escuro que o forrava ainda se mantinha relativamente limpo.
Ela arquivou aquele dado estranho para posterior consideração.
Bel hesitou por um instante. Tinha certeza de que nenhuma de suas amigas a encorajaria a prosseguir na exploração daquela estranha casa deserta. Mas ela havia construído
sua carreira com base em uma reputação de audácia. Só ela sabia com que frequência sua aparência ocultava níveis de ansiedade e incerteza que a haviam feito vomitar
em sarjetas e banheiros nos lugares mais estranhos. Depois de tudo que ela já havia enfrentado, em sua determinação de conseguir uma boa história, até que ponto
uma ruína deserta poderia ser assustadora?
Uma porta na extremidade mais distante conduzia a um corredor apertado, com uma escadaria gasta de pedra que levava à varanda. Mais à frente, ela podia ver outra
sala escura e suja. Espiou lá dentro, surpresa em ver um varal pendurado a um canto, com meia dúzia de cabides de metal. Pendurado em um dos cabides, havia um cachecol
de tricô. Por baixo, uma pilha amarrotada de roupa de camuflagem. Parecia uma daquelas jaquetas de caça, geralmente à venda na caminhonete que ficava no estacionamento
em frente ao café, na estrada principal de Colle di Val d'Eisa. As mulheres tinham rido daquilo uns dias atrás, se perguntando quando é que tinha virado moda os
italianos de todas as idades vestirem-se como recém-saídos do serviço militar nos Bálcãs. Estranho, ela pensou. Bel subiu cautelosamente as escadas até a varanda,
esperando encontrar a mesma sensação de lugar havia muito desabitado.
Porém, assim que emergiu da escadaria, percebeu que penetrara em algo muito diferente. Quando se virou para a esquerda e espiou pela primeira porta, entendeu que
aquela casa não era o que parecia. O bolor úmido do andar térreo era infinitamente menor ali, e o ar estava quase tão fresco quanto lá fora. O cômodo havia, obviamente,
sido um quarto, e não fazia muito tempo. Havia um colchão no chão com uma colcha atirada casualmente por cima, da metade para os pés. Estava empoeirado, mas não
havia nada comparável à sujeira impregnada do andar de baixo. De novo, havia um varal no canto. Tinha uma dúzia de cabides vazios, mas os últimos três seguravam
camisas levemente amarrotadas. Mesmo a distância, ela podia ver que não estavam em seu melhor estado, desbotadas nas mangas e nos colarinhos.
Um par de caixotes de tomate funcionava como criados-mudos. Sobre um deles, um toco de vela num pires. Uma edição amarelada do jornal Frankfurter AUgemeine Zeitung
jazia no chão, ao lado do colchão. Bel o apanhou, notando que a data era de menos de quatro meses atrás. Teve então uma ideia de quando o lugar havia sido abandonado
pela última vez. Ela ergueu a manga de uma das camisas e a pressionou contra o nariz. Alecrim e maconha. Suave, mas inconfundível.
Voltou para a varanda e verificou os demais quartos. O padrão era semelhante. Mais três quartos contendo uma porção de restos: algumas camisetas, livros e revistas
em inglês, italiano e alemão, meia garrafa de vinho, um resto de batom, uma sandália de couro cuja sola havia se soltado da parte de cima - o tipo de coisa que alguém
deixaria para trás, caso estivesse se mudando sem a mínima ideia de quem viria em seguida. Em um dos quartos, um buquê de flores enfiado num pote de azeitonas havia
secado a ponto de se desfazer.
O último quarto no lado oeste era o maior, até agora. Suas janelas haviam sido limpas mais recentemente do que as dos outros, as persianas
tinham sido reformadas e as paredes, caiadas. No meio do quarto, no chão, havia uma tela de silk-screen. Sobre mesas de cavaletes, encostadas numa parede, havia
copos plásticos manchados com pigmentos ressecados e pincéis endurecidos de forma negligente. Manchas e borrões espalhados marcavam o piso. Bel estava intrigada,
sua curiosidade superava qualquer vestígio de nervosismo por estar sozinha naquele lugar tão peculiar. Quem quer que houvesse estado ali, devia ter partido apressadamente.
Deixar uma sólida tela de silk-screen para trás não era algo que se fizesse, numa partida planejada.
Ela retornou à varanda e dirigiu-se à ala oposta. Teve o cuidado de permanecer próximo à parede, não confiando que o piso ondulado de tijolos suportasse seu peso.
Passou pelas portas dos quartos, sentindo-se como uma intrusa no Mary Celeste*. Um silêncio que não era quebrado nem mesmo por cantos de pássaros acentuava aquela
impressão. O último cômodo antes do canto era um banheiro cuja mescla nauseante de odores ainda pairava no ar. Um rolo de mangueira estava no chão, uma das extremidades
desaparecia através de um buraco perto da janela. Eles haviam, portanto, improvisado um pouco de água corrente, embora não o suficiente para deixar o vaso sanitário
menos asqueroso. Ela franziu o nariz e retrocedeu.
Bel virou a esquina da varanda no instante em que o sol se elevava acima das árvores, banhando-a num repentino calor. Fez com que sua entrada no último quarto fosse
ainda mais assustadora. Estremecendo com o ar úmido, ela se aventurou lá dentro. As persianas estavam bem fechadas, deixando o interior escuro demais para enxergar
qualquer coisa. Mas, conforme seus olhos se ajustaram, ela obteve uma impressão do quarto. Tinha as mesmas dimensões do estúdio, mas sua função era bem diferente.
Ela o atravessou até a janela mais próxima e forçou até finalmente abrir a persiana pela metade. Era o suficiente para confirmar sua primeira impressão. Aquele havia
sido o centro da ocupação da casa rovina. Havia um velho fogão desgastado, conectado a um botijão de gás, ao lado da pia de pedra. A mesa de jantar estava arranhada
e era de madeira nua, porém sólida, e com pernas lindamente esculpidas. Havia sete cadeiras díspares ao redor, e uma oitava encontrava-se tombada, a alguns metros
de distância. Contra as
* Barco encontrado à deriva, em 1872, no estreito de Gibraltar, cuja tripulação desapareceu. (N.E.)
paredes, uma cadeira de balanço e alguns sofás. Peças avulsas de louça e talheres estavam espalhadas, como se os moradores não se tivessem dado ao trabalho de recolhê-las
de onde haviam deixado.
Quando Bel se afastou da janela, uma mesa bamba chamou sua atenção. Como estava atrás da porta, era fácil não percebê-la. Uma coleção do que pareciam ser pôsteres
se espalhava sobre ela. Fascinada, ela foi em direção à mesa. Dois passos e parou, sua respiração ofegante ecoava no ar poeirento.
Diante dela, no piso de pedra calcária, havia uma mancha irregular, de talvez noventa por quarenta e cinco centímetros. Marrom-ferrugem, bordas arredondadas e lisas,
como se houvesse escorrido e empoçado, em vez de espirrado. Era densa o bastante para obscurecer o piso de pedra sob ela. Uma porção, na extremidade mais distante,
parecia borrada e diluída, como se alguém houvesse tentado limpar, esfregando-a, para logo desistir. Bel já havia feito coberturas de histórias de violência doméstica
e de homicídio sexual o suficiente para reconhecer uma mancha de sangue relevante quando a via.
Assustada, deu um passo atrás, sentia-se tonta, o coração batia com tanta força que achou que fosse sufocá-la. Que diabos havia acontecido ali? Ela olhou em volta
de forma desordenada, percebendo outras manchas escuras marcando o piso além da mesa. Hora de sair daqui, gritava a parte sensata de sua mente. Mas o demônio da
curiosidade sussurrava em seu ouvido. Há meses não há ninguém aqui. Olhe para a poeira. Já faz tempo que se foram. Não vão voltar num futuro próximo. Seja o que
for que tenha acontecido aqui, foi motivo suficiente para que dessem o fora. Dê uma olhada nos pôsteres...
Bel rodeou a mancha, passando o mais longe possível para não tocar em nenhum móvel. De repente, ela sentiu o ar pesado. Sabia que era só imaginação, mas, ainda assim,
parecia real. De costas para o quarto e com o rosto voltado para a porta, ela foi andando de lado até a mesa e olhou para baixo, para os pôsteres que a cobriam.
O segundo choque foi quase tão forte quanto o primeiro.
Bel sabia que estava correndo rápido demais morro acima, mas não podia diminuir o passo. Podia sentir o suor da mão cobrir o papel de boa qualidade do pôster enrolado.
Por fim, a trilha emergiu do meio das árvores e ficou menos traiçoeira, ao aproximar-se de sua villa de férias. A estrada descia
quase imperceptivelmente, mas a gravidade era suficiente para dar a suas pernas cansadas um impulso extra, e ela ainda ia rápido ao virar a curva da casa e encontrar
Lisa Martyn deitada à sombra, no terraço, em uma espreguiçadeira e com a edição de sexta-feira do Guardian como companhia. Bel ficou aliviada. Precisava falar com
alguém e, de todas as suas companheiras, era menos provável que Lisa transformasse suas revelações em fofocas da hora do jantar. Lisa, como advogada de direitos
humanos, cuja compaixão e feminismo pareciam tão inevitáveis quanto o ato de respirar, entenderia o potencial da descoberta que Bel pensava ter feito. Assim como
seu direito de lidar com aquilo do jeito que achasse melhor.
Lisa afastou lentamente os olhos do jornal, perturbada pelo arfar incomum da respiração de Bel.
- Meu Deus - ela disse. - Você parece a ponto de infartar.
Bel colocou o pôster numa cadeira e se curvou, as mãos apoiadas nos joelhos, puxando o ar para dentro dos pulmões, arrependida dos cigarros surrupiados em segredo.
- Ficarei... bem... num minuto.
Lisa se levantou desajeitadamente da espreguiçadeira e correu até a cozinha, voltando com uma toalha e uma garrafa de água. Bel se empertigou, pegou a água e derramou
metade sobre a cabeça, fungando ao inalar um pouco acidentalmente. Então, esfregou a cabeça com a toalha e se deixou cair numa cadeira. Tomou um gole comprido de
água enquanto Lisa voltava para a espreguiçadeira.
- O que aconteceu? - Lisa perguntou. - Você é a corredora mais digna que eu conheço. Nunca vi uma Bel sem fôlego na vida. O que foi que a deixou neste estado?
- Encontrei uma coisa - Bel disse. Seu peito ainda lutava, mas ela conseguiu emitir alguns sopros de fala. - Pelo menos, acho que encontrei. E se estiver
certa, será a história da minha carreira. - Ela estendeu a mão para apanhar o pôster. - Espero que você possa me dizer se perdi completamente a cabeça.
Intrigada, Lisa jogou o jornal no chão e se endireitou.
- Então, o que é... essa coisa que pode ser alguma coisa?
Bel desenrolou o papel grosso, prendendo-o nos cantos com um moedor de pimenta, uma caneca de café e dois cinzeiros sujos. A imagem na folha
A3 era impressionante. Havia sido desenhada para que parecesse uma simples xilogravura em preto e branco, no estilo impressionista alemão. No alto da página, um
homem barbado, com um topete de cabelo duro, se inclinava por cima de uma tela, e suas mãos seguravam cruzes de madeira, das quais pendiam três marionetes. Mas não
eram marionetes comuns. Uma era um esqueleto, a segunda era um bode, e a terceira, uma representação da Morte, com o manto encapuzado e a foice. Havia algo indiscutivelmente
sinistro na imagem. Abaixo, contornada por uma borda negra funesta, havia uma área em branco, de aproximadamente oito centímetros de profundidade. Era o tipo de
espaço onde se poderia colocar um aviso anunciando uma apresentação teatral.
- Puta que me pariu! - disse Lisa. Finalmente, ela ergueu os olhos. - Catriona Maclennan Grant - ela disse. Havia espanto em sua voz. - Bel... onde diabos
você encontrou isto?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Edimburgo
Bel sorriu.
- Antes de responder a isso, quero deixar algumas coisas claras.
Susan Charleson revirou os olhos.
- Você não pode estar achando que é a primeira pessoa que passa por esta porta com uma cópia falsificada do pôster de resgate. Vou lhe dizer o mesmo que disse
a todos os outros. A recompensa está condicionada à localização do neto de Sir Broderick vivo, ou à demonstração, de forma conclusiva, de que ele esteja morto. Sem
falar em levar os assassinos de Catriona Maclennan Grant à Justiça.
- Você não está me entendendo - Bel disse, com um sorriso provocador, mas sem ceder um só milímetro. - Srta. Charleson, não estou nem um pouco interessada
no dinheiro de Sir Broderick. Mas tenho uma condição.
- Você está cometendo um erro. - A voz de Susan Charleson havia adquirido um toque ácido. - Este assunto é um caso policial. Você não está em posição de impor
condições.
Bel colocou a mão firmemente sobre o pôster.
- Posso sair agora mesmo por aquela porta com este pôster e esquecer que o vi. Não teria qualquer dificuldade em mentir para a polícia. Sou uma
jornalista, afinal. - Ela estava começando a se divertir muito mais do que havia previsto. - É a sua palavra contra a minha, Srta. Charleson. E eu sei que você não
quer que eu vá embora. Uma das habilidades que um jornalista bem-sucedido deve aprender é como ler as pessoas. E vi a forma como você reagiu ao olhar para isto.
Você sabe que é verdadeiro, e não uma cópia falsificada.
- Você tem uma postura bem agressiva - Susan Charleson parecia quase indiferente.
- Prefiro dizer que sou assertiva. Não vim aqui para discutir com você, Srta. Charleson. Quero ajudar. Mas não de graça. Pela minha experiência, os ricos
não dão valor a nada daquilo por que não tenham de pagar.
- Você disse que não estava interessada em dinheiro.
- É verdade. Não estou. No entanto, estou interessada em reputação. E a minha reputação está construída sobre o fato de não ser, simplesmente, a primeira
a aparecer com a história, mas em obter a história por trás da história. Acho que existem áreas em que posso ajudar a desvendar isso com mais eficácia do que os
canais oficiais. Tenho certeza de que você irá concordar, quando eu explicar de onde veio este pôster. Tudo o que peço é que você não me impeça de investigar o caso.
E, além disso, que você e seu chefe cooperem compartilhando informações sobre o que estava acontecendo na época em que Catriona foi sequestrada.
- Esse é um pedido bastante significativo. Sir Broderick não é um homem que aceite abrir mão facilmente de sua privacidade. Você há de convir que não tenho
autoridade para lhe garantir o que está pedindo.
Bel ergueu um ombro delicadamente.
- Então, podemos nos encontrar novamente quando você tiver uma resposta. - Ela deslizou o pôster pela mesa, abrindo a pasta para guardá-lo novamente.
Susan Charleson se levantou.
- Se você puder me dar alguns minutos, pode ser que eu consiga lhe dar uma resposta agora.
Bel soube, neste ponto, que havia ganhado. Susan Charleson queria demais aquilo. Ela convenceria o chefe a aceitar o acordo. Fazia anos que Bel não se sentia tão
excitada. Não significava simplesmente uma enxurrada de notícias e colunas jornalísticas, embora não houvesse um só jornal no
mundo que não fosse ficar interessado. Principalmente depois do caso Madeleine McCain. Com acesso ao misterioso Brodie Grant, mais a chance de descobrir o paradeiro
de seu neto, aquilo era um best-seller em potencial. O A Sangue Frio do novo milênio. Seria sua porta de entrada para o mundo do dinheiro fácil.
Bel sorriu. Talvez ela pudesse usar os ganhos na compra da casa ravina e assim completar o círculo. Era difícil imaginar algo mais perfeito.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Já fazia alguns anos desde a última vez que Karen tomara a estrada de mão única que conduzia a Newton of Wemyss. Mas era óbvio que o vilarejo tinha passado pelas
mesmas transformações que as vilas vizinhas, que margeavam a estrada principal. Aqueles que trabalhavam nas cidades próximas tinham atacado avidamente as quatro
vilas de Wemyss, enxergando possíveis casas rústicas no que um dia foram tristes casebres de mineiros. Cabanas de um quarto tinham sido demolidas para que se construíssem
amplas casas de campo, quintais transformados por estufas de plantas que enchiam de luz as cozinhas obscuras. Vilarejos que tinham fenecido e morrido após o desastre
na mina Michael, em 1967, e devido aos fechamentos que se seguiram à greve de 1984, haviam renascido como cidades-dormitório, cuja ideia de comunidade se restringia
às noites de jogos no pub local. Nas lojinhas da vila se podia comprar uma vela perfumada, mas não um litro de leite. A única forma de saber que já houvera uma comunidade
mineira ali era através de uma maquete do sistema de elevador do poço da mina, que se erguia sobre o ponto em que a ferrovia particular a vapor havia, no passado,
cruzado com a estrada principal, carregada com vagões abertos de carvão destinados ao fim da linha, em Thomton Junction. Agora, as casas caiadas dos mineiros pareciam
uma opção deliberada do arquiteto, como uma vila típica deveria parecer. O passado tinha sido superado por um presente de design.
Desde sua última visita, Newton of Wemyss havia melhorado muito. O modesto memorial de guerra ficava num triângulo de grama aparada no centro. Floreiros de madeira
o circulavam a intervalos perfeitos. Imaculadas casas de campo térreas bordejavam o parque da cidade, e a única exceção à baixa linha de construção era o imponente
volume do pub local, o Laird
o' Wemyss. Antigamente, havia sido propriedade coletiva da comunidade local sob o sistema Gothenburg*, mas os tempos difíceis nos anos oitenta o haviam obrigado
a fechar as portas. Agora, era um restaurante, e sua "cozinha de fusão escocesa" era capaz de atrair à cidade visitantes de lugares tão remotos quanto Dundee e Edimburgo,
e seus preços se elevavam bem acima do orçamento. Ela se perguntou quanto Mick Prentice teria de se deslocar para uma simples cerveja, se houvesse permanecido em
Newton.
Consultou as orientações que havia imprimido do site Mapquest e indicou uma estrada no ápice do triângulo a seu motorista, o detetive Jason "Novo em Folha" Murray.
- Você tem que descer esta rua aqui - ela disse. - Em direção ao mar. Onde ficava a mina.
Logo deixaram o centro da vila para trás. Arbustos desgrenhados bordejavam um exuberante campo de trigo verde à direita.
- Toda essa chuva, está fazendo tudo crescer de forma desenfreada - disse o Novo em Folha. Ele levara os 25 minutos do escritório até ali para produzir aquele
comentário.
Karen não estava interessada em conversar sobre o clima. O que havia para dizer? Tinha chovido o maldito verão inteiro, até agora. Só porque não estava chovendo
naquele exato instante, não significava que não choveria no fim do dia. Ela olhou à sua esquerda, onde os prédios da mina de carvão haviam estado. Tinha uma vaga
lembrança de haver escritórios, banheiros e uma cantina. Agora, tudo se reduzia ao alicerce de concreto, com o mato abrindo caminho entre as rachaduras irregulares
para reivindicar o terreno. Mais adiante, havia uma série de casebres intactos dos mineiros; oito casas deterioradas, no meio do nada devido à demolição dos prédios
que um dia deram razão à sua existência. Além delas havia um denso grupo de sicômoros e faias, um compacto quebra-vento entre as casas e a borda do penhasco, que
descia nove metros até a faixa costeira.
- Era ali que ficava a Lady Charlotte - ela disse.
- Hã? - o Novo em Folha pareceu espantado.
- A mina, Jason.
- Ah. Certo. Claro. Não é do meu tempo. - Ele espiou pelo para-brisa, fazendo-a se perguntar, com certa irritação, se ele precisaria de óculos. - Qual é a
casa, chefe?
* Aplicava-se ao controle do consumo e da comercialização de bebidas alcoólicas. (N.E.)
Ela apontou para a penúltima. O Novo em Folha desviou o carro dos buracos com tanto cuidado quanto se fosse seu e parou no final da rua de Jenny Prentice.
Apesar do telefonema de Karen marcando o encontro, Jenny não teve pressa em abrir a porta, o que deu a eles tempo suficiente para examinar as lajotas de concreto
rachadas e a deprimente entrada de cascalhos cheia de mato.
- Se esta casa fosse minha... - começou o Novo em Folha e, então, abandonou o pensamento, como se fosse algo grande demais para considerar.
A mulher que atendeu à porta tinha o ar de alguém que passava seus dias deitada para que a vida pudesse pisoteá-la mais facilmente. Seu cabelo escorrido e grisalho
estava preso atrás com descuido, mechas escapando dos dois lados. A pele era enrugada, com veias irregulares mapeando as bochechas. Usava um jaleco de náilon que
vinha até o meio das coxas, por cima de uma calça preta barata cujo tecido estava repleto de bolinhas. O jaleco era de um tom de lavanda impossível de se encontrar
na natureza. Os pais de Karen ainda viviam em uma rua habitada por ex-mineiros e suas famílias, na ultrapassada cidade de Methil, mas até o mais desequilibrado de
seus vizinhos teria tido um pouco mais de trabalho com a aparência, ao saber que receberia uma visita oficial. Karen nem tentou não julgar Jenny Prentice pela aparência.
- Bom dia, Sra. Prentice - ela disse energicamente. - Sou a inspetora Pirie. Conversamos pelo telefone. Este é o detetive Murray.
Jenny balançou a cabeça e fungou.
- É melhor vocês entrarem.
A sala era apertada, mas limpa. Os móveis, assim como o carpete, estavam fora de moda, mas nem um pouco surrados. Era uma sala para ocasiões especiais, pensou Karen,
em uma vida na qual não havia muitas.
Jenny acenou para que eles se sentassem no sofá e se postou na beirada da poltrona, no lado oposto. Estava claro que não lhes ofereceria nada para beber.
- Então, vocês estão aqui por causa da nossa Misha. Pensei que tivessem mais o que fazer, com todas essas coisas horríveis que sempre leio nos jornais.
- Um marido e um pai desaparecido é algo bastante horrível, a senhora não acha? - disse Karen.
Os lábios de Jenny se apertaram, como se ela sentisse a queimação de uma azia.
- Depende do homem, inspetora. O tipo de cara com quem a senhora costuma se deparar no seu trabalho... não creio que muitas esposas e filhos se incomodem,
quando eles são levados embora.
- A senhora ficaria surpresa. A maioria das famílias fica inconsolável. E pelo menos elas sabem onde o homem delas está. Não precisam viver com a incerteza.
- Não pensei que estivesse vivendo com a incerteza. Achava que sabia muito bem onde Mick estava, até que a nossa Misha começasse a fuçar por aí tentando encontrá-lo.
Karen assentiu.
- A senhora achava que ele estivesse em Nottingham.
- Isso. Achava que ele tivesse ido furar greve. Para ser sincera, não fiquei muito chateada de vê-lo pelas costas. Mas fiquei furiosa por ele ter colocado
aquele rótulo na gente. Preferiria que ele estivesse morto a que fosse um fura-greve, se é o que você quer saber. - Ela apontou para Karen.
- Você fala com sotaque da região. Deve saber como é ficar marcada desse jeito.
Karen assentiu.
- Pior então é saber agora que parece que ele não furou greve nenhuma.
Jenny desviou o olhar.
- Não sei de nada disso. Tudo que sei é que ele não foi para Nottingham naquela noite com aquele grupo de fura-greves.
- Bem, estamos aqui para desvendar o que realmente aconteceu. Meu colega fará algumas anotações, apenas para garantir que eu me lembre direitinho de tudo
o que a senhora me disser. - O Novo em Folha, apressadamente, pegou o caderno, folheando-o com nervosismo. Talvez Phil estivesse certo a respeito das deficiências
dele, pensou Karen. - Agora, preciso do nome completo dele e sua data de nascimento.
- Michael James Prentice. Nascido em 20 de janeiro de 1955.
- E vocês todos moravam aqui na época? A senhora, Michael e Misha?
- Isso. Morei aqui durante toda a minha vida de casada. Nunca tive escolha quanto a isso.
- A senhora tem uma foto de Mick que possa nos dar? Sei que já faz muito tempo, mas poderia ser útil.
- Vocês podem colocar no computador e envelhecer, não podem? - Jenny foi até um aparador e abriu uma gaveta.
- Às vezes, é possível. - Mas caro demais, a não ser que houvesse um motivo mais urgente que a leucemia do seu neto.
Jenny pegou um álbum de couro preto e o trouxe até a poltrona. Quando o abriu, a capa rangeu. Mesmo de cabeça para baixo e do outro lado da sala, Karen podia ver
que era um álbum de casamento. Jenny rapidamente passou pelas fotos formais de casamento até chegar a um envelope na parte de trás, repleto de fotografias avulsas.
Pegou um maço de fotos e as examinou. Parou em algumas e, então, finalmente optou por uma. Entregou a Karen uma fotografia retangular. Mostrava a cabeça e os ombros
de dois jovens, sorrindo para a câmera, o topo dos copos de cerveja aparecendo na imagem ao brindarem o fotógrafo.
- Este é o Mick, à esquerda - disse Jenny. - O bonitão.
Ela não estava mentindo. Mick Prentice tinha cabelo louro-escuro despenteado, cortado mais ou menos como o mullet que George Michael ostentara em sua fase com o
Wham. Mick tinha olhos azuis, cílios ridiculamente longos e um sorriso perigoso. Uma tatuagem de carvão, em forma de foice, atravessava sua sobrancelha direita,
impedindo-o de parecer bonito demais. Karen podia ver exatamente por que Jenny Prentice havia se apaixonado pelo marido.
- Obrigada - ela disse. - Quem é o outro cara?
Um tufo áspero de cabelo castanho, rosto comprido e ossudo, algumas cicatrizes de acne esburacando as bochechas fundas, olhos vivos e um sorriso triangular, como
o do Coringa dos quadrinhos do Batman. Não era bonito como seu companheiro, mas, mesmo assim, havia algo de sedutor nele.
- Seu melhor amigo. Andy Kerr.
O melhor amigo que se matou, segundo Misha.
- Misha me contou que seu marido desapareceu na sexta-feira, 14 de dezembro de 1984. É essa sua lembrança?
- Isso mesmo. Ele saiu de manhã com suas malditas tintas e disse que voltaria para o jantar. Foi a última vez que o vi.
- Tintas? Ele estava fazendo trabalhos extras?
Jenny emitiu um som de desdém.
- Até parece. Bem que precisávamos do dinheiro. Que nada, Mick pintava aquarelas. Pode acreditar? Dá para imaginar uma coisa mais inútil durante a greve de
1984 do que um mineiro pintando aquarelas?
- Ele não poderia vendê-las? - intrometeu-se o Novo em Folha, inclinando-se para a frente e parecendo perspicaz.
- Para quem? Todo mundo aqui estava duro e não havia dinheiro para que ele se arriscasse a tentar ir vender em outro lugar. - Jenny indicou a parede atrás
deles. - Ele teria tido sorte se conseguisse algumas libras por peça.
Karen se virou e olhou para as três pinturas pobremente emolduradas na parede. West Wemyss, Macduff Castle e a Lady's Rock. A seus olhos leigos, as pinturas pareciam
vívidas e expressivas. Ela as teria levado para casa, embora não soubesse quanto estaria disposta a pagar pelo privilégio, nos idos de 1984.
- Como foi que ele começou com isso? - Karen perguntou, virando-se para Jenny.
- Ele fez um curso no Serviço Social dos Mineiros, no ano em que Misha nasceu. A professora disse que ele tinha jeito para aquilo. Acho que ela dizia a mesma
coisa para qualquer um que fosse bonitinho.
- Mas ele deu continuidade?
- Permitia a ele sair de casa. Ficar longe das fraldas sujas e do barulho.
A amargura parecia emanar de Jenny Prentice em ondas. Era curioso, embora animador, que parecesse não ter contaminado a filha. Talvez aquilo tivesse alguma coisa
a ver com o padrasto de quem ela havia falado. Karen lembrou a si mesma de perguntar sobre o outro homem da vida de Jenny, que também parecia fazer-se notar pela
ausência.
- Ele pintou muito, durante a greve?
- Todo dia ele saía com sua sacola e o cavalete. Se estivesse chovendo, ele descia às cavernas com seus companheiros da Sociedade de Preservação.
- A senhora se refere às cavernas de Wemyss?
Karen conhecia as cavernas que retrocediam a partir da costa, afundando-se nos penhascos de pedra calcária entre East Wemyss e Buckhaven. Ela havia brincado ali
algumas vezes, quando criança, inconsciente de sua
importância histórica como um dos principais sítios pictos. As crianças locais as haviam tratado como áreas de diversão, uma das razões pelas quais se havia estabelecido
a Sociedade de Preservação. Agora, havia grades fechando as seções mais profundas e perigosas da rede de salões das cavernas, e historiadores e arqueólogos amadores
as haviam preservado como parque de diversões para adultos.
- Mick estava envolvido com as cavernas?
- Mick estava envolvido em tudo. Ele jogava futebol, pintava seus quadros, fuçava nas cavernas, estava metido até os dentes no sindicato. Tudo e qualquer
coisa era mais importante do que passar tempo com sua família.
- Jenny cruzou uma perna por cima da outra e os braços sobre o peito. - Ele dizia que isso o mantinha mentalmente são durante a greve. Acho que simplesmente
o mantinha longe de suas responsabilidades.
Karen sabia que aquele era um solo fértil para suas investigações, mas podia se dar ao luxo de deixar para mais tarde. A raiva reprimida de Jenny permanecia após
vinte e dois anos. Não iria a lugar algum. Havia algo muito mais imediato que a interessava.
- Então, durante a greve, onde Mick conseguia dinheiro para as tintas? Não conheço muito de arte, porém sei que papel e tintas adequados custam uma grana.
Ela não podia imaginar um mineiro em greve gastando com materiais artísticos quando não havia dinheiro para comida nem aquecimento.
- Não quero deixar ninguém em apuros - ela disse.
Sei.
- Foi há vinte e dois anos - Karen disse sem rodeios. - Não estou interessada em contrabando em pequena escala da época da greve dos mineiros.
- Um dos professores de arte da escola secundária vivia lá em Coaltown. Era um carinha bem esquisito. Uma perna mais curta que a outra e corcunda. Mick costumava
limpar o jardim para ele. O cara o pagava com tintas. - Ela deu uma fungada. - Perguntei se ele não podia pagar com dinheiro ou comida. Mas parece que o cara estava
dando todo o seu salário para a ex-mulher. As tintas ele podia surrupiar da escola. - Ela cruzou novamente os braços. - De qualquer jeito, ele já morreu.
Karen tentou afastar a sua aversão pela mulher, tão diferente da filha que a havia seduzido a entrar no caso.
- Então, como estavam as coisas entre vocês antes de Mick desaparecer?
- Eu culpo a greve. Tudo bem, nós tínhamos nossos altos e baixos. Mas foi a greve que colocou uma barreira entre nós. E não sou a única mulher nesta parte
do mundo que diz isso.
Karen sabia que aquilo era verdade. Naquela época, as terríveis privações da greve haviam deixado suas marcas em praticamente todo casal que ela conhecia. A violência
doméstica havia irrompido nos lugares mais improváveis; os índices de suicídio aumentaram; casamentos haviam se despedaçado diante da pobreza implacável. Ela não
compreendera isso na época, mas agora sim.
- Pode ser. Mas cada um tem uma história diferente. Eu gostaria de ouvir a sua.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
- Volto para o jantar - disse Mick Prentice, pendurando a grande bolsa de pano atravessada no corpo e pegando o pacote estreito com o cavalete dobrado.
- Jantar? Que jantar? Não tem nada nesta casa para comer. Você precisa sair para arranjar comida para sua família, não para pintar o maldito mar pela enésima
vez -Jenny gritou, tentando obrigá-lo a parar a caminho da porta.
Ele se virou, o rosto magro contorcido pela vergonha e pela dor.
- Você acha que não sei disso? Você acha que somos os únicos? Você acha que se eu tivesse alguma ideia de como melhorar as coisas, eu não estaria fazendo?
Ninguém tem porra nenhuma de comida. Ninguém tem porra nenhuma de dinheiro. - Sua voz entalou na garganta como um soluço. Ele fechou os olhos e respirou fundo. -
Ontem à noite, lá no Serviço Social, Sam Thomson disse que falaram de uma entrega de comida, vinda da Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas. Se você
for até lá, parece que vai chegar às duas horas. - Estava tão frio na cozinha que suas palavras formavam uma nuvem diante dos lábios.
- Mais esmolas. Não consigo me lembrar da última vez que, de fato, escolhi o que iria preparar para o jantar. - Jenny, repentinamente, se
sentou em uma das cadeiras da cozinha. Ergueu os olhos para ele. - Será que algum dia vamos superar isso?
- Só temos que aguentar mais um pouco. Já chegamos até aqui. Podemos vencer. - Ele parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a ela.
- Eles estão voltando a trabalhar, Mick. O tempo todo, estão voltando. Deu no noticiário na outra noite. Mais de um quarto das minas voltou a funcionar. Seja
o que for que digam Arthur Scargill e o resto da diretoria do sindicato, não há forma de ganharmos. É só uma questão de quanto aquela vaca da Thatcher nos fará perder.
Ele balançou a cabeça com veemência.
- Não diga isso, Jenny. Só há alguns focos lá no sul em que os mineiros cederam. Aqui no norte, estamos firmes como rochas. Em Yorkshire também. E em Gales
do Sul. E nós somos quem realmente importa.
Suas palavras soaram vazias e não havia convicção em seu rosto. Todos eles, pensou ela, estavam derrotados. Apenas não sabiam quando cair ao chão.
- Se você diz... - ela murmurou, virando-se.
Esperou até ouvir a porta se fechar atrás dele e, então, levantou-se lentamente e vestiu o casaco. Apanhou uma bolsa de plástico resistente e deixou o frio congelante
da cozinha para sair para o frio úmido da manhã. Essa era sua rotina, atualmente. Levantar-se e levar Misha à escola. No portão da escola, a pequena receberia uma
maçã ou uma laranja, um saco de batatas fritas e um biscoito de chocolate da associação Amigos de Lady Charlotte, um grupo desorganizado de estudantes e funcionários
públicos de Kirkcaldy, que garantiam que nenhuma criança começasse o dia de estômago vazio. Pelo menos os dias úteis.
E então, voltava para casa. Eles já haviam desistido de tomar leite junto com o chá, quando tinham chá. Em algumas manhãs, uma xícara de água quente era tudo o que
Mick e Jenny tinham para começar o dia. Aquilo não havia acontecido com frequência, mas uma só vez já era suficiente para lembrar como era fácil cair no abismo.
Depois de uma bebida quente, Jenny geralmente ia com a sacola até o bosque e tentava catar lenha suficiente para garantir algumas horas de calor à noite. Entre os
membros executivos do sindicato, sempre os chamando de
"camaradas", e a coleta de lenha, ela se sentia uma camponesa da Sibéria. Pelo menos eles tinham a sorte de viver perto de uma fonte de combustível. Ela sabia que
era muito mais difícil para outras pessoas. Tiveram a sorte de manter a lareira, graças ao benefício do carvão barato para os mineiros.
Ela cumpria aquela tarefa de forma mecânica, sem prestar muita atenção aos arredores, relembrando a última discussão entre ela e Mick. Às vezes, parecia que era
só a dificuldade que os mantinha unidos, só a necessidade de calor que os mantinha na mesma cama. A greve tinha aproximado alguns casais, mas muitos outros haviam
se separado como uma tora de madeira sob o fio do machado, após os primeiros meses, quando suas reservas de dinheiro se esgotaram.
Não havia sido tão ruim no começo. Desde a última onda de greves nos anos setenta, os mineiros tinham ganhado bastante dinheiro. Eles eram os reis do movimento sindicalista:
bem remunerados, organizados e confiantes. Afinal, haviam derrubado o governo de Ted Heath, na época. Eram intocáveis. E tinham dinheiro para provar.
Alguns haviam gastado até o último centavo: férias no exterior em que podiam expor ao sol a pele branca como leite e as tatuagens de carvão, carros exuberantes com
rádios caros, casas novas que pareciam ótimas quando eles se mudaram, mas que começaram a se deteriorar quase que imediatamente. Mas a maioria deles, cautelosa devido
à história passada, havia guardado um pouco do dinheiro. O bastante para cobrir o aluguel ou a hipoteca, o bastante para alimentar a família e pagar as contas de
combustíveis durante alguns meses. Foi a velocidade com que aquelas parcas economias desapareceram que os deixou aterrorizados. No início, o sindicato pagara salários
decentes aos homens que se amontoassem em carros, vans e microônibus para se unir a piquetes móveis, nas minas em funcionamento, usinas e plantas de coqueificação.
Mas a polícia tornara-se cada vez mais opressora para garantir que os grevistas itinerantes nunca chegassem ao destino, e não havia muito entusiasmo em pagar homens
para não atingir os objetivos. Além disso, nesses dias, os líderes sindicais estavam ocupados demais tentando esconder seus milhões dos confiscadores do governo
para se importar em desperdiçar dinheiro numa briga que deviam saber que estava fadada ao fracasso. Portanto, até mesmo aquela pequena fonte de renda havia se esgotado,
e a única coisa que as comunidades mineiras tinham para engolir era seu orgulho.
Jenny já havia engolido muito do seu durante os últimos nove meses. Havia começado logo de cara, quando ela ouvira que os mineiros escoceses iriam apoiar a região
carbonífera de Yorkshire na convocação de uma greve nacional, não da boca de Mick, mas de Arthur Scargill, presidente do Sindicato Nacional dos Mineradores. Não
pessoalmente, claro. Apenas sua conversa mole no noticiário da TV. Em vez de voltar direto da reunião no Serviço Social dos Mineiros para lhe contar, Mick havia
ficado com Andy e os outros colegas do sindicato, bebendo no bar como se dinheiro não fosse problema. Comemorando com a forma consagrada no grito de batalha do Rei
Arthur: Mineiros unidos jamais serão vencidos.
Desde o começo, as esposas sabiam bem que tudo aquilo era inútil. Uma greve de carvão deve ser feita no começo do inverno, quando a procura, por parte das usinas
elétricas, está no auge. Não na primavera, quando todos começam a desligar a calefação. E quando se parte para uma intensa ação industrial contra uma vaca como Margaret
Thatcher, deve-se proteger a retaguarda. Devem-se cumprir as leis trabalhistas. Devem-se cumprir suas próprias regras. Estipula-se uma eleição nacional. Não se deve
confiar numa interpretação dúbia de uma resolução aprovada três anos antes para um propósito distinto. Ah, sim, as esposas souberam que não daria em nada. Mas haviam
ficado de boca fechada e, pela primeira vez na vida, haviam formado sua própria organização para apoiar seus homens. Lealdade - era isso que contava nas vilas e
nas comunidades mineradoras.
E, portanto, Mick e Jenny ainda estavam juntos. Jenny às vezes se perguntava se a única razão pela qual Mick ainda estava com ela e Misha era porque não tinha aonde
ir. Pais falecidos, nenhum irmão ou irmã, não havia nenhum refúgio óbvio para ele. Ela havia lhe perguntado, uma vez, e ele ficara imóvel como uma estátua, por um
momento. Então, caçoara dela, negando que quisesse ir embora, lembrando-a de que Andy sempre o acolheria em seu sítio, se ele quisesse se afastar. Portanto, não
havia motivo para que ela imaginasse que aquela sexta-feira seria diferente de qualquer outra.
Quinta-feira; 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Então, aquela não foi a primeira vez que ele saiu com suas tintas para passar o dia fora? - perguntou Karen. O que quer que estivesse passando
pela cabeça de Jenny Prentice, claramente era muito mais que os fatos básicos que ela estava entregando.
- Quatro ou cinco vezes por semana.
- E a senhora? O que fazia no resto do dia?
- Ia até o bosque buscar gravetos, então voltava e assistia ao noticiário na TV. Foi um dia bastante especial, aquela sexta-feira. O Rei Arthur estava no
tribunal por obstrução da polícia, na Batalha de Orgreave. O Band Aid* chegou ao topo da parada de sucesso. Te digo uma coisa, eu poderia cuspir na cara deles. Todo
aquele esforço para arrecadar dinheiro para crianças a milhares de quilômetros, enquanto havia crianças famintas bem na porta deles. Onde estavam Bono e Bob Geldof,
quando nossos filhos despertaram na manhã de Natal e não havia nada em suas meias?
- Deve ter sido duro de encarar - Karen comentou.
- Foi como um tapa na cara. Não havia nenhum glamour em ajudar os mineiros, havia? - Um sorrisinho amargo iluminou seu rosto. - Mas poderia ter sido pior.
Poderíamos ter sido obrigados a aturar aquele merda hipócrita do Sting. Sem falar naquele maldito alaúde dele.
- Isso é verdade. - Karen estava se divertindo, dava para ver. Rir da própria desgraça era uma constante naquelas comunidades mineradoras. - E então, o que
a senhora fez depois do noticiário?
- Desci até o Serviço Social. Mick tinha falado alguma coisa sobre uma distribuição de comida. Entrei na fila e voltei para casa com um pacote de macarrão,
uma lata de tomates e duas cebolas. E um pacote de sopa desidratada. Lembro que fiquei bastante satisfeita. Peguei Misha na escola e achei que decorar a casa para
o Natal poderia nos animar um pouco, então, foi isso que fizemos.
- Quando a senhora percebeu que já era tarde para que Mick voltasse para casa?
Jenny fez uma pausa, a mão remexendo num botão do jaleco.
- Naquela época do ano, fica escuro cedo. Geralmente, ele voltaria não muito depois de mim e Misha. Mas como ficamos montando os enfeites de Natal, não percebi
o tempo passar.
Ela estava mentindo, Karen pensou. Mas por quê? E sobre o quê?
* Grupo criado por Bob Geldof, em 1984, que reuniu os mais conhecidos artistas do Reino Unido com a finalidade de arrecadar fundos para combater a fome na
Etiópia. A música-tema era "Do they know it's Christmas" (N.T.)
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Jenny tinha sido uma das primeiras na fila do Serviço Social dos Mineradores e havia voltado rapidamente para casa com sua lamentável comida, determinada a cozinhar
uma panela de sopa para que tivessem alguma coisa saborosa para o jantar. Ela contornou o prédio dos banheiros da mina, notando que todas as casas dos vizinhos estavam
no escuro. Naqueles dias, ninguém deixava uma luz acesa acolhedora quando saía. Cada centavo contava, quando chegavam as contas de combustível.
Quando ela chegou ao portão de sua casa, quase morreu de susto. Uma figura indefinida saiu da escuridão, parecendo agigantar-se na sua imaginação. Ela emitiu um
ruído que era em parte ofego, em parte gemido.
- Jenny, Jenny, acalme-se. Sou eu. Tom. Tom Campbell. Me desculpe, não quis te assustar. - A figura tomou forma, e ela reconheceu o homenzarrão, próximo à
porta da frente.
- Cristo, Tom, você quase me matou de susto - ela reclamou, passando por ele e abrindo a porta. Ciente do frio assombroso na casa, ela seguiu até a cozinha.
Sem hesitação, encheu a panela de água e a colocou no fogão, o anel de gás emitia um pouco de calor. Então, ela se virou para encará-lo na penumbra da luz da tarde.
- Como você está?
Tom Campbell ergueu os grandes ombros e deu um sorriso desanimado.
- Mais ou menos - ele disse. - É irônico. A única vez na vida em que realmente preciso dos meus amigos e acontece esta greve.
- Pelo menos você tem a mim e a Mick - Jenny disse, indicando-lhe uma cadeira.
- Bem, tenho a você, de qualquer jeito. Não acho que esteja na lista de cartões de Natal do Mick, supondo que alguém envie cartões este ano. Não depois de
outubro. Ele não falou mais comigo, desde então.
- Isso passa - ela disse, sem um pingo de convicção.
Mick sempre tivera certas reservas no que se referia à extensão da amizade escolar entre Jenny e a esposa de Tom, Moira. As mulheres eram amigas desde sempre, e
Moira fora dama de honra no casamento de Jenny e Mick. Quando chegou a vez de retribuir o favor, Jenny estava grávida de Misha. Mick havia ressaltado que seu aumento
de peso era a desculpa perfeita para recusar o convite de Moira, já que o vestido de dama de honra
tinha de ser comprado com antecedência. Não era uma sugestão, e sim uma ordem. Isso porque embora Tom Campbell fosse, sem dúvida alguma, um homem decente, bem-apessoado
e honesto, ele não era mineiro. Verdade, ele trabalhava na Lady Charlotte. Descia até a mina no subsolo, naquela gaiola de revirar o estômago. Às vezes, até mesmo
sujava as mãos. Mas não era mineiro. Era um auxiliar de minas. Membro de um sindicato diferente. Um homem da administração, que estava ali para verificar o cumprimento
das regras de saúde e segurança, e que os rapazes fizessem o que deviam fazer. Os mineiros tinham um termo para se referir à parte mais fácil de qualquer tarefa:
"a parte do auxiliar". Parecia bastante inocente, mas num ambiente em que cada membro do grupo sabia que sua vida dependia dos colegas, aquilo expressava um desdém
enorme. E, portanto, Mick Prentice sempre tivera certa reserva no que se referia à sua relação com Tom Campbell.
Ele havia se ofendido com os convites para jantar em sua casa afastada em West Wemyss. Desconfiava dos convites de Tom para que fosse jogar futebol com ele. Tinha
até mesmo se ressentido das horas que Jenny passara ao lado da cama de Moira, durante sua morte pouco digna, porém rápida, de câncer, alguns anos atrás. E, quando
o sindicato de Tom havia hesitado e ficado indeciso com relação a se unir à greve, alguns meses antes, Mick se enfurecera como uma criança mimada, quando eles finalmente
se colocaram do lado dos patrões.
Jenny desconfiava que parte do motivo de sua raiva era a bondade que Tom havia lhes demonstrado desde que a greve começara a afetá-los. Ele criara o hábito de passar
por sua casa com presentinhos: uma sacola de maçãs, um saco de batatas, um brinquedo de pelúcia para Misha. Sempre vinham acompanhados de desculpas plausíveis: a
árvore do vizinho estava carregada, vieram mais batatas na sua porção do que ele iria precisar, um prêmio ganho na rifa do clube de boliche. Mick sempre reclamava
depois.
- Idiota condescendente - ele dizia.
- Ele está tentando ajudar sem nos envergonhar - Jenny respondia.
Tampouco era ruim o fato de que a presença de Tom sempre a fazia se lembrar de tempos mais felizes. De alguma forma, quando ele estava ali, ela tinha novamente a
sensação de novas possibilidades. Ela via a si mesma refletida em seus olhos, como se fosse uma mulher jovem, uma mulher que tinha ambições de uma vida diferente.
Então, embora soubesse que irritaria Mick, Jenny ficava feliz quando Tom se sentava em sua cozinha e conversava com ela.
Ele tirou um pacote meio mole, mas pesado, do bolso.
- Você aproveitaria uns gramas extras de toucinho? - ele disse, a sobrancelha se franzindo de ansiedade. - Minha cunhada trouxe da fazenda de sua família
na Irlanda. Mas é defumado, sabe, e eu não consigo comer toucinho defumado. Tenho aversão. Então pensei que, melhor do que jogar fora... - Ele o entregou a ela.
Jenny pegou o pacote sem hesitar um só segundo. Suspirou desanimada.
- Olhe só para mim. Meu coração disparou por causa de um pedaço de toucinho. Foi isso que Margaret Thatcher e Arthur Scargill conseguiram fazer com a gente.
- Ela balançou a cabeça. - Obrigada, Tom. Você é um bom homem.
Ele desviou o olhar, incerto do que falar ou fazer. Seus olhos se fixaram no relógio.
- Você não tem que ir buscar a menina? Me desculpe, nem me liguei na hora, quando estava te esperando. Só queria... - ele se levantou, o rosto enrubescido.
- Volto depois.
Ela ouviu suas botas tropeçarem no corredor e, então, o ruído do trinco. Jogou o toucinho sobre a pia e desligou o fogo da panela de água. Agora, seria uma sopa
diferente.
Moira sempre tinha sido a sortuda.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
Os olhos de Jenny voltaram da distância e se fixaram em Karen.
- Imagino que fossem umas sete horas, quando percebi que Mick não havia voltado para casa. Eu estava furiosa, porque tinha conseguido um jantar razoável para
pôr na mesa. Então, coloquei a pequena na cama, pedi à vizinha para cuidar dela para que eu pudesse correr até o Serviço e ver se Mick estava lá. - Ela balançou
a cabeça, ainda surpresa após tantos anos.
- E, é claro, ele não estava.
- Alguém o havia visto?
- Aparentemente, não.
- A senhora deve ter ficado preocupada - disse Karen.
Jenny ergueu um ombro.
- Não muito. Como eu disse, nós não tínhamos nos despedido no melhor dos ânimos. Simplesmente pensei que ele tivesse ficado irritado e ido para a casa do
Andy.
- O cara da foto?
- Isso. Andy Kerr. Era funcionário do sindicato. Mas estava de licença médica do trabalho. Estresse, disseram. E estavam certos. Ele se matou um mês depois.
Sempre achei que o fato de Mick decidir furar a greve foi a última gota para Andy. Ele idolatrava Mick. Aquilo teria acabado com ele.
- Então foi lá que a senhora deduziu que ele estivesse? - Karen a provocou.
- Isso mesmo. Andy tinha um sítio no bosque, no meio do nada. Ele dizia que gostava da paz e do silêncio. Mick me levou lá uma vez. Me deu arrepios. Era como
a casa da bruxa de um dos contos de fada de Misha; não se via a casa até que, de repente, você dava de cara com ela, bem na sua frente. Eu é que não moraria lá.
- A senhora não podia ter telefonado para confirmar? - intrometeu-se o Novo em Folha. As duas mulheres olharam para ele com uma mistura de diversão e indulgência.
- Nosso telefone tinha sido cortado meses antes, filho - disse Jenny, trocando um olhar com Karen. - E isso foi muito antes dos celulares.
Naquele ponto, Karen já estava seca por uma xícara de chá, mas nem morta iria se colocar em dívida com Jenny Prentice. Ela pigarreou e prosseguiu:
- Quando foi que a senhora começou a se preocupar?
- Quando a menina me acordou de manhã e ele ainda não estava em casa. Ele nunca tinha feito isso. Não havia sido uma briga de verdade, na sexta-feira. Foram
só umas palavras ásperas. Já tínhamos tido piores, acredite. Quando vi que ele não estava ali de manhã, comecei realmente a pensar que havia alguma coisa terrivelmente
errada.
- O que a senhora fez?
- Dei comida a Misha, troquei sua roupa e a levei até a casa de Lauren, uma amiguinha dela. Daí, atravessei o bosque até a casa de Andy. Mas não havia ninguém
lá. Então, me lembrei que Mick dissera que talvez Andy subisse até as Highlands para passar uns dias, já que estava de licença. Afastar-se de tudo. Pôr a cabeça
no lugar. Então, é lógico que ele não estava lá. Nesse ponto eu já estava bastante assustada. E se houvesse acontecido um acidente? E se ele tivesse ficado doente?
A lembrança ainda tinha o poder de perturbar Jenny. Seus dedos cutucavam sem parar a barra do jaleco.
- Subi até o Serviço Social para ver os representantes do sindicato. Pensei que se alguém soubesse onde Mick estava, seriam eles. Ou que, pelo menos, eles
saberiam onde começar a procurar. - Ela olhou fixamente para o chão, as mãos entrelaçadas no colo. - Foi então que as coisas começaram a degringolar na minha vida.
Sábado, 15 de dezembro de 1984; Newton of Wemyss
Mesmo pela manhã, sem a presença de pessoas para elevar a temperatura, o Instituto do Serviço Social dos Mineradores estava mais quente do que sua casa, notou Jenny
ao entrar. Não muito, mas o suficiente para ser perceptível. Não era algo que geralmente chamava sua atenção, mas hoje ela tentava pensar em qualquer coisa que não
fosse a ausência do marido. Parou por um momento, hesitante, no hall de entrada, tentando decidir aonde ir. Os escritórios do Sindicato Nacional dos Mineradores
ficavam no andar de cima, ela se lembrava vagamente; caminhou, portanto, até a escadaria extravagantemente esculpida. Chegando ao primeiro andar, tudo ficou mais
fácil. Era só seguir o burburinho das vozes e a fumaça de cigarro.
Mais adiante no corredor, havia uma porta entreaberta, de onde vinham o som e o cheiro. Jenny bateu nervosamente, e a sala ficou em silêncio. Por fim, uma voz cautelosa
disse:
- Entre.
Ela esgueirou-se pela porta como se fosse uma pedinte. A sala era tomada por uma mesa em forma de U coberta por um oleado axadrezado. Alguns homens estavam sentados
em torno dela, demonstrando níveis variados de desânimo. Jenny vacilou quando percebeu que o homem na ponta mais distante era alguém que ela reconhecia, mas que
não conhecia pessoalmente. Mick McGahey, ex-comunista, líder dos mineiros escoceses. O único homem, dizia-se, que podia enfrentar o Rei Arthur e fazer-se ouvir.
O homem que fora mantido deliberadamente longe do primeiro posto por seu antecessor. Se Jenny ganhasse uma libra cada vez que ouvia alguém dizer que tudo teria sido
muito diferente se McGahey estivesse no comando, sua família teria sido a mais bem alimentada e mais bem-vestida em Newton of Wemyss.
- Me desculpem - ela gaguejou. - Eu só queria dar uma palavrinha... - Seus olhos passearam pela sala, em dúvida sobre em qual dos homens que conhecia
seria melhor fixar a atenção.
- Tudo bem, Jenny - disse Ben Reekie. - Era só uma reuniãozinha. Já terminamos, não é, rapazes? - Houve um murmúrio descontente de assentimento. Mas Reekie,
o secretário local, era habilidoso em avaliar o andamento de uma reunião e fazer as coisas avançarem. - Então, Jenny, como podemos te ajudar?
Ela gostaria de ficar a sós com ele, mas não tinha coragem de pedir. As mulheres tinham aprendido muito no processo de apoiar seus homens, mas, cara a cara, sua
assertividade ainda tendia a se esvair. Mas tudo ficaria bem, ela disse a si mesma. Vivera nesse universo encasulado durante toda a vida adulta, um mundo que se
centrava na mina e na Associação, no qual não havia segredos e onde o sindicato era sua mãe e seu pai.
- Estou preocupada com Mick - ela disse. Não adiantava fazer rodeios. - Ele saiu ontem de manhã e não voltou. Eu estava pensando se, talvez...?
Reekie apoiou a testa nos dedos, esfregando-a com tanta força que deixou marcas alternadas em vermelho e branco no centro.
- Deus do céu - ele sibilou entre os dentes cerrados.
- E você espera que acreditemos que você não sabe onde ele está?
A acusação veio de Ezra Macafferty, o último sobrevivente na vila das greves dos mineiros e das greves patronais da década de vinte.
- É claro que não sei onde ele está. - A voz soou melancólica, mas um medo sombrio começara a espalhar seu gelo pelo peito dela. - Pensei que talvez ele tivesse
passado por aqui. Achei que alguém pudesse saber.
- Isso eleva o número a seis - disse McGahey. Ela reconheceu o tom grave e áspero de sua voz das entrevistas na TV e comícios ao ar livre. Era estranho estar
na mesma sala que ele.
- Não entendo - ela disse. - Seis o quê? O que está acontecendo? - Todos os olhos estavam voltados para ela, perfurando-a. Podia sentir seu desprezo, mas
não entendia o motivo. - Aconteceu alguma coisa com Mick? Um acidente?
- Aconteceu uma coisa, sim - disse McGahey. - Parece que o seu marido furou a greve e fugiu para Nottingham.
Suas palavras pareceram sugar todo o ar dos pulmões dela. Jenny parou de respirar, deixando que se formasse uma bolha ao seu redor para protegê-la. Não podia ser
verdade. Não o Mick. Muda, ela sacudiu a cabeça com força. As palavras começaram a penetrar a barreira, mas ainda não faziam sentido.
- Sabíamos de cinco... pensamos que haveria mais... sempre um traidor no grupo... decepcionados... sempre um do sindicato.
- Não - ela disse. - Ele não faria isso.
- De que outra forma você explica o fato de ele não estar aqui? - disse Reekie. - Foi você que veio até nós procurando por ele. Sabemos que uma van cheia
deles foi embora ontem à noite. E ao menos um deles é amigo do seu Mick. Onde mais ele poderia estar?
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu não teria me sentido pior se eles tivessem me chamado de prostituta - disse Jenny. - Imagino que, aos olhos deles, era exatamente isso que eu era. Meu
marido fugindo da greve, não demoraria nada até que eu começasse a viver de forma imoral.
- A senhora nunca duvidou de que eles estivessem certos?
Jenny afastou o cabelo do rosto, removendo momentaneamente um pouco de sua idade e docilidade.
- Na verdade, não. Mick era amigo de Iain Maclean, um dos que foram para Nottingham. Isso eu não discutia. E não se esqueça de como era, naquela épóca. Os
homens controlavam o jogo, e o sindicato controlava os homens. Quando as mulheres quiseram participar da greve, a primeira batalha que tivemos que travar foi contra
o sindicato. Tivemos que implorar que nos deixassem entrar. Eles nos queriam onde sempre havíamos estado: no cômodo dos fundos, cuidando do fogão. Não ao lado da
fogueira, nas linhas de piquete. Mas embora tivéssemos conseguido formar a Associação de Mulheres Contra o Fechamento das Minas, ainda conhecíamos bem nosso lugar.
Teríamos que ser muito fortes, ou muito burras, para tentar ir contra a corrente por aqui.
Não era a primeira vez que Karen ouvia uma versão daquela verdade. Ela se perguntou se teria feito diferente, na mesma situação. Era bom pensar
que teria ficado ao lado de seu homem com um pouco mais de firmeza. Mas, diante da hostilidade que Jenny Prentice devia ter enfrentado por parte da comunidade, Karen
achava que também teria cedido.
- Entendo - ela disse. - Mas agora que parece que, afinal, Mick pode não ter fugido da greve, a senhora tem alguma ideia do que pode ter acontecido com ele?
Jenny balançou a cabeça.
- Nenhuma? Ainda que eu não pudesse acreditar, a fuga fazia algum sentido. Então, nunca considerei outra possibilidade.
- A senhora acha que ele pode ter simplesmente se enchido? Simplesmente caiu fora?
Ela franziu a testa.
- Olha, isso não seria do feitio de Mick. Ir embora sem falar nada? Acho que não. Ele faria questão que eu soubesse que tinha sido por minha culpa. - Ela
soltou uma risada amarga.
- A senhora não acha que ele pode ter ido embora sem dizer nada como uma forma de fazer com que a senhora sofresse ainda mais?
Jenny levantou a cabeça.
- Isso é asqueroso demais - ela protestou. - Você o faz parecer um sádico. Ele não era um homem cruel, inspetora. Apenas insensível e egoísta, como todos
eles.
Karen fez uma pausa. Aquela era sempre a parte mais difícil, quando se entrevistava os parentes de um desaparecido.
- Ele havia discutido com alguém? Tinha algum inimigo, Sra. Prentice?
Jenny a olhou como se Karen tivesse, de repente, passado a falar grego.
- Inimigo? Tipo, alguém que quisesse matá-lo?
- Talvez não matá-lo. Apenas brigar com ele.
Dessa vez, a risada de Jenny tinha um calor genuíno.
- Meu Jesus, isso é engraçado, vindo de você. - Ela balançou a cabeça. - As únicas brigas físicas em que Mick se meteu, durante todos os anos em que estivemos
casados, foi com o seu pessoal. Nas linhas de piquete. Nas manifestações. Se ele tinha inimigos? Claro, os de uniforme azul. Mas aqui não é a América Latina e não
me lembro de ouvir falar de desaparecidos nas greves dos mineiros. Portanto, a resposta para sua pergunta é não, ele não tinha o tipo de inimigo com quem teria uma
briga séria.
Karen observou o carpete por um longo tempo. A violência exagerada da polícia, contra os grevistas, havia envenenado os relacionamentos nas comunidades por mais
de uma geração. Não importava que os piores transgressores viessem de forças externas, trazidos ali para aumentar os números, e a quem se pagavam quantias obscenas
de dinheiro para oprimir seus concidadãos de formas que a maioria das pessoas preferia nem saber. O resultado de sua ignorância e arrogância havia afetado a todos
os policiais, em todas as corporações das cidades mineradoras. Ainda afetava, pensou Karen. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
- Sinto muito - ela disse. - A forma como trataram os mineiros foi imperdoável. Prefiro pensar que não agiríamos dessa maneira hoje em dia, mas é provável
que esteja enganada. A senhora tem certeza de que não havia ninguém com quem ele houvesse se desentendido?
Jenny nem sequer parou para pensar.
- Não que eu soubesse. Ele não era encrenqueiro. Tinha seus princípios, mas não os usava para provocar brigas. Defendia aquilo em que acreditava, mas era
só de falar, não de partir para a briga.
- E se falar não adiantasse? Ele retrocederia?
- Não tenho certeza se entendi a pergunta.
Karen falou vagarosamente, tateando a ideia.
- Estou pensando se ele não topou com esse tal de Iain Maclean naquele dia e tentou convencê-lo a não ir para Nottingham. E se Iain se recusou a mudar de
ideia, e talvez tivesse seus amigos para apoiá-lo... Será que Mick entraria numa briga com eles?
Jenny balançou firmemente a cabeça.
- De jeito nenhum. Ele diria o que pensava e, se não adiantasse, se afastaria.
Karen se sentiu frustrada. Mesmo depois de tanto tempo, os casos arquivados geralmente ofereciam um ou dois fios soltos por onde começar. Mas, até agora, parecia
não haver nada ali. Uma última pergunta e, depois, ela iria embora.
- A senhora tem alguma ideia de aonde Mick pode ter ido para pintar naquele dia?
- Ele não disse. A única coisa que posso dizer é que, no inverno, ele geralmente seguia pelo litoral até East Wemyss. Assim, se começasse a
chover, ele poderia descer até as cavernas e se abrigar lá. Os caras do grupo de preservação tinham uma cabaninha no fundo de uma das cavernas, com um fogareiro
onde podiam fazer chá. Ele tinha as chaves, podia ficar à vontade - ela acrescentou, a acidez de volta à sua voz. - Mas não tenho ideia se ele esteve ali nesse dia
ou não. Ele poderia estar em qualquer lugar entre Dysart e Buckhaven. - Ela olhou para o relógio. - Isso é tudo que sei.
Karen se levantou.
- Agradeço muito por seu tempo, Sra. Prentice. Continuaremos fazendo nossas investigações e a manteremos informada.
Novo em Folha se levantou desajeitadamente e seguiu Karen e Jenny até a porta da frente.
- Não estou preocupada por mim, entende? - Jenny disse, quando eles estavam a meio caminho da rua. - Mas veja se você consegue encontrá-lo pelo bem da criança.
Aquele era, pensou Karen, o primeiro sinal de emoção que ela demonstrava durante toda a manhã.
- Pegue seu caderno - ela disse a Novo em Folha, quando entraram no carro. - Próximos passos. Falar com a vizinha. Ver se ela se lembra de alguma coisa sobre
o dia em que Mick Prentice desapareceu. Falar com alguém do grupo da caverna, ver quem ainda está lá desde 1984. Obter outra visão de como realmente era Mick Prentice.
Procurar nos arquivos alguma coisa a respeito desse Andy Kerr, funcionário do Sindicato dos Mineiros, que supostamente cometeu suicídio na época em que Mick desapareceu.
Como é essa história? E precisamos rastrear esses cinco fura-greves e pedir que a polícia fale com eles em Nottingham. - Ela abriu a porta do passageiro novamente,
enquanto Novo em Folha terminava de escrever. - E já que estamos aqui, vamos dar uma olhada nessa vizinha.
Ela mal se afastara dois passos do carro quando seu telefone tocou.
- Phil - ela disse.
Nenhuma piadinha, ele simplesmente foi direto aos fatos:
- Você precisa voltar aqui agora mesmo.
- Por quê?
- O Biscoito está furioso. Quer saber por que diabos você não está na sua mesa.
Simon Lees, subchefe de Polícia (Criminal), tinha um temperamento muito diferente do de Karen. Ela estava convencida de que, antes de dormir, ele lia o Código de
Polícia, Ordem Pública e Justiça Criminal de 2006 (da Escócia). Sabia que ele era casado e tinha dois filhos adolescentes, mas não fazia ideia de como aquilo podia
ter acontecido com um homem tão obsessivamente organizado. Era Lei de Murphy que, na primeira manhã, em meses, que ela estava fazendo algo fora das normas, o Biscoito
viesse procurá-la. Ele parecia acreditar que tinha o direito divino de saber o paradeiro de qualquer oficial sob seu comando, quer estivesse ou não de serviço. Karen
se perguntou o quão próximo de um derrame ele teria chegado ao descobrir que ela não estava ocupando a mesa onde esperava encontrá-la. Pelo jeito, não próximo o
bastante.
- O que você disse a ele?
- Disse que você estava numa reunião com a equipe de armazenamento de provas, discutindo uma forma de agilizar o procedimento de catalogação deles - disse
Phil. - Ele gostou da ideia, mas não do fato de que isto não estivesse registrado em sua lista eletrônica de compromissos.
- Estou a caminho - Karen disse, confundindo Novo em Folha ao entrar novamente no carro. - Ele disse por que estava me procurando?
- Para mim? Um mero sargento? Dá um tempo, Karen. Ele apenas disse que era "muito importante". Alguém provavelmente roubou os biscoitinhos digestivos dele.
Karen gesticulou impacientemente para Novo em Folha.
- Para casa, James, e não poupe os cavalos. - Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido, mas deu partida no carro e saiu dirigindo. - Estou indo - ela
disse. - Ponha a água para ferver.
Glenrothes
A dupla hélice de frustração e irritação se retorceu nas entranhas de Simon Lees. Ele se mexeu na cadeira e rearrumou as fotos da família sobre a mesa. Qual era
o problema dessa gente? Quando fora procurar a inspetora Pirie e não a encontrara onde deveria estar, o sargento Parhatka agira como se aquilo estivesse perfeitamente
bem. Havia algo fundamentalmente indiferente nos detetives de Fife. Ele havia percebido aquilo dias após ter chegado de Glasgow. Surpreendia-se que eles houvessem
conseguido colocar
alguém atrás das grades, antes que ele chegasse com seus métodos analíticos, suas investigações eficientes, análises sofisticadas de vínculos criminais e o inevitável
aumento nos níveis de detecção.
O que o irritava ainda mais era o fato de que eles pareciam não ter qualquer gratidão pelos métodos modernos que ele trouxera para o trabalho. Ele até mesmo suspeitava
que riam dele. Seu apelido, por exemplo. Todo mundo no prédio parecia ter um apelido, a maioria deles podendo ser interpretados como levemente carinhosos. Mas não
ele. Logo descobrira que fora apelidado de Biscoito, porque compartilhava o sobrenome com uma fábrica de doces; seu produto mais famoso ficara conhecido devido a
um antiquíssimo jingle de propaganda, cujo racismo brincalhão causaria tumulto nas ruas se fosse veiculado na Escócia do século XXI. Ele culpava Karen Pirie; não
era coincidência que o apelido houvesse surgido após seu primeiro desentendimento com ela. Algo que se tornaria comum na maioria de seus encontros. Ele não tinha
certeza de como acontecia, mas ela sempre parecia confundi-lo.
Lees ainda se ressentia com aquela primeira lembrança. Mal havia chegado, já começara a dar as ordens, promovendo uma série de treinamentos. Não os de praxe, numa
postura machista, nem a tediosa revisão das regras de comportamento, mas abordagens originais de temas referentes ao policiamento moderno. A primeira leva de oficiais
tinha se reunido na sala de treinamento e Lees dera início a seu prólogo, explicando como eles passariam o dia desenvolvendo estratégias para o policiamento em uma
sociedade multicultural. Seus espectadores pareceram rebeldes, e Karen Pirie liderara o ataque:
- Senhor, posso fazer uma observação?
- É claro, inspetora Pirie. - Seu sorriso havia sido cordial, ocultando a irritação de ser interrompido antes de sequer ter revelado o programa.
- Bem, senhor, Fife não é realmente o que se poderia chamar de multicultural. Não temos muitas pessoas aqui que não sejam britânicas nativas. À exceção dos
italianos e poloneses, quero dizer, e eles já estão aqui há tanto tempo que nos esquecemos que não são daqui.
- Então o racismo parece estar bem para você; é isso, inspetora Pirie?
Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas ele fora levado àquilo pela atitude aparentemente retrógrada expressada por ela. Sem falar daquela
cara de bolacha impassível que ostentava sempre que dizia alguma coisa que pudesse ser interpretada como provocadora.
- Em absoluto, senhor. - Ela sorrira, de forma quase piedosa. - O que eu queria dizer é que, já que temos um orçamento limitado para treinamentos, pode fazer
mais sentido lidar primeiro com o tipo de situação que é mais provável que encontremos no dia a dia.
- Tais como?... Com quanta força devemos bater nas pessoas, quando as prendemos?
- Eu estava pensando em estratégias para lidar com a violência doméstica. É um tipo de chamada frequente e que pode facilmente se agravar. Gente demais ainda
morre todos os anos porque uma briga doméstica escapa ao controle. E nem sempre sabemos lidar com elas, sem piorar a situação. Eu diria que essa seria minha prioridade
número um no momento, senhor.
E com aquele discurso, ela havia tirado o chão dele. Não tinha volta. Poderia seguir adiante com o treinamento planejado, sabendo que todos na sala estariam rindo
dele. Ou poderia adiá-lo, organizando algo relacionado à sugestão da inspetora Pirie, e então perderia completamente a moral. No fim, ele disse a eles para passarem
o resto do dia pesquisando sobre o assunto da violência doméstica, preparando-se para outro dia de treinamento.
Dois dias depois, ouviu sem querer alguém se referindo a ele como o Biscoito. Ah, sim, ele sabia a quem culpar. Mas assim como em tudo que ela fazia para sabotá-lo,
não havia nada que ele pudesse atribuir diretamente a ela. Ela simplesmente ficaria ali, tão desgrenhada, impassível e inescrutável quanto uma vaca escocesa das
Highlands, nunca dizendo ou fazendo nada de que ele pudesse se queixar. E ela estabeleceu o padrão para todos os demais, mesmo estando isolada nos cafundós, na Equipe
de Revisão de Casos Arquivados, onde não deveria ser capaz de exercer nenhuma espécie de influência. Mas, de alguma forma, graças a Pirie, lidar com os detetives
das três divisões era como pastorear gatos.
Ele tentava evitá-la, tentava desviar-se dela através de suas diretrizes operacionais. Até então pensava que estava funcionando. Mas aí o telefone tinha tocado.
- Subchefe de Polícia Lees - anunciara ao atender. - Em que posso ajudar?
- Bom dia, subchefe Lees. Meu nome é Susan Charleson. Sou assistente pessoal de Sir Broderick Maclennan Grant. Meu chefe gostaria de falar com o senhor. Agora
seria um bom momento?
Lees se endireitou na cadeira, alinhando os ombros. Broderick Maclennan Grant era conhecido por três coisas: sua fortuna, seu isolamento misantrópico e pelo sequestro
e assassinato da filha Catriona, há vinte e poucos anos. Por mais improvável que pudesse parecer, um telefonema de sua assistente para o subchefe criminal só poderia
significar que havia ocorrido algum tipo de mudança no caso.
- Sim, claro, o momento perfeito, não poderia ser melhor.
Ele escavou a memória em busca de detalhes, ouvindo apenas em parte à mulher no telefone. Filha e neto sequestrados, tinha sido isso. Filha morta durante uma entrega
de resgate que deu errado, neto nunca mais visto. E, agora, ele parecia ter a chance de, finalmente, solucionar o caso. Concentrou-se novamente na voz da mulher.
- Se o senhor puder fazer a gentileza de aguardar, colocarei Sir Broderick na linha agora mesmo - ela disse.
O som oco de uma interrupção e, então, uma voz soturna e pesada disse:
- Aqui fala Broderick Maclennan Grant. Você é o subchefe de Polícia?
- Exatamente, Sir Broderick. Subchefe de Polícia Lees. Simon Lees.
- Você está ciente do assassinato não solucionado da minha filha, Catriona? E do sequestro do meu neto, Adam?
- É claro, naturalmente, não existe um só policial na região que não...
- Achamos que surgiu uma prova nova. Eu ficaria agradecido se você tomasse todas as providências para que a inspetora Pirie venha até a minha casa amanhã
cedo, para discutir o assunto comigo.
Lees literalmente afastou o telefone do rosto e ficou olhando para o aparelho. Seria algum trote sofisticado?
- Inspetora Pirie? Eu não... eu poderia ir - ele balbuciou.
- Você é um funcionário administrativo. Não preciso de um funcionário administrativo. - O tom de Brodie Grant era desdenhoso. - A inspetora Pirie é detetive.
Gostei da forma como ela lidou com o caso Lawson.
- Mas... mas, para tratar disso, deveria ser um oficial mais graduado - protestou Lees.
- Não é a inspetora Pirie quem está no comando da sua Equipe de Revisão de Casos Arquivados? - Grant começava a parecer impaciente. - Isso é graduação suficiente
para mim. Não me importo com postos, me importo com eficiência. É por isso que quero a inspetora Pirie na minha casa amanhã às dez. Isso deve lhe dar tempo suficiente
para se familiarizar com as informações básicas do caso. Tenha um bom dia, Sr. Lees. - A linha emudeceu e Simon Lees ficou sozinho, com seu mau humor e a pressão
arterial que se elevava.
Por mais que aquilo o angustiasse, ele não tinha escolha senão encontrar a inspetora Pirie e lhe dar as ordens. Pelo menos, poderia fazer com que aquilo parecesse
ter sido ideia dele. Embora não houvesse nenhum compromisso marcado no sistema de agendamento eletrônico que ele instituíra para seus detetives mais antigos, ela
não estava em sua mesa. Tudo bem que os policiais fizessem coisas por iniciativa própria, mas tinham de aprender a deixar um registro de seus movimentos.
Ele estava prestes a voltar para a sala da Revisão de Casos Arquivados para descobrir por que a inspetora Pirie ainda não havia aparecido quando uma batida incisiva
na porta foi seguida, sem qualquer intervalo, pela entrada dela.
- Eu disse que poderia entrar? - perguntou Lees, olhando-a com raiva do outro lado da sala.
- Pensei que fosse urgente, senhor. - Ela continuou andando e se sentou na cadeira do outro lado da mesa dele. - O sargento Parhatka me deu a impressão de
que, qualquer que fosse o motivo pelo qual o senhor estivesse me procurando, não podia esperar.
Que referência para o serviço policial, ele pensou, irritado. Cabelo desgrenhado caindo sobre os olhos, pouquíssima maquiagem e dentes que precisavam seriamente
de um aparelho ortodôntico. Ele supunha que ela fosse lésbica, dada sua atração por terninhos de calça comprida, o que era realmente um erro, devido à largura de
seus quadris. Não que ele tivesse qualquer coisa contra lésbicas, lembrou-lhe seu censor interno. Apenas achava que dava às pessoas a impressão errada sobre o serviço
policial de hoje.
- Sir Broderick Maclennan Grant me telefonou hoje de manhã - ele disse. O único sinal de interesse foi um ligeiro entreabrir dos lábios. - Suponho que saiba
quem é Broderick Maclennan Grant.
Karen pareceu surpresa com a pergunta. Ela se reclinou na cadeira e recitou:
- Terceiro homem mais rico da Escócia, é dono de metade da porção rentável das Highlands. Ganhou seu dinheiro construindo estradas e casas, e administrando
os sistemas de transporte que as servem. Possui uma ilha nas Hébridas, mas passa a maior parte do tempo no Castelo de Rotheswell, perto de Falkland. A maioria das
terras entre lá e o mar pertence a ele ou a Wemyss. Sua filha Cat e o filhinho dela, Adam, foram sequestrados por um grupo anarquista em 1985. Cat foi morta com
um tiro quando a entrega do resgate deu errado. Ninguém sabe o que aconteceu com Adam. A esposa de Grant suicidou-se alguns anos depois. Ele se casou novamente há
cerca de dez anos. Tem um filho pequeno que deve estar com cinco ou seis anos. - Ela riu. - Como fui?
- Não é um concurso, inspetora. - Lees sentiu que cerrou os punhos e os manteve embaixo da mesa. - Parece que há novas provas. E já que você está no comando
dos casos arquivados achei que deveria cuidar deste.
- Que tipo de provas? - Ela se reclinou sobre o braço da cadeira, numa postura relaxada.
- Achei melhor que você conversasse diretamente com Sir Broderick. Assim, não haverá qualquer possibilidade de confusão.
- Então, ele realmente não lhe disse nada a respeito?
Lees poderia jurar que ela estava gostando daquilo.
- Marquei de você se encontrar com ele no Castelo de Rotheswell amanhã de manhã às dez. Não preciso lhe dizer o quanto é importante que fique bem claro que
estamos levando isso a sério. Quero que Sir Broderick entenda que este assunto receberá toda a nossa atenção.
Karen se levantou abruptamente, os olhos repentinamente frios.
- Ele receberá exatamente a mesma atenção que todos os outros pais enlutados com quem trato. Não faço distinção entre os mortos, senhor. Agora, se isso é
tudo, tenho um arquivo para estudar até amanhã cedo.
Ela não esperou por uma dispensa. Apenas virou nos calcanhares e saiu, deixando Lees com a sensação de que ela tampouco fazia distinção entre os vivos.
Mais uma vez, Karen Pirie o havia feito se sentir um idiota.
Castelo de Rotheswell
Bel Richmond deu uma última olhada em seu arquivo sobre Catriona Maclennan Grant, certificando-se de que sua lista de perguntas cobria todos os ângulos. A intolerância
a bobagens por parte de Broderick Maclennan Grant era tão notória quanto sua aversão à publicidade. Bel suspeitava de que ele fosse atacar ao primeiro sinal de falta
de preparo de sua parte e usá-la como desculpa para romper o acordo que ela havia negociado com Susan Charleson.
Para dizer a verdade, ela ainda estava surpresa por haver conseguido. Levantou-se, fechou o laptop e deu uma olhada no espelho. Vestida para matar. Afinal, a primeira
impressão é a que fica. Fim de semana no campo. Era esse o look que ela havia adotado. Sempre fora boa em camuflagem. Mais uma das muitas razões pelas quais ela
era tão boa naquilo que fazia. Integrar-se, tornar-se "parte do grupo", qualquer que fosse ele, era um mal necessário. Portanto, se ela iria dormir sob o teto aristocrático
de Brodie Grant, precisava se vestir a caráter. Alisou o vestido axadrezado Black Watch que havia tomado emprestado de Vivianne, conferiu se não havia arranhões
nos sapatos de salto sabrina, ajeitou o cabelo, negro como um corvo, para trás da orelha e entreabriu os lábios rubros num sorriso. Uma olhada em seu relógio confirmou
que estava na hora de descer as escadas e descobrir o que a formidável Susan Charleson havia preparado.
Ao virar uma curva da ampla escadaria, teve de se desviar para evitar um garotinho que subia a toda velocidade. Ele conseguiu controlar os gestos desgovernados no
patamar entre dois lances, ofegou um "Desculpe", e voou escada acima. Bel piscou e ergueu as sobrancelhas. Já fazia algum tempo que não esbarrava assim num garotinho
e não havia sentido a menor falta. Continuou descendo, mas, antes de chegar ao pé da escada, uma mulher com calças de veludo bege e uma blusa vermelho-escura circulou
a coluna da escadaria e parou de repente, pega de surpresa.
- Oh, me desculpe, não quis assustá-la - ela disse. - Viu um garotinho passar por aqui?
Bel apontou com o polegar por sobre o ombro.
- Ele foi por ali.
A mulher assentiu. Agora que estava mais próxima, Bel podia ver que era uns dez anos mais velha do que pensara de início, trinta e tantos, no mínimo. A pele tratada,
o cabelo castanho grosso e o porte elegante ajudavam a confundir.
- Monstrinho - disse a mulher. Elas se encontraram a alguns degraus do patamar. - Você deve ser Annabel Richmond - ela disse, estendendo a mão delgada que
estava fria, apesar da temperatura agradável dentro das grossas paredes do castelo. - Sou Judith. Esposa de Brodie.
Claro que sim. Como Bel poderia ter imaginado uma babá tão bem arrumada?
- Lady Grant - ela disse, estremecendo por dentro.
- Judith, por favor. Mesmo depois de todos esses anos casada com Brodie, ainda tenho vontade de olhar para trás quando alguém me chama de Lady Grant. - Ela
não parecia dizer aquilo apenas por falsa modéstia.
- E eu sou Bel. Vamos deixar para lá o nome que uso profissionalmente.
Lady Grant sorriu, os olhos já examinando os degraus acima.
- Bel então. Olhe, não posso parar agora, tenho de capturar aquele monstrinho. Vejo você no jantar. - E lá foi ela, subindo dois degraus de cada vez.
Sentindo que havia exagerado ao se vestir, em comparação à castelã de Rotheswell, Bel seguiu pelos corredores de lajotas de pedra até o escritório de Susan Charleson.
A porta estava aberta e Susan, que falava ao telefone, acenou para que ela entrasse.
- Muito bem. Obrigada por arranjar tudo, Sr. Lees. - Ela recolocou o fone no gancho e contornou a mesa, conduzindo Bel de volta à porta. - Bem na hora - ela
disse. - Ele aprecia a pontualidade. Gostou do quarto? Tem tudo de que precisa? O acesso wi-fi está funcionando?
- Tudo está perfeito - disse Bel. - A vista também é linda.
Sentindo-se como se tivesse entrado num drama da BBC2 escrito por Stephen Poliakoff, ela deixou-se conduzir pelo labirinto de corredores, cujas
paredes estavam forradas de fotografias de paisagens escocesas enormes impressas em telas para parecerem quadros pintados. Ficou surpresa de tudo lhe parecer tão
aconchegante. Mas, também, aquela não era a ideia que fazia de um castelo. Esperara algo como Windsor ou Alnwick. Em vez disso, Rotheswell parecia-se mais a uma
mansão fortificada e com torres. O interior lembrava mais uma casa de campo do que um salão de banquetes medieval. Sólido, mas não tão intimidador quanto ela temera.
Quando finalmente pararam diante de uma porta dupla de mogno alta e abobadada, Bel já estava começando a se arrepender de não ter deixado uma trilha de migalhas
de pão.
- Chegamos - disse Susan, abrindo uma das portas e conduzindo Bel para o interior de uma sala de bilhar, forrada de painéis de madeira escura e com persianas
nas janelas. A única luz provinha de uma série de lustres sobre a mesa de bilhar de tamanho oficial. Quando elas entraram, Broderick Maclennan Grant levantou os
olhos do taco que posicionava para a jogada. Uma massa densa de cabelo impressionantemente grisalho caía jovialmente sobre a testa ampla, sobrancelhas como um par
de muralhas prateadas sobre olhos tão fundos que sua cor só podia ser adivinhada, nariz como o bico de um papagaio, e uma boca ampla e fina sobre um queixo quadrado,
eram características que o tornavam instantaneamente reconhecível. A iluminação do lugar dava um ar dramático a sua figura.
Por conta de fotografias, Bel sabia o que esperar, mas ficou surpresa com a eletricidade crepitante que sentiu em sua presença. Já estivera na presença de homens
e mulheres poderosos antes, mas poucas vezes sentira aquele carisma instantâneo. Entendeu, de imediato, como Brodie Grant havia construído seu império do nada.
Ele se endireitou e apoiou-se no taco.
- Srta. Richmond, suponho. - Sua voz era profunda e quase relutante, como se não a usasse muito.
- Exatamente, Sir Broderick. - Bel não tinha certeza se deveria avançar ou permanecer onde estava.
- Obrigado, Susan - disse Grant. Quando a porta se fechou atrás dela, ele acenou na direção de um par de poltronas de couro desgastadas ao lado de uma lareira
de mármore entalhado. - Sente-se. Posso jogar e conversar
ao mesmo tempo. - Ele voltou a estudar a tacada enquanto Bel deslocava uma das poltronas para que pudesse observá-lo de forma mais direta.
Ela esperou enquanto ele fez mais algumas jogadas, o silêncio se erguia entre eles como uma maré ameaçadora.
- É uma linda casa - ela disse afinal.
Ele resmungou:
- Não sou de papo furado, Srta. Richmond. - Deu uma tacada rápida e duas bolas colidiram num estalo que pareceu um tiro. Passou giz no taco e a observou por
um longo momento. - Você provavelmente está se perguntando como conseguiu isso. Acesso direto a um homem famoso por sua aversão à exposição na mídia. Que conquista,
hein? Bem, sinto muito em decepcioná-la, mas você apenas teve sorte. - Ele circulou a mesa, franzindo a testa diante da posição das bolas, movendo-se como um homem
vinte anos mais jovem.
- Foi assim que consegui algumas das minhas melhores histórias - Bel disse calmamente. - Grande parte do jornalismo de sucesso deve-se a isso: a habilidade
de estar no lugar certo, na hora certa. Não tenho problema algum com relação à sorte.
- Que seja. - Ele estudou as bolas, inclinando a cabeça para obter um ângulo diferente. - Então, você não está se perguntando por que escolhi romper meu silêncio,
após todos esses anos?
- Sim, é claro que estou. Mas, para ser honesta, não acho que suas razões para falar agora terão muito a ver com o que acabarei escrevendo. Portanto, é mais
uma curiosidade pessoal do que profissional.
Ele parou a meio caminho de sua preparação para uma tacada e empertigou-se, encarando-a com uma expressão que ela não podia decifrar. Ele poderia estar furioso ou
curioso.
- Você não é como eu esperava - ele disse. - É mais durona. Isso é bom.
Bel estava acostumada a ser subestimada pelos homens, em seu universo. Estava menos acostumada, porém, a que eles admitissem seu erro.
- Pode ter certeza de que sou durona. Não confio a mais ninguém as minhas batalhas.
Ele se virou para olhá-la, apoiando-se na mesa e cruzando os braços sobre o taco.
- Não gosto de ficar exposto ao público - ele disse. - Mas sou realista. Em 1985 era possível que alguém como eu exercesse um determinado grau de influência
sobre a mídia. Quando Catriona e Adam foram sequestrados, controlamos em grande parte o que foi impresso e transmitido. A polícia também cooperou conosco. - Ele
suspirou e balançou a cabeça. - Olhe só de que adiantou. - Deixou o taco na mesa e veio se sentar de frente para Bel.
Sentou-se na posição clássica do macho dominante: joelhos bem abertos, mãos sobre as coxas, ombros para trás.
- O mundo é um lugar diferente agora - ele disse. - Eu vi o que vocês fazem com pais que perderam seus filhos. Mohamed Al Fayed, retratado como um palhaço
paranoico. Kate McCann, transformada em uma Medeia moderna. Dê um passo em falso e eles o enterram. Bem, não vou deixar que isso aconteça. Sou um homem muito bem-sucedido,
Srta. Richmond. E cheguei até aqui aceitando que existem coisas que eu não sei e entendendo que a forma de superar isso é contratando especialistas e ouvindo-os.
No que se refere a esse ramo de negócios, você é minha especialista. Quando souber que existem novas provas, a mídia enlouquecerá. Mas não falarei com ninguém além
de você. Tudo passará por você. Portanto, qualquer que seja a imagem que chegue ao público, será a que você gerar. Este lugar foi construído para resistir a um cerco,
e meu sistema de segurança é o melhor que existe. Nenhum dos répteis chega perto de mim, de Judith ou de Alec.
Bel sentiu um sorriso repuxar os cantos da boca. Acesso exclusivo era o sonho erótico de todo redator. Geralmente, tinha de se matar para conseguir algo assim. Mas,
ali estava, numa bandeja e de graça. Contudo, deixou-o continuar pensando que era ela quem estava lhe fazendo um favor.
- E o que eu ganho com isso? Além de me tornar a jornalista que todo mundo adora odiar?
A linha estreita dos lábios de Grant se comprimiu ainda mais, e o peito se ergueu numa respiração profunda.
- Eu falarei com você. -As palavras saíram como se tivessem sido trituradas entre duas pedras de moinho. Claramente, sua intenção era que aquele fosse um
momento comparado a quando Moisés desceu do Monte Sinai.
Bel estava determinada a não se deixar impressionar.
- Excelente. Podemos começar, então? - Enfiou a mão dentro da bolsa e tirou um gravador digital. - Sei que isto não será fácil para o senhor, mas preciso
que me conte sobre Catriona. Chegaremos ao sequestro e suas consequências, mas teremos que voltar um pouco antes disso. Quero ter um panorama de como ela era e de
como vivia.
Ele olhou para o nada e, pela primeira vez, Bel viu um homem que parecia ter setenta e dois anos.
- Não tenho certeza se sou a pessoa mais adequada para isso - ele disse. - Éramos parecidos demais. Sempre foi uma disputa, entre mim e Catriona. - Ele se
levantou da poltrona e voltou à mesa de bilhar. - Ela sempre foi voluntariosa, mesmo quando pequena. Tinha ataques de fúria que podiam balançar as paredes deste
lugar. Ela cresceu e deixou os ataques para trás, mas não o temperamento. Contudo, sempre conseguia reconquistar a boa vontade das pessoas. Quando ela queria. -
Ergueu os olhos para Bel e sorriu. - Ela sabia bem o que queria. E não era possível fazê-la mudar de ideia, uma vez que estivesse decidida sobre algo.
Grant se moveu em torno da mesa, estudando as bolas, alinhando sua próxima jogada.
- E tinha talento. Quando criança, nunca estava sem um lápis ou um pincel nas mãos. Desenho, pintura, modelagem em argila. Ela nunca parava. Não deixou de
fazer isso com o tempo, como a maioria das crianças. Simplesmente se aprimorou. Então, ela descobriu o vidro. - Ele se inclinou sobre a mesa e acertou a bola vermelha
com a bola da vez, encaçapando-a no buraco do meio. Então, reposicionou a vermelha e estudou os ângulos.
- O senhor disse que sempre houve disputa entre vocês. Quais eram os pontos críticos? - Bel perguntou, quando ele não demonstrou sinais de que continuaria
com suas reminiscências.
Grant deu uma risadinha irônica.
- Tudo e qualquer coisa. Política. Religião. Se a comida italiana era melhor do que a indiana. Se Mozart era melhor do que Beethoven. Se a arte abstrata tinha
algum significado. Se deveríamos plantar faia, bétula ou pinho escocês no bosque de Check Bar. - Ele se endireitou lentamente. - Por que ela não queria assumir a
companhia. Esse era o ponto mais crítico. Eu não tinha um filho homem, naquela época. E nunca tive problemas para
aceitar mulheres nos negócios. Não via razão alguma para que ela não pudesse assumir a MGE, desde que aprendesse como tudo funcionava. Ela dizia que preferiria furar
os próprios olhos com uma agulha.
- Ela não aprovava a MGE? - perguntou Bel.
- Não, não tinha nada a ver com a companhia ou com sua política. Ela queria era ser uma artista do vidro. Esculpir, soprar, modelar... tudo que fosse possível
fazer com vidro, ela queria ser a melhor. E isso não deixava espaço para a construção de rodovias ou casas.
- Deve ter sido uma grande decepção.
- Fiquei arrasado. - Grant pigarreou. - Fiz tudo o que podia para convencê-la a desistir daquilo. Mas ela não me dava ouvidos. Agiu à minha revelia e se candidatou
a uma vaga na universidade Goldsmiths, em Londres. E conseguiu. - Ele balançou a cabeça. - Eu queria cortar qualquer ajuda financeira a ela, mas Mary, minha esposa,
mãe de Cat, me compeliu a concordar em sustentá-la. Ela disse que, para alguém que detestava se expor ao público, eu estava dando uma imensa colher de chá para os
tabloides. Então, deixei-me convencer. - Ele deu um sorriso amargo. - Quase me conformei com tudo, também. Então, descobri o que realmente estava acontecendo.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1978; Castelo de Rotheswell
Brodie Grant girou o Land Rover numa curva que espalhou cascalho para os lados e freou a metros da porta da cozinha do Castelo de Rotheswell. Entrou pisando forte
na casa, com um labrador chocolate nos calcanhares. Atravessou a cozinha, deixando um redemoinho de ar gelado à sua passagem, e gritou para o cão ficar ali. Moveu-se
pela casa com a velocidade e a segurança de um homem que sabe precisamente aonde está indo.
Finalmente, irrompeu na sala belamente decorada onde a esposa se entregava à sua paixão pela costura de colchas de retalhos.
- Você sabia disto? - ele indagou. Mary ergueu os olhos, assustada. Podia ouvir a intensidade de sua respiração, do outro lado da sala.
- Disto o quê, Brodie? - perguntou. Ela estava casada com uma força da natureza havia tempo suficiente para não se espantar com uma entrada dramática.
- Foi você que me convenceu a isto. - Ele se jogou numa poltrona baixa, lutando para ajeitar as pernas. - "É o que ela quer, Brodie. Ela jamais o perdoará
se você ficar no caminho dela. Você seguiu seus sonhos, Brodie. Deixe-a seguir os dela." Foi o que você disse. Então, foi o que fiz. Contrariando o que achava certo,
eu disse que iria apoiá-la. Financiar seu maldito diploma. Ficar de boca fechada sobre a maldita perda de tempo que é tudo isso. Parar de lembrá-la que são pouquíssimos
os artistas que conseguem se sustentar com essa bobajada indulgente. Não enquanto estão vivos, pelo menos. - Ele bateu o punho fechado no braço da poltrona.
Mary continuou a enfiar a agulha no tecido e sorriu.
- Você fez isso mesmo, Brodie. E estou orgulhosa de você.
- E olhe só aonde isso nos levou. Olhe só o que realmente está acontecendo!
- Brodie, não tenho ideia do que está falando. Você poderia explicar? E não se esqueça da sua pressão.
Ela tinha o dom de provocá-lo gentilmente e demovê-lo de suas posturas tão extremas. Mas, naquele dia, não estava dando certo. A irritação de Brodie estava no auge,
e seria necessária mais que uma dose de racionalidade amável para fazê-lo voltar a seu humor normal.
- Saí com Sinclair. Fomos verificar as trilhas para a caçada na sexta-feira.
- E como estavam as trilhas?
- Ótimas. Sempre ótimas. Ele é um bom caseiro. Mas não é essa a questão, Mary. - Sua voz se elevou novamente, incompatível com o ambiente aconchegante, cheio
de tecidos nas prateleiras.
- Claro que não, Brodie. Percebi isso. Qual é exatamente a questão?
- Aquele maldito do Fergus Sinclair. Eu disse ao Sinclair. No verão passado, quando seu maldito filho estava farejando atrás da Cat. Eu disse a ele para manter
o garoto longe da minha filha, e achei que ele tivesse me ouvido. E agora, isto! - Sacudiu as mãos como se estivesse jogando uma pilha de feno para o ar.
Mary finalmente abaixou seu trabalho.
- Qual é o problema, Brodie? O que aconteceu?
- É o que vai acontecer. Você se lembra de como respiramos aliviados quando ele se matriculou no maldito curso de administração de propriedades
em Edimburgo? Bem, acontece que essa não era sua única opção. Ele simplesmente aceitou uma vaga na Universidade de Londres. Vai estar na mesma droga de cidade que
a nossa filha. Vai ficar em cima dela o tempo todo, como uma sarna. Maldito caipira oportunista. - Fechou a cara e socou novamente a poltrona. - Vou acabar com a
raça dele, você vai ver.
Para espanto dele, Mary desandou a rir em sua mesinha de trabalho, com lágrimas cintilando nos cantos dos olhos.
- Ai, Brodie - ela ofegou. - Nem consigo lhe dizer como isso é engraçado.
- Engraçado? - ele berrou. - Aquele garoto dos infernos vai arruinar a vida de Cat e você acha engraçado?
Mary se levantou de um salto e cruzou a sala até o marido. Ignorando seus protestos, sentou-se no colo dele e passou os dedos por seu cabelo grosso.
- Está tudo bem, Brodie. Tudo ficará bem.
- Não vejo como. - Ele se afastou da mão dela.
- Durante a última semana, eu e a Cat tentávamos arranjar uma forma de lhe contar.
- Contar o quê, mulher?
- Ela não vai para Londres, Brodie.
Ele se endireitou, quase derrubando Mary no chão.
- O que você quer dizer com não vai para Londres? Ela vai desistir dessa idiotice? Virá trabalhar comigo?
Mary suspirou.
- Não Seja bobo. Você sabe, no fundo do seu coração, que ela está fazendo o que deveria fazer. Não, ela recebeu a oferta de uma bolsa de estudos. É uma combinação
de formação acadêmica e trabalho em uma fábrica de vidro artístico. Brodie, é simplesmente a melhor escola do mundo. E eles querem a nossa Catriona.
Por um longo momento, ele se permitiu ficar dividido entre o orgulho e o medo.
- E onde é isso? - disse, por fim.
- Não é muito longe, Brodie. - Mary passou as costas da mão pelo rosto dele. - É na Suécia.
- Suécia? Na maldita Suécia? Por Deus, Mary. Suécia?
- Você fala como se fosse o fim do mundo. Pode-se voar para lá de Edimburgo, sabe? Leva menos de duas horas. Sinceramente, Brodie. Escute o que está dizendo.
Isso é maravilhoso. É o melhor começo possível para ela. E você não terá de se preocupar com o fato de Fergus estar no mesmo lugar. Não é provável que ele apareça
numa cidadezinha perdida entre Estocolmo e Uppsala, é?
Grant passou os braços em volta da esposa e descansou o queixo sobre sua cabeça.
- Só você mesmo para encontrar o lado bom disso. - Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. - Com certeza, isso irá colocar o maldito do Fergus Sinclair
no lugar dele.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
- Então o senhor também discutia com Cat a respeito de namorados? - Bel perguntou. - Era com relação a todos eles, ou apenas no caso de Fergus Sinclair?
- Ela não teve tantos namorados assim. Estava concentrada demais no trabalho. Saiu durante alguns meses com um dos escultores da fábrica de vidro. Eu o encontrei
algumas vezes. Sueco, mas mesmo assim um rapaz bastante sensato. Eu podia ver que ela não estava levando muito a sério; então não havia necessidade de discutirmos
sobre ele. Mas Fergus Sinclair era outra história. - Ele contornou a mesa, e sua raiva era óbvia.
- A polícia nunca o considerou suspeito, mas questionei, na época, se ele poderia estar por trás do que aconteceu com Cat e Adam. Ele, logicamente, não havia
aceitado, quando ela finalmente rompeu os laços entre eles. E não aceitava que ela não o reconhecesse como pai de Adam. Na época, pensei que era possível que ele
tivesse feito justiça com as próprias mãos. Embora fosse difícil imaginar que tivesse inteligência para armar algo tão complicado.
- Mas Cat continuou o relacionamento com Fergus, depois de ir para a Suécia?
Subitamente o cansaço pareceu dominá-lo, e Grant se deixou cair na poltrona, de frente para Bel.
- Eles eram muito próximos. Haviam brincado juntos quando crianças. Eu deveria ter colocado um ponto final naquilo, mas nunca passou pela minha cabeça que
se transformaria em alguma coisa. Eles eram muito diferentes. Cat, com sua arte, e Sinclair, sem outra ambição a não ser a de seguir os passos do pai e ser caseiro.
Classes sociais diferentes, aspirações diferentes. A única coisa que os aproximava era o fato de a vida os ter colocado no mesmo lugar. Portanto, sim, quando ela
voltava, nas férias, e ele estava por perto, eles se juntavam novamente. Ela não fazia segredo sobre isso, ainda que soubesse minha opinião a respeito de Sinclair.
Eu continuava com a esperança de que ela conhecesse alguém que fosse digno dela, mas isso nunca aconteceu. Ela continuava voltando para Sinclair.
- E, apesar disso, o senhor não despediu o pai dele. Não o retirou da propriedade.
Grant pareceu chocado.
- Meu Deus, claro que não. Você tem ideia de como é difícil encontrar um caseiro tão bom quanto Willie Sinclair? Você poderia entrevistar cem homens antes
de encontrar alguém com os instintos que ele tem sobre pássaros e sobre as terras. E também é um sujeito decente. Ele sabia que o filho não estava à altura de Cat.
Sentia vergonha por não conseguir impedir que Fergus andasse atrás dela. Queria proibi-lo de frequentar a casa deles, mas sua esposa não permitiu. - Ele deu de ombros.
- Não posso culpá-la. As mulheres são sempre moles com os filhos.
Bel tentou ocultar sua surpresa. Ela havia presumido que Grant não respeitaria qualquer limite para que tudo fosse como ele queria, no que dizia respeito à filha.
Aparentemente, ele era mais complexo do que ela havia imaginado.
- O que aconteceu quando ela voltou da Suécia?
Grant esfregou o rosto com as mãos.
- Não foi nada agradável. Ela queria se mudar. Montar um estúdio onde pudesse trabalhar e vender suas coisas, um lugar onde também houvesse um espaço separado
para ela morar. Ela estava de olho numas propriedades nas minhas terras. Eu disse que o preço da minha ajuda era que ela parasse de se encontrar com Sinclair. -
Pela primeira vez, Bel viu tristeza se infiltrando através da raiva fervilhante. - Foi burrice da minha parte. Mary disse isso, na época, e ela estava com a razão.
As duas ficaram
furiosas comigo, mas eu não quis ceder. Então, Cat seguiu seu próprio caminho. Ela entrou em contato com a corretora da propriedade rural de Wemyss e alugou um imóvel
deles. Uma velha casa, próxima à entrada da propriedade, juntamente com o que havia sido um depósito de lenha, entrando pela estrada principal. Perfeito para atrair
a clientela. Área para estacionamento na frente dos antigos portões, um estúdio e espaço para exposição, além de dependências para ela morar, por trás dos muros.
Toda a privacidade que ela poderia desejar. E todo mundo ficou sabendo que Catriona Maclennan Grant fora morar em Wemyss só para contrariar seu velho pai.
- Se ela dependia do senhor, como é que pôde pagar por tudo isso? - perguntou Bel.
- A mãe dela equipou o estúdio, pagou o aluguel referente ao primeiro ano e encheu a despensa de Cat até ela começar a vender suas peças. - Ele não conseguiu
evitar um sorriso. - O que não demorou muito. Ela era boa, sabe? Muito boa. E a mãe cuidou que todos os seus amigos fossem até lá para comprar presentes de casamento
e de aniversário. Nunca fiquei tão bravo com Mary quanto naquela época. Estava ultrajado. Sentia-me frustrado e desrespeitado, e a situação só piorou quando o desgraçado
do Sinclair voltou da universidade e retornou de onde havia parado.
- Eles moravam juntos?
- Não. Cat tinha bom-senso o bastante para não fazer isso. Agora eu olho para trás e, às vezes, penso que ela só continuava se encontrando com ele para me
irritar. Não durou muito, depois que ela abriu o estúdio. Estava praticamente terminado cerca de um ano e meio antes que... que ela morresse.
Bel fez as contas mentalmente e concluiu que havia algo errado.
- Mas Adam só tinha seis meses quando eles foram sequestrados. Então, como Fergus Sinclair podia ser o pai, se ele se separou de Cat um ano e meio antes?
Grant suspirou.
- De acordo com Mary, não foi um rompimento definitivo. Cat ficava repetindo para Sinclair que tudo havia terminado, mas ele não queria aceitar. Hoje em dia,
isso se chama assédio. Parece que ele vivia aparecendo com aquela cara de cão sem dono, e Cat nem sempre tinha forças para
mandá-lo embora. E daí, ela ficou grávida. - Ele olhou para o chão. - Sempre imaginei como seria ser avô. Ver a família continuar. Mas, quando Cat nos contou, tudo
o que senti foi raiva. Aquele filho da puta do Sinclair havia arruinado o futuro dela. Ele a sobrecarregou com seu bebê, destruiu suas chances de ter a carreira
que ela havia sonhado. A única coisa boa que ela fez foi se recusar a manter qualquer contato com ele. Não quis reconhecê-lo como pai da criança, não queria vê-lo
nem falar com ele. Deixou muito claro que, daquela vez, estava realmente tudo acabado entre eles.
- Como ele reagiu a isso?
- Mais uma vez, eu soube indiretamente. Dessa vez por Willie Sinclair. Ele disse que o garoto estava devastado. Mas só o que me importava era que ele finalmente
tivesse entendido o recado de que nunca faria parte da nossa família. Willie aconselhou-o a manter distância de Cat e, pela primeira vez na vida, ele ouviu. Em poucas
semanas, arranjou um emprego na Áustria para trabalhar numa propriedade de caça perto de Salzburg. Desde então ele trabalha na Europa.
- E hoje? O senhor ainda acha que ele pode ter sido responsável pelo que aconteceu?
Grant fez uma careta.
- Se é para ser honesto, não. Acho que não. Não creio que ele tivesse inteligência suficiente para criar um plano tão complicado. Tenho certeza de que ele
adoraria ter colocado as mãos no filho e ao mesmo tempo se vingar de Cat, mas é muito mais provável que tenham sido alguns filhos da puta com motivos políticos que
pensaram que seria muito inteligente me fazer financiar sua revolução. - Fatigado, ele se levantou. - Agora estou cansado. A polícia virá amanhã de manhã e teremos
que repassar tudo. Nós a veremos no jantar, Srta. Richmond.
Ele saiu da sala, deixando Bel cheia de coisas a considerar. E anotar. Quando Brodie Grant dissera que falaria com ela, não havia imaginado, nem por um minuto, que
ele lhe entregaria esse precioso filão de informações. Ela teria de pensar com muito cuidado em como apresentá-lo à mídia mundial. Um passo em falso e sabia que
a mina seria fechada. Agora que tivera um gostinho do que jazia adiante, isso era, definitivamente, a última coisa que ela queria.
Glenrothes
Novo em Folha olhava fixamente para a tela do computador, como se fosse um artefato alienígena, quando Karen voltou a seu escritório.
- O que você tem aí para mim? - ela perguntou. -Já conseguiu ras-trear os cinco fura-greves?
- Nenhum deles tem registro criminal - ele disse.
- E?
- Eu não sabia onde mais procurar.
Karen revirou os olhos. Sua convicção de que Novo em Folha havia sido imposto a ela por Biscoito como uma forma de sabotagem se intensificava a cada dia.
- Google. Registro eleitoral. O site 192.com. Registro de carteiras de habilitação. Comece por aí, Jason. E depois marque para mim uma visita, em terreno,
com o responsável pela preservação de cavernas. É melhor deixar o dia de amanhã livre; veja se você consegue que ele me receba no sábado cedo.
- Nós geralmente não trabalhamos aos sábados - disse Novo em Folha.
- Você é que está dizendo - Karen murmurou, lembrando-se de pedir a Phil que fosse com ela. A insistência da lei escocesa na corroboração para todo tipo de
prova fazia com que ficasse difícil dar uma de justiceiro solitário.
Ela despertou seu computador da hibernação e rastreou as informações de contato de seu equivalente em Nottingham. Para seu alívio, o inspetor Des Mottram estava
em sua mesa e foi receptivo a seu pedido.
- Acho provável que seja um beco sem saída, mas é algo que precisa ser verificado - ela disse.
- E não lhe atrai nem um pouco uma viagem até Costa dei Trent - ele disse, com uma resignação divertida na voz.
- Não é isso. Tive um caso importantíssimo reaberto hoje e não tenho como desperdiçar pessoas com algo que, provavelmente, não nos trará qualquer avanço,
exceto num caminho negativo.
- Não se preocupe. Eu sei como é isso. Hoje é seu dia de sorte, Karen. Teremos dois novos assistentes no Departamento de Investigação Criminal na segunda-feira
e isso é exatamente o tipo de coisa que posso usar para treiná-los. Nada muito complicado, não exige muita manha.
Karen passou para ele os nomes dos homens.
- Um dos meus rapazes está procurando pelos últimos endereços conhecidos. Assim que ele achar alguma coisa, pedirei que lhe mande um e-mail. - Mais alguns
detalhes e ela terminou. Bem naquele instante, Phil Parhatka voltou a entrar na sala, com um enrolado de bacon que transmitiu uma mensagem diretamente para os centros
de prazer do cérebro de Karen. - Hummm - ela gemeu. - Deus, isto está com um cheiro delicioso.
- Se eu soubesse que você havia voltado, teria lhe trazido um. Bom, vamos dividir esse.
Ele pegou uma faca em sua gaveta e cortou o enrolado na metade, espirrando molho de tomate nos dedos. Passou a ela sua metade e, então, lambeu os dedos. O que mais,
pensou Karen, uma mulher poderia querer de um homem?
- O que o Biscoito queria? - perguntou Phil.
Karen deu uma mordida no enrolado e falou com a boca cheia da massa adocicada com bacon salgado.
- Novos desdobramentos no caso Catriona Maclennan Grant.
- É mesmo? O que aconteceu?
Karen sorriu.
- Não sei. O Rei Brodie não se preocupou em dizer ao Biscoito. Só disse a ele para me mandar lá amanhã de manhã. Então, preciso me atualizar rapidinho. Já
mandei buscar os arquivos, mas vou checar on-line primeiro. Olhe só... - Ela o puxou para um lado. - O assunto Mick Prentice. Preciso falar com alguém no sábado
e é óbvio que o Novo em Folha não trabalha aos sábados. Existe alguma chance de eu convencer você a ir comigo?
- Ir aonde?
- Às cavernas de Wemyss.
- Sério? - Phil se animou. - Poderemos passar para o outro lado das grades?
- Imagino que sim - disse Karen. - Não sabia que você se interessava por cavernas.
- Karen, eu já fui garoto um dia.
Ela revirou os olhos.
- Isso é bem verdade.
- Além disso, as cavernas têm coisas realmente legais. Inscrições e desenhos pictos. Entalhes da Idade do Ferro. Gosto da ideia de ser um
esquilo-agente-secreto e poder dar uma espiada nas coisas que geralmente não podem ser vistas. Claro que irei com você. Você já fez os registros do
caso?
Karen pareceu envergonhada.
- Quero ver aonde vai dar. Foi uma época difícil por aqui. Se alguma coisa ruim aconteceu a Mick Prentice, quero ir até o fundo. E você sabe como a mídia
está sempre se metendo no que fazemos no setor de Casos Arquivados. Tenho a sensação de que esse é um caso em que temos mais chance de descobrir o que aconteceu
se mantivermos segredo por um tempo.
Phil terminou seu enrolado e limpou a boca com as costas da mão.
- Parece justo. Você é a chefe. Só se assegure de que o Biscoito não possa usar isso contra você.
- Vou tomar cuidado. Escute, você está ocupado agora?
Ele atirou o saco de papel vazio na lixeira com uma jogada por cima da cabeça, comemorando quando acertou.
- Nada que eu não possa adiar.
- Veja o que você consegue descobrir sobre um cara chamado Andy Kerr. Ele era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores durante a greve. Morava num
sítio no meio do bosque de Wemyss. Estava de licença médica, com depressão, na época em que Mick desapareceu. Dizem que deu fim à própria vida, mas nunca encontraram
o corpo.
Phil assentiu.
- Verei o que consigo descobrir.
Enquanto ele voltava à própria mesa, Karen procurava Catriona Maclennan Grant no Google. O primeiro resultado a levou a uma publicação em formato de jornal, de dois
anos antes, marcando o vigésimo aniversário da morte da jovem escultora. Depois de ler três parágrafos, Karen sentiu um golpe no meio de seu peito. "É incrível como
são poucas as pessoas que se dispõem a falar sobre este caso", ela leu. "O pai de Cat Grant jamais falou com a imprensa sobre o que aconteceu. Sua mãe se matou dois
anos após a morte da filha. Seu ex-namorado, Fergus Sinclair, se recusa a dar entrevistas. E o policial encarregado do caso também está fora do nosso alcance, já
que ele mesmo cumpre pena por assassinato."
- Ai, Jesus - ela gemeu. Nem sequer tinha visto o arquivo do caso e aquela já estava se transformando numa missão dos infernos.
Kirkcaldy
Já passava das dez quando Karen entrou em casa com um pacote de arquivos e uma porção de peixe para o jantar. A ideia de que estava brincando de casinha nunca a
tinha abandonado. Talvez tivesse algo a ver com a casa em si, uma caixa pré-fabricada num empreendimento imobiliário popular de 1960, no norte de Kirkcaldy. O tipo
de lugar no qual as pessoas começavam a vida, aferrando-se à esperança de que não a terminariam ali. Um subúrbio com baixos índices de criminalidade, onde se podia
deixar as crianças brincar na rua, desde que não se morasse em uma das estradas. Acidentes de trânsito, e não sequestros, eram o que os pais mais temiam por ali.
Karen nunca se lembrava ao certo por que havia comprado a casa, embora, na época, tivesse parecido uma boa ideia. Suspeitava que o apelo estivera no fato de ela
vir completamente mobiliada, provavelmente por alguém que havia tirado a ideia de um programa de TV sobre decoração. Comprara a mobília junto com a casa, até mesmo
os quadros nas paredes. Não ligava para o fato de não ter sido ela a escolher as coisas entre as quais vivia. De qualquer maneira, era o tipo de coisa que ela provavelmente
teria escolhido, e aquilo lhe havia economizado o trabalho de passar um domingo numa loja da IKEA. E ninguém podia negar que era um milhão de vezes mais agradável
do que a confusão floral desbotada em que viviam seus pais. Sua mãe continuava esperando que ela se tornasse como todo mundo, mas isso não iria acontecer. Quando
tinha um fim de semana livre, Karen não desejava nada além de um prato de carne e legumes com curry com os amigos e passar um bom tempo estirada no sofá, assistindo
a jogos de futebol e a filmes antigos. Nada de arrumar a casa.
Ela colocou tudo sobre a mesa de jantar e foi à procura de um prato e talheres. Ainda conservava alguns padrões, pelo amor de Deus. Atirou o casaco sobre uma cadeira
e sentou-se com a refeição, abrindo um dos arquivos para ler enquanto comia. Ela já havia estudado os arquivos do caso Grant antes e tomado nota das perguntas para
as quais queria respostas. Agora, finalmente, tinha a chance de analisar o material que Phil compilara para ela.
Como havia esperado, o relatório de pessoa desaparecida original não poderia estar mais incompleto. Naquela época, o desaparecimento de um homem adulto, solteiro
e sem filhos, com histórico de depressão clínica, não teria muita atenção da polícia. Não tinha nada a ver com o fato de que a greve dos mineiros houvesse sobrecarregado
a força policial até o limite, e tudo a ver com o fato de que, naquele tempo, pessoas desaparecidas não eram prioridade. A não ser que fossem crianças pequenas ou
mulheres jovens e atraentes. Mesmo nos dias atuais, somente os problemas clínicos de Andy Kerr teriam garantido um leve interesse.
Seu desaparecimento havia sido informado por sua irmã, Angie, na véspera do Natal. Ele não aparecera na casa dos pais para a tradicional comemoração em família.
Angie, em casa de férias do curso de pedagogia, havia deixado alguns recados na secretária eletrônica dele na semana anterior, tentando marcar um encontro para um
drinque. Andy não respondera, mas aquilo não era incomum. Ele sempre fora dedicado ao trabalho, mas, desde que a greve havia começado, tornara-se um verdadeiro workaholic.
Então, na tarde da véspera de Natal, a Sra. Kerr admitira que Andy estava de licença por depressão. Angie convenceu o pai a levá-la de carro até o sítio de Andy,
no bosque de Wemyss. O lugar estava frio e deserto, sem qualquer comida fresca na geladeira. Havia um bilhete encostado no açucareiro sobre a mesa da cozinha. Incrivelmente,
o bilhete havia sido embalado e incluído no arquivo. Se você estiver lendo isto, provavelmente é porque está preocupado comigo. Não fique. Já aguentei o suficiente.
É uma coisa depois da outra, e não suporto mais. Fui embora para tentar colocar a cabeça no lugar. Andy.
Não era exatamente um bilhete de suicídio, mas, se você encontrasse um corpo ao lado de uma mensagem dessas, não esperaria que fosse uma vítima de assassinato. E
a irmã dissera que Andy gostava de fazer caminhada pela montanha. Ela podia entender por que o oficial que investigara o sítio e o bosque ao redor houvesse recomendado
que não se tomassem outras medidas além de fazer a informação circular entre as demais forças da Escócia. Uma anotação no arquivo, escrito com caligrafia diferente,
atestava que Angie Kerr havia entrado com um pedido para que seu irmão fosse declarado legalmente morto em 1992 e que o pedido fora concedido.
A última página estava na caligrafia familiar de Phil. "Os pais de Kerr morreram no desastre de balsa de Zeebrugge, em 1987. Angie não poderia reclamar sua herança
enquanto Andy não fosse declarado morto. Quando ela, finalmente, conseguiu legitimar a sucessão, em 1993, vendeu tudo e emigrou para a Nova Zelândia. Ela ensina
piano em Nelson, em South Island; trabalha em casa." Seguiam o endereço completo e o número de telefone de Angie Kerr.
Ela havia sofrido bastante com tudo aquilo, pensou Karen. Perder o irmão e os pais no espaço de alguns anos já era duro, e ainda por cima ter de passar pelo processo
de obter a declaração de morte legal para Andy. Não era de admirar que ela tivesse desejado se mudar para o outro lado do mundo. Onde, ela notou, seriam onze e meia
da manhã. Uma hora perfeitamente civilizada para se ligar para alguém.
Uma das poucas coisas que Karen havia comprado para sua casa era uma secretária eletrônica que lhe permitia gravar digitalmente as ligações telefônicas, que ela,
então, podia transferir via conexão USB para seu computador. Tentara convencer Biscoito a comprar algumas para o escritório, mas ele não se interessava. Provavelmente
porque não tinha sido ideia dele. Karen podia apostar que, muito em breve, algo parecido surgiria no escritório principal do Departamento de Investigação Criminal,
uma invenção do próprio subchefe Lees. Tudo bem. Pelo menos ela podia usar o sistema em casa e pedir ressarcimento pelas ligações.
Uma mulher atendeu no terceiro toque, o sotaque escocês evidente até mesmo nas duas sílabas de "Alô?".
Karen se apresentou e, então, disse:
- É Angie Kerr?
- Antes era Kerr. Agora é Mackenzie. É a respeito do meu irmão? Vocês o encontraram? - Ela parecia ansiosa, quase satisfeita.
- Não. Infelizmente, não.
- Ele não se matou, sabe? Sempre achei que sofreu um acidente. Caiu de alguma montanha, em algum lugar. Por mais deprimido que estivesse, Andy jamais se mataria.
Ele não era covarde. - O tom de desafio era claro em sua voz.
- Sinto muito - disse Karen. - Realmente não tenho respostas para você. Mas estamos examinando novamente os fatos da época em que ele
desapareceu. Estamos investigando o desaparecimento de Mick Prentice, e o nome do seu irmão veio à tona.
- Mick Prentice. - Angie parecia enojada. - Que belo amigo ele se revelou.
- O que você quer dizer?
- Não acho que seja coincidência que ele tenha fugido da greve justamente antes de Andy partir.
- Por que você diz isso?
Uma pausa curta, então Angie continuou:
- Porque seria o pior tipo de traição. Aqueles caras eram amigos desde o primeiro dia de escola. O fato de Mick ter furado a greve arrasaria Andy. E eu acho
que ele previu que isso aconteceria.
- O que a faz dizer isso?
- A última vez que o vi, ele sabia que alguma coisa estava acontecendo com Mick.
Domingo, 2 de dezembro de 1984; Bosque de Wemyss
Nenhuma visita à casa de sua família seria completa, para Angie, se não passasse algum tempo com o irmão. Ela tentava vir pelo menos uma vez por semestre, mas, embora
a viagem de ônibus de Edimburgo levasse apenas uma hora, às vezes parecia demais para suportar. Ela sabia que o problema era o diferente tipo de distância que estava
crescendo entre ela e os pais, conforme se movimentava com maior liberdade num universo que era estranho para eles: palestras, sociedades estudantis, festas nas
quais as drogas eram tão comuns quanto um drinque, e uma gama de assuntos que ultrapassava tudo que ela já houvesse encontrado em Fife. Não que não existissem oportunidades
para ampliar os horizontes intelectuais por lá. Mas as salas de leitura, os cursos da WEA e os Bums Clubs eram para os homens. As mulheres nunca tiveram acesso nem
tempo para eles. Os homens cumpriam seus turnos no subterrâneo e, depois, seu tempo era só deles. Mas o trabalho das mulheres nunca terminava de verdade, principalmente
para aquelas cujos senhorios eram as antigas empresas carboníferas ou a comissão nacional do carvão. A própria avó de Angie não tivera água quente corrente nem um
banheiro em sua casa até já ter mais de sessenta
anos. Portanto, os homens não se sentiam facilmente atraídos por mulheres com formação escolar.
Andy era uma exceção. Sua mudança da frente mineira para o trabalho no sindicato o havia exposto às políticas igualitárias aspiradas pelo movimento sindicalista.
Ainda que não existissem mulheres trabalhando nas minas, o contato com outros sindicatos havia convencido Andy de que o mundo não acabaria se as mulheres fossem
tratadas como companheiras igualitárias da raça humana. E, assim, irmão e irmã tornaram-se mais próximos, substituindo as brigas da infância por discussões legítimas.
Agora, Angie esperava com ansiedade pelas tardes de domingo passadas com o irmão, passeando pelo bosque ou segurando canecas de chocolate quente diante da lareira.
Naquela tarde, Andy a esperara na parada de ônibus no final da estrada que descia até seu sítio, adentrando o bosque. Eles haviam planejado contornar o bosque e
caminhar até a orla, mas o céu ameaçava chuva, então optaram por voltar ao sítio.
- Acendi a lareira para a sua chegada - Andy dissera quando começaram a caminhada. - Me sinto culpado por ter dinheiro para o carvão, então, geralmente, não
a acendo. Simplesmente visto mais um suéter.
- Isso é uma tolice. Ninguém o culpa por ainda receber um salário.
Andy balançou a cabeça.
- É aí que você se engana. Tem um monte de gente que acha que deveríamos devolver nosso salário para o fundo do sindicato.
- E a quem isso beneficia? Você está fazendo um trabalho. Está apoiando os homens em greve. Merece ser remunerado. - Ela passou o braço pelo de Andy, compreendendo
como ele devia estar se sentindo acuado.
- Pois é, e muitos dos grevistas acham que também deveriam receber alguma coisa do sindicato. Ouvi alguns deles, lá no Serviço Social, dizendo que, se o sindicato
estivesse pagando salário-greve, não teriam que estar trabalhando tanto para manter os fundos a salvo das mãos dos confiscadores. Eles questionam para que servem
os fundos do sindicato se não é para ajudar seus membros quando há uma greve. - Ele suspirou, a cabeça baixa como se estivesse caminhando contra um vento forte.
- E eles têm razão, sabe?
- Imagino que sim. Mas se você delega a tomada de decisões a seus líderes, que foi o que eles fizeram ao concordar com a greve sem uma votação
nacional, então não pode começar a reclamar quando eles tomam decisões com as quais você não concorda muito. - Angie olhou atentamente para o irmão, observando como
as linhas de tensão ao redor de seus olhos haviam se aprofundado, desde a última vez que o vira. Sua pele parecia pálida e pouco saudável, como a de um homem que
viesse passando tempo demais em ambientes fechados e sem suplementos vitamínicos. - E se você se deixar intimidar a esse respeito, não ajudará a ninguém.
- Não sinto que esteja sendo de muita ajuda no momento - ele disse, tão baixinho que a fala quase se perdeu no ruído das folhas mortas sob seus pés.
- Isso é uma bobagem - Angie protestou, sabendo que não era suficiente, mas sem saber o que mais poderia dizer.
- Não, é a verdade. A vida dos homens que eu represento está desmoronando. Eles estão perdendo a casa porque não conseguem pagar a hipoteca. A esposa já vendeu
o anel de casamento. Os filhos vão para a escola com fome. Têm furos nos sapatos. Aqui mais parece um maldito país de Terceiro Mundo, só que não temos nenhuma instituição
de caridade arrecadando dinheiro para nos ajudar com nosso desastre. E não posso fazer nada a respeito. Como você acha que me sinto com isso?
- Bem mal - disse Angie, agarrando seu braço com mais força. Não havia resistência; era como abraçar o protetor estofado contra correntes de ar que sua mãe
usava para manter a sala o mais abafada possível. - Mas você pode fazer apenas o melhor que conseguir. Ninguém espera que você solucione todos os problemas da greve.
- Eu sei - ele suspirou. - Mas me sentia parte desta comunidade. Pertenci a ela minha vida inteira. Agora, parece que os caras em greve estão num lado da
cerca e todos os demais estão no outro. Funcionários do sindicato, auxiliares das minas, gerentes, a porra do governo Toiy... somos todos inimigos.
- Agora é que você está realmente dizendo bobagens. De jeito nenhum estamos no mesmo lado que os Tories. Todo mundo sabe disso. - Eles caminharam em silêncio,
apressando o passo quando a promessa de chuva se tornou realidade. Caiu torrencialmente em gotas frias e duras. Os galhos nus acima de sua cabeça ofereciam pouca
proteção contra o aguaceiro penetrante. Angie soltou o braço dele e começou a correr. - Vamos apostar uma corrida? - ela disse, animada, de alguma forma, pelo aguaceiro
gelado.
Não olhou para verificar se ele a estava seguindo. Apenas correu de forma desordenada em meio às árvores, seguindo a trilha sinuosa. Como sempre, emergir na clareira
onde o sítio se incrustava era incrivelmente repentino. A casa aparecia como algo saído dos contos dos Irmãos Grimm, uma construção baixa sem qualquer outro charme
além do seu isolamento. O teto de ardósia, o estuque cinza, a porta e as janelas pretas levariam qualquer criança que passasse por ali a identificá-la como a casa
da bruxa malvada. Um alpendre de madeira abrigava um recipiente para carvão, uma pilha de madeira e a motocicleta com sidecar de Andy.
Angie correu até a varanda e se virou, ofegante. Não havia sinal de Andy. Alguns minutos se passaram antes que ele surgisse entre as árvores, caminhando com dificuldade,
o cabelo castanho-claro grudado à cabeça. Angie sentiu-se murchar diante do fracasso de sua tentativa de animá-lo um pouco. Ele não disse nada ao entrar primeiro
na casa, tão organizada e espartana quanto um quartel. A única decoração era uma série de pôsteres de animais selvagens que haviam sido dados como brinde junto com
um dos jornais dominicais escoceses. Um conjunto de prateleiras estava lotado de livros sobre história natural e política; outro, de LPs. Não poderia ser mais diferente
dos quartos que ela frequentava em Edimburgo, mas Angie gostava mais dali do que de qualquer um deles. Ela sacudiu a cabeça como um cachorro para tirar as gotas
de chuva do cabelo louro-escuro, atirou o casaco sobre uma cadeira e se encolheu em uma das poltronas de segunda mão que estavam ao lado da lareira. Andy foi direto
até a cozinha para preparar o chocolate quente.
Enquanto esperava que ele se juntasse a ela, Angie tentava imaginar uma forma de animá-lo. Geralmente, ela o fazia rir com as histórias de seus colegas da universidade
e suas travessuras, mas sentia que isso não iria funcionar naquele dia. Iriam parecer histórias insensíveis sobre os privilegiados. Talvez a solução fosse lembrá-lo
das pessoas que ainda acreditavam nele.
Ele voltou com duas canecas fumegantes numa bandeja. Geralmente, eles comiam biscoitos, mas qualquer coisa que cheirasse a luxo estava fora do cardápio daquele dia.
- Tenho doado a maior parte do meu salário para o fundo de emergência - ele disse, percebendo que ela havia notado. - Só guardo o suficiente para o aluguel
e as coisas básicas.
Sentaram-se de frente um para o outro, aferrando-se à bebida quente para deixar que o calor penetrasse em suas mãos geladas. Angie falou primeiro.
- Você não deveria dar atenção a eles. As pessoas que realmente o conhecem não acham que você seja um dos inimigos. Você deveria ouvir gente como Mick, que
sabe quem você é. O que você é.
- Você acha mesmo? - Sua boca se retorceu numa expressão amargurada. - Como é que pessoas da laia de Mick podem saber quem eu sou, se nem sequer sabem mais
quem elas mesmas são?
- O que você quer dizer com não saber mais quem é Mick? Vocês são amigos há mais de vinte anos. Não acredito que a greve tenha mudado nenhum de vocês tanto
assim.
- É o que se poderia pensar, não? - Andy olhou fixamente para o fogo com os olhos embotados e os ombros caídos. - Os homens daqui... não é comum a gente conversar
sobre nossos sentimentos. Vivemos nesta atmosfera de camaradagem, lealdade e dependência mútua, mas nunca falamos sobre o que acontece dentro da gente. Mas eu e
o Mick, nós não éramos assim. Costumávamos contar tudo um ao outro. Não havia nada sobre o que não pudéssemos conversar. - Ele afastou o cabelo molhado da testa
alta e estreita. - Mas, ultimamente, algo mudou. Sinto que ele está escondendo alguma coisa. Parece que há alguma questão realmente importante sobre a qual ele não
consegue se obrigar a falar.
- Mas pode ser qualquer coisa - disse Angie. - Algo entre ele e Jenny, talvez. Algo que não seria certo discutir com você.
Andy fungou.
- Você acha que ele não fala sobre Jenny? Eu sei tudo sobre aquele casamento, pode acreditar. Poderia desenhar um mapa das falhas geológicas entre aqueles
dois. Não, não é Jenny. A única coisa que posso pensar é que ele concorda com os outros. Que ache que eu não esteja servindo de nada para eles, no momento.
- Tem certeza de que não é sua imaginação? Isso não parece coisa do Mick.
- Bem que eu gostaria. Mas não é imaginação. Nem mesmo meu melhor amigo acha que eu mereça confiança. Só não sei quanto tempo conseguirei fazer meu trabalho,
me sentindo deste jeito.
Angie começou a se preocupar de verdade. O desespero de Andy estava claramente além de qualquer coisa com a qual ela soubesse lidar.
- Andy, não me leve a mal, mas você precisa ir ao médico.
Ele emitiu um som que parecia o de uma risada sufocada antes mesmo de se formar.
- Quem? O Dr. Aspirina e o Dr. Melhorai, os gêmeos analgésicos? Você acha que estou perdendo o juízo? Acha que esses dois saberiam o que fazer a respeito,
se eu estivesse mesmo? Acha que preciso de temazepam, como a porra da metade das mulheres daqui? Pílulas da felicidade, para fazer com que nada mais importe?
- Eu quero ajudar você, Andy. E não tenho competência para isso. Você precisa conversar com alguém que saiba o que fazer, e os médicos são um bom começo.
Até mesmo o Aspirina e o Melhoral sabem mais do que eu sobre depressão. Acho que você está deprimido, Andy. Uma depressão clínica mesmo, e não apenas tristeza.
Ele pareceu que ia chorar.
- Sabe o que é o pior de tudo isso que você acabou de falar? Que eu acho que você pode ter razão.
Quinta-feira, 28 de junho de 2007; Kirkcaldy
Parecia plausível. Andy Kerr havia sentido que Mick Prentice escondia alguma coisa dele. Quando pareceu que Mick havia se unido aos fura-greves e ido para Nottingham,
deve ter sido o suficiente para empurrar alguém já fragilizado para o abismo. Mas aparentemente Mick Prentice, afinal, não havia ido para Nottingham. A questão,
pensou Karen, era se Andy Kerr sabia o que realmente havia acontecido com seu melhor amigo. E se ele estava envolvido no desaparecimento dele.
- E você nunca mais falou com Andy, depois daquele domingo? - ela perguntou.
- Não. Tentei telefonar para ele algumas vezes, mas só caía na secretária eletrônica. Eu não tinha telefone onde estava morando, então ele não tinha como
me ligar de volta. Minha mãe me disse que o médico lhe dera uma licença do trabalho, por causa da depressão, mas isso foi tudo que eu soube.
- Você acha que é possível que ele e Mick tenham ido a algum lugar juntos?
- O quê? Você quer dizer que tenham dado as costas para todo mundo e ido em direção ao pôr do sol, como Butch Cassidy e Sundance Kid?
Karen recuou.
- Não exatamente assim. Mas como se os dois tivessem se fartado e não conseguissem ver outra saída. Não há dúvida de que Andy estava com problemas. E você
sugeriu que Mick e Jenny também não estavam se entendendo. Talvez eles tenham se decidido por um rompimento limpo.
Ela podia ouvir Angie respirando, no outro lado do mundo.
- Andy não faria isso conosco. Ele jamais teria nos magoado dessa forma.
- Mick poderia tê-lo convencido? Você disse que eles eram amigos desde a escola. Quem era o líder? Quem era o seguidor? Sempre há um que lidera e outro que
segue. Você sabe disso, Angie. Mick era o líder? - Ninguém conseguia ser mais insistente do que Karen, quando estava inspirada.
- Acho que sim. Mick era o extrovertido, Andy era muito mais quieto. Mas eles formavam uma dupla. Estavam sempre metidos em problemas, mas não de forma negativa.
Não com a polícia. Apenas enrolados na escola. Eles sabotavam as experiências de química com fogos de artifício. Grudavam a tampa da mesa da professora. Andy era
bom com as palavras, e Mick era artístico, então eles imprimiam pôsteres com anúncios falsos da escola. Ou Mick falsificava bilhetes dos professores, dando aos dois
permissão para sair das aulas de que eles não gostavam. Ou bagunçavam a biblioteca, trocando as capas dos livros. Eu teria um ataque de nervos se tivesse alunos
como eles. Mas eles amadureceram. Na época da greve, os dois já estavam assentados na vida. - Havia mais do que um toque de pesar em sua voz. - Portanto, sim, teoricamente,
Mick poderia ter convencido Andy a dar no pé. Mas não teria sido por muito tempo. Eles teriam voltado. Não poderiam ficar longe. Tinham raízes profundas demais.
- Você cortou as suas - Karen observou.
- Eu me apaixonei por um neozelandês, e minha família inteira estava morta - Angie disse, simplesmente. - Eu não estava deixando para trás ninguém para chorar
por mim.
- É justo. Podemos voltar para o Mick? Você disse que Andy sugerira que havia problemas no casamento dele.
- Ela o obrigou a casar, sabe? Andy sempre achou que ela ficara grávida de propósito. Ela deveria estar tomando pílula, mas, incrivelmente, não funcionou
e, em seguida, Misha estava a caminho. Ela sabia que Mick vinha de uma família decente, o tipo de gente que não foge das responsabilidades. Então, é claro que ele
se casou com ela.
Havia um toque de amargura em seu tom de voz que fez Karen se perguntar se ela havia sido apaixonada por Mick Prentice antes que seu neozelandês aparecesse.
- Não foi o melhor dos começos, então.
- No início, eles pareciam bem felizes. - A admissão rancorosa de Angie custou a vir. - Mick a tratava como uma princesinha, e ela se aproveitava disso. Mas
não gostou nada quando chegaram os tempos difíceis. Achei, na época, que ela o havia forçado a furar a greve porque tinha se cansado de viver na miséria.
- Mas ela sofreu muito, depois que ele foi embora - disse Karen. - Foi um estigma terrível ser a esposa de um fura-greve. Ela não teria permitido que ele
a deixasse enfrentar aquilo sozinha.
Angie emitiu um ruído de desdém.
- Ela não tinha ideia de como seria, até que aconteceu. Ela não entendia. Não era das nossas, sabe? As pessoas falam da classe trabalhadora como se fosse
um bolo só, mas as linhas demarcatórias são tão bem definidas quanto em qualquer outra classe. Ela nasceu e foi criada em East Wemyss, mas não era uma de nós. Seu
pai não sujava as mãos. Ele trabalhava na cooperativa. Ficava atrás de um balcão de loja. Vestia camisa e gravata para trabalhar. Aposto que ele nunca votou no Partido
Trabalhista na vida. Então, não tenho certeza de que ela entendesse bem o que iria acontecer com ela, se Mick entrasse em greve.
Fazia sentido. Karen compreendia visceralmente o que Angie estava dizendo. Ela conhecia pessoas assim em sua própria comunidade. Pessoas que não se encaixavam em
lugar algum, que tinham a bunda calejada de tanto ficarem sentadas em cima do muro. Acrescentava peso à ideia de que Mick Prentice poderia ter fugido da greve. Exceto
pelo fato de ele não ter feito isso.
- O negócio, Angie, é que parece que Mick não fugiu da greve, naquela noite. Nossos inquéritos preliminares indicam que ele não se uniu àqueles cinco homens
que foram para Nottingham.
Um silêncio chocado. Então, Angie disse:
- Ele poderia ter ido para outro lugar, sozinho.
- Ele não tinha dinheiro. Nem um meio de transporte. Não levou nada consigo quando saiu naquela manhã, além de seu material de pintura. Seja o que for que
aconteceu com ele, não acho que ele tenha fugido da greve.
- Então, o que aconteceu com ele?
- Ainda não sei - disse Karen. - Mas planejo descobrir. E esta é a pergunta que preciso começar a fazer: vamos supor que Mick não tenha furado a greve. Quem
poderia ter motivos para querê-lo fora do caminho?
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Nottingham
Femi Otitoju digitou o quarto endereço no Google Earth e estudou o resultado.
- Vamos, Fem - resmungou Mark Hall. - O inspetor-chefe está de olho na gente. Ele está se perguntando que diabo você está fazendo, brincando com o computador,
depois de ele ter nos mandado numa missão.
- Estou calculando a ordem mais eficiente para fazer as entrevistas, assim não teremos que perder a metade do dia voltando aos lugares. - Ela olhou para os
quatro nomes e endereços fornecidos por um detetive de Fife e os numerou de acordo com sua lógica. - E eu já falei: não me chame de Fem. - Ela imprimiu a lista e
a dobrou com esmero, guardando-a em sua impecável bolsa de mão. - Meu nome é Femi.
Mark girou os olhos e a seguiu, saindo do escritório de Revisão de Casos Arquivados, lançando um sorriso nervoso para o inspetor-chefe Mottram no caminho. Ele havia
esperado ansiosamente por sua transferência para o Departamento de Investigações Criminais, mas, se tivesse sido avisado de que isso significaria trabalhar com Femi
Otitoju, ele poderia ter reconsiderado a questão. O comentário na delegacia, quando ambos ainda usavam uniformes, era que, no caso de Otitoju, a sigla AP (agente
policial) queria dizer Além da Perfeição. Seu uniforme sempre fora imaculado e os sapatos, lustrados no padrão militar. Suas roupas civis seguiam o mesmo estilo:
um discreto
terninho cinza impecavelmente passado, camisa de um branco ofuscante, cabelo impecável. E sapatos mais polidos que um espelho. Tudo que ela fazia era dentro das
regras;
tudo era preciso. Não que Mark tivesse algo contra as coisas serem feitas adequadamente. Mas ele sempre acreditara que havia espaço para a espontaneidade, principalmente
numa entrevista. Se a pessoa com quem você estivesse falando saísse pela tangente, não havia mal algum em segui-la por um tempo. Às vezes, era entre as tangentes
que a verdade estava oculta.
- Então, esses quatro eram mineiros de Fife que furaram a greve para vir trabalhar nas minas daqui? - ele perguntou.
- Exatamente. Originalmente, havia cinco, mas um deles, Stuart McAdam, morreu há dois anos, de câncer de pulmão.
Como é que ela se lembrava daquelas coisas? E por que se importava em memorizá-las?
- E quem você vai ver primeiro?
- William John Fraser. Conhecido como Billy. Cinquenta e três anos, casado, dois filhos adultos, um na Universidade de Leeds, o outro em Loughborough. Ele
é eletricista autônomo agora. - Ela pendurou a bolsa no ombro. - Eu dirijo; sei aonde estamos indo.
Saíram para o estacionamento descoberto atrás da delegacia e se dirigiram para um carro sem identificação de uso comum do DIC (Departamento de Investigação Criminal).
Mark sabia que o carro estaria cheio de lixo deixado por outros policiais. Conforme descobria, o DIC e os carros eram como cães e postes.
- Ele não vai estar no trabalho agora?
Ele abriu a porta do passageiro e constatou que o assoalho do carro estava coberto de embalagens de sanduíches, latas de Coca-Cola vazias e cinco papéis de chocolate
Snickers. Algo branco esvoaçou no canto de sua visão periférica. Otitoju sacudia uma sacolinha plástica vazia.
- Tome - ela disse. - Enfie o lixo aqui para eu jogar na lixeira.
Mark pensou que, afinal, ela servia para alguma coisa. Seguiram pela
estrada principal, ainda movimentada mesmo depois da hora do rush matinal, e foram na direção oeste. A estrada era margeada por casas de tijolos vermelhos sujos
e pelo tipo de comércio que mal conseguia sobreviver, devido às opções mais sofisticadas em outros lugares. Lojas de conveniência,
salões de manicure, lojas de ferramentas, lavanderias, lanchonetes de fast-food e cabeleireiros. Era deprimente passar por ali. Mark ficou agradecido por seu apartamento
no centro da cidade, em uma fábrica de rendas que fora reformada. Podia ser pequeno, mas ele não tinha de lidar com essa pobreza em sua vida pessoal. E havia um
excelente restaurante chinês bem na esquina, que entregava em domicílio.
Quinze minutos percorrendo a estrada que contornava a cidade e eles viraram para um enclave de casinhas geminadas. Pareciam ter sido construídas na década de 1930;
sólidas, despretensiosas e de boa proporção. A casa de Billy Fraser ficava num terreno de esquina, com um jardim considerável e bem cuidado.
- Morei nesta cidade a vida toda e nem sequer sabia que este lugar existia - comentou Mark.
Ele seguiu Otitoju pela entrada da casa. A porta foi aberta por uma mulher que não podia ter mais de um metro e cinquenta de altura. Tinha a aparência de alguém
que já perdera sua melhor forma: mechas grisalhas no chanel castanho-claro, o queixo começando a ficar flácido, e alguns quilos a mais do que o ideal. Mark achou
que ela até que estava bem para a idade. Sua abordagem foi direta, antes que Otitoju tivesse a chance de assustá-la.
- Sra. Fraser?
A mulher assentiu, parecendo ansiosa.
- Sim, sou eu. - Sotaque local, notou Mark. Então, ele não havia trazido uma esposa de Fife. - E vocês são...?
- Sou Mark Hall, e esta é minha colega, Femi Otitoju. Somos policiais e precisamos conversar com Billy. Não é nada para se preocupar - acrescentou rapidamente,
ao ver o olhar de pânico no rosto da Sra. Fraser. - Uma pessoa que ele conhecia, lá em Fife, foi dada como desaparecida, e nós precisamos fazer algumas perguntas
a Billy.
A mulher balançou a cabeça.
- Você vai perder seu tempo, meu bem. Billy não manteve contato com ninguém de Fife a não ser os rapazes que vieram com ele para cá. E isso já faz mais de
vinte anos.
- O homem no qual estamos interessados desapareceu há mais de vinte anos - Otitoju disse, asperamente. - Então, precisamos falar com seu marido. Ele está
em casa?
Mark sentiu vontade de chutá-la, ao ver o rosto da Sra. Fraser se fechar para eles. Otitoju, definitivamente, não havia entrado na fila da simpatia.
- Ele está no trabalho.
- Você poderia nos dizer onde ele está trabalhando, minha flor? - perguntou Mark, tentando recuperar o rumo da conversa.
Ele quase podia enxergar o debate mental no rosto da mulher.
- Espere um pouco - ela disse, enfim. Voltou com uma agenda grande aberta na página daquele dia. Virou-a para que ele a olhasse. - Aqui está.
Otitoju já estava anotando o endereço em sua preciosa folha de papel. A Sra. Fraser viu os nomes.
- Vocês estão com sorte - ela disse. - Johnny Ferguson está trabalhando com ele hoje. Vocês poderão matar dois coelhos com uma cajadada só. - Pela expressão
em seu rosto, ela não estava muito convencida de que fosse apenas uma metáfora.
Os dois ex-mineiros estavam trabalhando a apenas cinco minutos de carro dali, reformando uma loja na rua principal.
- De casa de espetinhos de carne a oficina de molduras de quadros num passe de mágica - disse Mark, lendo as placas.
Fraser e Ferguson trabalhavam duro. Fraser abria um canal para passar os fios elétricos enquanto Ferguson derrubava o banco que havia em uma das paredes para facilitar
os clientes que compravam para viagem. Ambos pararam o que estavam fazendo quando os dois policiais entraram, olhando-os cautelosamente. Era engraçado, pensou Mark,
como algumas pessoas sempre reconheciam policiais instantaneamente, ao passo que outras pareciam ignorar quaisquer sinais que ele e seus colegas pudessem emitir.
Não tinha nada a ver com ser culpado ou inocente, como ele havia pensado, ingenuamente, no começo. Era só um instinto para identificar o caçador.
Otitoju os apresentou e explicou por que estavam ali. Fraser e Ferguson pareceram confusos.
- Por que alguém pensaria que ele veio conosco? - perguntou Ferguson.
- Mais objetivamente, por que alguém pensaria que nós o traríamos?
- Billy Fraser passou as costas da mão pela boca, num gesto de repulsa. -
Mick Prentice achava que nós estávamos abaixo dele. Mesmo antes de nós furarmos a greve, ele desprezava a gente. Achava que era melhor do que nós.
- Por que ele pensaria isso? - Mark perguntou.
Fraser tirou um maço de Bensons do bolso do macacão. Antes que ele pudesse pegar um cigarro, Otitoju já havia colocado a mão macia sobre a aspereza da dele.
- Isso agora é contra a lei, Sr. Fraser. Este é um local de trabalho. O senhor não pode fumar aqui.
- Ah, puta que pariu - Fraser reclamou, virando-se enquanto enfiava os cigarros de volta no bolso.
- Por que Mick Prentice achava que era melhor do que vocês? - Mark perguntou novamente.
Ferguson aceitou o desafio.
- Alguns homens entraram em greve porque o sindicato mandou que fizessem isso. E outros porque estavam convencidos de sua razão e de que sabiam o que era
melhor para o restante de nós. Mick Prentice era um dos que achavam que sabiam mais do que os outros.
- Isso - Fraser concordou, com amargura. - E ele tinha seus amigos do sindicato para cuidarem dele. - Ele esfregou o polegar e o indicador no gesto universal
que representava dinheiro.
- Não entendo - disse Mark. - Sinto muito, companheiro, sou jovem demais para me lembrar da greve. Mas achei que um dos maiores problemas era que vocês não
recebiam salário-greve.
- Você está certo, filho - disse Fraser. - Mas, por algum tempo, os rapazes que participavam dos piquetes móveis recebiam dinheiro vivo. Então, quando havia
qualquer necessidade de ir aos piquetes, eram sempre os mesmos que recebiam autorização. E se você não servisse para aquilo, não havia nada mais para você. Acontece
que o Mick servia mais do que a maioria. Seu melhor amigo era funcionário do Sindicato Nacional dos Mineradores, percebe?
- Era mais difícil para uns do que para outros - acrescentou Ferguson. - Imagino que o amiguinho de Prentice lhe dava uma graninha ou um pacote de comida
quando terminava o dinheiro dos piquetes. A maioria de nós não tinha tanta sorte. Portanto, não, Mick Prentice não veio conosco. E Billy tem razão. Nós não o teríamos
aceitado, se ele tivesse pedido para vir.
Otitoju andava pela sala, vistoriando o trabalho deles como se fosse uma inspetora de obras.
- No dia em que vocês partiram... Vocês chegaram a ver Mick Prentice?
Os dois homens trocaram um olhar que pareceu furtivo para Mark. Ferguson, rapidamente, sacudiu a cabeça.
- Mais ou menos - ele disse.
- Como é possível ver alguém "mais ou menos"? - Otitoju inquiriu, virando-se na direção deles.
Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984
Johnny Ferguson estava no escuro, na janela do quarto, de onde podia ver a estrada principal que atravessava o vilarejo. O quarto não estava frio, mas ele tiritava
um pouco, e a mão que segurava o cigarro enrolado tremia, recortando a elevação suave da fumaça.
- Vamos, Stuart - ele resmungou a meia-voz. Deu outra tragada no cigarro e olhou novamente para o relógio barato em seu pulso. Dez minutos de atraso. Seu
pé direito começou, involuntariamente, a tamborilar no chão.
Nada se movia. Ainda não eram nove horas, mas quase não havia luz. As pessoas não tinham dinheiro para pagar a eletricidade. Elas iam até o Serviço Social para usufruir
um pouco de luz e de aquecimento, ou iam para a cama, esperando dormir o suficiente para que o pesadelo tivesse terminado quando despertassem. Pela primeira vez,
entretanto, o silêncio das ruas não incomodou Ferguson. Quanto menos pessoas testemunhassem o que aconteceria naquela noite, melhor. Ele sabia exatamente o que estava
prestes a fazer, e estava morrendo de medo.
De repente, viu um par de faróis virando a esquina da Main Street. Contra as luzes fracas da rua, Ferguson pôde definir a silhueta de uma van Transit. Modelo antigo,
não o novo, que a polícia usava para transportar as tropas em suas operações contra os mineiros. Conforme a van se aproximou, ele pôde ver que era de cor escura.
Finalmente, Stuart havia chegado.
Ferguson apagou o cigarro. Deu uma última olhada no quarto em que havia dormido nos últimos três anos, desde que alugara aquela casinha minúscula. Estava escuro
demais para ver muita coisa, mas, também, ali
não havia muito o que ver. O que não podia ser vendido tinha sido quebrado para usar como lenha. Agora só havia o colchão no assoalho com um cinzeiro e um livro
rasgado de Sven Hassel ao lado. Nada que se arrependeria de abandonar. Helen já partira havia muito tempo, então, ele podia muito bem dar as costas para aquele bando
de desgraçados.
Desceu ruidosamente as escadas até o andar de baixo e abriu a porta bem no instante em que Stuart ia bater.
- Preparado? - perguntou-lhe Stuart.
Um suspiro profundo:
- Mais preparado, impossível.
Ele empurrou uma bolsa de viagem com o pé na direção de Stuart, agarrou a outra e apanhou também um saco preto de lixo. Dez anos de merda trabalhando na mina de
carvão e aquilo era tudo que tinha.
Deram dois passos, dos quatro que os conduziriam até a van e, de repente, já não estavam mais sozinhos. Uma figura virou a esquina, apressadamente, como alguém que
estivesse numa missão. Alguns metros mais perto, e a forma se definiu como Mick Prentice. Ferguson sentiu como se uma gelada mão lhe apertasse o peito. Era só o
que faltava! Prentice vir atacá-los, gritando insultos e fazendo com que todas as portas da rua se abrissem.
Stuart jogou a bolsa na traseira da van, onde Billy Fraser já estava acomodado sobre uma pilha de sacolas. Ele se virou para encarar Prentice, pronto para agir,
se fosse necessário.
Mas a raiva que tinham esperado que chovesse sobre eles não veio. Em vez disso, Prentice apenas ficou ali parado, parecendo prestes a romper em lágrimas. Olhou para
eles e balançou a cabeça.
- Não, rapazes. Não. Não façam isso - disse.
Ele continuou repetindo aquilo. Ferguson mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que os atormentava, convocando-os e incitando-os para que continuassem
leais ao sindicato. Isso era, pensou ele, uma amostra de como aquela greve os havia derrotado.
Ferguson passou por Prentice, guardou suas bolsas no carro e sentou-se ao lado de Fraser, que puxou as portas para fechá-las atrás dele.
- Inacreditável, porra - disse Fraser.
- Parece que ele acabou de levar um soco no estômago - disse Ferguson. - O cara pirou de vez.
- Dê graças a Deus - disse Fraser. - A última coisa de que precisávamos era que ele explodisse como uma porra de um foguete e fizesse a casa cair para a gente.
- Ele ergueu a voz quando o motor deu a partida. - Vamos, Stu. A vida nova começa agora.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007
- Houve alguma testemunha desse encontro? - perguntou Otitoju.
- Stuart já morreu, então sou a única testemunha que resta - Fraser disse. - Eu estava na van. A porta traseira estava aberta e eu vi tudo. Johnny tem razão:
Prentice parecia devastado. Como se o que estávamos fazendo fosse uma afronta pessoal.
- Poderia ter sido bem diferente se, em vez de você na van, estivesse o Iain - disse Ferguson.
- Por que isso teria feito diferença? - perguntou Mark.
- Iain e ele eram amigos. Prentice talvez sentisse a necessidade de ten tar convencê-lo a mudar de ideia. Mas Iain foi o último a ser apanhado, então achei
que havíamos nos livrado de uma boa. E essa foi a última vez que vimos Prentice - disse Ferguson. - Ainda tenho família por lá. Ouvi dizer que ele tinha dado no
pé, mas supus que ele houvesse ido com aquele amigo dele, o cara do sindicato. Não consigo me lembrar do nome dele...
- Andy alguma coisa - disse Fraser. - Isso mesmo, quando você me disse que os dois estavam na lista de desaparecidos, pensei que tivessem decidido dar o fora
e começar do zero em outro lugar. Vocês têm que entender, a vida das pessoas estava se desfazendo, naquela época. Os homens faziam coisas que jamais imaginaríamos
que fossem capazes. - Ele se virou, caminhou até a porta e saiu, tirando os cigarros do bolso.
- Ele está certo - disse Ferguson. - E, na maioria das vezes, não queríamos pensar muito a respeito. Pensando bem, ainda não queremos. Portanto, a não ser
que haja mais alguma coisa, desejamos a vocês um bom dia. - Ele apanhou o pé de cabra e voltou à sua tarefa.
Incapaz de pensar em mais perguntas, Mark se dirigiu para a porta. Otitoju hesitou um instante, antes de segui-lo até o carro. Ficaram sentados em silêncio por um
momento e, então, Mark disse:
- Deve ter sido horrível.
- Não justifica o desrespeito deles pela lei - disse Otitoju. - A greve dos mineiros provocou um distanciamento entre nós e as pessoas a quem servimos. Eles
nos fizeram parecer brutais, apesar de termos sido provocados. Dizem que até a rainha ficou chocada com a batalha de Orgreave, mas o que as pessoas esperavam? Supostamente,
devemos manter a paz. Se as pessoas não consentem em ser policiadas, o que mais podemos fazer?
Mark a encarou.
- Você me assusta - ele disse.
Ela pareceu surpresa.
- Às vezes me pergunto se você está no trabalho certo - ela retrucou.
Mark olhou para longe.
- Então somos dois, minha flor.
Castelo de Rotheswell
A despeito de sua determinação de lidar com Sir Broderick Maclennan Grant exatamente da mesma forma como lidaria com qualquer outra pessoa, Karen tinha de admitir
que seu estômago não estava colaborando. A ansiedade sempre havia afetado seu sistema digestivo, tirando-lhe o apetite e obrigando-a a fazer visitas urgentes ao
banheiro.
- Se eu tivesse que fazer mais entrevistas assim, não precisaria me preocupar com dieta - disse, quando ela e Phil partiram em direção ao Castelo de Rotheswell.
- Ach, andam valorizando demais as dietas - disse Phil, da confortável posição de um homem cujo peso não se alterara desde que completara dezoito anos, independentemente
do que comesse ou bebesse. - Você está bem assim.
Karen queria acreditar nele, mas não conseguia. Ninguém acharia atraente sua figura gorducha, a não ser que estivesse muito mais necessitado de companhia feminina
do que Phil.
- Ah, sei.
Ela abriu sua maleta e revisou os pontos principais do arquivo do caso, para o bem de Phil. Mal havia chegado ao final de seu resumo quando viraram para tomar a
entrada de Rotheswell. Para além dos galhos secos de um grupo de árvores, podiam avistar o castelo, mas, antes de se aproximarem
mais, sua identidade precisava ser verificada. Tiveram de sair do carro e mostrar a credencial para a câmera do circuito fechado de televisão. Então, os sólidos
portões de madeira se abriram, permitindo que o carro chegasse a uma espécie de antecâmara de segurança. Phil foi dirigindo, enquanto Karen caminhava ao lado do
carro. Os portões de madeira se fecharam atrás deles, deixando-os presos num tipo de curral gigante. Dois guardas saíram de uma guarita e revistaram o exterior e
o interior do carro, a maleta de Karen e os bolsos do casaco esportivo de Phil.
- Ele tem um sistema de segurança melhor que o do primeiro-ministro - disse Karen, quando finalmente puderam seguir de carro até o castelo.
- É mais fácil conseguir um primeiro-ministro novo do que outro Brodie Grant - disse Phil. - De qualquer forma, aposto que é isso que ele pensa.
Ao se aproximarem da casa, um senhor de idade, vestindo um casaco impermeável e um quepe de lã, contornou a torre mais próxima e acenou para que eles seguissem até
o extremo do pátio de cascalho, em frente à casa. Quando eles finalmente estacionaram, ele já havia desaparecido, sem deixar-lhes outra opção senão a de se aproximar
das imensas portas de madeira com tachas de ferro, no centro da fachada.
- Onde está o Mel Gibson quando precisamos dele? - Karen resmungou, levantando uma aldrava pesada de ferro e deixando-a cair com um estrondo considerável.
- Parece um filme ruim.
- E nós ainda nem sabemos por que estamos aqui. - Phil parecia aborrecido. - Difícil entender o que poderia justificar tamanha preparação.
Antes que Karen pudesse responder, a porta se abriu, girando em dobradiças silenciosas. Uma mulher, que lembrara sua professora do primário, disse:
- Bem-vindos a Rotheswell. Sou Susan Charleson, assistente pessoal de Sir Broderick. Entrem.
Eles entraram em um saguão onde, não fosse pela grandiosa escadaria, poderia caber a casa inteira de Karen. Antes que pudessem observar mais do que as cores intensas
e a atmosfera de aconchego, eles foram impelidos a seguir por um amplo corredor, por uma curta distância.
- Suponho que seja a inspetora Pirie - disse Susan Charleson. - Mas não estou a par do nome e do posto do seu colega.
- Sargento detetive Phil Parhatka - ele disse, com toda a pompa de que era capaz diante da formalidade dela.
- Ótimo, agora posso apresentá-los - ela disse, dando um passo para o lado e abrindo uma porta.
Ela acenou para que entrassem em uma sala onde o DIC poderia facilmente realizar seu Bums' Supper* anual. Teriam de empurrar alguns dos móveis para junto das paredes,
só para abrir espaço para as danças tradicionais, mas, ainda assim, não ficariam muito apertados.
Havia três pessoas na sala, mas Karen instantaneamente se concentrou naquela que irradiava carisma. Brodie Grant podia já ter passado dos setenta anos, mas ainda
tinha mais glamour que as duas mulheres que o rodeavam. Ele estava próximo à notável cornija de pedra entalhada da lareira, com a mão esquerda sob o cotovelo direito
e a mão direita segurando casualmente um charuto fino; o rosto estava tão imóvel e impressionante quanto na capa de revista que ela havia encontrado, ao buscar por
imagens dele no Google. Vestia um paletó de tweed cinza e branco cujo caimento sugeria ser de caxemira e seda, em vez do tradicional Harris and Donegal, uma camiseta
polo preta, calça combinando e aquele tipo de sapatos que Karen somente havia visto nos pés de americanos ricos. Ela achava que se chamavam sapatos oxford ou algo
parecido. Assemelhavam-se a alguma coisa que se veria num boneco escocês com traje típico, e não num capitão da indústria. Ela estava tão ocupada observando seus
sapatos estranhos que quase perdeu as apresentações.
Ergueu os olhos a tempo de captar o levíssimo esboço de sorriso nos lábios de Lady Grant, elegante em um terninho de mescla de lã com o clássico colarinho aveludado
que, por alguma razão, Karen sempre associava a dinheiro e classe. O sorriso, porém, parecia estranhamente cúmplice.
Susan Charleson apresentou a outra mulher.
- Esta é Annabel Richmond, uma jornalista freelancer.
Agora, cautelosa, Karen assentiu, expressando reconhecimento. Que diabos fazia uma jornalista ali? Se havia uma coisa que Karen sabia a respeito de Brodie Grant
era que ele era tão alérgico à mídia que poderia entrar em choque anafilático a qualquer momento na presença de alguém da imprensa.
* O aniversário do poeta Robert Bums é comemorado em toda a Escócia com um jantar escocês tradicional, acompanhado por leituras de obras e canções de Bums, no dia 25 de janeiro. (N.T.)
Brodie Grant deu um passo à frente e indicou, com um ondular de seu charuto, que eles deveriam se sentar num sofá, a quilômetros de distância da lareira. Karen se
sentou na beirada, ciente de que aquele era o tipo de sofá que a engoliria, impossibilitando uma saída que não fosse extremamente desastrada.
- A Srta. Richmond está aqui a meu pedido, por dois motivos - disse Grant. - O primeiro deles explicarei em breve. O outro é que ela vai atuar como uma ligação
entre a mídia e a família. Não concederei entrevistas coletivas nem farei apelos sentimentais pela televisão. Ela é, portanto, a primeira a ser procurada se vocês
estiverem atrás de alguma coisa para alimentar os répteis.
Karen inclinou a cabeça.
- Essa é uma prerrogativa sua - ela disse, tentando soar como se estivesse fazendo uma concessão, por pura bondade. Qualquer coisa que lhe garantisse recuperar
um pouco do controle. - O Sr. Lees me comunicou que o senhor acredita que tenham surgido novas provas no que se refere ao sequestro de sua filha e neto. Correto?
- São novas provas, sim. Disso não resta dúvida. Susan?
Ele olhou para a assistente, com expectativa. Suficientemente esperta para antecipar-se às exigências do chefe, ela já avançava na direção deles com uma folha de
compensado de madeira, coberta por um plástico. Ao se aproximar, virou-a de frente para Karen e Phil.
Karen sentiu um lampejo de decepção.
- Esta não é a primeira vez que vemos algo assim - ela disse, estudando a impressão monocromática de um titereiro com suas marionetes sinistras. - Deparci-me
com três ou quatro exemplares, nos arquivos.
- Cinco, na verdade - disse Grant. - Mas nenhum como este. Todos os anteriores foram desconsiderados porque divergiam de alguma maneira dos originais. As
reproduções que o inspetor-chefe Lawson distribuiu para a mídia, na época, foram alteradas sutilmente para que pudéssemos eliminar quaisquer imitadores. Todos os
que apareceram desde então eram cópias das versões alteradas.
- E esta aqui é diferente? - perguntou Karen.
Grant assentiu.
- Exatamente, inspetora. É idêntica em todos os aspectos. Estou ciente de que a recompensa que ofereci seja uma tentação para certas pessoas.
Mantive minha própria cópia do original para que pudesse comparar com qualquer coisa que me fosse trazida diretamente. Como esta. - Ele deu um sorriso cansado. -
Não que eu precise de uma cópia. Jamais me esquecerei de nenhum detalhe. A primeira vez que pus os olhos nesta imagem, ela ficou gravada na minha memória.
Sábado, 19 de janeiro de 1985
Mary Grant serviu uma segunda xícara de café ao marido antes que ele percebesse que havia terminado a primeira. Ela vinha fazendo aquilo havia tantos anos que ainda
o surpreendia o fato de sua xícara precisar ser enchida tantas vezes, quando se hospedava em hotéis. Ele virou a página de seu jornal e resmungou.
- Enfim, uma notícia boa. Lord Wolfenden libertou-se do invólucro mortal.
A expressão de Mary era mais de resignação cansada do que de choque.
- Que coisa horrível de se dizer, Brodie.
Sem levantar os olhos, ele continuou:
- O homem fez do mundo um lugar pior, Mary. Portanto, não fico triste por ele ter partido.
Anos de casamento haviam eliminado a maior parte da beligerância de Mary Grant. Mas, mesmo que ela houvesse pensado em dizer alguma coisa, não teria tido a oportunidade.
Para a surpresa de ambos, a porta da sala de café da manhã se abriu de repente, sem nenhuma batida prévia, e Susan Charleson entrou quase correndo. Brodie deixou
cair o jornal sobre os ovos mexidos, notando-lhe as bochechas rosadas e a respiração ofegante.
- Desculpem-me - ela balbuciou. - Mas o senhor precisa ver isto. - Ela empurrou um grande envelope de papel manilha na direção dele. Na frente, liam-se seu
nome e endereço e as palavras "particular" e "confidencial" escritas em hidrocor preto, acima e abaixo.
- Em nome de Deus, o que é isto que não pode esperar até depois do café? - ele perguntou, enfiando dois dedos sob a aba do envelope, revelando um papel grosso
dobrado em quatro.
- Isto - disse Susan, apontando para o envelope. - Coloquei de volta no envelope porque não quis que mais ninguém visse.
Com um resmungo de impaciência, Grant pegou o papel e o desdobrou. Parecia um pôster de propaganda de um show macabro de marionetes. Totalmente em preto e branco,
um titereiro se inclinava sobre o palco, manipulando um grupo de marionetes que incluíam um esqueleto e um bode. Lembrou-lhe aquele tipo de impressões que ele vira
uma vez, num programa da TV sobre a arte que Hitler odiava. Enquanto pensava isso, seus olhos examinaram a parte inferior do pôster. Onde se esperaria encontrar
detalhes sobre o show de marionetes havia uma mensagem muito diferente.
Seu capitalismo explorador e gerenciado está prestes a ser castigado.
Nós temos uma filha e um neto em nosso poder. Faça exatamente o que
mandarmos se quiser vê-los novamente. Nada de polícia. Apenas siga sua
vida normalmente. Estamos te observando. Entraremos em contato com você
em breve.
Pacto Anarquista da Escócia.
- É alguma brincadeira de mau gosto? - perguntou Grant, atirando-o sobre a mesa e empurrando a cadeira para trás. Quando ele se levantou, Mary apanhou o pôster
e, então, o deixou cair, como se tivesse queimado seus dedos.
- Ah, meu Deus - ela arfou. - Brodie?
- É um trote - ele disse. - Algum filho da puta doente está tentando nos assustar.
- Não - disse Susan. - Tem mais. Ela apanhou o envelope no chão e sacudiu-o pára que uma fotografia Polaroid caísse de dentro dele. Em silêncio, entregou-a
a Grant.
Ele viu sua única filha amarrada a uma cadeira. Um pedaço de fita adesiva cobria-lhe a boca. O cabelo estava despenteado e uma mancha de sujeira, ou um hematoma,
marcava-lhe a face esquerda. Entre ela e a câmera, uma mão enluvada segurava a primeira página do Daily Record do dia anterior para não deixar margem a dúvida. Ele
sentiu as pernas cederem e deixou-se cair na cadeira, as pálpebras tremendo enquanto tentava recuperar o autocontrole. Mary estendeu a mão pedindo a fotografia,
mas ele sacudiu a cabeça e segurou-a de encontro ao peito.
- Não - ele disse. - Não, Mary.
Houve um longo silêncio e, então, Susan disse:
- O que o senhor quer que eu faça?
Grant não conseguia articular as palavras. Não sabia o que estava pensando, o que estava sentindo nem o que queria dizer. Era uma experiência tão estranha e improvável
quanto usar drogas alucinógenas. Ele sempre estava no controle de si mesmo, assim como da maior parte do que acontecia ao seu redor. Sentir-se impotente era algo
que não lhe acontecia havia tanto tempo, que até se esquecera de como era lidar com aquilo.
- O senhor quer que eu telefone para o chefe de polícia? - perguntou Susan.
- Aqui fala para não fazer isso - disse Mary. - Não podemos colocar em risco a vida de Catriona e Adam.
- Ao diabo com isso - disse Grant, numa pálida aproximação à sua voz normal. - Não vou ser manipulado por um bando de anarquistas malditos. - Ele se forçou
a levantar, sua força de vontade superando o medo que já o devorava. - Susan, telefone para o chefe de polícia. Explique a situação. Diga a ele que quero o melhor
agente que tiver, que não se pareça com um policial. Quero que ele esteja no meu escritório dentro de uma hora. E, agora, vou para o escritório. Seguir com minha
vida normal, caso eles estejam realmente observando.
- Brodie, como você pode fazer isso? - Com o rosto lívido, Mary parecia chocada. - Temos que fazer o que eles mandarem.
- Não temos, não. Apenas temos que aparentar estar fazendo. - Agora, sua voz estava mais forte. Ter estabelecido os princípios básicos de um plano lhe dera
forças para se recuperar. Ele poderia lidar com o medo desde que pudesse se obrigar a acreditar que estava fazendo alguma coisa para resolver a situação. - Susan,
comece a tomar as providências. - Ele foi até Mary e lhe deu um tapinha no ombro. - Vai ficar tudo bem, Mary. Eu prometo.
Se ele não visse o rosto dela, não teria de lidar com suas dúvidas ou seu pavor. Já tinha o suficiente com que se preocupar, sem aquela carga extra.
Dysart, Fife
Outros homens teriam caminhado de um lado para o outro, esperando que a polícia chegasse. Brodie Grant nunca fora de desperdiçar energia em
atividades inúteis. Permaneceu sentado em sua cadeira no escritório, virada de costas para a escrivaninha, para que pudesse ver a vista espetacular por cima do estuário
do Forth até Berwick Law, Edimburgo e as montanhas Pentlands. Olhou por sobre a água cinzenta, ordenando seus pensamentos para evitar qualquer perda de tempo quando
a polícia chegasse. Ele detestava desperdiçar qualquer coisa, mesmo aquilo que podia ser facilmente reposto.
Susan, que o havia seguido para o trabalho na hora de costume, entrou pela porta que separava seu escritório do dele.
- A polícia está aqui - ela disse. - Devo fazê-los entrar?
Grant se virou em sua cadeira.
- Sim. Depois, deixe-nos a sós.
Ele notou o olhar de surpresa no rosto dela. Estava acostumada a participar de todos os seus segredos, a conhecer mais coisas do que Mary se daria ao trabalho de
saber. Mas, dessa vez, ele queria que o círculo fosse o menor possível. Até mesmo Susan seria demais.
Ela fez entrar dois homens vestidos com macacão de pintor e, então, fechou dramaticamente a porta atrás de si. Grant ficou satisfeito com o disfarce.
- Obrigado por terem vindo tão rápido. E tão discretamente - ele disse, observando os dois. Pareciam jovens demais para uma tarefa tão importante. O mais
velho, magro e moreno, tinha provavelmente uns trinta e poucos anos, e o outro, louro e avermelhado, uns vinte e tantos.
O moreno falou primeiro. Para surpresa de Grant, sua apresentação atingiu diretamente suas restrições.
- Sou o inspetor James Lawson - ele disse. - E este é o agente Rennie. Fomos instruídos pessoalmente pelo chefe de polícia. Sei que o senhor deve estar pensando
que sou muito novo para comandar uma operação como esta, mas fui escolhido devido à minha experiência. No ano passado, a esposa de um dos jogadores do time de futebol
East Fife foi sequestrada. Conseguimos resolver o assunto sem que ninguém se machucasse.
- Não me lembro de ter ouvido falar sobre isso - disse Grant.
- Fomos muito bem-sucedidos em manter segredo - disse Lawson, com o mais tênue sorriso de orgulho no rosto.
- Não houve julgamento? Como vocês conseguiram manter isso fora dos jornais?
Lawson deu de ombros.
- O sequestrador se confessou culpado. O caso estava resolvido e encerrado antes que a imprensa sequer percebesse. Somos bastante bons em lidar com a imprensa,
aqui em Fife. - De novo, um sorriso ligeiro. - Como pode ver, senhor, tenho uma experiência relevante.
Grant lançou-lhe um olhar demorado e avaliador.
- Fico satisfeito em saber disso. - Tirou uma pinça da gaveta e, delicadamente, deslocou a folha de papel que havia colocado por cima do pôster de resgate.
- Foi isto que chegou pelo correio, hoje de manhã. Acompanhado por isto... - Erguendo-a cuidadosamente pelas extremidades, ele virou a foto Polaroid.
Lawson se aproximou e os analisou atentamente.
- E o senhor tem certeza de que esta é sua filha?
Pela primeira vez, o autocontrole de Grant vacilou por uma fração de segundo.
- Você acha que não conheço minha própria filha?
- Não é isso, senhor. Mas, para que fique registrado, preciso ter certeza de que o senhor tem certeza absoluta.
- Tenho certeza.
- Neste caso, não há qualquer dúvida - disse Lawson. - Quando foi a última vez que o senhor viu ou falou com sua filha?
Grant fez um gesto de impaciência com a mão.
- Não sei. Suponho que a tenha visto pela última vez há umas duas semanas. Ela trouxe Adam para nos visitar. A mãe dela deve ter conversado com ela ou a visto
desde então. Você sabe como são as mulheres.
A culpa repentina que ele sentiu foi mais uma vibração lenta do que uma pontada. Ele não se arrependia de nada do que havia feito ou dito; só se arrependia de que
houvesse provocado uma ruptura entre ele e Cat.
- Falaremos com sua esposa - disse Lawson. - Será útil para nós termos uma ideia de quando isso aconteceu.
- Catriona é dona de seu próprio negócio. Creio que alguém perceberia, se sua galeria estivesse fechada. Deve haver centenas, milhares de pessoas que passam
de carro por ali todos os dias. Ela era bem escrupulosa com relação à placa de aberto e fechado. - Ele deu um sorriso rígido e frio.
- Ela é boa para negócios. - Puxou um bloco de anotações em sua direção e escreveu o endereço e as indicações de como chegar à galeria de Catriona.
- É claro - disse Lawson. - Mas achei que o senhor não quisesse que os seqüestradores soubessem que nos procurou.
Grant foi pego de surpresa por sua própria estupidez.
- Desculpe-me. Você tem razão. Não estou raciocinando direito. Eu...
- Esse é meu dever, não seu. - Havia gentileza no tom de voz de Lawson. - O senhor pode estar certo de que não faremos perguntas que levantem suspeitas. Se
não conseguirmos descobrir nada de forma aparentemente natural, deixaremos de lado. A segurança de Catriona e Adam está acima de tudo. Isso eu prometo ao senhor.
- É uma promessa que espero que cumpra. Agora, qual é o próximo passo? - Grant estava novamente no comando de si mesmo, porém desconcertado pelas emoções
que o desequilibravam.
- Colocaremos uma escuta e um rastreador em suas linhas telefônicas para o caso de eles tentarem entrar em contato com o senhor através do telefone. E vou
precisar que o senhor vá à casa de Catriona. É o que os seqüestradores esperariam. O senhor terá de ser os meus olhos dentro da casa. O senhor deverá registrar qualquer
coisa fora do lugar, qualquer coisa incomum. Terá de levar uma maleta ou algo assim para que, se por exemplo, houver duas canecas sobre a mesa, o senhor possa trazê-las
para nós. Também precisaremos de alguma coisa de Catriona para obtermos suas impressões digitais. Uma escova de cabelo seria ideal, pois teríamos também um pouco
de seu cabelo. - Lawson parecia ansioso.
Grant balançou a cabeça.
- Você terá que pedir à minha esposa para fazer isso. Não sou muito observador. - Não queria admitir que só havia cruzado a porta da casa da filha uma vez
e, mesmo assim, com relutância. - Ela ficará feliz por ter alguma coisa a fazer. Por se sentir útil.
- Muito bem, providenciaremos isso. - Lawson tocou o pôster com uma caneta. - Aparentemente esse é mais um ato político do que pessoal. E vamos verificar
informações a respeito de qualquer grupo que possa ter os recursos e a determinação para planejar algo assim. Preciso lhe perguntar, no entanto... o senhor teve
algum desentendimento com qualquer grupo de interesse específico? Uma organização que pudesse ter alguns caras mais exaltados em suas facções, capazes de achar que
era uma boa ideia fazer isso?
Grant já havia se perguntado aquilo enquanto esperava pela polícia.
- A única coisa em que posso pensar é um problema que tivemos há mais ou menos um ano com uma dessas organizações do tipo "salvem as baleias". Nós tínhamos
um empreendimento imobiliário em Black Isle que eles alegavam que afetaria de forma adversa o habitat de uns golfinhos no Moray Firth. Tudo bobagem, é claro. Eles
tentaram deter nosso pessoal da construção... aquela coisa de sempre, deitando-se em frente às retroescavadeiras. Um deles se machucou. Foi culpa de sua própria
estupidez, como disseram as autoridades. Mas foi apenas isso. Eles se foram, com o rabo entre as pernas, e nós continuamos com o empreendimento. E, a propósito,
os golfinhos estão perfeitamente bem.
Lawson ficou visivelmente animado com a informação de Grant.
- Mesmo assim, teremos que verificar essa possibilidade - ele disse.
- A Srta. Charleson tem todos os arquivos. Ela poderá lhes dizer o que vocês precisarem.
- Obrigado. Também preciso lhe perguntar se existe alguém que possa ter algum motivo de reclamação pessoal contra o senhor. Ou contra alguém de sua família.
Grant balançou a cabeça.
- Já incomodei muita gente nesta vida. Mas não consigo pensar em algo que tenha feito capaz de levar alguém a fazer isso. Certamente isto se relaciona com
dinheiro, não com ódio. Todo mundo sabe que sou um dos homens mais ricos da Escócia. Não é nenhum segredo. Para mim, esse é o motivo óbvio por trás disso. Alguns
filhos da puta tentando pôr as mãos no meu dinheiro suado. E eles acham que é dessa forma que irão conseguir.
- É possível - concordou Lawson.
- É mais do que possível. É o mais provável. E nem morto vou deixar que escapem ilesos dessa. Quero minha família de volta, e quero que eles voltem sem ter
de ceder um milímetro a esses desgraçados! - Grant bateu na mesa com a mão espalmada e os dois policiais deram um pulo com o estrondo repentino.
- É por isso que estamos aqui - disse Lawson. - Faremos tudo que for possível para obter o resultado que o senhor deseja.
Naquele momento, a confiança de Grant ainda estava intacta.
- Não espero nada menos do que isso - ele disse.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Castelo de Rotheswell
Ao ouvir o relato de Grant sobre aquela primeira manhã depois de o mundo ter mudado, o que mais chamou a atenção de Karen foi a suposição, por parte de todos, de
que tudo tinha a ver com Brodie Grant. Ninguém parecia haver considerado que a pessoa que estava sendo punida não era Grant, e sim sua filha.
- Catriona tinha algum inimigo?
Grant olhou-a, com impaciência.
- Catriona? Como ela poderia ter inimigos? Era uma mãe solteira e uma artesã do vidro. Não levava o tipo de vida que gerasse animosidade pessoal. - Com um
suspiro, ele apertou os lábios.
Karen disse a si mesma que não deveria se intimidar com sua atitude.
- Desculpe-me. Eu me expressei mal. Deveria ter perguntado se o senhor sabe de alguém a quem ela houvesse desagradado.
Grant dirigiu-lhe um pequeno gesto de satisfação, como se ela houvesse passado num teste que nem sequer sabia existir.
- O pai de seu filho. Ele estava, de fato, bastante contrariado. Mas nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim, e os seus colegas da polícia nunca puderam
encontrar nenhuma prova que o conectasse ao crime.
- O senhor está se referindo a Fergus Sinclair? - Karen perguntou.
- E quem mais poderia ser? Pensei que você tivesse se atualizado com relação ao caso - cobrou Grant.
Karen começava a sentir pena de qualquer pessoa que fosse obrigada a suportar o alto nível de irritação de Brodie Grant. Desconfiava que não fosse reservada apenas
para ela.
- Só existe uma menção a Sinclair no arquivo - ela disse. - Nas anotações de uma entrevista com Lady Grant, Sinclair é mencionado como suposto pai de Adam.
Grant bufou.
- Suposto? É claro que ele era o pai do garoto. Eles vinham se encontrando de maneira intermitente havia anos. Mas o que você quer dizer com só existe uma
referência a Sinclair? Deve haver mais. Eles foram até a Áustria para interrogá-lo.
- Áustria?
- Ele trabalhava lá. É formado em administração rural. Trabalhou também na França e na Suíça, mas voltou para a Áustria cerca de quatro anos atrás. Susan
pode lhe dar todos os detalhes.
- O senhor o tem vigiado? - O que não seria nenhuma surpresa, pensou Karen.
- Não, inspetora. Eu já lhe disse: nunca achei que Sinclair tivesse a coragem para fazer algo assim. Então, por que o vigiaria? A única razão pela qual sei
onde Sinclair mora é porque seu pai ainda é meu caseiro. - Grant balançou a cabeça. - Não posso acreditar que tudo isso não esteja nos arquivos.
Karen estava pensando a mesma coisa, mas não quis admitir.
- E, que o senhor saiba, havia mais alguém que Catriona pudesse ter desagradado?
O rosto de Grant estava tão cinzento quanto seu cabelo.
- Só a mim, inspetora. Olhe, é óbvio, pelo lugar onde apareceu esta nova prova, que isso não tem nada a ver pessoalmente com Cat. É obviamente político. O
que faz com que tenha a ver com meus princípios pessoais, e não com quem Cat possa ter incomodado.
- Então, onde foi que este pôster apareceu? - perguntou Phil.
Karen ficou agradecida pela interrupção. Ele era bom em interromper e guiar as entrevistas em direções mais produtivas quando ela estava correndo o risco de estancar.
- Em uma fazenda em ruínas na Toscana. Parece que o local vinha sendo usado por posseiros. - Ele estendeu o braço na direção da jornalista. - Este é o outro
motivo pelo qual a Srta. Richmond está aqui. Foi ela que o encontrou. Sem dúvida, vocês vão querer conversar com ela. - Ele indicou o pôster. - Também vão querer
levar isto com vocês. Imagino que farão alguns testes. E, inspetora...?
Karen recuperou o fôlego, diante da arrogância dele.
- Sim?
- Não quero ler a respeito disso no jornal amanhã cedo. - Ele olhou feio para ela como se a desafiasse a responder.
Karen se controlou por um momento, tentando compor uma resposta que abrangesse tudo que ela queria dizer e deixasse de fora qualquer coisa que pudesse ser mal interpretada.
A expressão de Grant mudou rapidamente.
- O que quer que comuniquemos à mídia, assim como o momento de qualquer comunicação, será uma decisão operacional - ela disse, por fim.
- Será tomada por mim e, quando apropriado, por meus oficiais superiores. Entendo plenamente como tudo isso é doloroso para o senhor, mas sinto muito. Temos
de basear nossas decisões naquilo que pensamos que, provavelmente, irá produzir o melhor resultado. O senhor pode nem sempre concordar, mas, infelizmente, não tem
nenhum direito de veto. - Ela esperou a explosão, mas esta não se fez. Supôs que ele a estivesse reservando para o Biscoito ou para os chefes dele.
Em vez disso, Grant assentiu.
- Confio em você, inspetora. Tudo que peço é que se comunique com a Srta. Richmond antes, para que possamos nos precaver contra a máfia. - Ele correu os dedos
pelos densos cabelos grisalhos num gesto que parecia bem ensaiado. - Tenho muita esperança de que, desta vez, a polícia chegue à verdade. Com todos os avanços nas
ciências criminais, vocês devem estar em vantagem com relação ao inspetor Lawson. - Ele se virou, claramente os dispensando.
- Creio que ainda teremos algumas perguntas a lhe fazer - disse Karen, determinada a não ceder todo o controle do encontro. - Se Catriona não tinha inimigos,
talvez o senhor pudesse pensar em alguns amigos dela que possam nos ajudar. O sargento Parhatka lhe informará quando eu quiser falar novamente com o senhor. Nesse
meio-tempo... Srta. Richmond?
A mulher inclinou a cabeça e sorriu.
- Estou à sua disposição, inspetora.
Até que enfim alguém por ali com uma vaga noção de como as coisas deveriam funcionar.
- Gostaria de vê-la no meu escritório esta tarde. Podemos marcar para as quatro horas?
- Qual é o problema em entrevistar a Srta. Richmond aqui? E agora? - perguntou Grant.
- Esta investigação é minha - disse Karen. - Conduzirei minhas entrevistas onde me convier. E, devido a outros inquéritos em andamento, me convém que seja
no meu escritório, esta tarde. Agora, se o senhor nos der licença.
Ela se levantou, notando o divertimento cauteloso da Lady Grant e a desaprovação sombria de Susan Charleson. O próprio Grant permaneceu imóvel feito uma estátua.
- Tudo bem, Susan, eu acompanho os policiais - disse Lady Grant, levantando-se rapidamente e caminhando em direção à porta antes que a assistente recuperasse
o autocontrole.
Enquanto a seguiam pelo corredor, Karen disse:
- Isso deve ser muito difícil para a senhora.
Lady Grant voltou-se para eles, andando de costas com a segurança de alguém que conhece cada centímetro de seu território.
- Por que você diz isso?
- Ver seu marido reviver uma época tão difícil... Eu não gostaria de ver alguém de quem eu gostasse passando por tudo isso.
Lady Grant pareceu confusa.
- Ele convive com isso todos os dias, inspetora. Pode ser que não o demonstre, mas não tira isso da cabeça. Às vezes o vejo olhando para nosso filho, Alec,
e sei que ele está pensando em como poderia ter sido, com Adam. Pensando no que perdeu. Ter algo novo em que focar é quase um alívio para ele.
Ela girou nos calcanhares e deu-lhes as costas novamente. Enquanto a seguiam, Karen encontrou o olhar de Phil e ficou surpresa com a raiva que viu ali.
- Ainda assim, a senhora não seria humana se uma parte sua não desejasse que nunca encontrássemos Adam são e salvo - Phil disse, a leveza do tom contrastando
diretamente com a severidade de sua expressão.
Lady Grant se deteve e voltou-se para eles, franzindo as sobrancelhas. Um rubor rosado subiu por seu pescoço.
- Que diabos você quer dizer com isso?
- Acho que a senhora sabe exatamente o que quero dizer, Lady Grant. Nós encontramos Adam e, de repente, seu filho Alec não é mais o único herdeiro de Brodie
- disse Phil. Era preciso ter coragem, pensou Karen, para assumir o papel de para-raios da investigação.
Por um momento, Lady Grant pareceu estar a ponto de estapeá-lo. Karen podia ver seu peito subindo e descendo com o esforço de se controlar. Finalmente, ela se obrigou
a assumir a pose habitual de civilidade.
- Na verdade - ela disse secamente -, você está vendo a situação precisamente pelo ângulo errado. O comprometimento absoluto de Brodie em descobrir o destino
de seu neto me enche de confiança com relação ao futuro de Alec. Um homem tão preso aos deveres para com sua própria
carne e seu próprio sangue jamais decepcionará nosso filho. Acredite se quiser, sargento, a busca de Brodie pela verdade me dá esperança. Não medo.
- Ela se virou nos calcanhares e marchou até a porta da frente, que manteve enfaticamente aberta para eles.
Depois que a porta se fechou, Karen disse:
- Caramba, Phil, por que você não diz o que realmente está pensando? O que provocou aquilo?
- Me desculpe. - Ele abriu a porta do passageiro para ela, uma pequena cortesia a que raramente se dava ao trabalho. - Eu já estava cheio de brincar de Miss
Marple, a detetive, e aquela palhaçada toda de crime na casa de campo. Tudo muito limpo e civilizado. Só queria ver se conseguia provocar uma reação honesta.
Karen sorriu.
- Acho que se pode dizer que conseguiu. Só espero que não sejamos atingidos pelas faíscas.
Phil bufou.
- Você não fica muito atrás, quando se trata de ser durona. "Esta investigação é minha" - ele a imitou, sem maldade.
Ela se acomodou no carro.
- É, tudo bem. A ilusão de estar no comando. Foi bom, enquanto durou.
Nottingham
As belezas do parque Nottingham Arboretum não só haviam sido obscurecidas como praticamente ficaram invisíveis com a chuva torrencial que cegava o agente Mark Hall
enquanto seguia Femi Otitoju, subindo pela trilha que levava ao Campanário Chinês. Ela finalmente havia mostrado alguma emoção, mas não era exatamente o que Mark
havia esperado.
Logan Laidlaw tinha ficado ainda menos contente do que Ferguson e Fraser ao vê-los. Ele não só se recusara a permitir que entrassem em seu apartamento, como lhes
dissera que não tinha a menor intenção de repetir o que já tinha contado à filha de Mick Prentice.
- Esta droga de vida é curta demais para desperdiçar minha energia falando duas vezes sobre a mesma coisa - ele dissera e, então, batera a porta na cara deles.
Otitoju havia ficado mais púrpura do que uma beterraba em conserva, respirando pesadamente pelo nariz. Cerrou os punhos e chegou a levar o pé para trás como se fosse
chutar a porta. Bastante violento, levando em conta que não havia muita violência nela. Mark colocara a mão em seu braço.
- Deixe estar, Femi. Ele está no direito dele. Não é obrigado a falar conosco.
Otitoju dera meia-volta, seu corpo inteiro tenso de raiva.
- Não deveria ser permitido - ela disse. - Eles deveriam ser obrigados a falar com a gente. Deveria ser contra a lei que as pessoas se recusassem a responder
a nossas perguntas. Deveria ser crime.
- Ele é uma testemunha, não um criminoso - disse Mark, assustado com a veemência dela. - Foi o que nos disseram em nosso treinamento: policiais por consentimento,
não por coerção.
- Isso não está certo - disse Otitoju, voltando furiosamente para o carro. - Eles esperam que a gente solucione crimes, mas não nos dão as ferramentas para
fazer o serviço. Que diabos ele pensa que é?
- Ele é alguém cuja opinião sobre a polícia foi gravada em pedra nos idos de 1984. Você nunca viu as reportagens de jornal dessa época? Policiais a cavalo
atacavam os piquetes como se fossem cossacos ou coisa parecida. Se usássemos hoje o cassetete daquele jeito, seríamos presos. Não foi um de nossos melhores momentos.
Portanto, não é de surpreender que o Sr. Laidlaw não queira falar conosco.
Ela balançou a cabeça.
- Faz com que eu me pergunte o que ele pode ter a esconder.
O trajeto da casa de Iain Maclean até o Arboretum, cruzando a cidade, não havia ajudado a melhorar o humor dela. Mark a alcançou.
- Deixe isso comigo, ok? - ele disse.
- Você acha que não sei conduzir uma entrevista?
- Não, não é isso. Mas conheço o suficiente sobre ex-mineiros para saber que são bastante machistas. Você viu como foi com Ferguson e Fraser... eles não ficaram
muito contentes com o fato de você fazer as perguntas.
Otitoju parou abruptamente e atirou a cabeça para trás, deixando que a chuva escorresse por seu rosto como lágrimas geladas. Recompondo-se, suspirou.
- Está bem. Vamos tirar vantagem de seus preconceitos. Você conduz a conversa. - Então, ela voltou a andar, dessa vez num passo mais comedido.
Chegaram ao Campanário Chinês e encontraram dois homens de meia-idade, vestindo macacão da prefeitura e abrigando-se da tempestade. Os pilares estreitos, que davam
suporte ao teto elegante, não ofereciam muita proteção aos respingos de chuva espalhados pelas rajadas de vento, mas era melhor do que ficar totalmente exposto.
- Estou procurando Iain Maclean - disse Mark, olhando um e outro.
- Sou eu - disse o mais baixo dos dois, com olhos azuis cintilando no rosto bronzeado. - E quem são vocês?
Mark apresentou os dois.
- Tem algum lugar aonde possamos ir tomar uma xícara de chá?
Os dois homens trocaram um olhar.
- Deveríamos estar podando as margens, mas estávamos prestes a desistir e voltar para as estufas - disse Maclean. - Não há nenhum café por aqui, mas vocês
podem nos acompanhar até as estufas, e nós preparamos o chá.
Dez minutos depois, eles estavam espremidos num canto, nos fundos de um amplo túnel de polietileno, e fora do caminho dos demais jardineiros, cujos olhares curiosos
se haviam acalmado ao perceberem que não haveria nada espetacular. Um forte cheiro de húmus pairava no ar, lembrando Mark do barracão no jardim de seu avô. Iain
Maclean segurou a xícara com as mãos enormes e esperou que eles falassem. Ele não havia mostrado qualquer surpresa com a chegada dos policiais e tampouco lhes havia
perguntado por que estavam ali. Mark desconfiava que Fraser ou Ferguson já o tivessem avisado.
- Queremos conversar com você sobre Mick Prentice - ele começou.
- O que tem o Mick? Não o vejo desde que nos mudamos para o sul - disse Maclean.
- Nem você nem mais ninguém - disse Mark. - Todos presumiram que ele houvesse viajado para o sul com vocês, mas não é isso que estão nos dizendo hoje.
Maclean coçou as cerdas prateadas que cobriam sua cabeça num corte de cabelo militar.
- É, bem. Eu tinha ouvido falar que as pessoas achavam isso, lá em Newton. É só para mostrar a você como as pessoas sempre preferem pensar o pior. De jeito
nenhum Mick teria se juntado a nós. Não imagino como alguém que o conhecesse poderia pensar isso.
- E você nunca os corrigiu?
- Para quê? Na cabeça deles, eu sou um mineiro fura-greve e desonesto. Nada do que eu pudesse dizer em defesa de alguém teria muito peso, lá em Newton.
- Para ser justo, não é apenas uma questão de tirar conclusões precipitadas. A esposa dele recebia dinheiro ocasionalmente, depois que ele foi embora. O carimbo
do correio era de Nottingham. Essa é uma das principais razões pelas quais todos acharam que ele houvesse feito o impensável.
- Não sei qual é a explicação para isso. Mas te digo uma coisa: seria mais fácil Mick Prentice ir para a Lua do que furar a greve.
- Isso é o que todos nos dizem - disse Mark. - Mas as pessoas fazem coisas que parecem insólitas, quando estão desesperadas. E, segundo consta, Mick Prentice
estava desesperado.
- Não tanto a ponto de fazer isso.
- Você fez.
Maclean olhou fixamente para sua xícara.
- Fiz. E nunca me envergonhei tanto de algo. Mas minha mulher estava grávida do nosso terceiro filho. Eu sabia que não havia maneira alguma de trazer mais
um bebê àquela vida. Então, fiz o que fiz. Eu conversei a respeito com o Mick, antes. - Ele lançou um olhar rápido a Mark. - Éramos amigos, ele e eu. Estudamos juntos
na escola. Eu queria explicar para ele por que estava fazendo aquilo. - Ele suspirou. - Ele disse que entendia a minha decisão. Que ele também tinha vontade de ir
embora. Mas que furar greve não era para ele. Não sei para onde ele foi; mas eu sei que, com certeza, não foi para outra mina.
- Quando você soube que ele havia desaparecido?
Ele contorceu o rosto enquanto pensava.
- É difícil dizer. Acho que quando minha esposa veio para ficar comigo. Isso quer dizer que foi por volta de fevereiro. Mas pode ter sido depois disso. Minha
esposa, ela ainda tem família lá em Wemyss. Nós não voltamos lá. Não seríamos bem-vindos. As pessoas têm memória boa, sabe? Mas
nos mantemos em contato e, às vezes, eles vêm aqui nos visitar. - Um pálido sorriso de desculpa passou por seu rosto. - O sobrinho da minha mulher, ele é estudante
na universidade daqui. Está terminando o segundo ano. Ele vem jantar aqui em casa de vez em quando. Então, sim, eu ouvi falar que Mick havia entrado na lista dos
desaparecidos, mas não saberia te dizer com certeza quando foi que fiquei sabendo.
- Aonde você acha que ele foi? O que você acha que aconteceu? - Em sua ansiedade, Mark se esqueceu da regra fundamental de fazer apenas uma pergunta por vez.
Maclean ignorou ambas.
- Por que cargas d'água vocês ficaram interessados no Mick, assim de repente? - ele perguntou. - Ninguém veio procurar por ele, em todos esses anos. Por que
tanto alvoroço agora?
Mark explicou por que Misha Gibson havia, finalmente, informado a polícia sobre o desaparecimento de seu pai. Maclean se mexeu na cadeira, sem jeito, fazendo o chá
se derramar sobre os dedos.
- Que coisa horrível. Me lembro de quando a própria Misha não passava de uma garotinha. Gostaria de poder ajudar. Mas não sei para onde ele foi - ele disse.
- Como eu falei antes, não o vi mais desde que saí de Newton.
- Ouviu falar alguma coisa sobre ele? - acrescentou Otitoju.
Maclean lhe lançou um olhar duro. Em seu rosto curtido pelo sol, o olhar parecia tão impassível quanto o Monte Rushmore.
- Não tente dar uma de esperta pra cima de mim, querida. Não, não ouvi nada sobre ele. No que me diz respeito, Mick Prentice sumiu do planeta no dia em que
vim para cá. E foi exatamente o que esperei que fosse acontecer.
Mark tentou restabelecer a camaradagem, infiltrando solidariedade em sua voz:
- Entendo perfeitamente - disse. - Mas o que você acha que aconteceu com Mick? Você era amigo dele. Se alguém pode pensar numa resposta, esse alguém é você.
Maclean balançou a cabeça.
- Não sei mesmo.
- E se tivesse que fazer uma suposição?
Novamente ele coçou a cabeça.
- Te digo uma coisa. Achei que ele e Andy tivessem fugido juntos. Achei que os dois estivessem cheios, que houvessem ido para algum outro lugar para começar
do zero. Vida nova e essas coisas.
Mark se lembrava do nome do amigo de Prentice, que vira no relatório informativo sobre o caso. Mas não houvera qualquer menção de terem fugido juntos.
- Aonde eles iriam? Como poderiam simplesmente desaparecer, sem deixar rastros?
Maclean bateu com o dedo na lateral do nariz.
- Andy era comunista, sabe? E, nessa época, Lech Walesa e o Solidariedade eram importantíssimos na Polônia. Sempre achei que aqueles dois tivessem ido para
lá. Havia um monte de minas na Polônia e não iria parecer que eles estivessem furando a greve. De jeito nenhum.
- Polônia? - Mark sentiu que precisava de um curso rápido sobre a história política do século XX.
- Eles estavam tentando derrubar o comunismo totalitário - Otitoju disse, asperamente. - Para substituí-lo por uma espécie de socialismo dos trabalhadores.
Maclean assentiu.
- Isso teria sido bem do gosto de Andy. Acho que ele deve ter convencido Mick a ir com ele. Isso explicaria por que ninguém nunca mais soube deles. Presos
nas minas de carvão atrás da Cortina de Ferro.
- Mas já faz algum tempo que essa Cortina de Ferro cheira a naftalina - Mark disse.
- Sim, mas quem sabe que tipo de vida eles conseguiram estabelecer por lá? Poderiam estar casados, com filhos, poderiam ter deixado o passado para trás. Se
Mick tivesse uma nova família, não iria querer que a antiga aparecesse do nada, não é?
De repente, Mark teve um daqueles momentos de revelação em que pôde ver o cenário completo.
- Era você quem mandava o dinheiro, não era? Você colocava dinheiro num envelope e enviava a Jenny Prentice, porque achava que Mick não enviaria dinheiro
para ela da Polônia.
Maclean pareceu se encolher contra a parede translúcida de polietileno. Seu rosto se franziu tanto, que era difícil ver seus brilhantes olhos azuis.
- Só estava tentando ajudar. Tenho ganhado bem desde que vim para cá. Sempre senti pena de Jenny. Parecia que ela havia ficado com a pior parte porque Mick
não teve coragem para assumir suas responsabilidades.
Aquela era uma forma estranha de se expressar, pensou Mark. Ele podia muito bem deixar por isso mesmo; aquele caso não era seu, afinal, e ele não precisaria enfrentar
os problemas que poderiam advir de se investigar algo aparentemente sem conexão. Mas, por outro lado, ele queria cumprir aquela missão da melhor forma possível.
Queria explorar a posição de assistente do DIC para conseguir uma transferência permanente para a divisão de detetives. Então, fazer esforços extras era definitivamente
parte do seu plano.
- Tem alguma coisa que você não esteja nos dizendo, Iain? - ele perguntou. - Alguma outra razão para Mick ter fugido da forma como fez, sem dizer uma palavra
a ninguém?
Maclean tomou o resto do seu chá e colocou a xícara de lado. Suas mãos, desproporcionalmente grandes devido a uma vida inteira de trabalho manual intenso, se entrelaçaram
e se soltaram. Ele parecia alguém pouco à vontade com o conteúdo de sua própria mente. Respirou fundo e disse:
- Imagino que agora já não faça diferença. Não se pode punir alguém que já tenha ido desta pra melhor.
Otitoju estava prestes a romper o silêncio de Maclean, mas Mark agarrou seu braço, numa advertência. Ela cedeu, sua boca formou uma linha estreita, e eles esperaram.
Finalmente, Maclean falou.
- Nunca contei isso a ninguém. Até parece que adiantou de alguma coisa manter segredo. Vocês têm de entender, Mick era um defensor ferrenho do sindicato.
E, claro, Andy era funcionário em tempo integral do Sindicato Nacional dos Mineradores. Estava totalmente em casa, íntimo dos altos escalões. Não duvido que Andy
tenha contado a Mick muitas coisas que talvez não devesse. - Ele deu um sorriso melancólico. - Ele estava sempre tentando impressionar Mick, ser seu melhor amigo.
Frequentamos a mesma classe, na escola. Nós três costumávamos andar juntos. Mas você sabe como são os trios. Sempre existe um líder e os outros dois ficam tentando
agradá-lo, tentando tirar o outro da jogada. Era assim conosco. Mick
no meio, tentando manter a paz. Ele era bom nisso, esperto em encontrar formas de deixar nós dois contentes. Nunca permitia que um de nós ficasse por cima. Bem,
não por muito tempo, pelo menos.
Mark podia perceber que Maclean relaxava ao lembrar-se da calma relativa daqueles dias.
- Sei bem o que você quer dizer - ele disse, baixinho.
- Enfim, nós todos continuamos amigos. Eu e minha mulher costumávamos sair com Mick e Jenny, os quatro. Ele e Andy jogavam futebol juntos. Como eu disse,
ele era bom em encontrar coisas que faziam com que seus dois amigos se sentissem especiais. Pois então, algumas semanas antes de eu vir para cá, passamos o dia juntos.
Caminhamos até o porto de Dysart. Ele montou o cavalete e pintou, e eu pesquei. Contei a ele o que havia planejado fazer, e ele tentou me dissuadir. Mas eu podia
ver que ele não estava prestando muita atenção. Então, perguntei a ele o que o estava incomodando. - Ele parou novamente, seus dedos fortes apoiavam-se uns contra
os outros.
- E o que era? - perguntou Mark, inclinando-se para a frente para afastar a presença rígida de Otitoju e fazendo daquele um círculo puramente masculino.
- Ele disse que achava que um dos funcionários do sindicato estava roubando. - Olhou fixamente nos olhos de Mark. Ele podia sentir a terrível traição que
havia por trás das palavras de Maclean. - Nós todos estávamos sem um tostão e passando fome, e um dos caras que, supostamente, deveria ficar do nosso lado estava
enchendo os próprios bolsos. Pode não parecer muita coisa agora, mas naquela época, isso me abalou profundamente.
Quinta-feira, 30 de novembro de 1984; Dysart
Uma cavala estava puxando seu anzol, mas Iain Maclean não lhe prestava a menor atenção.
- Você só pode estar brincando! - ele disse. - Ninguém faria uma coisa dessas.
Mick Prentice deu de ombros, sem tirar os olhos do papel grosso preso em seu cavalete.
- Você não precisa acreditar em mim. Eu sei o que sei.
- Você deve ter entendido errado. Nenhum funcionário do sindicato roubaria da gente. Não aqui. Não agora. - Maclean parecia estar à beira das lágrimas.
- Olhe, vou lhe contar o que sei. - Mick passou o pincel rapidamente pelo papel, deixando uma mancha de cor ao longo do horizonte. - Eu estava no escritório
na terça passada. Andy tinha me pedido para ir lá ajudá-lo com os requerimentos da assistência, então eu estava folheando as cartas que havíamos recebido. Digo uma
coisa a você: ver o que as pessoas estavam passando era de partir o coração. - Ele limpou o pincel e misturou uma cor cinza esverdeada em sua palheta de bolso. -
Então, estou eu lá naquele cubículo, ao lado do escritório principal, examinando essas coisas, e esse outro funcionário está lá na frente. Enfim, vem uma mulher
de Lundin Links. Terninho de lã e uma boina idiota de pelo de angorá. Você conhece o tipo: a ricaça metida a Madre Teresa de Calcutá. Ela disse que eles haviam realizado
um café da manhã beneficente no clube de golfe e que tinham arrecadado 232 libras para ajudar as famílias pobres dos mineiros em greve.
- Fizeram muito bem - disse Maclean. - Melhor vir diretamente até nós do que falar com aquela maldita equipe da Tatcher.
- Certamente. Então, ele lhe agradece e ela vai embora. Agora, eu não vi exatamente para onde foi o dinheiro, mas posso lhe dizer que não foi para dentro
do cofre.
- Ah, tenha dó, Mick. Isso não prova nada. Pode ser que o cara tenha levado diretamente para a subseção do sindicato. Ou para o banco.
- Sei. - Mick deu uma risada sem humor nenhum. - Como se, nos dias de hoje colocássemos dinheiro no banco com os confiscadores atrás da gente.
- Mesmo assim - disse Maclean, sentindo-se ofendido, por alguma razão.
- Olhe, se fosse só isso, eu não teria me incomodado. Mas tem mais. Uma das tarefas de Andy é manter um registro do dinheiro que vem de doações e coisas do
tipo. Todo esse dinheiro deve ser repassado para a subseção. Não sei o que acontece com ele, então, se volta para a gente em forma de doações ou se vai parar na
corte do Rei Arthur, escondido em alguma maldita conta bancária na Suíça. Mas qualquer pessoa que arrecade dinheiro deve dizer a Andy, e ele anota num livrinho.
Maclean assentiu.
- Me lembro de ter de dizer a ele quanto tínhamos conseguido juntar, quando fizemos as arrecadações na rua, no último verão.
Mick fez uma breve pausa e olhou para o ponto onde o mar se encontrava com a terra.
- Eu estava na casa de Andy, na outra noite. O livro estava em cima da mesa. E a doação de Lundin Links não estava anotada nele.
Maclean puxou a linha com tanta força que quase perdeu o peixe.
- Merda - ele disse, girando a carretilha furiosamente. - Talvez Andy estivesse atrasado com as anotações.
- Gostaria que fosse tão simples assim. Mas não é isso. As últimas anotações no livro de Andy eram de quatro dias depois que aquele dinheiro foi entregue.
Maclean jogou a vara nas lajotas de pedra a seus pés. Ele podia sentir as lágrimas queimando nos olhos.
- Que porra de situação desgraçada. E você espera que eu sinta remorso por estar indo para Nottingham? Pelo menos é trabalho honesto, por um pagamento honesto,
e não roubo. Não posso acreditar numa coisa dessas.
- Eu também não. Mas de que outra forma se poderia explicar isso? - Mick balançou a cabeça. - E vindo de um cara que ainda está recebendo salário.
- Quem é ele?
- Não posso lhe dizer. Não até que tenha decidido o que fazer a respeito.
- É óbvio o que você tem de fazer. Tem que contar ao Andy. Se houver uma explicação inocente, ele saberá.
- Não posso contar ao Andy - Mick protestou. -Jesus, às vezes sinto vontade de fugir desta merda de confusão toda. Passar a régua e começar do zero em outro
lugar. - Ele balançou a cabeça. - Não posso contar a Andy, Iain. Ele já está deprimido. Se eu contar isso, poderia estar empurrando-o de uma vez para o fundo do
abismo.
- Bem, conte para outra pessoa, então. Para alguém da subseção. Você tem que pegar esse filho da puta. Quem é ele? Me conte. Mais algumas semanas e estarei
longe daqui. Para quem eu iria contar? - Maclean sentia a necessidade de saber queimando-o por dentro. Era mais uma coisa que o ajudaria a acreditar que estava fazendo
a coisa certa. - Me conte, Mick.
O vento fez o cabelo de Mick entrar em seus olhos, salvando-o do desespero no rosto de Maclean. Mas a necessidade de compartilhar seu fardo era pesada demais para
ignorar. Ele afastou o cabelo e olhou nos olhos do amigo.
- Ben Reekie.
Sexta-feira, 29 de junho de 2007; Glenrothes
Karen tinha de admitir que estava impressionada. Não só a equipe de Nottingham havia feito um excelente trabalho, mas a agente Femi Otitoju tinha digitado seu relatório
e o enviado por e-mail em tempo recorde. Veja bem, pensou Karen, eu provavelmente teria feito a mesma coisa, no lugar dela. Dada a qualidade das informações que
ela e seu parceiro haviam conseguido obter, qualquer policial candidato ao DIG ficaria desesperado para tirar a maior vantagem possível.
E realmente havia algo ali para explorar ao máximo. A agente Otitoju e seu colega em Nottingham haviam descoberto quem tinha confundido a todos, enviando dinheiro
a Jenny Prentice. E, crucialmente, ela também tinha fornecido a primeira resposta possível à questão de quem ficaria feliz ao ver Mick Prentice pelas costas. Os
ânimos andaram bastante exaltados na época, e a impopularidade do sindicato crescia em várias partes. A violência já havia irrompido mais vezes do que se poderia
contar, e nem sempre entre a polícia e os grevistas. Mick Prentice poderia ter sido consumido pelo fogo com o qual brincava. Caso houvesse confrontado Ben Reekie
com o que sabia, se ele fosse culpado da acusação e se Andy Kerr tivesse sido arrastado para a confusão, devido à sua conexão com os outros dois, então, havia motivo
para Reekie se livrar dos dois homens, que desapareceram aproximadamente na mesma época. Talvez Angie Kerr estivesse certa a respeito do irmão. Talvez ele não tivesse
se matado. Talvez Mick Prentice e Andy Kerr fossem vítimas de um assassino - ou assassinos - desesperado para proteger a reputação de um funcionário desonesto do
sindicato.
Karen estremeceu.
- É imaginação demais - ela disse, em voz alta.
- O quê? - Phil afastou os olhos da tela do computador, franzindo a testa.
- Desculpe. Só estou me dando uma bronca por ser melodramática demais. Mas lhe digo uma coisa, se essa Femi Otitoju algum dia decidir se mudar para o norte,
vou colocá-la no lugar do Novo em Folha tão rápido que ele não vai nem saber o que está acontecendo.
- Não que isso seja muito difícil - disse Phil. - A propósito, o que você está fazendo aqui? Não deveria estar conversando com a adorável Srta. Richmond?
- Ela deixou um recado. - Karen olhou para seu relógio. - Chegará dentro de alguns minutos.
- Por que o atraso?
- Parece que teve que conversar com o advogado de algum jornal sobre um artigo que ela escreveu.
Phil reclamou.
- Que nem o tal do Brodie Grant. Ainda pensam que somos da classe serviçal, aqueles lá. Talvez você devesse deixá-la esperando.
- Não posso me dar ao luxo de entrar nesse jogo idiota. Olhe só isto aqui. O parágrafo que eu marquei. - Ela passou o relatório de Otitoju para Phil e esperou
que ele o lesse. Assim que ele levantou os olhos da página, ela disse: - Alguém afirmando que viu Mick Prentice umas doze horas depois de ele ter saído de casa.
E parece que ele não estava agindo de forma normal.
- Que estranho. Se ele estava fugindo, por que ainda estaria por ali, àquela hora da noite? Onde havia estado antes? E para onde estava indo? O que estava
esperando? - Phil coçou o queixo. - Não faz nenhum sentido para mim.
- Nem para mim. Mas vamos ter que tentar descobrir. Vou acrescentar à minha lista - ela suspirou. - Um pouco abaixo de "ter uma conversa decente com a polícia
italiana".
- Pensei que você houvesse conversado com eles.
Ela assentiu.
- Com um policial no quartel-general de Siena, um cara chamado di Stefano, com quem Peter Spinks, da Proteção Infantil, trabalhou há uns anos. Ele fala inglês
razoavelmente bem, mas precisa de mais informações.
- Então, você vai entrar em contato com eles novamente na segunda-feira?
Karen assentiu.
- Isso. Ele disse para não esperarmos encontrar ninguém no escritório deles depois das duas da tarde de uma sexta-feira.
- Será ótimo, se você conseguir - disse Phil. - Falando nisso, quer ir tomar um drinque rápido depois que terminar a conversa com Annabel Richmond? Tenho
que ir jantar na casa do meu irmão, mas tenho tempo para uma cervejinha.

 

 


CONTINUA