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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOMINIO SOMBRIO
DOMINIO SOMBRIO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Karen ficou dividida. A perspectiva de um drinque com Phil sempre a atraía, mas sua ausência do escritório significava que a papelada administrativa tinha ficado
esquecida por tempo demais. E ela não poderia colocar tudo em ordem no dia seguinte porque eles iriam até as cavernas. Entreteve-se com a ideia de dar uma escapadinha
para um drinque rápido e, depois, voltar para o escritório. Mas se conhecia bem o suficiente para saber que, uma vez que houvesse escapado de sua mesa, encontraria
qualquer desculpa para evitar ter de retornar o serviço burocrático.
- Desculpe - ela disse. - Tenho que botar a casa em ordem.
- Quem sabe amanhã, então? Poderíamos nos dar de presente um almoço no Laird o' Wemyss.
Karen riu.
- Você ganhou na loteria? Sabe quanto custa comer naquele lugar?
Phil piscou.
- Eu sei que eles têm uma promoção de almoço no último sábado de cada mês. Que seria amanhã.
- E pensei que fosse eu a detetive por aqui. O.k., estamos combinados.
- Karen voltou sua atenção para as anotações, certificando-se de que sabia exatamente o que perguntar a Annabel Richmond.
O telefone de Karen tocou cinco minutos antes da hora combinada. A jornalista havia chegado. Ela pediu a um policial uniformizado que conduzisse Richmond até a sala
de entrevistas onde havia se encontrado com Misha Gibson; então, juntou seus papéis e desceu a escadaria. Entrou na sala e se deparou com sua testemunha inclinada
na janela e olhando para fora, para os escassos filamentos de nuvens que se espalhavam pelo céu.
- Obrigada por ter vindo, Srta. Richmond - disse Karen.
Ela se virou, o sorriso aparentemente genuíno.
- Me chame de Bel, por favor - disse. - Eu é que deveria lhe agradecer por ser tão gentil. Agradeço muito sua flexibilidade. - Ela foi até a mesa e se sentou,
os dedos entrelaçados, parecendo relaxada. - Espero não tê-la obrigado a ficar até mais tarde.
Karen se perguntou quando tinha sido a última vez que chegara em casa às cinco numa sexta-feira e não pôde se lembrar.
- Até parece - ela disse.
O riso de Bel era cálido e conspirador.
- Imagino. Desconfio que seu trabalho tenha muita coisa a ver com o meu. Devo dizer, a propósito, que estou impressionada.
Karen sabia que se tratava de um truque, mas mordeu a isca mesmo assim.
- Impressionada com o quê?
- Com o poder de influência de Brodie Grant. Não imaginei que estaria lidando com a mulher que colocou Jimmy Lawson atrás das grades.
Karen sentiu o rubor subindo por seu pescoço, sabia que devia estar toda vermelha e feia e quis chutar os móveis.
- Não gosto de falar sobre isso - ela disse.
De novo, a risada agradável e convidativa.
- Imagino que não seja um tema de conversa muito popular entre você e seus colegas. Saber que você foi responsável por atribuir três assassinatos a seu chefe
deve fazer com que todos fiquem mais atentos do que de costume.
Ela falava como se Karen tivesse armado para que ele parecesse culpado. Na verdade, depois que Karen se viu instigada a pensar o impensável, as provas haviam estado
logo ali, esperando para serem descobertas. Um estupro e um assassinato de vinte e cinco anos atrás, e duas mortes frescas para encobrir o delito anterior. Não enquadrar
Lawson é que teria sido armação. Era tentador dizer exatamente isso para Bel Richmond. Mas Karen sabia que responder daria início a uma conversa que só poderia levar
a lugares que ela não queria revisitar.
- Como eu disse, não falo sobre esse assunto. - Bel inclinou a cabeça e deu um sorriso que Karen interpretou como triste, porém confiante. Não uma derrota,
mas um adiamento. Karen sorriu internamente, sabendo que a jornalista estava errada sobre aquilo.
- Então, como você prefere conduzir isso, inspetora Pirie? - perguntou Bel.
Recusando-se impassivelmente a ser seduzida pelo charme de Bel, Karen manteve seu tom profissional.
- O que preciso neste momento é que você seja meus olhos e ouvidos e me relate o que aconteceu, passo a passo. Como encontrou o pôster, onde o encontrou.
A história completa. Todos os detalhes de que possa se lembrar.
- Começou com a minha corrida matinal - Bel iniciou.
Karen ouviu atentamente enquanto ela narrava a história de sua descoberta, mais uma vez. Tomou notas, rascunhando perguntas para fazer posteriormente. Bel parecia
sincera e meticulosa em sua narrativa, e Karen sabia que não deveria interromper o fluxo de pensamento de uma testemunha obsequiosa. Os únicos ruídos que emitiu
foram murmúrios de encorajamento.
Finalmente, Bel chegou ao término da narrativa.
- Para ser sincera, fiquei surpresa de você ter reconhecido o pôster de imediato - disse Karen. - Não tenho certeza de que eu o reconheceria.
Bel deu de ombros.
- Sou redatora freelance, inspetora. Na época, essa história ficou famosíssima. Eu estava começando a pensar em ser jornalista e andava prestando mais atenção
aos jornais e noticiários. Mais do que as pessoas fazem, normalmente. Imagino que a imagem tenha ficado retida nos recantos mais profundos do meu cérebro.
- Posso entender que isso tenha acontecido. Mas, como você sabia do significado do pôster, fico surpresa por não tê-lo trazido diretamente para nós, em vez
de levá-lo a Sir Broderick. - Karen deixou que a acusação não proferida pairasse entre elas.
A resposta de Bel foi tranquila.
- Por duas razões, na verdade. Em primeiro lugar, eu não fazia ideia de quem contatar. Achei que, se simplesmente entrasse na minha delegacia de polícia local,
o assunto poderia não ser tratado com muita seriedade. E, segundo, a última coisa que eu queria fazer era desperdiçar o tempo da polícia. Pelo que eu sabia, aquela
poderia ser apenas uma cópia mórbida. Deduzi que Sir Broderick e seu pessoal saberiam de imediato se era algo a ser levado a sério ou não.
Resposta astuta, pensou Karen. Não que ela esperasse que Bel Richmond admitisse qualquer interesse na recompensa substanciosa que Brodie Grant ainda oferecia. Nem
na perspectiva de ganhar um acesso incomparável à fonte de informações perfeita.
- Muito bem - ela continuou. - Agora, você disse que teve a impressão de que quem quer que estivesse morando lá houvesse saído às pressas. E você me falou
que havia algo parecido a uma mancha de sangue na cozinha. Pareceu a você que essas duas coisas estavam relacionadas?
Um momento de silêncio e, então, Bel disse:
- Não sei ao certo como eu poderia julgar isso.
- Se a mancha no chão era antiga, ou se não era sangue, ela poderia ser simplesmente parte do cenário. Marca de cadeiras, esse tipo de coisa.
- Ah, certo. Sim, eu não havia pensado nesses termos. Não, não acho que fosse parte do cenário. Havia uma cadeira virada perto da mancha. - Ela falava devagar,
obviamente revendo a cena em sua mente. - Em uma parte da mancha, parecia que alguém havia tentado limpá-la, mas depois percebeu que não adiantaria. O chão é feito
de lajotas de pedra, não de azulejos vitrificados. Então, a pedra absorveu o sangue.
- Havia outros pôsteres ou outros materiais impressos?
- Não que eu tivesse visto. Mas não vasculhei o lugar todo. Para ser honesta, o pôster me assustou tanto que mal podia esperar para sair de lá.
- Ela deu uma risadinha. - Não sou exatamente a imagem do intrépido repórter investigativo, sou?
Karen não podia se dar ao trabalho de alimentar o ego dela.
- O pôster a assustou? Não o sangue?
Mais uma vez, uma pausa para pensar.
- Sabe de uma coisa? Isso não tinha me passado pela cabeça até agora. Você tem razão. Foi mesmo o pôster, não o sangue. E não sei muito bem por quê.
Sábado, 30 de junho de 2007; East Wemyss
O quebra-mar era novo, feito depois da última vez que Karen estivera em East Wemyss. Ela havia deliberadamente chegado cedo para poder caminhar pela parte baixa
do vilarejo. Eles tinham percorrido a orla algumas
vezes, entre ali e Buckhaven, quando ela era pequena. Lembrava-se de um lugar velho e caindo aos pedaços, pobre e abandonado. Agora, estava reformado e moderno,
as casas antigas haviam sido caiadas de branco ou pintadas em tom de arenito vermelho, e as novas pareciam recém-construídas. A igreja desconsagrada de St. Mary's-bythe-Sea
tinha sido salva da dilapidação e transformada em uma casa particular. Graças à União Europeia, construíra-se um quebra-mar com blocos robustos de pedra local para
manter o famoso "Firth of Forth", o estuário do rio Forth, sob controle. Ela seguiu pela rua Back Dykes, tentando se localizar. O bosque atrás da casa paroquial
tinha desaparecido, substituído por casas novas. O mesmo havia acontecido com as fábricas antigas. A paisagem do horizonte à sua frente fora modificada, agora que
o elevador do poço da mina e a pilha de carvão não estavam mais lá. Se ela não soubesse que era o mesmo lugar, não o teria reconhecido tão facilmente.
Porém, tinha de admitir que era uma melhora. Era fácil ser sentimental com relação ao passado e se esquecer das condições terríveis em que tantas pessoas tinham
sido forçadas a viver. Também elas foram escravas da economia, obrigadas pela pobreza a comprar apenas nos estabelecimentos locais. Mesmo a cooperativa, supostamente
criada para o benefício de seus membros, era mais cara, se comparada às lojas da Kirkcaldy High Street. Fora um estilo de vida muito duro, cujo único benefício real
era o espírito de comunidade. A perda dessa pequena compensação deve ter sido um golpe fatal para Jenny Prentice.
Karen voltou para o estacionamento, olhando através do litoral para o costão de arenito vermelho listrado que marcava o início da cadeia de cavernas profundas, agrupadas
ao longo da margem do penhasco. Em sua memória, elas ficavam bastante separadas do vilarejo, mas agora havia uma fileira de casas novas encostadas na extremidade
exterior da caverna Court. E havia postos de informações para turistas, contando sobre os cinco mil anos de história de habitação das cavernas. Os pictos tinham
vivido ali. Os escoceses primitivos as tinham utilizado como ferrarias e fábrica de vidros. A parede do fundo da caverna Doo fora perfurada por dúzias de buracos
de pombas. Ao longo dos tempos, as cavernas haviam sido usadas pelos moradores locais para fins tão diversos quanto reuniões políticas clandestinas, piqueniques
familiares em dias chuvosos e encontros românticos. Karen
nunca havia tirado a calcinha lá, mas conhecia várias garotas que o haviam feito e nem por isso pensava mal delas.
Ao voltar, ela viu o carro de Phil parar onde o asfalto dava lugar à trilha litorânea. Hora de explorar uma conjunção diferente entre passado e presente. Quando
chegou ao estacionamento, Phil estava acompanhado de um homem alto e curvado, de careca brilhante e vestindo o tipo de jaqueta e calça que a classe média sentia
necessidade de comprar antes de qualquer tentativa de fazer uma caminhada mais longa do que a ida até o pub local. Cheia de zíperes e bolsos e num material de alta
tecnologia. Nenhuma das pessoas com quem Karen havia crescido precisava de roupas ou botas especiais para caminhar. Você simplesmente saía para caminhar com suas
roupas normais, talvez acrescentando uma camada extra, no inverno. O que não os impedia de percorrer treze ou catorze quilômetros antes do jantar.
Karen se conteve mentalmente ao aproximar-se dos dois homens. Às vezes, assustava-se consigo mesma, ao pensar como sua avó. Phil a apresentou ao outro homem, Arnold
Haigh.
- Sou secretário da Sociedade de Preservação das Cavernas de Wemyss desde 1981 - ele disse, com orgulho, num sotaque que tinha suas raízes a algumas centenas
de quilômetros ao sul de Fife. Seu rosto era comprido e fino, com um nariz arrebitado incompatível com suas feições e dentes que resplandeciam, num branco pouco
natural, em contraste com a pele maltratada pelo sol.
- Isso é que é dedicação - disse Karen.
- Mais ou menos. - Haigh deu uma risadinha. - Mais ninguém quis o trabalho. Sobre o que exatamente você quer falar comigo? Quer dizer, sei que é a respeito
de Mick Prentice, mas há anos que nem sequer pensava nele.
- Por que não vamos dar uma olhada nas cavernas e conversamos no caminho? - sugeriu Karen.
- Certamente - disse Haigh com cortesia. - Podemos parar nas cavernas Court e Doo e, depois, tomar uma xícara de café na caverna Thane's.
- Uma xícara de café? - Phil pareceu achar graça. - Tem um café aqui embaixo?
Haigh deu outra risadinha.
- Desculpe, sargento. Nada de tão grandioso assim. A caverna Thane's foi fechada ao público depois do desmoronamento de 1985, mas a sociedade tem as chaves
das grades. Achamos que seria apropriado manter a tradição de dar às cavernas alguma função, então fizemos uma pequena área como sede do clube, numa parte segura.
É tudo muito improvisado, mas nós gostamos muito do lugar. - Ele foi caminhando em direção à primeira caverna, sem ver o olhar de fingido horror que Phil lançou
para Karen.
O primeiro sinal de que as rochas não eram muito sólidas era um buraco no arenito, que havia sido fechado com tijolos, anos antes. Alguns tijolos estavam faltando,
revelando a escuridão lá dentro.
- Aquela abertura e a passagem por trás dela foram feitas pelo homem
- Haigh disse, apontando para os tijolos. - Como podem ver, a caverna Court se projeta mais que as outras. No século XIX, a maré alta chegava à boca da caverna,
separando East Wemyss de Buckhaven. As moças que limpavam os arenques não podiam ir de uma vila à outra durante a maré alta; então, abriram uma passagem através
do lado oeste da caverna, que permitia a elas percorrerem a orla em segurança. Agora, se vocês me seguirem, entraremos pela entrada leste.
Ao dizer "podemos ir conversando no caminho", não era bem isso que Karen tinha em mente. No entanto, como estavam fazendo aquilo em seu próprio tempo, pela primeira
vez não havia pressa e, se pudesse tranquilizar Haigh, talvez funcionasse em seu favor. Feliz por haver escolhido jeans e tênis, ela seguiu os homens pela frente
da caverna e subiu uma trilha, ao lado de uma cerca baixa. Perto da entrada da caverna, a cerca fora pisoteada; eles passaram por cima dos arames retorcidos e entraram
na caverna, onde o chão de terra batida estava surpreendentemente seco, apesar da chuva que havia caído nas semanas anteriores. O fato de o teto estar escorado por
uma coluna de tijolos com o aviso PERIGO: ENTRADA PROIBIDA não era muito tranquilizador.
- Algumas pessoas acreditam que quem deu esse nome à caverna foi o rei James V, que gostava de andar, disfarçado, no meio dos seus súditos
- disse Haigh, enquanto acendia uma lanterna potente e iluminava o teto. - Dizem que ele realizava cortejos aqui, entre os ciganos que a habitavam na época.
Mas eu acho que é mais provável que aqui fosse onde as cortes baroniais eram conduzidas, durante a Idade Média.
Phil perambulava de um lado para outro, sua expressão ansiosa era como a de um garotinho no melhor dia de passeio escolar de sua vida.
- Até onde ela vai?
- Depois de uns vinte metros, o chão encontra-se com o teto. Havia uma passagem que seguia por uns cinco quilômetros em direção ao interior, até Kennoway,
mas um desabamento do teto fechou a abertura deste lado; então, a entrada de Kennoway foi vedada por questões de segurança. Faz a gente pensar, não? O que estavam
aprontando por aqui para precisar de uma passagem secreta até Kennoway? - Haigh deu sua risadinha novamente. Karen só pensava em quão irritada aquela risadinha dele
a deixaria até que terminassem a entrevista.
Ela deixou os homens explorando a caverna e voltou para o ar fresco. O céu estava salpicado de cinza, com promessa de chuva. O mar refletia o céu e acrescentava
mais
alguns tons cinzentos próprios. Ela se voltou para o exuberante verde da vegetação de verão e para as cores brilhantes do arenito, ambas ainda vibrantes a despeito
da melancolia do clima. Não demorou muito e Phil apareceu, com Haigh ainda falando às suas costas. Ele deu a Karen um sorriso arrependido; ela lhe devolveu um rosto
impassível.
Em seguida, foram à caverna Doo e ouviram uma palestra sobre a necessidade histórica de se criar pombos para ter carne fresca durante o inverno. Karen escutava apenas
parcialmente e, quando Haigh fez uma pausa, ela disse:
- As cores aqui são incríveis. Mick costumava pintar dentro das cavernas?
Haigh pareceu espantado pela pergunta.
- Sim, na verdade, ele pintava, sim. Algumas de suas aquarelas estão à mostra no centro de informações sobre as cavernas. É a variedade de sais minerais na
rocha que cria cores tão vívidas.
Antes que ele pudesse entrar em cheio naquele assunto, Karen fez outra pergunta:
- Ele vinha muito aqui durante a greve?
- Não muito. Acredito que ele estivesse colaborando nos piquetes móveis, no começo. Mas não o víamos mais do que o normal. Menos, até, conforme foram passando
o outono e o inverno.
- Ele disse o porquê disso?
Haigh não demonstrou qualquer expressão.
- Não. Nunca me passou pela cabeça perguntar a ele. Nós todos somos voluntários, fazemos aquilo que podemos.
- Vamos tomar aquele café agora? - sugeriu Phil, em sua luta entre o dever e o prazer, óbvia para Karen, embora não, graças a Deus, para Haigh.
- Boa ideia - disse Karen, conduzindo-os de volta à luz do dia. Chegar até a caverna Thane's era mais difícil, envolvia uma escalada pelas pedras e pelo concreto
que serviam como quebra-ondas rudimentar, entre o mar e o pé dos rochedos. Karen se lembrava da praia mais para baixo, do mar não tão próximo e foi o que ela disse.
Haigh concordou, explicando que, no decorrer dos anos, o nível do mar havia subido, em parte por causa dos detritos das minas de carvão.
- Ouvi alguns dos antigos moradores dizerem que havia areia dourada aqui, quando eles eram pequenos. Agora é difícil de acreditar - ele disse, acenando na
direção
do granulado negro, produzido por minúsculos fragmentos de carvão que enchiam todos os vãos entre as rochas e os calhaus.
Eles emergiram num semicírculo gramado. Assentada sobre o rochedo acima deles estava a única torre restante do Castelo Macduff. Outra coisa de que Karen se lembrava,
de sua infância. Tinham existido mais ruínas em volta da torre, mas haviam sido removidas pela prefeitura por questões de salubridade e segurança, alguns anos antes.
Ela se lembrava de seu pai reclamando sobre isso, na época.
Na base do penhasco havia várias aberturas. Haigh se dirigiu a uma robusta grade de metal que protegia uma entrada estreita de pouco mais de um metro e meio de altura.
Destrancou o cadeado e lhes pediu para esperar. Ele entrou e desapareceu numa curva na passagem estreita. Voltou quase imediatamente com três capacetes de construção.
Sentindo-se uma idiota, Karen colocou um e o seguiu para dentro. Os primeiros metros do caminho eram estreitos, e ela escutou Phil reclamando atrás dela ao bater
o cotovelo na parede. Mas logo se abria para uma câmara ampla cujo teto desaparecia na escuridão.
Haigh enfiou a mão num nicho na parede e, de repente, a luz amarelada das lâmpadas à bateria emitiu um brilho suave pela caverna. Meia dúzia de cadeiras bamboleantes
de madeira rodeavam uma mesa com tampo de fórmica. Numa prateleira funda, a cerca de um metro do chão havia um
fogareiro de acampamento, meia dúzia de litros de água e canecas. Os ingredientes para fazer chá e café estavam fechados em recipientes plásticos. Karen olhou ao
redor e imediatamente soube que o grupo de preservação das cavernas era formado basicamente de homens.
- Muito aconchegante - ela disse.
- Parece que havia uma passagem secreta desta caverna até o castelo acima - disse Haigh. - Diz a lenda que foi assim que Macduff escapou quando voltou para
casa e encontrou sua mulher e seus filhos assassinados e Macbeth no controle. - Ele indicou as cadeiras. - Sentem-se, por favor
- disse, ocupando-se com o fogareiro e com a chaleira. - Então, por que o interesse em Mick depois de todo esse tempo?
- A filha dele só agora informou sobre seu desaparecimento - disse Phil.
Haigh voltou-se, perplexo.
- Mas ele não está desaparecido, não é mesmo? Pensei que ele tinha ido para Nottingham com outro grupo de rapazes. Boa sorte para eles, eu pensei. Aqui não
havia nada além de miséria, naquele tempo.
- Você não desaprovava os mineiros fura-greves, então? - Karen perguntou, tentando não parecer ácida demais.
A risadinha de Haigh ecoou de forma sinistra.
- Não me leve a mal. Não tenho nada contra os sindicatos. Os trabalhadores merecem ser tratados decentemente por seus empregadores. Mas os mineiros foram
traídos por aquele egocêntrico interesseiro do Arthur Scargill. Um verdadeiro exemplo de leões liderados por um burro. Eu vi esta comunidade se desfazer. Vi um sofrimento
terrível. E tudo por nada. - Ele colocou colheradas de café nas canecas, balançando a cabeça. - Sentia muita pena dos homens e de suas famílias. Fiz o que podia...
eu era gerente regional de uma importadora alimentícia e trazia para a vila o máximo de amostras que conseguia. Mas era só uma gota d'água no oceano. Eu compreendi
bem por que Mick e seus amigos fizeram o que fizeram.
- Você não achou que havia algo de egoísta no fato de ele deixar a mulher e a filha para trás? Sem saber o que tinha acontecido com ele?
Haigh deu de ombros, de costas para eles.
- Para ser sincero, não sabia muito sobre sua situação pessoal. Ele não discutia sua vida doméstica.
- Sobre o que ele falava? - perguntou Karen.
Haigh trouxe até eles dois potinhos de plástico, um contendo sachês de açúcar surrupiados de lanchonetes de postos de gasolina e quartos de hotel, e o outro, cheio
de potinhos de creme para misturar ao café, vindos das mesmas fontes.
- Não me lembro, então era provavelmente o de sempre. Futebol. Tevê. Projetos para arrecadar dinheiro para restaurações nas cavernas. Teorias a respeito do
significado dos entalhes. - A risadinha. - Desconfio que pareçamos um pouco tolos para os de fora, inspetora. A maioria das pessoas que têm um hobby parece.
Karen pensou em mentir, mas não quis se dar ao trabalho.
- Só estou tentando obter uma impressão de como era Mick Prentice.
- Sempre achei que ele era um cara decente e sincero. - Haigh trouxe os cafés, tomando um cuidado exagerado para não derramar nem uma gota. - Para ser sincero,
com exceção das cavernas, não tínhamos muito mais em comum. Eu o achava, no entanto, um pintor talentoso. Todos nós o encorajávamos a retratar as cavernas, por dentro
e por fora. Parecia apropriado ter um registro artístico, já que a principal fama das cavernas se deve aos entalhes pictos. Alguns dos melhores estão aqui na caverna
Thane's. - Ele pegou sua lanterna e a apontou para um ponto preciso na parede. Nem precisou pensar para fazer aquilo. Diretamente na linha do facho de luz, eles
puderam ver a forma inconfundível de um peixe, com o rabo para baixo, entalhada na rocha. Em seguida, ele revelou um cavalo correndo e algo que podia ter sido um
cão ou um cervo. - Nós perdemos alguns desenhos em baixo-relevo no desmoronamento de 1985, mas, por sorte, Mick havia feito algumas pinturas deles não muito antes.
- Onde ocorreu o desmoronamento? - perguntou Phil, olhando para o fundo da caverna.
Haigh os conduziu até o canto mais distante, onde uma pilha de pedras quase chegava até o teto.
- Havia uma segunda câmara pequena conectada por uma passagem curta. - Phil deu um passo à frente para olhar mais de perto, mas Haigh agarrou-o pelo braço
e o puxou para trás. - Cuidado - ele disse. - Onde houve uma queda recente, nunca podemos saber quão seguro é o teto.
- É incomum que haja um desmoronamento? - perguntou Karen.
- Grande como este? Costumavam acontecer regularmente quando a mina Michael ainda estava funcionando. Mas a mina fechou em 1967, e depois...
- Eu sei sobre o desastre da mina Michael - Karen interrompeu. - Cresci em Methil.
- É claro. - Haigh pareceu sentir-se devidamente censurado. - Bem, desde que eles pararam de trabalhar no subterrâneo, não houve muito movimento nas cavernas.
Não temos um desmoronamento grande desde este aqui, na verdade.
Karen sentiu a fisgada de seu instinto policial.
- Quando exatamente aconteceu o desmoronamento? - ela perguntou, lentamente.
Haigh pareceu surpreso com sua linha de questionamento, lançando a Phil um olhar que sugeria uma cumplicidade masculina.
- Bem, não temos como ser precisos sobre isso. Para ser sincero, de meados de dezembro a meados de janeiro, não há praticamente movimento por aqui. Natal
e Ano-Novo e tudo mais. As pessoas estão ocupadas, viajam. Só o que podemos dizer, com alguma certeza, é que a passagem estava aberta no dia 7 de dezembro. Um dos
nossos membros esteve aqui naquele dia, tomando medidas detalhadas para uma proposta de subvenção. Pelo que sabemos, eu fui a pessoa seguinte a entrar na caverna.
O aniversário da minha esposa é dia 24 de janeiro, e alguns amigos vieram de Londres nos visitar. Eu os trouxe aqui para ver as cavernas e foi então que descobri
o desmoronamento. Foi um choque e tanto. Claro, eu os tirei daqui o mais rápido possível e chamei a prefeitura quando voltamos para casa.
- Então, em algum momento entre 7 de dezembro de 1984 e 24 de janeiro de 1985, o teto caiu? - Karen queria ter certeza de que entendera corretamente. Dois
e dois estavam começando a se somar em sua cabeça e tinha quase certeza de que não daria cinco.
- Isso mesmo. Embora eu, particularmente, ache que tenha sido mais próximo do dia 7 de dezembro - disse Haigh. - O ar já estava limpo na caverna. E demora
muito mais do que você imagina. Poderia se dizer que a poeira havia assentado totalmente.
Newton of Wemyss
Phil olhou para Karen com preocupação. Na frente dela havia um empadão recheado de peito de pombo, perfeitamente apresentado, rodeado por minúsculas batatas e por
uma torre de minicenouras assadas e abobrinhas. O Laird o' Wemyss estava superando sua reputação. Mas o prato já estava parado na frente de Karen havia pelo menos
um minuto e ela nem sequer tinha levantado os talheres. Em vez de comer com apetite, estava olhando fixamente para o prato, com uma ruga profunda entre as sobrancelhas.
- Você está bem? - ele perguntou cautelosamente. Às vezes, as mulheres se comportavam de formas estranhas e imprevisíveis, quando em presença de comida.
- Pombos - ela disse. - Cavernas. Não consigo tirar aquele desmoronamento da cabeça.
- E o que tem isso? Cavernas desmoronam. É por isso que existem avisos advertindo as pessoas. E grades trancadas com cadeados para mantê-las do lado de fora.
Saúde e segurança, esse é o mantra da chefia, nos dias de hoje. - Ele cortou um pedaço de seu crocante filé de robalo e o ajeitou no garfo com os legumes ao molho
de gergelim.
- Mas você ouviu o cara. Esse é o único desmoronamento relevante em qualquer das cavernas, desde que a mina foi fechada, em 1967. E se não foi um acidente?
Phil sacudiu a cabeça, mastigando e engolindo com afobação.
- Você está fazendo melodrama de novo. Isso aqui não é "Indiana Jones e as Cavernas de Wemyss", Karen. É um cara que desapareceu quando sua vida era uma merda.
- Não é um cara, Phil. São dois. Mick e Andy. Melhores amigos. Não eram do tipo que furaria a greve. Não eram do tipo que abandonaria seres queridos sem uma
palavra.
Phil pousou o garfo e a faca.
- Já passou pela sua cabeça que eles podem ter sido um casal? Mick e seu melhor amigo Andy, no sitiozinho isolado no meio da floresta? Ser gay num lugar como
Newton of Wemyss, no começo dos anos oitenta, não devia ser a coisa mais simples do mundo.
- É claro que passou pela minha cabeça - disse Karen. - Mas não podemos seguir teorias que não tenham absolutamente nenhum embasamento.
Ninguém com quem conversamos sequer sugeriu isso. E, acredite em mim, se Fife tem uma coisa em comum com Brokeback Mountain, é que as pessoas falam. Não me
leve a mal. Não estou descartando essa possibilidade. Mas até que eu tenha algo em que baseá-la, tenho que deixá-la no fim da fila.
- Parece justo - disse Phil, atacando sua comida novamente. - Mas você tampouco tem embasamento para sua ideia de que haja alguém enterrado debaixo de um
desmoronamento não natural.
- Nunca disse que havia alguém enterrado - disse Karen.
Ele sorriu.
- Eu conheço você, Karen. Não existe nenhuma outra razão para você ficar interessada numa pilha de pedras.
- Talvez sim - ela disse sem qualquer atitude defensiva. - Mas não estou simplesmente apostando em hipóteses malucas. Se existe um grupo de pessoas que sabe
tudo sobre usar detonação para derrubar rochas precisamente no ponto desejado, são os mineiros. E os detonadores também tinham acesso aos explosivos. Se eu estivesse
procurando alguém para explodir uma caverna, a primeira pessoa com quem falaria seria um mineiro.
Phil piscou.
- Acho que você precisa comer. Acho que está com baixo nível de açúcar no sangue.
Karen olhou feio para ele por um momento, então pegou a faca e o garfo e atacou a comida com seu entusiasmo normal. Depois de devorar alguns bocados, disse:
- Isso dará um jeito no baixo nível de açúcar. E ainda acho que descobri alguma coisa. Se Mick Prentice não sumiu por vontade própria, ele desapareceu porque
alguém o queria fora do caminho. Olhe só que coisa! Nós temos alguém que o queria fora do caminho! O que foi mesmo que Iain Maclean nos disse?
- Que Prentice descobriu que Ben Reekie estava metendo a mão no cofre do sindicato - disse Phil.
- Exatamente. Embolsando o dinheiro que deveria ir para a subseção do sindicato. Com base em tudo que ouvimos a respeito de Mick, ele não teria deixado passar
uma coisa dessas. E é difícil imaginar como ele poderia dar seguimento ao assunto sem envolver Andy, já que era ele quem mantinha os registros. Acho que não seria
da natureza deles se omitirem sobre
isso. Se o caso tivesse chegado ao conhecimento da comunidade, Reekie teria sido linchado, e você sabe disso. É motivação suficiente, Phil.
- Talvez. Mas se eram dois contra um, como foi que Reekie os matou? Como levou os corpos para dentro da caverna? Como conseguiu pôr as mãos em cargas explosivas
no meio de uma greve?
O sorriso amplo de Karen sempre conseguia desarmá-lo.
- Ainda não sei. Mas, se estiver certa, saberei mais cedo ou mais tarde. Isso eu lhe prometo, Phil. E experimente isso, como aperitivo: sabemos quando Mick
desapareceu, mas não temos a data exata para o desaparecimento de Andy. É totalmente possível que tenham sido mortos separadamente. Eles poderiam ter sido mortos
na caverna. E, quanto ao acesso aos explosivos, Ben Reekie era funcionário do sindicato. Haveria todo tipo de pessoa lhe devendo favores. Não finja que você não
sabe
disso.
Phil terminou seu peixe e afastou o prato. Ele ergueu as mãos, com as palmas voltadas para Karen, indicando rendição.
- Então, o que faremos agora?
- Limpamos aquelas pedras e vemos o que há por trás delas - ela disse, como se a resposta fosse óbvia.
- E como vamos fazer isso? No que diz respeito ao Biscoito, você nem sequer está trabalhando nesta investigação. E mesmo que ela fosse oficial, de jeito nenhum
ele iria esticar seu precioso orçamento para cobrir uma escavação arqueológica para procurar dois corpos que provavelmente não estão lá.
Karen parou com uma garfada de peito de pombo a meio caminho da boca.
- O que foi que você disse?
- Não há orçamento.
- Não, não. Você disse "uma escavação arqueológica". Phil, se não fosse por este pombo entre nós, eu lhe daria um beijo. Você é um gênio.
Phil sentiu um aperto no coração. Era difícil evitar a sensação de que aquela seria outra bela confusão na qual se meteria.
Kirhcaldy
Às vezes era mais sensato dar telefonemas profissionais da sua casa. Até que colocasse as coisas em andamento de fato, e tivesse definido seu argumento, Karen não
queria que Biscoito suspeitasse do que ela estava
fazendo. As palavras de Phil haviam detonado uma reação em cadeia em sua mente. Ela queria que limpassem o desmoronamento de pedras. As datas que Amold Haigh havia
lhe fornecido ofereciam a possibilidade de passar por cima do Biscoito sob o pretexto de uma possível conexão com o caso Grant, mas, quanto menos dinheiro ela gastasse,
menor seria a probabilidade de que ele fizesse perguntas demais.
Ela se acomodou na mesa de jantar com o telefone, um bloco de anotações e uma lista de contatos. Por mais à vontade que ficasse com novas tecnologias, Karen ainda
mantinha um registro em papel de nomes, endereços e telefones. Ela se precavia: se um dia o mundo resolvesse entrar em colapso eletrônico, ela ainda poderia encontrar
as pessoas de que precisasse. Naturalmente lhe ocorreu que, nesse caso, não haveria nenhum telefone que funcionasse e que o sistema de transportes também estaria
paralisado, mas, mesmo assim, sua agenda de contatos era como uma boia salva-vidas. E, se algum dia fosse necessário, seria muito mais fácil destruí-la sem deixar
traço do que qualquer memória eletrônica.
Ela o abriu na página apropriada e desceu o dedo pela lista até chegar à Dra. River Wilde. A antropóloga judicial havia sido uma das mentoras em um curso de que
Karen participara, voltado à melhoria da consciência científica dos detetives responsáveis por cenas de crimes. A julgar pela aparência, teria sido difícil encontrar
muita coisa em comum entre as duas mulheres, mas elas haviam formado uma conexão instantânea, ainda que improvável. Embora nenhuma das duas jamais o explicasse nestes
termos, tinha algo a ver com a maneira como ambas pareciam jogar segundo as regras, ao mesmo tempo que, sutilmente, solapavam a autoridade daqueles que não tivessem
conseguido ganhar seu respeito.
Karen gostava da forma como River nunca tentava ofuscar seus espectadores com a ciência. Fosse numa palestra para um grupo de policiais, cujo conhecimento científico
vinha da adolescência, ou compartilhando uma anedota no bar, ela conseguia transmitir informações complicadas em termos que um leigo pudesse entender e apreciar.
Algumas de suas histórias eram aterrorizantes; outras levavam os ouvintes ao riso descontrolado; outras, ainda, os faziam parar para pensar.
A outra coisa que transformava River numa grande aliada em potencial era o fato de o homem da sua vida ser policial. Karen não o havia conhecido,
mas por tudo que River lhe contara, ele parecia ser seu tipo de policial. Sem frescuras, apenas com um desejo objetivo de chegar diretamente ao cerne das coisas.
Portanto, ela havia voltado do curso de criminalística com maior compreensão de seu trabalho, e também com algo que parecia ser uma nova amizade. O que era suficientemente
raro a ponto de valer a pena alimentar. Desde então, as duas haviam se encontrado algumas vezes em Glasgow, o ponto central entre Fife e a base de River, em Lake
District. Haviam aproveitado muito suas noites fora, ocasiões em que cimentaram o que havia começado em seu primeiro encontro. Agora Karen descobriria se River tinha
falado sério quando oferecera seus alunos como uma opção econômica para trabalhos exploratórios que não pudessem, de fato, justificar grandes despesas de orçamento.
River atendeu o celular no segundo toque.
- Me tire daqui - ela disse.
- De onde?
- Estou sentada na varanda de uma cabana de madeira assistindo ao péssimo time de críquete de Ewan e rezando para que chova. O que a gente não faz por amor,
não?
O acaso podia ser uma coisa incrível.
- Pelo menos você não está preparando o chá para todos eles.
River fungou.
- Nem morta. Deixei isso bem claro, desde o início. Não lavo uniformes esportivos e não me escravizo na cozinha. Recebo um monte de olhares feios das outras
esposas e namoradas, mas, se elas acham que vou me incomodar, estão me confundindo com alguém que dá valor a essas coisas. E aí, como vão as coisas com você?
- Complicadas.
- Nenhuma novidade, então. Precisamos nos encontrar, sair uma noite. Para descomplicar um pouco.
- Para mim parece ótimo. E pode ser que o façamos antes do que você pensa.
- A-ha! Aí tem coisa.
- Podemos dizer que sim. Escute, lembra que uma vez você disse que tinha um pequeno exército de alunos à sua disposição, se eu algum dia precisasse de mão
de obra barata?
- Claro - disse River, com tranquilidade. - Está tentando fazer alguma coisa por baixo dos panos?
- Mais ou menos. - Karen explicou os elementos básicos da situação. River emitia ruídos de aprovação, enquanto ela falava.
- O.k. - ela disse, quando Karen terminou. - Então precisamos de arqueólogos criminais primeiro, de preferência os fortões que consigam carregar pedras. Não
posso usar alunos do último ano porque eles ainda estão fazendo os exames. Mas estamos quase no final do período e posso recrutar os do primeiro e segundo anos.
Além de quaisquer antropólogos que eu consiga arrumar. Posso chamar de trabalho de campo, fazê-los pensar que ganharão pontos com isso. Para quando você vai precisar
da gente?
- Que tal amanhã?
Houve um longo silêncio. Então, River perguntou:
- De manhã ou à tarde?
O telefonema para River deixou Karen acelerada, mas sem ter o que fazer. Ela aproveitou parte do repentino excesso de energia para encontrar acomodações para os
alunos que trabalhariam na escavação, nos campos litorâneos da vizinha Leven. Tentou assistir a um DVD da série Sex and the City, mas isso só serviu para deixá-la
irritada. Era sempre assim quando estava no meio de um caso. Não tinha apetite para mais nada além da caçada. Detestava ficar empacada porque era fim de semana,
ou porque testes levavam tempo, ou porque não se poderia fazer nada até que a próxima informação se encaixasse.
Ela tentou se distrair fazendo uma faxina. O problema era que ela nunca passava tempo suficiente em casa para bagunçá-la muito. Depois de uma hora de trabalho intenso,
não havia mais nada que garantisse sua atenção.
- Ah, que se dane - ela murmurou, ao pegar as chaves do carro e ir em direção à porta.
Estritamente falando, as leis referentes à coleta de evidências forenses exigiam que ela não estivesse sozinha ao colher depoimentos de testemunhas. Mas Karen disse
a si mesma que apenas estaria complementando o que já tinha, e não obtendo novas provas. E se ela se deparasse com alguma coisa que pudesse ser relevante mais tarde,
no tribunal, sempre poderia
enviar um par de policiais posteriormente para tomar um depoimento formal.
A viagem de carro de volta a Newton of Wemyss levou menos de vinte minutos. Não havia sinal de vida no enclave isolado em que vivia Jenny Prentice. Não havia crianças
brincando; ninguém sentado nos jardins, curtindo o sol de fim de tarde. A estreita plataforma formada pelas casas tinha um ar de desânimo que precisaria de mais
do que um pouco de verão para dispersar.
Dessa vez, Karen foi à casa vizinha à de Jenny Prentice. Ela ainda estava tentando obter uma imagem de como Mick Prentice havia realmente sido. Alguém que fosse
próximo o bastante da família para cuidar de Misha devia ter tido algum tipo de contato com seu pai.
Karen bateu à porta e esperou. Estava a ponto de desistir e voltar para o carro quando a porta se entreabriu, presa pela corrente de segurança. Um rostinho murcho
a espreitou, sob uma massa de cachos de cabelo grisalho.
- Sra. McGillivray?
- Eu não a conheço - disse a velha.
- Não. - Karen pegou sua identificação oficial e a segurou diante das lentes sujas dos óculos enormes da mulher, que faziam seus olhos azuis esmaecidos parecerem
maiores. - Sou da polícia.
- Não chamei a polícia - disse a mulher, inclinando a cabeça e franzindo a testa para a credencial de Karen.
- Não, eu sei disso. Só queria ter uma palavrinha com a senhora sobre o homem que morava na casa ao lado. - Karen indicou com o polegar a casa de Jenny.
- Tom? Ele já morreu há anos.
Tom? Quem era Tom? Ah, merda, ela havia se esquecido de perguntar a Jenny sobre o padrasto de Misha.
- Não, não o Tom. Mick Prentice.
- Mick? Você quer falar sobre o Mick? O que a polícia quer com Mick? Ele fez alguma coisa errada? - Ela parecia confusa, o que encheu Karen de maus pressentimentos.
Ela já havia passado tempo suficiente tentando tirar informações coerentes de pessoas idosas para saber que podia ser uma luta difícil e de resultados duvidosos.
- Não é nada disso, Sra. McGillivray - Karen garantiu a ela. - Só estamos tentando descobrir o que aconteceu com ele, desde que desapareceu.
- Ele decepcionou a todos nós, foi isso que aconteceu - a velha disse num tom ríspido.
- Certamente. Mas preciso apenas esclarecer alguns detalhes. Será que eu poderia entrar e ter uma conversinha com a senhora?
A mulher exalou ruidosamente.
- Tem certeza de que você bateu na casa certa? É a Jenny que você quer. Não há nada que eu possa lhe contar.
- Para ser sincera, Sra. McGillivray, estou tentando ter uma ideia de como Mick era realmente. - Karen usou seu melhor sorriso. - Jenny é um pouquinho parcial,
se é que a senhora me entende.
A velha deu uma risadinha.
- Ela é uma bruxa, a Jenny. Ela não tem nada de bom a dizer sobre ele, não é mesmo? Bem, moça, é melhor você entrar.
Um ruído da corrente que se abria e, então, Karen foi admitida no interior abafado. Havia um cheiro avassalador de lavanda, com toques de gordura rançosa e de cigarros
baratos. Ela seguiu a figura encurvada da Sra. McGillivray até o cômodo dos fundos, cuja parede havia sido derrubada para se fazer uma copa. Parecia que a obra tinha
sido feita nos anos setenta e nada fora mudado desde então, nem mesmo o papel de parede. A luz direta do sol, a preparação de alimentos e a fumaça dos cigarros haviam
deixado como testemunhas inúmeras descolorações e manchas. O sol baixo se infiltrava, lançando uma luz dourada nos móveis gastos.
Um periquito engaiolado matraqueou, assustado, quando elas entraram.
- Fique quietinho, Jocky. Esta é uma policial simpática que veio conversar com a gente. - O periquito soltou uma série de gorjeios que davam a impressão que
ele as estava xingando e, então, acalmou-se. - Sente-se. Vou colocar água para ferver.
Karen não queria realmente uma xícara de chá, mas sabia que a conversa fluiria melhor se deixasse a mulher servi-la. No fim, encararam uma a outra sobre uma mesa
surpreendentemente limpa, com um bule de chá e um prato de biscoitos - obviamente feitos em casa - entre elas. O sol iluminava a Sra. McGillivray como uma luz de
palco, revelando detalhes da maquiagem que havia sido claramente feita sem a ajuda dos óculos.
- Ele era um rapaz adorável, o Mick. Um moço lindo, com aquele cabelo louro e ombros largos. Sempre tinha um sorriso e uma palavra alegre
para mim - ela confidenciou enquanto servia chá em xícaras de porcelana tão fina que se podia ver a luz do sol batendo no líquido. - Sou viúva já há trinta e dois
anos, e nunca tive um vizinho melhor do que o jovem Mick Prentice. Ele sempre fazia qualquer trabalhinho que eu não conseguisse fazer. Nunca parecia se incomodar
comigo. Um rapazinho adorável, sem dúvida alguma.
- Deve ter sido difícil para eles, a greve. - Karen se serviu de um dos biscoitos recheados.
- Foi difícil para todo mundo. Mas não foi por isso que Mick fugiu.
- Não? - Mantenha o tom despreocupado, não demonstre que está particularmente interessada.
- Foi ela que o levou a fazer isso. Encontrando-se com aquele Tom Campbell bem debaixo do nariz dele. Nenhum homem toleraria isso, e Mick tinha lá seu orgulho.
- Tom Campbell?
- Ele nunca estava muito longe da casa. Jenny tinha sido amiga da mulher dele. Ela ajudou a cuidar da pobre coitada quando teve câncer. Mas depois que ela
morreu, parecia que ele não conseguia ficar longe de Jenny. Só se podia especular o que vinha acontecendo durante todo aquele tempo. - A Sra. McGillivray
deu uma piscadela conspiradora.
- A senhora está dizendo que Jenny estava tendo um caso com Tom Campbell? - Karen mordeu a língua para não fazer as perguntas que realmente queria, mas que
sabia que seria melhor deixar para depois. Quem era Tom Campbell? Onde ele está agora? Por que Jenny não o mencionou?
- Não vou dizer aquilo que não posso jurar. Tudo que sei é que não havia um diá em que ele não viesse fazer uma visita. E sempre quando Mick estava fora.
Tampouco vinha de mãos vazias. Pequenos embrulhos disto, pacotes daquilo. Durante a greve, Mick dizia que Jenny podia fazer uma libra render mais do que qualquer
outra mulher em Newton. Eu nunca contei a ele o porquê.
- E como é que Tom Campbell tinha coisas para dar? Ele não era mineiro, então?
A Sra. McGillivray fez uma careta, como se o chá que tinha acabado de tomar houvesse se transformado em vinagre.
- Ele era auxiliar de mina. - Karen desconfiava que a palavra "pedó-filo" teria sido pronunciada com mais respeito do que aquilo.
- E a senhora acha que Mick descobriu o que estava se passando entre eles?
Ela assentiu enfaticamente.
- Todo mundo em Newton sabia das coisas. É a história de sempre. O interessado é sempre o último a saber. E se alguém ainda tivesse dúvidas, Tom Campbell
se mudou para lá bem rápido, depois que Mick foi embora.
Tarde demais, Karen se lembrou de que não havia dado seguimento ao assunto do padrasto de Misha.
- Ele se mudou para a casa de Jenny?
- Alguns meses se passaram, antes que ele se mudasse. Para manter as aparências, pelo que me consta. E então ele se instalou no território do Mick.
- Ele não tinha sua própria casa? Com o salário de um auxiliar, eu pensaria que...
- Ah, sim, ele tinha uma bela casa em West Wemyss. Mas Jenny não quis se mudar. Ela disse que era pelo bem da criança. Que a partida de Mick já havia sido
agitação suficiente para Misha sem ela ter que ser arrancada de sua própria casa. - A Sra. McGillivray apertou os lábios e balançou a cabeça. - Mas você sabe, eu
sempre tive dúvidas. Acho que ela nunca amou Tom Campbell do jeito que amava Mick. Ela gostava do que ele podia oferecer a ela, mas acho que seu coração sempre pertenceu
a Mick. Apesar de todo o drama que ela fazia, nunca acreditei que Jenny tivesse deixado de amá-lo. Acho que ela ficou aqui porque, no fundo, acredita que ele irá
voltar um dia. E ela quer ter certeza de que ele saberá onde encontrá-la.
Era uma teoria, pensou Karen, baseada em sentimentalismo de novela. Mas tinha o mérito de dar sentido ao que, de outra forma, parecia inexplicável.
- Então, o que aconteceu com ela e Tom?
- Ele alugou sua casa e se mudou para a daqui ao lado. Nunca tive muito contato com ele. Ele não tinha o jeito de Mick para lidar com as pessoas. E as coisas
nunca foram tranquilas entre os rapazes da Lady Charlotte e os auxiliares de mina, principalmente depois que a mina foi fechada, em 1987. -A velha sacudiu a cabeça,
balançando os cachos grisalhos. - Mas Jenny acabou recebendo seu castigo. - Seu sorriso era de pura satisfação.
- Como assim?
- Ele morreu. Teve um ataque cardíaco fulminante no campo de golfe em Lundin Links. Deve fazer bem uns dez anos. E quando o testamento foi lido, Jenny teve
um choque e tanto. Ele havia deixado tudo em depósito para Misha. Ela recebeu tudo quando completou vinte e cinco anos, e Jenny nunca viu um tostão. - A Sra. McGillivray
ergueu sua xícara num brinde.
- Foi bem feito para ela, se você quer saber a minha opinião.
Karen não podia evitar concordar. Ela esvaziou sua xícara e afastou a cadeira.
- A senhora foi de muita ajuda - disse.
- Ele esteve aqui exatamente no dia em que Mick foi para Nottingham - disse a Sra. McGillivray. Foi o equivalente verbal de agarrar alguém pelo braço
para impedir que fosse embora.
- Tom Campbell?
- O próprio.
- Quando ele chegou? - perguntou Karen.
- Deve ter sido por volta das três da tarde. Eu gosto de ouvir a novela da tarde, no rádio, na sala da frente. Vi Tom subir pela entrada e ficar por ali,
esperando que ela voltasse para casa. Acho que Jenny tinha ido ao Serviço Social; ela tinha uns pacotes e latas, uma das entregas de comida que eles apanhavam lá.
- A senhora parece se lembrar com bastante clareza.
- Me recordo bem porque aquela manhã foi a última vez que vi Mick. Ficou gravado na minha cabeça. - Ela se serviu mais uma xícara de chá.
- Quanto tempo ele ficou? Tom Campbell, quero dizer.
A Sra. McGillivray balançou a cabeça.
- Nisso, eu não posso ajudar. Depois que terminou a novela, desci até o campo de golfe para tomar o ônibus para Kirkcaldy. Agora já não consigo mais fazer
isso, mas gostava de ir ao grande supermercado Tesco perto da estação rodoviária. Tomava o ônibus para ir e voltava de táxi. Então, não sei quanto tempo ele ficou.
- Ela tomou um longo gole do chá. - Algumas vezes fiquei me perguntando, sabe?
- O quê?
A velha desviou os olhos. Enfiou a mão no bolso de seu cardigã largo e tirou um maço de Benson & Hedges. Extraiu um cigarro e demorou um pouco para conseguir acendê-lo.
- Imaginava se ele não teria dado dinheiro a Mick.
- A senhora diz, dado dinheiro a Mick para que ele fosse embora da cidade? - Karen não pôde ocultar sua incredulidade.
- Não é uma ideia tão louca assim. Como eu disse, Mick tinha seu orgulho. Ele não teria ficado onde achasse que não o queriam. Então, se ele estava decidido
a ir embora de qualquer jeito, talvez tenha aceitado o dinheiro de Tom Campbell.
- Mas certamente ele teria amor-próprio demais para fazer isso, não?
A Sra. McGillivray exalou um fio de fumaça.
- De qualquer maneira, seria dinheiro sujo. Talvez o dinheiro de Tom Campbell parecesse um pouquinho mais limpo que o da comissão do carvão. E, além disso,
quando ele partiu, naquela manhã, não parecia que iria além da orla, para fazer suas pinturas. Se Tom Campbell lhe tivesse dado dinheiro, ele não precisaria voltar
para pegar roupas nem nada, não é?
- A senhora tem certeza de que ele não voltou para pegar suas coisas depois?
- Tenho. Confie em mim, não existem segredos nesta rua.
Os olhos de Karen estavam na velha, mas sua mente estava a mil por hora. Ela não acreditou, nem por um minuto, que Mick Prentice tivesse vendido seu posto no leito
conjugal para Tom Campbell. Mas talvez Tom Campbell houvesse desejado tomar aquele posto com intensidade suficiente para pensar numa forma de se livrar do rival.
Era nisso que tinha dado ir até lá só para conseguir um pouco mais de informações complementares. Karen reprimiu um suspiro e disse:
- Gostaria de mandar uns policiais para falar com a senhora na segunda-feira de manhã. Será que a senhora poderia repetir para eles o que acaba de me contar?
A Sra. McGillivray se animou.
- Seria um prazer. Eu poderia fazer uns pãezinhos doces.
Castelo de Rotheswell
Só porque estava presa em Rotheswell feito uma Rapunzel autoconfina-da não significava que Bel Richmond podia dar as costas para o resto do mundo. Ainda que estivesse
privada do acesso a Grant, ela não tinha por que ficar ociosa. Havia passado a maior parte do dia redigindo uma entrevista
para uma publicação no Guardian. Estava quase pronta, mas precisava de um certo distanciamento do texto antes de dar a polida final.
Uma visita à casa da piscina escondida no bosquezinho de pinheiros ali perto funcionaria bem, ela pensou, tirando o maiô da bolsa de roupas. Estava
cruzando o quarto quando o interfone da casa tocou.
A voz de Susan Charleson soou rápida e clara:
- Está ocupada?
- Estava indo dar um mergulho.
- Sir Broderick tem uma hora livre. Ele gostaria de continuar a sua entrevista de antecedentes históricos.
Estava claro que não havia espaço para discussão.
- Ótimo - suspirou Bel. - Onde o encontro?
- Ele a encontrará lá embaixo, no Land Rover. Ele achou que você gostaria de ver onde Catriona vivia.
Ela não podia se queixar daquilo. Qualquer coisa que acrescentasse cor à história valia a pena.
- Cinco minutos - ela disse.
- Obrigada.
Rapidamente, Bel trocou a roupa por jeans e uma jaqueta impermeável, agradecendo aos deuses estilistas pelo fato de as botas estilo construção estarem na moda e
permitirem que ela parecesse vagamente pronta para o campo. Apanhou seu gravador e correu para baixo. Um cintilante Land Rover Defender estava lá fora, em frente
à porta, com o motor ligado. Brodie Grant estava na direção. Mesmo a distância, ela pôde ver seus dedos enluvados tamborilando no volante.
Bel entrou no carro e lhe deu seu melhor sorriso. Ela não o havia visto desde a conversa bizarra com os policiais, no dia anterior. Tinha almoçado sozinha em seu
quarto, e, à noite, Judith dissera que ele estava em um jantar beneficente de alguma sociedade exclusivamente masculina. Ela parecera aliviada por ter escapado.
A conversa entre elas foi superficial; a própria Judith ou a sempre presente Susan a haviam desviado toda vez que o assunto ameaçasse se tornar de alguma maneira
revelador. Bel sentira-se frustrada.
Mas, agora que estava a sós com ele novamente, podia perdoar tudo aquilo. Cogitou perguntar a ele se realmente achava que poderia controlar
Karen Pirie como se fosse o lorde da mansão em um filme de mistério dos anos trinta, mas acabou reconsiderando. Melhor seria usar o tempo para complementar suas
informações sobre os antecedentes do caso.
- Obrigada por me levar à casa de Cat - ela disse.
- Não poderemos entrar - ele disse, soltando o freio de mão, contornando a casa por trás e descendo a trilha que passava no meio dos pinheiros.
- Já houve várias famílias locatárias desde então, você não estará perdendo nada, na verdade. Então, o que achou da inspetora Pirie?
Não havia nada em seu rosto ou voz que indicasse o que ele queria ouvir, então Bel se decidiu pela verdade.
- Acho que ela é uma dessas pessoas que são facilmente subestimadas - disse. - Desconfio que ela seja muito esperta.
- Ela é - disse Grant. - Imagino que você saiba que ela é a responsável pelo subchefe de polícia anterior deste distrito estar cumprindo pena de prisão perpétua
na cadeia. Um homem aparentemente acima de qualquer suspeita. Mas ela foi capaz de questionar sua probidade. E, uma vez que havia começado, não parou até ter deixado
claro, à prova de qualquer dúvida, que ele era um assassino cruel. E é por isso que a quero nesta investigação. Na época em que Catriona morreu, nós todos fomos
culpados por haver pensado nos moldes tradicionais. E olhe só no que deu. Se vamos ter direito a uma segunda tentativa, quero alguém que não siga o padrão estabelecido.
- Faz sentido - disse Bel.
- Então, sobre o que você quer conversar agora? - ele perguntou, guando saíram do meio das árvores para uma clareira que terminava com um muro alto e outros
portões duplos, como aqueles que Bel havia atravessado ao chegar. Estava claro que ninguém entrava na propriedade de Rotheswell a não ser que fosse bem-vindo. Grant
desacelerou o suficiente para que os guardas de segurança se certificassem de quem estava dirigindo o carro e, então, acelerou em direção à estrada principal.
- O que aconteceu depois? - ela perguntou, ligando o gravador e segurando-o entre eles. - Você recebeu a primeira exigência e começou a trabalhar em conjunto
com a polícia. Como foram as coisas depois disso?
Ele olhava para a frente de forma resoluta, não demonstrando qualquer sinal de emoção. Enquanto passavam por campos quadriculados de grãos
maduros e pasto, com o sol se ocultando e reaparecendo por trás das nuvens cinza, suas palavras jorraram num fluxo perturbador. Era difícil para Bel manter qualquer
tipo de distanciamento profissional. Morar com seu sobrinho Harry lhe dera suficiente percepção para imaginar prontamente a angústia de um pai na situação de Brodie
Grant. Essa compreensão gerava solidariedade o bastante para que ela o absolvesse de quase qualquer crítica.
- Nós esperamos - ele disse. - Nunca vi o tempo se arrastar tão lentamente quanto naquele momento.
Segunda-feira, 21 de janeiro de 1985; Castelo de Rotheswell
Para um homem que não tinha paciência nem para esperar que sua cerveja Guinness assentasse no copo, aguardar pelo contato do Pacto Anarquista da Escócia era uma
verdadeira tortura. Grant se movia por Rotheswell como uma bola de fliperama, quase que literalmente trombando em paredes e portas no seu esforço para não implodir.
Não havia sentido ou lógica em seus movimentos e, quando ele e a esposa se cruzavam, ele mal podia encontrar palavras para responder a suas perguntas ansiosas.
Mary parecia estar muito mais controlada, e ele quase chegou a se ressentir dela por isso. Ela havia ido ao sítio de Cat e informara, tanto para ele quanto para
Lawson, que, além da cadeira virada na cozinha, nada parecia estar fora do lugar. A data de vencimento do leite tinha sido no domingo, indicando que não fazia mais
de alguns dias, portanto, que ela havia desaparecido.
As noites eram piores do que os dias. Ele não dormia, apagava somente, quando a exaustão física superava suas forças. Então, despertava com um sobressalto, desorientado
e ainda cansado. Assim que retomava a consciência, desejava estar de novo inconsciente. Sabia que deveria estar se comportando de maneira normal, mas aquilo estava
além de sua capacidade. Susan cancelou todos os seus compromissos, e ele se enfurnou por trás das paredes de Rotheswell.
Na manhã da segunda-feira, ele estava, como nunca antes na vida, próximo de um colapso. O rosto que viu no espelho deveria estar num acampamento de prisioneiros
de guerra, e não no castelo de um milionário. Ele nem sequer se importava que as pessoas ao seu redor pudessem ver sua vulnerabilidade.
Tudo que queria era que o correio chegasse, trazendo algo concreto, algo que pudesse libertá-lo da impotência e lhe dar uma tarefa a realizar. Ainda que
fosse apenas levantar qualquer soma de dinheiro que os desgraçados estivessem exigindo de resgate. Se tivesse dependido dele, teria vigiado a central de distribuição
do correio em Kirkcaldy, abordado o carteiro como se fosse um bandoleiro à moda antiga, e exigido sua correspondência. Mas ele entendia a loucura daquilo. Em vez
disso, andava de um lado para o outro atrás da caixa postal, a fenda na porta pela qual as cartas do castelo cairiam, em algum momento, entre oito e meia e nove
da manhã.
Lawson e Rennie já estavam a postos. Haviam chegado em uma van de encanadores, vestidos de macacão, e entrado pelos fundos às oito horas da manhã. Agora estavam
sentados no vestíbulo da casa, impassíveis, esperando pelo correio. Mary, atordoada pelo tranquilizante que ele insistira que ela tomasse, estava sentada no degrau
inferior da escadaria, de pijama e roupão, os braços ao redor das pernas e o queixo apoiado nos joelhos. Susan se movia entre eles com chás e cafés, sua compostura
normal escondia só Deus sabia o quê. Grant certamente não tinha ideia de como ela havia mantido tudo em ordem nos últimos dias.
O rádio de Lawson emitiu ruidosamente uma mensagem incompreensível e, momentos depois, houve um barulho na caixa postal. O maço diário de cartas cascateou até o
chão, e Grant se atirou sobre elas como um homem faminto diante da promessa de comida. Lawson foi quase tão rápido quanto ele, agarrando o envelope grande de papel
manilha segundos depois que os dedos de Grant se fecharam sobre ele.
- Eu vou ficar com isto - ele disse.
Grant o arrancou dele.
- Não vai mesmo. Está endereçado a mim e você o verá na hora certa. - Ele o segurou junto ao peito e se levantou, afastando-se de Lawson e Rennie.
- Está bem, está bem - disse Lawson. - Vá com calma, senhor. Por que não se senta ao lado de sua esposa?
Para sua própria surpresa, Grant fez o que Lawson sugeria, abaixando-se na escada ao lado de Mary. Olhou fixamente para o envelope, subitamente não desejando descobrir
o que estavam a ponto de exigir dele. Então, Mary, como uma transfusão inesperada de força, pousou a mão no braço
dele. Ele rasgou a aba do envelope e sacou um calhamaço de papel. Desdobrando-o, viu que, desta vez, havia duas cópias do pôster do titereiro. Antes que pudesse
absorver as palavras escritas no quadro nos pés de cada um deles, viu a Polaroid. Tentou cobri-la, mas Mary foi mais rápida, estendendo a mão e tomando-a.
Dessa vez, a boca de Cat não estava coberta por fita adesiva. Sua expressão era raivosa e desafiante. Estava amarrada a uma cadeira por várias voltas de fita adesiva,
e a parede atrás dela era branca e lisa. Uma mão enluvada segurava a edição do Sunday Mail do dia anterior, na parte da frente da fotografia.
- Onde está Adam? - inquiriu Mary.
- Temos que supor que ele esteja aí. É um pouco difícil fazer um bebê posar para fotos - disse Lawson.
- Mas não há provas. Ao que tudo indica, ele poderia estar morto. - Mary cobriu a boca com a mão como se tentasse fazer retroceder suas palavras traiçoeiras.
- Não seja boba - disse Grant, colocando o braço em volta dela e injetando uma amabilidade artificial em sua voz. - Você sabe como Catriona é. De jeito nenhum
ela seria tão cooperativa se eles houvessem feito alguma coisa a Adam. Ela estaria urrando feito uma leoa e se atirando no chão, não sentada ali, toda obediente
e quieta. - Ele afagou seus ombros. - Vai ficar tudo bem, Mary.
Lawson esperou um momento e, então, disse:
- Podemos dar uma olhada nas mensagens?
Grant pestanejou e assentiu. Abriu o primeiro pôster sobre os joelhos e leu a mensagem, escrita com o mesmo hidrocor grosso que a anterior.
Abriu o primeiro poster sobre os joelhos e leu a mensagem, escrita com o mesmo hidrocor grosso que a anterior.
Queremos um milhão de libras. Duzentos mil em notas verdes e não inesquecíveis de 20 numa bolsa de viagem. O resto em diamante não lapidado. A entrega será feita
na quarta-feira à noite. Quando você entregar o resgate, terá um deles de volta. Você poderá escolher qual.
- Deus do céu! - disse Grant. Ele passou o pôster para Lawson, que havia calçado as luvas antecipadamente. A segunda folha não oferecia mais consolo.
Quando nós autenticamos os diamantes e lembramos que o dinheiro está a salvo, libertaremos o outro refém. Lembre-se, nada de polícia. Não tente trapassear. Sabemos
o que estamos fazendo e não temos medo de derramar sangue pela grana.
Pacto Anarquista da Escócia
- O que vocês já fizeram para rastrear essa gente? - exigiu Grant. - Quando vão encontrar a minha família?
Lawson manteve a mão aberta erguida enquanto analisava o segundo pôster. Passou-o para Rennie e disse:
- Estamos fazendo todo o possível. Entramos em contato com a Divisão Especial do MI5, mas nenhum deles tem qualquer conhecimento de um grupo ativista chamado
Pacto Anarquista da Escócia. Conseguimos que um datiloscopista e um analista de evidências fossem até o sítio de Catriona às escondidas, no sábado à noite. Por enquanto,
não temos nenhuma pista direta, mas estamos trabalhando nisso. Também enviamos um policial, que se fazendo passar por cliente perguntou por lá se alguém sabia quando
o ateliê de Catriona abriria. Conseguimos descobrir que ela, definitivamente, trabalhou na quarta-feira, mas ninguém pôde confirmar ter visto qualquer sinal dela
depois disso. Não recebemos nenhuma notícia de qualquer coisa fora do normal na área. Nenhum veículo ou comportamento suspeito. Nós...
- O que você está dizendo é que não tem nada e não sabe nada - Grant interrompeu, com brutalidade.
Lawson nem sequer piscou.
- Geralmente é assim, em casos de sequestro. A não ser que a captura ocorra num lugar público, há pouco em que se apegar. E quando há uma criança pequena
envolvida, é muito fácil controlar o adulto, não se tem, portanto, nem o tipo de luta física que geralmente gera evidências de criminalística. Normalmente, a entrega
do resgate é o ponto em que podemos fazer algum progresso real.
- Mas vocês não poderão fazer nada nesse ponto. Você não sabe ler? Eles vão manter um dos reféns até terem certeza de que não tentamos enganá-los - disse
Grant.
- Brodie, ambos estarão lá, na entrega - disse Mary. - Olhe, aqui diz que nós poderemos escolher um deles.
Grant bufou.
- E qual deles vamos escolher? É óbvio que escolheríamos Adam. O mais vulnerável. Aquele que não pode cuidar de si mesmo. Ninguém, em seu juízo perfeito,
deixaria um bebê de seis meses com um bando de terroristas anarquistas, se tiver escolha. Eles trarão Adam e deixarão Catriona para trás, onde quer que a estejam
mantendo presa. É o que eu faria, no lugar deles. - Ele olhou para Lawson buscando confirmação.
O policial se recusou a encontrar seu olhar.
- Essa é, certamente, uma possibilidade - ele disse. - Mas seja lá o que eles façam, nós temos opções. Podemos tentar segui-los. Podemos colocar um dispositivo
de rastreamento na bolsa do dinheiro e outro entre os diamantes.
- E se isso não funcionar? O que os impedirá de exigir mais dinheiro? - perguntou Grant.
- Nada. É totalmente possível que eles exijam um segundo resgate. - Lawson parecia profundamente perturbado.
- Então, pagaremos - disse Mary, calmamente. - Quero minha filha e meu neto de volta em segurança. Brodie e eu faremos qualquer coisa para conseguir isso.
Não é mesmo, Brodie?
Grant se sentia encurralado. Ele sabia qual deveria ser a resposta, mas estava surpreso por sua ambivalência. Ele pigarreou.
- É claro que sim, Mary. - Dessa vez, os olhos de Lawson se fixaram nos dele, e Grant achou que podia ter expressado sentimentos demais. Tinha de lembrar
o policial de que ele também tinha algo em jogo. - Assim como o Sr. Lawson, Mary, isso eu lhe prometo.
Lawson dobrou os pôsteres juntos e os colocou de volta no envelope.
- Todos nós estamos cem por cento comprometidos em recuperar Catriona e Adam com segurança - ele disse. - E a primeira coisa a ser feita é que vocês precisam
começar a tomar providências com seu banco.
- Meu banco? Você quer dizer que vamos dar a eles dinheiro de verdade? - Grant estava incrédulo. Se em algum momento havia pensado naquele assunto, deduzira
que a polícia tinha um lote de notas falsas marcadas para tais contingências.
- Seria muito perigoso, neste ponto, fazer diferente - disse Lawson. Ele olhava fixamente para o carpete, a imagem perfeita do embaraço. - Suponho que o senhor
tenha o dinheiro, não?
Sábado, 30 de junho de 2007; Newton ofWemyss
- O filho da puta descarado tentou parecer sem graça ao fazer aquela pergunta, mas eu podia ver que ele estava realmente gostando de me colocar em evidência
- disse Grant, pisando no acelerador conforme deixavam Coaltown of Wemyss para trás. - Não me leve a mal. Lawson nunca deu um passo em falso durante toda a investigação.
Não tenho nenhum motivo para suspeitar de que ele não estivesse totalmente comprometido em apanhar os desgraçados que pegaram Catriona e Adam. Mas eu podia ver que
havia uma parte dele que, secretamente, se regozijava por me ver castigado.
- E por quê? Você pensou sobre isso?
Grant desacelerou quando surgiu uma abertura no muro alto que eles vinham acompanhando com o carro.
- Inveja, pura e simplesmente. Não importa que nome se dê a isso: disputa entre classes sociais, machismo, provocação. No fundo, é sempre a mesma coisa. Existe
um monte de gente aí fora que se ressente do que eu tenho.
Ele saiu da estrada e entrou num acostamento amplo. A parede se adentrava em ambos os lados, convergindo para portões altos feitos de uma grossa treliça de madeira
pintada de preto, construída para se parecer a uma grade medieval. Conjugada ao muro, de um lado, ficava a fachada de uma casa de dois andares, construída dos mesmos
blocos de arenito vermelho local que o próprio muro. Cortinas de voile tapavam as janelas e nenhuma delas se moveu ao som do motor do Land Rover.
- E essas mesmas pessoas também se ressentiam de Catriona. Irônico, não? As pessoas supunham que Catriona tivera um começo de carreira profissional tão bom
por minha causa. Nunca perceberam que, na verdade, foi apesar de mim.
Ele desligou o motor e saiu do carro, batendo a porta atrás de si. Bel o seguiu, intrigada pelos insights que surgiam em sua mente, tanto os conscientes quanto os
inconscientes.
- E quanto ao senhor? A inveja que têm do senhor também é irônica?
Grant girou nos calcanhares e olhou para ela com raiva.
- Pensei que você tivesse feito sua pesquisa.
- E fiz. Sei que o senhor começou numa vila de mineiros em Kelty. Que construiu seu negócio do nada. Mas alguns trechos das reportagens e notícias dão a entender
que seu casamento não prejudicou exatamente sua ascensão meteórica.
Bel sabia que estava brincando com fogo, mas, se ia aproveitar ao máximo esse acesso exclusivo e utilizá-lo em algo que iria transformar completamente sua carreira,
precisava penetrar sob a superfície, para obter o material que ninguém mais houvesse sequer desconfiado existir, muito menos conseguido alcançar.
As sobrancelhas grossas de Grant se uniram em um olhar furioso e, por um momento, ela pensou que experimentaria a explosão destruidora de seu mau gênio. Mas algo
mudou na expressão dele. Ela podia ver o esforço que era necessário, mas ele conseguiu produzir um sorrisinho torto e deu de ombros.
- Sim, o pai de Mary tinha poder e influência em áreas que eram cruciais ao desenvolvimento do meu negócio. - Ele abriu os braços num gesto de desamparo.
- E, sim, casar com ela não me fez nada além de bem, no aspecto profissional. Mas aí é que está, Bel. A minha Mary era suficientemente esperta para saber que seria
extremamente infeliz se casasse com um homem que não a amasse. E foi por isso que ela escolheu a mim. - Seu sorriso murchou lentamente. - Eu nunca tive escolha,
nesse assunto. E também não tive escolha quando ela optou por me abandonar. - Abruptamente, ele se virou e caminhou a passos largos em direção aos portões pesados.
Sexta-feira, 23 de janeiro de 1987; Eilean Dearg
Eles passavam pouquíssimo tempo juntos, ultimamente. Aquele pensamento havia incomodado Grant em cada refeição que fizera em Rotheswell durante a semana toda. Café
da manhã sem ela. Almoço sem ela. Jantar sem ela. Houvera convidados; parceiros de negócios, políticos e, é claro, Susan. Mas nenhum deles era Mary. O tempo sem
ela havia chegado a um ponto crítico naquela semana. Ele não podia viver mais com aquela distância entre eles. Precisava dela tanto quanto sempre havia precisado.
Nada fazia com que a morte de Cat fosse mais fácil, no entanto Mary fazia com que fosse
suportável. E agora sua ausência, ainda mais naquele dia, era totalmente insuportável.
Ela havia saído na segunda-feira, dizendo que precisava ficar sozinha. Na ilha, ela teria a paz de espírito que desejava. Não havia empregados lá. Só levava vinte
minutos para caminhar pela ilha toda, mas estar no meio do mar, a alguns quilômetros dali, dava a sensação de distância de tudo e de todos. Grant gostava de ir lá
tanto para pensar como para pescar. Mary geralmente o deixava só, apenas ocasionalmente se unia a ele. Ela nunca havia ido para lá sozinha, pelo que se lembrava.
Mas estava decidida.
É claro que não havia linha telefônica. Tinha um celular no carro, mas este ficaria parado no estacionamento do hotel em Mull, a oitocentos metros do quebra-mar.
E, além disso, não haveria sinal de celular na vastidão das Hébridas. Ele nem sequer tinha ouvido sua voz desde que ela se despedira dele, na segunda-feira.
E agora já estava farto daquele silêncio. Ao completar dois anos do dia em que sua filha havia morrido e seu neto, desaparecido, Grant não queria estar a sós com
sua dor. Tentava não ser duro demais consigo mesmo por tudo que havia dado errado, mas a culpa, ainda assim, havia marcado seu coração. Às vezes se perguntava se
Mary também o culparia, se era por isso que ela se ausentava com tanta frequência. Ele tentara dizer a ela que as únicas pessoas que deveriam arcar com a culpa pela
morte de Catriona eram os homens que a sequestraram, mas mal conseguira convencer a si mesmo disso, muito menos a ela.
Ele havia partido logo após ter tomado o café da manhã mais cedo que o habitual; antes, telefonara para o hotel para certificar-se de que alguém estaria disponível
para levá-lo até sua ilha. Precisara sair da estrada algumas vezes e parar o carro, nos momentos em que o aperto da angústia em sua garganta havia ameaçado superar
seu controle. Chegara enquanto ainda havia uma leve claridade de sol no céu, mas, ao completar a travessia, o anoitecer já estava bem adiantado. Porém, o caminho
até a casa era amplo e bem cuidado, então ele não tinha receio de se perder.
Conforme Grant se aproximava, ficou surpreso em não ver luzes acesas. Quando costurava, Mary acendia uma quantidade de lâmpadas que deixaria qualquer iluminação
de teatro no chinelo. Talvez ela não estivesse costurando. Talvez estivesse sentada no solário nos fundos da casa, assistindo
aos últimos filamentos de luz no céu ocidental. Grant apressou o passo, recusando-se a reconhecer as garras do medo que se enterravam em seu peito.
A porta não estava trancada e se abriu, girando nas dobradiças bem lubrificadas. Ele estendeu a mão para acender a luz e o saguão surgiu em cores e formas vivas.
- Mary - chamou. - Sou eu. - O ar parado pareceu absorver suas palavras, impedindo-as de se propagar na distância.
Grant cruzou o saguão com passadas largas, abrindo as portas ao passar por elas, chamando o nome da esposa, sentindo o pânico apertar-lhe o crânio e colocar lágrimas
em seus olhos. Onde diabos ela estava? Não estaria lá fora. Não a esta hora da noite. Não com tanto frio.
Encontrou-a no solário. Mas ela não estava assistindo ao pôr do sol. Mary Grant nunca mais assistiria ao pôr do sol. Comprimidos espalhados e uma garrafa vazia de
vodca entregaram o segredo de seu silêncio. Sua pele já estava fria.
Sábado, 30 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Bel alcançou Grant perto das traves pesadas dos portões. De perto, ela podia ver que havia uma entrada menor em um dos portões, suficientemente grande para admitir
uma van pequena ou um carro grande. No outro lado, havia uma trilha sulcada que conduzia para dentro do bosque fechado.
- Ela deixou um bilhete - ele disse. - Ainda o tenho na memória. "Sinto muitíssimo, Brodie. Não posso mais fazer isso. Você merece algo melhor e eu não consigo
ser melhor. Não suporto ver a sua dor e não suporto a minha própria. Por favor, tente amar novamente. Rezo para que você consiga." - Seu rosto se retorceu num sorriso
amargurado. -Judith e Alec. Isso sou eu fazendo o que ela mandou. Você já ouviu falar da corrida de Iditarod?
Surpresa pela súbita mudança de assunto, Bel só pôde gaguejar:
- Sim. No Alasca. De trenós puxados por cães.
- Um dos maiores perigos que eles enfrentam é o que se chama de "gelo oco". O que acontece é que a água recua debaixo do gelo, deixando apenas uma película
fina sobre um bolsão de ar. De cima, a aparência é exatamente
a mesma que a do resto do campo de gelo. Mas se você colocar qualquer peso sobre a superfície, vai atravessá-la. E não poderá sair mais, porque as laterais
são de gelo sólido. A sensação de ter perdido Catriona, Adam e Mary, às vezes, é exatamente essa. Não sei quando o chão sob meus pés vai deixar de me suportar. -
Ele pigarreou e apontou para um pequeno galpão de madeira que mal era visível, nas margens do bosque. - Aquele era o ateliê e a loja de Catriona. Estava em melhores
condições, na época. Quando ela estava aberta, colocava algumas placas em cavaletes na beira da estrada. Deixava o portão interno aberto, o suficiente para que as
pessoas entrassem e saíssem, mas não para que passassem carros. Havia bastante espaço para que as pessoas estacionassem aqui fora. - Ele acenou com a mão indicando
o amplo lugar onde havia deixado o Land Rover. O assunto referente à sua primeira esposa estava claramente encerrado. Mas ele lhe havia fornecido um presente maravilhoso,
com a imagem do "gelo oco". Bel sabia que poderia transformar aquilo em algo notável.
Ela analisou o local.
- Mas, teoricamente, quem quer que a tenha sequestrado poderia ter aberto o portão o suficiente para passar com o carro. Então, eles teriam ficado praticamente
invisíveis, para quem olhasse da estrada.
- Foi o que a polícia pensou, inicialmente, mas as únicas marcas de pneu que eles acharam eram do carro da própria Catriona. Eles devem ter estacionado aqui
fora, onde o terreno é mais duro. Qualquer pessoa que passasse de carro na estrada os teria visto. Estavam assumindo um risco enorme.
Bel deu de ombros.
- Sim e não. Se eles estavam de posse de Adam, Cat faria o que mandassem.
Grant assentiu.
- Até mesmo uma mulher de gênio forte como minha filha teria colocado a segurança do filho em primeiro lugar. Não tenho dúvida nenhuma sobre isso. - Ele se
virou. - Ainda culpo a mim mesmo.
Parecia uma reação extrema, mesmo para alguém tão controlador quanto ele.
- Como assim? - Bel perguntou.
- Confiei demais na polícia. Deveria ter assumido mais responsabilidade pela forma como as coisas se desenrolaram. Eu me esforcei. Mas não o suficiente.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Castelo de Rotheswell
- Nós sabemos o que estamos fazendo - disse Lawson. Ele estava começando a parecer irritado, o que não deixava Grant muito confiante. - Podemos terminar com
isso esta noite.
- Você deveria ter colocado a área sob vigilância - disse Grant. - Eles podem já estar no local.
- Imagino que eles não sabem exatamente quando as correspondências são entregues - disse Lawson. - Se quisessem nos pegar de surpresa, teriam se entrincheirado
antes mesmo que recebêssemos a mensagem com as instruções. Portanto, não existe muita chance de que isso ocorra de fato.
Grant olhou fixamente para a foto de Polaroid daquela manhã. Dessa vez, Cat estava deitada de lado numa cama, com Adam estirado, de olhos bem abertos, a seu lado.
Novamente, o Daily Record fornecia prova de vida. Pelo menos com relação ao dia anterior.
- Por que lá? - ele perguntou. - É um lugar tão estranho. Não se pode fugir de lá rapidamente.
- Talvez seja por isso que o escolheram. Se eles não podem fugir rapidamente, o senhor também não pode. Eles ainda terão uma refém. Podem usá-la como barganha
para fazer com que o senhor mantenha distância até que eles voltem para o veículo - disse Lawson. Ele estendeu o mapa em grande escala que Rennie trouxera. O local
da entrega estava circulado em vermelho. - A Lady's Rock. Fica entre o antigo poço de mina em East Wemyss e a extremidade leste de West Wemyss. Os pontos mais próximos
aos quais eles podem chegar de carro ficam aqui, no início do bosque... - Lawson indicou no mapa. - Ou aqui. No estacionamento em West Wemyss. Se eu fosse eles,
não escolheria West Wemyss. Fica mais longe da estrada principal. Demora alguns minutos cruciais a mais até o entroncamento de estradas.
- Porém, dá mais opções, depois que você chega lá - ressaltou Grant.
- Em direção a Dysart ou a Boreland, em direção a Coaltown, ou descendo
pela Check Bar Road até Standing Stone, e depois é possível ir a praticamente qualquer lugar.
- Cobriremos todas as possibilidades - disse Lawson.
- Vocês não podem correr nenhum risco - disse Grant. - Eles terão o resgate. Pode ser que sacrifiquem a Cat para poderem escapar.
- O que o senhor quer dizer?
- Se eu fosse um sequestrador que tivesse o resgate nas mãos e percebesse que seus homens estavam atrás de mim, eu atiraria minha refém para fora do carro
- disse Grant, parecendo muito mais calmo do que se sentia.
- Vocês parariam para pegá-la, porque são civilizados. Eles sabem disso. Podem se dar ao luxo de apostar nessa possibilidade.
- Não vamos correr nenhum risco - disse Lawson.
Grant levantou as mãos, frustrado.
- Tampouco é essa a resposta certa. Vocês não podem manter a segurança em primeiro lugar numa situação como essa. Devem estar dispostos a correr riscos calculados.
Terão de agir conforme o momento. Não podem ser rígidos. Têm de ser flexíveis. Eu não cheguei ao topo da árvore sem correr riscos.
Lawson lançou a ele um olhar calculado.
- E se eu corro um risco que acho necessário e o tiro sai pela culatra? O senhor será o primeiro a pedir a minha cabeça?
Grant fechou os olhos por um momento.
- É claro que serei - ele disse. - Agora, tenho duas vidas e um milhão de libras em jogo aqui. Você precisa me convencer de que sabe o que está fazendo. Podemos
repassar tudo mais uma vez?
Sábado, 30 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu soube que a havia desapontado. Naquele instante mesmo, eu soube. - Grant suspirou fortemente. - Ainda assim, continuei acreditando que, se tudo desse
errado, alguém apareceria. Que alguém devia ter visto alguma coisa.
- O que não aconteceu. - Foi uma afirmativa direta.
- Não. Não aconteceu. - Ele se voltou e olhou para Bel. Sua expressão era de perplexidade. - Nunca apareceu ninguém. Não para falar sobre
o sequestro em si. Não para falar de onde eles foram mantidos em cativeiro. Nunca ninguém deu à polícia um único testemunho ocular crível. Ah, apareceram os malucos
de sempre. E pessoas telefonando de boa-fé. Mas, depois de investigadas, todas as informações foram desacreditadas.
- Isso parece estranho - disse Bel. - Normalmente há alguma coisa. Mesmo que seja apenas um desentendimento entre os criminosos.
- Também acho. A polícia nunca pareceu achar estranho. Mas eu sempre me perguntei como eles conseguiram fazer tudo sem que houvesse uma única testemunha.
Bel parecia pensativa.
- Talvez não tenha havido um desentendimento entre os criminosos porque eles não eram criminosos.
- O que você quer dizer?
- Ainda não tenho certeza - ela disse, lentamente.
Grant parecia frustrado.
- Esse é o problema desse caso. - Ele foi em direção ao Land Rover. - Ninguém nunca tem certeza de nada. A única coisa certa é que a minha filha está
morta.
Domingo, 1º de julho de 2007; East Wemyss
Karen nunca tivera uma opinião particularmente boa sobre os estudantes. Era uma das razões pelas quais ela havia optado por entrar para a polícia logo depois da
escola, a despeito das tentativas de seus professores de a convencerem a cursar uma faculdade. Ela não via o sentido em juntar quatro anos de dívidas, quando poderia
estar ganhando razoavelmente bem e fazendo um trabalho de verdade. Nada do que tinha visto da vida de seus antigos colegas de escola a fizera sentir que cometera
um erro.
Mas a equipe de River Wilde a estava obrigando a admitir que, talvez, nem todos os estudantes fossem preguiçosos amantes da boa vida. Eles haviam chegado pouco antes
das onze; descarregaram seus equipamentos e montaram os encerados e holofotes antes do meio-dia; e haviam organizado o serviço de pizzas, engolido a comida e começado
a difícil, mas delicada, tarefa de deslocar toneladas de pedras e cascalho manualmente. Depois que
estabeleceram um ritmo com as picaretas, espátulas, peneiras e escovas, River os deixou trabalhando e se uniu a Karen onde ela estava sentada, à mesa da sociedade
das cavernas, sentindo-se meio dispensável.
- Muito impressionante - disse Karen.
- Eles não saem muito - disse River. - Bem, pelo menos, não no sentido profissional. Estão excitados com a tarefa.
- Quanto tempo você acha que levará para limpar a obstrução?
River deu de ombros.
- Depende de até onde éla vai. É impossível adivinhar. Um dos meus alunos de pós-graduação, formado em Ciências Geológicas, diz que o arenito é notoriamente
imprevisível quando começa a se mover. Quando conseguirmos fazer uma abertura no topo, poderemos enfiar uma sonda. Isso nos dará uma ideia de até onde vai. Se atingirmos
espaço aberto, podemos enfiar uma câmera de fibra ótica. Então, teremos uma noção muito melhor sobre o que estamos enfrentando.
- Eu lhe agradeço muito por tudo isso - disse Karen. - Estou dando um tiro no escuro aqui.
- Foi o que imaginei. Você quer me colocar a par da história? Ou é melhor que eu não saiba?
Karen sorriu.
- Você é que está me fazendo o favor. É melhor que saiba a quantas anda o placar. - Ela repassou com River os pontos principais da investigação, aprofundando-se
nos aspectos dos quais River pedia mais detalhes. - O que você acha? - ela perguntou, por fim. - Acha que eu consigo fazer meu plano dar certo?
River estendeu a mão, balançando-a para indicar que as chances eram iguais.
- Seu chefe é muito inteligente? - ela perguntou.
- Ele é um imbecil - respondeu Karen. - Tem a esperteza de uma lesma em coma.
- Neste caso, pode ser que você tenha sorte.
Antes que Karen pudesse responder, uma figura familiar surgiu da claridade da entrada da caverna.
- Ué, não está faltando uma? - perguntou Phil, chegando à parte iluminada e puxando uma cadeira para sentar-se.
- Do que é que você está falando? - perguntou Karen.
- "Mais dores para a barreia, mais fogo para a panela" - ele respondeu. - Das bruxas de Macbeth. Ah, tudo bem, foi só ilusão de ótica. Desculpe, chefe. -
Ele estendeu a mão. - Você deve ser a Dra. Wilde. Tenho de confessar, achava que Karen fosse única, mas, aparentemente, estava enganado.
- Ele diz isso no bom sentido - disse Karen, virando os olhos. - Phil, você tem que aprender a ser simpático com mulheres desconhecidas. Principalmente aquelas
que conhecem dezessete maneiras não detectáveis de matá-lo.
- Como é que é? - disse River, aparentemente ofendida. - Conheço muito mais do que dezessete maneiras.
Quebrado o gelo, Phil pediu a River que explicasse o que sua equipe esperava conseguir. Ele ouviu atentamente e, quando ela terminou, olhou para os estudantes. Eles
já haviam feito uma depressão visível no canto superior, onde as pedras que haviam caído se encontravam com o teto.
- Sem querer ofender - ele disse -, mas espero que isso tudo seja uma grande perda de tempo.
- Você ainda tem esperança de que Mick Prentice esteja vivo e bem de saúde, cavando buracos na Polônia, como Iain Maclean sugeriu? - perguntou Karen, a voz
repleta de piedade.
- Preferiria isso a encontrá-lo debaixo destas pedras.
- E eu preferiria que meus números tivessem sido sorteados na loteria ontem à noite - disse Karen.
- Não há nada de errado com um pouco de otimismo - River disse gentilmente. Ela se levantou. - É melhor eu dar um pouco de exemplo prático. Telefonarei para
você se surgir alguma coisa.
Não houve dificuldade para encontrarem duas vagas de estacionamento na rua de Jenny Prentice. Phil seguiu Karen pelo caminho que levava à casa, resmungando baixinho
que o Biscoito ia ter um treco quando descobrisse sobre a enorme escavação de River.
- Está tudo sob controle - disse Karen. - Não se preocupe. - A porta se abriu abruptamente, e Jenny Prentice olhou para eles de forma
penetrante. - Boa tarde, Sra. Prentice. Gostaríamos de ter uma conversinha com a senhora. - Aço nos olhos e na voz.
- Sei, bem, eu não quero ter nenhuma conversa com vocês neste momento. Não é conveniente para mim.
- Mas é para nós - disse Phil. - A senhora quer fazer isso aqui, onde os vizinhos podem ouvir tudo? Poderíamos entrar, se a senhora preferir.
Outra figura surgiu por trás de Jenny. Karen não pôde deixar de ficar contente ao reconhecer Misha Gibson.
- Quem é, mãe? - ela perguntou e, então, percebeu. - Inspetora Pirie, você tem alguma novidade? - A esperança que surgiu em seus olhos foi como uma acusação.
- Nada concreto - disse Karen. - Mas você estava certa. Seu pai não foi para Nottingham com os fura-greves. O que quer que tenha acontecido com ele, não foi
isso.
- Então, se vocês não vieram trazer novidades, por que estão aqui?
- Temos duas perguntas a fazer à sua mãe - disse Phil.
- Nada que não possa esperar até amanhã - disse Jenny, cruzando os braços sobre o peito.
- Mesmo assim, não existe razão para não resolvermos isso hoje mesmo - disse Karen, sorrindo para Misha.
- Não vejo minha filha com frequência - Jenny disse. - Não quero desperdiçar o tempo que temos falando com vocês.
- Não vai demorar muito - disse Karen. - E também diz respeito a Misha.
- Vamos, mãe. Eles vieram até aqui, o mínimo que podemos fazer é convidá-los para entrar - disse Misha, afastando a mãe da posição que esta ocupava, na soleira
da porta. O olhar que Jenny lançou a eles poderia ter feito murchar almas mais frágeis, mas ela cedeu e se afastou, voltando para a sala na qual haviam conversado
na última vez.
Karen recusou o chá que Misha ofereceu, mal permitindo que mãe e filha se acomodassem antes de ir direto ao ponto.
- Na última vez que conversamos, a senhora não falou nada sobre Tom Campbell.
- E por que deveria? - Jenny não podia evitar que a hostilidade aparecesse em sua voz.
- Porque ele esteve aqui no dia em que seu marido desapareceu. E não pela primeira vez, inclusive.
- Por que ele não deveria estar aqui? Era um amigo da família. Ele foi muito generoso conosco durante a greve. - A boca de Jenny se fechou tão rigidamente
quanto uma ratoeira.
- O que está sugerindo, inspetora? - Misha parecia sinceramente confusa.
- Não estou sugerindo nada. Estou perguntando a Jenny por que ela nunca mencionou que Campbell esteve aqui naquele dia.
- Porque era irrelevante - disse Jenny.
- Quanto tempo depois do desaparecimento de Mick você e Tom começaram a ter um relacionamento? - A pergunta pairou no ar juntamente com as partículas de poeira
suspensas no ambiente.
- Você tem uma mente muito suja -Jenny disse.
Karen deu de ombros.
- Está registrado que ele se mudou para cá. Que vocês viviam juntos como família. Que no testamento ele deixou tudo para Misha. Tudo que estou perguntando
é quanto tempo se passou entre o desaparecimento de Mick e a entrada em cena de Tom.
Jenny lançou um olhar ininteligível à filha.
- Tom era um bom homem. Você não tem nenhum direito de vir aqui com suas insinuações e calúnias. Ele havia ficado viúvo fazia pouco tempo. Sua esposa era
minha melhor amiga. Ele precisava de amigos por perto. E, como ele era um auxiliar de mina, então a maioria dos homens não queria saber dele.
- Não estou discutindo nada disso - disse Karen. - Só estou tentando entender toda a situação. O fato de a senhora não me contar a história toda não me ajuda
a achar Mick. E então, quanto tempo demorou para que a senhora e Tom passassem da amizade para algo mais?
Misha fez um ruído impaciente.
- Diga o que ela quer saber, mãe. Caso contrário, ela simplesmente vai saber por outra pessoa. É melhor que seja por você do que da boca das doces esposinhas
daqui.
Jenny olhava firmemente para os próprios pés, observando os chinelos surrados, quase furados no dedão, como se a resposta estivesse escrita ali e ela não tivesse
os óculos adequados para ler.
- Nós dois estávamos nos sentindo sozinhos. Era como se tivéssemos sido abandonados. E ele era bom para nós, muito bom. - Houve uma longa pausa, então Misha
estendeu a mão para cobrir o punho cerrado da mãe. - Eu o convidei para a minha cama seis semanas contadas do dia que Mick nos abandonou. Teríamos morrido de fome
se não fosse por Tom. Nós dois estávamos procurando conforto.
- Não há nada de errado nisso. - As palavras gentis vieram, surpreendentemente, de Phil. - Não estamos aqui para julgar ninguém.
Jenny assentiu.
- Ele se mudou para nossa casa em maio.
- E ele era um excelente padrasto - disse Misha. - Não poderia ter sido melhor se fosse meu pai de verdade. Eu amava Tom.
- Nós duas o amávamos - disse Jenny.
Karen não podia evitar o pensamento de que ela estava tentando convencer a si mesma tanto quanto a eles. Ela se lembrava da afirmação da Sra. McGillivray de que
o coração de Jenny havia pertencido somente a Mick.
- A senhora alguma vez se perguntou se Tom teve algo a ver com a partida de Mick?
A cabeça de Jenny se ergueu abruptamente, seus olhos fuzilaram Karen.
- Que diabos está querendo dizer? Você acha que Tom fez alguma coisa com Mick? Você acha que ele deu sumiço no Mick?
- Me diga a senhora. Ele deu? - Karen estava tão implacável quanto Jenny estava eriçada.
- Você está completamente equivocada - Misha disse, em voz alta e desafiante. - Tom não machucaria uma mosca.
- Eu não falei nada sobre Campbell ter causado algum dano físico em Mick. Acho extremamente interessante que vocês duas tenham se precipitado a concluir que
era isso que eu queria dizer - continuou Karen. Jenny parecia desnorteada, e Misha, furiosa. - O que eu estava pensando era se Mick percebeu que havia alguma ligação
entre você e Tom. Pelo que tudo indica, ele era um homem orgulhoso. Talvez ele tenha decidido que seria melhor para todo mundo se ele desse lugar a um homem que
a senhora parecia preferir.
- Você está falando um monte de merda - Jenny acusou. - Não havia nada acontecendo entre mim e Tom naquela época.
- Não? Bem, talvez Tom tenha achado que poderia haver, se ele pudesse tirar Mick de campo. Ele tinha bastante dinheiro. Talvez tenha dado um dinheiro a Mick
para que ele fosse embora. - Era uma sugestão ultrajante, ela sabia. Mas o ultraje geralmente precipitava resultados interessantes.
Jenny tirou sua mão da de Misha e se afastou dela.
- Isto é culpa sua - ela gritou para a filha. - Eu não tenho de ficar escutando isso. Na minha própria casa, ela se atreve a caluniar o homem que lhe deu
tudo. Olha só o que você nos arrumou, Michelle! Olha só o que você fez! - As lágrimas escorriam por seu rosto quando ela levou a mão para trás e bateu com força
no rosto de Misha.
Karen já estava de pé, mas não foi rápida o bastante. Jenny saiu da sala antes que qualquer pessoa pudesse impedi-la. Surpresa, Misha pressionou a mão em sua face
escarlate.
- Deixe-a - ela gritou. - Você já causou dano suficiente por um dia. - Ela recuperou o fôlego e se recompôs. - Acho que vocês deveriam ir embora -
disse.
- Sinto muito que as coisas tenham fugido ao controle - disse Karen. - Mas esse é o problema de se tirar a tampa da caixa. Você nunca sabe o que vai
saltar lá de dentro.
Segunda-feira, 2 de julho de 2007; Glenrothes
Simon Lees, o subchefe de polícia, olhou fixamente para o papel que Karen Pirie havia colocado à sua frente. Já o lera três vezes e ainda não fazia sentido. Ele
sabia que teria de pedir a ela que desse uma explicação e que, de alguma forma, ele terminaria em desvantagem. Era tão injusto. Logo cedo numa segunda-feira, e a
segurança de seu escritório já fora violada.
- Não estou totalmente seguro do motivo de estarmos pagando para que essa... - ele verificou o papel novamente, tentando afastar a suspeita de que Pirie poderia
estar se divertindo com uma pegadinha de mau gosto - Dra. River Wilde conduza um grupo de estudantes em uma "escavação criminalística" em uma caverna de East
Wemyss.
- Porque irá nos custar aproximadamente um décimo do que o departamento de criminalística nos cobraria. E eu sei o quanto o senhor valoriza o fato de conseguirmos
utilizar bem o dinheiro - disse Karen.
Lees pensou que ela sabia muito bem que não era aquilo que ele quisera dizer.
- Não estou me referindo às implicações orçamentárias - ele disse com irritação. - O que estou tentando entender é por que esse... - ele jogou as mãos para
o alto num gesto de frustração - espetáculo circense está acontecendo.
- Pensei que não deveria deixar pedra sobre pedra na minha investigação do sequestro de Catriona Maclennan Grant - Karen disse com doçura.
Será que ela estava zombando dele? Ou realmente não entendia o que havia acabado de dizer?
- Eu não estava falando literalmente, inspetora. Para que diabos vai servir isso tudo? - Ele sacudiu a requisição orçamentária para ela.
- Chegou ao meu conhecimento, no curso das minhas investigações, que havia ocorrido um desmoronamento um tanto incomum em uma das cavernas de Wemyss, em janeiro
de 1985. Digo incomum porque desde que a mina Michael fechou, em 1967, o terreno ficou estável e não houve outros desmoronamentos relevantes. - Karen saboreou o
olhar de confusão no rosto de Lees. - Ao investigar esse aspecto mais profundamente, descobri que o desmoronamento havia sido descoberto na quinta-feira, 24 de janeiro.
- E? - Lees continuava sem compreender.
- Foi o dia seguinte à morte de Catriona, senhor.
- Sei disso, inspetora. Estou a par do caso. Mas ainda não vejo o que o desmoronamento de um teto numa caverna obscura tenha a ver com a história. - Ele mexeu
no porta-retratos sobre a mesa.
- Bem, senhor, é o seguinte... - Karen se recostou na cadeira. - No que diz respeito às pessoas locais, as cavernas não são realmente obscuras. Todo mundo
sabe sobre elas. A maioria brincou dentro delas pelo menos uma vez, quando criança. Agora, uma das coisas que nunca descobrimos, na época, foi onde Catriona e Adam
ficaram presos em cativeiro. Nunca tivemos informações de testemunhas que os conectassem a qualquer local em particular. E comecei a pensar. Naquela época do ano,
as cavernas são bastante desertas. É muito frio para as crianças brincarem fora de casa e nunca há muita luz natural para tentar as pessoas a entrar além dos primeiros
metros de qualquer uma das cavernas.
Ainda que contra a vontade, Lees sentiu-se atraído por sua narrativa. Ela não fazia relatórios como os outros oficiais. Quase sempre isso o
deixava meio louco, mas, às vezes, como naquele dia, não podia resistir à sua exposição.
- Você está dizendo que as cavernas poderiam ter sido um esconderijo para os seqüestradores? Isso não é um pouco Enid Blyton* demais? - ele disse, tentando
assumir o controle da situação.
- Muito popular, a Enid Blyton, senhor. Talvez ela pudesse até ser considerada uma inspiração. De qualquer forma, a caverna em questão, a Thane's, tem um
portão de grades para impedir que as pessoas entrem, hoje em dia. Mas, naquela época, só havia uma cerca na passagem de acesso. Não era intransponível. A sociedade
das cavernas usava a Thane's como uma espécie de sede. Ainda usa, na verdade. A grade está lá só para desencorajar os exploradores eventuais. Portanto, entrar não
teria sido difícil para ninguém.
- Mas eles estariam como ratos numa ratoeira, se fossem encontrados - protestou Lees.
- Bem, tem outra coisa. Não podemos ter certeza absoluta disso. Sempre se falou sobre uma passagem que ligava o Castelo Macduff à caverna.
- Ah, pelo amor de Deus, inspetora. Você está usando drogas? Isso é loucura.
- Com todo respeito, senhor. Faz um certo sentido, sim. Sabemos que os seqüestradores fugiram da cena do crime num barco. Testemunhas policiais disseram,
na época, que o som era de um motor externo pequeno. Mas que, quando eles finalmente conseguiram sair com o helicóptero e começaram a varrer o local com o holofote,
não havia nem sinal de um barco pequeno ao redor da Lady's Rock. Agora, a maré estava alta naquela noite. E se eles simplesmente dispararam por alguns quilômetros
margem acima e esconderam o barco na caverna? Eles teriam conseguido entrar com um bote inflável, sem dúvida. Eles o abandonariam juntamente com o resto de seu acampamento
improvisado, então sairiam de lá, derrubando o teto atrás deles.
Lees balançou a cabeça.
- Parece uma mistura de O livro perigoso para garotos e Duro de matar. E como exatamente você acha que eles conseguiram a façanha de... - ele
* Escritora inglesa de literatura infanto-juvenil. Em seus livros, há geralmente um grupo de adolescentes envolvidos em aventuras e solucionando mistérios. (N.T.)
fez um gesto indicando aspas, o que, por alguma razão, irritava profundamente sua esposa - derrubar o teto atrás deles?
Karen deu um sorriso animado demais para o gosto dele.
- Não faço ideia, senhor. Com sorte, a equipe da Dra. Wilde poderá nos dizer. Tenho certeza de que encontraremos alguma coisa por trás daquele desmoronamento
que justificará toda essa despesa.
Lees segurou a cabeça com as mãos.
- Acho que você perdeu a cabeça, inspetora.
- Não importa - ela disse, levantando-se. - É o caso Brodie Grant. O senhor pode gastar praticamente quanto quiser. Esta é uma das únicas vezes em que ninguém
vai questionar o orçamento.
Lees podia sentir o sangue martelando em seus ouvidos.
- Você está de sacanagem comigo?
Imediatamente, ele se arrependeu da linguagem chula, mesmo porque ela parecia pensar que aquilo era, definitivamente, um avanço.
- Não, senhor - Karen disse sobriamente. - Estou levando esse caso muito a sério.
- Você tem uma maneira engraçada de demonstrar isso. - Lees bateu a palma das mãos na mesa. - Quero ver trabalho policial de verdade aqui, não um passeio
à Ilha do Tesouro. Está na hora de você escavar um pouco o passado. Está na hora de você ir conversar com Lawson. - Aquilo deixaria claro para ela quem era o chefe.
Porém, de alguma forma, ela já havia desativado sua pequena bomba.
- Fico feliz que pense assim, senhor. Marquei uma entrevista para... - ela consultou seu relógio - daqui a três horas. Pòrtanto, se o senhor não se importa,
vou sair para dar um gás e ir a Blue Toon.
- Perdão? - Por que as pessoas de Fife não podiam falar um inglês claro?
Karen suspirou.
- Vou dirigir até a cidade de Peterhead. Nós a chamamos de Blue Toon.
- Ela se encaminhou para a porta. - Sempre esqueço que o senhor não é daqui. - Ela deu uma olhadela por cima do ombro. - O senhor não entende muito a gente,
né?
Mas antes que ele pudesse responder, ela havia partido, deixando a porta completamente aberta. Como a vaca deixa aberta a porteira do estábulo,
ele pensou, com amargura, levantando-se para fechá-la com um estrondo. O que havia feito para merecer aquela maldita mulher? E como diabos iria conseguir sair
do caso Brodie Grant cheirando a rosas, se era obrigado a confiar na capacidade investigativa de uma mulher que achava que poderia ser interessante cavar uma maldita
caverna?
Campora, Toscana
Com uma sensação de alívio, Bel Richmond saiu da SS2, a rodovia de mão dupla traiçoeira que seguia em ziguezague pela Toscana, de Florença a Siena. Como sempre,
os motoristas italianos a tinham deixado apavorada, dirigindo rápido demais e colado demais, os retrovisores quase se tocando cada vez que passavam voando por ela
em curvas fechadas que pareciam deixar as estradas estreitas ainda menores. O fato de que ela estava num carro alugado apenas ampliava o desprazer. Bel se achava
uma motorista bastante boa, mas a Itália nunca deixava de abalar seus nervos. E, graças a esse último trabalho, ela já estava se sentindo suficientemente abalada,
muito obrigada.
Na noite de domingo, ela havia comido seu jantar numa bandeja, em seu quarto. Opção sua; ela fora convidada a se juntar aos Grant na sala de jantar, mas alegara
urgências profissionais. A realidade era muito mais prosaica, mas o egoísmo que a caracterizava tornava impossível admitir. Na verdade, Bel queria ficar sozinha.
Queria ficar à janela, fumando os cigarros Malrboro que Vivianne tanto a importunara para que largasse - o que fizera, supostamente, havia alguns meses. Queria assistir
a bobagens na TV e fofocar ao telefone com qualquer uma de suas amigas cuja ligação a fazia sentir-se melhor. Queria fugir para casa e jogar videogames violentos
no Playstation com Ilarry. Era sempre a mesma coisa quando ela se encontrava convivendo em ambientes fechados com os pivôs de suas histórias jornalísticas. Havia
um limite para o tanto de intimidade que ela conseguia suportar.
Mas o prazer de ficar sozinha tinha durado pouco. Mal começara a assistir ao primeiro episódio de uma nova série policial quando ouviu baterem à porta. Bel silenciou
a TV, pousou a taça de vinho e se levantou do sofá. Abriu a porta para se deparar com Susan Charleson, com uma pasta fina de plástico na mão.
- Desculpe-me por interromper - ela disse. - Mas, infelizmente, isto é urgente.
Disfarçando a má vontade que sentia, Bel deu um passo atrás e acenou para que ela entrasse.
- Entre - ela suspirou.
- Posso? - Susan indicou o sofá.
- Fique à vontade. - Bel se sentou no extremo oposto, deixando o maior espaço possível entre elas. Não tinha ido com a cara de Susan Charleson. Por trás da
eficiência glacial, não havia nada para compartilhar, nenhuma centelha de calor fraternal sobre o qual construir a conspiração de uma amizade. - Em que posso ajudá-la?
Susan inclinou a cabeça e deu um sorrisinho torto.
- Você já deve ter percebido que Sir Broderick é dado a tomar decisões repentinas, as quais ele espera que o resto do mundo transforme em realidade.
- É uma forma de expressar - disse Bel. Acostumado a conseguir o que quer poderia ser mais adequado. - Então, o que foi que ele decidiu que precisa de mim?
- Você também é bastante rápida no gatilho - disse Susan. - É provavelmente por isso que ele gosta de você. - Ela dirigiu a Bel um olhar calculado. - Ele
não gosta de muitas pessoas. Quando gosta, nos recompensa muito bem.
Bajulação e suborno, os gêmeos pervertidos. Graças a Deus, ela havia atingido um ponto em sua carreira em que conseguia se alimentar e se vestir sem precisar se
curvar diante de presentes envenenados.
- Faço as coisas porque elas me interessam. Se não me interessarem, não irei fazer direito, então nem faz muito sentido, na verdade.
- É justo. Ele gostaria que você fosse à Itália.
O que quer que estivesse esperando, não era aquilo.
- Por quê?
- Porque ele acha que a polícia italiana não tem nenhum interesse no caso e, portanto, não irá se esforçar muito nele. Se a inspetora Pirie for até lá ou
enviar alguém de sua equipe, ela ficará limitada pela língua e por ser alguém de fora. Ele acha que você conseguiria se sair melhor, já que fala italiano. Além disso,
você acabou de voltar de lá e deve ter mantido contato com as pessoas locais. Não com a polícia, é óbvio. Mas com as pessoas da região, que podem de fato saber alguma
coisa a respeito do que vem acontecendo naquela villa em ruínas. - Susan sorriu para ela. - Se tudo falhar,
pelo menos você conseguiu uma viagem, com todas as despesas pagas, de volta à Toscana.
Bel não precisou pensar no assunto por muito tempo. Aquela era, provavelmente, a única chance que teria de obter novas informações junto à polícia.
- Como você sabe que eu falo italiano? - ela procurou ganhar tempo, não querendo parecer fácil demais.
Um sorriso frio.
- Não são só os jornalistas que sabem pesquisar.
Você pediu.
- Quando ele quer que eu vá?
Susan lhe entregou a pasta.
- Há um voo para Pisa às seis da manhã de amanhã. Você tem reserva nele, e há um carro alugado à sua espera no aeroporto. Não reservei hospedagem... achei
que você preferiria definir isso pessoalmente. Você será, obviamente, reembolsada.
Bel estava surpresa.
- Às seis da manhã?
- É o único voo direto. Já fiz o seu check-in. Você será levada de carro até o aeroporto. Leva apenas quarenta minutos, a essa hora da manhã...
- Sim, está bem - disse Bel, impaciente. - Você tinha certeza absoluta de que eu iria concordar.
Susan colocou a pasta sobre o sofá entre elas e se levantou.
- Era uma aposta bastante certeira.
Portanto, ali estava ela, sacolejando por uma estradinha de terra no Vai d'Eisa, passando por campos de girassóis dramaticamente floridos, com o batimento quente
da excitação pulsando em sua garganta. Ela não sabia se o nome de Brodie Grant abriria portas na Itália tão facilmente quanto na Escócia, mas tinha uma secreta desconfiança
de que ele saberia exatamente como manipular a corrupção que perpassava tudo por ali. Não havia nada na Itália, atualmente, que não pudesse ser reduzido a uma transação.
Exceto a amizade, é claro. E, graças a isso, pelo menos tinha um teto sobre a cabeça. A villa, obviamente, estava fora de cogitação. Não por causa do custo - tinha
certeza que poderia ter feito Brodie Grant pagar por tudo -, mas porque era alta temporada na Toscana. Mas ela estava com sorte. Grazia e Maurizio haviam transformado
um de seus velhos celeiros em
apartamentos para turistas e o menor deles, um quarto com uma varanda minúscula, estava disponível. Quando ela telefonara do aeroporto, Grazia insistiu que não cobraria
nada pela hospedagem. Bel precisara de quase dez minutos para explicar que outra pessoa estaria pagando suas despesas, então Grazia deveria cobrar ainda mais, tanto
quanto ela quisesse.
Bel saiu da estrada para uma vereda esburacada ainda mais estreita, que serpenteava em meio a uma floresta de carvalhos e castanheiras. Após pouco mais de um quilômetro
e meio, ela emergiu em um pequeno platô com um jardim de oliveiras e um campo de milho. No extremo oposto havia um agrupamento de casas atrás de uma placa pintada
à mão que dizia: Boscolata. Bel percorreu as curvas acentuadas e foi em frente, de volta às árvores. Ao contornar a segunda curva depois da Boscolata, diminuiu a
velocidade e olhou, em meio aos arbustos, para a villa em ruínas onde aquela trajetória toda havia se iniciado. Não havia nada que demonstrasse haver qualquer coisa
de interesse ali, a não ser um pedaço de fita adesiva vermelha e branca amarrada de qualquer jeito no portão. A isso se resumia a investigação policial italiana.
Mais cinco minutos dirigindo por caminhos tortuosos e Bel estacionou no pátio do sítio de Grazia. Um cão de caça marrom-claro de orelhas caídas e focinho rosado
se remexia na ponta de sua corrente, latindo com toda a pompa de um cão que sabe que ninguém chegará perto o suficiente para ser mordido. Antes que Bel pudesse abrir
a porta, Grazia apareceu na escada da varanda, limpando as mãos no avental e franzindo o rosto num amplo sorriso.
Os cumprimentos calorosos e sua acomodação no quarto cuidadosamente mobiliado levaram meia hora e deram a Bel a vantagem de ajudá-la a recuperar os ritmos da linguagem.
As duas mulheres se sentaram para tomar uma xícara de café na cozinha escura de Grazia, as grossas paredes de pedra mantendo o calor sob controle, como haviam feito
durante centenas de anos.
- E agora, você precisa me contar por que já está de volta, tão cedo - disse Grazia. - Você falou que tem algo a ver com trabalho?
- Mais ou menos - respondeu Bel, obrigando seu italiano a entrar no ritmo. - Me diga uma coisa: você notou algo lá na villa em ruínas, ultimamente?
Grazia olhou desconfiada.
- Como você sabe disso? Os carabinieri estiveram lá na sexta-feira. Eles deram uma olhada, depois foram falar com as pessoas da Boscolata. Mas o que isso
tem a ver com você?
- Quando estivemos aqui de férias, fui explorar a antiga villa. Encontrei uma coisa lá que se relaciona a um crime não solucionado na Inglaterra. Um caso
de vinte anos atrás.
- Que tipo de crime? - Grazia parecia ansiosa. As juntas inchadas de suas mãos se moviam sem descanso sobre a mesa.
- Uma mulher e seu bebê foram sequestrados. Mas algo deu errado quando o resgate foi entregue. A mulher foi morta e nunca descobriram o que aconteceu com
a criança. - Bel estendeu as mãos e deu de ombros. Por alguma razão, aqueles gestos vinham mais naturalmente quando ela falava italiano.
- E você descobriu algo aqui relacionado a isso?
- Sim. Os seqüestradores se autodenominavam anarquistas e faziam suas exigências por intermédio de pôsteres. Encontrei um pôster exatamente igual na antiga
villa.
Grazia balançou a cabeça, espantada.
- O mundo está ficando cada vez menor. Então, quando é que você foi falar com os carabinieri?
- Não fui. Não achei que acreditariam em mim. Ou, se acreditassem, que não estariam interessados em algo que aconteceu lá no Reino Unido há vinte e poucos
anos. Esperei até voltar para casa, então fui falar com o pai da mulher sequestrada. Ele é um homem muito rico, um homem poderoso. O tipo de pessoa que faz as coisas
acontecerem.
Grazia deu uma risadinha amarga.
- Seria preciso um homem assim para fazer os carabinieri levantarem a bunda da cadeira e virem de Siena até aqui. Isso explica por que eles estavam tão interessados
em quem vinha morando na villa.
- Sim. Parece que alguns posseiros estavam morando ali.
Grazia assentiu.
- A villa pertencia a Paolo Totti. Ele morreu há, talvez, uns doze anos. Um homem tolo, extremamente vaidoso. Gastou todo o seu dinheiro comprando uma casa
enorme para impressionar a todos, mas não tinha o suficiente para cuidar do lugar como merecia. E, então, ele morreu sem deixar
testamento. Sua família vem brigando pela propriedade desde então. A coisa se arrasta nos tribunais e, a cada ano que passa, a villa se deteriora um pouco mais.
Ninguém da família faz nada para consertá-la, pois podem terminar sem ganhar nada. Pararam de vir aqui há anos. Às vezes, portanto, algumas pessoas se mudam para
lá por um tempo. Ficam durante um verão e depois vão embora. Mas o último grupo, eles ficaram mais tempo.
- Grazia terminou o café e se levantou. - Tudo que sei são fofocas, mas iremos até a Boscolata e poderemos conversar com meus amigos de lá. Eles vão lhe contar
muito mais do que contaram àqueles carabinieri mandões.
Peterhead, Escócia
Karen observou James Lawson conforme ele ia se aproximando. Não estavam mais ali a postura altiva, a cabeça erguida e as costas retas. Seus ombros estavam curvados,
os passos eram curtos e rígidos. Três anos na prisão haviam acrescentado dez anos à sua aparência. Ele se assentou na cadeira do outro lado da mesa, ajeitando-se
nervosamente, até que, enfim, acomodou-se. Uma pequena tentativa de controlar algum aspecto da entrevista, pensou ela.
Então, ergueu os olhos. Ele ainda tinha o olhar fixo e penetrante de policial, os olhos ardentes, o rosto feito pedra.
- Karen - ele disse, reconhecendo sua presença com um minúsculo gesto da cabeça. Seus lábios, pálidos e azulados, estavam apertados numa linha fina.
Ela não via sentido em perder tempo com conversa fiada. Não havia nada a dizer que não levasse diretamente à recriminação e à amargura.
- Preciso da sua ajuda - ela disse.
A boca de Lawson se relaxou numa expressão de escárnio.
- Quem você pensa que é? Clarice Starling? Teria que perder uns quilos antes de dar uma de Jodie Foster.
Karen lembrou a si mesma que Lawson havia feito os mesmos cursos de técnicas de interrogatório que ela. Ele sabia tudo sobre tatear em busca das fraquezas do oponente.
Por outro lado, ela também sabia.
- Valeria a pena fazer dieta pelo Hannibal Lecter - ela disse. - Mas não por um policial caído em desgraça que jamais voltará a pescar trutas no lago Leven.
Lawson levantou as sobrancelhas.
- Mandaram você fazer algum curso de esperteza antes de prestar o exame de inspetora? Se a sua intenção é me engambelar, não está indo pelo caminho certo.
Karen balançou a cabeça, resignada.
- Não tenho nem tempo nem energia para isso. Não estou aqui para inflar seu ego. Nós dois sabemos como essas coisas funcionam. Você me ajuda, sua vida dentro
destas quatro paredes fica um pouquinho menos horrível por um tempo. Você me deixa falando sozinha e sua vida ficará ainda mais deprimente. Só depende de você, Jimmy.
- Pra você é Sr. Lawson.
Ela balançou a cabeça.
- Isso implicaria mais respeito do que você merece. E você sabe disso.
- Tendo defendido seu ponto de vista, ela evitaria chamá-lo de qualquer coisa. Podia ouvi-lo respirar com dificuldade pelo nariz, um silvo débil no final
de cada exalação.
- Você acha que conseguiria tornar minha vida ainda mais deprimente? - Ele olhou-a de forma penetrante. - Você não sabe da missa a metade. Eles me mantêm
isolado porque sou ex-policial. Você é a primeira visita que recebo este ano. Estou velho demais e feio demais para atrair qualquer pessoa. Não fumo e não preciso
mais de cartões telefônicos. - Ele deu uma risada ofegante, o catarro gorgolejava em sua garganta. - Como você acha que conseguiria piorar isso?
Ela respondeu com um olhar direto, inabalável. Sabia o que ele fizera e não havia espaço para pena ou compaixão por ele em seu coração. Ela não dava a mínima se
cuspiam na comida dele. Ou coisa pior. Ele a havia traído e a todos que trabalharam com ele. A maioria dos policiais que Karen conhecia estava na profissão por motivos
decentes. Faziam sacrifícios pelo trabalho, importavam-se que ele fosse realizado corretamente. Descobrir que um homem cujas ordens eles haviam seguido sem pestanejar
cometera um triplo homicídio havia abalado a moral no Departamento de Investigação Criminal. As fraturas ainda estavam se consolidando. Algumas pessoas ainda culpavam
Karen, argumentando que teria sido melhor deixar aquilo quieto. Ela não sabia como essas pessoas conseguiam dormir à noite.
- Me disseram que você usa muito a biblioteca - ela disse. Os olhos dele se desviaram. Ela soube que o havia encurralado. - É importante manter a mente ativa,
não? Caso contrário, você realmente pode enlouquecer. Ouvi falar que hoje é possível descarregar livros e músicas da biblioteca num pequeno reprodutor de MP3. Para
ouvir quando sentir vontade.
Ele olhou para longe, abrindo e fechando os dedos.
- Você ainda está trabalhando com casos arquivados? - A concessão das palavras parecia requerer uma energia que ele mal tinha para gastar.
- O departamento é meu agora. Robin Maclennan se aposentou. - Karen manteve um tom de voz neutro e o rosto impassível.
Lawson olhou por cima do ombro dela para uma parede vazia atrás de Karen.
- Eu era um bom policial. Não deixei muitos fios soltos para vocês, corvos carniceiros, retornarem - ele disse.
Karen olhou-o firmemente. Ele matara três pessoas e tentara culpar um homem vulnerável por dois assassinatos e, ainda assim, pensava em si mesmo como sendo um bom
policial. A capacidade dos criminosos de se iludirem nunca deixava de surpreender Karen. Ela achava incrível que ele pudesse ficar ali sentado, com aquela cara impassível,
depois das leis que havia infringido, das mentiras que tinha contado e das vidas que havia destruído.
- Você solucionou muitos casos - foi o melhor que conseguiu dizer. - Mas tenho algo que parece ser uma nova evidência num caso que ainda está aberto.
A expressão de Lawson não se alterou, mas ela sentiu um lampejo de interesse, quando ele se remexeu na cadeira.
- Catriona Maclennan Grant - ele disse, permitindo-se forçar um sorriso satisfeito. - Para você vir pessoalmente, teria de ser um assassinato. E esse é o
único assassinato não solucionado no qual atuei como investigador sênior.
- Nada de errado com sua capacidade de dedução - disse Karen.
- E então? Você finalmente encontrou alguma coisa para pegar o filho da puta, depois de todo esse tempo?
- Que filho da puta?
- O ex-namorado, é lógico... -A pele acinzentada de Lawson se enrugou enquanto ele escavava a memória à procura de detalhes. - Fergus Sinclair. Caseiro. Ela
havia rompido com ele, não queria que ele assumisse a paternidade do filho.
- Você acha que Fergus Sinclair a sequestrou e ao bebê? Por que ele faria isso?
- Para pôr as mãos na criança e em dinheiro suficiente para que os dois vivessem em grande estilo - disse Lawson, como se estivesse instruindo uma criancinha
sobre algo óbvio. - Então, ele a matou durante a entrega do resgate para que ela não pudesse denunciá-lo. Todos nós sabíamos que tinha sido ele, só não podíamos
provar.
Karen se inclinou para a frente.
- No arquivo não há nenhuma menção a isso - ela disse.
- É claro que não. - Lawson fez um ruído de desdém com a garganta.
- Cristo, Karen, você acha que éramos burros naquela época?
- Você não precisava revelar tudo para a defesa em 1985 - ela ressaltou. - Não havia nenhuma razão operacional pela qual não pudesse ter deixado uma mísera
indicação para quem viesse depois de você.
- Mesmo assim, nós não colocávamos no papel nada que não pudéssemos embasar com provas sólidas.
- É justo. Mas não existe nada no arquivo que sugira que você sequer o tivesse investigado. Nenhuma anotação sobre entrevistas nem gravações, nenhum depoimento.
A única menção no arquivo é um depoimento de Lady Grant dizendo que acreditava que Sinclair fosse o pai do filho de Catriona, mas que sua filha sempre havia se recusado
a confirmar a paternidade.
Lawson olhou para longe.
- Brodie Maclennan Grant é um homem poderoso. Nós todos estávamos de acordo, até o chefe de polícia. Nada iria para o arquivo se não pudéssemos confirmar
em cento e dez por cento. - Ele pigarreou. - Mesmo que achássemos que Sinclair fosse o suspeito óbvio, não queríamos assinar sua sentença de morte.
Karen abriu e fechou a boca. Seus olhos se arregalaram.
- Você achou que Brodie Grant mandaria matar Sinclair?
- Você não viu a dor dele depois da morte de Cat. Eu não duvidaria que ele fosse capaz disso. - Sua boca se fechou rigidamente, e ele olhou para ela de forma
desafiadora.
Karen tinha achado Brodie Grant um homem duro e movido pelo sucesso a qualquer preço, mas nunca havia passado por sua cabeça considerá-lo um potencial mandante de
assassinatos.
- Você estava enganado quanto a isso - ela disse. - Sinclair sempre esteve seguro. Grant não acha que ele teria coragem de fazer aquilo.
Lawson bufou.
- Ele pode dizer isso agora, mas, na época, era visível o ódio que sentia por aquele rapaz.
- E você investigou Sinclair a fundo?
Lawson assentiu.
- Ele parecia promissor. Não tinha nenhum álibi. Estava trabalhando no exterior. Áustria, acho que era. Administração de propriedades é o ramo dele. - Ele
franziu a testa novamente, coçando o queixo barbeado. Começou a falar lentamente, ganhando velocidade conforme a lembrança tomou forma. - Enviamos uma equipe até
lá para falar com ele. Não encontraram nada que o eximisse. Ele havia estado fora do trabalho, de férias, durante o período crucial: o sequestro, os pedidos de resgate,
a entrega do dinheiro e a fuga. E o cara que consultamos na escola de arte disse que o pôster enquadrava-se no estilo expressionista alemão, o que tinha relação
com o lugar onde ele estava morando.
Ele deu de ombros.
- Mas Sinclair disse que tinha ido esquiar nas férias. Viajando de uma estação de esqui a outra. Dormindo em seu Land Rover para economizar dinheiro. Ele
possuía os passes das estações de esqui de todas as datas relevantes, todos pagos em dinheiro. Não podíamos provar que ele não havia estado onde alegava. E, o mais
importante: não podíamos provar que ele houvesse estado onde achávamos que havia estado. Era nossa única pista real e não nos levou a lugar algum.
Segunda-feira, 21 de janeiro de 1985; Kirkcaldy
Lawson folheou a pasta novamente, como se pudesse encontrar alguma coisa que houvesse passado despercebida em exames anteriores. Ainda estava tristemente fina. Sem
levantar a cabeça, chamou o agente Pete Rennie, que estava no outro lado do escritório.
- Os caras da investigação do local do crime ainda não mandaram nada?
- Acabei de falar com eles. Estão trabalhando o mais rápido possível, mas não estão muito otimistas. Dizem que parecem estar lidando com
pessoas espertas o suficiente para não deixar pistas. - Rennie parecia, ao mesmo tempo, apologético e ansioso, como se soubesse que, de alguma forma, aquilo se tornaria
culpa dele.
- Babacas inúteis - Lawson resmungou.
Depois de sua excitação inicial provocada pela segunda mensagem dos seqüestradores, o dia havia sido de uma frustração crescente. Ele tivera de acompanhar Grant
ao banco, onde se reuniram com um funcionário graduado que, do alto de seu pedestal, anunciara que o banco tinha uma política de não cooperação com seqüestradores.
E isso fora antes que qualquer um deles pudesse dizer uma palavra sobre o motivo para o pedido de Grant. Eles precisaram conversar com um diretor do banco antes
de obter qualquer avanço.
Então, Grant o levara a um clube chique de cavalheiros em Edimburgo e o instalara numa poltrona, com uma generosa dose de uísque, a despeito de seus protestos por
estar de serviço. Quando o garçom colocou o drinque à sua frente, ele o ignorou e esperou que Grant dissesse em que estava pensando. Aquela era uma investigação
na qual Lawson estava ciente de que não deveria aparentar estar no comando.
- Eu tenho seguro contra sequestros, sabe? - Grant disse sem preâmbulos.
Lawson teve vontade de perguntar como funcionava, mas não quis parecer um caipira provinciano que não tinha ideia do que estava fazendo.
- Você conversou com eles?
- Ainda não. - Grant girou o malte dentro do copo de cristal. O forte cheiro do uísque flutuou num miasma que deixou Lawson levemente nauseado.
- Posso perguntar por que não?
Grant pegou um charuto e iniciou o processo minucioso de cortá-lo e acendê-lo.
- Você sabe como é. Eles vão querer participar da jogada. O preço do resgate será deixá-los comandar o show.
- E isso é um problema?
Lawson estava se sentindo um pouco desnorteado. Bebericou uísque e quase o cuspiu. Tinha o gosto do xarope para tosse que sua avó usava. Não parecia pertencer à
mesma família da dosezinha de Famous Grouse que ele saboreava em casa, ao pé da lareira.
- Estou preocupado que as coisas fujam do controle. Eles têm dois reféns. Se chegarem a desconfiar que preparamos uma armadilha, quem sabe o que serão capazes
de fazer? - Ele acendeu o charuto e apertou os olhos para olhar para Lawson através da fumaça. - O que preciso saber é se você está confiante de poder levar o assunto
a uma conclusão bem-sucedida. Será que preciso me arriscar com pessoas de fora? Você é mesmo capaz de recuperar minha filha e meu neto para mim?
Lawson sentiu a fumaça doce e nauseante em sua garganta.
- Acredito que sim - ele respondeu, perguntando-se se sua carreira seguiria o mesmo caminho do charuto.
E era nesse pé que eles haviam deixado as coisas. Portanto, ali estava ele agora, ainda em sua mesa, enquanto a tarde se arrastava inexoravelmente em direção à noite.
Nada estava acontecendo, exceto que suas palavras pareciam cada vez mais ingênuas. Ele olhou com raiva para Rennie.
- Você já conseguiu rastrear Fergus Sinclair?
Os ombros de Rennie se encurvaram, e ele se remexeu na cadeira.
- Sim e não - disse. - Descobri onde ele está trabalhando e conversei com o chefe dele. Mas ele não está por lá. O Sinclair, digo. Ele saiu de férias. Foi
esquiar, parece. E ninguém sabe onde.
- Esquiar?
- Saiu no seu Land Rover com o equipamento de esqui - disse Rennie, na defensiva, como se houvesse feito pessoalmente as malas de Sinclair.
- Então ele poderia estar em qualquer lugar?
- Suponho que sim.
- Inclusive aqui? Em Fife?
- Não existe nenhuma evidência disso. - A boca de Rennie pareceu deslizar para o lado, como se seu queixo tivesse acabado de se dar conta de estar sobre gelo
muito escorregadio.
- Você já foi às empresas aéreas? Aeroportos? Portos? Já pediu que eles verificassem as listas de passageiros?
Rennie desviou os olhos.
- Vou fazer isso agora mesmo.
Lawson apertou a base do nariz entre o polegar e o indicador.
- E entre em contato com o órgão emissor de passaportes. Quero saber se Fergus Sinclair entrou com algum pedido de passaporte para o filho.
Segunda-feira, 2 de julho de 2007; Peterhead
- Sempre estive convencido de que Sinclair estava envolvido de alguma forma. Não havia tantas pessoas assim que conheciam a rotina de Catriona tão bem a ponto
de capturá-la - disse Lawson, agora num tom defensivo.
Karen sentia-se perplexa.
- Mas e o bebê? Se ele fez tudo isso para pôr as mãos no filho, onde está Adam agora?
Lawson levantou os ombros.
- Essa é a pergunta de um milhão de dólares, não é? Talvez Adam não tenha sobrevivido ao tiroteio. Talvez Sinclair tivesse alguma mulher preparada para tomar
conta do bebê por ele. Se eu fosse você, daria uma olhada na vida dele atual. Veja se tem algum rapaz que bate com a idade de Adam. - Ele se recostou na cadeira,
cruzando as mãos no colo. - Então, você não descobriu nada significativo? Isto aqui é uma mera pescaria?
Ela pegou o pôster enrolado que havia encostado na sua cadeira e retirou o elástico que o prendia. Deixou-o se desenrolar com a frente virada para Lawson. Ele estendeu
a mão para pegá-lo e, então, deteve-se, dirigindo a ela um olhar interrogativo.
- Vá em frente - ela disse. - É uma cópia.
Lawson-abriu cuidadosamente o papel. Analisou o trabalho artístico em preto e branco, passando um dedo sobre o titereiro e suas marionetes; o esqueleto, a Morte
e o bode.
- Este é o pôster que os seqüestradores usavam para se comunicar com Brodie Maclennan Grant. - Ele apontou para o espaço em branco na parte inferior do pôster.
- Aqui, onde se colocariam os detalhes da apresentação, era onde as mensagens eram escritas. - Ele dirigiu a ela um olhar de resignação. - Mas você já sabe tudo
isso. De onde veio este?
- Apareceu em uma casa abandonada na Toscana. O lugar está caindo aos pedaços, está desabitado há anos. Segundo os moradores locais, houve posseiros chegando
e partindo. O último grupo se mandou na calada da
noite. Sem nenhum aviso, sem despedidas. Deixaram um monte de coisas para trás. Inclusive meia dúzia destes pôsteres.
Lawson balançou a cabeça.
- Não significa nada. Apareceram alguns pôsteres assim ao longo dos anos. Como Sinclair o forjou de forma a parecer que um grupo anarquista estava atacando
Brodie Maclennan Grant, de vez em quando aparecem idiotas usando o pôster para promover alguma manifestação, festival, ou seja lá o que for. Nós sempre os investigávamos
e nunca houve qualquer conexão com o que aconteceu com Catriona. - Ele fez um gesto de descaso com a mão.
Karen sorriu.
- Você acha que não sei disso? Pelo menos essa parte foi incluída no arquivo. Mas agora é diferente. Nenhuma das cópias que apareceram antes era exata. Havia
diferenças em detalhes, como ocorreria se você estivesse copiando de antigos recortes de jornal. Mas este aqui é diferente. É exatamente o mesmo desenho. A criminalística
já confirmou que é idêntico. Que veio da mesma tela de silkscreen.
Os olhos de Lawson brilharam, a centelha de interesse ficava, de repente, óbvia em seu rosto.
- Você está brincando?
- Eles tiveram o fim de semana inteiro para se decidirem. Disseram que não há dúvida. Mas por que alguém guardaria a tela durante todos esses anos? É a única
prova que conecta os seqüestradores com o crime.
Lawson sorriu com malícia.
- Talvez eles não tenham guardado a tela. Talvez apenas conservaram os pôsteres.
Karen balançou a cabeça.
- Não segundo o analista de documentos. Nem o papel nem a tinta haviam sido desenvolvidos em 1985. Isto foi produzido recentemente. Com a tela original.
- Não faz sentido.
- Assim como tantas outras coisas nesse caso - murmurou Karen.
Sem perceber, ela havia voltado a seu relacionamento histórico com o homem sentado à sua frente. Ela era a policial subalterna, incitando-o a encontrar sentido nos
fragmentos de informação que ela colocava a seus pés.
Inconscientemente, Lawson correspondeu, relaxando na conversa pela primeira vez.
- Que outras coisas? - ele perguntou. - Quando nos concentramos em Sinclair, tudo se encaixa.
- Não vejo como. Por que Fergus Sinclair mataria Cat na entrega?
- Porque ela poderia identificá-lo.
A impaciência na voz dele irritou Karen, lembrando-a dos papéis atuais de cada um deles.
- Isso eu entendo. Mas por que matá-la nesse momento? Por que não antes? Com ela viva na entrega, ele estava armando uma situação bastante complicada, file
tinha de controlar Cat e o bebê, pôr as mãos no resgate, depois atirar em Cat e fugir com o bebê em meio a toda confusão. Ele nem sequer podia ter certeza de que
a mataria. Não no escuro, com todo mundo se movimentando de maneira desordenada. Teria sido muito mais simples para ele tê-la matado antes da entrega do resgate.
Por que ele não a matou antes?
- Prova de vida - Lawson disse com a satisfação de um homem jogando um ás. - Brodie exigia prova de vida antes de ir em frente.
- Não, isso não me convence - disse Karen. - O sequestrador ainda tinha o bebê. Ele poderia usar Adam como prova de vida. Você não está me dizendo que Brodie
Grant se recusaria a pagar o resgate se não tivesse prova de que Cat também estava viva, está?
- Não... ele teria pagado o resgate com Cat viva ou morta. - Lawson franziu a testa. - Eu não tinha pensado no assunto por esse ângulo. Você tem razão. Não
faz sentido.
- É clarò que, se o sequestrador não fosse Sinclair, ela não precisaria ter morrido. - Os olhos de Karen ficaram vagos enquanto ela cogitava sobre aquela
ideia. - Pode ter sido um estranho. Ela poderia não ter sido capaz de identificá-lo. Quem sabe não foi um acidente?
Lawson inclinou a cabeça para o lado e lhe dirigiu um olhar especulativo. Karen sentiu como se sua objetividade estivesse sendo avaliada. Ele tamborilou de leve
com os dedos na borda da mesa lascada.
- Sinclair pode ter sido o sequestrador, Karen. Mas não necessariamente o assassino. Sabe, existe mais um dado que não estava no relatório.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton ofWemyss
A tensão era torturante. A grandeza da Lady's Rock recortava uma parte do céu estrelado, bloqueando a costa do outro lado. O frio mordia o nariz e as orelhas de
Lawson, assim como a faixa estreita entre suas luvas de couro e os punhos de seu suéter. O ar tinha um cheiro forte e ácido de fumaça de carvão e sal. O mar ali
perto sussurrava naquela noite sem vento. A lua minguante fornecia apenas luz suficiente para que ele notasse os traços tensos de Brodie Maclennan Grant a alguns
metros de distância, fora da cobertura das árvores que protegiam o próprio Lawson. Com uma das mãos, Brodie segurava a bolsa de viagem com o dinheiro, os diamantes
e os rastreadores; a outra segurava fortemente o cotovelo de sua esposa. Lawson imaginava a dor irradiando daquele aperto de pinça e ficou feliz por não o estar
recebendo. O rosto de Mary Maclennan Grant estava nas sombras, e sua cabeça, abaixada. Lawson imaginava que ela estivesse tremendo dentro do seu casaco de pele,
e não por causa do frio.
Ele não podia ver a meia dúzia de homens que havia posicionado entre as árvores. E isso era bom. Se ele não podia vê-los, os seqüestradores tampouco poderiam. Ele
os havia escolhido a dedo, elegendo aqueles que acreditava serem inteligentes e corajosos, duas qualidades que coincidiam com menos frequência do que ele gostava
de admitir. Alguns eram atiradores treinados; um portava uma pistola e o outro, no alto da Lady's Rock, um rifle, ambos equipados com visão noturna. Estavam orientados
a não atirar a não ser sob ordem direta sua. Lawson esperava, sinceramente, estar exagerando ao trazê-los com ele.
Ele havia conseguido levar mais alguns oficiais, removendo-os de suas tarefas de rotina de guardar as minas e usinas elétricas. Os companheiros de trabalho dos que
foram chamados haviam ficado ressentidos por sua transferência, ainda mais porque Lawson não pudera explicar a razão da mudança temporária deles para o seu comando.
Esses oficiais extras estavam posicionados no terreno irregular ao redor do bosque, nos pontos mais próximos do local de encontro em que se poderiam estacionar veículos.
Eles deveriam ser capazes de impedir uma fuga, caso Lawson e sua equipe imediata falhassem na captura dos seqüestradores no momento da entrega do resgate.
O que era uma séria possibilidade. Aquilo era uma verdadeira armadilha. Ele havia tentado convencer Grant a dizer não, a insistir em outro lugar para a entrega do
dinheiro. Qualquer coisa menos uma droga de uma praia,
no meio da noite. Ele deveria ter economizado saliva. No que dizia respeito a Grant, Lawson e seus homens estavam ali como uma espécie de força particular de segurança.
Ele agia como se estivesse fazendo um grande favor a eles, convidando os contra as instruções expressas de quem quer que houvesse capturado sua filha e seu neto.
A despeito do que dissera sobre a equipe de seguro contra sequestro, ele não parecia enxergar tudo o que poderia dar errado. Na verdade, era melhor nem pensar a
respeito.
Lawson deu uma olhadela no mostrador luminoso do seu relógio. Faltavam três minutos. Tudo estava tão parado que ele até poderia esperar ouvir o motor do carro deles
a distância. No entanto, a céu aberto, a acústica era sempre imprevisível. Ele havia notado, ao percorrer o caminho durante seu reconhecimento prévio, como a imensa
massa da Lady's Rock atuava como um abafador de ruído, isolando o som do mar tão eficazmente quanto um par de protetores de ouvido. Só Deus sabia como a mata distorceria
o som de um veículo se aproximando.
Então, sem qualquer aviso, uma brilhante explosão de uma luz branca vinda da direção da rocha anulou sua visão noturna. Tudo que Lawson conseguia ver era um impressionante
círculo de luz. Sem pensar de forma consciente, ele adentrou mais no meio das árvores, com medo de que seu esconderijo fosse descoberto.
- Deus do céu - gritou Brodie Grant, soltando a esposa e dando alguns passos adiante.
- Fique onde está. - Uma voz incorpórea gritou de trás da luz. Lawson tentou identificar o sotaque, mas não havia nada especial nele, além do fato de ser
escocês.
Lawson podia ver o perfil de Grant, a luz branca ofuscante removia todas as partículas de cor de sua pele. Soltou um grunhido feroz, com os lábios estirados sobre
os dentes. Uma sensação de desconforto tomou o estômago de Lawson, como uma indigestão ácida. Como os seqüestradores haviam chegado àquela posição ao lado do rochedo
sem que ele os visse? A luz da lua havia sido suficiente para iluminar o caminho em ambas as direções. Ele havia esperado um veículo. Afinal, eles tinham dois reféns.
Não poderiam forçá-los a caminhar mais de um quilômetro e meio ao longo da praia, fosse vindo de West Wemyss ou de East Wemyss. O penhasco escarpado atrás dele eliminava
também Newton of Wemyss.
O sequestrador gritou novamente:
- O.k., vamos logo com isso. Do jeito que combinamos. Sra. Grant, a senhora virá até nós com o dinheiro.
- Não sem uma prova de vida - berrou Grant.
As palavras mal haviam saído de sua boca quando uma figura surgiu trôpega da luz, como uma marionete, o que fez Lawson lembrar-se dos pôsteres que os seqüestradores
haviam usado para fazer suas exigências. Conforme seus olhos se ajustaram, ele pôde ver que era Cat.
- Sou eu, papai - ela gritou, a voz rouca. - Mamãe, traga-me o dinheiro.
- E quanto a Adam? - Grant gritou, agarrando a esposa pelo ombro quando ela tentou pegar a bolsa. Mary quase tropeçou e caiu, mas o marido não tinha olhos
para ela. - Onde está meu neto, seus filhos da puta?
- Ele está bem. Assim que eles receberem o dinheiro e os diamantes, eles o entregarão - Cat gritou, o desespero evidente em sua voz. - Por favor, mamãe, traga
o dinheiro como foi combinado.
- Droga - disse Grant. Ele empurrou a bolsa para a esposa. - Vá em frente, faça o que ela diz.
Aquilo estava saindo do controle, e Lawson sabia. Ao diabo com o silêncio no rádio que ele havia pedido. Pegou o aparelho e falou tão claramente quanto se atrevia:
- Tango Um e Tango Dois. Aqui fala Tango Lima. Enviar oficiais para a lateral do rochedo que dá para a margem. Façam isso agora. Não respondam. Apenas tomem
posições. Agora.
Enquanto falava, podia ver Mary caminhando com passos incertos em direção à filha, com os ombros encurvados. Ele calculou que havia aproximadamente trinta e dois
metros entre elas. Pareceu-lhe que Mary estava cobrindo uma distância maior que a filha. Ao atingirem a distância de se tocarem, ele pôde ver Cat estendendo a mão
para pegar a bolsa.
Para sua surpresa, aquele foi o momento em que Mary optou por deixar de lado o condicionamento de trinta e cinco anos de casamento com Brodie Grant. Em vez de fazer
o que lhe haviam mandado - primeiro os seqüestradores, através do bilhete, e, depois, o marido -, Mary se aferrou à bolsa apesar dos esforços de Cat de arrancá-la
dela. Ele podia ouvir a exasperação na voz de Cat quando ela disse:
- Pelo amor de Deus, mãe, me dê esta maldita coisa. Você não sabe com o que está lidando aqui.
- Dê a ela a maldita bolsa, Mary - berrou Grant. Lawson podia ouvir o ruído que fazia a respiração do homem em seus pulmões.
Então, a voz do sequestrador se ouviu de novo.
- Entregue, Sra. Grant. Ou não verá Adam novamente.
Lawson registrou o horror no rosto de Cat ao olhar desesperadamente sobre o ombro, em direção à luz.
- Não, espere - ela gritou. - Tudo ficará bem. - Ela pareceu arrancar a bolsa de sua mãe e dar um passo para trás.
De repente, Grant saltou para a frente, percorrendo uns seis passos, com a mão desaparecendo dentro do sobretudo.
- Maldição! - ele disse. E, então, sua voz se elevou: - Quero meu neto e o quero agora. - Sua mão emergiu, o brilho embaçado de uma pistola automática era
óbvio diante da luz. - Ninguém se mexa. Tenho uma arma e não tenho medo de usá-la. Traga Adam aqui agora mesmo.
Mais tarde, Lawson ficaria espantado com a coleção de clichês que era Brodie Maclennan Grant. Mas, no momento, tudo que pôde sentir foi o peso da catástrofe, enquanto
o tempo parecia ficar mais lento. Ele começou a correr na direção de Grant quando o empresário ergueu os braços, as mãos juntas, numa postura de atirador. Mas, antes
que Lawson pudesse dar o segundo passo, a luz foi cortada, deixando-o cego e impotente. Ele viu o lampejo de um cano de arma perto dele, ouviu um tiro e sentiu cheiro
de cordite. Depois, uma repetição da sequência, mas, dessa vez, a distância. Ele tropeçou em um galho no chão e caiu desajeitadamente. Ouviu um grito. Uma criança
chorando. Uma voz aguda repetindo: "Caralho!" Então, percebeu que a voz era dele próprio.
Um terceiro tiro ecoou, dessa vez vindo do bosque. Lawson tentou ficar em pé, mas agulhadas quentes de dor subiam por seu tornozelo. Rolou de lado, tentando pegar
a lanterna e o rádio.
- Cessar fogo - gritou no rádio. - Cessar fogo, isso é uma ordem! - Enquanto falava, podia ver fachos de lanternas se entrecruzando pela área, conforme seus
homens se agrupavam ao redor da base do rochedo.
- Eles têm uma porra de úm barco! - ele ouviu alguém gritar. Então, um rugido mais alto do que as ondas quando o motor pegou. Lawson fechou
os olhos por um momento. Que fiasco. Ele devia ter se esforçado mais para fazer Grant recusar aquela combinação. Estivera fadada ao fracasso desde o início. Ele
se perguntou com que os seqüestradores teriam conseguido escapar. Com a criança, sem dúvida. O dinheiro, provavelmente. A filha, talvez.
Mas ele estava enganado com relação a Catriona Maclennan Grant. Terrivelmente enganado.
Segunda-feira, 2 de julho de 2007; Peterhead
- Brodie Maclennan Grant tinha uma arma? - A voz de Karen se elevou a um tom agudo. - Ele disparou uma arma? E você deixou isso fora do relatório?
- Não tive escolha. E pareceu uma boa ideia, na época - Lawson disse, com o ar cínico de alguém citando seus superiores.
- Uma boa ideia? Cat Grant morreu naquela noite. Em que sentido isso foi uma boa ideia? - Karen não podia acreditar no que estava ouvindo. Não conseguia conceber
que alguém fizesse algo tão descuidado.
Lawson suspirou.
- O mundo mudou, Karen. Nós não tínhamos uma Comissão de Queixas contra a Polícia. Não sofríamos o tipo de inspeção com a qual vocês convivem hoje.
- Obviamente - ela disse com secura, lembrando-se por que ele estava onde estava. - Mas ainda assim. Você conseguiu esconder o fato de que um civil atirou
com uma arma de fogo no meio de uma operação policial? Bem que se diz que o dinheiro pode tudo.
Lawson balançou a cabeça com impaciência.
- Não foi só dinheiro, Karen. O chefe de polícia também estava pensando nas repercussões públicas. A filha única de Grant estava morta. Seu neto estava desaparecido.
No que dizia respeito ao público, ele era uma vítima. Se nós o processássemos por crime relacionado a armas de fogo, teria parecido vingança: não conseguimos pegar
os verdadeiros vilões, então, em vez disso, pegaremos você; esse tipo de coisa. A opinião era de que ninguém se beneficiaria com a revelação de que Grant estava
armado.
- Poderia ter sido o tiro de Grant que matou Cat? - Karen perguntou, os braços sobre a mesa, a cabeça inclinada para a frente como a de um centroavante de
rúgbi.
Lawson se remexeu na cadeira, apoiando o peso em um lado.
- Ela levou o tiro pelas costas. Conclua você mesma.
Karen se recostou na cadeira, não gostara da resposta à qual chegou, mas sabia que não viria nada melhor do homem à sua frente.
- Vocês eram um bando de caubóis filhos da puta naquela época, não? - Não havia nenhuma admiração em sua voz.
- Nós fazíamos o trabalho - disse Lawson. - O público recebia o que queria.
- O público não sabia nem a metade, pelo jeito. - Ela suspirou. - Então, temos três tiros, e não os dois que aparecem no relatório?
Ele assentiu.
- Apesar de toda a diferença que isso acarreta. - Ele se remexeu novamente, direcionando o corpo para a porta.
- Tem mais alguma coisa que eu deveria saber e que não foi colocada no relatório? - Karen perguntou, reafirmando-se como a pessoa no controle da entrevista.
Lawson inclinou a cabeça para trás, olhando para o canto onde as paredes e o teto se encontravam. Exalou ruidosamente e, então, espichou os lábios.
- Acho que é só isso - ele disse, finalmente. Arrastou o olhar de volta para encontrar a expressão cansada dela. - Nós achamos que fosse Fergus Sinclair,
na época. E nada aconteceu, desde então, para me fazer mudar de ideia a esse respeito.
Campora, Toscana
O calor do sol toscano derreteu a rigidez nos ombros de Bel. Ela estava sentada na sombra de uma castanheira, escondida atrás do grupo de casas na extremidade final
da Boscolata. Se esticasse o pescoço, poderia ver um canto do telhado de terracota da villa em ruínas de Paolo Totti. Sua vista mais imediata, no entanto, era muito
mais atraente. Em uma mesa baixa à sua frente havia uma jarra de vinho tinto, uma garrafa de água e uma tigela
de figos. Em volta da mesa, suas informantes principais: Giulia, jovem, cabeleira negra desordenada e pele coberta por antigas cicatrizes avermelhadas de acne, que
fazia brinquedos pintados à mão para os turistas em um chiqueiro convertido em ateliê; e Renata, uma loura holandesa, cuja cútis tinha a cor de um queijo gouda,
e que trabalhava meio expediente no departamento de restauração da Pinacoteca Nazionale de Siena, perto dali. Segundo Grazia, que estava recostada no tronco da árvore
descascando um saco de ervilhas, os carabinieri já haviam conversado com as duas.
As sutilezas sociais tinham de ser respeitadas, e Bel tentava se conter enquanto elas batiam papo. Finalmente, Grazia as conduziu ao tema.
- Bel também está interessada no que aconteceu na villa Totti - ela disse.
Renata assentiu com um ar nefasto.
- Sempre achei que alguém viria perguntar sobre aquilo - ela disse, num italiano tão perfeitamente enunciado que parecia fala gerada por computador.
- Por quê? - perguntou Bel.
- Eles foram embora muito repentinamente. Um dia eles estavam lá, no dia seguinte, haviam sumido - disse Renata.
- Partiram sem uma palavra - disse Giulia, parecendo zangada. - Eu não podia acreditar. Dieter era meu namorado, mas nem sequer se despediu de mim. Fui eu
quem descobriu que eles haviam ido embora. Fui até lá para tomar um café com Dieter, exatamente como costumava fazer quando eles não tinham de sair cedo para um
show. E o local estava deserto. Como se eles houvessem jogado tudo que pudessem pegar para dentro das vans e tivessem, simplesmente, partido. Não tive mais notícias
daquele filho da puta do Dieter desde então.
- Quando foi isso? - Bel perguntou.
- No final de abril. Tínhamos planos para o feriado de Primeiro de Maio, mas foi tudo por água abaixo. - Giulia ainda estava furiosa.
- Quantas pessoas havia no grupo deles? - perguntou Bel.
Giulia e Renata contaram nos dedos entre elas. Dieter, Maria, Rado, Sylvia, Matthias, Peter, Luka, Ursula e Max. Uma mistura de gente de todas as partes da Europa.
Um grupo heterogêneo que, a princípio, parecia não ter nada a ver com Cat Grant.
- O que eles estavam fazendo aqui? - ela perguntou.
Renata sorriu.
- Creio que poderíamos dizer que pegaram aquele lugar emprestado. Apareceram na primavera passada em dois trailers velhos e num vistoso motorhome Winnebago
e, simplesmente, se instalaram ali. Eram muito simpáticos, muito sociáveis. - Ela deu de ombros. - Nós todos somos um pouco alternativos, aqui na Boscolata. Este
lugar era uma ruína nos anos setenta, quando alguns de nós se mudaram ilegalmente para cá. Aos poucos, compramos as propriedades e as restauramos, transformando-as
no que você está vendo agora. Portanto, todos fomos solidários com os novos vizinhos.
- Eles se tornaram nossos amigos - disse Giulia. - Os carabinieri estão loucos, agindo como se eles fossem criminosos ou coisa parecida.
- Então, eles apareceram por aqui sem mais nem menos? Como eles sabiam que a casa estava lá?
- Rado trabalhou na fábrica de cimento na descida do vale, faz alguns anos. Ele me disse que costumava caminhar no bosque e que encontrou a villa. Então,
quando eles precisaram de um lugar que fosse acessível às principais cidades desta parte da Toscana, ele se lembrou da villa e eles vieram para ficar - disse Giulia.
- E o que eles faziam, exatamente? - Bel perguntou, procurando alguma conexão entre o passado e suas investigações.
- Eles tinham um teatro de marionetes - Renata disse. Ela parecia surpresa pelo fato de Bel não saber daquilo. - Bonecos. Teatro de rua. Durante a temporada
de turistas, eles se apresentavam em pontos regulares. Florença, Siena, Volterra, San Gimignano, Greve, Certaldo Alto. Eles também participavam de festivais. Cada
cidadezinha da Toscana tem um festival de alguma coisa: de funghi porcini, de máquinas antigas de fatiar salame, de tratores de época. Então, o BurEst se apresentava
em qualquer lugar onde houvesse plateia.
- BurEst? Como se escreve isso? - perguntou Bel.
Renata explicou:
- É abreviação de Burattinaio Estemporaneo. Eles faziam muitas improvisações.
- O pôster encontrado na villa... o desenho em preto e branco de um titereiro com algumas marionetes bastante estranhas... era isso que eles estavam usando
como propaganda? - Bel perguntou.
Renata negou com a cabeça.
- Só para apresentações especiais. Só os vi usarem aqueles pôsteres quando fizeram uma apresentação em Colle di Val d'Eisa no Dia de Finados. Na maioria das
vezes, eles usavam um pôster de cores berrantes, estilo com-media délVarte. Uma versão moderna das imagens mais tradicionais dos fantoches. Refletia sua arte melhor
que o pôster monocromático.
- Eles faziam sucesso? - Bel perguntou.
- Acho que estavam indo bem - disse Giulia. - Haviam estado no sul da França no verão anterior, antes de virem para cá. Dieter disse que a Itália era um lugar
melhor para trabalhar. Ele disse que os turistas eram mais abertos, e os moradores locais, mais tolerantes com eles. Não ganhavam muito dinheiro, mas iam bem. Sempre
tinham comida na mesa e bastante vinho. E faziam todos se sentirem bem-vindos.
- Ela está certa - disse Renata. - Não eram aproveitadores. Se jantavam um dia na sua casa, no outro, você jantava com eles. - Um canto de sua boca se retorceu
para baixo. - Isso não é tão comum assim, nesses círculos. Falam muito sobre compartilhar e viver em comunidade, mas a maior parte é mais egoísta do que as pessoas
a quem desprezam.
- Exceto Ursula e Matthias - Giulia comentou. - Eles eram mais reservados. Não se socializavam tanto quanto os demais.
Renata suspirou.
- Isso era porque Matthias achava que estava no comando. - Ela serviu mais vinho para todas e prosseguiu: - Foi Matthias quem iniciou a companhia, e ele ainda
queria que todos o tratassem como se fosse o diretor do circo. E Ursula, a mulher dele, acreditava piamente nisso. Obviamente, Matthias também ficava com a maior
parte da renda. Eles usavam o motorhome, suas roupas eram sempre de estilo hippie caro. Acho que era, em parte, um lance de geração: Matthias devia estar com uns
cinquenta anos, mas a maior parte dos outros era muito mais jovem. Vinte e tantos anos, trinta e pouco, no máximo.
Era tudo muito fascinante, mas Bel estava se esforçando para ver qual seria a ligação com a morte de Cat Grant e o desaparecimento de seu filho.
Esse tal de Matthias parecia ser suficientemente velho para ter tido alguma conexão com aqueles eventos distantes.
- Ele tem um filho, esse Matthias? - ela perguntou.
As mulheres se entreolharam, perplexas.
- Não havia nenhuma criança com ele - disse Renata. - E nunca o escutei falar num filho.
Giulia apanhou um figo e o mordeu, a polpa arroxeada se partiu e derramou sementes em seus dedos.
- Ele tinha um amigo que vinha visitá-los, às vezes. Um cara inglês. Ele tinha um filho.
Assim como todos os bons repórteres, Bel possuía um instinto imensurável para saber onde estava a história. E aquele instinto lhe disse que havia acabado de encontrar
ouro.
- Quantos anos tinha o filho?
Giulia lambeu os dedos enquanto pensava.
- Vinte? Talvez um pouco mais, mas não muito.
Havia uma dúzia de perguntas brigando dentro da cabeça de Bel, mas ela sabia que o melhor era não despejá-las numa torrente desenfreada. Tomou um gole vagaroso de
seu vinho e disse:
- O que mais você se lembra sobre ele?
Giulia deu de ombros.
- Eu o vi algumas vezes, mas só me encontrei mesmo com ele uma vez. Seu nome era Gabriel. Falava italiano perfeitamente. Disse que havia crescido na Itália,
que não se lembrava de ter morado na Inglaterra. Estava estudando, mas não sei onde nem o quê. - Ela fez uma cara de desculpas.
- Sinto muito, eu não estava muito interessada nele.
Tudo bem, aquilo não era decisivo. Mas parecia ser uma possibilidade.
- Como ele era fisicamente?
Giulia pareceu ainda mais incerta.
- Não sei como descrevê-lo. Alto, cabelo castanho-claro. Bem bonito; - Ela franziu o rosto. - Não sou boa nesse tipo de coisa. Afinal, o que tem de
tão interessante nele?
Renata poupou Bel de ter de responder.
- Ele estava na festa de Ano-Novo? - ela perguntou.
O rosto de Giulia se iluminou.
- Sim. Ele estava lá com o pai.
- Então, pode ser que ele tenha saído em alguma fotografia - disse Renata. Ela se virou para Bel. - Eu estava com minha máquina fotográfica. Tirei dúzias
de fotos naquela noite. Deixe-me pegar meu laptop. - Ela se levantou de um salto e voltou para sua casa.
- E quanto ao pai de Gabriel? - Bel perguntou. - Você disse que ele era inglês?
- Isso mesmo.
- Então, como ele conhecia Matthias? Ele era inglês também?
Giulia pareceu em dúvida.
- Eu achava que ele era alemão. Ele e Ursula haviam se conhecido anos atrás, na Alemanha. Mas ele falava italiano tão bem quanto o amigo. Eles pareciam falar
do mesmo jeito. Então, talvez ele também fosse inglês. Não sei.
- Como se chamava o pai do Gabriel?
Giulia suspirou.
- Não estou ajudando muito. Não me lembro do nome dele. Sinto muito. Ele era apenas mais um homem da idade do meu pai, sabe? Eu estava com Dieter, não estava
interessada num velho de cinquenta e poucos anos.
Bel ocultou sua decepção.
- Você sabe o que ele faz da vida? O pai do Gabriel, quero dizer.
Giulia se alegrou, feliz em saber a resposta para alguma coisa.
- Ele é pintor. Pinta paisagens para os turistas. Vende seus trabalhos para algumas galerias: uma em San Gimignano e uma em Siena. Ele também vai ao mesmo
tipo de festivais em que o BurEst se apresenta e vende seu trabalho ali.
- Foi assim que ele conheceu Matthias? - Bel perguntou, tentando não se sentir desapontada ao descobrir que o misterioso pai de Gabriel não era o administrador
de propriedades Fergus Sinclair. Afinal, um artista se encaixaria perfeitamente no passado de Cat. Talvez o pai de Adam fosse alguém que ela tivesse conhecido em
seus dias de estudante. Ou alguém que havia encontrado numa galeria ou numa vernissagem na Escócia. Haveria tempo para explorar aquelas possibilidades mais tarde.
Nesse momento, ela precisava prestar atenção em Giulia.
- Acho que não. Acho que eles já se conheciam de muito antes.
Enquanto ela falava, Renata voltou com o laptop.
- Você está falando de Matthias e o pai do Gabriel? É engraçado. Eles não pareciam gostar muito um do outro. Não sei por que tenho essa impressão, mas tenho.
Era mais... sabe como às vezes você mantém contato com alguém porque é a única pessoa que sobrou que compartilha o mesmo passado que você? Pode ser que você não
goste muito dessa pessoa, mas ela proporciona uma ligação com alguma coisa do passado que era importante. As vezes é a família, às vezes é uma época da sua vida
em que aconteceram coisas importantes. E você quer se aferrar àquele elo. Era o que me parecia, quando os via juntos.
Enquanto ela falava, seus dedos voavam pelo teclado, revelando uma coleção de fotografias. Ela colocou o laptop onde Giulia e Bel podiam ver a tela, então deu a
volta por trás delas, inclinando-se para avançar as fotos.
Lembrava a metade das festas nas quais Bel já estivera. Pessoas sentadas à mesa bebendo. Pessoas fazendo caretas para a câmera. Pessoas dançando. Pessoas ficando
cada vez mais ruborizadas, com os olhos mais turvos e mais descoordenadas no decorrer da noite. As duas mulheres da Boscolata riam e falavam, mas nenhuma delas identificava
Gabriel ou o pai dele.
Bel havia quase perdido a esperança quando Giulia, de repente, chamou-as e apontou para a tela.
- Aqui. Este é o Gabriel, no canto.
Não era a foto mais clara do mundo, mas Bel não achou que estivesse vendo coisas. Havia cinquenta anos separando-os, mas não era difícil distinguir a semelhança
entre aquele garoto e Brodie Grant. Os traços de Cat tinham sido uma versão feminina da aparência marcante de seu pai. Por mais improvável que parecesse, uma imitação
do original estava olhando para ela de uma festa de Ano-Novo numa casa invadida na Itália. Os mesmos olhos fundos, nariz de papagaio, queixo proeminente e cabeleira
inconfundível, só que loura em vez de prateada. Ela remexeu a bolsa até encontrar um cartão de memória.
- Posso fazer uma cópia desta foto? - perguntou.
Renata fez uma pausa, parecendo pensativa.
- Você não respondeu quando Giulia perguntou por que está interessada neste garoto. Talvez devesse responder agora.
East Wemyss, Fife
River tirou as luvas resistentes de trabalho e endireitou as costas, tentando não gemer. O problema em trabalhar em conjunto com seus estudantes era que não podia
revelar nenhum sinal de fraqueza. Realmente, eles tinham no mínimo doze anos menos que ela, mas River estava decidida a demonstrar que estava tão em forma quanto
eles. Então, eles podiam reclamar de dores nos braços e das costas doloridas de tanto carregar pedras e cascalho, mas ela precisava manter sua aparência de Supermulher.
Desconfiava que a única pessoa a quem estava enganando era a si mesma, mas não tinha problema. O engodo devia ser mantido pelo bem de sua autoimagem.
Ela atravessou a caverna até chegar ao local onde três de seus alunos peneiravam a terra que tinha sido liberada pela movimentação das pedras. Por enquanto, não
havia aparecido nada de interesse arqueológico ou criminalístico, mas seu entusiasmo não parecia diminuir. River lembrava-se de suas próprias investigações iniciais;
como o simples fato de estar envolvida num caso real era suficientemente excitante para superar o tédio de uma tarefa repetitiva e aparentemente infrutífera. Ela
viu suas próprias reações espelhadas naqueles estudantes e ficou feliz em pensar que teria alguma participação em garantir que a próxima geração de peritos criminalistas
tivesse o mesmo comprometimento em falar pelos mortos.
- Alguma coisa? - ela perguntou ao emergir das sombras para a luz ofuscante que banhava o grupo.
Alguns balançaram a cabeça, outros murmuraram que não havia nada. Um dos alunos de pós-graduação em arqueologia olhou para cima.
- Ficará interessante quando os trabalhadores braçais terminarem de retirar as pedras.
River sorriu.
- Não deixe que meus antropólogos ouçam você chamá-los de trabalhadores braçais. - Ela voltou a olhar para eles com afeição. - Com sorte, eles terão removido
o grosso das pedras até o fim da tarde.
Todos se surpreenderam com a descoberta de que o desmoronamento só se aprofundava por um metro ou dois. De acordo com a experiência de River, desmoronamentos em
cavernas tendiam a se estender por uma grande distância, em direção ao fundo. Uma falha tinha que atingir um tamanho
considerável antes de provocar o desabamento de um teto anteriormente estável. Portanto, quando desmoronava, levava abaixo uma grande quantidade de rochas. Mas aquilo
era diferente. E isso tornava tudo muito interessante, sem dúvida alguma.
Eles já tinham removido uns dois metros da camada de pedras do alto, na direção do fundo da caverna. Alguns dos alunos mais intrépidos escalaram as pedras para dar
uma olhada, enquanto River saíra para buscar tortas e sanduíches para o almoço de todos. Eles informaram que parecia estar tudo limpo além do desmoronamento em si,
com exceção de algumas pedras que haviam rolado do alto da pilha principal.
River saiu da caverna para dar alguns telefonemas, deliciando-se com o ar salgado como se fosse um prêmio. Mal havia terminado de falar com a secretária do departamento
quando um dos alunos saiu correndo pela entrada estreita.
- Dra. Wilde! - ele gritou. - Você precisa ver isso.
Campora, Toscana
Bel relatou sua história de forma a provocar a máxima reação emocional possível. Pelo silêncio estupefato de Renata e Giulia, parecia ter atingido seu objetivo.
- Isso é muito triste. Eu ficaria arrasada se uma coisa dessas acontecesse com a minha família - Giulia disse por fim, apropriando-se da história como uma
mulher que crescera assistindo a novelas e lendo revistas de fofocas. - Pobrezinho do bebê.
Renata foi mais objetiva.
- E você acha que Gabriel pode ser esse bebê?
Bel deu de ombros.
- Não tenho ideia. Mas esse pôster é a primeira pista significativa que aparece em mais de vinte anos. E Gabriel se parece incrivelmente com o avô do menino
desaparecido. Pode ser que eu esteja me iludindo, mas me pergunto se não existe algo de verdade nisso que descobrimos.
Renata balançou a cabeça.
- Então devemos ajudar de todas as formas possíveis.
- Eu não vou falar de novo com os carabinieri - disse Giulia. - Aqueles porcos.
- Ei - protestou Grazia, despertando de sua tarefa de descascar ervilhas. - Não insulte assim os porcos. Nossos porquinhos são criaturas maravilhosas. Inteligentes.
Úteis. Não têm nada a ver com os carabinieri.
Renata estendeu a mão.
- Dê-me o cartão de memória. Não há motivos para falar com os carabinieri porque eles não se importam com esse caso. Não como você. Não como a família se
importa. É por isso que precisamos compartilhar tudo com você. - Habilmente, ela copiou a fotografia para o cartão de memória de Bel. - Agora precisamos ver se existem
mais fotos de Gabriel e seu pai.
No final da procura, elas tinham três fotos em que Gabriel aparecia, embora nenhuma delas estivesse mais nítida do que a primeira. Renata também havia encontrado
duas imagens do pai do garoto - uma de perfil e outra em que metade de seu rosto estava encoberta pela cabeça de outra pessoa.
- Você acha que mais alguém tem fotos daquela noite? - Bel perguntou.
As mulheres pareceram duvidar.
- Não me lembro de outra pessoa tirando fotos - disse Renata. - Mas com esses telefones celulares, quem sabe? Vou perguntar por aí.
- Obrigada. E ajudaria bastante se você pudesse perguntar se mais alguém conhecia Gabriel ou o pai dele.
Bel pegou o precioso cartão de memória. Assim que tivesse oportunidade, enviaria a um colega especializado em melhorar a qualidade de fotos não autorizadas de gente
importante fazendo o que não devia com quem não devia.
- Tenho uma ideia melhor - disse Grazia. - Que tal assar uma carne de porco no espeto hoje à noite? Assim, você vai conhecer todo mundo. Um saboroso pedaço
de carne de porco e alguns copos de vinho e todos estarão prontos para lhe contar tudo que sabem sobre Gabriel e o pai.
Renata sorriu e levantou o copo num brinde.
- Eu topo. Mas vou logo avisando, Grazia. Pode ser que seu porco asse à toa. Aquele cara não era lá muito sociável. Não me lembro de ele ter se integrado
muito na festa.
Grazia juntou suas ervilhas e as enfiou num saco plástico.
- Não importa. É uma boa desculpa para a gente se divertir um pouco com meus vizinhos. Bel, você vai ficar aqui embaixo ou quer uma carona para subir o morro?
Agora que tinha a perspectiva de fofocar com a comunidade toda, Bel sentia menos urgência.
- Vou voltar agora, e vejo vocês, garotas, mais tarde - ela disse, bebendo o resto do vinho.
- Você não quer saber a respeito do sangue? - Giulia perguntou.
Surpreendida enquanto se levantava da cadeira, Bel quase voltou a sentar.
- Você quer dizer o sangue no chão? - perguntou.
- Ah. Você já sabe. - Giulia parecia decepcionada.
- Eu sei que há uma mancha de sangue no chão da cozinha - disse Bel. - Mas isso é tudo.
- Nós fomos dar uma olhada depois que os carabinieri saíram, na sexta-feira - disse Giulia. - E a mancha de sangue estava diferente da primeira vez que vimos.
Um dia depois que eles tinham ido embora.
- Diferente como?
- Agora está marrom e oxidada, absorvida pela pedra. Mas naquele dia ainda estava bem vermelha e brilhante. Como se estivesse fresca.
- E você não chamou a polícia? - Bel tentou não mostrar incredulidade.
- Não era problema nosso - disse Renata. - Se as pessoas do BurEst tivessem achado que era caso de polícia, teriam chamado. - Ela deu de ombros. - Sei que
parece estranho para você, e, se tivesse acontecido na Holanda, não sei se teria agido assim. Mas aqui as coisas são diferentes. Ninguém de esquerda confia na polícia.
Você viu como a polícia italiana reagiu no encontro do G8 em Gênova, como trataram os manifestantes. Giulia perguntou a alguns de nós se ela deveria chamar a polícia
e todos concordamos que a única coisa que se conseguiria era dar aos policiais uma desculpa para culpar os titereiros, seja lá o que realmente aconteceu.
- Então vocês simplesmente abafaram o caso?
Renata ergueu os ombros.
- Estava na cozinha. Quem pode garantir que não era sangue de animal? Não era problema nosso.
Kirkcaldy
Karen rodou lentamente pela rua, verificando os números das casas. Era a primeira vez que visitava a casa nova de Phil Parhatka no centro de
Kirkcaldy. Ele estava morando ali havia três meses; vivia prometendo fazer uma festa de inauguração, mas, até agora, não cumprira a promessa. Alguns anos atrás,
Karen acalentara sonhos de um dia eles comprarem uma casa juntos. Mas havia superado aquilo. Um cara como Phil nunca se sentiria atraído por uma coisinha gorducha
como ela, principalmente depois que sua última promoção a colocara acima dele em termos de autoridade. Alguns homens podiam gostar da ideia de dormir com a chefe.
Karen sabia, instintivamente, que aquilo não fazia parte das fantasias de Phil. Portanto, optara pela preservação de sua amizade e da íntima relação profissional,
apesar daquilo que classificava como um desejo adolescente. Se teria de se contentar em ser uma solteirona voltada para a carreira, poderia, ao menos, assegurar-se
de que essa carreira fosse tão satisfatória quanto possível.
Parte da receita para a satisfação profissional era ter alguém com quem discutir ideias. Nenhum detetive era inteligente o bastante para enxergar sozinho o todo
em uma investigação complexa. Todos precisavam de alguém com quem testar suas ideias, alguém que visse as coisas por um ângulo diferente e que fosse suficientemente
esperto para enunciar tais divergências. Isso era especialmente importante nos casos arquivados para os quais, em vez de liderar uma equipe substancial de oficiais,
o investigador-sênior poderia contar com apenas um ou dois indivíduos à sua disposição. E esses soldados rasos geralmente não tinham experiência para tornar sua
contribuição
tão valiosa quanto ela queria. Para Karen, Phil atendia todos os requisitos. E, a julgar pelo número de vezes em que ele discutia seus próprios casos com ela, a
recíproca era verdadeira.
Geralmente, eles se reuniam para essas discussões no escritório dela ou num canto tranquilo de um pub, a meio caminho entre sua casa e a dele. Mas quando ela telefonara
para ele, voltando de Peterhead, ele já havia tomado algumas taças de vinho.
- Talvez eu esteja dentro do limite legal, mas por pouco - ele dissera. - Por que você não vem até aqui? Pode me ajudar a escolher as cortinas da sala.
Karen encontrou o número da casa que estava procurando e estacionou o carro em frente à garagem de Phil. Ficou ali sentada por algum tempo, presa ao hábito dos policiais
de sondar o ambiente antes de sair do carro. Era uma rua tranquila e despretensiosa de casas geminadas de pedra, quadradas e resistentes, aparentemente tão sólidas
quanto no dia de sua construção,
no final do século XIX. Garagens com entrada de cascalho e canteiros de flores bem cuidados. Cortinas fechadas no andar de cima, onde as crianças dormiam,
isoladas por forros grossos da persistente luz do dia. Ela se lembrou de como havia sido difícil adormecer nas noites claras de verão, quando era criança. Mas as
cortinas de seu quarto eram finas. E sua rua, barulhenta por causa da música e da conversa no pub da esquina. Não como aqui. Era difícil acreditar que o centro da
cidade estava a apenas cinco minutos de caminhada. A sensação era de que estivesse num subúrbio distante.
Alertado pelo barulho do carro dela, Phil abriu a porta antes de Karen deixar o banco do motorista. Contra a luz, ele parecia maior. Sua pose continha a ameaça casual
de um guarda de segurança; um braço levantado para apoiar-se no batente, uma perna cruzada sobre a outra, a cabeça pendendo para um lado. Mas não havia nada de ameaçador
em sua expressão. Os olhos escuros e arredondados cintilavam na luz, e o sorriso colocava dobras em suas bochechas.
- Vamos entrando - ele a cumprimentou, dando um passo para trás e convidando-a a entrar com um gesto.
Ela adentrou uma réplica perfeita de um saguão vitoriano, com o piso revestido por lajotas quadradas de terracota entremeadas por losangos brancos, azuis e vermelhos.
- Muito bonito - ela disse, notando a borda de madeira e o papel de parede com relevo, abaixo dela.
- A namorada do meu irmão é historiadora de arquitetura. Ela passou por aqui como um tufão. Vai ficar parecendo um maldito monumento tombado pelo National
Trust, quando ela terminar - ele resmungou, bem-humorado. - Vire à direita no final do saguão.
Karen caiu na gargalhada ao entrar no cômodo.
- Jesus, Phil - ela riu. - Foi o Coronel Mostarda, na Biblioteca, com o Cano. Você deveria estar vestindo um smoking e não uma camiseta do time Raith Rovers.
Ele deu de ombros, tristemente.
- Temos que ver o lado engraçado. Eu, um policial, com o cenário perfeito de "assassinato-na-biblioteca".
Ele acenou com a mão indicando as estantes de madeira escura, a escrivaninha com tampo de couro e as poltronas em volta da lareira bem trabalhadas.
A sala, claramente, não havia sido muito grande, no início, mas agora parecia definitivamente entulhada.
- Ela diz que é assim que o amo da casa iria querer.
- Numa casa deste tamanho? - disse Karen. - Acho que ela sofre de mania de grandeza. E, de alguma forma, não acho que ele teria escolhido o carpete de tartã.
Suas orelhas ficaram coradas de vergonha.
- Aparentemente, isso é ironia pós-moderna. - Ele levantou as sobrancelhas ceticamente. - Nem tudo é o que parece, no entanto - ele disse, alegrando-se ao
remexer num dos livros. Uma parte da estante girou, revelando uma TV de plasma.
- Graças a Deus - disse Karen. - Eu já estava começando a questionar isso tudo. Não se parece muito com sua casa antiga, né?
- Acho que superei a fase de levar a vida ao estilo garotão corredor de rachas - disse Phil.
- Hora de se assentar?
Ele deu de ombros, sem olhá-la nos olhos.
- Talvez. - Ele apontou para uma poltrona e deixou-se cair na outra, do lado oposto. - Então, como estava o Lawson?
- Mudado. E não para melhor. Estava pensando nisso, vindo para cá. Ele sempre foi um filho da puta durão, mas antes de descobrirmos o que ele realmente vinha
aprontando, sempre achei que seus motivos fossem justos, sabe? Mas as coisas que ele me contou hoje... sei lá. Foi quase como se ele estivesse aproveitando para
se vingar.
- Como assim? O que ele contou?
Karen levantou a mão.
- Vou chegar lá em um minuto. Só quero desabafar um pouco, acho. Eu tive a impressão de que ele contou o que fez por pura maldade. Porque ele sabia que prejudicaria
a reputação da polícia, e não porque quer nos ajudar a solucionar o que aconteceu com Cat e Adam Grant.
Enquanto ela falava, Phil pegou seu maço de cigarrilhas e acendeu uma. Ele agora raramente fumava na companhia dela, Karen notou. Havia poucos lugares onde era permitido.
O familiar aroma agridoce encheu suas narinas, confortando-a estranhamente, depois do dia que tivera.
- E importam quais sejam os motivos dele? - Phil questionou. - Desde que o que ele esteja nos dizendo seja verdade?
- Talvez não. E, no caso, ele tinha mesmo algo muito interessante para nos contar. Algo que lança uma luz completamente nova no que aconteceu na noite em
que Cat Grant morreu. Parece que não eram só os policiais e os seqüestradores que estavam armados aquela noite. O pilar da nossa sociedade, Sir Broderick Maclennan
Grant, também tinha uma arma. E a usou.
A boca de Phil permaneceu aberta, deixando a fumaça escapar.
- Grant tinha uma pistola? Você está brincando. Como é que só agora estamos ouvindo falar disso?
- Segundo I,awson, a ordem de encobrir o fato veio de cima. Grant era uma vítima, nada se ganharia processando-o. Seria má propaganda e essa merda toda. Mas
eu acho que essa decisão alterou completamente o resultado final. - Karen tirou uma pasta de arquivo de sua bolsa. Sacou o esboço da cena do crime feito pela equipe
de criminalística, na época, e o abriu entre eles. Apontou a posição em que cada pessoa estivera. - Percebe? - perguntou.
Phil assentiu.
- Então, o que aconteceu? - inquiriu Karen.
- A luz se apagou, nosso cara disparou para cima e, então, houve outro tiro vindo de trás de Cat. O tiro que a matou.
Karen negou com a cabeça.
- Não segundo Lawson. O que ele está dizendo agora é que Cat e a mãe dela estavam lutando pela bolsa de dinheiro. Cat conseguiu pegar a bolsa e começou a
correr. Daí, Grant sacou sua arma e exigiu ver Adam. A luz se apagou, Grant disparou. Houve um segundo tiro, vindo de trás de Cat. Então, o agente Armstrong atirou
para o alto.
Phil franziu a testa, digerindo o que ela dissera.
- O.k. - ele falou lentamente. - Não entendi bem como isso muda a situação.
- A bala que matou Cat a atingiu pelas costas e saiu pelo peito. Indo parar na areia. Nunca encontraram a bala. A ferida não era compatível com a arma de
Armstrong, portanto, como a arma de Grant nunca foi mencionada, só havia uma explicação possível: os seqüestradores mataram Cat. O que transformou o caso numa investigação
de assassinato.
- Puta que pariu - resmungou Phil. - E, é lógico, foi isso que impediu qualquer possibilidade de recuperar Adam. Esses caras sabem que
serão condenados a prisão perpétua, sem dúvida alguma, já que Cat está morta. Eles têm uma bolsa cheia de dinheiro e a criança. Nem mortos iriam se oferecer para
um segundo confronto com Grant. Vão mais é desaparecer na noite. E Adam, agora, é apenas um estorvo. Não vale nada para eles, vivo ou morto.
- Exatamente. E nós dois sabemos de que lado a balança pesa mais. Porém, há mais que isso. O argumento sempre foi de que a natureza do ferimento, mais o fato
de Cat ter sido atingida pelas costas, apontavam, inevitavelmente, para os seqüestradores. Mas, de acordo com Lawson, a arma de Grant poderia ter infligido o ferimento
fatal. Ele diz que Cat começara a correr de volta para os seqüestradores quando a luz se apagou. - Ela olhou-o tristemente. - É provável que Grant tenha matado a
própria filha.
- E o encobrimento da verdade lhe custou o neto. - Phil deu uma tragada longa na cigarrilha. - Você vai falar com Brodie Grant sobre isso?
Karen suspirou.
- Não vejo como poderia evitar.
- Talvez você devesse deixar o Biscoito lidar com isso.
Karen riu com genuíno deleite.
- Que maravilha seria isso! Mas nós dois sabemos que ele seria capaz de se atirar do alto de um edifício para escapar dessa. Não, terei que encará-lo pessoalmente.
Só não estou certa de qual seria a melhor maneira de lidar com o assunto. Talvez espere até ver o que os italianos têm para me dizer. Ver se existe alguma coisa
para dourar a pílula. - Antes que Phil pudesse responder, o telefone de Karen tocou. - Coisa maldita - ela resmungou ao pegá-lo. Então, leu o nome na tela e sorriu.
- Alô, River - disse. - Como vai?
- Melhor impossível - A voz de River chegou a seu ouvido cheia de estática. - Escute, acho que você precisa vir para cá.
- Quê? Você encontrou alguma coisa?
- A ligação está uma merda, Karen. É melhor você vir agora mesmo.
- Está bem. Vinte minutos. - Ela encerrou a chamada. - Pode ir tirando os chinelos, Sherlock. Que se dane Brodie Grant. Nossa querida doutora tem algo para
nós.
Boscolata
Bel tinha de admitir que Grazia sabia como criar o ambiente perfeito para soltar a língua das pessoas. Enquanto o sol lentamente se escondia atrás das colinas distantes,
e as luzes das cidadezinhas medievais salpicavam suas encostas como punhados de purpurina, os habitantes da Boscolata se empanturravam de um suculento leitão acompanhado
por montes de batatas assadas lentamente, aromatizadas com alho e alecrim, e tigelas de salada de tomate perfumadas com manjericão e estragão. A Boscolata fornecera
jarros de vinho de suas próprias vinícolas, e Maurizio acrescentara ao banquete algumas garrafas de seu vin santo feito em casa.
O fato de que essa comemoração inesperada era em homenagem a Bel tornava as pessoas mais receptivas a ela. Bel circulou entre elas, conversando agradavelmente sobre
todo tipo de coisas. Mas a conversa sempre voltava para os titereiros que haviam tomado a villa de Paolo Totti. Aos poucos, ela pôde criar um dossiê mental das pessoas
que tinham vivido ali. Rado e Sylvia, um sérvio do Kosovo e uma eslovena que tinham talento para fazer marionetes. Matthias, que criara a companhia e que agora projetava
e construía os cenários. Sua mulher, Ursula, responsável por organizar a agenda deles e por fazer o que fosse necessário para torná-la possível. Maria e Peter, da
Áustria, os titereiros principais, e sua filhinha de três anos, a quem estavam decididos a manter longe do sistema educacional formal. Dieter, um suíço responsável
pela iluminação e pelo som. Luka e Max, titereiros substitutos, que espalhavam os pôsteres, realizavam a maior parte do trabalho braçal e podiam fazer seu próprio
show, quando uma apresentação especial coincidia com um dos compromissos regulares.
E também havia os visitantes. Parece que existiam vários deles. Gabriel e seu pai não se destacaram, particularmente, exceto pelo fato de o pai ser claramente amigo
de Matthias, e não da casa. Ele mantinha a discrição. Sempre educado, mas nunca realmente aberto. As opiniões divergiam quanto a seu nome. Um achava que era David,
outro, Daniel, e um terceiro, Darren.
Conforme a noite se esvaía, Bel começou a questionar se haveria alguma verdade em sua reação instintiva à fotografia que Renata lhe mostrara. Todo o resto parecia
muito pouco substancial. Então, enquanto se servia de uma taça de vin santo e um punhado de biscoitos cantuccini, um adolescente se aproximou dela hesitante.
- É você quem quer saber sobre o BurEst, certo? - ele murmurou.
- Isso mesmo.
- E sobre aquele carinha, o Gabe?
- O que você sabe? - perguntou Bel, aproximando-se, fazendo-o sentir como se eles estivessem numa conspiração só dos dois.
- Ele estava lá, na noite em que eles deram o fora.
- Você quer dizer o Gabriel?
- Isso. Eu não disse nada antes porque eu deveria estar na escola, só que não estava, entendeu?
Bel deu um tapinha em seu braço.
- Acredite em mim, entendo perfeitamente. Eu também não me dava muito bem com a escola. Tanta coisa mais interessante para fazer.
- Pois é, bem, de qualquer maneira, eu estava em Siena e vi Matthias vindo da estação junto com o Gabe. Matthias ficara fora uns dias. Eu não tinha nada melhor
a fazer, então segui os dois. Eles atravessaram a cidade até o estacionamento perto da Porta Romana e saíram na van de Matthias.
- Eles estavam conversando? Pareciam amistosos?
- Pareciam estar de saco cheio. Estavam de cabeça baixa, sem falar muito. Mas não brigados. Apenas como se estivessem irritados com alguma coisa.
- Você os viu novamente? Ao voltar para cá?
O garoto sacudiu um ombro.
- Não os vi mais. Mas, quando voltei, a van de Matthias estava lá. Os outros haviam ido até Grossetto para fazer uma apresentação especial. São algumas horas
de carro, então eles já tinham saído quando eu cheguei. Eu apenas deduzi que Matthias e Gabe estivessem na villa. - Ele sorriu maldoso. - Fazendo sabe Deus o quê.
A julgar pelo sangue no chão, Bel pensou, não era nada tão divertido quanto aquele jovem sem imaginação estava pensando. A verdadeira pergunta era: de quem era o
sangue? Será que os integrantes do BurEst haviam partido porque, ao retornarem, encontraram seu líder numa poça de seu próprio sangue? Ou haviam se dispersado porque
seu líder tinha o sangue de Gabriel nas mãos?
- Obrigada - ela disse, voltando-se e completando o copo que, de alguma forma, havia se esvaziado. Ela se afastou da multidão falante e
caminhou pelas margens da vinha. Seu informante lhe havia proporcionado muita coisa em que pensar. Matthias tinha passado alguns dias fora. Ele voltou com Gabriel.
Os dois haviam ficado sozinhos na villa. No meio da manhã seguinte, toda a trupe havia partido às pressas, deixando os mesmos pôsteres previamente usados pelo Pacto
Anarquista da Escócia e uma grande mancha de sangue no chão.
Não era preciso ser um detetive para concluir que alguma coisa dera terrivelmente errado. Mas para quem? E, talvez, o mais importante: por quê?
East Wemyss
Verão na Escócia, pensou Karen com azedume ao descer com dificuldade o caminho até a caverna Thane's. Ainda estava claro às nove da noite, uma garoa fina deixava-a
ensopada e os mosquitos picavam como se não houvesse amanhã. Ela podia vê-los numa nuvem em volta da cabeça de Phil conforme o seguia, descendo até a praia. Tinha
certeza de que eram piores agora do que quando ela era criança. Maldito aquecimento global. As criaturinhas ficavam ainda mais malignas, e o clima, cada vez pior.
Quando a trilha se nivelou, ela pôde ver alguns dos alunos de River encolhidos sob uma protuberância, fumando. Talvez se ela ficasse contra o vento, a fumaça espantasse
os mosquitos. Além deles, River andava de um lado a outro, com o telefone no ouvido e o longo cabelo escuro preso num rabo de cavalo que saía pela abertura de trás
do boné de beisebol. O que gelou Karen mais do que a chuva foi o resplendor do macacão de papel branco que River estava usando. A antropóloga se virou, avistou-os
e encerrou abruptamente sua ligação telefônica.
- Só estava dizendo para o Ewan não me esperar em casa pelos próximos dias - ela disse, com tristeza.
- Então, o que você encontrou? - perguntou Karen, a pressa aniquilava qualquer cortesia.
- Vamos entrar e eu lhe mostrarei.
Eles a seguiram para dentro da caverna, as luzes de trabalho criando um padrão abstrato de escuridão e luz ao qual demorou um pouco para que os olhos se ajustassem.
A equipe de remoção havia parado de trabalhar, e todos estavam sentados por ali, comendo sanduíches e tomando refrigerante.
Karen e Phil funcionaram como ímãs para o interesse deles, e seus olhos seguiam os policiais o tempo todo.
River os conduziu até onde o desmoronamento de pedras havia bloqueado a passagem para o centro do rochedo. Quase todas as rochas e pedras pequenas haviam sido removidas,
deixando uma abertura estreita. Ela iluminou o cascalho restante com uma lanterna potente, mostrando que o desmoronamento em si se estendia por apenas 1,20m.
- Ficamos surpresos ao descobrir como era pouco extenso. Esperávamos que se prolongasse por uns seis metros ou mais. Isso me deixou desconfiada logo de cara.
- Como assim? - perguntou Phil.
- Não sou geóloga. Mas, pelo que entendi das explicações dos meus colegas de Ciências Geológicas, é preciso haver muita pressão para que ocorra um desmoronamento
natural. Quando estavam extraindo minério por aqui, a escavação produzia muito estresse nas rochas acima, então ocorriam grandes fraturas e desmoronamentos. É essa
quantidade de pressão geológica que provoca desmoronamentos do teto em cavernas antigas como esta. Elas estão aqui há oito mil anos. Simplesmente não entram em colapso
sem motivo. Mas, quando acontece, é como se retirassem o pilar central de uma ponte. E ocorre um desmoronamento enorme. - Enquanto falava, River movimentava o facho
da lanterna ao redor, mostrando que o teto estava surpreendentemente sólido nos dois lados do desmoronamento. - Por outro lado, se você souber o que está fazendo,
uma pequena carga explosiva criará uma queda controlada que só afetará uma área relativamente pequena. - Ela ergueu as sobrancelhas para Karen. - O tipo de coisa
que fazem o tempo todo nas minas.
- Você está dizendo que este desmoronamento foi provocado deliberadamente? - perguntou Karen.
- Você precisaria de um especialista para lhe dar uma resposta definitiva, mas, baseada no pouco que sei, eu diria que, na minha opinião, parece que sim.
- Ela se virou e apontou a lanterna para uma seção da parede da caverna a aproximadamente um metro e meio do chão. Havia um buraco mais ou menos cônico na rocha,
com listras pretas manchando o arenito vermelho. - Isto aqui me parece um buraco para carga explosiva - disse River.
- Merda - disse Karen. - E agora?
- Bem, quando vi isso, achei que precisávamos pisar com muita cautela, depois que abríssemos uma passagem. Então, coloquei o macacão e entrei pessoalmente.
Há, talvez, uns três metros de passagem e, então, ela se abre para uma câmara bastante grande. Talvez cinco metros por quatro.
- River suspirou. - Vai ser um pesadelo para analisar.
- E existem razões para analisar? - perguntou Phil.
- Ah, sim. Existe uma razão. - Ela direcionou a lanterna para os pés deles. - Vocês podem ver que o solo é apenas terra batida. Logo na entrada da câmara,
à esquerda, a terra está solta. Ela foi pisoteada, mas pude ver que era de textura diferente do resto do solo. Coloquei algumas lâmpadas e uma câmera e comecei a
cavar a terra. - A voz de River havia ficado fria e distante. - Não precisei ir muito longe. A cerca de quinze centímetros de profundidade, encontrei um crânio.
Não mexi nele. Quis que vocês o vissem in situ antes de prosseguirmos. - Ela acenou para que eles voltassem da área do desmoronamento. - Vocês precisam colocar o
macacão - ela disse, virando-se para os alunos. - Jackie, você poderia me trazer macacões e protetores de sapatos para a investigadora Pirie e para o sargento Parhatka?
Enquanto eles se vestiam, River repassou suas opções. Resumiam-se a deixar os alunos trabalharem sob sua estrita supervisão ou trazer a equipe de peritos criminais
da polícia.
- A decisão é sua - disse River. - Só lhe digo que não apenas somos a opção mais barata, como também especialistas treinados recentemente. Não sei qual é
seu nível de conhecimento de arqueologia e antropologia, mas estou apostando que uma força policial pequena como a de Fife não conta com uma equipe de especialistas
treinada nas mais recentes técnicas em sua folha de pagamento.
Karen lançou-lhe aquele olhar que fazia seus agentes voltarem à infância.
- Não tivemos nenhum caso como este, durante o tempo em que venho servindo à polícia. Para qualquer coisa fora do normal, sempre usamos especialistas externos.
O ponto principal é garantir que a evidência seja aceita no tribunal. Sei que você, como especialista, é uma testemunha qualificada, mas seus alunos não são. Terei
que consultar o Biscoito quanto a este caso, mas acho que devemos continuar com o seu time. Deve haver
duas câmeras filmando o tempo todo, entretanto, e você tem de estar no local sempre que eles estiverem trabalhando. - Ela ajustou o macacão, feliz de que Jackie
houvesse lhe dado um suficientemente grande para acomodar suas generosas proporções. Os peritos criminais nem sempre eram tão atenciosos. Ela achava que eles, às
vezes, faziam de propósito, para fazê-la se sentir constrangida no que consideravam como "seu" domínio. - Vamos dar uma olhada, então.
River entregou uma lanterna a cada um deles.
- Ainda não demarquei uma rota de aproximação - ela disse, enquanto ajustava uma lanterna de cabeça. - Apenas fiquem o máximo possível à esquerda.
Eles seguiram sua lâmpada sacolejante para dentro da escuridão. Karen deu um último olhar por cima do ombro, mas era difícil ver qualquer coisa além da silhueta
de Phil. A qualidade do ar mudou quando passaram pelos restos do desmoronamento, a salinidade substituída por um leve cheiro de bolor, matizado pela acidez dos antigos
excrementos de pássaros e morcegos. Um brilho opaco à frente deles indicava a luz da câmera de vídeo, que ainda estava filmando.
River parou no ponto em que as paredes se abriam para a câmara. Sua lanterna multiplicava a luz da câmera, revelando uma pequena área de chão de terra onde o solo
havia sido varrido, formando uma depressão rasa. Resplandecendo em tom opaco em contraste à terra marrom-avermelhada havia o contorno inconfundível de um crânio
humano.
- Você estava certa - Phil disse baixinho.
- E você não faz ideia de como isso me deixa puta da vida - Karen respondeu enfaticamente, observando todos os detalhes. Ela se virou, tentando concatenar
os pensamentos. - Pobre filho da puta, quem quer que você seja.
Terça-feira, 3 de julho de 2007; Glenrothes
Karen estacionou na sua vaga na central e desligou o carro. Ficou sentada ali por um longo tempo, observando a chuva cobrir o para-brisa. Aquela não seria a manhã
mais fácil da sua carreira. Tinha um cadáver, mas, tecnicamente, era o cadáver errado. Tinha de impedir que Biscoito se
precipitasse e deduzisse que aquele era um dos seqüestradores de Catriona Maclennan Grant. E, para isso, ela teria de admitir que vinha trabalhando em algo que ele
não sabia. Phil estava certo. Ela não deveria ter cedido ao desejo de colocar a mão na massa. Não era um grande consolo o fato de ter feito mais progresso no caso
de Mick Prentice do que os policiais teriam conseguido. Sair dessa sem uma advertência formal seria um verdadeiro milagre.
Suspirando, ela pegou seus arquivos e correu pela chuva intensa. Empurrou a porta, com a cabeça baixa, dirigindo-se diretamente para os elevadores. Mas a voz de
Dave Cruickshank fez com que ela detivesse os passos.
- Investigadora Pirie - ele chamou. - Tem uma senhora aqui que quer vê-la.
Karen se virou no instante em que Jenny Prentice se levantava, hesitante, de uma cadeira na recepção. Ela obviamente havia se esforçado. O cabelo grisalho estava
trançado com esmero, e a roupa era claramente a que ela reservava para ocasiões especiais. O casaco de lã vermelho-escuro normalmente teria sido absurdamente quente
para o mês de julho, mas não este ano.
- Sra. Prentice - disse Karen, esperando que sua decepção não fosse tão aparente.
- Preciso falar com você - disse Jenny. - Não vai demorar muito - acrescentou, vendo Karen olhar de relance para o relógio na parede.
- Ótimo. Porque não tenho muito tempo - disse Karen.
Havia uma pequena sala de entrevistas perto do saguão, e ela a guiou para lá. Deixou cair as pastas sobre uma cadeira, num canto, então se sentou de frente para
Jenny, numa mesinha. Não estava com humor para bajulação.
- Suponho que a senhora tenha vindo responder às perguntas que tentei lhe fazer ontem.
- Não - respondeu Jenny, tão teimosa quanto a própria Karen podia ser. - Vim dizer para interromper tudo.
- Interromper o quê?
- Essa suposta caça a Mick. - Seus olhos se fixaram de forma desafiadora nos de Karen. - Ele não está desaparecido. Eu sei onde ele está.
Aquilo era a última coisa que Karen tinha esperado ouvir.
- O que quer dizer com sabe onde ele está?
Jenny deu de ombros.
- Não sei de que outra maneira posso explicar. Há anos eu sei onde ele está. E que ele não quer mais saber da gente.
- Então, por que manteve em segredo? Por que só agora estou sabendo disso? A senhora não conhece o princípio de desperdício de tempo policial? - Karen sabia
que estava quase gritando, mas não se importava.
- Eu não queria magoar Misha. Como você se sentiria se alguém dissesse que seu pai não queria mais nada com você? Eu quis poupá-la.
Karen a encarou com dúvidas. A voz e a expressão de Jenny mostravam convicção. Mas Karen não podia se dar ao luxo de acreditar piamente nela.
- E quanto a Luke? Com certeza a senhora desejaria fazer todo o possível para salvá-lo. Misha não tem o direito de pedir a ajuda do pai?
Jenny olhou para ela com desdém.
- Você acha que eu já não pedi a ajuda dele? Eu implorei. Enviei a ele fotos do pequeno Luke para tentar fazê-lo mudar de ideia. Mas ele apenas disse que
o garoto não significava nada para ele. - Ela desviou os olhos. - Acho que ele tem outra família agora. Nós não temos nenhuma importância para ele. Os homens parecem
lidar com isso melhor do que as mulheres.
- Vou ter que falar com ele - disse Karen.
Jenny negou com a cabeça.
- De jeito nenhum.
- Olhe, Sra. Prentice - Karen disse em meio à sua crescente irritação -, um homem foi dado como desaparecido. A senhora diz que ele não está desaparecido,
mas só tenho a sua palavra. Preciso confirmar o que a senhora está me dizendo. Eu não estaria fazendo meu trabalho direito se não fizesse isso.
- E o que acontece depois? - Jenny agarrou a borda da mesa. - O que você vai dizer quando Misha lhe perguntar como vai a investigação? Você vai mentir para
ela? Isso faz parte do seu trabalho? Você mente para ela e espera que ela nunca descubra a verdade através de outros policiais, no futuro? Ou vai dizer a verdade
e deixar que Mick destrua o coração dela de novo?
- Não é meu trabalho fazer esses julgamentos. Devo descobrir a verdade e, depois disso, não está mais nas minhas mãos. A senhora precisa me dizer onde Mick
está, Sra. Prentice. - Karen sabia que era difícil resistir quando ela usava todo o poder de sua personalidade. Mas aquela mulherzinha desafiadora estava retribuindo
na mesma moeda.
- Tudo que vou dizer é que você está desperdiçando seu tempo procurando por uma pessoa que não está desaparecida. Interrompa a investigação, inspetora, apenas
isso.
Alguma coisa em relação a Jenny Prentice não cheirava bem. Karen não conseguia identificar o que era, mas, até que conseguisse, não cederia nem um centímetro. Ela
se levantou e afastou-se decidida para apanhar suas pastas.
- Não acredito na senhora. E, de qualquer maneira, já é tarde demais, Jenny - disse, virando-se para encará-la. - Encontramos um corpo.
Ela já havia lido sobre a cor desaparecer do rosto das pessoas, mas nunca antes tinha visto isso acontecer.
- Não pode ser - a voz de Jenny era um sussurro.
- Pode ser sim, Jenny. E o local em que o encontramos... graças a você, sabemos que é um lugar que Mick costumava frequentar. - Karen abriu a porta. - Entraremos
em contato.
Ela esperou acintosamente até Jenny recobrar-se e se arrastar até a porta, uma mulher profundamente transformada por aquelas palavras. Pela primeira vez, Karen não
se sentiu nem um pouco solidária. Quaisquer que fossem os motivos de Jenny Prentice para aquele pequeno show, Karen tinha certeza de que era exatamente isso que
havia sido: um show. Jenny não sabia onde estava Mick Prentice mais do que a própria Karen.
Tudo que precisava fazer agora era entender por que era tão importante para Jenny que a polícia desistisse da investigação. Outro encontro, outro quebra-cabeça.
Atualmente, parecia que vinham sempre de mãos dadas. Havia semanas em que era impossível obter uma resposta direta.
- Mas essa notícia é fantástica, inspetora.
Não era sempre que os relatórios de Karen Pirie traziam satisfação a Simon Lees, muito menos alegria. Mas ele não podia esconder o fato de que
estava duplamente feliz com o que ela lhe apresentara naquele dia. Não apenas tinham descoberto um corpo que traria algum avanço para um caso que estava parado havia
mais de vinte anos, como também o haviam conseguido com um orçamento baixíssimo.
Então, um terrível pensamento lhe ocorreu.
- É o esqueleto de um adulto? - perguntou, a apreensão apertando-lhe o peito.
- Sim, senhor.
Por que ela parecia tão chateada com aquilo? Ela havia atuado de acordo com um pressentimento e tinha obtido um bom resultado. No lugar dela, ele estaria mais feliz
que cachorro com dois rabos. Bem, na verdade, era assim mesmo que ele se sentia. Aquela operação era dele, no final das contas; trazia bons resultados tanto para
ele quanto para seus oficiais. Pelo menos uma vez, ela lhe trazia luz, em vez de merda.
- Muito bem - ele disse, bruscamente, empurrando a cadeira para trás. - Acho que devemos ir logo a Rotheswell contar as novidades a Sir Broderick. - Uma série
de expressões passou pela cara de bolacha de Karen, terminando no que se parecia muito com apreensão. - Qual é o problema? Você ainda não contou para ele, contou?
- Não, não contei - ela disse lentamente. - Porque não estou realmente convencida de que tenha alguma relação com o desaparecimento de Adam Grant.
Ele entendeu as palavras, mas elas não faziam nenhum sentido. Ela havia organizado aquela operação toda com base no fato de o desmoronamento da caverna ter sido
descoberto após o desastre da entrega do resgate. Ela havia sugerido que um dos seqüestradores poderia estar embaixo das pedras. Ele jamais teria autorizado a operação,
não fosse por isso. Mas agora ela parecia sugerir que o corpo não tinha nada a ver com o caso que estava investigando. Era coisa saída diretamente de "Alice no País
do Espelho".
- Não entendo - ele disse num tom queixoso. - Você me disse que achava que existia um barco. Sugeriu que poderia haver um corpo. E encontrou um corpo. Mas,
em vez de comemorar o fato de estar certa, você está me dizendo que é o corpo errado.
- Eu não conseguiria explicar melhor - ela disse, atrevendo-se a sorrir.
- Mas por quê? - Ele podia se ouvir quase gritando e pigarreou ruidosamente. - Por quê? - repetiu, uma oitava mais baixo.
Ela se mexeu na cadeira e cruzou as pernas.
- É um pouco difícil de explicar.
- Não me importa. Comece de algum lugar. De preferência, do início.
Lees não podia impedir suas mãos de se retorcerem. Ele gostaria de ainda ter a bolinha antiestresse que os filhos lhe deram no Natal, a bola antiestresse que ele
havia jogado fora porque era controlado demais para precisar de uma coisa daquelas.
- Tivemos um caso muito incomum reaberto no outro dia... - ela começou. Parecia hesitante, uma versão dela que ele nunca vira antes. Se aquilo não fosse tão
irritante, ele até teria se divertido. - Um homem dado como desaparecido pela filha.
- Isso não é nada incomum - ele retrucou.
- É sim, quando o desaparecimento aconteceu em 1984. No auge da greve dos mineiros - Karen devolveu na mesma medida, sem qualquer hesitação. - Dei uma olhadinha
no caso e descobri que havia duas pessoas com boas razões para querer esse cara fora do caminho. Ambas trabalhavam no setor de mineração. Ambas conheciam o método
de explosão de rochas. Nenhuma delas teria tido muita dificuldade para pôr as mãos em cargas explosivas. E, como tentei lhe explicar antes, senhor, todo mundo por
aqui conhece as cavernas. - Ela fez uma pausa momentânea e olhou agressivamente para ele. Era um olhar que beirava a insubordinação. - Eu sabia que o senhor jamais
aprovaria a escavação do desmoronamento por causa de um mineiro em greve dado como desaparecido.
- Então você mentiu? - Lees atacou. Ele não iria suportar aquela rebelião arrogante nem por mais um minuto.
- Não, não menti - ela respondeu calmamente. - Apenas fui um pouco criativa com a verdade. O desmoronamento na caverna realmente foi descoberto depois que
Catriona Maclennan Grant morreu. E o helicóptero não pôde encontrar o barco no qual os seqüestradores escaparam. O que lhe dei foi uma hipótese razoável. Mas, no
balanço das probabilidades, estou dizendo que é mais provável que o corpo seja de Mick Prentice do que de um sequestrador desconhecido.
Lees podia sentir o sangue latejando em sua cabeça.
- Inacreditável.
- Na verdade, senhor, acho que tem de admitir que obtivemos um bom resultado. Quer dizer, não gastamos todo esse dinheiro à toa. Pelo menos temos um corpo
para justificá-lo. O.k., talvez isso nos dê mais perguntas do que respostas. Mas, sabe, sempre dizemos que nosso trabalho é falar pelos mortos, obter justiça para
pessoas que não conseguem fazê-lo por si mesmas. Se o senhor olhar por esse ângulo, é uma oportunidade de servirmos.
Lees sentiu algo estalar dentro de sua cabeça.
- Uma oportunidade? Em que planeta você vive? Isso é um maldito pesadelo. Você deveria concentrar todos os seus recursos em descobrir quem matou Catriona
Grant e o que aconteceu com o filho dela, e não desperdiçar tempo com um caso de pessoa desaparecida em 1984. O que quer que eu diga a Sir Broderick? "Vamos cuidar
da sua família quando a inspetora Pirie tiver tempo sobrando"? Você acha que é a dona da lei - ele explodiu. - Você simplesmente atropela qualquer protocolo. Você
segue seus palpites como se estivessem baseados em algo além de intuição feminina. Você... você...
- Cuidado, senhor. Está beirando o sexismo - Karen disse docemente, os olhos arregalados com inocência fingida. - Os homens também têm intuição. Só que a
chamam de lógica. Olhe pelo lado positivo: se for Mick Prentice, já reunimos um monte de informações sobre o que estava acontecendo por volta da época em que ele
desapareceu. Temos uma vantagem inicial nesse inquérito de assassinato. E não estaremos ignorando o caso Grant. Estou trabalhando em conjunto com a polícia italiana,
mas essas coisas levam tempo. É claro, se eu pudesse ir para a Itália, tudo poderia se acelerar... não é?
- Você não vai a lugar algum. Quando isso tudo terminar, pode ser que você nem sequer... - O telefone tocou no final da sua ameaça. Ele o agarrou. - Achei
que tivesse dito para não passar nenhuma chamada, Emma... Sim, eu sei quem é a Dra. Wilde... - Ele suspirou rispidamente. - Está bem. Mande-a entrar. - Recolocou
o fone no gancho cuidadosamente e olhou furioso para Karen. - Ainda voltaremos a falar neste assunto. A Dra. Wilde está aqui. Vamos ver o que ela tem a dizer.
A mulher que entrou não era o que ele havia esperado. Para começo de conversa, ela parecia uma adolescente, ainda esperando por sua espichada
de crescimento. Tinha pouco mais de um metro e meio e era magra como um galgo. O cabelo escuro preso, deixando à mostra um rosto dominado por enormes olhos cinzentos,
e a boca larga acentuavam ainda mais a semelhança. Ela usava botas de construção, jeans e camisa de brim desbotado quase completamente em alguns pontos, sob uma
surrada jaqueta impermeável. Lees nunca tinha visto alguém que se parecesse menos com um acadêmico. Ela estendeu uma mão delgada, dizendo:
- Você deve ser Simon Lees. É um prazer conhecê-lo.
Ele olhou para a mão dela, imaginando os lugares em que havia estado e as coisas que havia tocado. Tentando não estremecer, tomou seus dedos frios rapidamente e
indicou com um gesto a outra cadeira de visitante.
- Obrigado por sua ajuda - ele disse, tentando conter a raiva, pelo menos por enquanto.
- É um prazer - disse River, num tom realmente sincero. - É uma excelente oportunidade para trabalhar em um caso real com meus alunos. Eles têm uma grande
experiência de laboratório, mas não se pode comparar isso com a situação real. E eles vêm fazendo um trabalho incrível.
- É o que parece. Agora, imagino que você está aqui porque tem algo a informar. - Ele sabia que parecia tão rígido quanto um dos cadáveres dela, mas era a
única forma de conseguir se manter sob controle. River trocou um olhar rápido e ininteligível com Karen, e ele sentiu o sangue ferver novamente. - Ou precisa de
acesso a mais alguma instalação? É isso?
- Não. Temos acesso a tudo que precisamos. Eu só queria atualizar a investigadora Pirie e, quando o sargento Parhatka me disse que ela estava numa reunião
com você, achei que seria uma chance de conhecê-lo. Espero não ter interrompido nada.
River inclinou-se para a frente, oferecendo-lhe um sorriso que o fez lembrar-se do de Julia Roberts. Era difícil manter a raiva diante de um sorriso daqueles.
- Absolutamente - ele disse, sentindo-se acalmar a cada segundo. - É sempre bom identificar o rosto com o nome.
- Mesmo quando se trata de um nome bobo como o meu, que significa "rio", em inglês - River disse, melancolicamente. - Pais hippies, antes que você pergunte.
Bem, você deve estar querendo saber o que eu descobri até agora. - Ela apanhou a agenda eletrônica e pressionou algumas teclas.
- Trabalhamos até tarde da noite para limpar o esqueleto e removê-lo da cova rasa. - Ela se virou para Karen. - Entreguei a Phil uma cópia do vídeo. - De
volta à agenda eletrônica. - Fiz um exame preliminar hoje cedo e posso lhes dar algumas informações. Nosso esqueleto é um homem. Tem mais de vinte anos e menos de
quarenta. Tem um pouco de cabelo, mas é difícil dizer de que cor era originalmente. Foi manchado pela terra. Ele passou por alguns tratamentos dentários, portanto,
assim que vocês reduzirem as possibilidades, podemos dar seguimento com base nisso. E poderemos coletar amostras de DNA.
- Quando ele foi enterrado? - Lees perguntou.
River deu de ombros.
- Existem testes mais extensivos, mais caros e mais demorados que podemos fazer. Mas, no momento, é difícil ser precisa quanto ao tempo que ele está sob a
terra. No entanto, posso dizer com um alto grau de certeza que ele ainda estava vivo durante a maior parte do ano de 1984.
- Isso é incrível - Lees exclamou. - Vocês da criminalística me espantam.
Karen lançou-lhe um olhar frio.
- Havia moedas soltas no bolso dele, não é?
- Na verdade, não havia bolso nenhum - disse River. - Ele vestia roupas de algodão e lã, então não sobrou quase nada. As moedas estavam caídas dentro de sua
cintura pélvica. - Ela sorriu novamente para Lees. - Desculpe, dessa vez não é ciência. Só observação.
Lees pigarreou, sentindo-se tolo.
- Há mais alguma coisa que você possa nos dizer, neste estágio?
- Ah, sim - respondeu River. - Ele não teve, de modo algum, morte natural.
San Gimignano
Enquanto dirigia em volta do estacionamento pela terceira vez à procura de alguma vaga, Bel fez sua memória regressar a como tinha sido San Gimignano antes de haver
se tornado um Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Não havia dúvidas de que valia a classificação. Na idade Média, os habitantes usavam a pedra calcária cinza em
suas construções que acabaram formando um labirinto apertado de ruas que convergem para a
Piazza delia Cisterna, a praça central com seu antiquíssimo poço. Quando o crescimento da cidade ameaçou ultrapassar as enormes muralhas, eles optaram por construir
para cima, em vez de para os lados. Dúzias de torres se erguiam, na linha do horizonte, conferindo uma aparência recortada e cheia de lacunas, quando vista da planície
abaixo. Definitivamente singular. Definitivamente patrimônio da humanidade. E definitivamente arruinada por seu status.
Bel visitara pela primeira vez aquela espetacular cidadezinha toscana no começo dos anos oitenta, quando quase não havia turistas nas ruas. Naquela época, existiam
lojas de verdade: padarias, quitandas, açougues, sapatarias. Lojas onde se podia comprar sabão em pó, cuecas ou um pente. Os moradores locais, de fato, tomavam café
nos bares e cafeterias. Agora, a cidade estava transformada. A única opção para comprar comida e roupas de verdade era na feira das quintas. Com exceção disso, todo
o resto estava voltado para turistas. Enotecas vendendo a preços abusivos vinhos ver-naccia e chianti que os moradores locais não tomariam nem que lhes pagassem.
Lojas de artigos de couro, todas vendendo bolsas e carteiras idênticas, produzidas em fábricas. Lojas de suvenires e sorveterias. E, é claro, galerias de arte para
aqueles com mais dinheiro do que bom-senso. Bel esperava que fossem os moradores locais que estivessem ganhando todo aquele dinheiro, porque eram eles que pagavam
o preço mais alto.
Pelo menos as ruas não estavam muito lotadas assim tão cedo, antes da chegada dos ônibus de turistas. Bel finalmente se espremeu numa vaga do estacionamento e dirigiu-se
para o grande portal de pedra que guardava a entrada principal da cidade. Mal havia percorrido trinta metros quando encontrou a primeira galeria de arte. O dono
acabara de levantar as persianas, quando ela chegou. Bel deu uma avaliada nele: provavelmente da sua idade, pele lisa e cabelo escuro, óculos de armação estilosa
que faziam seus olhos parecerem pequenos demais, um pouco gorducho para o jeans apertado e a camisa da Ralph Lauren. Um apelo a sua vaidade provavelmente seria a
melhor abordagem. Ela esperou pacientemente e, então, seguiu-o para dentro. As paredes estavam cobertas por gravuras e aquarelas repletas de clichês da Toscana:
ciprestes, girassóis, casas de campo rústicas, papoulas. Todas eram benfeitas e bonitas, mas não penduraria nenhuma delas em sua casa. Quadros produzidos em série
para os viajantes dos ônibus de
turismo que tentavam eliminar mais um lugar de sua lista de pontos turísticos. Meu Deus, ela estava ficando esnobe, depois de velha.
O dono se instalara atrás de uma escrivaninha com tampo de couro, obviamente projetada para parecer uma antiguidade. Provavelmente era da mesma idade que o carro
dele, Bel pensou. Ela se aproximou, estampando seu sorriso menos predatório no rosto.
- Bom dia - disse. - Que coleção maravilhosa de quadros. Feliz de quem tem um deles em sua casa.
- Nós nos orgulhamos da qualidade das nossas obras de arte - ele disse, sem uma centelha sequer de ironia.
- Incrível. Elas fazem a paisagem tomar vida. Será que você poderia me ajudar?
Ele a mediu de cima a baixo. Ela podia vê-lo colocando preço em tudo, do seu vestido leve da Harvey Nicks à bolsa de palha comprada na feira, antes de decidir quanta
energia colocar no próprio sorriso. Ele deve ter gostado do que viu; ela ganhou uma exibição completa de seus dentes cosme-ticamente tratados.
- Será um prazer - ele disse. - O que você está procurando? - Ele se levantou, ajeitando a camisa de forma a esconder os quilos extras.
Um sorriso de desculpas.
- Não estou realmente procurando um quadro - ela disse. - Estou procurando por um pintor. Sou jornalista. - Bel tirou seu cartão do bolso do vestido e o entregou
a ele, ignorando o olhar frio que substituiu a simpatia anterior. - Estou procurando por um pintor britânico de paisagens que vive por aqui, ganhando a vida, durante
os últimos vinte anos, mais ou menos. A dificuldade é que eu não sei o nome dele. Começa com D... David, Darren, Daniel. Algo assim. Ele tem um filho de uns vinte
e poucos anos, chamado Gabriel. - Ela fizera cópias das fotos de Renata e as tirou da bolsa. - Este é o filho, e este é o pintor que quero encontrar. Meu editor
acha que existe algo interessante aí. - Ela deu de ombros. - Sei lá. Preciso conversar com ele, descobrir qual é sua história.
Ele olhou as fotos de relance.
- Não o conheço - disse. - Todos os meus artistas são italianos. Você tem certeza de que ele é profissional? Existem muitos amadores que vendem coisas na
calçada. Um monte deles é estrangeiro.
- Ah, não, ele é profissional, sim. Tem representantes aqui e em Siena.
- Ela indicou os quadros nas paredes com as mãos abertas. - É claro que não é bom o bastante para você. - Ela pegou as fotos de volta. - Obrigada pelo seu
tempo. - Ele já havia se virado, encaminhando-se para a confortável cadeira rodeada pelos quadros sem alma. Sem venda, não havia conversa.
Não faltavam galerias de arte, isso ela sabia. Mais duas e, depois, faria uma pausa para um café e um cigarro. Outras três, daí um sorvete. Pequenos prazercs para
impeli-la durante o trabalho.
Não chegou ao sorvete. Na quinta galeria que tentou, encontrou ouro. Era um espaço claro e arejado, os quadros e esculturas espalhados de forma a serem apreciados.
Bel de fato achou agradável caminhar até a escrivaninha nos fundos. Dessa vez, era uma mulher de meia-idade atrás de uma mesa moderna e funcional coberta de brochuras
e catálogos. Ela usava o uniforme de linho amarrotado da camada mais descontraída das mulheres italianas de classe média. Ergueu os olhos do computador e dirigiu
a Bel um olhar vago, levemente assustado.
- Posso ajudar? - perguntou, as palavras se atropelando.
Bel proferiu seu discurso ensaiado. Depois de algumas frases, a mão da mulher voou para cobrir sua boca, os olhos se arregalando em choque.
- Oh, meu Deus - ela disse. - Daniel. Você quer dizer o Daniel?
Bel tirou as fotos da bolsa e as mostrou para a mulher. Ela pareceu prestes a explodir em lágrimas.
- Este é o Daniel - ela disse. Ela estendeu a mão e tocou a cabeça de Gabriel com a ponta dos dedos. - E o Gabe. Pobrezinho do Gabe.
- Não entendo - disse Bel. - Há algum problema?
A mulher respirou profundamente e estremeceu.
- Daniel está morto. - Ela abriu as mãos num gesto de tristeza. - Ele morreu em abril passado.
Agora foi a vez de Bel sentir um golpe.
- O que aconteceu?
A mulher voltou a se reclinar em sua cadeira e correu os dedos pelo cabelo crespo e escuro.
- Câncer de pâncreas. Ele foi diagnosticado pouco antes do Natal. Foi horrível. - Lágrimas cintilaram em seus olhos. - Não deveria ter acontecido
com ele. Ele era... era um homem tão bom. Muito gentil. Muito reservado. E amava tanto o seu menino. A mãe de Gabe morreu no parto. Daniel o criou sozinho e
fez um excelente trabalho.
- Sinto muitíssimo - disse Bel. Pelo menos o sangue no chão da villa Totti não era de Daniel. - Eu não fazia ideia. Só ouvi falar desse maravilhoso artista
britânico que tinha se estabelecido por aqui há alguns anos. Eu queria escrever uma matéria sobre ele.
- Você conhece o trabalho dele? - A mulher se levantou e acenou para que Bel a seguisse. Elas terminaram numa pequena sala nos fundos da galeria. Na parede
havia uma série de trípticos, representações abstratas de paisagens terrestres e marítimas. - Ele também pintava aquarelas - disse a mulher. - As aquarelas eram
mais figurativas. Ele conseguia vender mais delas. Mas eram estas que ele amava.
- São esplêndidas - disse Bel com sinceridade. Realmente gostaria de ter conhecido o homem que tinha visto o mundo daquela maneira.
- Sim. São mesmo. Detesto o fato de que não haverá mais delas. - Estendeu a mão e roçou a pintura acrílica texturizada com a ponta dos dedos. - Tenho saudade
dele. Era tanto um amigo quanto um cliente.
- Será que você poderia me colocar em contato com o filho dele? - perguntou Bel, sem perder de vista o motivo pelo qual estava ali. - Talvez eu ainda pudesse
escrever a matéria. Uma espécie de tributo.
A mulher sorriu tristemente.
- Daniel sempre desprezou publicidade quando estava vivo. Ele não tinha nenhum interesse no culto da personalidade. Queria que suas pinturas falassem por
ele. Mas agora... seria bom ver seu trabalho reconhecido. Talvez Gabe goste disso. - Ela balançou a cabeça lentamente.
- Você poderia me dar o telefone dele? Ou o endereço? - perguntou Bel.
A mulher pareceu ligeiramente chocada.
- Ah, não, eu não poderia fazer isso. Daniel sempre insistiu em manter sua privacidade. Por favor, me dê seu cartão e entrarei em contato com Gabe. Perguntarei
a ele se está disposto a conversar com você sobre o pai.
- Então, ele ainda está por aqui?
- E onde mais ele estaria? A Toscana é o único lar que ele conhece. Todos os seus amigos estão aqui. Nós estamos nos revezando para garantir que ele tenha
pelo menos uma refeição decente por semana.
Ao voltarem até a escrivaninha, Bel se deu conta de que não havia descoberto o sobrenome de Daniel.
- Você tem algum folheto ou catálogo do trabalho dele? - ela perguntou.
A mulher assentiu.
- Vou imprimir para você.
Dez minutos depois, Bel estava de volta à rua. Pelo menos tinha algo de concreto em que se agarrar. A caçada havia começado.
Coaltown of Wemyss
As casinhas caiadas que margeavam a rua principal eram impecáveis, com suas varandas sustentadas por troncos rústicos de árvore. Elas sempre foram bem cuidadas porque
eram o que as pessoas viam, ao passar de carro pela vila. Atualmente, as ruas de trás estavam igualmente bonitas. Mas Karen sabia que nem sempre fora assim. As cabanas
na Plantation Row haviam sido uma verdadeira favela, ignoradas por seu proprietário porque aquilo que os olhos educados da sociedade não viam não merecia seu tempo.
Mas mesmo dos degraus da entrada daquela casinha em particular, Karen desconfiava que, se Effie Reekie se visse num buraco horroroso, teria conseguido transformá-lo
num pequeno paraíso. A porta da frente parecia ter sido lavada naquela manhã, não havia uma só flor murcha na jardineira da janela, e as cortinas de renda caíam
em pregas perfeitas. Ela se perguntou se Effie e sua mãe poderiam ter sido gêmeas separadas ao nascer.
- Você vai bater ou não? - perguntou Phil.
- Desculpe. Só estava tendo um momento de déjà vu. Ou algo parecido. - Karen apertou a campainha, sentindo-se culpada por deixar sua impressão digital nela.
A porta se abriu quase imediatamente. A sensação de estar numa distorção temporal continuou. Karen nunca mais tinha visto uma mulher com um turbante de lenço na
cabeça desde que a avó morrera. Com seu guarda-pó e as mangas enroladas, Effie Reekie parecia uma versão aposentada de Rosie, a Rebitadeira.* Ela olhou Karen de
cima a baixo, como se avaliasse se ela estava limpa o bastante para ter permissão de cruzar a soleira.
* Rosie, a Rebitadeira, é um ícone cultural nos EUA que representa os seis milhões de mulheres incorporadas à força de trabalho do país na Segunda Guerra Mundial.
(N.T.)
- Sim? - ela disse. Não eram boas-vindas.
Karen apresentou a si mesma e a Phil. Effie franziu a testa, aparentemente ofendida em ter oficiais da polícia à sua porta.
- Nunca vi nada nem ouvi nada - ela disse abruptamente. - Essa sempre foi minha política.
- Precisamos conversar com a senhora - Karen disse gentilmente, sentindo a fragilidade que a mulher idosa tentava desesperadamente esconder.
- Não precisam, não - respondeu Effie.
Phil deu um passo à frente.
- Sra. Reekie - ele disse -, mesmo que a senhora não tenha nada para nos dizer, eu ficaria agradecido até o fim da vida se a senhora tivesse a bondade de
nos oferecer uma xícara de chá. Minha garganta está mais seca que o Saara.
Ela hesitou, olhando de um para o outro com olhos ansiosos. Seu rosto se contorcia na luta entre a hospitalidade e a vulnerabilidade.
- Então, é melhor vocês entrarem - ela disse, finalmente. - Mas não tenho nada para contar a vocês.
A cozinha estava imaculada. River poderia ter realizado uma autópsia sobre a mesa sem correr qualquer risco de contaminação. Karen ficou satisfeita por ter adivinhado
corretamente. Assim como sua mãe, Effie Reekie via cada superfície disponível como mostruário para ornamentos e enfeitinhos. Aquilo era, pensou Karen, um desperdício
absurdo dos recursos do planeta. Tentou não pensar em todas as tralhas que havia trazido parajcasa depois de passeios escolares.
- A senhora tem uma linda casa - ela disse.
- Sempre tentei mantê-la em ordem - Effie falou enquanto se ocupava com a chaleira. - Eu nunca deixava Ben fumar dentro de casa. Ele era o meu marido, o Ben.
Morreu já faz cinco anos, mas era bem importante por aqui. Todo mundo conhecia Ben Reekie. Não haveria a confusão que existe nesta rua atualmente se o meu Ben ainda
estivesse vivo. Não, senhor. Não haveria, não.
- É sobre Ben que precisamos falar com a senhora, Sra. Reekie - disse Karen.
Ela se virou para eles, olhos arregalados como os de um coelho diante dos faróis de um carro.
- Não há nada para falar. Ele já morreu há cinco anos. Câncer. Câncer de pulmão. Anos fumando. Anos de reuniões na subseção, e todos fumando feito chaminés.
- Ele era secretário da subseção, não era? - perguntou Phil. Ele estava observando um conjunto de pratos decorativos dispostos na parede. Representavam várias
comemorações na história do movimento sindical. - Um trabalho importante, principalmente durante a greve.
- Ele amava seus homens - Effie disse com veemência. - Teria feito qualquer coisa por eles. Ficou devastado em ver ao que aquela desgraçada da Margaret Thatcher
os reduziu. E o Scargill. - Ela trouxe o chá para a mesa em meio ao tilintar da porcelana. - Nunca dei muita confiança para o Rei Arthur. Para o vale da morte, foi
para lá que ele os guiou. Teria sido outra história se o líder do movimento fosse Mick McGahey. Outra história. Ele respeitava os homens. Assim como o meu Ben. Ele
respeitava seus homens. - Ela dirigiu a Karen um olhar que beirava o desespero.
- Entendo isso, Sra. Reekie. Mas agora está na hora de corrigir os arquivos.
Karen sabia que estava se arriscando. Mick Prentice podia ter se equivocado. Ben Reekie podia ter mantido seus planos em segredo. E Effie Reekie poderia estar decidida
a não pensar sobre a maneira pela qual o marido havia traído a confiança dos homens que dizia amar.
O corpo inteiro de Effie pareceu se crispar.
- Não sei do que você está falando. - Foi uma negativa estridente, obviamente hipócrita.
- Acho que sabe, Effie - disse Phil, juntando-se às duas mulheres na mesa. - Acho que isso vem corroendo você por dentro há muito tempo.
Effie cobriu o rosto com as mãos.
- Vão embora - ela disse, com palavras abafadas. Ela estava tremendo, como uma ovelha que acabou de ser tosada.
Karen suspirou.
- Não deve ter sido fácil pra você. Ver como estava sendo duro para todo mundo, enquanto vocês se davam bem.
Effie ficou imóvel e tirou as mãos do rosto.
- Do que você está falando? - ela disse. - É claro que você não acha que ele pegou o dinheiro para si mesmo, não é? - A afronta lhe dera forças. Ou isso,
ou a deixara imprudente.
Merda, merda, merda. Karen percebeu que havia julgado a situação de forma completamente errada. Mas, se o havia feito, outros também poderiam. Outros como Mick Prentice.
Mick Prentice, cujo melhor amigo tinha sido funcionário do sindicato. Que podia até mesmo ter sido cúmplice no que Ben Reekie estava fazendo. Pensamentos voando,
ela se obrigou a voltar para a conversa.
- É lógico que não achamos isso - disse Phil. - Karen apenas quis dizer que vocês ainda recebiam um salário.
Effie olhou, incerta, para os dois.
- Ele só fez aquilo depois que começaram a confiscar os fundos do sindicato - ela disse. As palavras jorraram como se ela estivesse aliviada em libertá-las.
- Ele perguntava qual era o sentido de encaminhar o dinheiro para a subseção se eles iriam simplesmente entregá-lo para o Escritório Central. Ele dizia que o dinheiro
arrecadado localmente deveria ser usado para ajudar os mineiros locais, não ser despachado para Buffalo. - Ela conseguiu dar um sorriso de lástima. - Era isso que
ele sempre dizia: "Não ser despachado para Buffalo." Ele apenas pegava um pouco, aqui e ali, não o suficiente para que os mandachuvas percebessem. E era muito discreto
na hora de passar adiante. Ele fazia Andy Kerr examinar as cartas de pedidos para o Serviço Social e entregava o dinheiro onde fosse mais necessário.
- Alguém descobriu? - Phil perguntou. - Alguém o pegou fazendo isso?
- O que você acha? Eles o teriam enforcado primeiro e perguntado depois. O sindicato era sagrado por aqui. Ele jamais teria escapado ileso se alguém houvesse
sequer desconfiado.
- Mas Andy sabia. - Karen ainda não estava pronta para desistir.
- Não, não, ele nunca soube. Ben nunca disse que estava dando o dinheiro para eles. Ele só pedia para Andy lhes dar prioridade, supostamente para ajudar à
subseção. Só que não havia nenhuma ajuda à subseção naquele período porque todos os fundos estavam indo para o nível nacional. - Effie esfregou as mãos como se elas
estivessem doendo. - Ele sabia que não poderia confiar em ninguém para contar isso. Veja bem, mesmo que eles houvessem acreditado que ele estava fazendo tudo pelo
bem de seus homens e suas famílias, ainda teriam considerado traição. Todos deveriam colocar o sindicato em primeiro lugar, principalmente os funcionários. O que
ele fez teria sido imperdoável. E ele sabia disso.
San Gimignano
Bel finalmente encontrou um bar que não estava abarrotado de turistas. Escondido em uma rua afastada, os únicos clientes eram meia dúzia de velhos jogando cartas
e bebericando copinhos de vinho tinto. Ela pediu um expresso e uma água e se sentou perto da porta dos fundos, que se abria para um minúsculo pátio pavimentado por
pedras.
Passou alguns minutos olhando o catálogo que apanhara na galeria. Adoraria conviver com um trabalho de Daniel Porteous. Mas quem diabos fora ele? Qual era sua história?
Teria seu caminho realmente cruzado com o de Cat, ou Bel estava construindo castelos no ar? Só porque Daniel Porteous era artista e tinha uma vaga ligação com o
lugar em que os pôsteres haviam sido encontrados não significava que estivesse envolvido no sequestro. Talvez ela estivesse olhando para o homem errado. Talvez o
elo fosse Matthias, o homem que criava as marionetes e seus cenários. O homem que podia ser um assassino ou uma vítima.
Ainda olhando as reproduções do trabalho de Porteous, ela telefonou do celular para seu estagiário, Jonathan.
- Tentei entrar em contato com você ontem à noite - ele disse. - Mas seu celular estava desligado. Então liguei para a donzela de gelo lá de Rotheswell e
ela disse que você não estava disponível.
Bel riu.
- Ela gosta de se fazer de importante, não é mesmo? Desculpe por ter perdido seu telefonema ontem à noite. Eu estava numa festa.
- Uma festa? Você não deveria estar bancando a Nancy Drew?
Uma parte dela achava que a atitude atrevidamente galanteadora de Jonathan beirava o inapropriado. No entanto, era tão absurda que a divertia; então, ela o deixava
brincar.
- E estou. A festa foi na Itália.
- Na Itália? Você está na Itália?
Bel rapidamente colocou Jonathan a par dos acontecimentos.
- Portanto, agora você está por dentro de tudo - ela completou.
- Uau - disse Jonathan. - Quem diria que isso iria ser tão excitante? Nenhum dos meus amigos está fazendo um estágio como este. É como Woodward e Bemstein,
na pista de Watergate.
- Não é nada disso - protestou Bel.
- Claro que é. Você me disse que havia sangue no chão da villa. As pessoas geralmente não fogem de acidentes domésticos nem de suicídios, então isso sugere
que alguém foi assassinado. E numa situação relacionada a um assassinato e um sequestro de 22 anos atrás. Bel, existe pelo menos uma pessoa bem desagradável aí fora
e você está definitivamente na trilha dela.
- No momento, Jonathan, estou é na trilha de um jovem que acabou de perder o pai. Nossa, como isso é assustador, não? - Bel deixou escapar.
- Bel, nem todos os jovens são tão encantadores e inofensivos como eu. - Jonathan respondeu, subitamente sério. - Podemos ser bem selvagens. Você já fez
matérias
suficientes sobre estupro e assassinato para não ter ilusões sobre isso. Pare de me tratar como criança. Isso não é uma brincadeira. Prometa que você vai levar a
sério.
Bel suspirou.
- Quando encontrar algo que pareça sério, vou levar a sério, Jonathan. Prometo. Agora, enquanto isso, preciso que você faça uma coisa para mim.
- Claro, qualquer coisa que você precisar. Creio que não tem nada a ver com uma visita à Toscana, né?
- Tem a ver com uma visita ao Centro de Registros de Família em Islington para descobrir o que você puder a respeito de um homem chamado Daniel Porteous.
Ele teria algo entre quarenta e cinquenta anos. Morreu em abril passado, na Itália, mas não sei exatamente onde. Mas os atestados de óbito italianos não contêm mesmo
muita informação. Então, estou procurando por sua certidão de nascimento, talvez uma certidão de casamento. Você pode fazer isso por mim?
- Pode deixar. Volto a ligar assim que tiver alguma coisa. Obrigado, Bel. É maravilhoso estar envolvido em algo assim tão complexo.
- Obrigada - Bel disse para o vazio.
Sorveu o expresso pensativa. Não estava convencida de que a dona da galeria tiraria algum coelho da cartola, no que se referia a Gabriel Porteous. Ela teria de fazer
pessoalmente algumas investigações bastante profundas. Os registros deviam estar em Siena, capital da província. Não havia sentido em dirigir-se para lá agora. Quando
conseguisse chegar, todo mundo já teria ido embora do serviço. As tardes e a burocracia italiana não se entendiam muito bem.
Não havia nada mais a fazer. Teria de voltar a Campora e se esticar numa cadeira, à beira da piscina de Grazia. Talvez telefonasse para Vivianne para ficar em dia
com a vida familiar. Às vezes, a vida era muito, mas muito dura mesmo.
Edimburgo
Karen reclinou o banco do carro, que estava totalmente na vertical, e se acomodou para a viagem até Edimburgo.
- Sabe de uma coisa - ela disse -, minha cabeça está se remoendo com este caso. Toda vez que acho que estou entendendo aparece algo para me confundir.
- A que caso você se refere? Aquele que o Biscoito pensa que você está priorizando ou àquele que você realmente está trabalhando? - perguntou Phil, entrando
na estrada vicinal que os levaria a um salão de chá campestre ao lado da rodovia. Uma coisa boa nos casos arquivados é que geralmente se conseguia comer em horários
regulares. Não havia a pressão do relógio correndo antes que outro crime fosse cometido. Era um esquema que se adequava perfeitamente bem a ambos.
- Não posso fazer nada com relação a Cat Grant até receber um relatório decente da polícia italiana. E eles não estão exatamente com pressa. Não, estou falando
de Mick Prentice. Primeiro, todos pensam que ele foi para Nottingham. Mas, agora, parece que ele nunca saiu vivo de Wemyss. Ele nunca fugiu com os fura-greves, muito
embora um deles tenha confundido as coisas enviando dinheiro para Jenny. Mas uma coisa que soubemos por intermédio dos fura-greves é que Mick estava vivo e ileso,
andando por Newton, umas doze horas depois de quando Jenny alega que ele saiu de casa.
- O que é estranho - disse Phil. - Se ele a estava abandonando, era de esperar que já estivesse bem longe, então. A não ser que estivesse apenas tentando
lhe dar uma lição. Talvez ele ficasse fora de casa por várias horas para provocá-la. Talvez ele estivesse voltando para casa e alguma coisa aconteceu que o desviou
do caminho.
- Certamente parece que alguém o tirou do sério. Os caras que estavam fugindo obviamente esperavam que ele se enfurecesse com eles. Quando o viram, acharam
que iam receber um sermão ou que haveria uma
briga. Mas tudo que obtiveram, por parte dele, foram suas súplicas e uma cara de quem estava prestes a explodir em lágrimas.
- Talvez aquela tenha sido a noite em que ele descobriu que havia alguma coisa entre Jenny e Tom Campbell. - Phil sugeriu. - Isso teria sido suficiente para
acabar com sua autoconfiança.
- Pode ser - ela não parecia convencida. - Se você estiver certo, ele devia estar descontrolado. Não ia querer voltar para casa. Então, talvez, tenha ido
dormir na casa do bosque, do seu amigo Andy.
- Se ele fez isso, por que ninguém o viu novamente depois daquela noite? Você sabe como eram as coisas por aqui. Quando as pessoas se separavam, não iam embora
da cidade. Apenas se mudavam três casas mais para baixo na rua.
Karen suspirou.
- É verdade. Mas ele ainda assim poderia ter ido para a casa de Andy. As coisas podem ter acontecido de maneira diferente. Sabemos que Andy estava de licença
médica por depressão. E sabemos, pela irmã dele, que ele gostava de fazer caminhadas até as Highlands. E se Mick decidiu ir com ele? E se os dois sofreram um acidente
e os corpos estão atirados em alguma ravina? Você sabe como é lá em cima. Alpinistas desaparecem e nunca mais são encontrados. E isso são só aqueles que a gente
fica sabendo.
- É possível. - Phil deu seta e entrou no estacionamento. - Mas se foi isso que aconteceu, de quem é o corpo na caverna? Acho que é mais simples do que você
está cogitando, Karen.
Eles entraram no café em silêncio. Pediram empadão de carne, ervilhas e batatas sem nem olhar o cardápio e, então, Karen disse:
- Mais simples como?
- Acho que você está certa, que ele foi à casa de Andy. Não sei se ele estava planejando sair de casa de vez ou apenas colocando um pouco de espaço entre
ele e Jenny. Mas acho que ele contou a Andy sobre Ben Reekie. E acho que houve algum tipo de confronto. Não sei se Andy perdeu a paciência com Mick, ou se Ben apareceu
por lá e tudo fugiu do controle. Mas acho que Mick morreu naquela casa, naquela noite.
- O quê? E daí eles o levaram até a caverna para se livrar do corpo? Isso parece um pouco complicado demais. Por que simplesmente não enterrá-lo no bosque?
- Andy era um homem do campo. Ele sabia que cadáveres não permanecem enterrados em covas rasas no bosque. Colocá-lo na caverna e, então, provocar um desmoronamento,
era uma opção muito melhor. E muito mais reservada do que tentar cavar uma cova no meio do bosque de Wemyss. Lembre-se de como eram as coisas, naquele tempo. Cada
centímetro de floresta continha caçadores furtivos tentando pegar um coelho ou até mesmo um veado para pôr na mesa do jantar.
- Você tem razão. - Karen sorriu em agradecimento à garçonete que trouxe o café. Acrescentou uma colherada cheia de açúcar ao dela e mexeu lentamente. - Então,
o que aconteceu com Andy? Você acha que ele saiu de casa e acabou com a própria vida?
- Provavelmente. Pelo que você me contou, ele parece ser do tipo sensível.
Tinha de admitir que fazia sentido. O distanciamento de Phil permitia que ele visse o caso mais claramente. Por mais inteligente que ela fosse, sabia quando se afastar
e deixar que outra pessoa avaliasse os fatos.
- Se você estiver certo, imagino que jamais saberemos como tudo aconteceu. Se foi algo só entre Andy e Mick, ou se Ben também estava na história.
Phil sorriu, balançando a cabeça.
- Essa é uma teoria que não podemos confirmar com Effie Reekie. A não ser que queiramos mais um corpo nas nossas mãos.
- Ela teria um ataque na mesma hora - Karen concordou.
Ele riu.
- Claro que isso tudo pode ser uma procura inútil se Jenny estava dizendo a verdade quando lhe pediu para abandonar o caso.
Karen fungou.
- Aquilo foi digno da ilha da fantasia. Acho que ela não quer é se aborrecer. Quer que a gente a deixe em paz, e assim ela poderá voltar à sua vida de mártir.
Phil pareceu surpreso.
- Você acha que ela dá mais valor à própria tranquilidade do que à vida do neto?
- Não. Ela é incrivelmente narcisista, mas não acho que veja a situação nesses termos. Acho que, no fundo, ela se sente meio responsável por Mick
ter desaparecido. E isso significa que ela tem que arcar com parte da culpa pela indisponibilidade dele em ser doador para Luke. Então, ela está tentando descarregar
sua culpa fazendo com que a gente pare de procurar por ele, pois, assim, ela pode voltar a enterrar a cabeça na areia, como antes.
Phil coçou o queixo.
- As pessoas são tão malucas - ele suspirou.
- Isso é verdade. Pelo menos essa nossa viagenzinha nos trará algumas respostas.
- Talvez. Mas faz a gente pensar - disse Phil.
- Pensar em quê, exatamente?
Ele fez uma careta.
- Estamos indo até Edimburgo para colher uma amostra de DNA para que River possa comparar com o cadáver. Mas e se Misha não for filha de Mick? E se ela for
filha de Tom Campbell?
Karen dirigiu a ele um olhar admirado.
- Você tem uma mente realmente maligna, Phil. Acho que você está errado, mas é uma teoria linda, mesmo assim.
- Você apostaria que o teste de DNA revele ser Mick Prentice?
Ambos se afastaram um pouco para deixar que a garçonete colocasse os pratos de comida à sua frente. O cheiro estava incrível. Karen queria pegar o prato e aspirá-lo.
Mas, primeiro, tinha de responder a Phil.
- Não - ela disse. - E não porque eu ache que Misha seja filha de Tom Campbell. Existem outras possibilidades. River disse que a parte posterior do crânio
está esmagada, Phil. Se Andy Kerr matou Mick Prentice, foi no calor do momento. Ele jamais teria chegado sorrateiramente por trás dele e golpeado sua cabeça. Sua
teoria é bem bonita, mas não estou convencida. - Ela sorriu. - Mas, também, é por isso que você me ama.
Ele olhou-a de modo estranho.
- Você é sempre cheia de surpresas.
Karen engoliu um bocado divino de massa e carne.
- Quero algumas respostas, Phil. Respostas reais, não apenas as ideias bobas que eu e você inventamos para se encaixar com aquilo que sabemos. Quero a verdade.
Phil inclinou a cabeça, avaliando-a.
- De fato - ele disse -, é por isso que eu amo você, dona.
Uma hora depois, eles estavam parados em frente ao edifício residencial de Marchmont, onde Misha Gibson morava. Karen ainda se perguntara se houvera algo mais que
mera provocação nas palavras de Phil. Durante muito tempo, achara que nada era proibido, entre eles. Aparentemente, estivera errada. Com certeza não iria perguntar
a ele o que quisera dizer. Apertou novamente o interfone, mas não houve resposta.
Uma voz atrás deles disse:
- Vocês estão procurando a Misha?
- Isso mesmo - respondeu Phil.
Um homem idoso os circulou, obrigando Karen a se afastar da porta para não levar uma pisada.
- Não irão encontrá-la em casa a esta hora do dia. Ela deve estar no hospital com o menino. - Ele olhou firmemente para eles. - Não vou deixar vocês entrarem
e não vou digitar meu código enquanto vocês estiverem aí, olhando.
Karen riu.
- Muito admirável da sua parte, senhor. Mas, sob o risco de parecer um clichê, nós somos da polícia.
- Isso não é garantia de honestidade, hoje em dia - disse o velho.
Pega de surpresa, Karen se afastou. Onde o mundo iria parar, se as pessoas achavam que a polícia os assaltaria? Ou coisa pior? Ela estava a ponto de protestar quando
Phil pôs a mão em seu braço.
- Deixe pra lá - ele disse baixinho. -Já temos o que precisamos.
- Vou lhe dizer uma coisa... - disse Karen quando não podiam ser ouvidos. - Eles ficam assistindo a esses programas americanos de policiais, onde um em cada
dois tiras é desonesto e acham que nós também somos assim. Fico louca da vida.
- Isso é ótimo, vindo da mulher que colocou o subchefe de polícia atrás das grades. Não são só os americanos - disse Phil. - Há gente trapaceira em toda parte.
É daí que os roteiristas tiram suas ideias.
- Ah, eu sei. É que fico ofendida. Em todos esses anos de trabalho, Lawson é a única maçã podre de verdade com que me deparei. Mas já é o suficiente para
que as pessoas percam todo o respeito.
- Você sabe o que dizem por aí: a confiança é como a virgindade. Só se pode perder uma vez. E então, pronta para o jogo de policial bonzinho e policial malvado?
- Eles pararam no meio-fio para esperar uma pausa no trânsito e desceram a rua até o hospital.
- Pode contar comigo - disse Karen.
Encontrar a ala de Luke Gibson foi fácil, mas bem angustiante. Era impossível evitar a presença das crianças doentes, e a imagem de sua enfermidade se gravava a
fogo na memória. Essa era, pensou Karen, uma das poucas vantagens de não ter filhos. Você não tinha de ficar ali parado, impotente, enquanto seu filho sofria.
A porta do quarto de Luke estava aberta, e Karen não pôde resistir a ficar observando mãe e filho juntos por alguns minutos. Luke parecia bem pequenino, o rosto
era pálido e contorcido, mas ainda conservava a beleza dos garotinhos. Misha estava sentada na cama ao lado dele, lendo um livro do Capitão Cueca. Ela imitava todas
as vozes, fazendo a história criar vida para seu menino, que gargalhava dos trocadilhos ruins e do enredo tolo.
Finalmente, Karen pigarreou e entrou no quarto.
- Oi, Misha. - Ela sorriu para o garoto. - Você deve ser Luke. Meu nome é Karen. Preciso ter uma conversinha com a sua mãe. Tudo bem?
Luke assentiu.
- Claro. Mãe, posso assistir a meu DVD do Dr. Who, já que você vai embora?
- Eu já vou voltar - Misha disse, levantando-se de um pulo. - Mas, sim, pode ligar o DVD. - Ela pegou o controle remoto e o ligou para ele.
Karen esperou pacientemente e, então, levou-a para o corredor onde Phil estava esperando.
- Precisamos conversar com você - disse Karen.
- Tudo bem - disse Misha. - Tem uma sala de pais no fim do corredor. - Ela foi caminhando sem esperar por uma resposta, e eles a seguiram até um cômodo pequeno,
decorado com cores vivas, com uma máquina de vender café e um trio de sofás afundados. - É para onde escapamos quando tudo fica pesado demais. - Ela indicou os sofás.
- É incrível onde a gente consegue cochilar depois de doze horas sentada ao lado da cama de uma criança doente.
- Desculpe-nos pela intromissão...
- Vocês não estão se intrometendo - Misha interrompeu. - É bom que tenham conhecido Luke. Ele é uma gracinha, não? Agora vocês entendem por que estou disposta
a continuar com a investigação, mesmo que minha mãe não goste que vocês fiquem bisbilhotando o passado. Eu disse a ela que passou dos limites, no domingo. Vocês
precisam fazer aquelas perguntas, se desejam encontrar meu pai.
Karen lançou um olhar rápido para Phil, que parecia tão surpreso quanto ela se sentia.
- Você sabia que sua mãe veio me ver hoje de manhã? - ela perguntou.
Misha franziu a testa.
- Não fazia ideia. Ela lhe contou o que você queria saber?
- Ela queria que desistíssemos de procurar seu pai. Ela disse que achava que ele não estava desaparecido. Que ele havia abandonado vocês duas por opção e
que não queria voltar.
- Isso não faz sentido - disse Misha. - Mesmo que ele tivesse nos abandonado, não iria dar as costas para o próprio neto que estivesse precisando de sua ajuda.
Tudo o que ouvi a respeito do meu pai era que ele era um homem do bem.
- Ela diz que está tentando proteger você - disse Karen. - Ela tem medo de que, se o encontrarmos, ele a rejeite pela segunda vez.
- Ou isso, ou ela sabe mais sobre o desaparecimento dele do que está nos contando - disse Phil, com raiva. - O que você provavelmente não sabe é que nós encontramos
um corpo.
Campora
Bel estava sentada na minúscula sacada, observando o céu e a cadeia de montanhas, a distância, enquanto o sol se punha lenta e gloriosamente. Ela beliscava os restos
frios de carne de porco e batata que Grazia havia deixado em sua geladeira enquanto pensava em seu próximo passo. Não estava gostando nem um pouco da perspectiva
de brigar com a burocracia italiana, mas, se quisesse encontrar Gabriel Porteous, teria de enfrentá-la. Ela pegou novamente as cópias das fotos de Renata, perguntando-se
se estaria imaginando a semelhança.
Mas, de novo, era algo que saltava da imagem. Os olhos fundos, o nariz curvado como um bico, a boca larga. Tudo imitava os traços característicos
de Brodie Grant. A boca era diferente, verdade. Os lábios eram mais cheios, mais delineados. Definitivamente mais beijáveis, Bel pensou, censurando-se instantaneamente
pelo pensamento. O cabelo também era de cor diferente. Tanto Brodie Grant quanto sua filha tinham o cabelo quase preto. O cabelo do garoto era muito mais claro,
mesmo considerando a descoloração provocada pelo sol italiano. Seu rosto também era mais largo. Havia alguns pontos de diferença. Gabriel Porteous não seria confundido
com o jovem Brodie Grant, não a julgar pelas fotos que Bel tinha visto espalhadas em Rotheswell. Mas daria para pensar que fossem irmãos.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo telefone. Com um suspiro, ela atendeu. Era uma chatice o identificador de chamadas nem sempre funcionar no exterior. Nunca
havia como saber se a pessoa no outro lado era alguém que você estava tentando evitar. E deixar que os telefonemas caíssem direto no correio de voz para que você
pudesse selecionar depois ficava absurdamente caro. Além disso, o fato de ser parcialmente responsável por seu sobrinho significava que ela nunca podia ignorar telefonemas
misteriosos.
- Alô? - disse cautelosamente.
- Bel? É Susan Charleson. Você pode falar agora?
- Sim, claro.
- Recebi seu e-mail. Sir Broderick me pediu para dizer que está muito contente com seu progresso até agora. Ele queria saber se você precisa de alguma coisa
daqui. Podemos realizar buscas de arquivos, esse tipo de coisa.
Bel conteve uma risada pesarosa. Passara toda a sua vida profissional fazendo o próprio trabalho sujo ou convencendo os outros a fazê-lo por ela. Não imaginara que
trabalhar para Brodie Grant significava que ela podia se livrar de todas as partes chatas.
- Está tudo em ordem - ela disse. - Você poderia me dar uma ajuda em algumas coisas pessoais. Não consigo deixar de pensar que deve haver um ponto, no passado,
em que a vida de Catriona tenha cruzado com a de Daniel Porteous ou desse Matthias que talvez seja alemão ou inglês. Ele pode até mesmo ser sueco, já que foi lá
que Catriona estudou. Preciso descobrir quando e onde isso aconteceu. Não sei se ela mantinha diários ou uma agenda de endereços. Além disso, quando eu voltar, gostaria
muito de rastrear suas amigas. Do tipo em quem ela confiaria.
Susan Charleson deu uma risadinha educada.
- Você vai se decepcionar, então. Se acha que o pai dela é fechado com relação a seus sentimentos, Catriona o fazia parecer um verdadeiro livro aberto. Ela
era a perfeita loba solitária. A mãe era sua melhor amiga, de verdade. Elas eram muito próximas. Além de Mary, a única outra pessoa que realmente conseguiu penetrar
na mente de Catriona foi Fergus. - Ela deixou o nome pairando no ar entre elas.
- Creio que você não saiba onde eu poderia encontrar Fergus, não é?
- Você poderia falar com o pai dele, quando voltar. Ele visita frequentemente a família, nesta época do ano - disse Susan. - Não é algo que Willie sinta necessidade
de comunicar a Sir Broderick. Mas estou ciente do fato.
- Obrigada.
- E vou ver o que consigo fazer a respeito dos diários e agendas. Não espere muita coisa, no entanto. O problema dos artistas é que eles deixam que seu trabalho
fale por eles. Quando você vai voltar?
- Não tenho certeza. Depende de como tudo corra amanhã. Eu avisarei.
Não havia mais nada a dizer, nenhuma conversa fiada. Bel não se lembrava de quando fora a última vez que falhara tão completamente em estabelecer uma conexão com
outra mulher. Passara toda a sua vida adulta aprendendo como fazer com que as pessoas gostassem dela o bastante para lhe confidenciarem coisas que realmente não
queriam contar a ninguém. Com Susan Charleson, ela falhara. Esse trabalho, que tinha começado como pouco mais do que uma possibilidade remota de convencer um homem
notoriamente recluso a falar, a havia exposto a si mesma das formas mais inesperadas.
O que virá a seguir, ela se perguntou, tomando um longo gole de vinho. O que virá a seguir?


CONTINUA

Karen ficou dividida. A perspectiva de um drinque com Phil sempre a atraía, mas sua ausência do escritório significava que a papelada administrativa tinha ficado
esquecida por tempo demais. E ela não poderia colocar tudo em ordem no dia seguinte porque eles iriam até as cavernas. Entreteve-se com a ideia de dar uma escapadinha
para um drinque rápido e, depois, voltar para o escritório. Mas se conhecia bem o suficiente para saber que, uma vez que houvesse escapado de sua mesa, encontraria
qualquer desculpa para evitar ter de retornar o serviço burocrático.
- Desculpe - ela disse. - Tenho que botar a casa em ordem.
- Quem sabe amanhã, então? Poderíamos nos dar de presente um almoço no Laird o' Wemyss.
Karen riu.
- Você ganhou na loteria? Sabe quanto custa comer naquele lugar?
Phil piscou.
- Eu sei que eles têm uma promoção de almoço no último sábado de cada mês. Que seria amanhã.
- E pensei que fosse eu a detetive por aqui. O.k., estamos combinados.
- Karen voltou sua atenção para as anotações, certificando-se de que sabia exatamente o que perguntar a Annabel Richmond.
O telefone de Karen tocou cinco minutos antes da hora combinada. A jornalista havia chegado. Ela pediu a um policial uniformizado que conduzisse Richmond até a sala
de entrevistas onde havia se encontrado com Misha Gibson; então, juntou seus papéis e desceu a escadaria. Entrou na sala e se deparou com sua testemunha inclinada
na janela e olhando para fora, para os escassos filamentos de nuvens que se espalhavam pelo céu.
- Obrigada por ter vindo, Srta. Richmond - disse Karen.
Ela se virou, o sorriso aparentemente genuíno.
- Me chame de Bel, por favor - disse. - Eu é que deveria lhe agradecer por ser tão gentil. Agradeço muito sua flexibilidade. - Ela foi até a mesa e se sentou,
os dedos entrelaçados, parecendo relaxada. - Espero não tê-la obrigado a ficar até mais tarde.
Karen se perguntou quando tinha sido a última vez que chegara em casa às cinco numa sexta-feira e não pôde se lembrar.
- Até parece - ela disse.
O riso de Bel era cálido e conspirador.
- Imagino. Desconfio que seu trabalho tenha muita coisa a ver com o meu. Devo dizer, a propósito, que estou impressionada.
Karen sabia que se tratava de um truque, mas mordeu a isca mesmo assim.
- Impressionada com o quê?
- Com o poder de influência de Brodie Grant. Não imaginei que estaria lidando com a mulher que colocou Jimmy Lawson atrás das grades.
Karen sentiu o rubor subindo por seu pescoço, sabia que devia estar toda vermelha e feia e quis chutar os móveis.
- Não gosto de falar sobre isso - ela disse.
De novo, a risada agradável e convidativa.
- Imagino que não seja um tema de conversa muito popular entre você e seus colegas. Saber que você foi responsável por atribuir três assassinatos a seu chefe
deve fazer com que todos fiquem mais atentos do que de costume.
Ela falava como se Karen tivesse armado para que ele parecesse culpado. Na verdade, depois que Karen se viu instigada a pensar o impensável, as provas haviam estado
logo ali, esperando para serem descobertas. Um estupro e um assassinato de vinte e cinco anos atrás, e duas mortes frescas para encobrir o delito anterior. Não enquadrar
Lawson é que teria sido armação. Era tentador dizer exatamente isso para Bel Richmond. Mas Karen sabia que responder daria início a uma conversa que só poderia levar
a lugares que ela não queria revisitar.
- Como eu disse, não falo sobre esse assunto. - Bel inclinou a cabeça e deu um sorriso que Karen interpretou como triste, porém confiante. Não uma derrota,
mas um adiamento. Karen sorriu internamente, sabendo que a jornalista estava errada sobre aquilo.
- Então, como você prefere conduzir isso, inspetora Pirie? - perguntou Bel.
Recusando-se impassivelmente a ser seduzida pelo charme de Bel, Karen manteve seu tom profissional.
- O que preciso neste momento é que você seja meus olhos e ouvidos e me relate o que aconteceu, passo a passo. Como encontrou o pôster, onde o encontrou.
A história completa. Todos os detalhes de que possa se lembrar.
- Começou com a minha corrida matinal - Bel iniciou.
Karen ouviu atentamente enquanto ela narrava a história de sua descoberta, mais uma vez. Tomou notas, rascunhando perguntas para fazer posteriormente. Bel parecia
sincera e meticulosa em sua narrativa, e Karen sabia que não deveria interromper o fluxo de pensamento de uma testemunha obsequiosa. Os únicos ruídos que emitiu
foram murmúrios de encorajamento.
Finalmente, Bel chegou ao término da narrativa.
- Para ser sincera, fiquei surpresa de você ter reconhecido o pôster de imediato - disse Karen. - Não tenho certeza de que eu o reconheceria.
Bel deu de ombros.
- Sou redatora freelance, inspetora. Na época, essa história ficou famosíssima. Eu estava começando a pensar em ser jornalista e andava prestando mais atenção
aos jornais e noticiários. Mais do que as pessoas fazem, normalmente. Imagino que a imagem tenha ficado retida nos recantos mais profundos do meu cérebro.
- Posso entender que isso tenha acontecido. Mas, como você sabia do significado do pôster, fico surpresa por não tê-lo trazido diretamente para nós, em vez
de levá-lo a Sir Broderick. - Karen deixou que a acusação não proferida pairasse entre elas.
A resposta de Bel foi tranquila.
- Por duas razões, na verdade. Em primeiro lugar, eu não fazia ideia de quem contatar. Achei que, se simplesmente entrasse na minha delegacia de polícia local,
o assunto poderia não ser tratado com muita seriedade. E, segundo, a última coisa que eu queria fazer era desperdiçar o tempo da polícia. Pelo que eu sabia, aquela
poderia ser apenas uma cópia mórbida. Deduzi que Sir Broderick e seu pessoal saberiam de imediato se era algo a ser levado a sério ou não.
Resposta astuta, pensou Karen. Não que ela esperasse que Bel Richmond admitisse qualquer interesse na recompensa substanciosa que Brodie Grant ainda oferecia. Nem
na perspectiva de ganhar um acesso incomparável à fonte de informações perfeita.
- Muito bem - ela continuou. - Agora, você disse que teve a impressão de que quem quer que estivesse morando lá houvesse saído às pressas. E você me falou
que havia algo parecido a uma mancha de sangue na cozinha. Pareceu a você que essas duas coisas estavam relacionadas?
Um momento de silêncio e, então, Bel disse:
- Não sei ao certo como eu poderia julgar isso.
- Se a mancha no chão era antiga, ou se não era sangue, ela poderia ser simplesmente parte do cenário. Marca de cadeiras, esse tipo de coisa.
- Ah, certo. Sim, eu não havia pensado nesses termos. Não, não acho que fosse parte do cenário. Havia uma cadeira virada perto da mancha. - Ela falava devagar,
obviamente revendo a cena em sua mente. - Em uma parte da mancha, parecia que alguém havia tentado limpá-la, mas depois percebeu que não adiantaria. O chão é feito
de lajotas de pedra, não de azulejos vitrificados. Então, a pedra absorveu o sangue.
- Havia outros pôsteres ou outros materiais impressos?
- Não que eu tivesse visto. Mas não vasculhei o lugar todo. Para ser honesta, o pôster me assustou tanto que mal podia esperar para sair de lá.
- Ela deu uma risadinha. - Não sou exatamente a imagem do intrépido repórter investigativo, sou?
Karen não podia se dar ao trabalho de alimentar o ego dela.
- O pôster a assustou? Não o sangue?
Mais uma vez, uma pausa para pensar.
- Sabe de uma coisa? Isso não tinha me passado pela cabeça até agora. Você tem razão. Foi mesmo o pôster, não o sangue. E não sei muito bem por quê.
Sábado, 30 de junho de 2007; East Wemyss
O quebra-mar era novo, feito depois da última vez que Karen estivera em East Wemyss. Ela havia deliberadamente chegado cedo para poder caminhar pela parte baixa
do vilarejo. Eles tinham percorrido a orla algumas
vezes, entre ali e Buckhaven, quando ela era pequena. Lembrava-se de um lugar velho e caindo aos pedaços, pobre e abandonado. Agora, estava reformado e moderno,
as casas antigas haviam sido caiadas de branco ou pintadas em tom de arenito vermelho, e as novas pareciam recém-construídas. A igreja desconsagrada de St. Mary's-bythe-Sea
tinha sido salva da dilapidação e transformada em uma casa particular. Graças à União Europeia, construíra-se um quebra-mar com blocos robustos de pedra local para
manter o famoso "Firth of Forth", o estuário do rio Forth, sob controle. Ela seguiu pela rua Back Dykes, tentando se localizar. O bosque atrás da casa paroquial
tinha desaparecido, substituído por casas novas. O mesmo havia acontecido com as fábricas antigas. A paisagem do horizonte à sua frente fora modificada, agora que
o elevador do poço da mina e a pilha de carvão não estavam mais lá. Se ela não soubesse que era o mesmo lugar, não o teria reconhecido tão facilmente.
Porém, tinha de admitir que era uma melhora. Era fácil ser sentimental com relação ao passado e se esquecer das condições terríveis em que tantas pessoas tinham
sido forçadas a viver. Também elas foram escravas da economia, obrigadas pela pobreza a comprar apenas nos estabelecimentos locais. Mesmo a cooperativa, supostamente
criada para o benefício de seus membros, era mais cara, se comparada às lojas da Kirkcaldy High Street. Fora um estilo de vida muito duro, cujo único benefício real
era o espírito de comunidade. A perda dessa pequena compensação deve ter sido um golpe fatal para Jenny Prentice.
Karen voltou para o estacionamento, olhando através do litoral para o costão de arenito vermelho listrado que marcava o início da cadeia de cavernas profundas, agrupadas
ao longo da margem do penhasco. Em sua memória, elas ficavam bastante separadas do vilarejo, mas agora havia uma fileira de casas novas encostadas na extremidade
exterior da caverna Court. E havia postos de informações para turistas, contando sobre os cinco mil anos de história de habitação das cavernas. Os pictos tinham
vivido ali. Os escoceses primitivos as tinham utilizado como ferrarias e fábrica de vidros. A parede do fundo da caverna Doo fora perfurada por dúzias de buracos
de pombas. Ao longo dos tempos, as cavernas haviam sido usadas pelos moradores locais para fins tão diversos quanto reuniões políticas clandestinas, piqueniques
familiares em dias chuvosos e encontros românticos. Karen
nunca havia tirado a calcinha lá, mas conhecia várias garotas que o haviam feito e nem por isso pensava mal delas.
Ao voltar, ela viu o carro de Phil parar onde o asfalto dava lugar à trilha litorânea. Hora de explorar uma conjunção diferente entre passado e presente. Quando
chegou ao estacionamento, Phil estava acompanhado de um homem alto e curvado, de careca brilhante e vestindo o tipo de jaqueta e calça que a classe média sentia
necessidade de comprar antes de qualquer tentativa de fazer uma caminhada mais longa do que a ida até o pub local. Cheia de zíperes e bolsos e num material de alta
tecnologia. Nenhuma das pessoas com quem Karen havia crescido precisava de roupas ou botas especiais para caminhar. Você simplesmente saía para caminhar com suas
roupas normais, talvez acrescentando uma camada extra, no inverno. O que não os impedia de percorrer treze ou catorze quilômetros antes do jantar.
Karen se conteve mentalmente ao aproximar-se dos dois homens. Às vezes, assustava-se consigo mesma, ao pensar como sua avó. Phil a apresentou ao outro homem, Arnold
Haigh.
- Sou secretário da Sociedade de Preservação das Cavernas de Wemyss desde 1981 - ele disse, com orgulho, num sotaque que tinha suas raízes a algumas centenas
de quilômetros ao sul de Fife. Seu rosto era comprido e fino, com um nariz arrebitado incompatível com suas feições e dentes que resplandeciam, num branco pouco
natural, em contraste com a pele maltratada pelo sol.
- Isso é que é dedicação - disse Karen.
- Mais ou menos. - Haigh deu uma risadinha. - Mais ninguém quis o trabalho. Sobre o que exatamente você quer falar comigo? Quer dizer, sei que é a respeito
de Mick Prentice, mas há anos que nem sequer pensava nele.
- Por que não vamos dar uma olhada nas cavernas e conversamos no caminho? - sugeriu Karen.
- Certamente - disse Haigh com cortesia. - Podemos parar nas cavernas Court e Doo e, depois, tomar uma xícara de café na caverna Thane's.
- Uma xícara de café? - Phil pareceu achar graça. - Tem um café aqui embaixo?
Haigh deu outra risadinha.
- Desculpe, sargento. Nada de tão grandioso assim. A caverna Thane's foi fechada ao público depois do desmoronamento de 1985, mas a sociedade tem as chaves
das grades. Achamos que seria apropriado manter a tradição de dar às cavernas alguma função, então fizemos uma pequena área como sede do clube, numa parte segura.
É tudo muito improvisado, mas nós gostamos muito do lugar. - Ele foi caminhando em direção à primeira caverna, sem ver o olhar de fingido horror que Phil lançou
para Karen.
O primeiro sinal de que as rochas não eram muito sólidas era um buraco no arenito, que havia sido fechado com tijolos, anos antes. Alguns tijolos estavam faltando,
revelando a escuridão lá dentro.
- Aquela abertura e a passagem por trás dela foram feitas pelo homem
- Haigh disse, apontando para os tijolos. - Como podem ver, a caverna Court se projeta mais que as outras. No século XIX, a maré alta chegava à boca da caverna,
separando East Wemyss de Buckhaven. As moças que limpavam os arenques não podiam ir de uma vila à outra durante a maré alta; então, abriram uma passagem através
do lado oeste da caverna, que permitia a elas percorrerem a orla em segurança. Agora, se vocês me seguirem, entraremos pela entrada leste.
Ao dizer "podemos ir conversando no caminho", não era bem isso que Karen tinha em mente. No entanto, como estavam fazendo aquilo em seu próprio tempo, pela primeira
vez não havia pressa e, se pudesse tranquilizar Haigh, talvez funcionasse em seu favor. Feliz por haver escolhido jeans e tênis, ela seguiu os homens pela frente
da caverna e subiu uma trilha, ao lado de uma cerca baixa. Perto da entrada da caverna, a cerca fora pisoteada; eles passaram por cima dos arames retorcidos e entraram
na caverna, onde o chão de terra batida estava surpreendentemente seco, apesar da chuva que havia caído nas semanas anteriores. O fato de o teto estar escorado por
uma coluna de tijolos com o aviso PERIGO: ENTRADA PROIBIDA não era muito tranquilizador.
- Algumas pessoas acreditam que quem deu esse nome à caverna foi o rei James V, que gostava de andar, disfarçado, no meio dos seus súditos
- disse Haigh, enquanto acendia uma lanterna potente e iluminava o teto. - Dizem que ele realizava cortejos aqui, entre os ciganos que a habitavam na época.
Mas eu acho que é mais provável que aqui fosse onde as cortes baroniais eram conduzidas, durante a Idade Média.
Phil perambulava de um lado para outro, sua expressão ansiosa era como a de um garotinho no melhor dia de passeio escolar de sua vida.
- Até onde ela vai?
- Depois de uns vinte metros, o chão encontra-se com o teto. Havia uma passagem que seguia por uns cinco quilômetros em direção ao interior, até Kennoway,
mas um desabamento do teto fechou a abertura deste lado; então, a entrada de Kennoway foi vedada por questões de segurança. Faz a gente pensar, não? O que estavam
aprontando por aqui para precisar de uma passagem secreta até Kennoway? - Haigh deu sua risadinha novamente. Karen só pensava em quão irritada aquela risadinha dele
a deixaria até que terminassem a entrevista.
Ela deixou os homens explorando a caverna e voltou para o ar fresco. O céu estava salpicado de cinza, com promessa de chuva. O mar refletia o céu e acrescentava
mais
alguns tons cinzentos próprios. Ela se voltou para o exuberante verde da vegetação de verão e para as cores brilhantes do arenito, ambas ainda vibrantes a despeito
da melancolia do clima. Não demorou muito e Phil apareceu, com Haigh ainda falando às suas costas. Ele deu a Karen um sorriso arrependido; ela lhe devolveu um rosto
impassível.
Em seguida, foram à caverna Doo e ouviram uma palestra sobre a necessidade histórica de se criar pombos para ter carne fresca durante o inverno. Karen escutava apenas
parcialmente e, quando Haigh fez uma pausa, ela disse:
- As cores aqui são incríveis. Mick costumava pintar dentro das cavernas?
Haigh pareceu espantado pela pergunta.
- Sim, na verdade, ele pintava, sim. Algumas de suas aquarelas estão à mostra no centro de informações sobre as cavernas. É a variedade de sais minerais na
rocha que cria cores tão vívidas.
Antes que ele pudesse entrar em cheio naquele assunto, Karen fez outra pergunta:
- Ele vinha muito aqui durante a greve?
- Não muito. Acredito que ele estivesse colaborando nos piquetes móveis, no começo. Mas não o víamos mais do que o normal. Menos, até, conforme foram passando
o outono e o inverno.
- Ele disse o porquê disso?
Haigh não demonstrou qualquer expressão.
- Não. Nunca me passou pela cabeça perguntar a ele. Nós todos somos voluntários, fazemos aquilo que podemos.
- Vamos tomar aquele café agora? - sugeriu Phil, em sua luta entre o dever e o prazer, óbvia para Karen, embora não, graças a Deus, para Haigh.
- Boa ideia - disse Karen, conduzindo-os de volta à luz do dia. Chegar até a caverna Thane's era mais difícil, envolvia uma escalada pelas pedras e pelo concreto
que serviam como quebra-ondas rudimentar, entre o mar e o pé dos rochedos. Karen se lembrava da praia mais para baixo, do mar não tão próximo e foi o que ela disse.
Haigh concordou, explicando que, no decorrer dos anos, o nível do mar havia subido, em parte por causa dos detritos das minas de carvão.
- Ouvi alguns dos antigos moradores dizerem que havia areia dourada aqui, quando eles eram pequenos. Agora é difícil de acreditar - ele disse, acenando na
direção
do granulado negro, produzido por minúsculos fragmentos de carvão que enchiam todos os vãos entre as rochas e os calhaus.
Eles emergiram num semicírculo gramado. Assentada sobre o rochedo acima deles estava a única torre restante do Castelo Macduff. Outra coisa de que Karen se lembrava,
de sua infância. Tinham existido mais ruínas em volta da torre, mas haviam sido removidas pela prefeitura por questões de salubridade e segurança, alguns anos antes.
Ela se lembrava de seu pai reclamando sobre isso, na época.
Na base do penhasco havia várias aberturas. Haigh se dirigiu a uma robusta grade de metal que protegia uma entrada estreita de pouco mais de um metro e meio de altura.
Destrancou o cadeado e lhes pediu para esperar. Ele entrou e desapareceu numa curva na passagem estreita. Voltou quase imediatamente com três capacetes de construção.
Sentindo-se uma idiota, Karen colocou um e o seguiu para dentro. Os primeiros metros do caminho eram estreitos, e ela escutou Phil reclamando atrás dela ao bater
o cotovelo na parede. Mas logo se abria para uma câmara ampla cujo teto desaparecia na escuridão.
Haigh enfiou a mão num nicho na parede e, de repente, a luz amarelada das lâmpadas à bateria emitiu um brilho suave pela caverna. Meia dúzia de cadeiras bamboleantes
de madeira rodeavam uma mesa com tampo de fórmica. Numa prateleira funda, a cerca de um metro do chão havia um
fogareiro de acampamento, meia dúzia de litros de água e canecas. Os ingredientes para fazer chá e café estavam fechados em recipientes plásticos. Karen olhou ao
redor e imediatamente soube que o grupo de preservação das cavernas era formado basicamente de homens.
- Muito aconchegante - ela disse.
- Parece que havia uma passagem secreta desta caverna até o castelo acima - disse Haigh. - Diz a lenda que foi assim que Macduff escapou quando voltou para
casa e encontrou sua mulher e seus filhos assassinados e Macbeth no controle. - Ele indicou as cadeiras. - Sentem-se, por favor
- disse, ocupando-se com o fogareiro e com a chaleira. - Então, por que o interesse em Mick depois de todo esse tempo?
- A filha dele só agora informou sobre seu desaparecimento - disse Phil.
Haigh voltou-se, perplexo.
- Mas ele não está desaparecido, não é mesmo? Pensei que ele tinha ido para Nottingham com outro grupo de rapazes. Boa sorte para eles, eu pensei. Aqui não
havia nada além de miséria, naquele tempo.
- Você não desaprovava os mineiros fura-greves, então? - Karen perguntou, tentando não parecer ácida demais.
A risadinha de Haigh ecoou de forma sinistra.
- Não me leve a mal. Não tenho nada contra os sindicatos. Os trabalhadores merecem ser tratados decentemente por seus empregadores. Mas os mineiros foram
traídos por aquele egocêntrico interesseiro do Arthur Scargill. Um verdadeiro exemplo de leões liderados por um burro. Eu vi esta comunidade se desfazer. Vi um sofrimento
terrível. E tudo por nada. - Ele colocou colheradas de café nas canecas, balançando a cabeça. - Sentia muita pena dos homens e de suas famílias. Fiz o que podia...
eu era gerente regional de uma importadora alimentícia e trazia para a vila o máximo de amostras que conseguia. Mas era só uma gota d'água no oceano. Eu compreendi
bem por que Mick e seus amigos fizeram o que fizeram.
- Você não achou que havia algo de egoísta no fato de ele deixar a mulher e a filha para trás? Sem saber o que tinha acontecido com ele?
Haigh deu de ombros, de costas para eles.
- Para ser sincero, não sabia muito sobre sua situação pessoal. Ele não discutia sua vida doméstica.
- Sobre o que ele falava? - perguntou Karen.
Haigh trouxe até eles dois potinhos de plástico, um contendo sachês de açúcar surrupiados de lanchonetes de postos de gasolina e quartos de hotel, e o outro, cheio
de potinhos de creme para misturar ao café, vindos das mesmas fontes.
- Não me lembro, então era provavelmente o de sempre. Futebol. Tevê. Projetos para arrecadar dinheiro para restaurações nas cavernas. Teorias a respeito do
significado dos entalhes. - A risadinha. - Desconfio que pareçamos um pouco tolos para os de fora, inspetora. A maioria das pessoas que têm um hobby parece.
Karen pensou em mentir, mas não quis se dar ao trabalho.
- Só estou tentando obter uma impressão de como era Mick Prentice.
- Sempre achei que ele era um cara decente e sincero. - Haigh trouxe os cafés, tomando um cuidado exagerado para não derramar nem uma gota. - Para ser sincero,
com exceção das cavernas, não tínhamos muito mais em comum. Eu o achava, no entanto, um pintor talentoso. Todos nós o encorajávamos a retratar as cavernas, por dentro
e por fora. Parecia apropriado ter um registro artístico, já que a principal fama das cavernas se deve aos entalhes pictos. Alguns dos melhores estão aqui na caverna
Thane's. - Ele pegou sua lanterna e a apontou para um ponto preciso na parede. Nem precisou pensar para fazer aquilo. Diretamente na linha do facho de luz, eles
puderam ver a forma inconfundível de um peixe, com o rabo para baixo, entalhada na rocha. Em seguida, ele revelou um cavalo correndo e algo que podia ter sido um
cão ou um cervo. - Nós perdemos alguns desenhos em baixo-relevo no desmoronamento de 1985, mas, por sorte, Mick havia feito algumas pinturas deles não muito antes.
- Onde ocorreu o desmoronamento? - perguntou Phil, olhando para o fundo da caverna.
Haigh os conduziu até o canto mais distante, onde uma pilha de pedras quase chegava até o teto.
- Havia uma segunda câmara pequena conectada por uma passagem curta. - Phil deu um passo à frente para olhar mais de perto, mas Haigh agarrou-o pelo braço
e o puxou para trás. - Cuidado - ele disse. - Onde houve uma queda recente, nunca podemos saber quão seguro é o teto.
- É incomum que haja um desmoronamento? - perguntou Karen.
- Grande como este? Costumavam acontecer regularmente quando a mina Michael ainda estava funcionando. Mas a mina fechou em 1967, e depois...
- Eu sei sobre o desastre da mina Michael - Karen interrompeu. - Cresci em Methil.
- É claro. - Haigh pareceu sentir-se devidamente censurado. - Bem, desde que eles pararam de trabalhar no subterrâneo, não houve muito movimento nas cavernas.
Não temos um desmoronamento grande desde este aqui, na verdade.
Karen sentiu a fisgada de seu instinto policial.
- Quando exatamente aconteceu o desmoronamento? - ela perguntou, lentamente.
Haigh pareceu surpreso com sua linha de questionamento, lançando a Phil um olhar que sugeria uma cumplicidade masculina.
- Bem, não temos como ser precisos sobre isso. Para ser sincero, de meados de dezembro a meados de janeiro, não há praticamente movimento por aqui. Natal
e Ano-Novo e tudo mais. As pessoas estão ocupadas, viajam. Só o que podemos dizer, com alguma certeza, é que a passagem estava aberta no dia 7 de dezembro. Um dos
nossos membros esteve aqui naquele dia, tomando medidas detalhadas para uma proposta de subvenção. Pelo que sabemos, eu fui a pessoa seguinte a entrar na caverna.
O aniversário da minha esposa é dia 24 de janeiro, e alguns amigos vieram de Londres nos visitar. Eu os trouxe aqui para ver as cavernas e foi então que descobri
o desmoronamento. Foi um choque e tanto. Claro, eu os tirei daqui o mais rápido possível e chamei a prefeitura quando voltamos para casa.
- Então, em algum momento entre 7 de dezembro de 1984 e 24 de janeiro de 1985, o teto caiu? - Karen queria ter certeza de que entendera corretamente. Dois
e dois estavam começando a se somar em sua cabeça e tinha quase certeza de que não daria cinco.
- Isso mesmo. Embora eu, particularmente, ache que tenha sido mais próximo do dia 7 de dezembro - disse Haigh. - O ar já estava limpo na caverna. E demora
muito mais do que você imagina. Poderia se dizer que a poeira havia assentado totalmente.
Newton of Wemyss
Phil olhou para Karen com preocupação. Na frente dela havia um empadão recheado de peito de pombo, perfeitamente apresentado, rodeado por minúsculas batatas e por
uma torre de minicenouras assadas e abobrinhas. O Laird o' Wemyss estava superando sua reputação. Mas o prato já estava parado na frente de Karen havia pelo menos
um minuto e ela nem sequer tinha levantado os talheres. Em vez de comer com apetite, estava olhando fixamente para o prato, com uma ruga profunda entre as sobrancelhas.
- Você está bem? - ele perguntou cautelosamente. Às vezes, as mulheres se comportavam de formas estranhas e imprevisíveis, quando em presença de comida.
- Pombos - ela disse. - Cavernas. Não consigo tirar aquele desmoronamento da cabeça.
- E o que tem isso? Cavernas desmoronam. É por isso que existem avisos advertindo as pessoas. E grades trancadas com cadeados para mantê-las do lado de fora.
Saúde e segurança, esse é o mantra da chefia, nos dias de hoje. - Ele cortou um pedaço de seu crocante filé de robalo e o ajeitou no garfo com os legumes ao molho
de gergelim.
- Mas você ouviu o cara. Esse é o único desmoronamento relevante em qualquer das cavernas, desde que a mina foi fechada, em 1967. E se não foi um acidente?
Phil sacudiu a cabeça, mastigando e engolindo com afobação.
- Você está fazendo melodrama de novo. Isso aqui não é "Indiana Jones e as Cavernas de Wemyss", Karen. É um cara que desapareceu quando sua vida era uma merda.
- Não é um cara, Phil. São dois. Mick e Andy. Melhores amigos. Não eram do tipo que furaria a greve. Não eram do tipo que abandonaria seres queridos sem uma
palavra.
Phil pousou o garfo e a faca.
- Já passou pela sua cabeça que eles podem ter sido um casal? Mick e seu melhor amigo Andy, no sitiozinho isolado no meio da floresta? Ser gay num lugar como
Newton of Wemyss, no começo dos anos oitenta, não devia ser a coisa mais simples do mundo.
- É claro que passou pela minha cabeça - disse Karen. - Mas não podemos seguir teorias que não tenham absolutamente nenhum embasamento.
Ninguém com quem conversamos sequer sugeriu isso. E, acredite em mim, se Fife tem uma coisa em comum com Brokeback Mountain, é que as pessoas falam. Não me
leve a mal. Não estou descartando essa possibilidade. Mas até que eu tenha algo em que baseá-la, tenho que deixá-la no fim da fila.
- Parece justo - disse Phil, atacando sua comida novamente. - Mas você tampouco tem embasamento para sua ideia de que haja alguém enterrado debaixo de um
desmoronamento não natural.
- Nunca disse que havia alguém enterrado - disse Karen.
Ele sorriu.
- Eu conheço você, Karen. Não existe nenhuma outra razão para você ficar interessada numa pilha de pedras.
- Talvez sim - ela disse sem qualquer atitude defensiva. - Mas não estou simplesmente apostando em hipóteses malucas. Se existe um grupo de pessoas que sabe
tudo sobre usar detonação para derrubar rochas precisamente no ponto desejado, são os mineiros. E os detonadores também tinham acesso aos explosivos. Se eu estivesse
procurando alguém para explodir uma caverna, a primeira pessoa com quem falaria seria um mineiro.
Phil piscou.
- Acho que você precisa comer. Acho que está com baixo nível de açúcar no sangue.
Karen olhou feio para ele por um momento, então pegou a faca e o garfo e atacou a comida com seu entusiasmo normal. Depois de devorar alguns bocados, disse:
- Isso dará um jeito no baixo nível de açúcar. E ainda acho que descobri alguma coisa. Se Mick Prentice não sumiu por vontade própria, ele desapareceu porque
alguém o queria fora do caminho. Olhe só que coisa! Nós temos alguém que o queria fora do caminho! O que foi mesmo que Iain Maclean nos disse?
- Que Prentice descobriu que Ben Reekie estava metendo a mão no cofre do sindicato - disse Phil.
- Exatamente. Embolsando o dinheiro que deveria ir para a subseção do sindicato. Com base em tudo que ouvimos a respeito de Mick, ele não teria deixado passar
uma coisa dessas. E é difícil imaginar como ele poderia dar seguimento ao assunto sem envolver Andy, já que era ele quem mantinha os registros. Acho que não seria
da natureza deles se omitirem sobre
isso. Se o caso tivesse chegado ao conhecimento da comunidade, Reekie teria sido linchado, e você sabe disso. É motivação suficiente, Phil.
- Talvez. Mas se eram dois contra um, como foi que Reekie os matou? Como levou os corpos para dentro da caverna? Como conseguiu pôr as mãos em cargas explosivas
no meio de uma greve?
O sorriso amplo de Karen sempre conseguia desarmá-lo.
- Ainda não sei. Mas, se estiver certa, saberei mais cedo ou mais tarde. Isso eu lhe prometo, Phil. E experimente isso, como aperitivo: sabemos quando Mick
desapareceu, mas não temos a data exata para o desaparecimento de Andy. É totalmente possível que tenham sido mortos separadamente. Eles poderiam ter sido mortos
na caverna. E, quanto ao acesso aos explosivos, Ben Reekie era funcionário do sindicato. Haveria todo tipo de pessoa lhe devendo favores. Não finja que você não
sabe
disso.
Phil terminou seu peixe e afastou o prato. Ele ergueu as mãos, com as palmas voltadas para Karen, indicando rendição.
- Então, o que faremos agora?
- Limpamos aquelas pedras e vemos o que há por trás delas - ela disse, como se a resposta fosse óbvia.
- E como vamos fazer isso? No que diz respeito ao Biscoito, você nem sequer está trabalhando nesta investigação. E mesmo que ela fosse oficial, de jeito nenhum
ele iria esticar seu precioso orçamento para cobrir uma escavação arqueológica para procurar dois corpos que provavelmente não estão lá.
Karen parou com uma garfada de peito de pombo a meio caminho da boca.
- O que foi que você disse?
- Não há orçamento.
- Não, não. Você disse "uma escavação arqueológica". Phil, se não fosse por este pombo entre nós, eu lhe daria um beijo. Você é um gênio.
Phil sentiu um aperto no coração. Era difícil evitar a sensação de que aquela seria outra bela confusão na qual se meteria.
Kirhcaldy
Às vezes era mais sensato dar telefonemas profissionais da sua casa. Até que colocasse as coisas em andamento de fato, e tivesse definido seu argumento, Karen não
queria que Biscoito suspeitasse do que ela estava
fazendo. As palavras de Phil haviam detonado uma reação em cadeia em sua mente. Ela queria que limpassem o desmoronamento de pedras. As datas que Amold Haigh havia
lhe fornecido ofereciam a possibilidade de passar por cima do Biscoito sob o pretexto de uma possível conexão com o caso Grant, mas, quanto menos dinheiro ela gastasse,
menor seria a probabilidade de que ele fizesse perguntas demais.
Ela se acomodou na mesa de jantar com o telefone, um bloco de anotações e uma lista de contatos. Por mais à vontade que ficasse com novas tecnologias, Karen ainda
mantinha um registro em papel de nomes, endereços e telefones. Ela se precavia: se um dia o mundo resolvesse entrar em colapso eletrônico, ela ainda poderia encontrar
as pessoas de que precisasse. Naturalmente lhe ocorreu que, nesse caso, não haveria nenhum telefone que funcionasse e que o sistema de transportes também estaria
paralisado, mas, mesmo assim, sua agenda de contatos era como uma boia salva-vidas. E, se algum dia fosse necessário, seria muito mais fácil destruí-la sem deixar
traço do que qualquer memória eletrônica.
Ela o abriu na página apropriada e desceu o dedo pela lista até chegar à Dra. River Wilde. A antropóloga judicial havia sido uma das mentoras em um curso de que
Karen participara, voltado à melhoria da consciência científica dos detetives responsáveis por cenas de crimes. A julgar pela aparência, teria sido difícil encontrar
muita coisa em comum entre as duas mulheres, mas elas haviam formado uma conexão instantânea, ainda que improvável. Embora nenhuma das duas jamais o explicasse nestes
termos, tinha algo a ver com a maneira como ambas pareciam jogar segundo as regras, ao mesmo tempo que, sutilmente, solapavam a autoridade daqueles que não tivessem
conseguido ganhar seu respeito.
Karen gostava da forma como River nunca tentava ofuscar seus espectadores com a ciência. Fosse numa palestra para um grupo de policiais, cujo conhecimento científico
vinha da adolescência, ou compartilhando uma anedota no bar, ela conseguia transmitir informações complicadas em termos que um leigo pudesse entender e apreciar.
Algumas de suas histórias eram aterrorizantes; outras levavam os ouvintes ao riso descontrolado; outras, ainda, os faziam parar para pensar.
A outra coisa que transformava River numa grande aliada em potencial era o fato de o homem da sua vida ser policial. Karen não o havia conhecido,
mas por tudo que River lhe contara, ele parecia ser seu tipo de policial. Sem frescuras, apenas com um desejo objetivo de chegar diretamente ao cerne das coisas.
Portanto, ela havia voltado do curso de criminalística com maior compreensão de seu trabalho, e também com algo que parecia ser uma nova amizade. O que era suficientemente
raro a ponto de valer a pena alimentar. Desde então, as duas haviam se encontrado algumas vezes em Glasgow, o ponto central entre Fife e a base de River, em Lake
District. Haviam aproveitado muito suas noites fora, ocasiões em que cimentaram o que havia começado em seu primeiro encontro. Agora Karen descobriria se River tinha
falado sério quando oferecera seus alunos como uma opção econômica para trabalhos exploratórios que não pudessem, de fato, justificar grandes despesas de orçamento.
River atendeu o celular no segundo toque.
- Me tire daqui - ela disse.
- De onde?
- Estou sentada na varanda de uma cabana de madeira assistindo ao péssimo time de críquete de Ewan e rezando para que chova. O que a gente não faz por amor,
não?
O acaso podia ser uma coisa incrível.
- Pelo menos você não está preparando o chá para todos eles.
River fungou.
- Nem morta. Deixei isso bem claro, desde o início. Não lavo uniformes esportivos e não me escravizo na cozinha. Recebo um monte de olhares feios das outras
esposas e namoradas, mas, se elas acham que vou me incomodar, estão me confundindo com alguém que dá valor a essas coisas. E aí, como vão as coisas com você?
- Complicadas.
- Nenhuma novidade, então. Precisamos nos encontrar, sair uma noite. Para descomplicar um pouco.
- Para mim parece ótimo. E pode ser que o façamos antes do que você pensa.
- A-ha! Aí tem coisa.
- Podemos dizer que sim. Escute, lembra que uma vez você disse que tinha um pequeno exército de alunos à sua disposição, se eu algum dia precisasse de mão
de obra barata?
- Claro - disse River, com tranquilidade. - Está tentando fazer alguma coisa por baixo dos panos?
- Mais ou menos. - Karen explicou os elementos básicos da situação. River emitia ruídos de aprovação, enquanto ela falava.
- O.k. - ela disse, quando Karen terminou. - Então precisamos de arqueólogos criminais primeiro, de preferência os fortões que consigam carregar pedras. Não
posso usar alunos do último ano porque eles ainda estão fazendo os exames. Mas estamos quase no final do período e posso recrutar os do primeiro e segundo anos.
Além de quaisquer antropólogos que eu consiga arrumar. Posso chamar de trabalho de campo, fazê-los pensar que ganharão pontos com isso. Para quando você vai precisar
da gente?
- Que tal amanhã?
Houve um longo silêncio. Então, River perguntou:
- De manhã ou à tarde?
O telefonema para River deixou Karen acelerada, mas sem ter o que fazer. Ela aproveitou parte do repentino excesso de energia para encontrar acomodações para os
alunos que trabalhariam na escavação, nos campos litorâneos da vizinha Leven. Tentou assistir a um DVD da série Sex and the City, mas isso só serviu para deixá-la
irritada. Era sempre assim quando estava no meio de um caso. Não tinha apetite para mais nada além da caçada. Detestava ficar empacada porque era fim de semana,
ou porque testes levavam tempo, ou porque não se poderia fazer nada até que a próxima informação se encaixasse.
Ela tentou se distrair fazendo uma faxina. O problema era que ela nunca passava tempo suficiente em casa para bagunçá-la muito. Depois de uma hora de trabalho intenso,
não havia mais nada que garantisse sua atenção.
- Ah, que se dane - ela murmurou, ao pegar as chaves do carro e ir em direção à porta.
Estritamente falando, as leis referentes à coleta de evidências forenses exigiam que ela não estivesse sozinha ao colher depoimentos de testemunhas. Mas Karen disse
a si mesma que apenas estaria complementando o que já tinha, e não obtendo novas provas. E se ela se deparasse com alguma coisa que pudesse ser relevante mais tarde,
no tribunal, sempre poderia
enviar um par de policiais posteriormente para tomar um depoimento formal.
A viagem de carro de volta a Newton of Wemyss levou menos de vinte minutos. Não havia sinal de vida no enclave isolado em que vivia Jenny Prentice. Não havia crianças
brincando; ninguém sentado nos jardins, curtindo o sol de fim de tarde. A estreita plataforma formada pelas casas tinha um ar de desânimo que precisaria de mais
do que um pouco de verão para dispersar.
Dessa vez, Karen foi à casa vizinha à de Jenny Prentice. Ela ainda estava tentando obter uma imagem de como Mick Prentice havia realmente sido. Alguém que fosse
próximo o bastante da família para cuidar de Misha devia ter tido algum tipo de contato com seu pai.
Karen bateu à porta e esperou. Estava a ponto de desistir e voltar para o carro quando a porta se entreabriu, presa pela corrente de segurança. Um rostinho murcho
a espreitou, sob uma massa de cachos de cabelo grisalho.
- Sra. McGillivray?
- Eu não a conheço - disse a velha.
- Não. - Karen pegou sua identificação oficial e a segurou diante das lentes sujas dos óculos enormes da mulher, que faziam seus olhos azuis esmaecidos parecerem
maiores. - Sou da polícia.
- Não chamei a polícia - disse a mulher, inclinando a cabeça e franzindo a testa para a credencial de Karen.
- Não, eu sei disso. Só queria ter uma palavrinha com a senhora sobre o homem que morava na casa ao lado. - Karen indicou com o polegar a casa de Jenny.
- Tom? Ele já morreu há anos.
Tom? Quem era Tom? Ah, merda, ela havia se esquecido de perguntar a Jenny sobre o padrasto de Misha.
- Não, não o Tom. Mick Prentice.
- Mick? Você quer falar sobre o Mick? O que a polícia quer com Mick? Ele fez alguma coisa errada? - Ela parecia confusa, o que encheu Karen de maus pressentimentos.
Ela já havia passado tempo suficiente tentando tirar informações coerentes de pessoas idosas para saber que podia ser uma luta difícil e de resultados duvidosos.
- Não é nada disso, Sra. McGillivray - Karen garantiu a ela. - Só estamos tentando descobrir o que aconteceu com ele, desde que desapareceu.
- Ele decepcionou a todos nós, foi isso que aconteceu - a velha disse num tom ríspido.
- Certamente. Mas preciso apenas esclarecer alguns detalhes. Será que eu poderia entrar e ter uma conversinha com a senhora?
A mulher exalou ruidosamente.
- Tem certeza de que você bateu na casa certa? É a Jenny que você quer. Não há nada que eu possa lhe contar.
- Para ser sincera, Sra. McGillivray, estou tentando ter uma ideia de como Mick era realmente. - Karen usou seu melhor sorriso. - Jenny é um pouquinho parcial,
se é que a senhora me entende.
A velha deu uma risadinha.
- Ela é uma bruxa, a Jenny. Ela não tem nada de bom a dizer sobre ele, não é mesmo? Bem, moça, é melhor você entrar.
Um ruído da corrente que se abria e, então, Karen foi admitida no interior abafado. Havia um cheiro avassalador de lavanda, com toques de gordura rançosa e de cigarros
baratos. Ela seguiu a figura encurvada da Sra. McGillivray até o cômodo dos fundos, cuja parede havia sido derrubada para se fazer uma copa. Parecia que a obra tinha
sido feita nos anos setenta e nada fora mudado desde então, nem mesmo o papel de parede. A luz direta do sol, a preparação de alimentos e a fumaça dos cigarros haviam
deixado como testemunhas inúmeras descolorações e manchas. O sol baixo se infiltrava, lançando uma luz dourada nos móveis gastos.
Um periquito engaiolado matraqueou, assustado, quando elas entraram.
- Fique quietinho, Jocky. Esta é uma policial simpática que veio conversar com a gente. - O periquito soltou uma série de gorjeios que davam a impressão que
ele as estava xingando e, então, acalmou-se. - Sente-se. Vou colocar água para ferver.
Karen não queria realmente uma xícara de chá, mas sabia que a conversa fluiria melhor se deixasse a mulher servi-la. No fim, encararam uma a outra sobre uma mesa
surpreendentemente limpa, com um bule de chá e um prato de biscoitos - obviamente feitos em casa - entre elas. O sol iluminava a Sra. McGillivray como uma luz de
palco, revelando detalhes da maquiagem que havia sido claramente feita sem a ajuda dos óculos.
- Ele era um rapaz adorável, o Mick. Um moço lindo, com aquele cabelo louro e ombros largos. Sempre tinha um sorriso e uma palavra alegre
para mim - ela confidenciou enquanto servia chá em xícaras de porcelana tão fina que se podia ver a luz do sol batendo no líquido. - Sou viúva já há trinta e dois
anos, e nunca tive um vizinho melhor do que o jovem Mick Prentice. Ele sempre fazia qualquer trabalhinho que eu não conseguisse fazer. Nunca parecia se incomodar
comigo. Um rapazinho adorável, sem dúvida alguma.
- Deve ter sido difícil para eles, a greve. - Karen se serviu de um dos biscoitos recheados.
- Foi difícil para todo mundo. Mas não foi por isso que Mick fugiu.
- Não? - Mantenha o tom despreocupado, não demonstre que está particularmente interessada.
- Foi ela que o levou a fazer isso. Encontrando-se com aquele Tom Campbell bem debaixo do nariz dele. Nenhum homem toleraria isso, e Mick tinha lá seu orgulho.
- Tom Campbell?
- Ele nunca estava muito longe da casa. Jenny tinha sido amiga da mulher dele. Ela ajudou a cuidar da pobre coitada quando teve câncer. Mas depois que ela
morreu, parecia que ele não conseguia ficar longe de Jenny. Só se podia especular o que vinha acontecendo durante todo aquele tempo. - A Sra. McGillivray
deu uma piscadela conspiradora.
- A senhora está dizendo que Jenny estava tendo um caso com Tom Campbell? - Karen mordeu a língua para não fazer as perguntas que realmente queria, mas que
sabia que seria melhor deixar para depois. Quem era Tom Campbell? Onde ele está agora? Por que Jenny não o mencionou?
- Não vou dizer aquilo que não posso jurar. Tudo que sei é que não havia um diá em que ele não viesse fazer uma visita. E sempre quando Mick estava fora.
Tampouco vinha de mãos vazias. Pequenos embrulhos disto, pacotes daquilo. Durante a greve, Mick dizia que Jenny podia fazer uma libra render mais do que qualquer
outra mulher em Newton. Eu nunca contei a ele o porquê.
- E como é que Tom Campbell tinha coisas para dar? Ele não era mineiro, então?
A Sra. McGillivray fez uma careta, como se o chá que tinha acabado de tomar houvesse se transformado em vinagre.
- Ele era auxiliar de mina. - Karen desconfiava que a palavra "pedó-filo" teria sido pronunciada com mais respeito do que aquilo.
- E a senhora acha que Mick descobriu o que estava se passando entre eles?
Ela assentiu enfaticamente.
- Todo mundo em Newton sabia das coisas. É a história de sempre. O interessado é sempre o último a saber. E se alguém ainda tivesse dúvidas, Tom Campbell
se mudou para lá bem rápido, depois que Mick foi embora.
Tarde demais, Karen se lembrou de que não havia dado seguimento ao assunto do padrasto de Misha.
- Ele se mudou para a casa de Jenny?
- Alguns meses se passaram, antes que ele se mudasse. Para manter as aparências, pelo que me consta. E então ele se instalou no território do Mick.
- Ele não tinha sua própria casa? Com o salário de um auxiliar, eu pensaria que...
- Ah, sim, ele tinha uma bela casa em West Wemyss. Mas Jenny não quis se mudar. Ela disse que era pelo bem da criança. Que a partida de Mick já havia sido
agitação suficiente para Misha sem ela ter que ser arrancada de sua própria casa. - A Sra. McGillivray apertou os lábios e balançou a cabeça. - Mas você sabe, eu
sempre tive dúvidas. Acho que ela nunca amou Tom Campbell do jeito que amava Mick. Ela gostava do que ele podia oferecer a ela, mas acho que seu coração sempre pertenceu
a Mick. Apesar de todo o drama que ela fazia, nunca acreditei que Jenny tivesse deixado de amá-lo. Acho que ela ficou aqui porque, no fundo, acredita que ele irá
voltar um dia. E ela quer ter certeza de que ele saberá onde encontrá-la.
Era uma teoria, pensou Karen, baseada em sentimentalismo de novela. Mas tinha o mérito de dar sentido ao que, de outra forma, parecia inexplicável.
- Então, o que aconteceu com ela e Tom?
- Ele alugou sua casa e se mudou para a daqui ao lado. Nunca tive muito contato com ele. Ele não tinha o jeito de Mick para lidar com as pessoas. E as coisas
nunca foram tranquilas entre os rapazes da Lady Charlotte e os auxiliares de mina, principalmente depois que a mina foi fechada, em 1987. -A velha sacudiu a cabeça,
balançando os cachos grisalhos. - Mas Jenny acabou recebendo seu castigo. - Seu sorriso era de pura satisfação.
- Como assim?
- Ele morreu. Teve um ataque cardíaco fulminante no campo de golfe em Lundin Links. Deve fazer bem uns dez anos. E quando o testamento foi lido, Jenny teve
um choque e tanto. Ele havia deixado tudo em depósito para Misha. Ela recebeu tudo quando completou vinte e cinco anos, e Jenny nunca viu um tostão. - A Sra. McGillivray
ergueu sua xícara num brinde.
- Foi bem feito para ela, se você quer saber a minha opinião.
Karen não podia evitar concordar. Ela esvaziou sua xícara e afastou a cadeira.
- A senhora foi de muita ajuda - disse.
- Ele esteve aqui exatamente no dia em que Mick foi para Nottingham - disse a Sra. McGillivray. Foi o equivalente verbal de agarrar alguém pelo braço
para impedir que fosse embora.
- Tom Campbell?
- O próprio.
- Quando ele chegou? - perguntou Karen.
- Deve ter sido por volta das três da tarde. Eu gosto de ouvir a novela da tarde, no rádio, na sala da frente. Vi Tom subir pela entrada e ficar por ali,
esperando que ela voltasse para casa. Acho que Jenny tinha ido ao Serviço Social; ela tinha uns pacotes e latas, uma das entregas de comida que eles apanhavam lá.
- A senhora parece se lembrar com bastante clareza.
- Me recordo bem porque aquela manhã foi a última vez que vi Mick. Ficou gravado na minha cabeça. - Ela se serviu mais uma xícara de chá.
- Quanto tempo ele ficou? Tom Campbell, quero dizer.
A Sra. McGillivray balançou a cabeça.
- Nisso, eu não posso ajudar. Depois que terminou a novela, desci até o campo de golfe para tomar o ônibus para Kirkcaldy. Agora já não consigo mais fazer
isso, mas gostava de ir ao grande supermercado Tesco perto da estação rodoviária. Tomava o ônibus para ir e voltava de táxi. Então, não sei quanto tempo ele ficou.
- Ela tomou um longo gole do chá. - Algumas vezes fiquei me perguntando, sabe?
- O quê?
A velha desviou os olhos. Enfiou a mão no bolso de seu cardigã largo e tirou um maço de Benson & Hedges. Extraiu um cigarro e demorou um pouco para conseguir acendê-lo.
- Imaginava se ele não teria dado dinheiro a Mick.
- A senhora diz, dado dinheiro a Mick para que ele fosse embora da cidade? - Karen não pôde ocultar sua incredulidade.
- Não é uma ideia tão louca assim. Como eu disse, Mick tinha seu orgulho. Ele não teria ficado onde achasse que não o queriam. Então, se ele estava decidido
a ir embora de qualquer jeito, talvez tenha aceitado o dinheiro de Tom Campbell.
- Mas certamente ele teria amor-próprio demais para fazer isso, não?
A Sra. McGillivray exalou um fio de fumaça.
- De qualquer maneira, seria dinheiro sujo. Talvez o dinheiro de Tom Campbell parecesse um pouquinho mais limpo que o da comissão do carvão. E, além disso,
quando ele partiu, naquela manhã, não parecia que iria além da orla, para fazer suas pinturas. Se Tom Campbell lhe tivesse dado dinheiro, ele não precisaria voltar
para pegar roupas nem nada, não é?
- A senhora tem certeza de que ele não voltou para pegar suas coisas depois?
- Tenho. Confie em mim, não existem segredos nesta rua.
Os olhos de Karen estavam na velha, mas sua mente estava a mil por hora. Ela não acreditou, nem por um minuto, que Mick Prentice tivesse vendido seu posto no leito
conjugal para Tom Campbell. Mas talvez Tom Campbell houvesse desejado tomar aquele posto com intensidade suficiente para pensar numa forma de se livrar do rival.
Era nisso que tinha dado ir até lá só para conseguir um pouco mais de informações complementares. Karen reprimiu um suspiro e disse:
- Gostaria de mandar uns policiais para falar com a senhora na segunda-feira de manhã. Será que a senhora poderia repetir para eles o que acaba de me contar?
A Sra. McGillivray se animou.
- Seria um prazer. Eu poderia fazer uns pãezinhos doces.
Castelo de Rotheswell
Só porque estava presa em Rotheswell feito uma Rapunzel autoconfina-da não significava que Bel Richmond podia dar as costas para o resto do mundo. Ainda que estivesse
privada do acesso a Grant, ela não tinha por que ficar ociosa. Havia passado a maior parte do dia redigindo uma entrevista
para uma publicação no Guardian. Estava quase pronta, mas precisava de um certo distanciamento do texto antes de dar a polida final.
Uma visita à casa da piscina escondida no bosquezinho de pinheiros ali perto funcionaria bem, ela pensou, tirando o maiô da bolsa de roupas. Estava
cruzando o quarto quando o interfone da casa tocou.
A voz de Susan Charleson soou rápida e clara:
- Está ocupada?
- Estava indo dar um mergulho.
- Sir Broderick tem uma hora livre. Ele gostaria de continuar a sua entrevista de antecedentes históricos.
Estava claro que não havia espaço para discussão.
- Ótimo - suspirou Bel. - Onde o encontro?
- Ele a encontrará lá embaixo, no Land Rover. Ele achou que você gostaria de ver onde Catriona vivia.
Ela não podia se queixar daquilo. Qualquer coisa que acrescentasse cor à história valia a pena.
- Cinco minutos - ela disse.
- Obrigada.
Rapidamente, Bel trocou a roupa por jeans e uma jaqueta impermeável, agradecendo aos deuses estilistas pelo fato de as botas estilo construção estarem na moda e
permitirem que ela parecesse vagamente pronta para o campo. Apanhou seu gravador e correu para baixo. Um cintilante Land Rover Defender estava lá fora, em frente
à porta, com o motor ligado. Brodie Grant estava na direção. Mesmo a distância, ela pôde ver seus dedos enluvados tamborilando no volante.
Bel entrou no carro e lhe deu seu melhor sorriso. Ela não o havia visto desde a conversa bizarra com os policiais, no dia anterior. Tinha almoçado sozinha em seu
quarto, e, à noite, Judith dissera que ele estava em um jantar beneficente de alguma sociedade exclusivamente masculina. Ela parecera aliviada por ter escapado.
A conversa entre elas foi superficial; a própria Judith ou a sempre presente Susan a haviam desviado toda vez que o assunto ameaçasse se tornar de alguma maneira
revelador. Bel sentira-se frustrada.
Mas, agora que estava a sós com ele novamente, podia perdoar tudo aquilo. Cogitou perguntar a ele se realmente achava que poderia controlar
Karen Pirie como se fosse o lorde da mansão em um filme de mistério dos anos trinta, mas acabou reconsiderando. Melhor seria usar o tempo para complementar suas
informações sobre os antecedentes do caso.
- Obrigada por me levar à casa de Cat - ela disse.
- Não poderemos entrar - ele disse, soltando o freio de mão, contornando a casa por trás e descendo a trilha que passava no meio dos pinheiros.
- Já houve várias famílias locatárias desde então, você não estará perdendo nada, na verdade. Então, o que achou da inspetora Pirie?
Não havia nada em seu rosto ou voz que indicasse o que ele queria ouvir, então Bel se decidiu pela verdade.
- Acho que ela é uma dessas pessoas que são facilmente subestimadas - disse. - Desconfio que ela seja muito esperta.
- Ela é - disse Grant. - Imagino que você saiba que ela é a responsável pelo subchefe de polícia anterior deste distrito estar cumprindo pena de prisão perpétua
na cadeia. Um homem aparentemente acima de qualquer suspeita. Mas ela foi capaz de questionar sua probidade. E, uma vez que havia começado, não parou até ter deixado
claro, à prova de qualquer dúvida, que ele era um assassino cruel. E é por isso que a quero nesta investigação. Na época em que Catriona morreu, nós todos fomos
culpados por haver pensado nos moldes tradicionais. E olhe só no que deu. Se vamos ter direito a uma segunda tentativa, quero alguém que não siga o padrão estabelecido.
- Faz sentido - disse Bel.
- Então, sobre o que você quer conversar agora? - ele perguntou, guando saíram do meio das árvores para uma clareira que terminava com um muro alto e outros
portões duplos, como aqueles que Bel havia atravessado ao chegar. Estava claro que ninguém entrava na propriedade de Rotheswell a não ser que fosse bem-vindo. Grant
desacelerou o suficiente para que os guardas de segurança se certificassem de quem estava dirigindo o carro e, então, acelerou em direção à estrada principal.
- O que aconteceu depois? - ela perguntou, ligando o gravador e segurando-o entre eles. - Você recebeu a primeira exigência e começou a trabalhar em conjunto
com a polícia. Como foram as coisas depois disso?
Ele olhava para a frente de forma resoluta, não demonstrando qualquer sinal de emoção. Enquanto passavam por campos quadriculados de grãos
maduros e pasto, com o sol se ocultando e reaparecendo por trás das nuvens cinza, suas palavras jorraram num fluxo perturbador. Era difícil para Bel manter qualquer
tipo de distanciamento profissional. Morar com seu sobrinho Harry lhe dera suficiente percepção para imaginar prontamente a angústia de um pai na situação de Brodie
Grant. Essa compreensão gerava solidariedade o bastante para que ela o absolvesse de quase qualquer crítica.
- Nós esperamos - ele disse. - Nunca vi o tempo se arrastar tão lentamente quanto naquele momento.
Segunda-feira, 21 de janeiro de 1985; Castelo de Rotheswell
Para um homem que não tinha paciência nem para esperar que sua cerveja Guinness assentasse no copo, aguardar pelo contato do Pacto Anarquista da Escócia era uma
verdadeira tortura. Grant se movia por Rotheswell como uma bola de fliperama, quase que literalmente trombando em paredes e portas no seu esforço para não implodir.
Não havia sentido ou lógica em seus movimentos e, quando ele e a esposa se cruzavam, ele mal podia encontrar palavras para responder a suas perguntas ansiosas.
Mary parecia estar muito mais controlada, e ele quase chegou a se ressentir dela por isso. Ela havia ido ao sítio de Cat e informara, tanto para ele quanto para
Lawson, que, além da cadeira virada na cozinha, nada parecia estar fora do lugar. A data de vencimento do leite tinha sido no domingo, indicando que não fazia mais
de alguns dias, portanto, que ela havia desaparecido.
As noites eram piores do que os dias. Ele não dormia, apagava somente, quando a exaustão física superava suas forças. Então, despertava com um sobressalto, desorientado
e ainda cansado. Assim que retomava a consciência, desejava estar de novo inconsciente. Sabia que deveria estar se comportando de maneira normal, mas aquilo estava
além de sua capacidade. Susan cancelou todos os seus compromissos, e ele se enfurnou por trás das paredes de Rotheswell.
Na manhã da segunda-feira, ele estava, como nunca antes na vida, próximo de um colapso. O rosto que viu no espelho deveria estar num acampamento de prisioneiros
de guerra, e não no castelo de um milionário. Ele nem sequer se importava que as pessoas ao seu redor pudessem ver sua vulnerabilidade.
Tudo que queria era que o correio chegasse, trazendo algo concreto, algo que pudesse libertá-lo da impotência e lhe dar uma tarefa a realizar. Ainda que
fosse apenas levantar qualquer soma de dinheiro que os desgraçados estivessem exigindo de resgate. Se tivesse dependido dele, teria vigiado a central de distribuição
do correio em Kirkcaldy, abordado o carteiro como se fosse um bandoleiro à moda antiga, e exigido sua correspondência. Mas ele entendia a loucura daquilo. Em vez
disso, andava de um lado para o outro atrás da caixa postal, a fenda na porta pela qual as cartas do castelo cairiam, em algum momento, entre oito e meia e nove
da manhã.
Lawson e Rennie já estavam a postos. Haviam chegado em uma van de encanadores, vestidos de macacão, e entrado pelos fundos às oito horas da manhã. Agora estavam
sentados no vestíbulo da casa, impassíveis, esperando pelo correio. Mary, atordoada pelo tranquilizante que ele insistira que ela tomasse, estava sentada no degrau
inferior da escadaria, de pijama e roupão, os braços ao redor das pernas e o queixo apoiado nos joelhos. Susan se movia entre eles com chás e cafés, sua compostura
normal escondia só Deus sabia o quê. Grant certamente não tinha ideia de como ela havia mantido tudo em ordem nos últimos dias.
O rádio de Lawson emitiu ruidosamente uma mensagem incompreensível e, momentos depois, houve um barulho na caixa postal. O maço diário de cartas cascateou até o
chão, e Grant se atirou sobre elas como um homem faminto diante da promessa de comida. Lawson foi quase tão rápido quanto ele, agarrando o envelope grande de papel
manilha segundos depois que os dedos de Grant se fecharam sobre ele.
- Eu vou ficar com isto - ele disse.
Grant o arrancou dele.
- Não vai mesmo. Está endereçado a mim e você o verá na hora certa. - Ele o segurou junto ao peito e se levantou, afastando-se de Lawson e Rennie.
- Está bem, está bem - disse Lawson. - Vá com calma, senhor. Por que não se senta ao lado de sua esposa?
Para sua própria surpresa, Grant fez o que Lawson sugeria, abaixando-se na escada ao lado de Mary. Olhou fixamente para o envelope, subitamente não desejando descobrir
o que estavam a ponto de exigir dele. Então, Mary, como uma transfusão inesperada de força, pousou a mão no braço
dele. Ele rasgou a aba do envelope e sacou um calhamaço de papel. Desdobrando-o, viu que, desta vez, havia duas cópias do pôster do titereiro. Antes que pudesse
absorver as palavras escritas no quadro nos pés de cada um deles, viu a Polaroid. Tentou cobri-la, mas Mary foi mais rápida, estendendo a mão e tomando-a.
Dessa vez, a boca de Cat não estava coberta por fita adesiva. Sua expressão era raivosa e desafiante. Estava amarrada a uma cadeira por várias voltas de fita adesiva,
e a parede atrás dela era branca e lisa. Uma mão enluvada segurava a edição do Sunday Mail do dia anterior, na parte da frente da fotografia.
- Onde está Adam? - inquiriu Mary.
- Temos que supor que ele esteja aí. É um pouco difícil fazer um bebê posar para fotos - disse Lawson.
- Mas não há provas. Ao que tudo indica, ele poderia estar morto. - Mary cobriu a boca com a mão como se tentasse fazer retroceder suas palavras traiçoeiras.
- Não seja boba - disse Grant, colocando o braço em volta dela e injetando uma amabilidade artificial em sua voz. - Você sabe como Catriona é. De jeito nenhum
ela seria tão cooperativa se eles houvessem feito alguma coisa a Adam. Ela estaria urrando feito uma leoa e se atirando no chão, não sentada ali, toda obediente
e quieta. - Ele afagou seus ombros. - Vai ficar tudo bem, Mary.
Lawson esperou um momento e, então, disse:
- Podemos dar uma olhada nas mensagens?
Grant pestanejou e assentiu. Abriu o primeiro pôster sobre os joelhos e leu a mensagem, escrita com o mesmo hidrocor grosso que a anterior.
Abriu o primeiro poster sobre os joelhos e leu a mensagem, escrita com o mesmo hidrocor grosso que a anterior.
Queremos um milhão de libras. Duzentos mil em notas verdes e não inesquecíveis de 20 numa bolsa de viagem. O resto em diamante não lapidado. A entrega será feita
na quarta-feira à noite. Quando você entregar o resgate, terá um deles de volta. Você poderá escolher qual.
- Deus do céu! - disse Grant. Ele passou o pôster para Lawson, que havia calçado as luvas antecipadamente. A segunda folha não oferecia mais consolo.
Quando nós autenticamos os diamantes e lembramos que o dinheiro está a salvo, libertaremos o outro refém. Lembre-se, nada de polícia. Não tente trapassear. Sabemos
o que estamos fazendo e não temos medo de derramar sangue pela grana.
Pacto Anarquista da Escócia
- O que vocês já fizeram para rastrear essa gente? - exigiu Grant. - Quando vão encontrar a minha família?
Lawson manteve a mão aberta erguida enquanto analisava o segundo pôster. Passou-o para Rennie e disse:
- Estamos fazendo todo o possível. Entramos em contato com a Divisão Especial do MI5, mas nenhum deles tem qualquer conhecimento de um grupo ativista chamado
Pacto Anarquista da Escócia. Conseguimos que um datiloscopista e um analista de evidências fossem até o sítio de Catriona às escondidas, no sábado à noite. Por enquanto,
não temos nenhuma pista direta, mas estamos trabalhando nisso. Também enviamos um policial, que se fazendo passar por cliente perguntou por lá se alguém sabia quando
o ateliê de Catriona abriria. Conseguimos descobrir que ela, definitivamente, trabalhou na quarta-feira, mas ninguém pôde confirmar ter visto qualquer sinal dela
depois disso. Não recebemos nenhuma notícia de qualquer coisa fora do normal na área. Nenhum veículo ou comportamento suspeito. Nós...
- O que você está dizendo é que não tem nada e não sabe nada - Grant interrompeu, com brutalidade.
Lawson nem sequer piscou.
- Geralmente é assim, em casos de sequestro. A não ser que a captura ocorra num lugar público, há pouco em que se apegar. E quando há uma criança pequena
envolvida, é muito fácil controlar o adulto, não se tem, portanto, nem o tipo de luta física que geralmente gera evidências de criminalística. Normalmente, a entrega
do resgate é o ponto em que podemos fazer algum progresso real.
- Mas vocês não poderão fazer nada nesse ponto. Você não sabe ler? Eles vão manter um dos reféns até terem certeza de que não tentamos enganá-los - disse
Grant.
- Brodie, ambos estarão lá, na entrega - disse Mary. - Olhe, aqui diz que nós poderemos escolher um deles.
Grant bufou.
- E qual deles vamos escolher? É óbvio que escolheríamos Adam. O mais vulnerável. Aquele que não pode cuidar de si mesmo. Ninguém, em seu juízo perfeito,
deixaria um bebê de seis meses com um bando de terroristas anarquistas, se tiver escolha. Eles trarão Adam e deixarão Catriona para trás, onde quer que a estejam
mantendo presa. É o que eu faria, no lugar deles. - Ele olhou para Lawson buscando confirmação.
O policial se recusou a encontrar seu olhar.
- Essa é, certamente, uma possibilidade - ele disse. - Mas seja lá o que eles façam, nós temos opções. Podemos tentar segui-los. Podemos colocar um dispositivo
de rastreamento na bolsa do dinheiro e outro entre os diamantes.
- E se isso não funcionar? O que os impedirá de exigir mais dinheiro? - perguntou Grant.
- Nada. É totalmente possível que eles exijam um segundo resgate. - Lawson parecia profundamente perturbado.
- Então, pagaremos - disse Mary, calmamente. - Quero minha filha e meu neto de volta em segurança. Brodie e eu faremos qualquer coisa para conseguir isso.
Não é mesmo, Brodie?
Grant se sentia encurralado. Ele sabia qual deveria ser a resposta, mas estava surpreso por sua ambivalência. Ele pigarreou.
- É claro que sim, Mary. - Dessa vez, os olhos de Lawson se fixaram nos dele, e Grant achou que podia ter expressado sentimentos demais. Tinha de lembrar
o policial de que ele também tinha algo em jogo. - Assim como o Sr. Lawson, Mary, isso eu lhe prometo.
Lawson dobrou os pôsteres juntos e os colocou de volta no envelope.
- Todos nós estamos cem por cento comprometidos em recuperar Catriona e Adam com segurança - ele disse. - E a primeira coisa a ser feita é que vocês precisam
começar a tomar providências com seu banco.
- Meu banco? Você quer dizer que vamos dar a eles dinheiro de verdade? - Grant estava incrédulo. Se em algum momento havia pensado naquele assunto, deduzira
que a polícia tinha um lote de notas falsas marcadas para tais contingências.
- Seria muito perigoso, neste ponto, fazer diferente - disse Lawson. Ele olhava fixamente para o carpete, a imagem perfeita do embaraço. - Suponho que o senhor
tenha o dinheiro, não?
Sábado, 30 de junho de 2007; Newton ofWemyss
- O filho da puta descarado tentou parecer sem graça ao fazer aquela pergunta, mas eu podia ver que ele estava realmente gostando de me colocar em evidência
- disse Grant, pisando no acelerador conforme deixavam Coaltown of Wemyss para trás. - Não me leve a mal. Lawson nunca deu um passo em falso durante toda a investigação.
Não tenho nenhum motivo para suspeitar de que ele não estivesse totalmente comprometido em apanhar os desgraçados que pegaram Catriona e Adam. Mas eu podia ver que
havia uma parte dele que, secretamente, se regozijava por me ver castigado.
- E por quê? Você pensou sobre isso?
Grant desacelerou quando surgiu uma abertura no muro alto que eles vinham acompanhando com o carro.
- Inveja, pura e simplesmente. Não importa que nome se dê a isso: disputa entre classes sociais, machismo, provocação. No fundo, é sempre a mesma coisa. Existe
um monte de gente aí fora que se ressente do que eu tenho.
Ele saiu da estrada e entrou num acostamento amplo. A parede se adentrava em ambos os lados, convergindo para portões altos feitos de uma grossa treliça de madeira
pintada de preto, construída para se parecer a uma grade medieval. Conjugada ao muro, de um lado, ficava a fachada de uma casa de dois andares, construída dos mesmos
blocos de arenito vermelho local que o próprio muro. Cortinas de voile tapavam as janelas e nenhuma delas se moveu ao som do motor do Land Rover.
- E essas mesmas pessoas também se ressentiam de Catriona. Irônico, não? As pessoas supunham que Catriona tivera um começo de carreira profissional tão bom
por minha causa. Nunca perceberam que, na verdade, foi apesar de mim.
Ele desligou o motor e saiu do carro, batendo a porta atrás de si. Bel o seguiu, intrigada pelos insights que surgiam em sua mente, tanto os conscientes quanto os
inconscientes.
- E quanto ao senhor? A inveja que têm do senhor também é irônica?
Grant girou nos calcanhares e olhou para ela com raiva.
- Pensei que você tivesse feito sua pesquisa.
- E fiz. Sei que o senhor começou numa vila de mineiros em Kelty. Que construiu seu negócio do nada. Mas alguns trechos das reportagens e notícias dão a entender
que seu casamento não prejudicou exatamente sua ascensão meteórica.
Bel sabia que estava brincando com fogo, mas, se ia aproveitar ao máximo esse acesso exclusivo e utilizá-lo em algo que iria transformar completamente sua carreira,
precisava penetrar sob a superfície, para obter o material que ninguém mais houvesse sequer desconfiado existir, muito menos conseguido alcançar.
As sobrancelhas grossas de Grant se uniram em um olhar furioso e, por um momento, ela pensou que experimentaria a explosão destruidora de seu mau gênio. Mas algo
mudou na expressão dele. Ela podia ver o esforço que era necessário, mas ele conseguiu produzir um sorrisinho torto e deu de ombros.
- Sim, o pai de Mary tinha poder e influência em áreas que eram cruciais ao desenvolvimento do meu negócio. - Ele abriu os braços num gesto de desamparo.
- E, sim, casar com ela não me fez nada além de bem, no aspecto profissional. Mas aí é que está, Bel. A minha Mary era suficientemente esperta para saber que seria
extremamente infeliz se casasse com um homem que não a amasse. E foi por isso que ela escolheu a mim. - Seu sorriso murchou lentamente. - Eu nunca tive escolha,
nesse assunto. E também não tive escolha quando ela optou por me abandonar. - Abruptamente, ele se virou e caminhou a passos largos em direção aos portões pesados.
Sexta-feira, 23 de janeiro de 1987; Eilean Dearg
Eles passavam pouquíssimo tempo juntos, ultimamente. Aquele pensamento havia incomodado Grant em cada refeição que fizera em Rotheswell durante a semana toda. Café
da manhã sem ela. Almoço sem ela. Jantar sem ela. Houvera convidados; parceiros de negócios, políticos e, é claro, Susan. Mas nenhum deles era Mary. O tempo sem
ela havia chegado a um ponto crítico naquela semana. Ele não podia viver mais com aquela distância entre eles. Precisava dela tanto quanto sempre havia precisado.
Nada fazia com que a morte de Cat fosse mais fácil, no entanto Mary fazia com que fosse
suportável. E agora sua ausência, ainda mais naquele dia, era totalmente insuportável.
Ela havia saído na segunda-feira, dizendo que precisava ficar sozinha. Na ilha, ela teria a paz de espírito que desejava. Não havia empregados lá. Só levava vinte
minutos para caminhar pela ilha toda, mas estar no meio do mar, a alguns quilômetros dali, dava a sensação de distância de tudo e de todos. Grant gostava de ir lá
tanto para pensar como para pescar. Mary geralmente o deixava só, apenas ocasionalmente se unia a ele. Ela nunca havia ido para lá sozinha, pelo que se lembrava.
Mas estava decidida.
É claro que não havia linha telefônica. Tinha um celular no carro, mas este ficaria parado no estacionamento do hotel em Mull, a oitocentos metros do quebra-mar.
E, além disso, não haveria sinal de celular na vastidão das Hébridas. Ele nem sequer tinha ouvido sua voz desde que ela se despedira dele, na segunda-feira.
E agora já estava farto daquele silêncio. Ao completar dois anos do dia em que sua filha havia morrido e seu neto, desaparecido, Grant não queria estar a sós com
sua dor. Tentava não ser duro demais consigo mesmo por tudo que havia dado errado, mas a culpa, ainda assim, havia marcado seu coração. Às vezes se perguntava se
Mary também o culparia, se era por isso que ela se ausentava com tanta frequência. Ele tentara dizer a ela que as únicas pessoas que deveriam arcar com a culpa pela
morte de Catriona eram os homens que a sequestraram, mas mal conseguira convencer a si mesmo disso, muito menos a ela.
Ele havia partido logo após ter tomado o café da manhã mais cedo que o habitual; antes, telefonara para o hotel para certificar-se de que alguém estaria disponível
para levá-lo até sua ilha. Precisara sair da estrada algumas vezes e parar o carro, nos momentos em que o aperto da angústia em sua garganta havia ameaçado superar
seu controle. Chegara enquanto ainda havia uma leve claridade de sol no céu, mas, ao completar a travessia, o anoitecer já estava bem adiantado. Porém, o caminho
até a casa era amplo e bem cuidado, então ele não tinha receio de se perder.
Conforme Grant se aproximava, ficou surpreso em não ver luzes acesas. Quando costurava, Mary acendia uma quantidade de lâmpadas que deixaria qualquer iluminação
de teatro no chinelo. Talvez ela não estivesse costurando. Talvez estivesse sentada no solário nos fundos da casa, assistindo
aos últimos filamentos de luz no céu ocidental. Grant apressou o passo, recusando-se a reconhecer as garras do medo que se enterravam em seu peito.
A porta não estava trancada e se abriu, girando nas dobradiças bem lubrificadas. Ele estendeu a mão para acender a luz e o saguão surgiu em cores e formas vivas.
- Mary - chamou. - Sou eu. - O ar parado pareceu absorver suas palavras, impedindo-as de se propagar na distância.
Grant cruzou o saguão com passadas largas, abrindo as portas ao passar por elas, chamando o nome da esposa, sentindo o pânico apertar-lhe o crânio e colocar lágrimas
em seus olhos. Onde diabos ela estava? Não estaria lá fora. Não a esta hora da noite. Não com tanto frio.
Encontrou-a no solário. Mas ela não estava assistindo ao pôr do sol. Mary Grant nunca mais assistiria ao pôr do sol. Comprimidos espalhados e uma garrafa vazia de
vodca entregaram o segredo de seu silêncio. Sua pele já estava fria.
Sábado, 30 de junho de 2007; Newton ofWemyss
Bel alcançou Grant perto das traves pesadas dos portões. De perto, ela podia ver que havia uma entrada menor em um dos portões, suficientemente grande para admitir
uma van pequena ou um carro grande. No outro lado, havia uma trilha sulcada que conduzia para dentro do bosque fechado.
- Ela deixou um bilhete - ele disse. - Ainda o tenho na memória. "Sinto muitíssimo, Brodie. Não posso mais fazer isso. Você merece algo melhor e eu não consigo
ser melhor. Não suporto ver a sua dor e não suporto a minha própria. Por favor, tente amar novamente. Rezo para que você consiga." - Seu rosto se retorceu num sorriso
amargurado. -Judith e Alec. Isso sou eu fazendo o que ela mandou. Você já ouviu falar da corrida de Iditarod?
Surpresa pela súbita mudança de assunto, Bel só pôde gaguejar:
- Sim. No Alasca. De trenós puxados por cães.
- Um dos maiores perigos que eles enfrentam é o que se chama de "gelo oco". O que acontece é que a água recua debaixo do gelo, deixando apenas uma película
fina sobre um bolsão de ar. De cima, a aparência é exatamente
a mesma que a do resto do campo de gelo. Mas se você colocar qualquer peso sobre a superfície, vai atravessá-la. E não poderá sair mais, porque as laterais
são de gelo sólido. A sensação de ter perdido Catriona, Adam e Mary, às vezes, é exatamente essa. Não sei quando o chão sob meus pés vai deixar de me suportar. -
Ele pigarreou e apontou para um pequeno galpão de madeira que mal era visível, nas margens do bosque. - Aquele era o ateliê e a loja de Catriona. Estava em melhores
condições, na época. Quando ela estava aberta, colocava algumas placas em cavaletes na beira da estrada. Deixava o portão interno aberto, o suficiente para que as
pessoas entrassem e saíssem, mas não para que passassem carros. Havia bastante espaço para que as pessoas estacionassem aqui fora. - Ele acenou com a mão indicando
o amplo lugar onde havia deixado o Land Rover. O assunto referente à sua primeira esposa estava claramente encerrado. Mas ele lhe havia fornecido um presente maravilhoso,
com a imagem do "gelo oco". Bel sabia que poderia transformar aquilo em algo notável.
Ela analisou o local.
- Mas, teoricamente, quem quer que a tenha sequestrado poderia ter aberto o portão o suficiente para passar com o carro. Então, eles teriam ficado praticamente
invisíveis, para quem olhasse da estrada.
- Foi o que a polícia pensou, inicialmente, mas as únicas marcas de pneu que eles acharam eram do carro da própria Catriona. Eles devem ter estacionado aqui
fora, onde o terreno é mais duro. Qualquer pessoa que passasse de carro na estrada os teria visto. Estavam assumindo um risco enorme.
Bel deu de ombros.
- Sim e não. Se eles estavam de posse de Adam, Cat faria o que mandassem.
Grant assentiu.
- Até mesmo uma mulher de gênio forte como minha filha teria colocado a segurança do filho em primeiro lugar. Não tenho dúvida nenhuma sobre isso. - Ele se
virou. - Ainda culpo a mim mesmo.
Parecia uma reação extrema, mesmo para alguém tão controlador quanto ele.
- Como assim? - Bel perguntou.
- Confiei demais na polícia. Deveria ter assumido mais responsabilidade pela forma como as coisas se desenrolaram. Eu me esforcei. Mas não o suficiente.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Castelo de Rotheswell
- Nós sabemos o que estamos fazendo - disse Lawson. Ele estava começando a parecer irritado, o que não deixava Grant muito confiante. - Podemos terminar com
isso esta noite.
- Você deveria ter colocado a área sob vigilância - disse Grant. - Eles podem já estar no local.
- Imagino que eles não sabem exatamente quando as correspondências são entregues - disse Lawson. - Se quisessem nos pegar de surpresa, teriam se entrincheirado
antes mesmo que recebêssemos a mensagem com as instruções. Portanto, não existe muita chance de que isso ocorra de fato.
Grant olhou fixamente para a foto de Polaroid daquela manhã. Dessa vez, Cat estava deitada de lado numa cama, com Adam estirado, de olhos bem abertos, a seu lado.
Novamente, o Daily Record fornecia prova de vida. Pelo menos com relação ao dia anterior.
- Por que lá? - ele perguntou. - É um lugar tão estranho. Não se pode fugir de lá rapidamente.
- Talvez seja por isso que o escolheram. Se eles não podem fugir rapidamente, o senhor também não pode. Eles ainda terão uma refém. Podem usá-la como barganha
para fazer com que o senhor mantenha distância até que eles voltem para o veículo - disse Lawson. Ele estendeu o mapa em grande escala que Rennie trouxera. O local
da entrega estava circulado em vermelho. - A Lady's Rock. Fica entre o antigo poço de mina em East Wemyss e a extremidade leste de West Wemyss. Os pontos mais próximos
aos quais eles podem chegar de carro ficam aqui, no início do bosque... - Lawson indicou no mapa. - Ou aqui. No estacionamento em West Wemyss. Se eu fosse eles,
não escolheria West Wemyss. Fica mais longe da estrada principal. Demora alguns minutos cruciais a mais até o entroncamento de estradas.
- Porém, dá mais opções, depois que você chega lá - ressaltou Grant.
- Em direção a Dysart ou a Boreland, em direção a Coaltown, ou descendo
pela Check Bar Road até Standing Stone, e depois é possível ir a praticamente qualquer lugar.
- Cobriremos todas as possibilidades - disse Lawson.
- Vocês não podem correr nenhum risco - disse Grant. - Eles terão o resgate. Pode ser que sacrifiquem a Cat para poderem escapar.
- O que o senhor quer dizer?
- Se eu fosse um sequestrador que tivesse o resgate nas mãos e percebesse que seus homens estavam atrás de mim, eu atiraria minha refém para fora do carro
- disse Grant, parecendo muito mais calmo do que se sentia.
- Vocês parariam para pegá-la, porque são civilizados. Eles sabem disso. Podem se dar ao luxo de apostar nessa possibilidade.
- Não vamos correr nenhum risco - disse Lawson.
Grant levantou as mãos, frustrado.
- Tampouco é essa a resposta certa. Vocês não podem manter a segurança em primeiro lugar numa situação como essa. Devem estar dispostos a correr riscos calculados.
Terão de agir conforme o momento. Não podem ser rígidos. Têm de ser flexíveis. Eu não cheguei ao topo da árvore sem correr riscos.
Lawson lançou a ele um olhar calculado.
- E se eu corro um risco que acho necessário e o tiro sai pela culatra? O senhor será o primeiro a pedir a minha cabeça?
Grant fechou os olhos por um momento.
- É claro que serei - ele disse. - Agora, tenho duas vidas e um milhão de libras em jogo aqui. Você precisa me convencer de que sabe o que está fazendo. Podemos
repassar tudo mais uma vez?
Sábado, 30 de junho de 2007; Newton of Wemyss
- Eu soube que a havia desapontado. Naquele instante mesmo, eu soube. - Grant suspirou fortemente. - Ainda assim, continuei acreditando que, se tudo desse
errado, alguém apareceria. Que alguém devia ter visto alguma coisa.
- O que não aconteceu. - Foi uma afirmativa direta.
- Não. Não aconteceu. - Ele se voltou e olhou para Bel. Sua expressão era de perplexidade. - Nunca apareceu ninguém. Não para falar sobre
o sequestro em si. Não para falar de onde eles foram mantidos em cativeiro. Nunca ninguém deu à polícia um único testemunho ocular crível. Ah, apareceram os malucos
de sempre. E pessoas telefonando de boa-fé. Mas, depois de investigadas, todas as informações foram desacreditadas.
- Isso parece estranho - disse Bel. - Normalmente há alguma coisa. Mesmo que seja apenas um desentendimento entre os criminosos.
- Também acho. A polícia nunca pareceu achar estranho. Mas eu sempre me perguntei como eles conseguiram fazer tudo sem que houvesse uma única testemunha.
Bel parecia pensativa.
- Talvez não tenha havido um desentendimento entre os criminosos porque eles não eram criminosos.
- O que você quer dizer?
- Ainda não tenho certeza - ela disse, lentamente.
Grant parecia frustrado.
- Esse é o problema desse caso. - Ele foi em direção ao Land Rover. - Ninguém nunca tem certeza de nada. A única coisa certa é que a minha filha está
morta.
Domingo, 1º de julho de 2007; East Wemyss
Karen nunca tivera uma opinião particularmente boa sobre os estudantes. Era uma das razões pelas quais ela havia optado por entrar para a polícia logo depois da
escola, a despeito das tentativas de seus professores de a convencerem a cursar uma faculdade. Ela não via o sentido em juntar quatro anos de dívidas, quando poderia
estar ganhando razoavelmente bem e fazendo um trabalho de verdade. Nada do que tinha visto da vida de seus antigos colegas de escola a fizera sentir que cometera
um erro.
Mas a equipe de River Wilde a estava obrigando a admitir que, talvez, nem todos os estudantes fossem preguiçosos amantes da boa vida. Eles haviam chegado pouco antes
das onze; descarregaram seus equipamentos e montaram os encerados e holofotes antes do meio-dia; e haviam organizado o serviço de pizzas, engolido a comida e começado
a difícil, mas delicada, tarefa de deslocar toneladas de pedras e cascalho manualmente. Depois que
estabeleceram um ritmo com as picaretas, espátulas, peneiras e escovas, River os deixou trabalhando e se uniu a Karen onde ela estava sentada, à mesa da sociedade
das cavernas, sentindo-se meio dispensável.
- Muito impressionante - disse Karen.
- Eles não saem muito - disse River. - Bem, pelo menos, não no sentido profissional. Estão excitados com a tarefa.
- Quanto tempo você acha que levará para limpar a obstrução?
River deu de ombros.
- Depende de até onde éla vai. É impossível adivinhar. Um dos meus alunos de pós-graduação, formado em Ciências Geológicas, diz que o arenito é notoriamente
imprevisível quando começa a se mover. Quando conseguirmos fazer uma abertura no topo, poderemos enfiar uma sonda. Isso nos dará uma ideia de até onde vai. Se atingirmos
espaço aberto, podemos enfiar uma câmera de fibra ótica. Então, teremos uma noção muito melhor sobre o que estamos enfrentando.
- Eu lhe agradeço muito por tudo isso - disse Karen. - Estou dando um tiro no escuro aqui.
- Foi o que imaginei. Você quer me colocar a par da história? Ou é melhor que eu não saiba?
Karen sorriu.
- Você é que está me fazendo o favor. É melhor que saiba a quantas anda o placar. - Ela repassou com River os pontos principais da investigação, aprofundando-se
nos aspectos dos quais River pedia mais detalhes. - O que você acha? - ela perguntou, por fim. - Acha que eu consigo fazer meu plano dar certo?
River estendeu a mão, balançando-a para indicar que as chances eram iguais.
- Seu chefe é muito inteligente? - ela perguntou.
- Ele é um imbecil - respondeu Karen. - Tem a esperteza de uma lesma em coma.
- Neste caso, pode ser que você tenha sorte.
Antes que Karen pudesse responder, uma figura familiar surgiu da claridade da entrada da caverna.
- Ué, não está faltando uma? - perguntou Phil, chegando à parte iluminada e puxando uma cadeira para sentar-se.
- Do que é que você está falando? - perguntou Karen.
- "Mais dores para a barreia, mais fogo para a panela" - ele respondeu. - Das bruxas de Macbeth. Ah, tudo bem, foi só ilusão de ótica. Desculpe, chefe. -
Ele estendeu a mão. - Você deve ser a Dra. Wilde. Tenho de confessar, achava que Karen fosse única, mas, aparentemente, estava enganado.
- Ele diz isso no bom sentido - disse Karen, virando os olhos. - Phil, você tem que aprender a ser simpático com mulheres desconhecidas. Principalmente aquelas
que conhecem dezessete maneiras não detectáveis de matá-lo.
- Como é que é? - disse River, aparentemente ofendida. - Conheço muito mais do que dezessete maneiras.
Quebrado o gelo, Phil pediu a River que explicasse o que sua equipe esperava conseguir. Ele ouviu atentamente e, quando ela terminou, olhou para os estudantes. Eles
já haviam feito uma depressão visível no canto superior, onde as pedras que haviam caído se encontravam com o teto.
- Sem querer ofender - ele disse -, mas espero que isso tudo seja uma grande perda de tempo.
- Você ainda tem esperança de que Mick Prentice esteja vivo e bem de saúde, cavando buracos na Polônia, como Iain Maclean sugeriu? - perguntou Karen, a voz
repleta de piedade.
- Preferiria isso a encontrá-lo debaixo destas pedras.
- E eu preferiria que meus números tivessem sido sorteados na loteria ontem à noite - disse Karen.
- Não há nada de errado com um pouco de otimismo - River disse gentilmente. Ela se levantou. - É melhor eu dar um pouco de exemplo prático. Telefonarei para
você se surgir alguma coisa.
Não houve dificuldade para encontrarem duas vagas de estacionamento na rua de Jenny Prentice. Phil seguiu Karen pelo caminho que levava à casa, resmungando baixinho
que o Biscoito ia ter um treco quando descobrisse sobre a enorme escavação de River.
- Está tudo sob controle - disse Karen. - Não se preocupe. - A porta se abriu abruptamente, e Jenny Prentice olhou para eles de forma
penetrante. - Boa tarde, Sra. Prentice. Gostaríamos de ter uma conversinha com a senhora. - Aço nos olhos e na voz.
- Sei, bem, eu não quero ter nenhuma conversa com vocês neste momento. Não é conveniente para mim.
- Mas é para nós - disse Phil. - A senhora quer fazer isso aqui, onde os vizinhos podem ouvir tudo? Poderíamos entrar, se a senhora preferir.
Outra figura surgiu por trás de Jenny. Karen não pôde deixar de ficar contente ao reconhecer Misha Gibson.
- Quem é, mãe? - ela perguntou e, então, percebeu. - Inspetora Pirie, você tem alguma novidade? - A esperança que surgiu em seus olhos foi como uma acusação.
- Nada concreto - disse Karen. - Mas você estava certa. Seu pai não foi para Nottingham com os fura-greves. O que quer que tenha acontecido com ele, não foi
isso.
- Então, se vocês não vieram trazer novidades, por que estão aqui?
- Temos duas perguntas a fazer à sua mãe - disse Phil.
- Nada que não possa esperar até amanhã - disse Jenny, cruzando os braços sobre o peito.
- Mesmo assim, não existe razão para não resolvermos isso hoje mesmo - disse Karen, sorrindo para Misha.
- Não vejo minha filha com frequência - Jenny disse. - Não quero desperdiçar o tempo que temos falando com vocês.
- Não vai demorar muito - disse Karen. - E também diz respeito a Misha.
- Vamos, mãe. Eles vieram até aqui, o mínimo que podemos fazer é convidá-los para entrar - disse Misha, afastando a mãe da posição que esta ocupava, na soleira
da porta. O olhar que Jenny lançou a eles poderia ter feito murchar almas mais frágeis, mas ela cedeu e se afastou, voltando para a sala na qual haviam conversado
na última vez.
Karen recusou o chá que Misha ofereceu, mal permitindo que mãe e filha se acomodassem antes de ir direto ao ponto.
- Na última vez que conversamos, a senhora não falou nada sobre Tom Campbell.
- E por que deveria? - Jenny não podia evitar que a hostilidade aparecesse em sua voz.
- Porque ele esteve aqui no dia em que seu marido desapareceu. E não pela primeira vez, inclusive.
- Por que ele não deveria estar aqui? Era um amigo da família. Ele foi muito generoso conosco durante a greve. - A boca de Jenny se fechou tão rigidamente
quanto uma ratoeira.
- O que está sugerindo, inspetora? - Misha parecia sinceramente confusa.
- Não estou sugerindo nada. Estou perguntando a Jenny por que ela nunca mencionou que Campbell esteve aqui naquele dia.
- Porque era irrelevante - disse Jenny.
- Quanto tempo depois do desaparecimento de Mick você e Tom começaram a ter um relacionamento? - A pergunta pairou no ar juntamente com as partículas de poeira
suspensas no ambiente.
- Você tem uma mente muito suja -Jenny disse.
Karen deu de ombros.
- Está registrado que ele se mudou para cá. Que vocês viviam juntos como família. Que no testamento ele deixou tudo para Misha. Tudo que estou perguntando
é quanto tempo se passou entre o desaparecimento de Mick e a entrada em cena de Tom.
Jenny lançou um olhar ininteligível à filha.
- Tom era um bom homem. Você não tem nenhum direito de vir aqui com suas insinuações e calúnias. Ele havia ficado viúvo fazia pouco tempo. Sua esposa era
minha melhor amiga. Ele precisava de amigos por perto. E, como ele era um auxiliar de mina, então a maioria dos homens não queria saber dele.
- Não estou discutindo nada disso - disse Karen. - Só estou tentando entender toda a situação. O fato de a senhora não me contar a história toda não me ajuda
a achar Mick. E então, quanto tempo demorou para que a senhora e Tom passassem da amizade para algo mais?
Misha fez um ruído impaciente.
- Diga o que ela quer saber, mãe. Caso contrário, ela simplesmente vai saber por outra pessoa. É melhor que seja por você do que da boca das doces esposinhas
daqui.
Jenny olhava firmemente para os próprios pés, observando os chinelos surrados, quase furados no dedão, como se a resposta estivesse escrita ali e ela não tivesse
os óculos adequados para ler.
- Nós dois estávamos nos sentindo sozinhos. Era como se tivéssemos sido abandonados. E ele era bom para nós, muito bom. - Houve uma longa pausa, então Misha
estendeu a mão para cobrir o punho cerrado da mãe. - Eu o convidei para a minha cama seis semanas contadas do dia que Mick nos abandonou. Teríamos morrido de fome
se não fosse por Tom. Nós dois estávamos procurando conforto.
- Não há nada de errado nisso. - As palavras gentis vieram, surpreendentemente, de Phil. - Não estamos aqui para julgar ninguém.
Jenny assentiu.
- Ele se mudou para nossa casa em maio.
- E ele era um excelente padrasto - disse Misha. - Não poderia ter sido melhor se fosse meu pai de verdade. Eu amava Tom.
- Nós duas o amávamos - disse Jenny.
Karen não podia evitar o pensamento de que ela estava tentando convencer a si mesma tanto quanto a eles. Ela se lembrava da afirmação da Sra. McGillivray de que
o coração de Jenny havia pertencido somente a Mick.
- A senhora alguma vez se perguntou se Tom teve algo a ver com a partida de Mick?
A cabeça de Jenny se ergueu abruptamente, seus olhos fuzilaram Karen.
- Que diabos está querendo dizer? Você acha que Tom fez alguma coisa com Mick? Você acha que ele deu sumiço no Mick?
- Me diga a senhora. Ele deu? - Karen estava tão implacável quanto Jenny estava eriçada.
- Você está completamente equivocada - Misha disse, em voz alta e desafiante. - Tom não machucaria uma mosca.
- Eu não falei nada sobre Campbell ter causado algum dano físico em Mick. Acho extremamente interessante que vocês duas tenham se precipitado a concluir que
era isso que eu queria dizer - continuou Karen. Jenny parecia desnorteada, e Misha, furiosa. - O que eu estava pensando era se Mick percebeu que havia alguma ligação
entre você e Tom. Pelo que tudo indica, ele era um homem orgulhoso. Talvez ele tenha decidido que seria melhor para todo mundo se ele desse lugar a um homem que
a senhora parecia preferir.
- Você está falando um monte de merda - Jenny acusou. - Não havia nada acontecendo entre mim e Tom naquela época.
- Não? Bem, talvez Tom tenha achado que poderia haver, se ele pudesse tirar Mick de campo. Ele tinha bastante dinheiro. Talvez tenha dado um dinheiro a Mick
para que ele fosse embora. - Era uma sugestão ultrajante, ela sabia. Mas o ultraje geralmente precipitava resultados interessantes.
Jenny tirou sua mão da de Misha e se afastou dela.
- Isto é culpa sua - ela gritou para a filha. - Eu não tenho de ficar escutando isso. Na minha própria casa, ela se atreve a caluniar o homem que lhe deu
tudo. Olha só o que você nos arrumou, Michelle! Olha só o que você fez! - As lágrimas escorriam por seu rosto quando ela levou a mão para trás e bateu com força
no rosto de Misha.
Karen já estava de pé, mas não foi rápida o bastante. Jenny saiu da sala antes que qualquer pessoa pudesse impedi-la. Surpresa, Misha pressionou a mão em sua face
escarlate.
- Deixe-a - ela gritou. - Você já causou dano suficiente por um dia. - Ela recuperou o fôlego e se recompôs. - Acho que vocês deveriam ir embora -
disse.
- Sinto muito que as coisas tenham fugido ao controle - disse Karen. - Mas esse é o problema de se tirar a tampa da caixa. Você nunca sabe o que vai
saltar lá de dentro.
Segunda-feira, 2 de julho de 2007; Glenrothes
Simon Lees, o subchefe de polícia, olhou fixamente para o papel que Karen Pirie havia colocado à sua frente. Já o lera três vezes e ainda não fazia sentido. Ele
sabia que teria de pedir a ela que desse uma explicação e que, de alguma forma, ele terminaria em desvantagem. Era tão injusto. Logo cedo numa segunda-feira, e a
segurança de seu escritório já fora violada.
- Não estou totalmente seguro do motivo de estarmos pagando para que essa... - ele verificou o papel novamente, tentando afastar a suspeita de que Pirie poderia
estar se divertindo com uma pegadinha de mau gosto - Dra. River Wilde conduza um grupo de estudantes em uma "escavação criminalística" em uma caverna de East
Wemyss.
- Porque irá nos custar aproximadamente um décimo do que o departamento de criminalística nos cobraria. E eu sei o quanto o senhor valoriza o fato de conseguirmos
utilizar bem o dinheiro - disse Karen.
Lees pensou que ela sabia muito bem que não era aquilo que ele quisera dizer.
- Não estou me referindo às implicações orçamentárias - ele disse com irritação. - O que estou tentando entender é por que esse... - ele jogou as mãos para
o alto num gesto de frustração - espetáculo circense está acontecendo.
- Pensei que não deveria deixar pedra sobre pedra na minha investigação do sequestro de Catriona Maclennan Grant - Karen disse com doçura.
Será que ela estava zombando dele? Ou realmente não entendia o que havia acabado de dizer?
- Eu não estava falando literalmente, inspetora. Para que diabos vai servir isso tudo? - Ele sacudiu a requisição orçamentária para ela.
- Chegou ao meu conhecimento, no curso das minhas investigações, que havia ocorrido um desmoronamento um tanto incomum em uma das cavernas de Wemyss, em janeiro
de 1985. Digo incomum porque desde que a mina Michael fechou, em 1967, o terreno ficou estável e não houve outros desmoronamentos relevantes. - Karen saboreou o
olhar de confusão no rosto de Lees. - Ao investigar esse aspecto mais profundamente, descobri que o desmoronamento havia sido descoberto na quinta-feira, 24 de janeiro.
- E? - Lees continuava sem compreender.
- Foi o dia seguinte à morte de Catriona, senhor.
- Sei disso, inspetora. Estou a par do caso. Mas ainda não vejo o que o desmoronamento de um teto numa caverna obscura tenha a ver com a história. - Ele mexeu
no porta-retratos sobre a mesa.
- Bem, senhor, é o seguinte... - Karen se recostou na cadeira. - No que diz respeito às pessoas locais, as cavernas não são realmente obscuras. Todo mundo
sabe sobre elas. A maioria brincou dentro delas pelo menos uma vez, quando criança. Agora, uma das coisas que nunca descobrimos, na época, foi onde Catriona e Adam
ficaram presos em cativeiro. Nunca tivemos informações de testemunhas que os conectassem a qualquer local em particular. E comecei a pensar. Naquela época do ano,
as cavernas são bastante desertas. É muito frio para as crianças brincarem fora de casa e nunca há muita luz natural para tentar as pessoas a entrar além dos primeiros
metros de qualquer uma das cavernas.
Ainda que contra a vontade, Lees sentiu-se atraído por sua narrativa. Ela não fazia relatórios como os outros oficiais. Quase sempre isso o
deixava meio louco, mas, às vezes, como naquele dia, não podia resistir à sua exposição.
- Você está dizendo que as cavernas poderiam ter sido um esconderijo para os seqüestradores? Isso não é um pouco Enid Blyton* demais? - ele disse, tentando
assumir o controle da situação.
- Muito popular, a Enid Blyton, senhor. Talvez ela pudesse até ser considerada uma inspiração. De qualquer forma, a caverna em questão, a Thane's, tem um
portão de grades para impedir que as pessoas entrem, hoje em dia. Mas, naquela época, só havia uma cerca na passagem de acesso. Não era intransponível. A sociedade
das cavernas usava a Thane's como uma espécie de sede. Ainda usa, na verdade. A grade está lá só para desencorajar os exploradores eventuais. Portanto, entrar não
teria sido difícil para ninguém.
- Mas eles estariam como ratos numa ratoeira, se fossem encontrados - protestou Lees.
- Bem, tem outra coisa. Não podemos ter certeza absoluta disso. Sempre se falou sobre uma passagem que ligava o Castelo Macduff à caverna.
- Ah, pelo amor de Deus, inspetora. Você está usando drogas? Isso é loucura.
- Com todo respeito, senhor. Faz um certo sentido, sim. Sabemos que os seqüestradores fugiram da cena do crime num barco. Testemunhas policiais disseram,
na época, que o som era de um motor externo pequeno. Mas que, quando eles finalmente conseguiram sair com o helicóptero e começaram a varrer o local com o holofote,
não havia nem sinal de um barco pequeno ao redor da Lady's Rock. Agora, a maré estava alta naquela noite. E se eles simplesmente dispararam por alguns quilômetros
margem acima e esconderam o barco na caverna? Eles teriam conseguido entrar com um bote inflável, sem dúvida. Eles o abandonariam juntamente com o resto de seu acampamento
improvisado, então sairiam de lá, derrubando o teto atrás deles.
Lees balançou a cabeça.
- Parece uma mistura de O livro perigoso para garotos e Duro de matar. E como exatamente você acha que eles conseguiram a façanha de... - ele
* Escritora inglesa de literatura infanto-juvenil. Em seus livros, há geralmente um grupo de adolescentes envolvidos em aventuras e solucionando mistérios. (N.T.)
fez um gesto indicando aspas, o que, por alguma razão, irritava profundamente sua esposa - derrubar o teto atrás deles?
Karen deu um sorriso animado demais para o gosto dele.
- Não faço ideia, senhor. Com sorte, a equipe da Dra. Wilde poderá nos dizer. Tenho certeza de que encontraremos alguma coisa por trás daquele desmoronamento
que justificará toda essa despesa.
Lees segurou a cabeça com as mãos.
- Acho que você perdeu a cabeça, inspetora.
- Não importa - ela disse, levantando-se. - É o caso Brodie Grant. O senhor pode gastar praticamente quanto quiser. Esta é uma das únicas vezes em que ninguém
vai questionar o orçamento.
Lees podia sentir o sangue martelando em seus ouvidos.
- Você está de sacanagem comigo?
Imediatamente, ele se arrependeu da linguagem chula, mesmo porque ela parecia pensar que aquilo era, definitivamente, um avanço.
- Não, senhor - Karen disse sobriamente. - Estou levando esse caso muito a sério.
- Você tem uma maneira engraçada de demonstrar isso. - Lees bateu a palma das mãos na mesa. - Quero ver trabalho policial de verdade aqui, não um passeio
à Ilha do Tesouro. Está na hora de você escavar um pouco o passado. Está na hora de você ir conversar com Lawson. - Aquilo deixaria claro para ela quem era o chefe.
Porém, de alguma forma, ela já havia desativado sua pequena bomba.
- Fico feliz que pense assim, senhor. Marquei uma entrevista para... - ela consultou seu relógio - daqui a três horas. Pòrtanto, se o senhor não se importa,
vou sair para dar um gás e ir a Blue Toon.
- Perdão? - Por que as pessoas de Fife não podiam falar um inglês claro?
Karen suspirou.
- Vou dirigir até a cidade de Peterhead. Nós a chamamos de Blue Toon.
- Ela se encaminhou para a porta. - Sempre esqueço que o senhor não é daqui. - Ela deu uma olhadela por cima do ombro. - O senhor não entende muito a gente,
né?
Mas antes que ele pudesse responder, ela havia partido, deixando a porta completamente aberta. Como a vaca deixa aberta a porteira do estábulo,
ele pensou, com amargura, levantando-se para fechá-la com um estrondo. O que havia feito para merecer aquela maldita mulher? E como diabos iria conseguir sair
do caso Brodie Grant cheirando a rosas, se era obrigado a confiar na capacidade investigativa de uma mulher que achava que poderia ser interessante cavar uma maldita
caverna?
Campora, Toscana
Com uma sensação de alívio, Bel Richmond saiu da SS2, a rodovia de mão dupla traiçoeira que seguia em ziguezague pela Toscana, de Florença a Siena. Como sempre,
os motoristas italianos a tinham deixado apavorada, dirigindo rápido demais e colado demais, os retrovisores quase se tocando cada vez que passavam voando por ela
em curvas fechadas que pareciam deixar as estradas estreitas ainda menores. O fato de que ela estava num carro alugado apenas ampliava o desprazer. Bel se achava
uma motorista bastante boa, mas a Itália nunca deixava de abalar seus nervos. E, graças a esse último trabalho, ela já estava se sentindo suficientemente abalada,
muito obrigada.
Na noite de domingo, ela havia comido seu jantar numa bandeja, em seu quarto. Opção sua; ela fora convidada a se juntar aos Grant na sala de jantar, mas alegara
urgências profissionais. A realidade era muito mais prosaica, mas o egoísmo que a caracterizava tornava impossível admitir. Na verdade, Bel queria ficar sozinha.
Queria ficar à janela, fumando os cigarros Malrboro que Vivianne tanto a importunara para que largasse - o que fizera, supostamente, havia alguns meses. Queria assistir
a bobagens na TV e fofocar ao telefone com qualquer uma de suas amigas cuja ligação a fazia sentir-se melhor. Queria fugir para casa e jogar videogames violentos
no Playstation com Ilarry. Era sempre a mesma coisa quando ela se encontrava convivendo em ambientes fechados com os pivôs de suas histórias jornalísticas. Havia
um limite para o tanto de intimidade que ela conseguia suportar.
Mas o prazer de ficar sozinha tinha durado pouco. Mal começara a assistir ao primeiro episódio de uma nova série policial quando ouviu baterem à porta. Bel silenciou
a TV, pousou a taça de vinho e se levantou do sofá. Abriu a porta para se deparar com Susan Charleson, com uma pasta fina de plástico na mão.
- Desculpe-me por interromper - ela disse. - Mas, infelizmente, isto é urgente.
Disfarçando a má vontade que sentia, Bel deu um passo atrás e acenou para que ela entrasse.
- Entre - ela suspirou.
- Posso? - Susan indicou o sofá.
- Fique à vontade. - Bel se sentou no extremo oposto, deixando o maior espaço possível entre elas. Não tinha ido com a cara de Susan Charleson. Por trás da
eficiência glacial, não havia nada para compartilhar, nenhuma centelha de calor fraternal sobre o qual construir a conspiração de uma amizade. - Em que posso ajudá-la?
Susan inclinou a cabeça e deu um sorrisinho torto.
- Você já deve ter percebido que Sir Broderick é dado a tomar decisões repentinas, as quais ele espera que o resto do mundo transforme em realidade.
- É uma forma de expressar - disse Bel. Acostumado a conseguir o que quer poderia ser mais adequado. - Então, o que foi que ele decidiu que precisa de mim?
- Você também é bastante rápida no gatilho - disse Susan. - É provavelmente por isso que ele gosta de você. - Ela dirigiu a Bel um olhar calculado. - Ele
não gosta de muitas pessoas. Quando gosta, nos recompensa muito bem.
Bajulação e suborno, os gêmeos pervertidos. Graças a Deus, ela havia atingido um ponto em sua carreira em que conseguia se alimentar e se vestir sem precisar se
curvar diante de presentes envenenados.
- Faço as coisas porque elas me interessam. Se não me interessarem, não irei fazer direito, então nem faz muito sentido, na verdade.
- É justo. Ele gostaria que você fosse à Itália.
O que quer que estivesse esperando, não era aquilo.
- Por quê?
- Porque ele acha que a polícia italiana não tem nenhum interesse no caso e, portanto, não irá se esforçar muito nele. Se a inspetora Pirie for até lá ou
enviar alguém de sua equipe, ela ficará limitada pela língua e por ser alguém de fora. Ele acha que você conseguiria se sair melhor, já que fala italiano. Além disso,
você acabou de voltar de lá e deve ter mantido contato com as pessoas locais. Não com a polícia, é óbvio. Mas com as pessoas da região, que podem de fato saber alguma
coisa a respeito do que vem acontecendo naquela villa em ruínas. - Susan sorriu para ela. - Se tudo falhar,
pelo menos você conseguiu uma viagem, com todas as despesas pagas, de volta à Toscana.
Bel não precisou pensar no assunto por muito tempo. Aquela era, provavelmente, a única chance que teria de obter novas informações junto à polícia.
- Como você sabe que eu falo italiano? - ela procurou ganhar tempo, não querendo parecer fácil demais.
Um sorriso frio.
- Não são só os jornalistas que sabem pesquisar.
Você pediu.
- Quando ele quer que eu vá?
Susan lhe entregou a pasta.
- Há um voo para Pisa às seis da manhã de amanhã. Você tem reserva nele, e há um carro alugado à sua espera no aeroporto. Não reservei hospedagem... achei
que você preferiria definir isso pessoalmente. Você será, obviamente, reembolsada.
Bel estava surpresa.
- Às seis da manhã?
- É o único voo direto. Já fiz o seu check-in. Você será levada de carro até o aeroporto. Leva apenas quarenta minutos, a essa hora da manhã...
- Sim, está bem - disse Bel, impaciente. - Você tinha certeza absoluta de que eu iria concordar.
Susan colocou a pasta sobre o sofá entre elas e se levantou.
- Era uma aposta bastante certeira.
Portanto, ali estava ela, sacolejando por uma estradinha de terra no Vai d'Eisa, passando por campos de girassóis dramaticamente floridos, com o batimento quente
da excitação pulsando em sua garganta. Ela não sabia se o nome de Brodie Grant abriria portas na Itália tão facilmente quanto na Escócia, mas tinha uma secreta desconfiança
de que ele saberia exatamente como manipular a corrupção que perpassava tudo por ali. Não havia nada na Itália, atualmente, que não pudesse ser reduzido a uma transação.
Exceto a amizade, é claro. E, graças a isso, pelo menos tinha um teto sobre a cabeça. A villa, obviamente, estava fora de cogitação. Não por causa do custo - tinha
certeza que poderia ter feito Brodie Grant pagar por tudo -, mas porque era alta temporada na Toscana. Mas ela estava com sorte. Grazia e Maurizio haviam transformado
um de seus velhos celeiros em
apartamentos para turistas e o menor deles, um quarto com uma varanda minúscula, estava disponível. Quando ela telefonara do aeroporto, Grazia insistiu que não cobraria
nada pela hospedagem. Bel precisara de quase dez minutos para explicar que outra pessoa estaria pagando suas despesas, então Grazia deveria cobrar ainda mais, tanto
quanto ela quisesse.
Bel saiu da estrada para uma vereda esburacada ainda mais estreita, que serpenteava em meio a uma floresta de carvalhos e castanheiras. Após pouco mais de um quilômetro
e meio, ela emergiu em um pequeno platô com um jardim de oliveiras e um campo de milho. No extremo oposto havia um agrupamento de casas atrás de uma placa pintada
à mão que dizia: Boscolata. Bel percorreu as curvas acentuadas e foi em frente, de volta às árvores. Ao contornar a segunda curva depois da Boscolata, diminuiu a
velocidade e olhou, em meio aos arbustos, para a villa em ruínas onde aquela trajetória toda havia se iniciado. Não havia nada que demonstrasse haver qualquer coisa
de interesse ali, a não ser um pedaço de fita adesiva vermelha e branca amarrada de qualquer jeito no portão. A isso se resumia a investigação policial italiana.
Mais cinco minutos dirigindo por caminhos tortuosos e Bel estacionou no pátio do sítio de Grazia. Um cão de caça marrom-claro de orelhas caídas e focinho rosado
se remexia na ponta de sua corrente, latindo com toda a pompa de um cão que sabe que ninguém chegará perto o suficiente para ser mordido. Antes que Bel pudesse abrir
a porta, Grazia apareceu na escada da varanda, limpando as mãos no avental e franzindo o rosto num amplo sorriso.
Os cumprimentos calorosos e sua acomodação no quarto cuidadosamente mobiliado levaram meia hora e deram a Bel a vantagem de ajudá-la a recuperar os ritmos da linguagem.
As duas mulheres se sentaram para tomar uma xícara de café na cozinha escura de Grazia, as grossas paredes de pedra mantendo o calor sob controle, como haviam feito
durante centenas de anos.
- E agora, você precisa me contar por que já está de volta, tão cedo - disse Grazia. - Você falou que tem algo a ver com trabalho?
- Mais ou menos - respondeu Bel, obrigando seu italiano a entrar no ritmo. - Me diga uma coisa: você notou algo lá na villa em ruínas, ultimamente?
Grazia olhou desconfiada.
- Como você sabe disso? Os carabinieri estiveram lá na sexta-feira. Eles deram uma olhada, depois foram falar com as pessoas da Boscolata. Mas o que isso
tem a ver com você?
- Quando estivemos aqui de férias, fui explorar a antiga villa. Encontrei uma coisa lá que se relaciona a um crime não solucionado na Inglaterra. Um caso
de vinte anos atrás.
- Que tipo de crime? - Grazia parecia ansiosa. As juntas inchadas de suas mãos se moviam sem descanso sobre a mesa.
- Uma mulher e seu bebê foram sequestrados. Mas algo deu errado quando o resgate foi entregue. A mulher foi morta e nunca descobriram o que aconteceu com
a criança. - Bel estendeu as mãos e deu de ombros. Por alguma razão, aqueles gestos vinham mais naturalmente quando ela falava italiano.
- E você descobriu algo aqui relacionado a isso?
- Sim. Os seqüestradores se autodenominavam anarquistas e faziam suas exigências por intermédio de pôsteres. Encontrei um pôster exatamente igual na antiga
villa.
Grazia balançou a cabeça, espantada.
- O mundo está ficando cada vez menor. Então, quando é que você foi falar com os carabinieri?
- Não fui. Não achei que acreditariam em mim. Ou, se acreditassem, que não estariam interessados em algo que aconteceu lá no Reino Unido há vinte e poucos
anos. Esperei até voltar para casa, então fui falar com o pai da mulher sequestrada. Ele é um homem muito rico, um homem poderoso. O tipo de pessoa que faz as coisas
acontecerem.
Grazia deu uma risadinha amarga.
- Seria preciso um homem assim para fazer os carabinieri levantarem a bunda da cadeira e virem de Siena até aqui. Isso explica por que eles estavam tão interessados
em quem vinha morando na villa.
- Sim. Parece que alguns posseiros estavam morando ali.
Grazia assentiu.
- A villa pertencia a Paolo Totti. Ele morreu há, talvez, uns doze anos. Um homem tolo, extremamente vaidoso. Gastou todo o seu dinheiro comprando uma casa
enorme para impressionar a todos, mas não tinha o suficiente para cuidar do lugar como merecia. E, então, ele morreu sem deixar
testamento. Sua família vem brigando pela propriedade desde então. A coisa se arrasta nos tribunais e, a cada ano que passa, a villa se deteriora um pouco mais.
Ninguém da família faz nada para consertá-la, pois podem terminar sem ganhar nada. Pararam de vir aqui há anos. Às vezes, portanto, algumas pessoas se mudam para
lá por um tempo. Ficam durante um verão e depois vão embora. Mas o último grupo, eles ficaram mais tempo.
- Grazia terminou o café e se levantou. - Tudo que sei são fofocas, mas iremos até a Boscolata e poderemos conversar com meus amigos de lá. Eles vão lhe contar
muito mais do que contaram àqueles carabinieri mandões.
Peterhead, Escócia
Karen observou James Lawson conforme ele ia se aproximando. Não estavam mais ali a postura altiva, a cabeça erguida e as costas retas. Seus ombros estavam curvados,
os passos eram curtos e rígidos. Três anos na prisão haviam acrescentado dez anos à sua aparência. Ele se assentou na cadeira do outro lado da mesa, ajeitando-se
nervosamente, até que, enfim, acomodou-se. Uma pequena tentativa de controlar algum aspecto da entrevista, pensou ela.
Então, ergueu os olhos. Ele ainda tinha o olhar fixo e penetrante de policial, os olhos ardentes, o rosto feito pedra.
- Karen - ele disse, reconhecendo sua presença com um minúsculo gesto da cabeça. Seus lábios, pálidos e azulados, estavam apertados numa linha fina.
Ela não via sentido em perder tempo com conversa fiada. Não havia nada a dizer que não levasse diretamente à recriminação e à amargura.
- Preciso da sua ajuda - ela disse.
A boca de Lawson se relaxou numa expressão de escárnio.
- Quem você pensa que é? Clarice Starling? Teria que perder uns quilos antes de dar uma de Jodie Foster.
Karen lembrou a si mesma que Lawson havia feito os mesmos cursos de técnicas de interrogatório que ela. Ele sabia tudo sobre tatear em busca das fraquezas do oponente.
Por outro lado, ela também sabia.
- Valeria a pena fazer dieta pelo Hannibal Lecter - ela disse. - Mas não por um policial caído em desgraça que jamais voltará a pescar trutas no lago Leven.
Lawson levantou as sobrancelhas.
- Mandaram você fazer algum curso de esperteza antes de prestar o exame de inspetora? Se a sua intenção é me engambelar, não está indo pelo caminho certo.
Karen balançou a cabeça, resignada.
- Não tenho nem tempo nem energia para isso. Não estou aqui para inflar seu ego. Nós dois sabemos como essas coisas funcionam. Você me ajuda, sua vida dentro
destas quatro paredes fica um pouquinho menos horrível por um tempo. Você me deixa falando sozinha e sua vida ficará ainda mais deprimente. Só depende de você, Jimmy.
- Pra você é Sr. Lawson.
Ela balançou a cabeça.
- Isso implicaria mais respeito do que você merece. E você sabe disso.
- Tendo defendido seu ponto de vista, ela evitaria chamá-lo de qualquer coisa. Podia ouvi-lo respirar com dificuldade pelo nariz, um silvo débil no final
de cada exalação.
- Você acha que conseguiria tornar minha vida ainda mais deprimente? - Ele olhou-a de forma penetrante. - Você não sabe da missa a metade. Eles me mantêm
isolado porque sou ex-policial. Você é a primeira visita que recebo este ano. Estou velho demais e feio demais para atrair qualquer pessoa. Não fumo e não preciso
mais de cartões telefônicos. - Ele deu uma risada ofegante, o catarro gorgolejava em sua garganta. - Como você acha que conseguiria piorar isso?
Ela respondeu com um olhar direto, inabalável. Sabia o que ele fizera e não havia espaço para pena ou compaixão por ele em seu coração. Ela não dava a mínima se
cuspiam na comida dele. Ou coisa pior. Ele a havia traído e a todos que trabalharam com ele. A maioria dos policiais que Karen conhecia estava na profissão por motivos
decentes. Faziam sacrifícios pelo trabalho, importavam-se que ele fosse realizado corretamente. Descobrir que um homem cujas ordens eles haviam seguido sem pestanejar
cometera um triplo homicídio havia abalado a moral no Departamento de Investigação Criminal. As fraturas ainda estavam se consolidando. Algumas pessoas ainda culpavam
Karen, argumentando que teria sido melhor deixar aquilo quieto. Ela não sabia como essas pessoas conseguiam dormir à noite.
- Me disseram que você usa muito a biblioteca - ela disse. Os olhos dele se desviaram. Ela soube que o havia encurralado. - É importante manter a mente ativa,
não? Caso contrário, você realmente pode enlouquecer. Ouvi falar que hoje é possível descarregar livros e músicas da biblioteca num pequeno reprodutor de MP3. Para
ouvir quando sentir vontade.
Ele olhou para longe, abrindo e fechando os dedos.
- Você ainda está trabalhando com casos arquivados? - A concessão das palavras parecia requerer uma energia que ele mal tinha para gastar.
- O departamento é meu agora. Robin Maclennan se aposentou. - Karen manteve um tom de voz neutro e o rosto impassível.
Lawson olhou por cima do ombro dela para uma parede vazia atrás de Karen.
- Eu era um bom policial. Não deixei muitos fios soltos para vocês, corvos carniceiros, retornarem - ele disse.
Karen olhou-o firmemente. Ele matara três pessoas e tentara culpar um homem vulnerável por dois assassinatos e, ainda assim, pensava em si mesmo como sendo um bom
policial. A capacidade dos criminosos de se iludirem nunca deixava de surpreender Karen. Ela achava incrível que ele pudesse ficar ali sentado, com aquela cara impassível,
depois das leis que havia infringido, das mentiras que tinha contado e das vidas que havia destruído.
- Você solucionou muitos casos - foi o melhor que conseguiu dizer. - Mas tenho algo que parece ser uma nova evidência num caso que ainda está aberto.
A expressão de Lawson não se alterou, mas ela sentiu um lampejo de interesse, quando ele se remexeu na cadeira.
- Catriona Maclennan Grant - ele disse, permitindo-se forçar um sorriso satisfeito. - Para você vir pessoalmente, teria de ser um assassinato. E esse é o
único assassinato não solucionado no qual atuei como investigador sênior.
- Nada de errado com sua capacidade de dedução - disse Karen.
- E então? Você finalmente encontrou alguma coisa para pegar o filho da puta, depois de todo esse tempo?
- Que filho da puta?
- O ex-namorado, é lógico... -A pele acinzentada de Lawson se enrugou enquanto ele escavava a memória à procura de detalhes. - Fergus Sinclair. Caseiro. Ela
havia rompido com ele, não queria que ele assumisse a paternidade do filho.
- Você acha que Fergus Sinclair a sequestrou e ao bebê? Por que ele faria isso?
- Para pôr as mãos na criança e em dinheiro suficiente para que os dois vivessem em grande estilo - disse Lawson, como se estivesse instruindo uma criancinha
sobre algo óbvio. - Então, ele a matou durante a entrega do resgate para que ela não pudesse denunciá-lo. Todos nós sabíamos que tinha sido ele, só não podíamos
provar.
Karen se inclinou para a frente.
- No arquivo não há nenhuma menção a isso - ela disse.
- É claro que não. - Lawson fez um ruído de desdém com a garganta.
- Cristo, Karen, você acha que éramos burros naquela época?
- Você não precisava revelar tudo para a defesa em 1985 - ela ressaltou. - Não havia nenhuma razão operacional pela qual não pudesse ter deixado uma mísera
indicação para quem viesse depois de você.
- Mesmo assim, nós não colocávamos no papel nada que não pudéssemos embasar com provas sólidas.
- É justo. Mas não existe nada no arquivo que sugira que você sequer o tivesse investigado. Nenhuma anotação sobre entrevistas nem gravações, nenhum depoimento.
A única menção no arquivo é um depoimento de Lady Grant dizendo que acreditava que Sinclair fosse o pai do filho de Catriona, mas que sua filha sempre havia se recusado
a confirmar a paternidade.
Lawson olhou para longe.
- Brodie Maclennan Grant é um homem poderoso. Nós todos estávamos de acordo, até o chefe de polícia. Nada iria para o arquivo se não pudéssemos confirmar
em cento e dez por cento. - Ele pigarreou. - Mesmo que achássemos que Sinclair fosse o suspeito óbvio, não queríamos assinar sua sentença de morte.
Karen abriu e fechou a boca. Seus olhos se arregalaram.
- Você achou que Brodie Grant mandaria matar Sinclair?
- Você não viu a dor dele depois da morte de Cat. Eu não duvidaria que ele fosse capaz disso. - Sua boca se fechou rigidamente, e ele olhou para ela de forma
desafiadora.
Karen tinha achado Brodie Grant um homem duro e movido pelo sucesso a qualquer preço, mas nunca havia passado por sua cabeça considerá-lo um potencial mandante de
assassinatos.
- Você estava enganado quanto a isso - ela disse. - Sinclair sempre esteve seguro. Grant não acha que ele teria coragem de fazer aquilo.
Lawson bufou.
- Ele pode dizer isso agora, mas, na época, era visível o ódio que sentia por aquele rapaz.
- E você investigou Sinclair a fundo?
Lawson assentiu.
- Ele parecia promissor. Não tinha nenhum álibi. Estava trabalhando no exterior. Áustria, acho que era. Administração de propriedades é o ramo dele. - Ele
franziu a testa novamente, coçando o queixo barbeado. Começou a falar lentamente, ganhando velocidade conforme a lembrança tomou forma. - Enviamos uma equipe até
lá para falar com ele. Não encontraram nada que o eximisse. Ele havia estado fora do trabalho, de férias, durante o período crucial: o sequestro, os pedidos de resgate,
a entrega do dinheiro e a fuga. E o cara que consultamos na escola de arte disse que o pôster enquadrava-se no estilo expressionista alemão, o que tinha relação
com o lugar onde ele estava morando.
Ele deu de ombros.
- Mas Sinclair disse que tinha ido esquiar nas férias. Viajando de uma estação de esqui a outra. Dormindo em seu Land Rover para economizar dinheiro. Ele
possuía os passes das estações de esqui de todas as datas relevantes, todos pagos em dinheiro. Não podíamos provar que ele não havia estado onde alegava. E, o mais
importante: não podíamos provar que ele houvesse estado onde achávamos que havia estado. Era nossa única pista real e não nos levou a lugar algum.
Segunda-feira, 21 de janeiro de 1985; Kirkcaldy
Lawson folheou a pasta novamente, como se pudesse encontrar alguma coisa que houvesse passado despercebida em exames anteriores. Ainda estava tristemente fina. Sem
levantar a cabeça, chamou o agente Pete Rennie, que estava no outro lado do escritório.
- Os caras da investigação do local do crime ainda não mandaram nada?
- Acabei de falar com eles. Estão trabalhando o mais rápido possível, mas não estão muito otimistas. Dizem que parecem estar lidando com
pessoas espertas o suficiente para não deixar pistas. - Rennie parecia, ao mesmo tempo, apologético e ansioso, como se soubesse que, de alguma forma, aquilo se tornaria
culpa dele.
- Babacas inúteis - Lawson resmungou.
Depois de sua excitação inicial provocada pela segunda mensagem dos seqüestradores, o dia havia sido de uma frustração crescente. Ele tivera de acompanhar Grant
ao banco, onde se reuniram com um funcionário graduado que, do alto de seu pedestal, anunciara que o banco tinha uma política de não cooperação com seqüestradores.
E isso fora antes que qualquer um deles pudesse dizer uma palavra sobre o motivo para o pedido de Grant. Eles precisaram conversar com um diretor do banco antes
de obter qualquer avanço.
Então, Grant o levara a um clube chique de cavalheiros em Edimburgo e o instalara numa poltrona, com uma generosa dose de uísque, a despeito de seus protestos por
estar de serviço. Quando o garçom colocou o drinque à sua frente, ele o ignorou e esperou que Grant dissesse em que estava pensando. Aquela era uma investigação
na qual Lawson estava ciente de que não deveria aparentar estar no comando.
- Eu tenho seguro contra sequestros, sabe? - Grant disse sem preâmbulos.
Lawson teve vontade de perguntar como funcionava, mas não quis parecer um caipira provinciano que não tinha ideia do que estava fazendo.
- Você conversou com eles?
- Ainda não. - Grant girou o malte dentro do copo de cristal. O forte cheiro do uísque flutuou num miasma que deixou Lawson levemente nauseado.
- Posso perguntar por que não?
Grant pegou um charuto e iniciou o processo minucioso de cortá-lo e acendê-lo.
- Você sabe como é. Eles vão querer participar da jogada. O preço do resgate será deixá-los comandar o show.
- E isso é um problema?
Lawson estava se sentindo um pouco desnorteado. Bebericou uísque e quase o cuspiu. Tinha o gosto do xarope para tosse que sua avó usava. Não parecia pertencer à
mesma família da dosezinha de Famous Grouse que ele saboreava em casa, ao pé da lareira.
- Estou preocupado que as coisas fujam do controle. Eles têm dois reféns. Se chegarem a desconfiar que preparamos uma armadilha, quem sabe o que serão capazes
de fazer? - Ele acendeu o charuto e apertou os olhos para olhar para Lawson através da fumaça. - O que preciso saber é se você está confiante de poder levar o assunto
a uma conclusão bem-sucedida. Será que preciso me arriscar com pessoas de fora? Você é mesmo capaz de recuperar minha filha e meu neto para mim?
Lawson sentiu a fumaça doce e nauseante em sua garganta.
- Acredito que sim - ele respondeu, perguntando-se se sua carreira seguiria o mesmo caminho do charuto.
E era nesse pé que eles haviam deixado as coisas. Portanto, ali estava ele agora, ainda em sua mesa, enquanto a tarde se arrastava inexoravelmente em direção à noite.
Nada estava acontecendo, exceto que suas palavras pareciam cada vez mais ingênuas. Ele olhou com raiva para Rennie.
- Você já conseguiu rastrear Fergus Sinclair?
Os ombros de Rennie se encurvaram, e ele se remexeu na cadeira.
- Sim e não - disse. - Descobri onde ele está trabalhando e conversei com o chefe dele. Mas ele não está por lá. O Sinclair, digo. Ele saiu de férias. Foi
esquiar, parece. E ninguém sabe onde.
- Esquiar?
- Saiu no seu Land Rover com o equipamento de esqui - disse Rennie, na defensiva, como se houvesse feito pessoalmente as malas de Sinclair.
- Então ele poderia estar em qualquer lugar?
- Suponho que sim.
- Inclusive aqui? Em Fife?
- Não existe nenhuma evidência disso. - A boca de Rennie pareceu deslizar para o lado, como se seu queixo tivesse acabado de se dar conta de estar sobre gelo
muito escorregadio.
- Você já foi às empresas aéreas? Aeroportos? Portos? Já pediu que eles verificassem as listas de passageiros?
Rennie desviou os olhos.
- Vou fazer isso agora mesmo.
Lawson apertou a base do nariz entre o polegar e o indicador.
- E entre em contato com o órgão emissor de passaportes. Quero saber se Fergus Sinclair entrou com algum pedido de passaporte para o filho.
Segunda-feira, 2 de julho de 2007; Peterhead
- Sempre estive convencido de que Sinclair estava envolvido de alguma forma. Não havia tantas pessoas assim que conheciam a rotina de Catriona tão bem a ponto
de capturá-la - disse Lawson, agora num tom defensivo.
Karen sentia-se perplexa.
- Mas e o bebê? Se ele fez tudo isso para pôr as mãos no filho, onde está Adam agora?
Lawson levantou os ombros.
- Essa é a pergunta de um milhão de dólares, não é? Talvez Adam não tenha sobrevivido ao tiroteio. Talvez Sinclair tivesse alguma mulher preparada para tomar
conta do bebê por ele. Se eu fosse você, daria uma olhada na vida dele atual. Veja se tem algum rapaz que bate com a idade de Adam. - Ele se recostou na cadeira,
cruzando as mãos no colo. - Então, você não descobriu nada significativo? Isto aqui é uma mera pescaria?
Ela pegou o pôster enrolado que havia encostado na sua cadeira e retirou o elástico que o prendia. Deixou-o se desenrolar com a frente virada para Lawson. Ele estendeu
a mão para pegá-lo e, então, deteve-se, dirigindo a ela um olhar interrogativo.
- Vá em frente - ela disse. - É uma cópia.
Lawson-abriu cuidadosamente o papel. Analisou o trabalho artístico em preto e branco, passando um dedo sobre o titereiro e suas marionetes; o esqueleto, a Morte
e o bode.
- Este é o pôster que os seqüestradores usavam para se comunicar com Brodie Maclennan Grant. - Ele apontou para o espaço em branco na parte inferior do pôster.
- Aqui, onde se colocariam os detalhes da apresentação, era onde as mensagens eram escritas. - Ele dirigiu a ela um olhar de resignação. - Mas você já sabe tudo
isso. De onde veio este?
- Apareceu em uma casa abandonada na Toscana. O lugar está caindo aos pedaços, está desabitado há anos. Segundo os moradores locais, houve posseiros chegando
e partindo. O último grupo se mandou na calada da
noite. Sem nenhum aviso, sem despedidas. Deixaram um monte de coisas para trás. Inclusive meia dúzia destes pôsteres.
Lawson balançou a cabeça.
- Não significa nada. Apareceram alguns pôsteres assim ao longo dos anos. Como Sinclair o forjou de forma a parecer que um grupo anarquista estava atacando
Brodie Maclennan Grant, de vez em quando aparecem idiotas usando o pôster para promover alguma manifestação, festival, ou seja lá o que for. Nós sempre os investigávamos
e nunca houve qualquer conexão com o que aconteceu com Catriona. - Ele fez um gesto de descaso com a mão.
Karen sorriu.
- Você acha que não sei disso? Pelo menos essa parte foi incluída no arquivo. Mas agora é diferente. Nenhuma das cópias que apareceram antes era exata. Havia
diferenças em detalhes, como ocorreria se você estivesse copiando de antigos recortes de jornal. Mas este aqui é diferente. É exatamente o mesmo desenho. A criminalística
já confirmou que é idêntico. Que veio da mesma tela de silkscreen.
Os olhos de Lawson brilharam, a centelha de interesse ficava, de repente, óbvia em seu rosto.
- Você está brincando?
- Eles tiveram o fim de semana inteiro para se decidirem. Disseram que não há dúvida. Mas por que alguém guardaria a tela durante todos esses anos? É a única
prova que conecta os seqüestradores com o crime.
Lawson sorriu com malícia.
- Talvez eles não tenham guardado a tela. Talvez apenas conservaram os pôsteres.
Karen balançou a cabeça.
- Não segundo o analista de documentos. Nem o papel nem a tinta haviam sido desenvolvidos em 1985. Isto foi produzido recentemente. Com a tela original.
- Não faz sentido.
- Assim como tantas outras coisas nesse caso - murmurou Karen.
Sem perceber, ela havia voltado a seu relacionamento histórico com o homem sentado à sua frente. Ela era a policial subalterna, incitando-o a encontrar sentido nos
fragmentos de informação que ela colocava a seus pés.
Inconscientemente, Lawson correspondeu, relaxando na conversa pela primeira vez.
- Que outras coisas? - ele perguntou. - Quando nos concentramos em Sinclair, tudo se encaixa.
- Não vejo como. Por que Fergus Sinclair mataria Cat na entrega?
- Porque ela poderia identificá-lo.
A impaciência na voz dele irritou Karen, lembrando-a dos papéis atuais de cada um deles.
- Isso eu entendo. Mas por que matá-la nesse momento? Por que não antes? Com ela viva na entrega, ele estava armando uma situação bastante complicada, file
tinha de controlar Cat e o bebê, pôr as mãos no resgate, depois atirar em Cat e fugir com o bebê em meio a toda confusão. Ele nem sequer podia ter certeza de que
a mataria. Não no escuro, com todo mundo se movimentando de maneira desordenada. Teria sido muito mais simples para ele tê-la matado antes da entrega do resgate.
Por que ele não a matou antes?
- Prova de vida - Lawson disse com a satisfação de um homem jogando um ás. - Brodie exigia prova de vida antes de ir em frente.
- Não, isso não me convence - disse Karen. - O sequestrador ainda tinha o bebê. Ele poderia usar Adam como prova de vida. Você não está me dizendo que Brodie
Grant se recusaria a pagar o resgate se não tivesse prova de que Cat também estava viva, está?
- Não... ele teria pagado o resgate com Cat viva ou morta. - Lawson franziu a testa. - Eu não tinha pensado no assunto por esse ângulo. Você tem razão. Não
faz sentido.
- É clarò que, se o sequestrador não fosse Sinclair, ela não precisaria ter morrido. - Os olhos de Karen ficaram vagos enquanto ela cogitava sobre aquela
ideia. - Pode ter sido um estranho. Ela poderia não ter sido capaz de identificá-lo. Quem sabe não foi um acidente?
Lawson inclinou a cabeça para o lado e lhe dirigiu um olhar especulativo. Karen sentiu como se sua objetividade estivesse sendo avaliada. Ele tamborilou de leve
com os dedos na borda da mesa lascada.
- Sinclair pode ter sido o sequestrador, Karen. Mas não necessariamente o assassino. Sabe, existe mais um dado que não estava no relatório.
Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton ofWemyss
A tensão era torturante. A grandeza da Lady's Rock recortava uma parte do céu estrelado, bloqueando a costa do outro lado. O frio mordia o nariz e as orelhas de
Lawson, assim como a faixa estreita entre suas luvas de couro e os punhos de seu suéter. O ar tinha um cheiro forte e ácido de fumaça de carvão e sal. O mar ali
perto sussurrava naquela noite sem vento. A lua minguante fornecia apenas luz suficiente para que ele notasse os traços tensos de Brodie Maclennan Grant a alguns
metros de distância, fora da cobertura das árvores que protegiam o próprio Lawson. Com uma das mãos, Brodie segurava a bolsa de viagem com o dinheiro, os diamantes
e os rastreadores; a outra segurava fortemente o cotovelo de sua esposa. Lawson imaginava a dor irradiando daquele aperto de pinça e ficou feliz por não o estar
recebendo. O rosto de Mary Maclennan Grant estava nas sombras, e sua cabeça, abaixada. Lawson imaginava que ela estivesse tremendo dentro do seu casaco de pele,
e não por causa do frio.
Ele não podia ver a meia dúzia de homens que havia posicionado entre as árvores. E isso era bom. Se ele não podia vê-los, os seqüestradores tampouco poderiam. Ele
os havia escolhido a dedo, elegendo aqueles que acreditava serem inteligentes e corajosos, duas qualidades que coincidiam com menos frequência do que ele gostava
de admitir. Alguns eram atiradores treinados; um portava uma pistola e o outro, no alto da Lady's Rock, um rifle, ambos equipados com visão noturna. Estavam orientados
a não atirar a não ser sob ordem direta sua. Lawson esperava, sinceramente, estar exagerando ao trazê-los com ele.
Ele havia conseguido levar mais alguns oficiais, removendo-os de suas tarefas de rotina de guardar as minas e usinas elétricas. Os companheiros de trabalho dos que
foram chamados haviam ficado ressentidos por sua transferência, ainda mais porque Lawson não pudera explicar a razão da mudança temporária deles para o seu comando.
Esses oficiais extras estavam posicionados no terreno irregular ao redor do bosque, nos pontos mais próximos do local de encontro em que se poderiam estacionar veículos.
Eles deveriam ser capazes de impedir uma fuga, caso Lawson e sua equipe imediata falhassem na captura dos seqüestradores no momento da entrega do resgate.
O que era uma séria possibilidade. Aquilo era uma verdadeira armadilha. Ele havia tentado convencer Grant a dizer não, a insistir em outro lugar para a entrega do
dinheiro. Qualquer coisa menos uma droga de uma praia,
no meio da noite. Ele deveria ter economizado saliva. No que dizia respeito a Grant, Lawson e seus homens estavam ali como uma espécie de força particular de segurança.
Ele agia como se estivesse fazendo um grande favor a eles, convidando os contra as instruções expressas de quem quer que houvesse capturado sua filha e seu neto.
A despeito do que dissera sobre a equipe de seguro contra sequestro, ele não parecia enxergar tudo o que poderia dar errado. Na verdade, era melhor nem pensar a
respeito.
Lawson deu uma olhadela no mostrador luminoso do seu relógio. Faltavam três minutos. Tudo estava tão parado que ele até poderia esperar ouvir o motor do carro deles
a distância. No entanto, a céu aberto, a acústica era sempre imprevisível. Ele havia notado, ao percorrer o caminho durante seu reconhecimento prévio, como a imensa
massa da Lady's Rock atuava como um abafador de ruído, isolando o som do mar tão eficazmente quanto um par de protetores de ouvido. Só Deus sabia como a mata distorceria
o som de um veículo se aproximando.
Então, sem qualquer aviso, uma brilhante explosão de uma luz branca vinda da direção da rocha anulou sua visão noturna. Tudo que Lawson conseguia ver era um impressionante
círculo de luz. Sem pensar de forma consciente, ele adentrou mais no meio das árvores, com medo de que seu esconderijo fosse descoberto.
- Deus do céu - gritou Brodie Grant, soltando a esposa e dando alguns passos adiante.
- Fique onde está. - Uma voz incorpórea gritou de trás da luz. Lawson tentou identificar o sotaque, mas não havia nada especial nele, além do fato de ser
escocês.
Lawson podia ver o perfil de Grant, a luz branca ofuscante removia todas as partículas de cor de sua pele. Soltou um grunhido feroz, com os lábios estirados sobre
os dentes. Uma sensação de desconforto tomou o estômago de Lawson, como uma indigestão ácida. Como os seqüestradores haviam chegado àquela posição ao lado do rochedo
sem que ele os visse? A luz da lua havia sido suficiente para iluminar o caminho em ambas as direções. Ele havia esperado um veículo. Afinal, eles tinham dois reféns.
Não poderiam forçá-los a caminhar mais de um quilômetro e meio ao longo da praia, fosse vindo de West Wemyss ou de East Wemyss. O penhasco escarpado atrás dele eliminava
também Newton of Wemyss.
O sequestrador gritou novamente:
- O.k., vamos logo com isso. Do jeito que combinamos. Sra. Grant, a senhora virá até nós com o dinheiro.
- Não sem uma prova de vida - berrou Grant.
As palavras mal haviam saído de sua boca quando uma figura surgiu trôpega da luz, como uma marionete, o que fez Lawson lembrar-se dos pôsteres que os seqüestradores
haviam usado para fazer suas exigências. Conforme seus olhos se ajustaram, ele pôde ver que era Cat.
- Sou eu, papai - ela gritou, a voz rouca. - Mamãe, traga-me o dinheiro.
- E quanto a Adam? - Grant gritou, agarrando a esposa pelo ombro quando ela tentou pegar a bolsa. Mary quase tropeçou e caiu, mas o marido não tinha olhos
para ela. - Onde está meu neto, seus filhos da puta?
- Ele está bem. Assim que eles receberem o dinheiro e os diamantes, eles o entregarão - Cat gritou, o desespero evidente em sua voz. - Por favor, mamãe, traga
o dinheiro como foi combinado.
- Droga - disse Grant. Ele empurrou a bolsa para a esposa. - Vá em frente, faça o que ela diz.
Aquilo estava saindo do controle, e Lawson sabia. Ao diabo com o silêncio no rádio que ele havia pedido. Pegou o aparelho e falou tão claramente quanto se atrevia:
- Tango Um e Tango Dois. Aqui fala Tango Lima. Enviar oficiais para a lateral do rochedo que dá para a margem. Façam isso agora. Não respondam. Apenas tomem
posições. Agora.
Enquanto falava, podia ver Mary caminhando com passos incertos em direção à filha, com os ombros encurvados. Ele calculou que havia aproximadamente trinta e dois
metros entre elas. Pareceu-lhe que Mary estava cobrindo uma distância maior que a filha. Ao atingirem a distância de se tocarem, ele pôde ver Cat estendendo a mão
para pegar a bolsa.
Para sua surpresa, aquele foi o momento em que Mary optou por deixar de lado o condicionamento de trinta e cinco anos de casamento com Brodie Grant. Em vez de fazer
o que lhe haviam mandado - primeiro os seqüestradores, através do bilhete, e, depois, o marido -, Mary se aferrou à bolsa apesar dos esforços de Cat de arrancá-la
dela. Ele podia ouvir a exasperação na voz de Cat quando ela disse:
- Pelo amor de Deus, mãe, me dê esta maldita coisa. Você não sabe com o que está lidando aqui.
- Dê a ela a maldita bolsa, Mary - berrou Grant. Lawson podia ouvir o ruído que fazia a respiração do homem em seus pulmões.
Então, a voz do sequestrador se ouviu de novo.
- Entregue, Sra. Grant. Ou não verá Adam novamente.
Lawson registrou o horror no rosto de Cat ao olhar desesperadamente sobre o ombro, em direção à luz.
- Não, espere - ela gritou. - Tudo ficará bem. - Ela pareceu arrancar a bolsa de sua mãe e dar um passo para trás.
De repente, Grant saltou para a frente, percorrendo uns seis passos, com a mão desaparecendo dentro do sobretudo.
- Maldição! - ele disse. E, então, sua voz se elevou: - Quero meu neto e o quero agora. - Sua mão emergiu, o brilho embaçado de uma pistola automática era
óbvio diante da luz. - Ninguém se mexa. Tenho uma arma e não tenho medo de usá-la. Traga Adam aqui agora mesmo.
Mais tarde, Lawson ficaria espantado com a coleção de clichês que era Brodie Maclennan Grant. Mas, no momento, tudo que pôde sentir foi o peso da catástrofe, enquanto
o tempo parecia ficar mais lento. Ele começou a correr na direção de Grant quando o empresário ergueu os braços, as mãos juntas, numa postura de atirador. Mas, antes
que Lawson pudesse dar o segundo passo, a luz foi cortada, deixando-o cego e impotente. Ele viu o lampejo de um cano de arma perto dele, ouviu um tiro e sentiu cheiro
de cordite. Depois, uma repetição da sequência, mas, dessa vez, a distância. Ele tropeçou em um galho no chão e caiu desajeitadamente. Ouviu um grito. Uma criança
chorando. Uma voz aguda repetindo: "Caralho!" Então, percebeu que a voz era dele próprio.
Um terceiro tiro ecoou, dessa vez vindo do bosque. Lawson tentou ficar em pé, mas agulhadas quentes de dor subiam por seu tornozelo. Rolou de lado, tentando pegar
a lanterna e o rádio.
- Cessar fogo - gritou no rádio. - Cessar fogo, isso é uma ordem! - Enquanto falava, podia ver fachos de lanternas se entrecruzando pela área, conforme seus
homens se agrupavam ao redor da base do rochedo.
- Eles têm uma porra de úm barco! - ele ouviu alguém gritar. Então, um rugido mais alto do que as ondas quando o motor pegou. Lawson fechou
os olhos por um momento. Que fiasco. Ele devia ter se esforçado mais para fazer Grant recusar aquela combinação. Estivera fadada ao fracasso desde o início. Ele
se perguntou com que os seqüestradores teriam conseguido escapar. Com a criança, sem dúvida. O dinheiro, provavelmente. A filha, talvez.
Mas ele estava enganado com relação a Catriona Maclennan Grant. Terrivelmente enganado.
Segunda-feira, 2 de julho de 2007; Peterhead
- Brodie Maclennan Grant tinha uma arma? - A voz de Karen se elevou a um tom agudo. - Ele disparou uma arma? E você deixou isso fora do relatório?
- Não tive escolha. E pareceu uma boa ideia, na época - Lawson disse, com o ar cínico de alguém citando seus superiores.
- Uma boa ideia? Cat Grant morreu naquela noite. Em que sentido isso foi uma boa ideia? - Karen não podia acreditar no que estava ouvindo. Não conseguia conceber
que alguém fizesse algo tão descuidado.
Lawson suspirou.
- O mundo mudou, Karen. Nós não tínhamos uma Comissão de Queixas contra a Polícia. Não sofríamos o tipo de inspeção com a qual vocês convivem hoje.
- Obviamente - ela disse com secura, lembrando-se por que ele estava onde estava. - Mas ainda assim. Você conseguiu esconder o fato de que um civil atirou
com uma arma de fogo no meio de uma operação policial? Bem que se diz que o dinheiro pode tudo.
Lawson balançou a cabeça com impaciência.
- Não foi só dinheiro, Karen. O chefe de polícia também estava pensando nas repercussões públicas. A filha única de Grant estava morta. Seu neto estava desaparecido.
No que dizia respeito ao público, ele era uma vítima. Se nós o processássemos por crime relacionado a armas de fogo, teria parecido vingança: não conseguimos pegar
os verdadeiros vilões, então, em vez disso, pegaremos você; esse tipo de coisa. A opinião era de que ninguém se beneficiaria com a revelação de que Grant estava
armado.
- Poderia ter sido o tiro de Grant que matou Cat? - Karen perguntou, os braços sobre a mesa, a cabeça inclinada para a frente como a de um centroavante de
rúgbi.
Lawson se remexeu na cadeira, apoiando o peso em um lado.
- Ela levou o tiro pelas costas. Conclua você mesma.
Karen se recostou na cadeira, não gostara da resposta à qual chegou, mas sabia que não viria nada melhor do homem à sua frente.
- Vocês eram um bando de caubóis filhos da puta naquela época, não? - Não havia nenhuma admiração em sua voz.
- Nós fazíamos o trabalho - disse Lawson. - O público recebia o que queria.
- O público não sabia nem a metade, pelo jeito. - Ela suspirou. - Então, temos três tiros, e não os dois que aparecem no relatório?
Ele assentiu.
- Apesar de toda a diferença que isso acarreta. - Ele se remexeu novamente, direcionando o corpo para a porta.
- Tem mais alguma coisa que eu deveria saber e que não foi colocada no relatório? - Karen perguntou, reafirmando-se como a pessoa no controle da entrevista.
Lawson inclinou a cabeça para trás, olhando para o canto onde as paredes e o teto se encontravam. Exalou ruidosamente e, então, espichou os lábios.
- Acho que é só isso - ele disse, finalmente. Arrastou o olhar de volta para encontrar a expressão cansada dela. - Nós achamos que fosse Fergus Sinclair,
na época. E nada aconteceu, desde então, para me fazer mudar de ideia a esse respeito.
Campora, Toscana
O calor do sol toscano derreteu a rigidez nos ombros de Bel. Ela estava sentada na sombra de uma castanheira, escondida atrás do grupo de casas na extremidade final
da Boscolata. Se esticasse o pescoço, poderia ver um canto do telhado de terracota da villa em ruínas de Paolo Totti. Sua vista mais imediata, no entanto, era muito
mais atraente. Em uma mesa baixa à sua frente havia uma jarra de vinho tinto, uma garrafa de água e uma tigela
de figos. Em volta da mesa, suas informantes principais: Giulia, jovem, cabeleira negra desordenada e pele coberta por antigas cicatrizes avermelhadas de acne, que
fazia brinquedos pintados à mão para os turistas em um chiqueiro convertido em ateliê; e Renata, uma loura holandesa, cuja cútis tinha a cor de um queijo gouda,
e que trabalhava meio expediente no departamento de restauração da Pinacoteca Nazionale de Siena, perto dali. Segundo Grazia, que estava recostada no tronco da árvore
descascando um saco de ervilhas, os carabinieri já haviam conversado com as duas.
As sutilezas sociais tinham de ser respeitadas, e Bel tentava se conter enquanto elas batiam papo. Finalmente, Grazia as conduziu ao tema.
- Bel também está interessada no que aconteceu na villa Totti - ela disse.
Renata assentiu com um ar nefasto.
- Sempre achei que alguém viria perguntar sobre aquilo - ela disse, num italiano tão perfeitamente enunciado que parecia fala gerada por computador.
- Por quê? - perguntou Bel.
- Eles foram embora muito repentinamente. Um dia eles estavam lá, no dia seguinte, haviam sumido - disse Renata.
- Partiram sem uma palavra - disse Giulia, parecendo zangada. - Eu não podia acreditar. Dieter era meu namorado, mas nem sequer se despediu de mim. Fui eu
quem descobriu que eles haviam ido embora. Fui até lá para tomar um café com Dieter, exatamente como costumava fazer quando eles não tinham de sair cedo para um
show. E o local estava deserto. Como se eles houvessem jogado tudo que pudessem pegar para dentro das vans e tivessem, simplesmente, partido. Não tive mais notícias
daquele filho da puta do Dieter desde então.
- Quando foi isso? - Bel perguntou.
- No final de abril. Tínhamos planos para o feriado de Primeiro de Maio, mas foi tudo por água abaixo. - Giulia ainda estava furiosa.
- Quantas pessoas havia no grupo deles? - perguntou Bel.
Giulia e Renata contaram nos dedos entre elas. Dieter, Maria, Rado, Sylvia, Matthias, Peter, Luka, Ursula e Max. Uma mistura de gente de todas as partes da Europa.
Um grupo heterogêneo que, a princípio, parecia não ter nada a ver com Cat Grant.
- O que eles estavam fazendo aqui? - ela perguntou.
Renata sorriu.
- Creio que poderíamos dizer que pegaram aquele lugar emprestado. Apareceram na primavera passada em dois trailers velhos e num vistoso motorhome Winnebago
e, simplesmente, se instalaram ali. Eram muito simpáticos, muito sociáveis. - Ela deu de ombros. - Nós todos somos um pouco alternativos, aqui na Boscolata. Este
lugar era uma ruína nos anos setenta, quando alguns de nós se mudaram ilegalmente para cá. Aos poucos, compramos as propriedades e as restauramos, transformando-as
no que você está vendo agora. Portanto, todos fomos solidários com os novos vizinhos.
- Eles se tornaram nossos amigos - disse Giulia. - Os carabinieri estão loucos, agindo como se eles fossem criminosos ou coisa parecida.
- Então, eles apareceram por aqui sem mais nem menos? Como eles sabiam que a casa estava lá?
- Rado trabalhou na fábrica de cimento na descida do vale, faz alguns anos. Ele me disse que costumava caminhar no bosque e que encontrou a villa. Então,
quando eles precisaram de um lugar que fosse acessível às principais cidades desta parte da Toscana, ele se lembrou da villa e eles vieram para ficar - disse Giulia.
- E o que eles faziam, exatamente? - Bel perguntou, procurando alguma conexão entre o passado e suas investigações.
- Eles tinham um teatro de marionetes - Renata disse. Ela parecia surpresa pelo fato de Bel não saber daquilo. - Bonecos. Teatro de rua. Durante a temporada
de turistas, eles se apresentavam em pontos regulares. Florença, Siena, Volterra, San Gimignano, Greve, Certaldo Alto. Eles também participavam de festivais. Cada
cidadezinha da Toscana tem um festival de alguma coisa: de funghi porcini, de máquinas antigas de fatiar salame, de tratores de época. Então, o BurEst se apresentava
em qualquer lugar onde houvesse plateia.
- BurEst? Como se escreve isso? - perguntou Bel.
Renata explicou:
- É abreviação de Burattinaio Estemporaneo. Eles faziam muitas improvisações.
- O pôster encontrado na villa... o desenho em preto e branco de um titereiro com algumas marionetes bastante estranhas... era isso que eles estavam usando
como propaganda? - Bel perguntou.
Renata negou com a cabeça.
- Só para apresentações especiais. Só os vi usarem aqueles pôsteres quando fizeram uma apresentação em Colle di Val d'Eisa no Dia de Finados. Na maioria das
vezes, eles usavam um pôster de cores berrantes, estilo com-media délVarte. Uma versão moderna das imagens mais tradicionais dos fantoches. Refletia sua arte melhor
que o pôster monocromático.
- Eles faziam sucesso? - Bel perguntou.
- Acho que estavam indo bem - disse Giulia. - Haviam estado no sul da França no verão anterior, antes de virem para cá. Dieter disse que a Itália era um lugar
melhor para trabalhar. Ele disse que os turistas eram mais abertos, e os moradores locais, mais tolerantes com eles. Não ganhavam muito dinheiro, mas iam bem. Sempre
tinham comida na mesa e bastante vinho. E faziam todos se sentirem bem-vindos.
- Ela está certa - disse Renata. - Não eram aproveitadores. Se jantavam um dia na sua casa, no outro, você jantava com eles. - Um canto de sua boca se retorceu
para baixo. - Isso não é tão comum assim, nesses círculos. Falam muito sobre compartilhar e viver em comunidade, mas a maior parte é mais egoísta do que as pessoas
a quem desprezam.
- Exceto Ursula e Matthias - Giulia comentou. - Eles eram mais reservados. Não se socializavam tanto quanto os demais.
Renata suspirou.
- Isso era porque Matthias achava que estava no comando. - Ela serviu mais vinho para todas e prosseguiu: - Foi Matthias quem iniciou a companhia, e ele ainda
queria que todos o tratassem como se fosse o diretor do circo. E Ursula, a mulher dele, acreditava piamente nisso. Obviamente, Matthias também ficava com a maior
parte da renda. Eles usavam o motorhome, suas roupas eram sempre de estilo hippie caro. Acho que era, em parte, um lance de geração: Matthias devia estar com uns
cinquenta anos, mas a maior parte dos outros era muito mais jovem. Vinte e tantos anos, trinta e pouco, no máximo.
Era tudo muito fascinante, mas Bel estava se esforçando para ver qual seria a ligação com a morte de Cat Grant e o desaparecimento de seu filho.
Esse tal de Matthias parecia ser suficientemente velho para ter tido alguma conexão com aqueles eventos distantes.
- Ele tem um filho, esse Matthias? - ela perguntou.
As mulheres se entreolharam, perplexas.
- Não havia nenhuma criança com ele - disse Renata. - E nunca o escutei falar num filho.
Giulia apanhou um figo e o mordeu, a polpa arroxeada se partiu e derramou sementes em seus dedos.
- Ele tinha um amigo que vinha visitá-los, às vezes. Um cara inglês. Ele tinha um filho.
Assim como todos os bons repórteres, Bel possuía um instinto imensurável para saber onde estava a história. E aquele instinto lhe disse que havia acabado de encontrar
ouro.
- Quantos anos tinha o filho?
Giulia lambeu os dedos enquanto pensava.
- Vinte? Talvez um pouco mais, mas não muito.
Havia uma dúzia de perguntas brigando dentro da cabeça de Bel, mas ela sabia que o melhor era não despejá-las numa torrente desenfreada. Tomou um gole vagaroso de
seu vinho e disse:
- O que mais você se lembra sobre ele?
Giulia deu de ombros.
- Eu o vi algumas vezes, mas só me encontrei mesmo com ele uma vez. Seu nome era Gabriel. Falava italiano perfeitamente. Disse que havia crescido na Itália,
que não se lembrava de ter morado na Inglaterra. Estava estudando, mas não sei onde nem o quê. - Ela fez uma cara de desculpas.
- Sinto muito, eu não estava muito interessada nele.
Tudo bem, aquilo não era decisivo. Mas parecia ser uma possibilidade.
- Como ele era fisicamente?
Giulia pareceu ainda mais incerta.
- Não sei como descrevê-lo. Alto, cabelo castanho-claro. Bem bonito; - Ela franziu o rosto. - Não sou boa nesse tipo de coisa. Afinal, o que tem de
tão interessante nele?
Renata poupou Bel de ter de responder.
- Ele estava na festa de Ano-Novo? - ela perguntou.
O rosto de Giulia se iluminou.
- Sim. Ele estava lá com o pai.
- Então, pode ser que ele tenha saído em alguma fotografia - disse Renata. Ela se virou para Bel. - Eu estava com minha máquina fotográfica. Tirei dúzias
de fotos naquela noite. Deixe-me pegar meu laptop. - Ela se levantou de um salto e voltou para sua casa.
- E quanto ao pai de Gabriel? - Bel perguntou. - Você disse que ele era inglês?
- Isso mesmo.
- Então, como ele conhecia Matthias? Ele era inglês também?
Giulia pareceu em dúvida.
- Eu achava que ele era alemão. Ele e Ursula haviam se conhecido anos atrás, na Alemanha. Mas ele falava italiano tão bem quanto o amigo. Eles pareciam falar
do mesmo jeito. Então, talvez ele também fosse inglês. Não sei.
- Como se chamava o pai do Gabriel?
Giulia suspirou.
- Não estou ajudando muito. Não me lembro do nome dele. Sinto muito. Ele era apenas mais um homem da idade do meu pai, sabe? Eu estava com Dieter, não estava
interessada num velho de cinquenta e poucos anos.
Bel ocultou sua decepção.
- Você sabe o que ele faz da vida? O pai do Gabriel, quero dizer.
Giulia se alegrou, feliz em saber a resposta para alguma coisa.
- Ele é pintor. Pinta paisagens para os turistas. Vende seus trabalhos para algumas galerias: uma em San Gimignano e uma em Siena. Ele também vai ao mesmo
tipo de festivais em que o BurEst se apresenta e vende seu trabalho ali.
- Foi assim que ele conheceu Matthias? - Bel perguntou, tentando não se sentir desapontada ao descobrir que o misterioso pai de Gabriel não era o administrador
de propriedades Fergus Sinclair. Afinal, um artista se encaixaria perfeitamente no passado de Cat. Talvez o pai de Adam fosse alguém que ela tivesse conhecido em
seus dias de estudante. Ou alguém que havia encontrado numa galeria ou numa vernissagem na Escócia. Haveria tempo para explorar aquelas possibilidades mais tarde.
Nesse momento, ela precisava prestar atenção em Giulia.
- Acho que não. Acho que eles já se conheciam de muito antes.
Enquanto ela falava, Renata voltou com o laptop.
- Você está falando de Matthias e o pai do Gabriel? É engraçado. Eles não pareciam gostar muito um do outro. Não sei por que tenho essa impressão, mas tenho.
Era mais... sabe como às vezes você mantém contato com alguém porque é a única pessoa que sobrou que compartilha o mesmo passado que você? Pode ser que você não
goste muito dessa pessoa, mas ela proporciona uma ligação com alguma coisa do passado que era importante. As vezes é a família, às vezes é uma época da sua vida
em que aconteceram coisas importantes. E você quer se aferrar àquele elo. Era o que me parecia, quando os via juntos.
Enquanto ela falava, seus dedos voavam pelo teclado, revelando uma coleção de fotografias. Ela colocou o laptop onde Giulia e Bel podiam ver a tela, então deu a
volta por trás delas, inclinando-se para avançar as fotos.
Lembrava a metade das festas nas quais Bel já estivera. Pessoas sentadas à mesa bebendo. Pessoas fazendo caretas para a câmera. Pessoas dançando. Pessoas ficando
cada vez mais ruborizadas, com os olhos mais turvos e mais descoordenadas no decorrer da noite. As duas mulheres da Boscolata riam e falavam, mas nenhuma delas identificava
Gabriel ou o pai dele.
Bel havia quase perdido a esperança quando Giulia, de repente, chamou-as e apontou para a tela.
- Aqui. Este é o Gabriel, no canto.
Não era a foto mais clara do mundo, mas Bel não achou que estivesse vendo coisas. Havia cinquenta anos separando-os, mas não era difícil distinguir a semelhança
entre aquele garoto e Brodie Grant. Os traços de Cat tinham sido uma versão feminina da aparência marcante de seu pai. Por mais improvável que parecesse, uma imitação
do original estava olhando para ela de uma festa de Ano-Novo numa casa invadida na Itália. Os mesmos olhos fundos, nariz de papagaio, queixo proeminente e cabeleira
inconfundível, só que loura em vez de prateada. Ela remexeu a bolsa até encontrar um cartão de memória.
- Posso fazer uma cópia desta foto? - perguntou.
Renata fez uma pausa, parecendo pensativa.
- Você não respondeu quando Giulia perguntou por que está interessada neste garoto. Talvez devesse responder agora.
East Wemyss, Fife
River tirou as luvas resistentes de trabalho e endireitou as costas, tentando não gemer. O problema em trabalhar em conjunto com seus estudantes era que não podia
revelar nenhum sinal de fraqueza. Realmente, eles tinham no mínimo doze anos menos que ela, mas River estava decidida a demonstrar que estava tão em forma quanto
eles. Então, eles podiam reclamar de dores nos braços e das costas doloridas de tanto carregar pedras e cascalho, mas ela precisava manter sua aparência de Supermulher.
Desconfiava que a única pessoa a quem estava enganando era a si mesma, mas não tinha problema. O engodo devia ser mantido pelo bem de sua autoimagem.
Ela atravessou a caverna até chegar ao local onde três de seus alunos peneiravam a terra que tinha sido liberada pela movimentação das pedras. Por enquanto, não
havia aparecido nada de interesse arqueológico ou criminalístico, mas seu entusiasmo não parecia diminuir. River lembrava-se de suas próprias investigações iniciais;
como o simples fato de estar envolvida num caso real era suficientemente excitante para superar o tédio de uma tarefa repetitiva e aparentemente infrutífera. Ela
viu suas próprias reações espelhadas naqueles estudantes e ficou feliz em pensar que teria alguma participação em garantir que a próxima geração de peritos criminalistas
tivesse o mesmo comprometimento em falar pelos mortos.
- Alguma coisa? - ela perguntou ao emergir das sombras para a luz ofuscante que banhava o grupo.
Alguns balançaram a cabeça, outros murmuraram que não havia nada. Um dos alunos de pós-graduação em arqueologia olhou para cima.
- Ficará interessante quando os trabalhadores braçais terminarem de retirar as pedras.
River sorriu.
- Não deixe que meus antropólogos ouçam você chamá-los de trabalhadores braçais. - Ela voltou a olhar para eles com afeição. - Com sorte, eles terão removido
o grosso das pedras até o fim da tarde.
Todos se surpreenderam com a descoberta de que o desmoronamento só se aprofundava por um metro ou dois. De acordo com a experiência de River, desmoronamentos em
cavernas tendiam a se estender por uma grande distância, em direção ao fundo. Uma falha tinha que atingir um tamanho
considerável antes de provocar o desabamento de um teto anteriormente estável. Portanto, quando desmoronava, levava abaixo uma grande quantidade de rochas. Mas aquilo
era diferente. E isso tornava tudo muito interessante, sem dúvida alguma.
Eles já tinham removido uns dois metros da camada de pedras do alto, na direção do fundo da caverna. Alguns dos alunos mais intrépidos escalaram as pedras para dar
uma olhada, enquanto River saíra para buscar tortas e sanduíches para o almoço de todos. Eles informaram que parecia estar tudo limpo além do desmoronamento em si,
com exceção de algumas pedras que haviam rolado do alto da pilha principal.
River saiu da caverna para dar alguns telefonemas, deliciando-se com o ar salgado como se fosse um prêmio. Mal havia terminado de falar com a secretária do departamento
quando um dos alunos saiu correndo pela entrada estreita.
- Dra. Wilde! - ele gritou. - Você precisa ver isso.
Campora, Toscana
Bel relatou sua história de forma a provocar a máxima reação emocional possível. Pelo silêncio estupefato de Renata e Giulia, parecia ter atingido seu objetivo.
- Isso é muito triste. Eu ficaria arrasada se uma coisa dessas acontecesse com a minha família - Giulia disse por fim, apropriando-se da história como uma
mulher que crescera assistindo a novelas e lendo revistas de fofocas. - Pobrezinho do bebê.
Renata foi mais objetiva.
- E você acha que Gabriel pode ser esse bebê?
Bel deu de ombros.
- Não tenho ideia. Mas esse pôster é a primeira pista significativa que aparece em mais de vinte anos. E Gabriel se parece incrivelmente com o avô do menino
desaparecido. Pode ser que eu esteja me iludindo, mas me pergunto se não existe algo de verdade nisso que descobrimos.
Renata balançou a cabeça.
- Então devemos ajudar de todas as formas possíveis.
- Eu não vou falar de novo com os carabinieri - disse Giulia. - Aqueles porcos.
- Ei - protestou Grazia, despertando de sua tarefa de descascar ervilhas. - Não insulte assim os porcos. Nossos porquinhos são criaturas maravilhosas. Inteligentes.
Úteis. Não têm nada a ver com os carabinieri.
Renata estendeu a mão.
- Dê-me o cartão de memória. Não há motivos para falar com os carabinieri porque eles não se importam com esse caso. Não como você. Não como a família se
importa. É por isso que precisamos compartilhar tudo com você. - Habilmente, ela copiou a fotografia para o cartão de memória de Bel. - Agora precisamos ver se existem
mais fotos de Gabriel e seu pai.
No final da procura, elas tinham três fotos em que Gabriel aparecia, embora nenhuma delas estivesse mais nítida do que a primeira. Renata também havia encontrado
duas imagens do pai do garoto - uma de perfil e outra em que metade de seu rosto estava encoberta pela cabeça de outra pessoa.
- Você acha que mais alguém tem fotos daquela noite? - Bel perguntou.
As mulheres pareceram duvidar.
- Não me lembro de outra pessoa tirando fotos - disse Renata. - Mas com esses telefones celulares, quem sabe? Vou perguntar por aí.
- Obrigada. E ajudaria bastante se você pudesse perguntar se mais alguém conhecia Gabriel ou o pai dele.
Bel pegou o precioso cartão de memória. Assim que tivesse oportunidade, enviaria a um colega especializado em melhorar a qualidade de fotos não autorizadas de gente
importante fazendo o que não devia com quem não devia.
- Tenho uma ideia melhor - disse Grazia. - Que tal assar uma carne de porco no espeto hoje à noite? Assim, você vai conhecer todo mundo. Um saboroso pedaço
de carne de porco e alguns copos de vinho e todos estarão prontos para lhe contar tudo que sabem sobre Gabriel e o pai.
Renata sorriu e levantou o copo num brinde.
- Eu topo. Mas vou logo avisando, Grazia. Pode ser que seu porco asse à toa. Aquele cara não era lá muito sociável. Não me lembro de ele ter se integrado
muito na festa.
Grazia juntou suas ervilhas e as enfiou num saco plástico.
- Não importa. É uma boa desculpa para a gente se divertir um pouco com meus vizinhos. Bel, você vai ficar aqui embaixo ou quer uma carona para subir o morro?
Agora que tinha a perspectiva de fofocar com a comunidade toda, Bel sentia menos urgência.
- Vou voltar agora, e vejo vocês, garotas, mais tarde - ela disse, bebendo o resto do vinho.
- Você não quer saber a respeito do sangue? - Giulia perguntou.
Surpreendida enquanto se levantava da cadeira, Bel quase voltou a sentar.
- Você quer dizer o sangue no chão? - perguntou.
- Ah. Você já sabe. - Giulia parecia decepcionada.
- Eu sei que há uma mancha de sangue no chão da cozinha - disse Bel. - Mas isso é tudo.
- Nós fomos dar uma olhada depois que os carabinieri saíram, na sexta-feira - disse Giulia. - E a mancha de sangue estava diferente da primeira vez que vimos.
Um dia depois que eles tinham ido embora.
- Diferente como?
- Agora está marrom e oxidada, absorvida pela pedra. Mas naquele dia ainda estava bem vermelha e brilhante. Como se estivesse fresca.
- E você não chamou a polícia? - Bel tentou não mostrar incredulidade.
- Não era problema nosso - disse Renata. - Se as pessoas do BurEst tivessem achado que era caso de polícia, teriam chamado. - Ela deu de ombros. - Sei que
parece estranho para você, e, se tivesse acontecido na Holanda, não sei se teria agido assim. Mas aqui as coisas são diferentes. Ninguém de esquerda confia na polícia.
Você viu como a polícia italiana reagiu no encontro do G8 em Gênova, como trataram os manifestantes. Giulia perguntou a alguns de nós se ela deveria chamar a polícia
e todos concordamos que a única coisa que se conseguiria era dar aos policiais uma desculpa para culpar os titereiros, seja lá o que realmente aconteceu.
- Então vocês simplesmente abafaram o caso?
Renata ergueu os ombros.
- Estava na cozinha. Quem pode garantir que não era sangue de animal? Não era problema nosso.
Kirkcaldy
Karen rodou lentamente pela rua, verificando os números das casas. Era a primeira vez que visitava a casa nova de Phil Parhatka no centro de
Kirkcaldy. Ele estava morando ali havia três meses; vivia prometendo fazer uma festa de inauguração, mas, até agora, não cumprira a promessa. Alguns anos atrás,
Karen acalentara sonhos de um dia eles comprarem uma casa juntos. Mas havia superado aquilo. Um cara como Phil nunca se sentiria atraído por uma coisinha gorducha
como ela, principalmente depois que sua última promoção a colocara acima dele em termos de autoridade. Alguns homens podiam gostar da ideia de dormir com a chefe.
Karen sabia, instintivamente, que aquilo não fazia parte das fantasias de Phil. Portanto, optara pela preservação de sua amizade e da íntima relação profissional,
apesar daquilo que classificava como um desejo adolescente. Se teria de se contentar em ser uma solteirona voltada para a carreira, poderia, ao menos, assegurar-se
de que essa carreira fosse tão satisfatória quanto possível.
Parte da receita para a satisfação profissional era ter alguém com quem discutir ideias. Nenhum detetive era inteligente o bastante para enxergar sozinho o todo
em uma investigação complexa. Todos precisavam de alguém com quem testar suas ideias, alguém que visse as coisas por um ângulo diferente e que fosse suficientemente
esperto para enunciar tais divergências. Isso era especialmente importante nos casos arquivados para os quais, em vez de liderar uma equipe substancial de oficiais,
o investigador-sênior poderia contar com apenas um ou dois indivíduos à sua disposição. E esses soldados rasos geralmente não tinham experiência para tornar sua
contribuição
tão valiosa quanto ela queria. Para Karen, Phil atendia todos os requisitos. E, a julgar pelo número de vezes em que ele discutia seus próprios casos com ela, a
recíproca era verdadeira.
Geralmente, eles se reuniam para essas discussões no escritório dela ou num canto tranquilo de um pub, a meio caminho entre sua casa e a dele. Mas quando ela telefonara
para ele, voltando de Peterhead, ele já havia tomado algumas taças de vinho.
- Talvez eu esteja dentro do limite legal, mas por pouco - ele dissera. - Por que você não vem até aqui? Pode me ajudar a escolher as cortinas da sala.
Karen encontrou o número da casa que estava procurando e estacionou o carro em frente à garagem de Phil. Ficou ali sentada por algum tempo, presa ao hábito dos policiais
de sondar o ambiente antes de sair do carro. Era uma rua tranquila e despretensiosa de casas geminadas de pedra, quadradas e resistentes, aparentemente tão sólidas
quanto no dia de sua construção,
no final do século XIX. Garagens com entrada de cascalho e canteiros de flores bem cuidados. Cortinas fechadas no andar de cima, onde as crianças dormiam,
isoladas por forros grossos da persistente luz do dia. Ela se lembrou de como havia sido difícil adormecer nas noites claras de verão, quando era criança. Mas as
cortinas de seu quarto eram finas. E sua rua, barulhenta por causa da música e da conversa no pub da esquina. Não como aqui. Era difícil acreditar que o centro da
cidade estava a apenas cinco minutos de caminhada. A sensação era de que estivesse num subúrbio distante.
Alertado pelo barulho do carro dela, Phil abriu a porta antes de Karen deixar o banco do motorista. Contra a luz, ele parecia maior. Sua pose continha a ameaça casual
de um guarda de segurança; um braço levantado para apoiar-se no batente, uma perna cruzada sobre a outra, a cabeça pendendo para um lado. Mas não havia nada de ameaçador
em sua expressão. Os olhos escuros e arredondados cintilavam na luz, e o sorriso colocava dobras em suas bochechas.
- Vamos entrando - ele a cumprimentou, dando um passo para trás e convidando-a a entrar com um gesto.
Ela adentrou uma réplica perfeita de um saguão vitoriano, com o piso revestido por lajotas quadradas de terracota entremeadas por losangos brancos, azuis e vermelhos.
- Muito bonito - ela disse, notando a borda de madeira e o papel de parede com relevo, abaixo dela.
- A namorada do meu irmão é historiadora de arquitetura. Ela passou por aqui como um tufão. Vai ficar parecendo um maldito monumento tombado pelo National
Trust, quando ela terminar - ele resmungou, bem-humorado. - Vire à direita no final do saguão.
Karen caiu na gargalhada ao entrar no cômodo.
- Jesus, Phil - ela riu. - Foi o Coronel Mostarda, na Biblioteca, com o Cano. Você deveria estar vestindo um smoking e não uma camiseta do time Raith Rovers.
Ele deu de ombros, tristemente.
- Temos que ver o lado engraçado. Eu, um policial, com o cenário perfeito de "assassinato-na-biblioteca".
Ele acenou com a mão indicando as estantes de madeira escura, a escrivaninha com tampo de couro e as poltronas em volta da lareira bem trabalhadas.
A sala, claramente, não havia sido muito grande, no início, mas agora parecia definitivamente entulhada.
- Ela diz que é assim que o amo da casa iria querer.
- Numa casa deste tamanho? - disse Karen. - Acho que ela sofre de mania de grandeza. E, de alguma forma, não acho que ele teria escolhido o carpete de tartã.
Suas orelhas ficaram coradas de vergonha.
- Aparentemente, isso é ironia pós-moderna. - Ele levantou as sobrancelhas ceticamente. - Nem tudo é o que parece, no entanto - ele disse, alegrando-se ao
remexer num dos livros. Uma parte da estante girou, revelando uma TV de plasma.
- Graças a Deus - disse Karen. - Eu já estava começando a questionar isso tudo. Não se parece muito com sua casa antiga, né?
- Acho que superei a fase de levar a vida ao estilo garotão corredor de rachas - disse Phil.
- Hora de se assentar?
Ele deu de ombros, sem olhá-la nos olhos.
- Talvez. - Ele apontou para uma poltrona e deixou-se cair na outra, do lado oposto. - Então, como estava o Lawson?
- Mudado. E não para melhor. Estava pensando nisso, vindo para cá. Ele sempre foi um filho da puta durão, mas antes de descobrirmos o que ele realmente vinha
aprontando, sempre achei que seus motivos fossem justos, sabe? Mas as coisas que ele me contou hoje... sei lá. Foi quase como se ele estivesse aproveitando para
se vingar.
- Como assim? O que ele contou?
Karen levantou a mão.
- Vou chegar lá em um minuto. Só quero desabafar um pouco, acho. Eu tive a impressão de que ele contou o que fez por pura maldade. Porque ele sabia que prejudicaria
a reputação da polícia, e não porque quer nos ajudar a solucionar o que aconteceu com Cat e Adam Grant.
Enquanto ela falava, Phil pegou seu maço de cigarrilhas e acendeu uma. Ele agora raramente fumava na companhia dela, Karen notou. Havia poucos lugares onde era permitido.
O familiar aroma agridoce encheu suas narinas, confortando-a estranhamente, depois do dia que tivera.
- E importam quais sejam os motivos dele? - Phil questionou. - Desde que o que ele esteja nos dizendo seja verdade?
- Talvez não. E, no caso, ele tinha mesmo algo muito interessante para nos contar. Algo que lança uma luz completamente nova no que aconteceu na noite em
que Cat Grant morreu. Parece que não eram só os policiais e os seqüestradores que estavam armados aquela noite. O pilar da nossa sociedade, Sir Broderick Maclennan
Grant, também tinha uma arma. E a usou.
A boca de Phil permaneceu aberta, deixando a fumaça escapar.
- Grant tinha uma pistola? Você está brincando. Como é que só agora estamos ouvindo falar disso?
- Segundo I,awson, a ordem de encobrir o fato veio de cima. Grant era uma vítima, nada se ganharia processando-o. Seria má propaganda e essa merda toda. Mas
eu acho que essa decisão alterou completamente o resultado final. - Karen tirou uma pasta de arquivo de sua bolsa. Sacou o esboço da cena do crime feito pela equipe
de criminalística, na época, e o abriu entre eles. Apontou a posição em que cada pessoa estivera. - Percebe? - perguntou.
Phil assentiu.
- Então, o que aconteceu? - inquiriu Karen.
- A luz se apagou, nosso cara disparou para cima e, então, houve outro tiro vindo de trás de Cat. O tiro que a matou.
Karen negou com a cabeça.
- Não segundo Lawson. O que ele está dizendo agora é que Cat e a mãe dela estavam lutando pela bolsa de dinheiro. Cat conseguiu pegar a bolsa e começou a
correr. Daí, Grant sacou sua arma e exigiu ver Adam. A luz se apagou, Grant disparou. Houve um segundo tiro, vindo de trás de Cat. Então, o agente Armstrong atirou
para o alto.
Phil franziu a testa, digerindo o que ela dissera.
- O.k. - ele falou lentamente. - Não entendi bem como isso muda a situação.
- A bala que matou Cat a atingiu pelas costas e saiu pelo peito. Indo parar na areia. Nunca encontraram a bala. A ferida não era compatível com a arma de
Armstrong, portanto, como a arma de Grant nunca foi mencionada, só havia uma explicação possível: os seqüestradores mataram Cat. O que transformou o caso numa investigação
de assassinato.
- Puta que pariu - resmungou Phil. - E, é lógico, foi isso que impediu qualquer possibilidade de recuperar Adam. Esses caras sabem que
serão condenados a prisão perpétua, sem dúvida alguma, já que Cat está morta. Eles têm uma bolsa cheia de dinheiro e a criança. Nem mortos iriam se oferecer para
um segundo confronto com Grant. Vão mais é desaparecer na noite. E Adam, agora, é apenas um estorvo. Não vale nada para eles, vivo ou morto.
- Exatamente. E nós dois sabemos de que lado a balança pesa mais. Porém, há mais que isso. O argumento sempre foi de que a natureza do ferimento, mais o fato
de Cat ter sido atingida pelas costas, apontavam, inevitavelmente, para os seqüestradores. Mas, de acordo com Lawson, a arma de Grant poderia ter infligido o ferimento
fatal. Ele diz que Cat começara a correr de volta para os seqüestradores quando a luz se apagou. - Ela olhou-o tristemente. - É provável que Grant tenha matado a
própria filha.
- E o encobrimento da verdade lhe custou o neto. - Phil deu uma tragada longa na cigarrilha. - Você vai falar com Brodie Grant sobre isso?
Karen suspirou.
- Não vejo como poderia evitar.
- Talvez você devesse deixar o Biscoito lidar com isso.
Karen riu com genuíno deleite.
- Que maravilha seria isso! Mas nós dois sabemos que ele seria capaz de se atirar do alto de um edifício para escapar dessa. Não, terei que encará-lo pessoalmente.
Só não estou certa de qual seria a melhor maneira de lidar com o assunto. Talvez espere até ver o que os italianos têm para me dizer. Ver se existe alguma coisa
para dourar a pílula. - Antes que Phil pudesse responder, o telefone de Karen tocou. - Coisa maldita - ela resmungou ao pegá-lo. Então, leu o nome na tela e sorriu.
- Alô, River - disse. - Como vai?
- Melhor impossível - A voz de River chegou a seu ouvido cheia de estática. - Escute, acho que você precisa vir para cá.
- Quê? Você encontrou alguma coisa?
- A ligação está uma merda, Karen. É melhor você vir agora mesmo.
- Está bem. Vinte minutos. - Ela encerrou a chamada. - Pode ir tirando os chinelos, Sherlock. Que se dane Brodie Grant. Nossa querida doutora tem algo para
nós.
Boscolata
Bel tinha de admitir que Grazia sabia como criar o ambiente perfeito para soltar a língua das pessoas. Enquanto o sol lentamente se escondia atrás das colinas distantes,
e as luzes das cidadezinhas medievais salpicavam suas encostas como punhados de purpurina, os habitantes da Boscolata se empanturravam de um suculento leitão acompanhado
por montes de batatas assadas lentamente, aromatizadas com alho e alecrim, e tigelas de salada de tomate perfumadas com manjericão e estragão. A Boscolata fornecera
jarros de vinho de suas próprias vinícolas, e Maurizio acrescentara ao banquete algumas garrafas de seu vin santo feito em casa.
O fato de que essa comemoração inesperada era em homenagem a Bel tornava as pessoas mais receptivas a ela. Bel circulou entre elas, conversando agradavelmente sobre
todo tipo de coisas. Mas a conversa sempre voltava para os titereiros que haviam tomado a villa de Paolo Totti. Aos poucos, ela pôde criar um dossiê mental das pessoas
que tinham vivido ali. Rado e Sylvia, um sérvio do Kosovo e uma eslovena que tinham talento para fazer marionetes. Matthias, que criara a companhia e que agora projetava
e construía os cenários. Sua mulher, Ursula, responsável por organizar a agenda deles e por fazer o que fosse necessário para torná-la possível. Maria e Peter, da
Áustria, os titereiros principais, e sua filhinha de três anos, a quem estavam decididos a manter longe do sistema educacional formal. Dieter, um suíço responsável
pela iluminação e pelo som. Luka e Max, titereiros substitutos, que espalhavam os pôsteres, realizavam a maior parte do trabalho braçal e podiam fazer seu próprio
show, quando uma apresentação especial coincidia com um dos compromissos regulares.
E também havia os visitantes. Parece que existiam vários deles. Gabriel e seu pai não se destacaram, particularmente, exceto pelo fato de o pai ser claramente amigo
de Matthias, e não da casa. Ele mantinha a discrição. Sempre educado, mas nunca realmente aberto. As opiniões divergiam quanto a seu nome. Um achava que era David,
outro, Daniel, e um terceiro, Darren.
Conforme a noite se esvaía, Bel começou a questionar se haveria alguma verdade em sua reação instintiva à fotografia que Renata lhe mostrara. Todo o resto parecia
muito pouco substancial. Então, enquanto se servia de uma taça de vin santo e um punhado de biscoitos cantuccini, um adolescente se aproximou dela hesitante.
- É você quem quer saber sobre o BurEst, certo? - ele murmurou.
- Isso mesmo.
- E sobre aquele carinha, o Gabe?
- O que você sabe? - perguntou Bel, aproximando-se, fazendo-o sentir como se eles estivessem numa conspiração só dos dois.
- Ele estava lá, na noite em que eles deram o fora.
- Você quer dizer o Gabriel?
- Isso. Eu não disse nada antes porque eu deveria estar na escola, só que não estava, entendeu?
Bel deu um tapinha em seu braço.
- Acredite em mim, entendo perfeitamente. Eu também não me dava muito bem com a escola. Tanta coisa mais interessante para fazer.
- Pois é, bem, de qualquer maneira, eu estava em Siena e vi Matthias vindo da estação junto com o Gabe. Matthias ficara fora uns dias. Eu não tinha nada melhor
a fazer, então segui os dois. Eles atravessaram a cidade até o estacionamento perto da Porta Romana e saíram na van de Matthias.
- Eles estavam conversando? Pareciam amistosos?
- Pareciam estar de saco cheio. Estavam de cabeça baixa, sem falar muito. Mas não brigados. Apenas como se estivessem irritados com alguma coisa.
- Você os viu novamente? Ao voltar para cá?
O garoto sacudiu um ombro.
- Não os vi mais. Mas, quando voltei, a van de Matthias estava lá. Os outros haviam ido até Grossetto para fazer uma apresentação especial. São algumas horas
de carro, então eles já tinham saído quando eu cheguei. Eu apenas deduzi que Matthias e Gabe estivessem na villa. - Ele sorriu maldoso. - Fazendo sabe Deus o quê.
A julgar pelo sangue no chão, Bel pensou, não era nada tão divertido quanto aquele jovem sem imaginação estava pensando. A verdadeira pergunta era: de quem era o
sangue? Será que os integrantes do BurEst haviam partido porque, ao retornarem, encontraram seu líder numa poça de seu próprio sangue? Ou haviam se dispersado porque
seu líder tinha o sangue de Gabriel nas mãos?
- Obrigada - ela disse, voltando-se e completando o copo que, de alguma forma, havia se esvaziado. Ela se afastou da multidão falante e
caminhou pelas margens da vinha. Seu informante lhe havia proporcionado muita coisa em que pensar. Matthias tinha passado alguns dias fora. Ele voltou com Gabriel.
Os dois haviam ficado sozinhos na villa. No meio da manhã seguinte, toda a trupe havia partido às pressas, deixando os mesmos pôsteres previamente usados pelo Pacto
Anarquista da Escócia e uma grande mancha de sangue no chão.
Não era preciso ser um detetive para concluir que alguma coisa dera terrivelmente errado. Mas para quem? E, talvez, o mais importante: por quê?
East Wemyss
Verão na Escócia, pensou Karen com azedume ao descer com dificuldade o caminho até a caverna Thane's. Ainda estava claro às nove da noite, uma garoa fina deixava-a
ensopada e os mosquitos picavam como se não houvesse amanhã. Ela podia vê-los numa nuvem em volta da cabeça de Phil conforme o seguia, descendo até a praia. Tinha
certeza de que eram piores agora do que quando ela era criança. Maldito aquecimento global. As criaturinhas ficavam ainda mais malignas, e o clima, cada vez pior.
Quando a trilha se nivelou, ela pôde ver alguns dos alunos de River encolhidos sob uma protuberância, fumando. Talvez se ela ficasse contra o vento, a fumaça espantasse
os mosquitos. Além deles, River andava de um lado a outro, com o telefone no ouvido e o longo cabelo escuro preso num rabo de cavalo que saía pela abertura de trás
do boné de beisebol. O que gelou Karen mais do que a chuva foi o resplendor do macacão de papel branco que River estava usando. A antropóloga se virou, avistou-os
e encerrou abruptamente sua ligação telefônica.
- Só estava dizendo para o Ewan não me esperar em casa pelos próximos dias - ela disse, com tristeza.
- Então, o que você encontrou? - perguntou Karen, a pressa aniquilava qualquer cortesia.
- Vamos entrar e eu lhe mostrarei.
Eles a seguiram para dentro da caverna, as luzes de trabalho criando um padrão abstrato de escuridão e luz ao qual demorou um pouco para que os olhos se ajustassem.
A equipe de remoção havia parado de trabalhar, e todos estavam sentados por ali, comendo sanduíches e tomando refrigerante.
Karen e Phil funcionaram como ímãs para o interesse deles, e seus olhos seguiam os policiais o tempo todo.
River os conduziu até onde o desmoronamento de pedras havia bloqueado a passagem para o centro do rochedo. Quase todas as rochas e pedras pequenas haviam sido removidas,
deixando uma abertura estreita. Ela iluminou o cascalho restante com uma lanterna potente, mostrando que o desmoronamento em si se estendia por apenas 1,20m.
- Ficamos surpresos ao descobrir como era pouco extenso. Esperávamos que se prolongasse por uns seis metros ou mais. Isso me deixou desconfiada logo de cara.
- Como assim? - perguntou Phil.
- Não sou geóloga. Mas, pelo que entendi das explicações dos meus colegas de Ciências Geológicas, é preciso haver muita pressão para que ocorra um desmoronamento
natural. Quando estavam extraindo minério por aqui, a escavação produzia muito estresse nas rochas acima, então ocorriam grandes fraturas e desmoronamentos. É essa
quantidade de pressão geológica que provoca desmoronamentos do teto em cavernas antigas como esta. Elas estão aqui há oito mil anos. Simplesmente não entram em colapso
sem motivo. Mas, quando acontece, é como se retirassem o pilar central de uma ponte. E ocorre um desmoronamento enorme. - Enquanto falava, River movimentava o facho
da lanterna ao redor, mostrando que o teto estava surpreendentemente sólido nos dois lados do desmoronamento. - Por outro lado, se você souber o que está fazendo,
uma pequena carga explosiva criará uma queda controlada que só afetará uma área relativamente pequena. - Ela ergueu as sobrancelhas para Karen. - O tipo de coisa
que fazem o tempo todo nas minas.
- Você está dizendo que este desmoronamento foi provocado deliberadamente? - perguntou Karen.
- Você precisaria de um especialista para lhe dar uma resposta definitiva, mas, baseada no pouco que sei, eu diria que, na minha opinião, parece que sim.
- Ela se virou e apontou a lanterna para uma seção da parede da caverna a aproximadamente um metro e meio do chão. Havia um buraco mais ou menos cônico na rocha,
com listras pretas manchando o arenito vermelho. - Isto aqui me parece um buraco para carga explosiva - disse River.
- Merda - disse Karen. - E agora?
- Bem, quando vi isso, achei que precisávamos pisar com muita cautela, depois que abríssemos uma passagem. Então, coloquei o macacão e entrei pessoalmente.
Há, talvez, uns três metros de passagem e, então, ela se abre para uma câmara bastante grande. Talvez cinco metros por quatro.
- River suspirou. - Vai ser um pesadelo para analisar.
- E existem razões para analisar? - perguntou Phil.
- Ah, sim. Existe uma razão. - Ela direcionou a lanterna para os pés deles. - Vocês podem ver que o solo é apenas terra batida. Logo na entrada da câmara,
à esquerda, a terra está solta. Ela foi pisoteada, mas pude ver que era de textura diferente do resto do solo. Coloquei algumas lâmpadas e uma câmera e comecei a
cavar a terra. - A voz de River havia ficado fria e distante. - Não precisei ir muito longe. A cerca de quinze centímetros de profundidade, encontrei um crânio.
Não mexi nele. Quis que vocês o vissem in situ antes de prosseguirmos. - Ela acenou para que eles voltassem da área do desmoronamento. - Vocês precisam colocar o
macacão - ela disse, virando-se para os alunos. - Jackie, você poderia me trazer macacões e protetores de sapatos para a investigadora Pirie e para o sargento Parhatka?
Enquanto eles se vestiam, River repassou suas opções. Resumiam-se a deixar os alunos trabalharem sob sua estrita supervisão ou trazer a equipe de peritos criminais
da polícia.
- A decisão é sua - disse River. - Só lhe digo que não apenas somos a opção mais barata, como também especialistas treinados recentemente. Não sei qual é
seu nível de conhecimento de arqueologia e antropologia, mas estou apostando que uma força policial pequena como a de Fife não conta com uma equipe de especialistas
treinada nas mais recentes técnicas em sua folha de pagamento.
Karen lançou-lhe aquele olhar que fazia seus agentes voltarem à infância.
- Não tivemos nenhum caso como este, durante o tempo em que venho servindo à polícia. Para qualquer coisa fora do normal, sempre usamos especialistas externos.
O ponto principal é garantir que a evidência seja aceita no tribunal. Sei que você, como especialista, é uma testemunha qualificada, mas seus alunos não são. Terei
que consultar o Biscoito quanto a este caso, mas acho que devemos continuar com o seu time. Deve haver
duas câmeras filmando o tempo todo, entretanto, e você tem de estar no local sempre que eles estiverem trabalhando. - Ela ajustou o macacão, feliz de que Jackie
houvesse lhe dado um suficientemente grande para acomodar suas generosas proporções. Os peritos criminais nem sempre eram tão atenciosos. Ela achava que eles, às
vezes, faziam de propósito, para fazê-la se sentir constrangida no que consideravam como "seu" domínio. - Vamos dar uma olhada, então.
River entregou uma lanterna a cada um deles.
- Ainda não demarquei uma rota de aproximação - ela disse, enquanto ajustava uma lanterna de cabeça. - Apenas fiquem o máximo possível à esquerda.
Eles seguiram sua lâmpada sacolejante para dentro da escuridão. Karen deu um último olhar por cima do ombro, mas era difícil ver qualquer coisa além da silhueta
de Phil. A qualidade do ar mudou quando passaram pelos restos do desmoronamento, a salinidade substituída por um leve cheiro de bolor, matizado pela acidez dos antigos
excrementos de pássaros e morcegos. Um brilho opaco à frente deles indicava a luz da câmera de vídeo, que ainda estava filmando.
River parou no ponto em que as paredes se abriam para a câmara. Sua lanterna multiplicava a luz da câmera, revelando uma pequena área de chão de terra onde o solo
havia sido varrido, formando uma depressão rasa. Resplandecendo em tom opaco em contraste à terra marrom-avermelhada havia o contorno inconfundível de um crânio
humano.
- Você estava certa - Phil disse baixinho.
- E você não faz ideia de como isso me deixa puta da vida - Karen respondeu enfaticamente, observando todos os detalhes. Ela se virou, tentando concatenar
os pensamentos. - Pobre filho da puta, quem quer que você seja.
Terça-feira, 3 de julho de 2007; Glenrothes
Karen estacionou na sua vaga na central e desligou o carro. Ficou sentada ali por um longo tempo, observando a chuva cobrir o para-brisa. Aquela não seria a manhã
mais fácil da sua carreira. Tinha um cadáver, mas, tecnicamente, era o cadáver errado. Tinha de impedir que Biscoito se
precipitasse e deduzisse que aquele era um dos seqüestradores de Catriona Maclennan Grant. E, para isso, ela teria de admitir que vinha trabalhando em algo que ele
não sabia. Phil estava certo. Ela não deveria ter cedido ao desejo de colocar a mão na massa. Não era um grande consolo o fato de ter feito mais progresso no caso
de Mick Prentice do que os policiais teriam conseguido. Sair dessa sem uma advertência formal seria um verdadeiro milagre.
Suspirando, ela pegou seus arquivos e correu pela chuva intensa. Empurrou a porta, com a cabeça baixa, dirigindo-se diretamente para os elevadores. Mas a voz de
Dave Cruickshank fez com que ela detivesse os passos.
- Investigadora Pirie - ele chamou. - Tem uma senhora aqui que quer vê-la.
Karen se virou no instante em que Jenny Prentice se levantava, hesitante, de uma cadeira na recepção. Ela obviamente havia se esforçado. O cabelo grisalho estava
trançado com esmero, e a roupa era claramente a que ela reservava para ocasiões especiais. O casaco de lã vermelho-escuro normalmente teria sido absurdamente quente
para o mês de julho, mas não este ano.
- Sra. Prentice - disse Karen, esperando que sua decepção não fosse tão aparente.
- Preciso falar com você - disse Jenny. - Não vai demorar muito - acrescentou, vendo Karen olhar de relance para o relógio na parede.
- Ótimo. Porque não tenho muito tempo - disse Karen.
Havia uma pequena sala de entrevistas perto do saguão, e ela a guiou para lá. Deixou cair as pastas sobre uma cadeira, num canto, então se sentou de frente para
Jenny, numa mesinha. Não estava com humor para bajulação.
- Suponho que a senhora tenha vindo responder às perguntas que tentei lhe fazer ontem.
- Não - respondeu Jenny, tão teimosa quanto a própria Karen podia ser. - Vim dizer para interromper tudo.
- Interromper o quê?
- Essa suposta caça a Mick. - Seus olhos se fixaram de forma desafiadora nos de Karen. - Ele não está desaparecido. Eu sei onde ele está.
Aquilo era a última coisa que Karen tinha esperado ouvir.
- O que quer dizer com sabe onde ele está?
Jenny deu de ombros.
- Não sei de que outra maneira posso explicar. Há anos eu sei onde ele está. E que ele não quer mais saber da gente.
- Então, por que manteve em segredo? Por que só agora estou sabendo disso? A senhora não conhece o princípio de desperdício de tempo policial? - Karen sabia
que estava quase gritando, mas não se importava.
- Eu não queria magoar Misha. Como você se sentiria se alguém dissesse que seu pai não queria mais nada com você? Eu quis poupá-la.
Karen a encarou com dúvidas. A voz e a expressão de Jenny mostravam convicção. Mas Karen não podia se dar ao luxo de acreditar piamente nela.
- E quanto a Luke? Com certeza a senhora desejaria fazer todo o possível para salvá-lo. Misha não tem o direito de pedir a ajuda do pai?
Jenny olhou para ela com desdém.
- Você acha que eu já não pedi a ajuda dele? Eu implorei. Enviei a ele fotos do pequeno Luke para tentar fazê-lo mudar de ideia. Mas ele apenas disse que
o garoto não significava nada para ele. - Ela desviou os olhos. - Acho que ele tem outra família agora. Nós não temos nenhuma importância para ele. Os homens parecem
lidar com isso melhor do que as mulheres.
- Vou ter que falar com ele - disse Karen.
Jenny negou com a cabeça.
- De jeito nenhum.
- Olhe, Sra. Prentice - Karen disse em meio à sua crescente irritação -, um homem foi dado como desaparecido. A senhora diz que ele não está desaparecido,
mas só tenho a sua palavra. Preciso confirmar o que a senhora está me dizendo. Eu não estaria fazendo meu trabalho direito se não fizesse isso.
- E o que acontece depois? - Jenny agarrou a borda da mesa. - O que você vai dizer quando Misha lhe perguntar como vai a investigação? Você vai mentir para
ela? Isso faz parte do seu trabalho? Você mente para ela e espera que ela nunca descubra a verdade através de outros policiais, no futuro? Ou vai dizer a verdade
e deixar que Mick destrua o coração dela de novo?
- Não é meu trabalho fazer esses julgamentos. Devo descobrir a verdade e, depois disso, não está mais nas minhas mãos. A senhora precisa me dizer onde Mick
está, Sra. Prentice. - Karen sabia que era difícil resistir quando ela usava todo o poder de sua personalidade. Mas aquela mulherzinha desafiadora estava retribuindo
na mesma moeda.
- Tudo que vou dizer é que você está desperdiçando seu tempo procurando por uma pessoa que não está desaparecida. Interrompa a investigação, inspetora, apenas
isso.
Alguma coisa em relação a Jenny Prentice não cheirava bem. Karen não conseguia identificar o que era, mas, até que conseguisse, não cederia nem um centímetro. Ela
se levantou e afastou-se decidida para apanhar suas pastas.
- Não acredito na senhora. E, de qualquer maneira, já é tarde demais, Jenny - disse, virando-se para encará-la. - Encontramos um corpo.
Ela já havia lido sobre a cor desaparecer do rosto das pessoas, mas nunca antes tinha visto isso acontecer.
- Não pode ser - a voz de Jenny era um sussurro.
- Pode ser sim, Jenny. E o local em que o encontramos... graças a você, sabemos que é um lugar que Mick costumava frequentar. - Karen abriu a porta. - Entraremos
em contato.
Ela esperou acintosamente até Jenny recobrar-se e se arrastar até a porta, uma mulher profundamente transformada por aquelas palavras. Pela primeira vez, Karen não
se sentiu nem um pouco solidária. Quaisquer que fossem os motivos de Jenny Prentice para aquele pequeno show, Karen tinha certeza de que era exatamente isso que
havia sido: um show. Jenny não sabia onde estava Mick Prentice mais do que a própria Karen.
Tudo que precisava fazer agora era entender por que era tão importante para Jenny que a polícia desistisse da investigação. Outro encontro, outro quebra-cabeça.
Atualmente, parecia que vinham sempre de mãos dadas. Havia semanas em que era impossível obter uma resposta direta.
- Mas essa notícia é fantástica, inspetora.
Não era sempre que os relatórios de Karen Pirie traziam satisfação a Simon Lees, muito menos alegria. Mas ele não podia esconder o fato de que
estava duplamente feliz com o que ela lhe apresentara naquele dia. Não apenas tinham descoberto um corpo que traria algum avanço para um caso que estava parado havia
mais de vinte anos, como também o haviam conseguido com um orçamento baixíssimo.
Então, um terrível pensamento lhe ocorreu.
- É o esqueleto de um adulto? - perguntou, a apreensão apertando-lhe o peito.
- Sim, senhor.
Por que ela parecia tão chateada com aquilo? Ela havia atuado de acordo com um pressentimento e tinha obtido um bom resultado. No lugar dela, ele estaria mais feliz
que cachorro com dois rabos. Bem, na verdade, era assim mesmo que ele se sentia. Aquela operação era dele, no final das contas; trazia bons resultados tanto para
ele quanto para seus oficiais. Pelo menos uma vez, ela lhe trazia luz, em vez de merda.
- Muito bem - ele disse, bruscamente, empurrando a cadeira para trás. - Acho que devemos ir logo a Rotheswell contar as novidades a Sir Broderick. - Uma série
de expressões passou pela cara de bolacha de Karen, terminando no que se parecia muito com apreensão. - Qual é o problema? Você ainda não contou para ele, contou?
- Não, não contei - ela disse lentamente. - Porque não estou realmente convencida de que tenha alguma relação com o desaparecimento de Adam Grant.
Ele entendeu as palavras, mas elas não faziam nenhum sentido. Ela havia organizado aquela operação toda com base no fato de o desmoronamento da caverna ter sido
descoberto após o desastre da entrega do resgate. Ela havia sugerido que um dos seqüestradores poderia estar embaixo das pedras. Ele jamais teria autorizado a operação,
não fosse por isso. Mas agora ela parecia sugerir que o corpo não tinha nada a ver com o caso que estava investigando. Era coisa saída diretamente de "Alice no País
do Espelho".
- Não entendo - ele disse num tom queixoso. - Você me disse que achava que existia um barco. Sugeriu que poderia haver um corpo. E encontrou um corpo. Mas,
em vez de comemorar o fato de estar certa, você está me dizendo que é o corpo errado.
- Eu não conseguiria explicar melhor - ela disse, atrevendo-se a sorrir.
- Mas por quê? - Ele podia se ouvir quase gritando e pigarreou ruidosamente. - Por quê? - repetiu, uma oitava mais baixo.
Ela se mexeu na cadeira e cruzou as pernas.
- É um pouco difícil de explicar.
- Não me importa. Comece de algum lugar. De preferência, do início.
Lees não podia impedir suas mãos de se retorcerem. Ele gostaria de ainda ter a bolinha antiestresse que os filhos lhe deram no Natal, a bola antiestresse que ele
havia jogado fora porque era controlado demais para precisar de uma coisa daquelas.
- Tivemos um caso muito incomum reaberto no outro dia... - ela começou. Parecia hesitante, uma versão dela que ele nunca vira antes. Se aquilo não fosse tão
irritante, ele até teria se divertido. - Um homem dado como desaparecido pela filha.
- Isso não é nada incomum - ele retrucou.
- É sim, quando o desaparecimento aconteceu em 1984. No auge da greve dos mineiros - Karen devolveu na mesma medida, sem qualquer hesitação. - Dei uma olhadinha
no caso e descobri que havia duas pessoas com boas razões para querer esse cara fora do caminho. Ambas trabalhavam no setor de mineração. Ambas conheciam o método
de explosão de rochas. Nenhuma delas teria tido muita dificuldade para pôr as mãos em cargas explosivas. E, como tentei lhe explicar antes, senhor, todo mundo por
aqui conhece as cavernas. - Ela fez uma pausa momentânea e olhou agressivamente para ele. Era um olhar que beirava a insubordinação. - Eu sabia que o senhor jamais
aprovaria a escavação do desmoronamento por causa de um mineiro em greve dado como desaparecido.
- Então você mentiu? - Lees atacou. Ele não iria suportar aquela rebelião arrogante nem por mais um minuto.
- Não, não menti - ela respondeu calmamente. - Apenas fui um pouco criativa com a verdade. O desmoronamento na caverna realmente foi descoberto depois que
Catriona Maclennan Grant morreu. E o helicóptero não pôde encontrar o barco no qual os seqüestradores escaparam. O que lhe dei foi uma hipótese razoável. Mas, no
balanço das probabilidades, estou dizendo que é mais provável que o corpo seja de Mick Prentice do que de um sequestrador desconhecido.
Lees podia sentir o sangue latejando em sua cabeça.
- Inacreditável.
- Na verdade, senhor, acho que tem de admitir que obtivemos um bom resultado. Quer dizer, não gastamos todo esse dinheiro à toa. Pelo menos temos um corpo
para justificá-lo. O.k., talvez isso nos dê mais perguntas do que respostas. Mas, sabe, sempre dizemos que nosso trabalho é falar pelos mortos, obter justiça para
pessoas que não conseguem fazê-lo por si mesmas. Se o senhor olhar por esse ângulo, é uma oportunidade de servirmos.
Lees sentiu algo estalar dentro de sua cabeça.
- Uma oportunidade? Em que planeta você vive? Isso é um maldito pesadelo. Você deveria concentrar todos os seus recursos em descobrir quem matou Catriona
Grant e o que aconteceu com o filho dela, e não desperdiçar tempo com um caso de pessoa desaparecida em 1984. O que quer que eu diga a Sir Broderick? "Vamos cuidar
da sua família quando a inspetora Pirie tiver tempo sobrando"? Você acha que é a dona da lei - ele explodiu. - Você simplesmente atropela qualquer protocolo. Você
segue seus palpites como se estivessem baseados em algo além de intuição feminina. Você... você...
- Cuidado, senhor. Está beirando o sexismo - Karen disse docemente, os olhos arregalados com inocência fingida. - Os homens também têm intuição. Só que a
chamam de lógica. Olhe pelo lado positivo: se for Mick Prentice, já reunimos um monte de informações sobre o que estava acontecendo por volta da época em que ele
desapareceu. Temos uma vantagem inicial nesse inquérito de assassinato. E não estaremos ignorando o caso Grant. Estou trabalhando em conjunto com a polícia italiana,
mas essas coisas levam tempo. É claro, se eu pudesse ir para a Itália, tudo poderia se acelerar... não é?
- Você não vai a lugar algum. Quando isso tudo terminar, pode ser que você nem sequer... - O telefone tocou no final da sua ameaça. Ele o agarrou. - Achei
que tivesse dito para não passar nenhuma chamada, Emma... Sim, eu sei quem é a Dra. Wilde... - Ele suspirou rispidamente. - Está bem. Mande-a entrar. - Recolocou
o fone no gancho cuidadosamente e olhou furioso para Karen. - Ainda voltaremos a falar neste assunto. A Dra. Wilde está aqui. Vamos ver o que ela tem a dizer.
A mulher que entrou não era o que ele havia esperado. Para começo de conversa, ela parecia uma adolescente, ainda esperando por sua espichada
de crescimento. Tinha pouco mais de um metro e meio e era magra como um galgo. O cabelo escuro preso, deixando à mostra um rosto dominado por enormes olhos cinzentos,
e a boca larga acentuavam ainda mais a semelhança. Ela usava botas de construção, jeans e camisa de brim desbotado quase completamente em alguns pontos, sob uma
surrada jaqueta impermeável. Lees nunca tinha visto alguém que se parecesse menos com um acadêmico. Ela estendeu uma mão delgada, dizendo:
- Você deve ser Simon Lees. É um prazer conhecê-lo.
Ele olhou para a mão dela, imaginando os lugares em que havia estado e as coisas que havia tocado. Tentando não estremecer, tomou seus dedos frios rapidamente e
indicou com um gesto a outra cadeira de visitante.
- Obrigado por sua ajuda - ele disse, tentando conter a raiva, pelo menos por enquanto.
- É um prazer - disse River, num tom realmente sincero. - É uma excelente oportunidade para trabalhar em um caso real com meus alunos. Eles têm uma grande
experiência de laboratório, mas não se pode comparar isso com a situação real. E eles vêm fazendo um trabalho incrível.
- É o que parece. Agora, imagino que você está aqui porque tem algo a informar. - Ele sabia que parecia tão rígido quanto um dos cadáveres dela, mas era a
única forma de conseguir se manter sob controle. River trocou um olhar rápido e ininteligível com Karen, e ele sentiu o sangue ferver novamente. - Ou precisa de
acesso a mais alguma instalação? É isso?
- Não. Temos acesso a tudo que precisamos. Eu só queria atualizar a investigadora Pirie e, quando o sargento Parhatka me disse que ela estava numa reunião
com você, achei que seria uma chance de conhecê-lo. Espero não ter interrompido nada.
River inclinou-se para a frente, oferecendo-lhe um sorriso que o fez lembrar-se do de Julia Roberts. Era difícil manter a raiva diante de um sorriso daqueles.
- Absolutamente - ele disse, sentindo-se acalmar a cada segundo. - É sempre bom identificar o rosto com o nome.
- Mesmo quando se trata de um nome bobo como o meu, que significa "rio", em inglês - River disse, melancolicamente. - Pais hippies, antes que você pergunte.
Bem, você deve estar querendo saber o que eu descobri até agora. - Ela apanhou a agenda eletrônica e pressionou algumas teclas.
- Trabalhamos até tarde da noite para limpar o esqueleto e removê-lo da cova rasa. - Ela se virou para Karen. - Entreguei a Phil uma cópia do vídeo. - De
volta à agenda eletrônica. - Fiz um exame preliminar hoje cedo e posso lhes dar algumas informações. Nosso esqueleto é um homem. Tem mais de vinte anos e menos de
quarenta. Tem um pouco de cabelo, mas é difícil dizer de que cor era originalmente. Foi manchado pela terra. Ele passou por alguns tratamentos dentários, portanto,
assim que vocês reduzirem as possibilidades, podemos dar seguimento com base nisso. E poderemos coletar amostras de DNA.
- Quando ele foi enterrado? - Lees perguntou.
River deu de ombros.
- Existem testes mais extensivos, mais caros e mais demorados que podemos fazer. Mas, no momento, é difícil ser precisa quanto ao tempo que ele está sob a
terra. No entanto, posso dizer com um alto grau de certeza que ele ainda estava vivo durante a maior parte do ano de 1984.
- Isso é incrível - Lees exclamou. - Vocês da criminalística me espantam.
Karen lançou-lhe um olhar frio.
- Havia moedas soltas no bolso dele, não é?
- Na verdade, não havia bolso nenhum - disse River. - Ele vestia roupas de algodão e lã, então não sobrou quase nada. As moedas estavam caídas dentro de sua
cintura pélvica. - Ela sorriu novamente para Lees. - Desculpe, dessa vez não é ciência. Só observação.
Lees pigarreou, sentindo-se tolo.
- Há mais alguma coisa que você possa nos dizer, neste estágio?
- Ah, sim - respondeu River. - Ele não teve, de modo algum, morte natural.
San Gimignano
Enquanto dirigia em volta do estacionamento pela terceira vez à procura de alguma vaga, Bel fez sua memória regressar a como tinha sido San Gimignano antes de haver
se tornado um Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Não havia dúvidas de que valia a classificação. Na idade Média, os habitantes usavam a pedra calcária cinza em
suas construções que acabaram formando um labirinto apertado de ruas que convergem para a
Piazza delia Cisterna, a praça central com seu antiquíssimo poço. Quando o crescimento da cidade ameaçou ultrapassar as enormes muralhas, eles optaram por construir
para cima, em vez de para os lados. Dúzias de torres se erguiam, na linha do horizonte, conferindo uma aparência recortada e cheia de lacunas, quando vista da planície
abaixo. Definitivamente singular. Definitivamente patrimônio da humanidade. E definitivamente arruinada por seu status.
Bel visitara pela primeira vez aquela espetacular cidadezinha toscana no começo dos anos oitenta, quando quase não havia turistas nas ruas. Naquela época, existiam
lojas de verdade: padarias, quitandas, açougues, sapatarias. Lojas onde se podia comprar sabão em pó, cuecas ou um pente. Os moradores locais, de fato, tomavam café
nos bares e cafeterias. Agora, a cidade estava transformada. A única opção para comprar comida e roupas de verdade era na feira das quintas. Com exceção disso, todo
o resto estava voltado para turistas. Enotecas vendendo a preços abusivos vinhos ver-naccia e chianti que os moradores locais não tomariam nem que lhes pagassem.
Lojas de artigos de couro, todas vendendo bolsas e carteiras idênticas, produzidas em fábricas. Lojas de suvenires e sorveterias. E, é claro, galerias de arte para
aqueles com mais dinheiro do que bom-senso. Bel esperava que fossem os moradores locais que estivessem ganhando todo aquele dinheiro, porque eram eles que pagavam
o preço mais alto.
Pelo menos as ruas não estavam muito lotadas assim tão cedo, antes da chegada dos ônibus de turistas. Bel finalmente se espremeu numa vaga do estacionamento e dirigiu-se
para o grande portal de pedra que guardava a entrada principal da cidade. Mal havia percorrido trinta metros quando encontrou a primeira galeria de arte. O dono
acabara de levantar as persianas, quando ela chegou. Bel deu uma avaliada nele: provavelmente da sua idade, pele lisa e cabelo escuro, óculos de armação estilosa
que faziam seus olhos parecerem pequenos demais, um pouco gorducho para o jeans apertado e a camisa da Ralph Lauren. Um apelo a sua vaidade provavelmente seria a
melhor abordagem. Ela esperou pacientemente e, então, seguiu-o para dentro. As paredes estavam cobertas por gravuras e aquarelas repletas de clichês da Toscana:
ciprestes, girassóis, casas de campo rústicas, papoulas. Todas eram benfeitas e bonitas, mas não penduraria nenhuma delas em sua casa. Quadros produzidos em série
para os viajantes dos ônibus de
turismo que tentavam eliminar mais um lugar de sua lista de pontos turísticos. Meu Deus, ela estava ficando esnobe, depois de velha.
O dono se instalara atrás de uma escrivaninha com tampo de couro, obviamente projetada para parecer uma antiguidade. Provavelmente era da mesma idade que o carro
dele, Bel pensou. Ela se aproximou, estampando seu sorriso menos predatório no rosto.
- Bom dia - disse. - Que coleção maravilhosa de quadros. Feliz de quem tem um deles em sua casa.
- Nós nos orgulhamos da qualidade das nossas obras de arte - ele disse, sem uma centelha sequer de ironia.
- Incrível. Elas fazem a paisagem tomar vida. Será que você poderia me ajudar?
Ele a mediu de cima a baixo. Ela podia vê-lo colocando preço em tudo, do seu vestido leve da Harvey Nicks à bolsa de palha comprada na feira, antes de decidir quanta
energia colocar no próprio sorriso. Ele deve ter gostado do que viu; ela ganhou uma exibição completa de seus dentes cosme-ticamente tratados.
- Será um prazer - ele disse. - O que você está procurando? - Ele se levantou, ajeitando a camisa de forma a esconder os quilos extras.
Um sorriso de desculpas.
- Não estou realmente procurando um quadro - ela disse. - Estou procurando por um pintor. Sou jornalista. - Bel tirou seu cartão do bolso do vestido e o entregou
a ele, ignorando o olhar frio que substituiu a simpatia anterior. - Estou procurando por um pintor britânico de paisagens que vive por aqui, ganhando a vida, durante
os últimos vinte anos, mais ou menos. A dificuldade é que eu não sei o nome dele. Começa com D... David, Darren, Daniel. Algo assim. Ele tem um filho de uns vinte
e poucos anos, chamado Gabriel. - Ela fizera cópias das fotos de Renata e as tirou da bolsa. - Este é o filho, e este é o pintor que quero encontrar. Meu editor
acha que existe algo interessante aí. - Ela deu de ombros. - Sei lá. Preciso conversar com ele, descobrir qual é sua história.
Ele olhou as fotos de relance.
- Não o conheço - disse. - Todos os meus artistas são italianos. Você tem certeza de que ele é profissional? Existem muitos amadores que vendem coisas na
calçada. Um monte deles é estrangeiro.
- Ah, não, ele é profissional, sim. Tem representantes aqui e em Siena.
- Ela indicou os quadros nas paredes com as mãos abertas. - É claro que não é bom o bastante para você. - Ela pegou as fotos de volta. - Obrigada pelo seu
tempo. - Ele já havia se virado, encaminhando-se para a confortável cadeira rodeada pelos quadros sem alma. Sem venda, não havia conversa.
Não faltavam galerias de arte, isso ela sabia. Mais duas e, depois, faria uma pausa para um café e um cigarro. Outras três, daí um sorvete. Pequenos prazercs para
impeli-la durante o trabalho.
Não chegou ao sorvete. Na quinta galeria que tentou, encontrou ouro. Era um espaço claro e arejado, os quadros e esculturas espalhados de forma a serem apreciados.
Bel de fato achou agradável caminhar até a escrivaninha nos fundos. Dessa vez, era uma mulher de meia-idade atrás de uma mesa moderna e funcional coberta de brochuras
e catálogos. Ela usava o uniforme de linho amarrotado da camada mais descontraída das mulheres italianas de classe média. Ergueu os olhos do computador e dirigiu
a Bel um olhar vago, levemente assustado.
- Posso ajudar? - perguntou, as palavras se atropelando.
Bel proferiu seu discurso ensaiado. Depois de algumas frases, a mão da mulher voou para cobrir sua boca, os olhos se arregalando em choque.
- Oh, meu Deus - ela disse. - Daniel. Você quer dizer o Daniel?
Bel tirou as fotos da bolsa e as mostrou para a mulher. Ela pareceu prestes a explodir em lágrimas.
- Este é o Daniel - ela disse. Ela estendeu a mão e tocou a cabeça de Gabriel com a ponta dos dedos. - E o Gabe. Pobrezinho do Gabe.
- Não entendo - disse Bel. - Há algum problema?
A mulher respirou profundamente e estremeceu.
- Daniel está morto. - Ela abriu as mãos num gesto de tristeza. - Ele morreu em abril passado.
Agora foi a vez de Bel sentir um golpe.
- O que aconteceu?
A mulher voltou a se reclinar em sua cadeira e correu os dedos pelo cabelo crespo e escuro.
- Câncer de pâncreas. Ele foi diagnosticado pouco antes do Natal. Foi horrível. - Lágrimas cintilaram em seus olhos. - Não deveria ter acontecido
com ele. Ele era... era um homem tão bom. Muito gentil. Muito reservado. E amava tanto o seu menino. A mãe de Gabe morreu no parto. Daniel o criou sozinho e
fez um excelente trabalho.
- Sinto muitíssimo - disse Bel. Pelo menos o sangue no chão da villa Totti não era de Daniel. - Eu não fazia ideia. Só ouvi falar desse maravilhoso artista
britânico que tinha se estabelecido por aqui há alguns anos. Eu queria escrever uma matéria sobre ele.
- Você conhece o trabalho dele? - A mulher se levantou e acenou para que Bel a seguisse. Elas terminaram numa pequena sala nos fundos da galeria. Na parede
havia uma série de trípticos, representações abstratas de paisagens terrestres e marítimas. - Ele também pintava aquarelas - disse a mulher. - As aquarelas eram
mais figurativas. Ele conseguia vender mais delas. Mas eram estas que ele amava.
- São esplêndidas - disse Bel com sinceridade. Realmente gostaria de ter conhecido o homem que tinha visto o mundo daquela maneira.
- Sim. São mesmo. Detesto o fato de que não haverá mais delas. - Estendeu a mão e roçou a pintura acrílica texturizada com a ponta dos dedos. - Tenho saudade
dele. Era tanto um amigo quanto um cliente.
- Será que você poderia me colocar em contato com o filho dele? - perguntou Bel, sem perder de vista o motivo pelo qual estava ali. - Talvez eu ainda pudesse
escrever a matéria. Uma espécie de tributo.
A mulher sorriu tristemente.
- Daniel sempre desprezou publicidade quando estava vivo. Ele não tinha nenhum interesse no culto da personalidade. Queria que suas pinturas falassem por
ele. Mas agora... seria bom ver seu trabalho reconhecido. Talvez Gabe goste disso. - Ela balançou a cabeça lentamente.
- Você poderia me dar o telefone dele? Ou o endereço? - perguntou Bel.
A mulher pareceu ligeiramente chocada.
- Ah, não, eu não poderia fazer isso. Daniel sempre insistiu em manter sua privacidade. Por favor, me dê seu cartão e entrarei em contato com Gabe. Perguntarei
a ele se está disposto a conversar com você sobre o pai.
- Então, ele ainda está por aqui?
- E onde mais ele estaria? A Toscana é o único lar que ele conhece. Todos os seus amigos estão aqui. Nós estamos nos revezando para garantir que ele tenha
pelo menos uma refeição decente por semana.
Ao voltarem até a escrivaninha, Bel se deu conta de que não havia descoberto o sobrenome de Daniel.
- Você tem algum folheto ou catálogo do trabalho dele? - ela perguntou.
A mulher assentiu.
- Vou imprimir para você.
Dez minutos depois, Bel estava de volta à rua. Pelo menos tinha algo de concreto em que se agarrar. A caçada havia começado.
Coaltown of Wemyss
As casinhas caiadas que margeavam a rua principal eram impecáveis, com suas varandas sustentadas por troncos rústicos de árvore. Elas sempre foram bem cuidadas porque
eram o que as pessoas viam, ao passar de carro pela vila. Atualmente, as ruas de trás estavam igualmente bonitas. Mas Karen sabia que nem sempre fora assim. As cabanas
na Plantation Row haviam sido uma verdadeira favela, ignoradas por seu proprietário porque aquilo que os olhos educados da sociedade não viam não merecia seu tempo.
Mas mesmo dos degraus da entrada daquela casinha em particular, Karen desconfiava que, se Effie Reekie se visse num buraco horroroso, teria conseguido transformá-lo
num pequeno paraíso. A porta da frente parecia ter sido lavada naquela manhã, não havia uma só flor murcha na jardineira da janela, e as cortinas de renda caíam
em pregas perfeitas. Ela se perguntou se Effie e sua mãe poderiam ter sido gêmeas separadas ao nascer.
- Você vai bater ou não? - perguntou Phil.
- Desculpe. Só estava tendo um momento de déjà vu. Ou algo parecido. - Karen apertou a campainha, sentindo-se culpada por deixar sua impressão digital nela.
A porta se abriu quase imediatamente. A sensação de estar numa distorção temporal continuou. Karen nunca mais tinha visto uma mulher com um turbante de lenço na
cabeça desde que a avó morrera. Com seu guarda-pó e as mangas enroladas, Effie Reekie parecia uma versão aposentada de Rosie, a Rebitadeira.* Ela olhou Karen de
cima a baixo, como se avaliasse se ela estava limpa o bastante para ter permissão de cruzar a soleira.
* Rosie, a Rebitadeira, é um ícone cultural nos EUA que representa os seis milhões de mulheres incorporadas à força de trabalho do país na Segunda Guerra Mundial.
(N.T.)
- Sim? - ela disse. Não eram boas-vindas.
Karen apresentou a si mesma e a Phil. Effie franziu a testa, aparentemente ofendida em ter oficiais da polícia à sua porta.
- Nunca vi nada nem ouvi nada - ela disse abruptamente. - Essa sempre foi minha política.
- Precisamos conversar com a senhora - Karen disse gentilmente, sentindo a fragilidade que a mulher idosa tentava desesperadamente esconder.
- Não precisam, não - respondeu Effie.
Phil deu um passo à frente.
- Sra. Reekie - ele disse -, mesmo que a senhora não tenha nada para nos dizer, eu ficaria agradecido até o fim da vida se a senhora tivesse a bondade de
nos oferecer uma xícara de chá. Minha garganta está mais seca que o Saara.
Ela hesitou, olhando de um para o outro com olhos ansiosos. Seu rosto se contorcia na luta entre a hospitalidade e a vulnerabilidade.
- Então, é melhor vocês entrarem - ela disse, finalmente. - Mas não tenho nada para contar a vocês.
A cozinha estava imaculada. River poderia ter realizado uma autópsia sobre a mesa sem correr qualquer risco de contaminação. Karen ficou satisfeita por ter adivinhado
corretamente. Assim como sua mãe, Effie Reekie via cada superfície disponível como mostruário para ornamentos e enfeitinhos. Aquilo era, pensou Karen, um desperdício
absurdo dos recursos do planeta. Tentou não pensar em todas as tralhas que havia trazido parajcasa depois de passeios escolares.
- A senhora tem uma linda casa - ela disse.
- Sempre tentei mantê-la em ordem - Effie falou enquanto se ocupava com a chaleira. - Eu nunca deixava Ben fumar dentro de casa. Ele era o meu marido, o Ben.
Morreu já faz cinco anos, mas era bem importante por aqui. Todo mundo conhecia Ben Reekie. Não haveria a confusão que existe nesta rua atualmente se o meu Ben ainda
estivesse vivo. Não, senhor. Não haveria, não.
- É sobre Ben que precisamos falar com a senhora, Sra. Reekie - disse Karen.
Ela se virou para eles, olhos arregalados como os de um coelho diante dos faróis de um carro.
- Não há nada para falar. Ele já morreu há cinco anos. Câncer. Câncer de pulmão. Anos fumando. Anos de reuniões na subseção, e todos fumando feito chaminés.
- Ele era secretário da subseção, não era? - perguntou Phil. Ele estava observando um conjunto de pratos decorativos dispostos na parede. Representavam várias
comemorações na história do movimento sindical. - Um trabalho importante, principalmente durante a greve.
- Ele amava seus homens - Effie disse com veemência. - Teria feito qualquer coisa por eles. Ficou devastado em ver ao que aquela desgraçada da Margaret Thatcher
os reduziu. E o Scargill. - Ela trouxe o chá para a mesa em meio ao tilintar da porcelana. - Nunca dei muita confiança para o Rei Arthur. Para o vale da morte, foi
para lá que ele os guiou. Teria sido outra história se o líder do movimento fosse Mick McGahey. Outra história. Ele respeitava os homens. Assim como o meu Ben. Ele
respeitava seus homens. - Ela dirigiu a Karen um olhar que beirava o desespero.
- Entendo isso, Sra. Reekie. Mas agora está na hora de corrigir os arquivos.
Karen sabia que estava se arriscando. Mick Prentice podia ter se equivocado. Ben Reekie podia ter mantido seus planos em segredo. E Effie Reekie poderia estar decidida
a não pensar sobre a maneira pela qual o marido havia traído a confiança dos homens que dizia amar.
O corpo inteiro de Effie pareceu se crispar.
- Não sei do que você está falando. - Foi uma negativa estridente, obviamente hipócrita.
- Acho que sabe, Effie - disse Phil, juntando-se às duas mulheres na mesa. - Acho que isso vem corroendo você por dentro há muito tempo.
Effie cobriu o rosto com as mãos.
- Vão embora - ela disse, com palavras abafadas. Ela estava tremendo, como uma ovelha que acabou de ser tosada.
Karen suspirou.
- Não deve ter sido fácil pra você. Ver como estava sendo duro para todo mundo, enquanto vocês se davam bem.
Effie ficou imóvel e tirou as mãos do rosto.
- Do que você está falando? - ela disse. - É claro que você não acha que ele pegou o dinheiro para si mesmo, não é? - A afronta lhe dera forças. Ou isso,
ou a deixara imprudente.
Merda, merda, merda. Karen percebeu que havia julgado a situação de forma completamente errada. Mas, se o havia feito, outros também poderiam. Outros como Mick Prentice.
Mick Prentice, cujo melhor amigo tinha sido funcionário do sindicato. Que podia até mesmo ter sido cúmplice no que Ben Reekie estava fazendo. Pensamentos voando,
ela se obrigou a voltar para a conversa.
- É lógico que não achamos isso - disse Phil. - Karen apenas quis dizer que vocês ainda recebiam um salário.
Effie olhou, incerta, para os dois.
- Ele só fez aquilo depois que começaram a confiscar os fundos do sindicato - ela disse. As palavras jorraram como se ela estivesse aliviada em libertá-las.
- Ele perguntava qual era o sentido de encaminhar o dinheiro para a subseção se eles iriam simplesmente entregá-lo para o Escritório Central. Ele dizia que o dinheiro
arrecadado localmente deveria ser usado para ajudar os mineiros locais, não ser despachado para Buffalo. - Ela conseguiu dar um sorriso de lástima. - Era isso que
ele sempre dizia: "Não ser despachado para Buffalo." Ele apenas pegava um pouco, aqui e ali, não o suficiente para que os mandachuvas percebessem. E era muito discreto
na hora de passar adiante. Ele fazia Andy Kerr examinar as cartas de pedidos para o Serviço Social e entregava o dinheiro onde fosse mais necessário.
- Alguém descobriu? - Phil perguntou. - Alguém o pegou fazendo isso?
- O que você acha? Eles o teriam enforcado primeiro e perguntado depois. O sindicato era sagrado por aqui. Ele jamais teria escapado ileso se alguém houvesse
sequer desconfiado.
- Mas Andy sabia. - Karen ainda não estava pronta para desistir.
- Não, não, ele nunca soube. Ben nunca disse que estava dando o dinheiro para eles. Ele só pedia para Andy lhes dar prioridade, supostamente para ajudar à
subseção. Só que não havia nenhuma ajuda à subseção naquele período porque todos os fundos estavam indo para o nível nacional. - Effie esfregou as mãos como se elas
estivessem doendo. - Ele sabia que não poderia confiar em ninguém para contar isso. Veja bem, mesmo que eles houvessem acreditado que ele estava fazendo tudo pelo
bem de seus homens e suas famílias, ainda teriam considerado traição. Todos deveriam colocar o sindicato em primeiro lugar, principalmente os funcionários. O que
ele fez teria sido imperdoável. E ele sabia disso.
San Gimignano
Bel finalmente encontrou um bar que não estava abarrotado de turistas. Escondido em uma rua afastada, os únicos clientes eram meia dúzia de velhos jogando cartas
e bebericando copinhos de vinho tinto. Ela pediu um expresso e uma água e se sentou perto da porta dos fundos, que se abria para um minúsculo pátio pavimentado por
pedras.
Passou alguns minutos olhando o catálogo que apanhara na galeria. Adoraria conviver com um trabalho de Daniel Porteous. Mas quem diabos fora ele? Qual era sua história?
Teria seu caminho realmente cruzado com o de Cat, ou Bel estava construindo castelos no ar? Só porque Daniel Porteous era artista e tinha uma vaga ligação com o
lugar em que os pôsteres haviam sido encontrados não significava que estivesse envolvido no sequestro. Talvez ela estivesse olhando para o homem errado. Talvez o
elo fosse Matthias, o homem que criava as marionetes e seus cenários. O homem que podia ser um assassino ou uma vítima.
Ainda olhando as reproduções do trabalho de Porteous, ela telefonou do celular para seu estagiário, Jonathan.
- Tentei entrar em contato com você ontem à noite - ele disse. - Mas seu celular estava desligado. Então liguei para a donzela de gelo lá de Rotheswell e
ela disse que você não estava disponível.
Bel riu.
- Ela gosta de se fazer de importante, não é mesmo? Desculpe por ter perdido seu telefonema ontem à noite. Eu estava numa festa.
- Uma festa? Você não deveria estar bancando a Nancy Drew?
Uma parte dela achava que a atitude atrevidamente galanteadora de Jonathan beirava o inapropriado. No entanto, era tão absurda que a divertia; então, ela o deixava
brincar.
- E estou. A festa foi na Itália.
- Na Itália? Você está na Itália?
Bel rapidamente colocou Jonathan a par dos acontecimentos.
- Portanto, agora você está por dentro de tudo - ela completou.
- Uau - disse Jonathan. - Quem diria que isso iria ser tão excitante? Nenhum dos meus amigos está fazendo um estágio como este. É como Woodward e Bemstein,
na pista de Watergate.
- Não é nada disso - protestou Bel.
- Claro que é. Você me disse que havia sangue no chão da villa. As pessoas geralmente não fogem de acidentes domésticos nem de suicídios, então isso sugere
que alguém foi assassinado. E numa situação relacionada a um assassinato e um sequestro de 22 anos atrás. Bel, existe pelo menos uma pessoa bem desagradável aí fora
e você está definitivamente na trilha dela.
- No momento, Jonathan, estou é na trilha de um jovem que acabou de perder o pai. Nossa, como isso é assustador, não? - Bel deixou escapar.
- Bel, nem todos os jovens são tão encantadores e inofensivos como eu. - Jonathan respondeu, subitamente sério. - Podemos ser bem selvagens. Você já fez
matérias
suficientes sobre estupro e assassinato para não ter ilusões sobre isso. Pare de me tratar como criança. Isso não é uma brincadeira. Prometa que você vai levar a
sério.
Bel suspirou.
- Quando encontrar algo que pareça sério, vou levar a sério, Jonathan. Prometo. Agora, enquanto isso, preciso que você faça uma coisa para mim.
- Claro, qualquer coisa que você precisar. Creio que não tem nada a ver com uma visita à Toscana, né?
- Tem a ver com uma visita ao Centro de Registros de Família em Islington para descobrir o que você puder a respeito de um homem chamado Daniel Porteous.
Ele teria algo entre quarenta e cinquenta anos. Morreu em abril passado, na Itália, mas não sei exatamente onde. Mas os atestados de óbito italianos não contêm mesmo
muita informação. Então, estou procurando por sua certidão de nascimento, talvez uma certidão de casamento. Você pode fazer isso por mim?
- Pode deixar. Volto a ligar assim que tiver alguma coisa. Obrigado, Bel. É maravilhoso estar envolvido em algo assim tão complexo.
- Obrigada - Bel disse para o vazio.
Sorveu o expresso pensativa. Não estava convencida de que a dona da galeria tiraria algum coelho da cartola, no que se referia a Gabriel Porteous. Ela teria de fazer
pessoalmente algumas investigações bastante profundas. Os registros deviam estar em Siena, capital da província. Não havia sentido em dirigir-se para lá agora. Quando
conseguisse chegar, todo mundo já teria ido embora do serviço. As tardes e a burocracia italiana não se entendiam muito bem.
Não havia nada mais a fazer. Teria de voltar a Campora e se esticar numa cadeira, à beira da piscina de Grazia. Talvez telefonasse para Vivianne para ficar em dia
com a vida familiar. Às vezes, a vida era muito, mas muito dura mesmo.
Edimburgo
Karen reclinou o banco do carro, que estava totalmente na vertical, e se acomodou para a viagem até Edimburgo.
- Sabe de uma coisa - ela disse -, minha cabeça está se remoendo com este caso. Toda vez que acho que estou entendendo aparece algo para me confundir.
- A que caso você se refere? Aquele que o Biscoito pensa que você está priorizando ou àquele que você realmente está trabalhando? - perguntou Phil, entrando
na estrada vicinal que os levaria a um salão de chá campestre ao lado da rodovia. Uma coisa boa nos casos arquivados é que geralmente se conseguia comer em horários
regulares. Não havia a pressão do relógio correndo antes que outro crime fosse cometido. Era um esquema que se adequava perfeitamente bem a ambos.
- Não posso fazer nada com relação a Cat Grant até receber um relatório decente da polícia italiana. E eles não estão exatamente com pressa. Não, estou falando
de Mick Prentice. Primeiro, todos pensam que ele foi para Nottingham. Mas, agora, parece que ele nunca saiu vivo de Wemyss. Ele nunca fugiu com os fura-greves, muito
embora um deles tenha confundido as coisas enviando dinheiro para Jenny. Mas uma coisa que soubemos por intermédio dos fura-greves é que Mick estava vivo e ileso,
andando por Newton, umas doze horas depois de quando Jenny alega que ele saiu de casa.
- O que é estranho - disse Phil. - Se ele a estava abandonando, era de esperar que já estivesse bem longe, então. A não ser que estivesse apenas tentando
lhe dar uma lição. Talvez ele ficasse fora de casa por várias horas para provocá-la. Talvez ele estivesse voltando para casa e alguma coisa aconteceu que o desviou
do caminho.
- Certamente parece que alguém o tirou do sério. Os caras que estavam fugindo obviamente esperavam que ele se enfurecesse com eles. Quando o viram, acharam
que iam receber um sermão ou que haveria uma
briga. Mas tudo que obtiveram, por parte dele, foram suas súplicas e uma cara de quem estava prestes a explodir em lágrimas.
- Talvez aquela tenha sido a noite em que ele descobriu que havia alguma coisa entre Jenny e Tom Campbell. - Phil sugeriu. - Isso teria sido suficiente para
acabar com sua autoconfiança.
- Pode ser - ela não parecia convencida. - Se você estiver certo, ele devia estar descontrolado. Não ia querer voltar para casa. Então, talvez, tenha ido
dormir na casa do bosque, do seu amigo Andy.
- Se ele fez isso, por que ninguém o viu novamente depois daquela noite? Você sabe como eram as coisas por aqui. Quando as pessoas se separavam, não iam embora
da cidade. Apenas se mudavam três casas mais para baixo na rua.
Karen suspirou.
- É verdade. Mas ele ainda assim poderia ter ido para a casa de Andy. As coisas podem ter acontecido de maneira diferente. Sabemos que Andy estava de licença
médica por depressão. E sabemos, pela irmã dele, que ele gostava de fazer caminhadas até as Highlands. E se Mick decidiu ir com ele? E se os dois sofreram um acidente
e os corpos estão atirados em alguma ravina? Você sabe como é lá em cima. Alpinistas desaparecem e nunca mais são encontrados. E isso são só aqueles que a gente
fica sabendo.
- É possível. - Phil deu seta e entrou no estacionamento. - Mas se foi isso que aconteceu, de quem é o corpo na caverna? Acho que é mais simples do que você
está cogitando, Karen.
Eles entraram no café em silêncio. Pediram empadão de carne, ervilhas e batatas sem nem olhar o cardápio e, então, Karen disse:
- Mais simples como?
- Acho que você está certa, que ele foi à casa de Andy. Não sei se ele estava planejando sair de casa de vez ou apenas colocando um pouco de espaço entre
ele e Jenny. Mas acho que ele contou a Andy sobre Ben Reekie. E acho que houve algum tipo de confronto. Não sei se Andy perdeu a paciência com Mick, ou se Ben apareceu
por lá e tudo fugiu do controle. Mas acho que Mick morreu naquela casa, naquela noite.
- O quê? E daí eles o levaram até a caverna para se livrar do corpo? Isso parece um pouco complicado demais. Por que simplesmente não enterrá-lo no bosque?
- Andy era um homem do campo. Ele sabia que cadáveres não permanecem enterrados em covas rasas no bosque. Colocá-lo na caverna e, então, provocar um desmoronamento,
era uma opção muito melhor. E muito mais reservada do que tentar cavar uma cova no meio do bosque de Wemyss. Lembre-se de como eram as coisas, naquele tempo. Cada
centímetro de floresta continha caçadores furtivos tentando pegar um coelho ou até mesmo um veado para pôr na mesa do jantar.
- Você tem razão. - Karen sorriu em agradecimento à garçonete que trouxe o café. Acrescentou uma colherada cheia de açúcar ao dela e mexeu lentamente. - Então,
o que aconteceu com Andy? Você acha que ele saiu de casa e acabou com a própria vida?
- Provavelmente. Pelo que você me contou, ele parece ser do tipo sensível.
Tinha de admitir que fazia sentido. O distanciamento de Phil permitia que ele visse o caso mais claramente. Por mais inteligente que ela fosse, sabia quando se afastar
e deixar que outra pessoa avaliasse os fatos.
- Se você estiver certo, imagino que jamais saberemos como tudo aconteceu. Se foi algo só entre Andy e Mick, ou se Ben também estava na história.
Phil sorriu, balançando a cabeça.
- Essa é uma teoria que não podemos confirmar com Effie Reekie. A não ser que queiramos mais um corpo nas nossas mãos.
- Ela teria um ataque na mesma hora - Karen concordou.
Ele riu.
- Claro que isso tudo pode ser uma procura inútil se Jenny estava dizendo a verdade quando lhe pediu para abandonar o caso.
Karen fungou.
- Aquilo foi digno da ilha da fantasia. Acho que ela não quer é se aborrecer. Quer que a gente a deixe em paz, e assim ela poderá voltar à sua vida de mártir.
Phil pareceu surpreso.
- Você acha que ela dá mais valor à própria tranquilidade do que à vida do neto?
- Não. Ela é incrivelmente narcisista, mas não acho que veja a situação nesses termos. Acho que, no fundo, ela se sente meio responsável por Mick
ter desaparecido. E isso significa que ela tem que arcar com parte da culpa pela indisponibilidade dele em ser doador para Luke. Então, ela está tentando descarregar
sua culpa fazendo com que a gente pare de procurar por ele, pois, assim, ela pode voltar a enterrar a cabeça na areia, como antes.
Phil coçou o queixo.
- As pessoas são tão malucas - ele suspirou.
- Isso é verdade. Pelo menos essa nossa viagenzinha nos trará algumas respostas.
- Talvez. Mas faz a gente pensar - disse Phil.
- Pensar em quê, exatamente?
Ele fez uma careta.
- Estamos indo até Edimburgo para colher uma amostra de DNA para que River possa comparar com o cadáver. Mas e se Misha não for filha de Mick? E se ela for
filha de Tom Campbell?
Karen dirigiu a ele um olhar admirado.
- Você tem uma mente realmente maligna, Phil. Acho que você está errado, mas é uma teoria linda, mesmo assim.
- Você apostaria que o teste de DNA revele ser Mick Prentice?
Ambos se afastaram um pouco para deixar que a garçonete colocasse os pratos de comida à sua frente. O cheiro estava incrível. Karen queria pegar o prato e aspirá-lo.
Mas, primeiro, tinha de responder a Phil.
- Não - ela disse. - E não porque eu ache que Misha seja filha de Tom Campbell. Existem outras possibilidades. River disse que a parte posterior do crânio
está esmagada, Phil. Se Andy Kerr matou Mick Prentice, foi no calor do momento. Ele jamais teria chegado sorrateiramente por trás dele e golpeado sua cabeça. Sua
teoria é bem bonita, mas não estou convencida. - Ela sorriu. - Mas, também, é por isso que você me ama.
Ele olhou-a de modo estranho.
- Você é sempre cheia de surpresas.
Karen engoliu um bocado divino de massa e carne.
- Quero algumas respostas, Phil. Respostas reais, não apenas as ideias bobas que eu e você inventamos para se encaixar com aquilo que sabemos. Quero a verdade.
Phil inclinou a cabeça, avaliando-a.
- De fato - ele disse -, é por isso que eu amo você, dona.
Uma hora depois, eles estavam parados em frente ao edifício residencial de Marchmont, onde Misha Gibson morava. Karen ainda se perguntara se houvera algo mais que
mera provocação nas palavras de Phil. Durante muito tempo, achara que nada era proibido, entre eles. Aparentemente, estivera errada. Com certeza não iria perguntar
a ele o que quisera dizer. Apertou novamente o interfone, mas não houve resposta.
Uma voz atrás deles disse:
- Vocês estão procurando a Misha?
- Isso mesmo - respondeu Phil.
Um homem idoso os circulou, obrigando Karen a se afastar da porta para não levar uma pisada.
- Não irão encontrá-la em casa a esta hora do dia. Ela deve estar no hospital com o menino. - Ele olhou firmemente para eles. - Não vou deixar vocês entrarem
e não vou digitar meu código enquanto vocês estiverem aí, olhando.
Karen riu.
- Muito admirável da sua parte, senhor. Mas, sob o risco de parecer um clichê, nós somos da polícia.
- Isso não é garantia de honestidade, hoje em dia - disse o velho.
Pega de surpresa, Karen se afastou. Onde o mundo iria parar, se as pessoas achavam que a polícia os assaltaria? Ou coisa pior? Ela estava a ponto de protestar quando
Phil pôs a mão em seu braço.
- Deixe pra lá - ele disse baixinho. -Já temos o que precisamos.
- Vou lhe dizer uma coisa... - disse Karen quando não podiam ser ouvidos. - Eles ficam assistindo a esses programas americanos de policiais, onde um em cada
dois tiras é desonesto e acham que nós também somos assim. Fico louca da vida.
- Isso é ótimo, vindo da mulher que colocou o subchefe de polícia atrás das grades. Não são só os americanos - disse Phil. - Há gente trapaceira em toda parte.
É daí que os roteiristas tiram suas ideias.
- Ah, eu sei. É que fico ofendida. Em todos esses anos de trabalho, Lawson é a única maçã podre de verdade com que me deparei. Mas já é o suficiente para
que as pessoas percam todo o respeito.
- Você sabe o que dizem por aí: a confiança é como a virgindade. Só se pode perder uma vez. E então, pronta para o jogo de policial bonzinho e policial malvado?
- Eles pararam no meio-fio para esperar uma pausa no trânsito e desceram a rua até o hospital.
- Pode contar comigo - disse Karen.
Encontrar a ala de Luke Gibson foi fácil, mas bem angustiante. Era impossível evitar a presença das crianças doentes, e a imagem de sua enfermidade se gravava a
fogo na memória. Essa era, pensou Karen, uma das poucas vantagens de não ter filhos. Você não tinha de ficar ali parado, impotente, enquanto seu filho sofria.
A porta do quarto de Luke estava aberta, e Karen não pôde resistir a ficar observando mãe e filho juntos por alguns minutos. Luke parecia bem pequenino, o rosto
era pálido e contorcido, mas ainda conservava a beleza dos garotinhos. Misha estava sentada na cama ao lado dele, lendo um livro do Capitão Cueca. Ela imitava todas
as vozes, fazendo a história criar vida para seu menino, que gargalhava dos trocadilhos ruins e do enredo tolo.
Finalmente, Karen pigarreou e entrou no quarto.
- Oi, Misha. - Ela sorriu para o garoto. - Você deve ser Luke. Meu nome é Karen. Preciso ter uma conversinha com a sua mãe. Tudo bem?
Luke assentiu.
- Claro. Mãe, posso assistir a meu DVD do Dr. Who, já que você vai embora?
- Eu já vou voltar - Misha disse, levantando-se de um pulo. - Mas, sim, pode ligar o DVD. - Ela pegou o controle remoto e o ligou para ele.
Karen esperou pacientemente e, então, levou-a para o corredor onde Phil estava esperando.
- Precisamos conversar com você - disse Karen.
- Tudo bem - disse Misha. - Tem uma sala de pais no fim do corredor. - Ela foi caminhando sem esperar por uma resposta, e eles a seguiram até um cômodo pequeno,
decorado com cores vivas, com uma máquina de vender café e um trio de sofás afundados. - É para onde escapamos quando tudo fica pesado demais. - Ela indicou os sofás.
- É incrível onde a gente consegue cochilar depois de doze horas sentada ao lado da cama de uma criança doente.
- Desculpe-nos pela intromissão...
- Vocês não estão se intrometendo - Misha interrompeu. - É bom que tenham conhecido Luke. Ele é uma gracinha, não? Agora vocês entendem por que estou disposta
a continuar com a investigação, mesmo que minha mãe não goste que vocês fiquem bisbilhotando o passado. Eu disse a ela que passou dos limites, no domingo. Vocês
precisam fazer aquelas perguntas, se desejam encontrar meu pai.
Karen lançou um olhar rápido para Phil, que parecia tão surpreso quanto ela se sentia.
- Você sabia que sua mãe veio me ver hoje de manhã? - ela perguntou.
Misha franziu a testa.
- Não fazia ideia. Ela lhe contou o que você queria saber?
- Ela queria que desistíssemos de procurar seu pai. Ela disse que achava que ele não estava desaparecido. Que ele havia abandonado vocês duas por opção e
que não queria voltar.
- Isso não faz sentido - disse Misha. - Mesmo que ele tivesse nos abandonado, não iria dar as costas para o próprio neto que estivesse precisando de sua ajuda.
Tudo o que ouvi a respeito do meu pai era que ele era um homem do bem.
- Ela diz que está tentando proteger você - disse Karen. - Ela tem medo de que, se o encontrarmos, ele a rejeite pela segunda vez.
- Ou isso, ou ela sabe mais sobre o desaparecimento dele do que está nos contando - disse Phil, com raiva. - O que você provavelmente não sabe é que nós encontramos
um corpo.
Campora
Bel estava sentada na minúscula sacada, observando o céu e a cadeia de montanhas, a distância, enquanto o sol se punha lenta e gloriosamente. Ela beliscava os restos
frios de carne de porco e batata que Grazia havia deixado em sua geladeira enquanto pensava em seu próximo passo. Não estava gostando nem um pouco da perspectiva
de brigar com a burocracia italiana, mas, se quisesse encontrar Gabriel Porteous, teria de enfrentá-la. Ela pegou novamente as cópias das fotos de Renata, perguntando-se
se estaria imaginando a semelhança.
Mas, de novo, era algo que saltava da imagem. Os olhos fundos, o nariz curvado como um bico, a boca larga. Tudo imitava os traços característicos
de Brodie Grant. A boca era diferente, verdade. Os lábios eram mais cheios, mais delineados. Definitivamente mais beijáveis, Bel pensou, censurando-se instantaneamente
pelo pensamento. O cabelo também era de cor diferente. Tanto Brodie Grant quanto sua filha tinham o cabelo quase preto. O cabelo do garoto era muito mais claro,
mesmo considerando a descoloração provocada pelo sol italiano. Seu rosto também era mais largo. Havia alguns pontos de diferença. Gabriel Porteous não seria confundido
com o jovem Brodie Grant, não a julgar pelas fotos que Bel tinha visto espalhadas em Rotheswell. Mas daria para pensar que fossem irmãos.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo telefone. Com um suspiro, ela atendeu. Era uma chatice o identificador de chamadas nem sempre funcionar no exterior. Nunca
havia como saber se a pessoa no outro lado era alguém que você estava tentando evitar. E deixar que os telefonemas caíssem direto no correio de voz para que você
pudesse selecionar depois ficava absurdamente caro. Além disso, o fato de ser parcialmente responsável por seu sobrinho significava que ela nunca podia ignorar telefonemas
misteriosos.
- Alô? - disse cautelosamente.
- Bel? É Susan Charleson. Você pode falar agora?
- Sim, claro.
- Recebi seu e-mail. Sir Broderick me pediu para dizer que está muito contente com seu progresso até agora. Ele queria saber se você precisa de alguma coisa
daqui. Podemos realizar buscas de arquivos, esse tipo de coisa.
Bel conteve uma risada pesarosa. Passara toda a sua vida profissional fazendo o próprio trabalho sujo ou convencendo os outros a fazê-lo por ela. Não imaginara que
trabalhar para Brodie Grant significava que ela podia se livrar de todas as partes chatas.
- Está tudo em ordem - ela disse. - Você poderia me dar uma ajuda em algumas coisas pessoais. Não consigo deixar de pensar que deve haver um ponto, no passado,
em que a vida de Catriona tenha cruzado com a de Daniel Porteous ou desse Matthias que talvez seja alemão ou inglês. Ele pode até mesmo ser sueco, já que foi lá
que Catriona estudou. Preciso descobrir quando e onde isso aconteceu. Não sei se ela mantinha diários ou uma agenda de endereços. Além disso, quando eu voltar, gostaria
muito de rastrear suas amigas. Do tipo em quem ela confiaria.
Susan Charleson deu uma risadinha educada.
- Você vai se decepcionar, então. Se acha que o pai dela é fechado com relação a seus sentimentos, Catriona o fazia parecer um verdadeiro livro aberto. Ela
era a perfeita loba solitária. A mãe era sua melhor amiga, de verdade. Elas eram muito próximas. Além de Mary, a única outra pessoa que realmente conseguiu penetrar
na mente de Catriona foi Fergus. - Ela deixou o nome pairando no ar entre elas.
- Creio que você não saiba onde eu poderia encontrar Fergus, não é?
- Você poderia falar com o pai dele, quando voltar. Ele visita frequentemente a família, nesta época do ano - disse Susan. - Não é algo que Willie sinta necessidade
de comunicar a Sir Broderick. Mas estou ciente do fato.
- Obrigada.
- E vou ver o que consigo fazer a respeito dos diários e agendas. Não espere muita coisa, no entanto. O problema dos artistas é que eles deixam que seu trabalho
fale por eles. Quando você vai voltar?
- Não tenho certeza. Depende de como tudo corra amanhã. Eu avisarei.
Não havia mais nada a dizer, nenhuma conversa fiada. Bel não se lembrava de quando fora a última vez que falhara tão completamente em estabelecer uma conexão com
outra mulher. Passara toda a sua vida adulta aprendendo como fazer com que as pessoas gostassem dela o bastante para lhe confidenciarem coisas que realmente não
queriam contar a ninguém. Com Susan Charleson, ela falhara. Esse trabalho, que tinha começado como pouco mais do que uma possibilidade remota de convencer um homem
notoriamente recluso a falar, a havia exposto a si mesma das formas mais inesperadas.
O que virá a seguir, ela se perguntou, tomando um longo gole de vinho. O que virá a seguir?

 

 


CONTINUA