Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DUNA / Frank Herbert
DUNA / Frank Herbert

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Saga do Planeta “Duna”

DUNA

Parte I

 

O começar é o momento mais delicado na correção do equilíbrio. Esta irmã Bene Gesserit bem o sabe. Por isso, ao começar a estudar a vida de Muad'Dib, teve o cuidado de situá-la em sua época: nascido no 57° ano do Imperador Padishah Shaddam IV. E com mais cuidado ainda localizou Muad'Dib em sua terra: o planeta Arrakis. Mas que ninguém se iluda com o fato de ter ele nascido em Caladan e lá ter vivido seus primeiros quinze anos: Arrakis, o planeta conhecido como Duna, será para sempre a sua terra.

 

— do Manual do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Na semana anterior à sua partida para Arrakis, quando toda aquela agitação final chegara a um frenesi quase insuportável, uma velha encarquilhada veio visitar a mãe de Paul, o rapaz.

Era uma noite quente no Castelo Caladan e a antiga pilha de rochas, que servira como lar para a família Atreides por vinte e seis gerações, exibia aquela atmosfera suarenta que costumava adquirir antes de uma mudança no tempo.

A velha foi introduzida por uma porta lateral do longo corredor abobadado que levava ao quarto de Paul, e foi-lhe concedido um momento para observá-lo enquanto ele dormia.

Na penumbra de uma lâmpada suspensa enfraquecida e pendurada junto do solo, o rapaz acordado podia ver diante da porta uma forma feminina volumosa erguendo-se um passo adiante de sua mãe. A velha parecia uma bruxa com o cabelo como teias de aranha embaraçadas, feições obscurecidas pelo capuz e dois olhos como jóias brilhantes.

— Ele não é muito pequeno para sua idade, Jessica? — indagou a velha, sua voz chiando e ressonando como um baliset desafinado.

A resposta da mãe de Paul veio em suave contralto:

— Sabe-se que os Atreides começam a crescer tardiamente, Sua Reverência.

— Assim ouvi, assim ouvi — chiou a voz asmática da velha. — No entanto ele já tem quinze anos.

— Sim, Sua Reverência.

— Está acordado e nos escutando, esse maroto — riu a velha.

— Mas a realeza precisa ser matreira e se ele é realmente o Kwisatz Haderach... bem...

Nas sombras de seu leito Paul conservava os olhos semicerrados. Os dois ovais brilhantes formados pelos olhos da bruxa pareciam reluzir, expandindo-se ao fitá-la.

— Durma bem, seu molequinho esperto — disse ela. — Amanhã precisará de toda a sua esperteza para enfrentar meu gom jabbar.

Então ela se foi, empurrando sua mãe para fora e fechando a porta com uma pancada seca.

Paul ficou acordado pensando: o que será um gom jabbar?

Em todas as perturbações desse tempo de mudanças, a velha fora a coisa mais estranha que presenciara.

“Sua Reverência.”

E o modo como ela tratara sua mãe Jessica, como se ela fosse uma criada em vez do que ela realmente era: uma dama Bene Gesserit, uma concubina do duque e mãe de seus herdeiros ducais.

Seria um gom jabbar alguma coisa pertencente a Arrakis e que ele precisaria conhecer antes de chegar lá?

Repetiu as estranhas palavras da velha: gom jabbar... Kwisatz Haderach. Havia tanto que aprender... Arrakis devia ser um lugar tão diferente de Caladan, que a mente de Paul rodopiava com seus novos conhecimentos. Arrakis-Duna-Planeta Deserto.

Thufir Hawat, o Mestre de Assassinos de seu pai, lhe explicara: os Harkonnen, seus inimigos mortais, haviam ocupado Arrakis durante oitenta anos, mantendo o planeta como um semifeudo, sob um contrato com a Companhia CHOAM para minerar a especiaria geriátrica Melange. Agora os Harkonnen partiriam e seriam substituídos pela Casa dos Atreides, na forma de um feudo completo — uma vitória aparente do Duque de Leto. No entanto, dissera Hawat, esta aparência guardava um perigo mortal, sendo o Duque tão popular entre as Grande Casas de Landsraad.

— E um homem popular atrai o ciúme dos poderosos concluíra Hawat.

“Arrakis-Duna-Planeta Deserto.”

Paul adormeceu para sonhar com uma caverna de Arrakis, com pessoas silenciosas movendo-se à sua volta na luz mortiça dos brilhoglobos. Era um lugar solene como uma catedral e ele ouvia um ruído fraco, como água gotejando. Enquanto sonhava, Paul tinha a certeza de que se lembraria quando acordasse. Ele sempre se lembrava dos sonhos que eram previsões.

O sonho se apagou.

Paul acordou sentindo o calor de seu leito... pensando... pensando. Esse mundo do Castelo Caladan, sem brinquedos nem companheiros de sua idade, talvez não merecesse tristezas na despedida. Seu professor, o Dr. Yueh, havia insinuado que o sistema de classes faufreluches não era tão rígido em Arrakis. O planeta abrigava gente que vivia nas margens do deserto, sem caides ou bashares para comandá-los. Eram os povos esquivos da areia chamados Fremen, e nem os recenseamentos da Armada Imperial os registravam.

“Arrakis-Duna-Planeta Deserto.”

Sentindo suas próprias tensões, Paul decidiu praticar uma das lições do corpo-mente ensinadas por sua mãe. Três inspirações rápidas acionaram a resposta: caiu numa consciência flutuante... focalizando sua percepção... dilatação arterial... evitando o mecanismo divagador da mente... ter consciência por escolha... sangue enriquecido regando as áreas sobrecarregadas... “não se obtém comida-abrigo-liberdade somente com o instinto”... a consciência animal é incapaz de se estender além do momento presente e não conhece a idéia de que suas vítimas possam se extinguir... o animal destrói e não produz... os prazeres animais permanecem próximos dos níveis de sensação e evitam o perceptivo... os humanos necessitam de uma tela de fundo através da qual possam perceber seu universo... consciência focalizada por escolha, isso produz a sua tela... a integridade corporal segue o fluxo sangüíneo-neural de acordo com a mais profunda consciência das necessidades celulares... todas as coisas/células/seres são inconstantes... lute pela permanência de fluxo interno...

Dentro da consciência de Paul a lição se repetia, seguidamente. E quando a aurora tocou a janela do quarto com sua luz amarelada ele a sentiu através das pálpebras fechadas, abrindo-as, ouviu a agitação renovada do castelo, vendo o padrão familiar das vigas do teto.

A porta do corredor se abriu e sua mãe apareceu com cabelos de um bronze pálido presos em coque por uma fita negra. O rosto oval desprovido de emoção com os olhos verdes a fitá-la com solenidade.

— Já está acordado... Dormiu bem?

— Sim.

Ele observou seu porte esbelto e percebeu o indício de tensão em seus ombros enquanto ela escolhia as roupas nas prateleiras.

Outro não teria notado essa tensão, mas ela o treinara bem nos ensinamentos Bene Gesserit, nas observações das minúcias. Voltou-se trazendo-lhe um casaco semiformal. Estava lá a crista vermelha do falcão, o símbolo dos Atreides, sobre o peito.

— Vista-se depressa — disse ela. — A Reverenda Madre está esperando.

— Sonhei com ela uma vez — respondeu Paul. — Quem é ela?

— Ela foi minha professora na escola de Bene Gesserit. Agora é a Reveladora da Verdade para o Imperador. E... Paul... — Jessica hesitou. — Você deve contar a ela sobre seus sonhos.

— Contarei. Foi com sua ajuda que ganhamos Arrakis?

— Nós não ganhamos Arrakis. — Jessica sacudiu a poeira das calças que escolhera para ele e colocou-as junto com o casaco, no suporte ao lado da cama. — Não deixe a Reverenda Madre esperando.

Paul se sentou segurando os joelhos.

— O que é um gom jabbar?

Novamente o treino que ela lhe dera mostrava a ele sua hesitação quase imperceptível, fazendo-o sentir medo.

Jessica caminhou até a janela, abriu as cortinas e olhou através dos pomares junto ao rio, na direção do Monte Syubi.

— Você aprenderá a respeito do... gom jabbar muito breve.

Percebendo o temor em sua voz, ele ouviu-a surpreso, enquanto Jessica falava sem se voltar.

— A Reverenda Madre está esperando em minha sala matinal. Por favor, apresse-se.

A Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam observou, sentada numa cadeira, enquanto mãe e filho se aproximavam. As janelas ao seu lado abriam-se para a curva sul do rio e as terras cultivadas dos Atreides, mas a Reverenda Madre ignorava a visão. Sentia o peso da idade nessa manhã, e isso a punha de mau humor... Culpava por isso as viagens espaciais, com aquela abominável Corporação Espacial e seus costumes secretos. Todavia essa era uma missão que exigia atenção especial de uma Bene Gesserit com a visão. Nem mesmo a Reveladora da Verdade do Imperador Padishah poderia eximir-se de suas responsabilidades.

“Maldita Jessica!”, pensou a Reverenda Madre. Se ao menos ela houvesse dado à luz uma menina, como lhe foi ordenado.

Jessica parou a três passos da cadeira e fez uma pequena reverência com um suave movimento de sua mão esquerda ao longo da borda da saia. Paulo inclinou-se ligeiramente como seu mestre de dança lhe ensinara, numa reverência usada quando em dúvida quanto à importância da outra pessoa.

Essas nuanças na saudação de Paul não escaparam à Reverenda Madre, que comentou:

— Ele é bem cauteloso, Jessica. — A mão de Jessica tocou o ombro do rapaz de um modo firme. No tempo de uma batida do coração seu toque transmitiu medo através da palma, depois ela conseguiu se controlar.

— Assim lhe foi ensinado, Sua Reverência.

“De que é que ela tem medo?”, cismava Paul.

A velha estudou Paul num instante apenas: rosto oval como o de Jessica, mas ossos fortes... os cabelos negros do Duque, as sobrancelhas do avô paterno, e aquele nariz fino, desdenhoso, os olhos verdes a fitarem diretamente, como os do velho Duque, avô paterno, agora morto.

“Bem, aquele era um homem que apreciava o poder da coragem, mesmo na morte”, pensou a Reverenda Madre.

— O ensinamento é uma coisa — disse ela —, o ingrediente básico é outra. Veremos. — Os velhos olhos fitaram Jessica duramente. — Deixe-nos a sós. Apreciaria se praticasse a meditação da paz.

Jessica tirou a mão do ombro de Paul.

— Sua Reverência, eu...

— Jessica, você sabe o que deve ser feito.

Paul olhou para sua mãe, intrigado.

Jessica se empertigou.

— Sim... é claro.

Paul observou novamente a Reverenda Madre. A polidez e o próprio temor de Jessica aconselhavam cautela, mas ele sentia-se furioso com o medo que percebera se irradiando de sua mãe.

— Paul... — Jessica respirou fundo —, esse teste que está prestes a realizar é importante para mim.

— Teste? — Olhou para ela intrigado.

— Lembre-se de que você é um filho do Duque — disse Jessica.

Depois girou e saiu da sala acompanhada pelo ruído sibilante de sua saia. A porta fechou-se sólida por trás dela.

Paul encarou a velha e conteve sua raiva. Pode alguém tratar Lady Jessica como se ela fosse uma criada?

Um sorriso tremulou nos cantos da boca enrugada.

— Lady Jessica foi minha criada, garoto, durante quatorze anos na escola. E foi uma boa criada. Agora venha cá!

A ordem o atingiu como uma chicotada e ele obedeceu antes que pudesse pensar. “Usando a Voz em mim”, pensou. Parou diante de um gesto da velha, ficando ao lado de seus joelhos.

— Está vendo isto? — perguntou ela. De uma das dobras do vestido retirara um cubo de metal verde, com aproximadamente quinze centímetros de aresta.

Ela o girou deixando Paul perceber que um dos lados estava aberto - negro e assustador. Nenhuma luz penetrava aquela escuridão.

— Ponha sua mão dentro desta caixa.

O medo percorreu o corpo de Paul. Ele começou a recuar mas a velha disse:

— É assim que você obedece a sua mãe?

Fitou aqueles olhos de pássaro. Então, lentamente, sentindo compulsões e incapaz de inibi-las, Paul colocou a mão dentro da caixa. Sentiu a princípio uma sensação de frio, enquanto a escuridão se fechava em torno de sua mão, depois sentiu um metal escorregadio contra seus dedos e um formigamento, como se a mão estivesse adormecida.

Uma aparência destruidora tomou as feições da mulher. Ela ergueu a mão direita e colocou-a junto a um dos lados do pescoço de Paul. Ele viu um brilho metálico e começou a se voltar.

— Pare! — gritou ela.

“Usando a Voz novamente!”, pensou ele enquanto tornava a fitar o rosto dela.

— Eu estou segurando meu gom jabbar junto de seu pescoço. O gom jabbar, o inimigo destro — disse ela. — É uma agulha com uma gota de veneno na ponta. Ah, ah! Não tente recuar ou você sentirá o veneno.

Paul tentou engolir e sentiu a garganta seca. Não conseguia afastar seus olhos da face enrugada, dos olhos brilhantes, das gengivas pálidas em torno dos dentes de metal prateados que apareciam enquanto ela falava.

— Um filho do Duque deve entender de venenos. É a moda da época, não é, Musky, ser envenenado na bebida? Algumas vezes, ser envenenado na comida. Os venenos rápidos, os lentos e os mais ou menos. Aqui há um novo para você: o gom jabbar. Ele mata apenas os animais.

O orgulho de Paul controlou seu medo:

— Atreve-se a sugerir que o filho do Duque é um animal?

— Digamos que eu sugiro que você seja humano — respondeu a velha. — Firme! Aviso-lhe que não tente escapar. Sou velha mas minha mão pode espetar esta agulha em seu pescoço antes que possa fugir.

— Quem é você? — sussurrou. — Como enganou minha mãe para me deixar sozinho consigo? Trabalha para os Harkonnen?

— Os Harkonnen? Deus nos livre, não. Agora fique quieto.

Dedos ressequidos tocaram seu pescoço e ele controlou um impulso involuntário de pular longe.

— Bom — disse ela. — Você passou no primeiro teste. Agora eis o resto dele. Se retirar sua mão desta caixa você morre. Esta é a única regra. Mantenha a mão na caixa e você vive, tire-a e morre.

Paul respirou fundo para controlar seus tremores.

— Se eu gritar, os servos estarão aqui em segundos e você morrerá.

— Servos não passarão por sua mãe, que monta guarda diante daquela porta. Confie nisso. Sua mãe sobreviveu a este teste. Agora é a sua vez. Sinta-se honrado. Raramente submetemos a este teste as crianças do sexo masculino.

A curiosidade reduziu o medo de Paul até um nível controlável.

Ele sentia sinceridade na voz dela, não havia como negá-la. Se sua mãe estava guardando aquela porta... se era realmente um teste... O que quer que fosse ele estava preso, apanhado como numa armadilha por aquela mão em seu pescoço: o gom jabbar.

Lembrou-se da resposta na Litania contra o medo, que sua mãe lhe ensinara a partir do rito Bene Gesserit.

“Eu não temerei. O medo é o assassino da mente. Medo é a morte pequena que traz a obliteração. Enfrentarei meu medo. Não permitirei que ele passe sobre mim ou através de mim. E, quando ele se for, voltarei minha visão interna para olhar sua trilha. Por onde o medo passou nada restou. Apenas eu permaneço.”

Sentiu a calma retornar e disse:

— Vamos com isso, velha.

— Velha! — retrucou ela. — Você tem coragem, isso é inegável. Bem, veremos. — Ela se inclinou, sussurrando : — Você vai sentir dor na mão que está dentro da caixa. Dor. Mas... Retire a mão e eu espetarei seu pescoço com meu gom jabbar - a morte é tão rápida como um golpe de machado. Tire sua mão e o gom jabbar acaba com você. Entendeu?

— O que há na caixa?

— Dor.

Sentia um torpor crescente na mão e comprimiu os lábios.

“Como é que isso pode ser um teste?”, pensou. O formigamento tornou-se uma coceira.

A velha disse:

— Já ouviu falar de animais que mastigam uma perna até arrancá-la para escaparem de uma armadilha? Este é um truque animal. Um humano permaneceria na armadilha, suportaria a dor, fingiria estar morto para matar o caçador e eliminar a ameaça aos seus semelhantes.

A coceira tornou-se uma fraca sensação de queimadura.

— Por que está fazendo isso? — perguntou ele.

— Para determinar se você é humano. Fique calado.

Paul fechou a mão esquerda enquanto a sensação de queimadura aumentava na outra mão. Ela crescia lentamente: calor sobrepondo-se a calor... sobre calor. Sentia as unhas da mão que estava livre penetrando na palma. Tentou flexionar os dedos em fogo mas não conseguiu movê-los.

— Isso queima — sussurrou.

— Silêncio!

A dor pulsava em seu braço enquanto o suor aparecia na testa.

Cada fibra de seu ser implorava pela retirada da mão daquela abertura flamejante... mas... o gom jabbar. Sem mover a cabeça ele tentou mexer com os olhos, para ver aquela agulha terrível junto ao seu pescoço. Sentiu que estava respirando de um modo ofegante, tentou se controlar mas não pôde.

Dor!

Seu mundo esvaziou-se de tudo, exceto a mão imersa em agonia e aquela cara ancestral a observá-lo, a alguns centímetros dele.

E seus lábios pareciam tão secos que tinha dificuldade para separá-los. A queimadura! A queimadura!

Pensou que podia sentir a pele negra se contraindo e soltando de sua mão agonizante, a carne frigindo e caindo até que somente restassem ossos carbonizados.

E então a dor parou. Parou como se um interruptor houvesse sido desligado.

Paul sentia o braço direito tremendo, o suor cobrindo seu corpo.

— É o bastante — resmungou a velha. — Kull wahad! Nenhuma menina jamais agüentou tanto tempo. Eu devia estar querendo que você falhasse. — Ela se inclinou para trás, retirando o gom jabbar do lado do pescoço.

— Tire sua mão da caixa, jovem humano, e olhe para ela.

Ele lutou contra o tremor e o vazio escuro, onde sua mão parecia continuar por vontade própria. A memória da dor inibia qualquer movimento e a razão lhe dizia que apenas um toco enegrecido sairia daquela caixa.

— Faça o que mandei! — exigiu ela.

Ele tirou a mão da caixa num movimento súbito e olhou perplexo. Nem uma marca. Nenhum sinal da agonia na carne.

— Levanta a mão e mexe com os dedos.

— Dor induzida nos nervos — explicou a velha. — Não se pode andar por aí mutilando humanos em potencial. Existem aqueles que dariam muito para conhecer o segredo desta caixa. — Escondeu-a de novo nas dobras do vestido.

— Mas a dor... — insistiu ele.

— Dor! Um humano pode controlar cada nervo de seu corpo.

Paul sentiu uma fisgada na mão esquerda, abriu os dedos e viu quatro marcas sangrentas onde as unhas haviam penetrado na palma. Abaixou a mão olhando para a bruxa.

— Você fez isso com minha mãe uma vez?

— Já peneirou areia através de uma tela?

O tom da pergunta abalou sua mente fazendo-a atingir um nível mais elevado de consciência: “Areia através de uma tela.” Ele acenou afirmativamente.

— Nós, Bene Gesserit, peneiramos pessoas para encontrar humanos.

Ele levantou a mão direita, desejando a recordação da dor.

— E isso é tudo que é preciso? Dor?

— Eu o observei sofrer, rapaz. A dor é apenas o eixo do teste. Sua mãe já lhe contou sobre nossos métodos de observação. Vejo os sinais de seu ensinamento em você. Nosso teste é crise e observação.

Ele confirmou com a cabeça.

— É verdade!

Ela o observava. “Ele sente a verdade! Pode ser ele? Pode realmente ser ele?” Controlou a excitação lembrando a si mesma: “A esperança embaça a observação.”

— Você sabe quando as pessoas acreditam no que dizem.

— Sei.

As harmonias da habilidade, confirmadas por testes repetitivos, estavam na voz dele. Ela as ouviu e disse:

— Talvez seja você o Kwisatz Haderach. Sente-se aqui aos meus pés, irmãozinho.

— Prefiro ficar de pé.

— Sua mãe sentou-se aos meus pés uma vez.

— Eu não sou minha mãe.

— Você nos odeia um pouco, não? — Ela olhou para a porta e chamou: — Jessica! — A porta abriu-se violentamente e Jessica surgiu olhando de modo severo para dentro da sala. A severidade desapareceu de suas feições quando ela viu Paul. Sorriu ligeiramente.

— Jessica, alguma vez já parou de me odiar? — indagou a velha.

— Eu a amo e odeio — respondeu Jessica. — O ódio vem da dor que eu nunca esquecerei. O amor, este...

— Somente os fatos básicos — exigiu a velha, no entanto sua voz era gentil agora. — Você pode entrar agora, mas fique calada. Feche aquela porta e cuide para que ninguém nos interrompa.

Jessica obedeceu, ficando de costas contra a porta fechada.

“Meu filho vive”, pensou. “Meu filho vive e é humano. Eu sabia que ele era... mas... ele vive. Agora posso continuar minha vida.” A porta parecia dura contra suas costas, tudo na sala pressionava sua percepção.

“Meu filho vive.”

Paul observava sua mãe. “Ela contou a verdade.” Ele queria ficar só e pensar na experiência por que passara, mas sabia que não poderia sair até receber permissão. A velha adquirira poder sobre ele. “Elas falam a verdade”, pensou. Sua mãe suportara o teste. Deve haver um propósito terrível nele... o medo e a dor haviam sido terríveis. E ele entendia propósitos terríveis. Eles impulsionavam contra todas as probabilidades. Eram sua necessidade. E Paul se sentia contaminado por uma resolução terrível. Embora ainda não soubesse qual era ela.

— Algum dia, rapaz — dizia a velha —, você talvez tenha que ficar do lado de fora de uma porta como aquela. Isto exige controle.

Paul fitou a mão que conhecera a dor e a Reverenda Madre.

O som de sua voz era diferente de qualquer outra voz que conhecera. As palavras tinham um brilho que as delineava. Havia uma nitidez nelas. Sentia que qualquer pergunta que lhe fizesse traria uma resposta que o elevaria deste mundo carnal para alguma coisa maior.

— Por que vocês testam em busca de humanos? — indagou ele.

— Para libertá-los.

— Libertar?

— Houve um tempo em que os homens abdicaram do pensamento em favor das máquinas, na esperança de que as máquinas os fariam livres. Mas isso permitiu apenas que outros homens, com máquinas, os escravizassem.

— Tu não farás a máquina à semelhança do homem — observou Paul.

— Exatamente como no Jihad Butleriano e na Bíblia Católica Laranja — disse ela. — Mas o que a Bíblia C. L. deveria dizer é “Tu não farás uma máquina para imitar a mente humana.” Já estudou os Mentat a seu serviço?

— Eu estudei com Thufir Hawat.

— A Grande Revolta tirou a muleta. Ela forçou a mente humana a se desenvolver. Escolas foram criadas para treinar talentos humanos.

— Escolas Bene Gesserit?

Ela acenou afirmativamente.

— Temos duas principais remanescentes daquelas antigas escolas: a Bene Gesserit e a Corporação Espacial. A Corporação, achamos nós, enfatiza quase que apenas a matemática. A Bene Gesserit realiza outra função.

— Política — disse o rapaz.

— Kull wahad! — exclamou a velha enquanto enviava um olhar duro para Jessica.

— Eu não contei a ele, Sua Reverência — explicou Jessica.

A Reverenda Madre voltou a atenção para Paul.

— Você conseguiu deduzir com um número extraordinariamente pequeno de indícios. Política de fato. A escola Bene Gesserit original foi dirigida por aqueles que viam a necessidade de um fio de continuação nos assuntos humanos. Achavam que não haveria tal continuidade sem a separação da estirpe humana da estirpe animal, para propósitos de procriação.

As palavras da velha subitamente perderam sua veemência especial para Paul. Ele sentia uma ofensa contra o que sua mãe chamava de seu instinto de retidão. Não era que a Reverenda Madre estivesse mentindo para ele. Ela obviamente acreditava no que dizia. Era algo mais profundo, algo preso à sua terrível resolução. Ele disse:

— Mas minha mãe me diz que muitas Bene Gesserit das escolas não conhecem seus ancestrais.

— As linhas genéticas se encontram sempre em nossos registros — respondeu ela. — Sua mãe sabe que, ou ela é de ascendência Bene Gesserit, ou sua estirpe foi considerada aceitável em si mesma.

— Então por que ela não pode saber quem são seus pais?

— Algumas podem... muitas não. Podemos, por exemplo, querer uni-la a um parente próximo para produzir um fator dominante em alguma tendência genética. Nós temos muitas razões.

Novamente Paul sentiu uma ofensa contra sua retidão. Comentou:

— Vocês exigem muito de si mesmas.

A Reverenda Madre olhou para ele imaginando: “Terei percebido uma crítica em sua voz?”

— Nós carregamos um fardo pesado — disse ela.

Paul se sentia emergindo cada vez mais do choque produzido pelo teste. Ele lançou um olhar de avaliação sobre ela e disse:

— Você diz que eu talvez seja o... Kwisatz Haderach. O que é isto? Um gom jabbar humano?

— Paul — pediu Jessica — você não deve usar esse tom...

— Eu cuidarei disso, Jessica — interrompeu a velha. — Agora, rapaz, você tem conhecimento da droga Reveladora da Verdade?

— Vocês a tomam para aumentar sua habilidade em detectar falsidade. Minha mãe me contou.

— Já teve oportunidade de vê-la em transe verdadeiro?

Ele sacudiu a cabeça:

— Não.

— A droga é perigosa mas produz percepção. Quando uma Reveladora da Verdade recebe o dom pela droga, ela pode observar muitos lugares em suas memórias — nas memórias de seu corpo. Nós olhamos ao longo de muitas avenidas para o passado... mas somente através de caminhos femininos. — A voz dela adquiriu um tom de tristeza. — Pois existe um lugar que nenhuma Reveladora da Verdade pode ver. Nós somos repelidas por ele, aterrorizadas. Diz-se que um homem virá um dia e encontrará no dom da droga a sua visão interior. Ele verá onde nós não podemos ver, em ambos, o passado feminino e o passado masculino.

— Este é o Kwisatz Haderach?

— Sim, aquele que pode estar em muitos lugares ao mesmo tempo: O Kwisatz Haderach. Muitos homens já tentaram a droga... tantos... mas nenhum teve sucesso.

— Eles tentaram e falharam? Todos eles?

— Oh, não! — ela sacudiu a cabeça. — Eles tentaram e morreram.

Tentar compreender o Muad'Dib sem entender seus inimigos mortais, os Harkonnen, é como tentar ver a Verdade sem conhecer a Falsidade. É uma tentativa de ver a Luz sem conhecer a Escuridão. Não pode ser bem-sucedida.

 

— do Manual do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Era um globo, em relevo, de um mundo parcialmente nas sombras, girando sob o ímpeto de uma mão gorda que brilhava cheia de anéis. O globo estava colocado num suporte, na parede de uma sala sem janelas, cujas demais paredes apresentavam uma miscelânea de rolos multicoloridos de pergaminhos, livros filmados, carretéis e teipes. Na sala brilhava uma luz que partia de bolas douradas suspensas por planos elevados móveis.

Uma mesa elipsóide, com um tampo de laca petrificada de cor rosa-jade, ocupava o centro da sala. Cadeiras suspensoras Veriformes colocavam-se à volta, duas delas estando ocupadas no momento. Em uma delas estava um jovem de cabelos negros, com aproximadamente dezesseis anos, de rosto redondo e olhos sombrios. Na outra um homem baixinho e magro, com um rosto efeminado.

Ambos, o homem e o jovem, olhavam para o globo e para o homem que, meio oculto pelas sombras, o fazia girar.

Um riso soou ao lado do globo. Uma voz grave trovejou no meio do riso.

— Lá está ele, Piter. A maior armadilha para homens em toda a história. E o Duque dirige-se para suas mandíbulas. Não é uma coisa magnífica que eu, o Barão Vladimir Harkonnen, a tenha feito?

— Seguramente, Barão — respondeu o homem. Sua voz saía como a de um tenor, com uma suave musicalidade.

A mão gorda desceu sobre o globo interrompendo sua rotação.

Agora todos os olhos podiam focalizar-se na superfície imóvel, percebendo que este era o tipo de globo feito para colecionadores ricos ou governadores planetários do Império. Tinha um selo de manufatura imperial sobre ele. As linhas de latitude e longitude eram traçadas com fios de platina da grossura de um cabelo. As calotas polares constituíam-se de incrustações dos melhores diamantes nuvem-leitosos.

A mão movia-se traçando detalhes na superfície.

— Eu o convido a observar — trovejou a voz. — Observe de perto, Piter. E você também, Feyd-Rautha, meu querido. De sessenta graus norte a setenta graus sul, estas delicadas ondulações. Suas cores não lhes lembram caramelos? E em parte alguma você vê o azul dos lagos, rios ou mares. E aquelas adoráveis calotas polares, tão pequenas! Pode alguém confundir este lugar? Arrakis! Verdadeiramente único. Um palco soberbo para uma vitória singular.

O sorriso tocou os lábios de Piter.

— E pensar, Barão, que o Imperador Padishah acredita estar entregando ao Duque seu planeta de especiaria. Que comovente!

— Esta é uma declaração insensata — rugiu o Barão. — Você diz isso para confundir o jovem Feyd-Rautha, mas não é necessário confundir meu sobrinho.

O jovem de cara amarrada remexeu-se na cadeira e alisou uma dobra na roupa negra que usava. Sentou ereto ao ouvir uma batida discreta na porta logo atrás.

Piter levantou-se, cruzou a sala e abriu a porta apenas o suficiente para receber um cilindro com mensagem. Fechou a porta e desenrolou o cilindro, lendo-o. Deu um risinho e depois outro.

— Então? — perguntou o Barão.

— O tolo nos responde, Barão.

— Quando é que um Atreides recusa a oportunidade para se expressar? — observou o Barão. — O que é que ele diz?

— Ele é muito rude, Barão. Trata-o por “Harkonnen”, não por “Sir e Querido Primo”, não há título nem nada.

— É um bom nome — resmungou o Barão, a voz denunciando sua impaciência. — Que diz o querido Leto?

— Ele diz: “Sua oferta para uma reunião é recusada. Eu já encontrei muitas vezes a sua traição e isto é algo que todos os homens conhecem.”

— E...? — indagou o Barão.

— Ele diz: “A arte do kanly ainda tem seus admiradores no Império.” E assina: “Duque Leto de Arrakis.” — Piter começou a rir. — De Arrakis! Oh, meu! É demais!

— Cale-se, Piter! — exigiu o Barão e a risada foi interrompida como se um botão fosse acionado. — Kanly, é? Uma vendetta, hein? E ele usa esta ótima palavra antiga, tão rica em tradições, para estar certo de que eu saberei seu significado.

— Fizeste o gesto de paz — disse Piter. — As convenções foram obedecidas.

— Para um Mentat você fala demais, Piter — respondeu o Barão, enquanto pensava: “Devo me livrar dele logo. Ele quase já viveu além da sua utilidade.” Olhou o assassino Mentat do outro lado da sala, observando o detalhe em suas feições que a maioria das pessoas reparava primeiro: os olhos, as fendas obscurecidas de azul dentro de azul, olhos sem nenhum branco.

O sorriso abria-se na face de Piter. Como uma careta sob aqueles olhos que pareciam fendas.

— Mas, Barão! Nunca uma vingança foi mais bela. É observar um plano da mais requintada traição: fazer Leto trocar Caladan por Duna, e sem ter alternativa devido às ordens do Imperador... Como o senhor é divertido!

Numa voz fria o Barão disse:

— Você tem a língua solta, Piter.

— Mas sou feliz, meu Barão. Enquanto o senhor... o senhor é tocado pelo ciúme.

— Piter!

— Ah, ah, Barão! Não é lamentável que o senhor fosse incapaz de conceber este delicioso plano por si mesmo?

— Algum dia eu o farei estrangular, Piter.

— Certamente, Barão. Enfim! Mas um ato de bondade nunca se perde, não é mesmo?

— Andou mastigando verita ou semuta, Piter?

— A verdade sem medo surpreende o Barão? — indagou Piter, seu rosto numa caricatura da expressão grave. — Ah, ah! Mas como vê, Barão, eu sei, como Mentat, quando irá mandar o executor. Vai esperar pelo tempo que eu for útil. Fazê-lo cedo demais seria desperdício e eu ainda sou muito útil. Eu conheço o que aprendeu daquele adorável planeta Duna. “Não desperdiçar.” Não é verdade, Barão?

O Barão continuava fitando Piter.

Feyd-Rautha se remexeu na cadeira. “Estes tolos polêmicos!”, pensava. “Meu tio não consegue falar com seus Mentat sem discutir. Será que eles pensam que não temos mais o que fazer além de ouvir os seus argumentos?”

— Feyd — disse o Barão. — Eu lhe recomendei que ouvisse e aprendesse, quando foi convidado a vir aqui. Está ouvindo?

— Sim, tio. — A voz era cuidadosamente subserviente.

— Algumas vezes eu me pergunto quanto a Piter — continuou o Barão. — Eu provoco o sofrimento quando é necessário, mas ele... Eu juraria que ele tira um prazer do sofrimento. Por mim eu posso sentir pena do pobre Duque Leto. O Dr. Yueh agirá contra ele logo e isto será o fim dos Atreides. Mas certamente Leto saberá qual a mão que dirigiu o dócil doutor... e saber será uma coisa terrível.

— Então, por que não dirigiu o doutor no sentido de mergulhar uma kindjal entre as costelas dele de um modo silencioso e eficiente? — indagou Piter. — Fala em piedade, mas...

— O Duque deve saber quando eu encerrar o seu destino — interrompeu o Barão. — E todas as outras Grandes Casas devem saber também. O conhecimento lhes dará uma pausa. E eu ganharei mais espaço para manobras. A necessidade é óbvia, mas eu não tenho que gostar dela.

— Espaço para manobras — zombou Piter. — Já tem os olhos do Imperador a observá-la, Barão. Está se movendo de um modo muito ousado. Um dia o Imperador mandará uma legião ou duas do seu Sardaukar descer aqui, em Giedi Prime, e isto será o fim do Barão Vladimir Harkonnen.

— Você gostaria de ver isto, não gostaria, Piter? — indagou o Barão. — Você apreciaria a visão do Corpo de Sardaukar pilhando minhas cidades e saqueando este castelo. Verdadeiramente adoraria isto.

— O Barão precisa perguntar? — sussurrou Piter.

— Você deveria ser um Bashar. É muito interessado em sangue e dor. Talvez eu tenha me precipitado prometendo o espólio de Arrakis.

Piter deu cinco passos miúdos na sala e parou exatamente atrás de Feyd-Rautha. Havia uma tensão no ar dentro da sala e o jovem olhou para Piter com uma expressão preocupada.

— Não brinque com Piter, Barão. Você me prometeu Lady Jessica. Você prometeu-a para mim.

— Para quê, Piter? — indagou o Barão. — Para causar dor?

Piter olhou-o, prolongando o silêncio.

Feyd-Rautha moveu sua cadeira suspensora para o lado e perguntou:

— Tio, eu tenho que ficar? Você disse...

— Meu querido Feyd-Rautha está impaciente — disse o Barão, movendo-se nas sombras ao lado do globo. — Paciência, Feyd — e então voltou a atenção para o Mentat. — E quanto ao filho do Duque, o garoto Paul, meu caro Piter?

— A armadilha vai trazê-lo para o senhor, Barão — murmurou Piter.

— Não foi essa a minha pergunta. Você se lembra de que previu que a feiticeira Bene Gesserit daria uma filha ao Duque. E estava errado, Mentat.

— Eu não erro freqüentemente, Barão — disse Piter, demonstrando pela primeira vez medo na voz. — Reconheça isso: eu não erro freqüentemente. E deve saber que estas Bene Gesserit geram principalmente filhas. Mesmo a consorte do Imperador produziu apenas meninas.

— Tio — disse Feyd-Rautha —, você afirmou que haveria alguma coisa de importante para mim aqui...

— Escute só o meu sobrinho. Ele aspira a governar o meu baronato, e no entanto não consegue governar a si próprio. — O Barão se mexeu ao lado do globo, uma sombra entre sombras. — Está bem, Feyd-Rautha Harkonnen. Convoquei-o aqui esperando lhe ensinar um pouco de sabedoria. Você já observou o nosso bom Mentat? Devia ter aprendido alguma coisa desta discussão.

— Mas, tio...

— Piter é um Mentat bastante eficiente, não diria, Feyd?

— Sim, mas...

— Ah! De fato, mas! Ele consome muita especiaria, come como se fosse doce. Olhe nos seus olhos. Ele poderia ter vindo diretamente de um grupo de trabalho Arrakeen. O eficiente Piter, mas ainda emocional e dado a explosões acaloradas. O eficiente Piter, mas ainda capaz de errar.

Piter falou em voz baixa, num tom mal-humorado.

— Chamou-me aqui para prejudicar minha eficiência com críticas, Barão?

— Prejudicar sua eficiência? Você me conhece bem, Piter. Eu queria apenas que meu sobrinho entendesse as limitações de um Mentat.

— Já começou a treinar o meu substituto?

— Substituir você? Por que, Piter? Onde eu encontraria outro Mentat com a sua astúcia e peçonha?

— No mesmo lugar onde me encontrou, Barão.

— Talvez devesse fazer isso — disse o Barão. — Você me parece um pouco instável ultimamente. E toda a especiaria que come!

— Os meus prazeres são muito dispendiosos, Barão? Faz objeção a eles?

— Meu querido Piter, são seus prazeres que o prendem a mim. Como poderia fazer objeção a eles? Eu apenas desejava que meu sobrinho o observasse.

— Então estou em exposição. Devo dançar? Devo realizar minhas várias funções para que o eminente Feyd-Rau...

— Precisamente — disse o Barão. — Você está em exposição. Agora fique calado. — Olhou para Feyd-Rautha notando os lábios grossos e salientes do sobrinho, marca genética dos Harkonnen, agora se torcendo ligeiramente com o divertimento. — Este é um Mentat, Feyd. Ele foi treinado e condicionado para realizar certas funções. O fato de vir embalado num corpo humano, contudo, não deve ser esquecido. É uma séria desvantagem. As vezes acho que os antigos com suas máquinas pensantes é que estavam certos.

— Elas eram brinquedos comparados comigo — resmungou Piter. — Até você, Barão, poderia superar aquelas máquinas.

— Talvez — disse o Barão. — Ah, bem... — Respirou fundo e arrotou. — Agora, Piter, delineie para o meu sobrinho os pontos principais de nossa campanha contra a Casa de Atreides. Funcione como um Mentat para nós, por favor. 

— Barão, já lhe adverti para não confiar informações a alguém tão jovem. Minhas observações do...

— Eu serei o juiz quanto a isso. E lhe dei uma ordem, Mentat. Realize uma de suas várias funções.

— Assim seja — disse Piter. Ele se empertigou, assumindo uma estranha atitude de dignidade, como se fosse outra máscara, só que desta vez cobrindo todo o seu corpo. — Em alguns dias, tempo Standard, todos os membros da casa do Duque Leto embarcarão numa nave de carreira da Corporação Espacial para Arrakis. A Corporação deverá desembarcá-los na cidade de Arrakeen, em vez de na nossa cidade de Carthag. O Mentat do Duque, Thufir Hawat, terá concluído, com razão, que Arrakeen é mais fácil de ser defendida.

— Ouça cuidadosamente, Feyd — recomendou o Barão. — Observe os planos dentro dos planos, dentro dos planos.

Feyd-Rautha acenou com a cabeça, pensando: “Isto se parece mais com ele. O velho monstro está me deixando penetrar em seus segredos finalmente. Ele deve realmente tencionar fazer de mim o seu herdeiro.”.

— Existem muitas possibilidades tangenciais — continuou Piter.

— Eu indiquei que a casa de Atreides viajará para Arrakis. Não devemos contudo ignorar a possibilidade de que o Duque tenha contratado a Corporação para removê-la para um lugar seguro fora do Sistema. Em circunstâncias semelhantes outros se tornaram Casas renegadas, levando a família, os escudos e o equipamento atômico para longe do Império.

— O Duque é um homem muito orgulhoso para fazer isso — observou o Barão.

— É uma possibilidade — disse Piter. — O efeito final para nós seria o mesmo.

— Não, não seria! — rosnou o Barão. — Eu o quero morto e sua linhagem acabada.

— Esta é uma alta probabilidade — continuou Piter. — Existem certos preparativos que indicam quando uma Casa está prestes a se tornar renegada. O Duque não parece estar fazendo nenhuma destas coisas.

— Certo — suspirou o Barão. — Prossiga, Piter.

— Em Arrakeen o Duque e sua família ocuparão a Residência, ultimamente o lar do Conde e de Lady Fenring.

— O Embaixador dos Contrabandistas — riu o Barão.

— Embaixador do quê? — indagou Feyd-Rautha.

— Seu tio estava fazendo troça — observou Piter. — Ele chama o Conde Fenring de Embaixador dos Contrabandistas, indicando o interesse do Imperador nas operações de contrabando em Arrakis.

Feyd-Rautha olhou intrigado para seu tio.

— Por quê?

— Não seja obtuso, Feyd — retrucou o Barão. — Enquanto a Corporação permanecer efetivamente fora do controle imperial, não poderá ser de outro modo. Senão, como poderiam os espiões e os assassinos se deslocar de um ponto a outro?

A boca de Feyd-Rautha fez um “oh” mudo.

— Nós arranjamos algumas “distrações” na Residência — continuou Piter.

— Haverá um atentado contra a vida do herdeiro dos Atreides. Um atentado que pode ser bem-sucedido.

— Piter — resmungou o Barão. — Você sugere...

— Eu indiquei que acidentes podem acontecer. E o atentado deve parecer real.

— Ah, mas o rapaz é um jovem tão encantador — lamentou o Barão. — É claro que ele é potencialmente mais perigoso que o pai... e com aquela mãe-bruxa a treiná-lo. Maldita mulher! Mas por favor, continue, Piter.

— Hawat terá previsto que temos um agente plantado entre eles. O suspeito óbvio é o Dr. Yueh, que é de fato o nosso agente. Todavia Hawat investigou e descobriu que o nosso doutor é um graduado da Escola Suk, com Condicionamento Imperial supostamente seguro para servir até mesmo ao Imperador. Tem-se grande confiança no Condicionamento Imperial. Presume-se que o condicionamento final não possa ser quebrado sem matar o indivíduo a ele submetido. Entretanto, como alguém observou certa vez, dada a alavanca adequada, pode-se mover até um planeta. Nós encontramos a alavanca que moveria o doutor.

— Como? — indagou Feyd-Rautha. Achava o assunto fascinante. Todos sabiam ser impossível subverter um Condicionamento Imperial.

— Em outra ocasião — respondeu o Barão. — Continue, Piter.

— No lugar de Yueh, nós colocaremos um suspeito muito interessante no caminho de Hawat. A própria audácia da suspeita fará com que Hawat volte sobre ela as suas dúvidas.

— Ela? — indagou Feyd-Rautha.

— Lady Jessica em pessoa — disse o Barão.

— Não é sublime? — indagou Piter. — A mente de Hawat ficará tão atraída por esta perspectiva que perturbará suas funções como Mentat. Ele pode mesmo tentar matá-la — matutou Piter. — Mas não creio que ele consiga.

— Ou não deseja, não é mesmo? — perguntou o Barão.

— Não me distraia. Enquanto Hawat está ocupado com Lady Jessica, nós o distrairemos ainda mais com levantes em algumas das cidades ocupadas por guarnições. Estes deverão ser dominados, afinal o Duque deve acreditar que tem o controle da situação. E então, quando tudo estiver suficientemente amadurecido, nós enviaremos o sinal para o Dr. Yueh e atacaremos com nosso maior trunfo... ah...

— Prossiga, conte a ele — recomendou o Barão.

— Entraremos em ação reforçados por duas legiões de Sardaukar disfarçadas com uniformes dos Harkonnen.

— Sardaukar! — sussurrou Feyd-Rautha, sua mente focalizada nas terríveis tropas imperiais, os matadores sem piedade, os fanáticos soldados do Imperador Padishah.

— Está vendo como eu confio em você, Feyd — disse o Barão.

— Nenhum indício disto deverá jamais chegar ao conhecimento das outras Grandes Casas, ou o Landsraad se unirá contra a Casa Imperial e será o caos.

— O ponto principal — continuo Piter — é este: uma vez que a casa dos Harkonnen está sendo usada para fazer o trabalho sujo imperial, nós obteremos uma verdadeira vantagem. É uma vantagem perigosa, certo, mas se usada com cautela levará a casa Harkonnen a uma riqueza maior do que a de qualquer outra Casa do Império.

— Você não faz idéia de quanta riqueza está envolvida, Feyd. — disse o Barão. — Nem em seus sonhos mais extravagantes. Só para começar, nós possuiremos o controle ditatorial irrevogável da Companhia CHOAM.

Feyd-Rautha assentiu. Riqueza era o objetivo. E CHOAM era a chave para a riqueza, com cada uma das nobres Casas nutrindo-se dos cofres da Companhia, sempre que o poder das ditaduras o permitia. Essas ditaduras CHOAM eram a verdadeira evidência do poder político do Império, sucedendo-se com as mudanças no peso dos votos dentro da Landsraad, enquanto esta se equilibrava contra o Imperador e aqueles que o apoiavam.

— O Duque de Leto — disse Piter — pode tentar se refugiar entre a escória dos Fremen, junto à orla do deserto. Ou pode tentar enviar sua família para essa segurança imaginária. Mas esse caminho encontra-se bloqueado por um dos agentes de sua majestade: Kynes, o ecologista planetário. Deve se recordar dele.

— Feyd se lembra, continue — disse o Barão.

— Bancar o tolo não é bonito, Barão — disse Piter.

— Continue a explicação, eu o ordeno! — rugiu o Barão.

Piter deu de ombros.

— Se as coisas correrem como planejado continuou, a casa de Harkonnen terá um subfeudo em Arrakis dentro de um ano Standard. Seu tio será dispensado daquele feudo mas seu próprio agente pessoal governará Arrakis.

— Mais lucros — comentou Feyd-Rautha.

— De fato — disse o Barão, e pensou: “Será justo, fomos nós que conquistamos Arrakis... com exceção de alguns mestiços Fremen que se esconderam nas orlas do deserto... e alguns contrabandistas subjugados, presos ao planeta quase tão profundamente quanto os trabalhadores nativos.”

— E as Grandes Casas saberão que o Barão destruiu os Atreides — terminou Piter. — Elas saberão.

— Elas saberão — sussurrou o Barão.

— O mais adorável de tudo — observou Piter — é que o Duque saberá também. Ele já sabe mesmo agora. Pode sentir a armadilha.

— É verdade que o Duque sabe — recordou o Barão, e sua voz tinha um toque de tristeza. — Ele não pode evitar o conhecimento... maior é a pena.

O Barão moveu-se para longe do globo de Arrakis e à medida que emergia das sombras, sua figura ganhava dimensão. Imensamente gordo, com protuberâncias por baixo das dobras de seu manto negro que indicavam ser toda essa gordura sustentada em parte por suspensores portáteis presos à sua pele. Ele devia pesar duzentos quilos Standard, em realidade, porém, seus pés não poderiam suportar mais do que cinqüenta.

— Estou faminto — resmungou o Barão enquanto roçava seus lábios proeminentes com a mão inchada, fitando Feyd-Rautha através dos olhos quase ocultos por dobras de gordura. — Peça comida, meu querido. Nós faremos uma refeição antes de nos retirarmos.

 

Assim falou Santa Alia-da-Faca: A Reverenda Madre deve combinar a malícia sedutora de uma cortesã à intocável majestade de uma deusa virgem, mantendo esses atributos sob tensão pelo tempo que durarem os poderes de sua juventude. Pois quando a beleza e a juventude se forem, ela descobrirá que o ponto médio, antes local de equilíbrio entre tensões, transformou-se numa fonte de astúcia e desenvoltura.”

 

— de Comentários Familiares do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

— Bem, Jessica, que tem a dizer em sua defesa? — perguntou a Reverenda Madre.

Era quase a hora do poente no Castelo Caladan, no dia do teste de Paul. As duas mulheres estavam sozinhas na sala matinal de Jessica, enquanto Paul aguardava na Câmara de Meditação, adjacente e à prova de som.

Jessica se encontrava de pé, voltada para as janelas do lado sul.

Ela fitava, e contudo não via, as cores do entardecer através dos prados e do rio. Escutara e todavia não gravara a pergunta da Reverenda Madre.

Houvera outra prova uma vez, há muitos anos. Uma menina magricela com o cabelo da cor do bronze e o corpo torturado pelos ventos da puberdade entrara no estúdio da Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, Inspetora Superior da escola Bene Gesserit em Wallach IX. Jessica olhou para sua mão direita, flexionou os dedos lembrando-se da dor, do terror, do ódio.

— Pobre Paul! — sussurrou ela.

— Eu lhe fiz uma pergunta, Jessica! — A voz da velha era autoritária, exigente.

— O quê? Oh... — Jessica afastou sua atenção do passado, encarando a Reverenda Madre, que se sentava com as costas para a parede de pedra entre as duas janelas do oeste. — O que espera que eu diga?

— O que espero que você diga? O que espero que você diga? — A voz da velha tinha um tom cruel de imitação.

— Ah, sim, eu tive um filho! — desabafou Jessica, sabendo que sua raiva estava sendo deliberadamente estimulada.

— Você fora instruída para conceber apenas filhas para os Atreides.

— Significava muito para ele — justificou ela.

— E você em seu orgulho não pensou que poderia dar à luz o Kwisatz Haderach!

Jessica ergueu o queixo.

— Eu senti a possibilidade.

— E pensou apenas no desejo do seu Duque por um filho — retrucou a velha. — E seus desejos não entraram nisso. Uma filha dos Atreides poderia se casar com o herdeiro dos Harkonnen e selar este ramo. Você complicou tudo inapelavelmente. Podemos perder ambas as linhas de sangue agora.

— Você não é infalível — disse Jessica enfrentando o olhar firme da outra.

A velha apenas murmurou:

— O que está feito está feito.

— Eu jurei que nunca me arrependeria de minha decisão.

— Quão nobre! Sem arrependimentos! Vamos ver isso quando você for uma fugitiva, com um preço sobre sua cabeça e a mão de cada homem voltada para buscar sua vida e a vida de seu filho.

Jessica empalideceu:

— Não existe alternativa?

— Alternativa? Uma Bene Gesserit deve perguntar isso?

— Pergunto apenas o que vê no futuro, com suas habilidades.

— Vejo no futuro o que já vi no passado. Nós bem sabemos o padrão de nossas vidas, Jessica. A raça conhece a sua própria mortalidade e teme a estagnação de sua hereditariedade. Está no sangue o impulso para misturar linhas genéticas sem qualquer plano. O Império, a Companhia CHOAM, todas as Grandes Casas, não passam de fragmentos na trilha da inundação.

— CHOAM — murmurou Jessica. — Suponho que já está decidido como eles dividirão os espólios de Arrakis.

— O que é a CHOAM senão o indicador dos ventos que sopram em nossos tempos? — continuou a velha. — O Imperador e seus amigos agora controlam cinqüenta e nove vírgula sessenta e cinco por cento dos votos na ditadura CHOAM. Certamente eles farejam lucros e é provável que outros, farejando esses mesmos lucros, aumentem seu poder de voto. Este é o padrão da história, garota.

— Isso é certamente o que preciso agora — comentou Jessica. — Uma revisão histórica.

— Não seja espirituosa, menina! Você conhece, assim como eu conheço, as forças que nos cercam. Nós temos uma civilização equilibrada em três pontos: a Casa Imperial mantida em equilíbrio com a Federação das Grandes Casas de Landsraad, e entre as duas a Corporação, com seu maldito monopólio no transporte interestelar. Na política, o tripé é a mais instável das estruturas. Já seria bastante ruim sem as complicações de uma cultura de comércio feudal que volta suas costas para a maior parte do conhecimento científico.

Jessica comentou amargamente:

— Fragmentos na trilha da enchente, e este fragmento aqui é o Duque de Leto, e aquele outro é o seu filho, e este aqui...

— Cale a boca, garota! Você entrou nisso sabendo que caminhava numa corda bamba.

— Eu sou uma Bene Gesserit, existo apenas para servir — citou Jessica.

— Verdade. E tudo que nos resta esperar é tentar evitar que isso resulte numa conflagração generalizada, salvando o que pudermos das linhas-chave de sangue.

Jessica fechou seus olhos sentindo as lágrimas pressionarem por baixo das pálpebras. Lutou para acalmar os tremores interiores e exteriores, a respiração descompassada, o pulso rápido, o suor nas palmas. Em seguida ela disse:

— Eu pagarei pelo meu próprio erro.

— E seu filho pagará também.

— Eu o protegerei no que for capaz.

— Proteger! — vociferou a velha. — Você sabe a fraqueza que existe nisso! Proteja seu filho em demasia, Jessica, e ele não crescerá forte para cumprir qualquer destino.

Jessica deu as costas olhando pela janela para a escuridão crescente.

— É realmente tão terrível esse planeta Arrakis?

— Suficientemente ruim, mas não inteiramente. A Missionária Protetora tem estado lá e suavizado um pouco o lugar. — A Reverenda Madre levantou-se, endireitando uma dobra em sua veste. — Chame o rapaz aqui. Eu devo partir logo.

— Deve, realmente?

A velha abrandou sua voz:

— Jessica, minha menina, eu desejaria poder ficar em seu lugar e suportar seus sofrimentos. Mas cada uma de nós deve seguir seu próprio caminho.

— Eu sei.

— Você me é tão cara quanto qualquer uma de minhas próprias filhas, mas não posso permitir que isso interfira com o dever.

— Entendo... a necessidade.

— O que você fez, Jessica, e por que o fez, ambas sabemos. Mas a bondade me força a dizer-lhe que há pouca chance de que o seu garoto seja a Totalidade Bene Gesserit. Não deve se permitir esperar demais.

Jessica sacudiu as lágrimas dos cantos dos olhos num gesto de raiva.

— Você faz com que eu me sinta uma menina novamente, a recitar minha primeira lição. — Ela forçou as palavras para fora da boca: — “Humanos jamais se submetem aos animais”. — Um soluço sacudiu seu corpo e em voz baixa Jessica acrescentou: — Tenho sido tão solitária.

— Este é um dos testes — observou a velha. — Humanos são quase sempre solitários. Agora chame o rapaz. Ele teve um dia longo e assustador. Mas teve tempo para pensar e se lembrar, e eu devo fazer as outras perguntas sobre esses seus sonhos.

Jessica acenou afirmativamente, foi até a porta da Câmara de Meditação e abriu-a.

— Paul, venha aqui agora, por favor.

Paul caminhou com uma lentidão obstinada e olhou para sua mãe como se ela fosse uma estranha. Havia cautela em seus olhos quando ele observou a Reverenda Madre, mas desta vez ele deu-lhe a reverência destinada a um igual. Ouviu sua mãe fechar a porta nas suas costas.

— Jovem — disse a velha —, voltemos a essa questão dos sonhos.

— O que deseja?

— Você sonha toda noite?

— Nem sempre sonhos que valham a pena recordar. Posso lembrar cada sonho, mas alguns valem a pena ser lembrados e outros não.

— Como sabe a diferença?

— Apenas sei.

A velha olhou para Jessica, e tornou a olhar para Paul.

— E o que sonhou na noite passada? Valia a pena lembrar?

— Sim. — Paul fechou os olhos. — Sonhei com uma caverna... e água... e uma garota muito magra com olhos grandes. Os olhos dela eram totalmente azuis, não tinham branco. Falo com ela e conto a seu respeito, sobre ver a Reverenda Madre em Caladan. — Abriu os olhos.

— E o que contou a essa garota estranha a meu respeito? Foi o que aconteceu hoje?

Paul pensou antes de falar.

— Sim, eu digo a essa garota que você veio e colocou uma marca de estranheza em mim.

— “Marca de estranheza”. — A velha respirou e olhou rápido para Jessica novamente. — Diga-me sinceramente agora, Paul, você sempre sonha com coisas que depois acontecem exatamente como você sonhou?

— Sim, e eu já sonhei com essa garota antes.

— Oh! Você a conhece?

— Não, mas vou conhecê-la.

— Fale-me a respeito dela.

Mais uma vez Paul fechou os olhos.

— Encontramos num pequeno lugar um abrigo entre as rochas. É quase noite, mas está quente e posso ver trechos arenosos, por uma abertura nas rochas. Estamos... esperando por alguma coisa... para que eu vá encontrar algumas pessoas... e ela está assustada mas tenta ocultar isso de mim e eu estou excitado. E ela diz: “Conte-me sobre as águas de seu mundo, Usul.” — Paul abre os olhos. — Não é estranho? Meu mundo é Caladan. Nunca ouvi falar num planeta chamado Usul.

— Há mais alguma coisa nesse sonho? — indagou Jessica.

— Sim, mas talvez ela esteja me chamando de Usul. Já pensei nisso. —Novamente ele fechou os olhos. — Ela me pede para falar sobre as águas. Seguro suas mãos e lhe recito um poema, mas tenho que explicar a ela o significado de palavras como praia, arrebentação, algas e gaivotas.

— Qual é o poema? — perguntou a Reverenda Madre.

Paul abriu os olhos.

— É apenas um dos poemas de Gurney Halleck para as ocasiões tristes.

Atrás de Paul, Jessica começa a recitar:

 

“Relembro a fumaça salgada de uma fogueira na praia

E as sombras sobre os pinheiros —

Sólidas, firmes... fixas —

Gaivotas empoleiradas na borda da terra,

Branco sobre o verde...

E um vento chega através dos pinheiros,

Fazendo ondular as sombras,

As gaivotas abrem suas asas

Sobem

Enchendo o céu com estridências.

E eu ouço o vento

Soprando sobre nossa praia,

E a arrebentação,

E vejo que nosso fogo

Queimou as algas.”

 

— É esse — disse Paul.

A velha observou-o e disse:

— Jovem, como uma Inspetora das Bene Gesserit, busco o Kwisatz Haderach, o homem que pode realmente se tornar um de nós. Sua mãe vê essa possibilidade em você, mas ela olha com olhos de mãe. Possibilidade eu também vejo, mas nada além disso.

Ela então ficou em silêncio, e Paul percebeu que esperava que ele dissesse algo. Ficou calado. Daí a pouco ela disse:

— Como quiser, então. Há profundezas em seu espírito que eu reconheço.

— Posso ir embora agora? — perguntou.

— Não quer ouvir o que a Reverenda Madre pode lhe explicar sobre o Kwisatz Haderach? — indagou Jessica.

— Ela disse que aqueles que tentaram obter o título morreram.

— Mas eu posso lhe dar alguns indícios sobre o motivo por que eles falharam — explicou a Reverenda Madre.

“Ela fala de indícios”, pensou Paul. “Ela não sabe de nada realmente.”

— Indique então.

— E me dane? — A velha sorriu amargamente, formou-se uma teia de vincos em sua face. — Muito bem: “Aquele que se submete governa.”

Ficou perplexo. Ela estava falando a respeito de coisas tão elementares quanto tensão dentro de significado. Será que pensava que sua mãe não lhe ensinara nada?

— Isso é uma indicação? — indagou.

— Não estamos aqui para trocar palavras ou discutir seus significados — respondeu ela. — O salgueiro submete-se ao vento e prospera, até um dia em que se tornam muitos salgueiros: uma muralha contra o vento. Este é o propósito do salgueiro.

Paul olhava para ela. Ela dizia propósito e ele sentia a palavra atingi-la, recontaminando-o com o terrível propósito. Experimentava uma raiva súbita contra a mulher. Essa velha bruxa estúpida com sua boca cheia de chavões.

— Você pensa que eu posso ser o Kwisatz Haderach e fala comigo — disse ele. — Mas não disse nada quanto ao modo de ajudarmos o meu pai. Eu a ouvi falando para minha mãe. Falando de meu pai como se ele já estivesse morto. Bem, ele não está!

— Se houvesse alguma coisa a ser feita por ele, nós a teríamos feito — resmungou a velha. — Podemos conseguir salvar você. Há dúvida quanto a isso, mas é possível. Quanto a seu pai, não há nada. Quando tiver aprendido a aceitar esse fato, terá aprendido a verdadeira lição Bene Gesserit.

Paul observou como as palavras abalavam sua mãe e olhou com raiva para a velha. Como é que ela podia dizer uma coisa dessas em relação a seu pai? O que a fazia tão certa? Sua mente fervia de ressentimento. A Reverenda Madre voltou-se para Jessica.

— Você esteve treinando-o no Caminho. Eu vi os indícios. Teria feito o mesmo em seu lugar, e o diabo carregue as Regras.

Jessica assentiu.

— Agora tenha cuidado de ignorar as ordens regulares de treinamento. A própria segurança dele exige a Voz. Ele já teve um bom começo mas nós sabemos o quanto mais precisa aprender... e isso desesperadamente. Ela caminhou para junto de Paul e abaixou a cabeça para fitá-la.

— Adeus, meu jovem. Espero que você consiga. Mas se não conseguir... bem, nós ainda assim poderemos ter êxito.

Uma vez mais ela olhou para Jessica. Um sinal de compreensão passou entre elas e então a velha deixou a sala, seus mantos sibilando, sem olhar para trás. A sala e seus ocupantes já estavam cancelados em seus pensamentos. Mas Jessica conseguira vislumbrar o rosto da Reverenda Madre enquanto ela se voltava para sair. Havia lágrimas nas faces enrugadas. Essas lágrimas eram mais assustadoras que qualquer outra palavra ou sinal que houvessem trocado naquele dia.

 

Deve ter lido que Muad'Dib não tinha colegas de sua idade em Caladan. Os perigos eram muito grandes. Mas Muad'Dib tinha maravilhosos mestres companheiros. Havia Gurney Halleck, o guerreiro-trovador. Você cantará algumas das canções de Gurney enquanto ler este livro. Havia Thufir Hawat, o velho Mentat, Mestre dos Assassinos, que lançava o medo até mesmo no coração do imperador Padishah. Lá estava Duncan Nabo, o mestre espadachim de Ginaz, o Dr. Wellington Yueb, um nome negro de traição mas brilhante de conhecimento, Lady Jessica, que guiou seu filho no Caminho das Bene Gesserit e — é claro — o Duque Leto, cujas qualidades como pai por muito tempo foram subestimadas.

 

— de História da infância do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Thufir Hawat deslizou para dentro da sala de treinamento do Castelo Caladan fechando a porta suavemente. Ficou parado um momento, sentindo-se velho, cansado. Sua perna esquerda doía onde fora ferida uma vez, a serviço do Velho Duque.

“Três gerações deles agora”, pensou ele.

Olhou através da grande sala, brilhante com a luz derramando-se das clarabóias. Viu o garoto sentado com as costas para a porta, atento aos papéis e mapas espalhados sobre a mesa.

“Quantas vezes devo dizer a ele que nunca se sente com as costas para a porta?” Hawat limpou a garganta.

Paul continuou curvado sobre seus estudos.

A sombra de uma nuvem passou sobre as clarabóias. Novamente Hawat pigarreou.

Paul endireitou o corpo falando sem se voltar:

— Eu sei, estou sentado com as costas para a porta.

Hawat suprimindo um sorriso caminhou através da sala.

Paul olhou para o homem velho, de cabelos grisalhos, que parou junto à extremidade da mesa. Os olhos de Hawat eram duas poças de vigilância num rosto escuro e profundamente vincado.

— Eu o ouvi aproximar-se pelo corredor — disse Paul. — E também quando abriu a porta.

— Os sons que faço podem ser imitados.

— Eu saberia a diferença.

“Ele poderia”, pensou Hawat. “Aquela sua mãe-bruxa está fazendo-o passar por um profundo treinamento, com certeza. Gostaria de saber o que a sua preciosa escola pensa disso. Deve ter sido por isso que elas mandaram a Inspetora aqui: para colocar nossa querida Lady Jessica na linha.”

Hawat puxou uma cadeira diante de Paul e sentou-se de frente para a porta. Fez isso de propósito, inclinou-se para trás e estudou a sala. Parecia-lhe um lugar subitamente curioso, estranho, com a maior parte de seu mobiliário já despachada para Arrakis. Permanecia uma mesa de treino e um espelho de esgrima, com seus prismas de cristal imóveis, o boneco-alvo por trás deles, remendado e estofado como um antigo soldado de infantaria, mutilado e combalido pelas guerras.

“Lá estou eu”, pensou Hawat.

— Thufir, em que está pensando? — indagou Paul.

Hawat olhou para o rapaz.

— Eu estava pensando que logo estaremos longe daqui e talvez nunca mais vejamos este lugar de novo.

— Isso o deixa triste?

— Triste? Tolice! Abandonar amigos, sim, é tristeza. Um lugar é só um lugar. — Olhou para os mapas sobre a mesa. — E Arrakis é apenas outro lugar.

— Meu pai o mandou para me testar?

Hawat olhou-o, carrancudo. O rapaz tinha grandes poderes de observação sobre ele. Acenou afirmativamente.

— Você deve achar que seria melhor se ele viesse em pessoa, mas sabe como é ocupado. Ele virá depois.

— Estive estudando as tempestades em Arrakis.

— As tempestades. Eu vejo.

— Parecem muito ruins.

— Este é um termo muito brando: ruim. Aquelas tempestades se formam através de seis ou sete mil quilômetros de planície, alimentando-se de tudo que possa contribuir para impulsioná-las. A força de coriolis, outras tempestades, qualquer coisa que tenha um grama sequer de energia. Elas podem soprar com ventos de até setecentos quilômetros horários, carregados com tudo que estiver solto em seu caminho: areia, pó, tudo. Elas podem comer a carne dos ossos e lixar os ossos até transformá-los em pequenas lascas.

— Por que eles não possuem controle climático?

— Arrakis sofre problemas muito especiais, os custos são altos e haveria manutenção e tudo o mais. A Corporação cobra um preço espantoso por satélites de controle e a casa de seu pai não é uma das mais ricas, garoto. Você sabe disso.

— Já chegou a ver os Fremen?

“A mente do garoto está se movendo em todas as direções hoje”, pensou Hawat.

— É como se não os tivesse visto. Há muito pouca coisa que os distingua do resto do povo mais pobre. Todos usam aqueles mantos longos e fedem horrivelmente em qualquer espaço fechado. É por causa daqueles trajes que vestem. Chamam-nos trajes destiladores, que recuperam a água eliminada pelo corpo.

Paul engoliu em seco, percebendo subitamente a umidade em sua boca, lembrando-se de ter sonhado com sede. Que pessoas pudessem ter tanta necessidade de água a ponto de reciclarem a própria umidade de seus corpos produzia nele um sentimento de tristeza.

— A água é preciosa lá — disse.

Hawat concordou com um aceno, pensando: “Talvez eu esteja conseguindo, passando para ele a importância desse planeta como um inimigo. É loucura ir lá sem essa medida de cautela em nossas mentes.”

Paul olhou para a clarabóia, percebendo que começara a chover. Viu a água se espalhando sobre o metavidro cinzento.

— Água! — exclamou.

— Você aprenderá a dar grande importância à água — continuou Hawat. — Como filho do Duque, você nunca terá falta dela, mas verá as pressões da sede à sua volta.

Paul umedeceu os lábios com a ponta da língua, pensando naquele dia, fazia uma semana, e em sua provação com a Reverenda Madre, ela também dissera alguma coisa a respeito da sede.

— Você aprenderá sobre as planícies funerárias — dissera ela. — Sobre o deserto vazio, a vastidão onde nada vive exceto a especiaria e os vermes da areia. Você protegerá seus olhos contra o clarão do sol. Abrigo significará um buraco longe do vento e oculto à vista. Você caminhará sobre os dois pés, sem montaria, carro de solo ou “tóptero”.

E Paul percebera mais no tom da voz dela, uma cantilena irregular, do que nas palavras.

— Quando se vive em Arrakis — dissera ela —, khala, a terra, é vazia. As luas serão suas amigas e o sol seu adversário.

Paul sentiu sua mãe ficar ao seu lado, deixando a posição de vigília junto à porta. Ela havia olhado para a Reverenda Madre, perguntando:

— Não vê nenhuma esperança, Reverência?

— Não para o pai. — E a velha acenara para Jessica, pedindo silêncio e olhando de novo para Paul. — Grave isto em sua memória rapaz: um mundo é sustentado por quatro coisas... — Ela ergueu quatro dedos grandes e nodosos. — ... a cultura dos sábios, a justiça dos grandes, as preces dos virtuosos e o valor dos bravos. Mas tudo isso é nada... — e ela fechou os dedos num punho — sem um governante que conheça a arte de governar. Faça dela a ciência de sua tradição!

Uma semana se passara desde aquele dia em que estivera com a Reverenda Madre. Suas palavras só agora começavam a ser totalmente compreendidas. Ali, sentado na sala de treinamento com Thufir Hawat, Paul sentiu o golpe incisivo do medo. Olhou para a expressão intrigada do Mentat.

— Para onde foi essa sua desatenção? — indagou Hawat.

— Encontrou a Reverenda Madre?

— Aquela bruxa, Reveladora da Verdade para o Império? — Os olhos de Hawat moveram-se rápidos com interesse. — Eu a encontrei.

— Ela... — Paul hesitou, descobrindo-se incapaz de contar a Hawat a respeito de sua prova. As inibições eram muito profundas.

— Sim? O que é que ela fez?

Paul inspirou fundo duas vezes.

— Ela disse uma coisa. — Fechou os olhos relembrando as palavras e, quando falou, sua voz assumiu inconscientemente o mesmo tom usado pela velha: — “Você, Paul Atreides, descendente de reis, filho do Duque, você deve aprender a governar. É algo que nenhum de seus ancestrais soube.” — Paul abriu os olhos dizendo: — Isto me deixou furioso e eu disse que meu pai governa um planeta inteiro. E ela disse: “Ele o está perdendo”, e eu respondi que meu pai estava obtendo um planeta mais rico. Ela disse: “Ele vai perder aquele também.” Eu queria correr e avisar meu pai, mas ela disse que ele já tinha sido avisado por você, por mamãe, por muitas pessoas.

— É verdade — murmurou Hawat.

— Então por que nós vamos? — perguntou Paul.

— Porque o Imperador ordenou. E porque existe esperança, a despeito do que aquela bruxa-espiã disse. Que mais brotou dessa antiga fonte de sabedoria?

Paul olhou para sua mão direita e fechou-a num punho sobre a mesa. Lentamente desejou que seus músculos relaxassem. “Ela colocou algum tipo de controle sobre mim”, pensou. “Mas como?”

— Ela pediu-me que lhe dissesse o que é governar, e respondi que é comandar. E ela disse então que eu precisava desaprender algumas coisas.

“Ela atingiu o alvo no ponto exato”, pensou Hawat. Acenou para Paul continuar.

— Ela disse que um governante deve aprender a persuadir, não a compelir. Disse que ele deve ter sensibilidade para atrair os melhores homens.

— Como acha ela que seu pai atraiu homens como Duncan e Gurney? — indagou Hawat.

Paul deu de ombros.

— Então ela disse que um bom governante deve aprender a linguagem de seu mundo, que é diferente para cada mundo. E eu pensei que ela se referia ao fato de eles não falarem Galach em Arrakis, mas ela explicou que não era isso. Ela queria dizer a linguagem das rochas e das coisas que crescem, a linguagem que você não escuta com seus ouvidos. E eu disse que isso é o que o Dr. Yueh chama de Mistério da Vida.

Hawat riu.

— Como é que ela recebeu isso?

— Acho que ficou meio louca. Ela disse então que o mistério da vida não é um problema para ser resolvido, mas uma realidade para ser experimentada. Assim eu citei a Primeira Lei do Mentat para ela: “Um processo não pode ser interrompido para ser entendido. O entendimento deve vir com o fluxo do processo, deve se unir a ele e fluir junto.” Isso pareceu satisfazê-la.

“Ele parece estar conseguindo se dominar”, pensou Hawat, “mas aquela velha bruxa o assustou. Por que ela fez isso?”

— Thufir — indagou Paul —, Arrakis vai ser tão ruim quanto ela disse?

— Nada pode ser tão ruim — respondeu Hawat forçando um sorriso. — Tome aqueles Fremen como exemplo, o povo renegado do deserto. Através da análise de primeira aproximação eu posso lhe dizer que eles são muitos, muitos mais do que o Império suspeita. Pessoas vivem lá, garoto, muitas pessoas e... — Hawat colocou um dedo musculoso diante do olho — eles odeiam os Harkonnen com uma paixão sangrenta. Você não deve sussurrar uma palavra disto, garoto. Eu lhe digo apenas como ajudante de seu pai.

— Meu pai me contou a respeito de Salusa Secundus. Você sabe, Thufir, parece-se muito com Arrakis... talvez não tão ruim, mas semelhante.

— Não sabemos muito sobre Salusa Secundus hoje em dia — disse Hawat. — Somente como era há muito tempo. Mas o que se sabe lhe dá razão.

— Será que os Fremen vão nos ajudar?

— É uma possibilidade. — Hawat levantou-se. — E estou partindo hoje para Arrakis. Enquanto isso, pense num velho que se orgulha de você e tenha cuidado, está bem? Venha cá como um bom rapaz, e sente-se de frente para aquela porta. Não é que eu acredite que exista algum perigo no castelo, é apenas para formar um hábito.

Paul levantou-se e deu a volta na mesa.

— Vai embora hoje?

— Hoje, sim, e você seguirá amanhã. A próxima vez que nos encontrarmos será sobre o solo de um novo mundo. — Ele segurou o braço direito de Paul na altura do bíceps. — Mantenha o braço da faca desimpedido e seu escudo a plena carga. — Soltou o braço e bateu levemente no ombro do rapaz. Depois virou-se, caminhando rapidamente para a porta.

— Thufir! — chamou Paul. Hawat voltou-se, diante da porta aberta. — Não fique de costas para a porta — disse Paul.

Um sorriso abriu-se no velho rosto enrugado.

— Isso eu não farei, garoto. Confie nisso. — E ele se foi, fechando a porta suavemente.

Paul sentou-se onde Hawat estivera, arrumando os papéis. “Mais um dia aqui”, pensou. Olhou em torno da sala. “Estamos partindo.” E a idéia da partida tornou-se subitamente mais real para ele do que jamais fora. Lembrou-se de outra coisa que a velha dissera a respeito de um mundo ser a soma de muitas coisas: as pessoas, a poeira, as coisas que crescem, as luas, as marés, os sóis — a soma desconhecida chamada natureza, um total vago sem qualquer noção do agora. E ele se perguntara: “O que é o agora?” A porta abriu-se bruscamente e um homem feio e corpulento lançou-se através dela, carregando um punhado de armas.

— Bem, Gurney Halleck — perguntou Paul —, é você o novo mestre de armas?

Halleck chutou a porta com o calcanhar para fechá-la.

— Você prefere que eu venha para jogar jogos, eu sei — disse, enquanto olhava para a sala, percebendo que os homens de Hawat já estavam lá, verificando, tornando-a segura para um herdeiro do Duque. Os sinais sutis do código estavam em toda parte. Paul observou o homem feio e bamboleante se colocar em movimento, virar na direção da mesa de treino com sua carga de armas, viu o baliset de nove cordas a tiracolo como o multiestilete enfiado entre as cordas próximo do teclado. Halleck despejou as armas sobre a mesa, alinhando-as: floretes, punhais, kindjals, atordoadores de projéteis lentos, e cinturões- escudos. A cicatriz nítida em seu queixo retorcia-se quando ele se voltou, lançando um sorriso através da sala.

— Será que você não dá ao menos um bom dia para mim, seu moleque? E que agulha você espetou no velho Hawat? Ele passou por mim no corredor como um homem que se apressa para o funeral de seu inimigo.

Paul sorriu. De todos os homens de seu pai, era de Gurney Halleck que ele gostava mais, conhecia seus humores e diabruras, e considerava-o mais como um amigo do que como uma espada alugada.

Halleck tirou o baliset do ombro e começou a afiná-lo:

— Se não falas eu não falo — disse.

Paul levantou-se e avançou pela sala dizendo:

— Bem, Gurney, você vem preparado para a música quando é tempo de luta?

— Então hoje é o dia de ser insolente para com os velhos — comentou Halleck. Ele tentou uma corda do instrumento e acenou com a cabeça.

— Onde está Duncan Idaho? — indagou Paul. — Não é ele que deve ensinar-me o manejo das armas?

— Duncan se foi para liderar a segunda onda sobre Arrakis — respondeu Halleck. — Tudo que sobrou foi o pobre Gurney, que está saindo da briga e doido por música. — Tocou outra corda e escutou sorrindo. — E foi decidido no conselho que, sendo você tão mau lutador, é melhor ensinar-lhe música, assim você não desperdiçará a vida por inteiro.

— Então é melhor me cantar uma balada — disse Paul.,— Eu quero ter certeza de como não fazê-lo.

— Ah, ah, ah! — riu Gurney e começou com “Garotas Galacianas”, seu multiestilete movendo-se como um borrão sobre as cordas enquanto ele cantava:

 

“Oh-h-h, as garotas Galacianas

Farão tudo por pérolas,

E as de Arrakis por água!

Mas se desejas damas

Que incendeiem como chamas

Tente uma irmã de Caladan!”

 

— Não está mau para uma péssima mão com o estilete — comentou Paul. — Mas se minha mãe o ouvir cantando esse tipo de canção neste castelo, ela pendurará suas orelhas na parede externa, como decoração.

Gurney puxou a orelha direita.

— Pobre decoração elas dariam, estão muito arranhadas de escutar em fechaduras enquanto um rapaz que conheço pratica algumas estranhas modinhas em seu baliset.

— Ah, sim, esqueceste o que é encontrar areia em sua cama — disse Paul enquanto apanhava um escudo-cinturão da mesa e o afivelava rapidamente na cintura. — Então vamos lutar!

Os olhos de Halleck se arregalaram num espanto fingido.

— Ah! foi a sua mão travessa que executou aquela façanha! Em guarda, jovem mestre! Tenha cuidado por hoje! — Ele pegou um florete, cortando o ar em golpes sucessivos. — Sou um demônio em busca de vingança!

Paul ergueu o florete, curvou-o em suas mãos e assumiu a posição aguile com um pé adiante. Adotou uma atitude solene, numa imitação cômica do Dr. Yueh.

— Que pateta meu pai me enviou para treino de armas — entoou Paul. — Esse parvo Gurney Halleck esqueceu-se da primeira lição para um combatente com armas e escudo. — Apertou o botão da força em sua cintura, sentindo o arrepio na pele que indicava o campo defensivo em sua testa e ao longo das costas, ouviu todos os sons exteriores tomarem a característica tonalidade desafinada, provocada pela filtragem do escudo.

— Numa luta com escudo é preciso ser rápido na defesa e lento no ataque — recitou Paul. — O propósito é levar o oponente a cometer um erro, tornando-o suscetível a um ataque pela esquerda. O escudo repele o golpe rápido, e torna-se vulnerável à lenta kindjal! — Paul golpeou com o florete, simulando um ataque, para rapidamente recuar, agora pronto a um impulso lento, medido para penetrar as defesas do escudo.

Halleck observou os movimentos, voltando-se no último instante para deixar a lâmina cega passar junto de seu peito.

— Velocidade excelente — comentou. — Mas abriu a guarda, ficando exposto a um contragolpe por baixo.

Paul recuou, desapontado.

— Eu devia dar-lhe umas palmadas na retaguarda por tal descuido — disse Halleck, e levantou uma kindjal da mesa, exibindo-a com a ponta para cima. — Isto, na mão de um inimigo, pode sangrá-lo até a morte! Você é um bom aluno, nada mais que isso, e eu lhe avisei que nem mesmo em treino deve deixar um homem penetrar sua guarda com a morte nas mãos.

— Acho que não estou disposto hoje — disse Paul.

— Disposto? — A voz de Halleck denunciava seu ultraje até mesmo sob a filtragem do escudo. — Que tem disposição a ver com isso? Você luta quando é necessário, não importa a disposição! Disposição é coisa para gado, para fazer amor ou tocar baliset. Não é para lutar.

— Sinto muito, Gurney.

— Não sente o bastante.

Halleck ativou seu próprio escudo e agachou-se com a kindjal pronta para o golpe na mão esquerda, o florete erguido na direita.

— Agora eu digo em guarda para valer! — E saltou alto para um lado, e logo para a frente, num furioso ataque.

Paul recuou aparando os golpes. Sentia o campo estalando enquanto as extremidades dos escudos se tocavam e se repeliam, sentia a comichão elétrica do contato ao longo da pele. “Que há com o Gurney?”, perguntou a si mesmo. “Ele não está simulando esse ataque.” Moveu a mão esquerda, deixando o punhal escorregar em sua palma, desde a bainha no pulso.

— Está necessitando de uma lâmina extra, hein? — grunhiu Halleck.

“Será isso uma traição?”, pensou Paul. “Certamente não o Gurney!” Eles lutaram ao longo da sala: estocada e parada, ardil contra ardil. O ar dentro de sua bolha-escudo tornando-se viciado devido às demandas que a lenta permuta, ao longo das bordas da barreira, não podia suprir. A cada novo contato dos escudos o cheiro de ozônio tornava-se mais forte.

Paul continuou a recuar, mas agora dirigia sua retirada em direção à mesa de exercícios. “Se puder colocá-lo ao lado da mesa eu lhe mostrarei um truque”, pensou. “Só mais um passo, Gurney.”

Gurney deu o passo. Paul aparou um golpe para baixo e voltou-se quando viu o florete de Halleck prender-se na borda da mesa. Lançou-se para o lado, golpeando alto com seu próprio florete e levando o punhal ao pescoço de Halleck. Parou a lâmina a uma polegada da jugular.

— É isto que procuras? — sussurrou Paul.

— Olhe para baixo, garoto — disse Halleck ofegante.

Ele obedeceu e viu a kindjal de seu oponente enfiada sob a mesa, a ponta quase tocando-lhe a virilha.

— Nós nos teríamos reunido na morte — disse Halleck. — Mas admito que você luta melhor quando pressionado. E quando parece ficar disposto. — Sorriu de modo cruel, a cicatriz nítida tremendo ao longo do queixo.

— O modo como me atacou... — observou Paul. — Você teria realmente me feito sangrar?

Halleck recolheu a faca e ficou ereto.

— Se tivesse lutado um pouquinho abaixo de suas habilidades, eu o teria deixado com uma cicatriz para se lembrar. Não quero que meu pupilo favorito caia diante do primeiro vagabundo Harkonnen que lhe aparecer.

Paul desativou o escudo e apoiou-se sobre a mesa para tomar fôlego.

— Eu mereci isso, Gurney. Mas você teria deixado meu pai furioso se me ferisse. Não quero que seja punido por minhas faltas.

— Quanto a isso — respondeu Halleck —, foi minha falta também. Mas não se incomode com uma ou duas cicatrizes de treinamento. Tem sorte de ter tão poucas, e quanto a seu pai, o Duque me puniria somente se eu falhasse em fazer de você um lutador de primeira classe. E eu estaria falhando se não lhe explicasse a falácia que é esta idéia de disposição que desenvolveu ultimamente.

Paul se levantou, colocando o punhal de volta na bainha do punho.

— Não é brincadeira o que fazemos aqui — acrescentou Halleck.

Paul concordou com um aceno. Sentia um certo espanto com a seriedade anormal de Halleck, sua veemência sóbria. Olhou para a cicatriz cor de beterraba no queixo do homem, lembrando-se da história que contava como ela fora produzida por Rabban, a Besta, num fosso de escravos dos Harkonnen, em Giedi Prime. E Paul sentiu-se envergonhado por ter duvidado de Halleck ainda que por um instante. Ocorria-lhe agora que aquela cicatriz, ao ser produzida, fora acompanhada por uma dor tão intensa, talvez, quanto aquela infligida pela Reverenda Madre.

Procurou afastar o pensamento que gelava seu mundo.

— Suponho que esperasse me divertir um pouco hoje: as coisas andam tão sérias por aqui ultimamente.

Halleck voltou-se para esconder suas emoções. Alguma coisa ardia-lhe os olhos. Sentia-se dolorido, como se houvesse sofrido uma queimadura, e isso era tudo que restara de um dia perdido, que lhe fora arrancado pelo tempo.

“Quão cedo esta criança deve assumir sua maturidade”, pensou. “Quão cedo ela deve aprender a ler aquele padrão em sua mente, aquele contrato de cautela brutal para ordenar os fatos necessários, no encadeamento necessário.”

— Por favor, enumere seus parentes mais próximos — pediu Paul.

Halleck respondeu sem se voltar:

— Eu percebi que você queria se divertir, jovem, e nada me agradaria mais do que me unir a você na brincadeira. Mas não podemos brincar mais. Amanhã vamos para Arrakis, e Arrakis é real. Os Harkonnen são reais.

Paul tocou a testa com a lâmina do florete voltada para cima.

Halleck viu a saudação e respondeu com um aceno, depois indicou o boneco-alvo.

— Agora vamos exercitar sua velocidade. Deixe-me ver como você responde àquela coisa. Eu a controlarei daqui, de onde posso ter uma visão completa da ação. E devo adverti-lo de que estarei tentando novos contragolpes hoje. Este é um aviso que não terá de um inimigo real.

Paul esticou os dedos dos pés, para aliviar os músculos. Sentia-se solene ante a súbita percepção de que sua vida tornara-se repleta de rápidas mudanças. Caminhou até o boneco, acionou o botão no peito da coisa com a ponta de seu florete, e sentiu o campo defensivo repelir a lâmina.

— Engarde!— gritou Halleck, e o boneco atacou.

Paul ativou seu escudo, aparou o golpe e contra-atacou.

Halleck observava, enquanto manipulava os controles. Sua mente parecia-lhe dividida em duas partes: uma delas alerta às necessidades do treinamento e a outra vagueando como uma mosca irrequieta.

“Sou uma árvore frutífera bem treinada”, pensou. “Cheia de sentimentos e habilidades bem treinadas, todos enxertados em mim para outros colherem.”

Por algum motivo ele se lembrava de sua irmã mais jovem, com seu rosto de duende, tão claro em sua mente. Mas ela estava morta agora, morta numa casa de prazeres para as tropas dos Harkonnen. Ela adorava flores como amores-perfeitos, ou seriam margaridas? Não conseguia lembrar as flores favoritas de sua irmã e isso o incomodava muito.

Paul repeliu um lento giro do boneco, golpeou para cima com sua mão esquerda entretisser.

“Aquele diabinho esperto!”, pensou Halleck, agora atento aos movimentos das mãos entrelaçadas de Paul. “Ele tem estudado e praticado por conta própria. Aquele não é o estilo Duncan, e certamente não é nada que eu lhe tenha ensinado.”

Esse pensamento apenas aumentava a tristeza de Halleck: “Estou contaminado pela melancolia.” Começou a pensar a respeito de Paul, se o rapaz algum dia ouvira temeroso as batidas do próprio coração, no travesseiro durante a noite.

— Se desejos fossem peixes, todos nós lançaríamos as redes — murmurou.

Era uma expressão usada por sua mãe, e que ele sempre repetia quando a escuridão do amanhã estava quase a envolvê-lo. Então pensou como seria estranho levar esse ditado para um planeta que nunca conhecera mares ou peixes.

 

YUEH (yü'e), Wellington (aveling-tun), Stdrd 10, 082 - 10, 191, doutor em medicina pela Escola Suk em Stdrd 10,112), ma.— Wanna Marcus, B. G. (Stdrd 10,092-10,186?), conhecido principalmente como traidor do Duque Leto Atreides. (Cf Bibliografia, Apêndice (Condicionamento Imperial e Traição, A).

— do Dicionário do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Embora ouvisse o Dr. Yueh entrar na sala de treinos, notando a rígida cautela nos passos do homem, Paul permaneceu esticado na mesa de exercícios, com o rosto para baixo, exatamente como o massagista o deixara. Sentia-se deliciosamente descontraído depois do treino com Gurney Halleck.

— Você parece confortável — comentou Yueh com voz aguda, caracteristicamente calma.

Paul ergueu a cabeça, vendo a figura magra do homem parado a vários passos de distância, observou a roupa negra vincada, o bloco quadrangular da cabeça com os lábios purpúreos e o bigode caído, a tatuagem do Condicionamento Imperial em forma de diamante na testa, o cabelo negro comprido, preso no anel prateado da Escola Suk, no ombro esquerdo.

— Ficará feliz em saber que não teremos tempo para uma lição normal hoje — disse Yueh. — Seu pai estará aqui dentro em pouco.

Paul se sentou.

— Entretanto, eu consegui para você um leitor de livros filmada e várias lições, durante a travessia para Arrakis.

— Oh!

Paul começou a se vestir. Sentia-se excitado com a vinda de seu pai. Eles haviam passado muito pouco tempo juntos, desde a ordem do Imperador para assumir o feudo de Arrakis.

Yueh caminhou até a mesa pensando: “Como o rapaz se desenvolveu nesses últimos meses. Que desperdício! Oh! que triste desperdício”. Depois se lembrou: “Eu não devo falhar. O que faço é para garantir que minha Wanna não possa mais ser ferida pelas bestas Harkonnen”.

Paul reuniu-se a ele na mesa, abotoando a jaqueta.

— O que eu estarei estudando na viagem?

— Ah-h-h-h, as formas de vida terrânicas de Arrakis. O planeta parece ter aberto seus braços para certas formas de vida terrânicas. E não está claro como isso aconteceu. Quando chegarmos, devo procurar o ecologista planetário — um certo Dr. Kynes — e oferecer minha ajuda nas investigações.

E Yueh pensou: “O que estou dizendo? Sou hipócrita até comigo mesmo.”

— Haverá algo sobre os Fremen? — indagou Paul.

— Os Fremen? — Yueh tamborilou com os dedos sobre a mesa, percebeu que Paul notava o movimento nervoso e recolheu a mão.

— Será que você tem alguma coisa a respeito da população de Arrakis em geral?

— Sim, certamente — disse Yueh. — Há duas divisões do povo, de um modo geral. Os Fremen formam um grupo, e os outros são o povo dos pegas, pias e panelas. Existem casamentos mistos, já me disseram. As mulheres das vilas pias e panelas preferem maridos Fremen, seus homens preferem esposas Fremen, eles têm um ditado: “Polidez vem das cidades, sabedoria do deserto.”

— Tem gravuras deles?

— Vou ver o que posso conseguir para você. O detalhe mais interessante são os olhos, totalmente azuis, sem nenhum branco.

— Mutação?

— Não, é relacionado à saturação do sangue com melange.

— Os Fremen devem ser corajosos para viverem nas orlas do deserto.

— Completamente. Eles compõem poemas sobre suas facas. As mulheres são tão violentas quanto os homens. Até mesmo as crianças Fremen são perigosas e violentas. A você não será permitido misturar-se com eles, atrevo-me a dizer.

Paul olhou para Yueh, encontrando nesses poucos vislumbres dos Fremen um poder verbal que captava toda a sua atenção.

“Que gente para ganhar como aliados!”

— E os vermes?

— O quê?

— Eu gostaria de estudar um pouco mais a respeito dos vermes da areia.

— Ah, certamente. Tenho um livro-filme de um pequeno espécime, com apenas cento e dez metros de comprimento e vinte e dois metros de diâmetro. Foi filmado nas latitudes do norte. Vermes com mais de quatrocentos metros de comprimento já foram registrados por testemunhas confiáveis, e há motivos para se acreditar que existam outros maiores ainda.

Paul observou a carta da projeção cônica das latitudes austrais de Arrakis aberta sobre a mesa.

— O cinturão do deserto e as regiões polares sul estão marcados como inabitáveis. É por causa dos vermes?

— E das tempestades.

— Mas qualquer lugar pode ser tornado habitável.

— Se for economicamente viável — observou Yueh. — Arrakis tem muitos perigos que tornam isso dispendioso. — Alisou o bigode pendente. — Seu pai estará aqui logo. Antes de partir, tenho um presente para você, algo que encontrei enquanto embrulhava minhas coisas. Ele colocou um objeto sobre a mesa, era preto, oblongo e menor do que o polegar de Paul.

O rapaz simplesmente olhou. Yueh percebeu como Paul não estendia a mão para pegar e pensou: “Como é cauteloso!”

— Isso é uma Bíblia Católica Laranja muito antiga, feita para uso de viajantes espaciais. Não é um livro-filme e sim algo verdadeiramente impresso em papel de filamento. Tem seu próprio amplificador e sistema de carga eletrostática. — Pegou o objeto e demonstrou. — O livro é mantido fechado por uma carga, que força contra as capas fechadas por molas. Você pressiona as bordas, assim, e as páginas que selecionou se repelem uma contra a outra, fazendo o livro se abrir.

— É tão pequeno.

— Mas tem mil e oitocentas páginas. Você pressiona. a borda, deste modo, e a carga se move adiante, uma página de cada vez, enquanto lê. Nunca toque as páginas com seus dedos. O filamento do tecido é muito delicado.

Fechou o livro e passou-o para Paul.

— Experimente.

Yueh observou Paul operar o ajuste de páginas, enquanto pensava: “Salvo minha própria consciência, dando-lhe o conforto da religião antes de atraiçoá-lo. Assim posso dizer a mim mesmo que ele se foi para onde eu jamais irei.”

— Isso deve ter sido feito antes dos livros-filmes — disse Paul.

— É muito antigo. Vamos fazer disso um segredo nosso, certo? Seus pais podem julgar que é muito valioso para ser dado a alguém tão jovem.

E Yueh pensou: “Sua mãe certamente desconfiaria de meus motivos.”

— Bem... — Paul fechou o livro, segurando-o em sua mão. — Se é tão valioso...

— Satisfaça o desejo de um velho — disse Yueh. — Isso me foi oferecido quando eu era muito jovem. — E pensou: “Devo captar sua imaginação, assim como sua cupidez.” — Abra-o no Kalima quatrosessenta e sete, onde diz: “Na água toda vida começa”. Há um leve chanfro na borda da capa para marcar o lugar.

Paul sentiu duas ranhuras na capa, uma mais rasa que a outra.

Apertou a mais rasa e o livro se abriu em sua palma, o ampliador deslizando em posição.

— Leia em voz alta — pediu Yueh.

Paul umedeceu os lábios com a língua e leu:

— “Pense no fato de que uma pessoa surda não pode ouvir. E então que outros tipos de surdez não podemos possuir? Que sentidos não faltarão que não possamos ver e ouvir outros mundos à nossa volta? O que existe em torno de nós que não...”

— Pare! — gritou Yueh.

Paul olhou-o surpreso.

Yueh fechou os olhos, lutando para recobrar a compostura.

“Que perversidade fez com que o livro se abrisse na passagem favorita de minha Wanna?” Abriu os olhos e viu Paul a fitá-lo.

— Algo errado? — indagou o rapaz.

— Eu sinto muito — disse Yueh. — Este era o trecho favorito de minha falecida esposa. Não é aquele que eu tencionava que lesse. Ele traz de volta lembranças que são dolorosas.

— Há dois chanfros — observou Paul.

“É claro”, pensou Yueh. “Wanna marcou sua passagem. Os dedos dele são mais sensíveis que os meus e encontraram a marca que ela deixou. Foi um acidente, não mais que isso.”

— Talvez ache o livro interessante. Tem muita verdade histórica, assim como boa filosofia ética.

Paul olhava para o minúsculo livro em sua mão, uma coisa tão pequena e no entanto continha um mistério — alguma coisa acontecera enquanto lia. Sentira algo sacudir o seu terrível propósito.

— Seu pai estará aqui a qualquer momento. Deixe o livro de lado e leia quando quiser.

Paul tocou na borda, como Yueh demonstrara, e o livro selou-se. Guardou-o em sua túnica. Por um momento, quando Yueh gritara, Paul temera que o homem exigisse o livro de volta.

— Eu lhe agradeço o presente, Dr. Yueh — falou com formalidade. — Será nosso segredo. Se existe um favor que deseje de mim, não hesite em pedir.

— Eu... não preciso de nada — respondeu Yueh.

E pensou: “Por que fico aqui me torturando? E atormentando este pobre rapaz... embora ele de nada saiba. Malditas bestas Harkonnen! Por que me escolheram para sua abominação?”

 

Como devemos abordar o estudo do pai do Muad'Dib? Um homem de insuperável cordialidade e surpreendente frieza foi o Duque Leto Atreides. Todavia, muitos fatos abrem passagem para o entendimento do Duque: seu permanente amor pela dama Bene Gesserit, os sonhos que ele tinha em relação a seu filho, a devoção dos homens que o serviam. Você o vê lá — um homem enredado pelo destino, uma figura solitária, seu brilho ofuscado pela glória de seu filho. E todavia alguém se pergunta: que é o filho senão uma extensão de seu pai?

 

— de Comentários sobre a família do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Paul observou seu pai entrar na sala de treinamentos e viu os guardas tomarem posição no lado de fora. Um deles fechou a porta. Como de costume, Paul experimentava um sentimento de presença em seu pai, alguém inteiramente unido à realidade do momento.

O Duque era alto, de pele escura. Seu rosto era magro e anguloso, suavizado apenas pelos olhos cinzentos e profundos. Ele usava um uniforme de trabalho negro, com a crista do falcão heráldico no peito. Um cinturão-escudo platinado, com a pátina do excesso de uso, envolvia-lhe a cintura estreita.

O Duque indagou:

— Trabalhando duro, filho?

Caminhou até a mesa, observando os papéis sobre ela, percorrendo a sala com o olhar até parar em Paul. Sentia-se cansado, impregnado da dor causada pelo esforço em ocultar a fadiga. “Devo usar de toda a oportunidade disponível para repousar durante a travessia para Arrakis”, ele pensou. “Não haverá repouso em Arrakis.”

— Não muito duro — respondeu Paul. — Tudo é tão... — deu de ombros.

— Sim, bem, amanhã nós partimos. Será bom estar instalado na nova casa, com toda esta confusão esquecida.

Paul acenou, subitamente dominado pela lembrança das palavras da Reverenda Madre: “... para o pai, nada.”

— Pai, Arrakis será tão perigoso quanto todos dizem?

O Duque forçou um gesto casual, sentou-se num canto da mesa e sorriu. Todo um padrão de conversação formou-se em sua mente, o tipo de coisa que ele usaria para combater a melancolia em seus homens antes da batalha. O padrão gelou-se antes de ser vocalizado, confrontado por um único pensamento: “Este é o meu filho.”

— Será perigoso — admitiu.

— Hawat contou-me que nós temos um plano para os Fremen — disse Paul enquanto se perguntava: “Por que não conto a ele o que a velha disse? Como é que ela prendeu minha língua?”

O Duque percebeu a angústia de seu filho e explicou:

— Como sempre, Hawat vê a oportunidade principal. Mas há muito mais em jogo. Eu vejo também o Combine Honnete Ober Advancer Mercantiles — a Companhia CHOAM. Ao dar-me Arrakis, Sua Majestade é forçado a ceder-nos uma ditadura CHOAM... um ganho sutil.

— CHOAM controla a especiaria — observou Paul.

— E Arrakis com sua especiaria é nossa estrada para a CHOAM, mas existe mais na CHOAM do que apenas melange.

— A Reverenda Madre advertiu o senhor? — indagou Paul subitamente, suas mãos fechadas em punhos, com as palmas escorregadias de suor. Que esforço fora necessário para fazer esta simples pergunta!

— Hawat me contou que ela o assustou com avisos a respeito de Arrakis. Não deixe que os temores de uma mulher obscureçam sua mente. Nenhuma mulher deseja aqueles que ela ama em perigo. A mão por trás daquelas advertências era a de sua mãe. Considere-as como um sinal do amor que ela tem por nós.

— Ela sabe a respeito dos Fremen?

— Sim, e sobre muito mais.

— O quê?

“A verdade”, pensou o Duque, “pode ser pior do que ele imagina, mas mesmo os fatos perigosos são valiosos, se você foi treinado para lidar com eles. E este é um detalhe em que nada foi poupado para meu filho: o aprendizado no manuseio de verdades perigosas. Esta deve, no entanto, ser peneirada, ele é jovem ainda.”

— Poucos produtos escapam ao controle da CHOAM — explicou o Duque. — Madeira, jumentos, cavalos, vacas, árvores, estrume, tubarões, pele de baleia, os mais prosaicos e os mais exóticos... até mesmo nosso pobre arroz pundi de Caladan. Qualquer coisa a Corporação transportará, as obras de arte de Ecaz, máquinas de Richesse e Ix. Mas tudo isso perde a importância diante da melange. Um punhado de especiarias lhe compraria uma casa em Tupile. Ela não pode ser sintetizada, deve ser minerada em Arrakis. Ela é única e tem propriedades geriátricas verdadeiras.

— E agora nós a controlamos?

— Até certo ponto. O importante é considerar todas as Casas que dependem dos lucros da CHOAM. E pensar que uma enorme proporção desses lucros é dependente de um único produto a especiaria. Imagine o que aconteceria se alguém reduzisse a produção da especiaria.

— Quem quer que houvesse estacado melange faria fortuna. — respondeu Paul. — Enquanto os outros estariam em dificuldades.

O Duque se permitiu um momento de amarga satisfação, olhando para seu filho e pensando quão perspicaz, quão verdadeiramente culta aquela observação havia sido. Ele assentiu:

— Os Harkonnen têm estado armazenando por mais de vinte anos.

— Eles querem que a produção de especiaria seja interrompida e que você seja culpado.

— Eles desejam que o nome Atreides se torne impopular. Pense nas Casas de Landsraad que vêem em mim uma certa capacidade de liderança, seu orador não-oficial. Pense em como eles reagiriam se eu fosse o responsável por uma séria redução de seus tos. Afinal, os lucros de uma pessoa estão em primeiro lugar. A Grande Convenção que se dane, você não deixa alguém empobrecê-lo! — Um sorriso duro torceu a boca do Duque. — Eles olharão para outro lado, não importando o que seja feito comigo.

— Mesmo se formos atacados com atômicos?

— Nada de tão flagrante. Nenhum desafio aberto à Convenção. Mas quase tudo que não chegue a isso. Talvez até mesmo pulverização, e envenenamento do solo.

— Então, por que estamos caminhando ao encontro disso?

— Paul! — o Duque franziu a testa fitando o filho. — Conhecer onde está a armadilha, este é o primeiro passo para evitá-la. É como o combate individual, filho, somente que numa escala maior. Um estratagema dentro de um estratagema, dentro de outro. Parece não ter fim e nossa tarefa é descobri-la. Sabendo que os Harkonnen armazenaram melange, fazemos a seguinte pergunta: “Quem mais armazenou?” Esta será a lista dos nossos inimigos.

— Quem?

— Certas Casas que sabíamos serem bastis, e algumas que pensamos serem amigas. Não precisamos levá-las em consideração por ora, porque existe alguém muito mais importante: nosso amado Imperador Padishah.

Paul tentou engolir, com a garganta subitamente seca.

— Não pode convocar a Landsraad? Denunciar...

— Fazendo com que nosso inimigo saiba que nós conhecemos qual a mão que empunha a faca? Ah, agora Paul... agora nós vemos a faca. Quem sabe para a mão de quem ela passaria a seguir? Se apresentarmos estes fatos perante a Landsraad isso só criaria uma grande nuvem de confusão. O Imperador negaria tudo, e quem poderia contradizê-lo? Tudo que obteríamos seria um pouco de tempo, e estaríamos nos arriscando ao caos. E de onde viria o próximo ataque?

— Todas as Casas poderiam começar a armazenar a especiaria.

— Nossos inimigos têm uma boa dianteira, grande demais para ser alcançada.

— O Imperador, ou seja, o Sardaukar.

— Disfarçados com fardas dos Harkonnen, sem dúvida — disse o Duque. — Mas soldados fanáticos não obstante.

— Como poderiam os Fremen nos ajudar contra os Sardaukar?

— Hawat já lhe falou sobre Salusa Secundus?

— O planeta-prisão do Imperador? Não.

— E se ele fosse mais que um planeta-prisão, Paul? Existe uma pergunta que você nunca ouviu sendo feita em relação ao Corpo Imperial de Sardaukar: “de onde é que eles se originam?”

— Do planeta-prisão?

— Eles vêm de algum lugar.

— Mas os recrutas que o Imperador exige...

— Isso é o que nós somos levados a crer, que eles são apenas os recrutas treinados desde jovens, e muito bem preparados. Você ouve murmúrios ocasionais a respeito dos quadros de treinamento do Imperador, mas o equilíbrio de nossa civilização permanece o mesmo: as forças militares das Grandes Casas de Landsraad de um lado, o Sardaukar e os recrutas de apoio do outro. E seus recrutas de apoio, Paul. O Sardaukar permanece Sardaukar.

— Mas todos os relatórios sobre Salusa Secundus dizem que lá é um mundo infernal!

— Sem dúvida. Mas se você fosse formar homens duros, fortes e ferozes, que condições ambientais você imporia sobre eles?

— Como poderia ganhar a lealdade de homens assim?

— Existem modos comprovados: jogue com o conhecimento certo da superioridade deles, a mística do pacto de segredo, o espírito do sofrimento compartilhado. Pode ser feito. Tem sido feito em muitos mundos, em várias épocas.

Paul assentiu, mantendo sua atenção no rosto de seu pai. Percebia alguma revelação iminente.

— Considere Arrakis — disse o Duque. — Quando você deixa o interior das cidades e vilas é tão terrível quanto Salusa Secundus.

Paul arregalou os olhos.

— Os Fremen!

— Nós temos lá o potencial para um grupo tão forte e mortífero quanto o Sardaukar. Exigirá paciência para treiná-los secretamente, e riqueza para equipá-los devidamente. Mas os Fremen estão lá... e a riqueza da especiaria também. Percebe agora por que vamos para Arrakis sabendo que lá existe uma armadilha?

— Os Harkonnen sabem a respeito dos Fremen?

— Os Harkonnen desprezam os Fremen, caçam-nos por esporte. Nunca se incomodaram sequer em contá-los. Conhecemos a política Harkonnen em relação às populações planetárias: gastar o mínimo possível para mantê-las, e só.

Os fios metálicos no símbolo do falcão cintilaram sobre o peito de seu pai, enquanto o Duque mudava de posição.

— Percebe agora?

— Estamos negociando com os Fremen agora mesmo — disse Paul.

— Enviei uma missão liderada por Duncan Idaho. Duncan é um homem orgulhoso e impiedoso, mas fiel à verdade. Creio que os Fremen vão admirá-lo. Se tivermos sorte, eles podem julgar-nos por ele: Duncan, o moralista.

— Duncan, o moralista — observou Paul. — E Gurney, o valoroso.

— Você os nomeia bem — disse o Duque.

E Paul pensou: “Gurney é um daqueles que a Reverenda Madre diz que suportam mundos... o valor dos bravos.”

— Gurney me contou que você se saiu muito bem com as armas hoje.

— Não foi o que ele me disse.

O Duque riu alto.

— Calculei que Gurney seria cauteloso com suas palavras. Ele diz que você tem uma ótima consciência — em suas próprias palavras — da diferença entre o gume de uma lâmina e sua ponta.

— Gurney diz que não há arte em matar com a ponta, que isso deve ser feito com o gume.

— Gurney é um romântico — resmungou o Duque. Essa conversa sobre matar o perturbava, partindo de seu filho. — Eu preferia que você nunca precisasse matar, mas se a necessidade vier, faça do modo que puder, ponta ou gume. — Ele olhou para a clarabóia, na qual a chuva ainda tamborilava.

Vendo a direção do olhar de seu pai, Paul pensou nos céus úmidos lá fora, uma coisa jamais vista em Arrakis, e este pensamento nos céus colocou sua mente no espaço além deles.

— As naves da Corporação são realmente grandes? — indagou.

O Duque olhou para ele.

— Esta será sua primeira ocasião fora do planeta. Sim, elas são grandes. Estaremos viajando num Heighliner, porque a viagem é longa. Um Heighliner é realmente grande. Seus porões irão alojar todos os nossos transportes e fragatas num pequeno canto, nós seremos apenas uma pequena parte na carga do navio.

— E não seremos capazes de deixar nossas fragatas?

— Isso é parte do preço que se paga pela segurança da Corporação. Poderão existir naves dos Harkonnen bem ao nosso lado, e não teremos nada que temer delas. Os Harkonnen não poriam em perigo seus privilégios de transporte.

— Ficarei observando em nossas telas para ver se vejo um homem da Corporação.

— Não vai. Nem mesmo seus agentes podem ver um Homem da Corporação. A Corporação é zelosa de sua privacidade e de seu monopólio. Não faça nada para ameaçar nossos privilégios de transporte, Paul.

— Acha que eles se escondem porque sofreram mutações e já não parecem humanos?

— Quem sabe? — O Duque deu de ombros. — Esse é um mistério que provavelmente não resolveremos. Temos problemas mais imediatos e você é um deles.

— Eu?

— Sua mãe queria que eu lhe dissesse isso, filho. Você é capaz de ter habilidades Mentat.

Paul fitou o pai, incapaz de falar por um momento, então:

— Mentat? Eu? Mas...

— Hawat concorda, filho. É verdade.

— Mas eu pensei que o treinamento Mentat tivesse de ser iniciado na infância, e que a pessoa não pudesse saber por que isso inibiria sua... — Ele interrompeu-se, todas as circunstâncias passadas focalizando-se numa rápida computação. — Eu percebo.

— Chega o dia — disse o Duque — em que o Mentat potencial deve aprender o que está sendo feito. Não pode mais ser feito por ele. O Mentat deve compartilhar a escolha quanto a continuar ou abandonar o treinamento. Alguns podem prosseguir, outros são incapazes. Somente o Mentat potencial pode dizer com certeza sobre si mesmo.

Paul esfregou o queixo. Todo o treinamento especial de Hawat e de sua mãe, os mnemônicos, a focalização da consciência, o controle muscular e o aguçamento da sensibilidade, os estudos de linguagem e nuances de voz — tudo isso encaixava-se num novo tipo de compreensão em sua mente.

— Você será o Duque algum dia, filho — disse o pai. — E um duque Mentat pode ser formidável. Pode se decidir agora, ou precisa de mais tempo?

Não houve hesitação na resposta.

— Prosseguirei com o treinamento.

— Formidável — murmurou o Duque, e Paul viu um sorriso de orgulho no rosto de seu pai. O sorriso deixou-o chocado. Dava uma aparência de caveira às feições magras do Duque. Paul fechou os olhos sentindo o “terrível propósito” despertando em seu interior. “Talvez ser um Mentat seja um propósito terrível”, pensou ele.

Mas mesmo enquanto focalizava esse pensamento, sua nova consciência o negava.

 

Com Lady Jessica e Arrakis, o sistema Bene Gesserit de recriar lendas proféticas através da Missionária Protetora obteve plenos resultados. A sabedoria de recriar o universo conhecido com um padrão de profecias para a proteção do pessoal B. G. há muito tem sido apreciada, mas nunca observada numa condição in extremis, com um casamento mais do que ideal entre pessoa e preparação. As lendas proféticas tinham tomado conta de Arrakis até mesmo em rótulos adotados (incluindo o canto da Reverenda Madre e a maior parte da Shan-a panoplia propheticus). Considera-se, de um modo geral, atualmente, que as habilidades latentes de Lady Jessica foram grosseiramente subestimadas.

 

— de Análise da Crise de Arrakeen, escrito pela Princesa Irulan [circulação restrita: B.G. número de arquivo AR-81088587]

 

Em volta de Lady Jessica — empilhados em cantos do grande salão Arrakeen, amontoados em espaços abertos — erguia-se a carga empacotada de suas vidas: caixas, valises, baús, engradados, alguns parcialmente esvaziados. Ela podia ouvir os monta-cargas da lançadeira da Corporação depositando outra remessa na entrada.

Jessica ficou de pé no centro do salão. Virou-se lentamente olhando para cima e em volta, para as esculturas sombreadas, gretas e janelas em profundos nichos. Esse gigantesco anacronismo da sala fazia com que ela se lembrasse do Hall das Irmãs em sua Escola Bene Gesserit. Mas na escola o efeito era acolhedor, enquanto aqui tudo era pedra nua.

Algum arquiteto fora buscar muito tempo atrás, na história, os motivos para essas paredes em arcobotante e escuros ornatos suspensos, pensou Jessica. O teto em abóbada elevava-se dois pavimentos acima dela, com grandes vigas mestras que, tinha certeza, haviam sido transportadas para Arrakis através do espaço, mediante um custo monstruoso. Nenhum planeta nesse sistema cultivava árvores de que se pudesse fazer semelhantes vigas, a não ser que as vigas fossem imitação de madeira.

Ela achava que eram verdadeiras.

Essa fora a mansão do governo nos dias do Velho Império. Custos haviam sido de menor importância, então. Isso fora antes dos Harkonnen e sua nova megalópolis Carthag: um lugar barato e reluzente como latão, uns duzentos quilômetros a nordeste, através da Terra Partida. Leto fora sábio em escolher esse lugar para assento de seu governo. O nome Arrakeen tinha um som agradável, cheio de tradição. E esta era uma cidade pequena, fácil de defender e esterilizar.

O som de caixas sendo descarregadas soou novamente na entrada. Jessica suspirou.

Contra uma caixa de papelão à sua direita erguia-se uma pintura do pai do Duque. Fios de embalagem pendiam como decoração estragada, e um pedaço de fio ainda estava preso na mão esquerda de Jessica. Ao lado da pintura havia uma cabeça de touro negro, montada num quadro polido. A cabeça era uma ilha negra num mar de papel estofado. A placa estava colocada sobre o solo, enquanto o focinho brilhante do touro apontava para o teto, como se o animal estivesse a ponto de emitir um berro nessa sala ecoante.

Jessica imaginava que tipo de compulsão a levara a desempacotar aquelas duas coisas em primeiro lugar — a pintura e a cabeça de touro. Sabia haver algo de simbólico na ação. Desde o dia em que os compradores do Duque a tinham retirado da escola, nunca se sentira tão assustada e insegura.

A cabeça e a pintura.

Elas aumentavam seu senso de confusão. Ela estremeceu olhando para as janelas em fenda, lá em cima. Ainda era o início da tarde aqui, e nessas latitudes o céu parecia negro e frio — muito mais escuro que o cálido azul de Caladan. Uma pontada de saudade pulsou em seu interior.

“Tão distante, Caladan.”

— Aqui estamos!

A voz era do Duque Leto.

Ela rodopiou vendo-o caminhar da passagem em arco para o salão de jantar. Seu uniforme negro de trabalho, com a crista vermelha do falcão no peito parecia poeirento e amassado.

— Julguei que se perdera neste lugar horrível — disse ele.

— É uma casa fria — respondeu ela. Olhava para seu porte alto, a pele escura que a fazia pensar em oliveiras, sol dourado e águas azuis. Havia fuligem de madeira no cinza de seus olhos, mas o rosto era de rapina: magro, cheio de ângulos e planos afiados.

Sentiu um súbito medo dele, e isso apertou seu peito. Ele se tornara uma pessoa selvagem e impulsiva, desde a decisão de se curvar ante o comando do Imperador.

— A cidade inteira parece fria — acrescentou ela.

— É uma pequena cidade de guarnição, suja e poeirenta. Mas nós mudaremos isso. — Olhou ao redor da sala. — Estes são salões públicos para solenidades oficiais. Dei uma olhada em alguns dos apartamentos familiares da ala sul. São muito melhores. — Chegou mais perto tocando-a no braço, admirando-lhe a imponência.

E novamente ele se punha a pensar sobre a desconhecida linhagem de sua esposa: “Uma Casa renegada talvez? Alguma realeza ilegítima? Ela parece mais nobre que o próprio sangue do Imperador.”

Sob a pressão de seu olhar ela se voltou, exibindo-lhe o perfil.

E ele percebeu não haver um único e preciso detalhe que realçasse sua beleza. O rosto era oval, sob uma touca de cabelos cor de bronze polido. Seus olhos eram bem separados, tão verdes e claros quanto os céus matutinos de Caladan. O nariz era pequeno, a boca ampla e generosa. Seu talhe era sóbrio: alto e com todas as curvas tendendo para o esbelto.

Lembrava-se que as irmãs leigas da escola chamavam-na de magricela, assim os compradores lhe haviam dito. Mas essa descrição simplificava em demasia. Ela trouxera de volta à linhagem dos Atreides uma beleza régia. Ele estava feliz de que Paul se parecesse com a mãe.

— Onde está Paul? — indagou.

— Em algum lugar da casa, tomando suas lições com Yueh.

— Provavelmente na ala sul. Pensei ter ouvido a voz de Yueh, mas não tive tempo para olhar — ele disse. Olhou para ela hesitando. — Vim aqui somente para pendurar a chave do Castelo Caladan no salão de jantar.

Jessica prendeu a respiração, controlando o impulso para se lançar ao marido. Pendurar a chave. Havia uma finalidade no gesto.

Mas esse não era o lugar nem a ocasião para conforto.

— Vi nossa bandeira sobre a casa quando chegamos.

Ele olhou para a pintura do pai.

— Onde você vai pendurar esta?

— Em algum lugar daqui.

— Não. — A palavra soou monótona e final, dizendo-lhe que ela poderia tentar persuadi-lo, mas seria inútil. Ainda assim ela teria de tentar, mesmo que o gesto só lhe servisse para provar que não poderia persuadi-lo.

— Meu senhor — disse ela —, se apenas me...

— A resposta continua sendo não. Eu vergonhosamente permito-lhe fazer quase tudo que deseja, mas não isso. Acabo de vir da sala de jantar onde existem...

— Meu senhor. Por favor!

— A escolha é entre sua digestão e minha dignidade ancestral, minha querida. Eles ficarão suspensos na sala de jantar.

Ela suspirou:

— Sim, meu senhor.

— Você pode retomar seu costume de jantar em seu quarto, sempre que for possível. Eu a esperarei em sua posição adequada apenas nas ocasiões formais.

— Obrigado, meu senhor.

— E não fique toda fria e formal comigo! Dê graças por nunca ter me casado com você, minha cara. Do contrário, seria seu dever reunir-se a mim na mesa durante cada refeição.

Ela manteve o rosto imóvel, e assentiu.

— Hawat já pôs nosso farejador de veneno sobre a mesa de refeições. Há um modelo portátil em seu quarto.

— Já antecipava este... desacordo.

— Minha querida, eu também penso em seu conforto. Já contratei os servos. Eles são nativos mas Hawat já verificou todos eles. São todos Fremen e deverão servir até que nossa própria gente possa ser liberada de suas outras tarefas.

— Podemos realmente confiar em alguém deste lugar?

— Em qualquer um que odeie os Harkonnen. Você pode mesmo querer manter a governanta Shadout Mapes.

— Shadout — repetiu Jessica. — Um título Fremen?

— Disseram-me que significa “caçamba”, uma palavra com nuanças bem importantes aqui. Ela pode não lhe parecer a serva típica, embora Hawat a tenha em alta conta, baseado no relatório de Duncan. Eles estão convencidos de que ela quer servir. Especificamente servir a você.

— Eu?

— Os Fremen souberam que você é Bene Gesserit. Existem lendas aqui sobre a Bene Gesserit.

“A Missionária Protetora”, pensou Jessica. “Nenhum lugar escapa à ação delas.”

— Isto quer dizer que Duncan foi bem-sucedido? Os Fremen serão nossos aliados?

— Não há nada definido — respondeu ele. — Eles querem nos observar um pouco, acredita Duncan. No entanto prometeram parar com os ataques contra nossas vilas exteriores, durante um período de trégua. Este é um ganho muito mais importante do que pode parecer. Hawat me disse que os Fremen eram um espinho no pé dos Harkonnen, e que a extensão de seus estragos era um segredo bem guardado. Não teria sido bom o Imperador conhecer a ineficácia dos militares Harkonnen.

“Uma governanta Fremen”, meditou Jessica, retornando ao assunto Shadout Mapes. “Ela terá os olhos totalmente azuis.”

— Não deixe que a aparência dessa gente a engane. Existe uma força profunda e uma vitalidade sadia neles. Acho que serão tudo que nós necessitamos.

— É uma aposta perigosa — disse ela.

— Não vamos começar de novo.

Jessica forçou um sorriso.

— Estamos comprometidos, sem dúvida nenhuma. — Ela recorreu ao rápido regime para obtenção de calma: duas inspirações profundas, o pensamento ritual, e então continuou: — Quando, eu selecionar os aposentos, devo reservar algo especial para você?

— Algum dia deve me ensinar como faz isso. O modo como põe de lado suas preocupações e volta-se para os assuntos práticos. Deve ser um dom Bene Gesserit.

— É um dom feminino — respondeu ela.

Ele sorriu.

— Bem, reserve salas. Certifique-se de que eu terei um escritório espaçoso próximo de meu quarto. Haverá mais trabalho burocrático aqui do que em Caladan. E uma sala de guardas, é claro. Isto deve ser o suficiente. Não se preocupe quanto à segurança da casa. Os homens de Hawat verificaram isso profundamente.

— Tenho certeza de que sim.

Ele olhou para o relógio de pulso.

— Deve verificar para que todos os marcadores de tempo estejam ajustados à hora local de Arrakis. Consegui um técnico para fazer isso. Ele virá dentro em breve. — Afastou uma mecha de cabelo da testa. — Devo retornar ao campo de pouso agora. A segunda lançadeira deve chegar a qualquer momento com meu pessoal de apoio.

— Não pode mandar Hawat recebê-los, meu senhor? Parece tão cansado.

— O bom Thufir está mais ocupado do que eu. Você sabe que este planeta está infestado com intrigas Harkonnen. Além disso, devo persuadir alguns dos mais treinados caçadores de especiaria a não partirem. Eles têm a opção, você sabe, com a mudança do feudo. E esse planetologista que o Imperador e a Landsraad instalaram como juiz da Mudança não pode ser comprado. Ele está concedendo a opção. Aproximadamente oitocentos homens treinados esperam partir com a lançadeira de especiaria e há uma nave de carga da Corporação esperando.

— Meu senhor... — ela interrompeu, hesitando.

— Sim?

“Ele não pode ser persuadido a tentar fazer este planeta seguro para nós”, pensou ela “.E não posso usar meus truques nele.”

— A que horas espera jantar? — perguntou ela.

“Não era isso que ela tencionava dizer”, pensou ele. “Ah, minha Jessica, se estivéssemos em algum outro lugar, qualquer lugar longe deste terrível planeta, sozinhos, nós dois, sem preocupações...”

— Comerei no refeitório dos oficiais, no campo. Não espere por mim até que seja bem tarde. E... ah, mandarei um guardacarro buscar Paul. Quero que ele venha à nossa conferência estratégica.

Limpou a garganta, como se fosse dizer mais alguma coisa, e então, sem aviso, virou-se, caminhando em direção à entrada, onde Jessica podia ouvir mais caixas sendo depositadas. Sua voz soou uma vez por lá, uma voz de comando, desdenhosa, do modo como ele sempre se dirigia aos servos quando estava com pressa. Lady Jessica está no grande salão, junte-se a ela imediatamente.

A porta externa bateu.

Jessica voltou-se olhando para a pintura do pai do Duque Leto.

Fora feita por um artista famoso, Albe, durante a meia-idade do velho Duque. Ele fora representado em traje de toureiro, com uma capa magenta caída sobre o braço esquerdo. O rosto parecia jovem, dificilmente mais velho do que o próprio Leto agora, e com os mesmos traços aquilinos, o mesmo olhar cinzento. Ela cerrou as mãos em punhos, os braços esticados, caídos nos lados do corpo, olhando com ódio para a pintura.

— Maldito sejas, maldito, maldito! — sussurrou ela.

— Quais são suas ordens, nobre senhora?

Era uma voz de mulher, fina e estridente.

Jessica girou o corpo e olhou para baixo, vendo uma mulher de cabelos grisalhos, magra e ossuda, dentro de um vestido que parecia um saco marrom. A mulher parecia tão enrugada e ressequida quanto qualquer um dos membros da multidão que os saudara ao longo do caminho, desde o campo de pouso, naquela manhã. Cada nativo que vira neste planeta, pensou Jessica, parecia magro e subnutrido. E no entanto Leto dissera que eles eram fortes e saudáveis. E lá estavam os olhos — aquele azul profundo, escuro, sem qualquer branco — olhos misteriosos, reservados. Jessica teve de se esforçar para não fitá-los.

A mulher acenou com a cabeça de um modo rígido, dizendo:

— Meu nome é Shadout Mapes, nobre senhora. Quais são suas ordens?

— Você pode me tratar por “minha senhora” — disse Jessica. — Eu não sou nobre. Sou apenas a concubina do Duque Leto.

Novamente, aquele modo estranho de assentir, a mulher fitou Jessica com uma indagação maliciosa.

— Há uma esposa, então?

— Não, e nunca houve. Sou a única... companheira do Duque, a mãe de seu herdeiro.

Enquanto falava, Jessica ria internamente do orgulho por trás de suas palavras. “Que foi mesmo que Santa Augustine disse? “A mente comanda o corpo, e ele obedece. A mente comanda a si mesma, e encontra resistência”. Sim, tenho encontrado mais resistências ultimamente. Se tivesse um refúgio sossegado que eu pudesse usar...”

Um estranho grito soou da estrada, fora da casa. Repetiu-se :

— Soo-soo-Sook! Soo-soo-Sook! — e então — lkhut-eigh! lkhuteigh! Depois novamente: — Soo-soo-Sook!

— Que é isso? — perguntou Jessica. — Ouvi várias vezes enquanto atravessávamos as ruas no carro, esta manhã.

— Apenas um vendedor de água, minha senhora. Mas não precisará se incomodar com eles. A cisterna daqui contém cinqüenta mil litros e é mantida sempre cheia. — Ela olhou para seu próprio vestido. — Por isso não preciso usar meu traje-destilador — comentou. — E nem estou morta!

Jessica hesitou, querendo interrogar essa mulher Fremen, precisando de informações para guiá-la. Todavia, buscar ordem na confusão do palácio era mais importante. Achava perturbador que a água fosse uma medida de riqueza nesse lugar.

— Meu esposo falou-me de seu nome, Shadout. Reconheço a palavra, é muito antiga.

— Conhece as línguas ancestrais então? — indagou Mapes, aguardando a resposta com uma estranha curiosidade.

— Idiomas são o primeiro aprendizado de uma Bene Gesserit. Eu conheço a Bhotani Jib e a Chakobsa, todas as linguagens dos caçadores.

Mapes acenou:

— Exatamente como diz a lenda.

Jessica se perguntou: “Por que eu fico jogando com esta fraude?” Mas os caminhos de uma Bene Gesserit eram tortuosos.

— Conheço as Coisas Negras e os caminhos da Grande Mãe — continuou Jessica, lendo sinais mais óbvios nas reações de Mapes e em sua aparência. — Miseces prejia — disse ela na língua Chakobsa. — Andral t're gera! Trada cik buscakri miseces perakri...

Mapes recuou um passo, como se estivesse pronta a fugir.

— Eu sei muitas coisas — disse Jessica. — Sei que você deu à luz várias crianças, que perdeu entes queridos, ocultou seu medo e usou de violência. Usou e ainda vai usar. Eu sei muitas coisas.

Mapes disse em voz baixa:

— Não queria ofendê-la, minha senhora.

— Você fala na lenda e busca respostas. Mas cuidado com as respostas que encontrar. Sei que veio preparada para a violência com uma arma oculta em seu corpete.

— Minha senhora, eu...

— Existe uma remota possibilidade de que você pudesse derramar meu sangue. Mas ao fazê-la traria mais desgraças que seus piores temores fazem supor. Há coisas piores do que a morte, você sabe. Até mesmo para todo um povo.

— Minha senhora! — suplicou Mapes. Ela parecia a ponto de cair de joelhos. — A arma foi mandada como um presente para a senhora, caso provasse ser a Escolhida.

— E para me matar se eu não o provasse — acrescentou Jessica.

Aguardou, no relaxamento aparente que faz uma Bene Gesserit tão aterradora em combate.

“Agora veremos para que lado se inclina a decisão”, pensou.

Lentamente Mapes estendeu a mão para a gola do vestido, retirando uma bainha negra de onde se projetava um punho igualmente preto, com saliências que se ajustavam à forma dos dedos. Segurou a bainha com uma das mãos e o punho com a outra, retirando uma lâmina cor de leite. Uma lâmina que parecia reluzir e cintilar com luz própria. Tinha gume duplo, como uma kindjal, e talvez vinte centímetros de comprimento.

— Conhece isto, minha senhora?

“Só podia ser uma coisa”, pensou Jessica, “a lendária faca cristalina de Arrakis, cuja lâmina nunca fora levada para fora do planeta, e da qual se sabia apenas através de rumores e mexericos.”

— É uma faca cristalina — respondeu.

— Não diga isso levianamente. Conhece seu significado?

Jessica pensou: “Há um propósito nesta pergunta. Aqui está a razão pela qual esta Fremen buscou emprego nesta casa, para fazer-me esta pergunta. Minha resposta poderá precipitar violência ou então... o quê? Ela quer que eu responda qual o significado de uma faca. Ela é chamada Shadout na língua Chakobsa. Faca, isto é, `Produtor da Morte', em Chakobsa. Está se tornando inquieta, eu devo responder agora. Retardar é tão perigoso quanto responder erroneamente.”

— Isto é `Produtor'...

— Eighe-e-e-e-e! — uivou Mapes. Era um som ao mesmo tempo de pesar e exaltação. Ela tremia tanto que a lâmina enviava agulhas cintilantes de luz, refletidas por toda a sala.

Jessica esperou, preparada. Pretendera dizer que a faca era produtor da morte e então acrescentar a palavra ancestral, mas todos os sentidos a advertiam agora, todo o treinamento de vigília que expunha significados na mais involuntária contração muscular.

A palavra-chave é Produtor.

“Produtor? Produtor.”

Mapes ainda segurava a faca erguida, como se tencionasse usá-la.

Jessica acrescentou:

— Você acha que eu, conhecendo os mistérios da Grande Mãe, não conheceria o Produtor?

Mapes abaixou a faca.

— Minha senhora, quando se vive com a profecia por tanto tempo, o momento da revelação é um choque.

Jessica lembrava-se da profecia — a Shari-a e toda a panoplia propheticus, uma Bene Gesserit das Missionárias Protetoras desembarcada aqui há muitos séculos atrás — a essa altura já morta, há muito tempo, mas com sua missão cumprida: as lendas protetoras, implantadas nesse povo para o dia em que uma Bene Gesserit necessitasse.

Bem, o dia chegara.

Mapes recolocou a faca na bainha, dizendo:

— Esta é uma lâmina ainda não assentada, minha senhora. Mantenha-a sempre junto de si. Mais de uma semana longe de carne e ela começa a se desintegrar. É sua, um dente do shai-hulud, para guardar enquanto viver.

Jessica estendeu a mão direita e arriscou:

— Mapes, você desembainhou aquela lâmina sem banhá-la com sangue.

Com um susto, Mapes deixou cair a lâmina na mão de Jessica e abriu o corpete do vestido, num gesto violento, gemendo:

— Tire a água de minha vida!

Jessica retirou a lâmina da bainha, admirada. Como ela cintilava!

Dirigiu a ponta para Mapes, vendo o pânico que a morte produzia na mulher. “Veneno na ponta?”, perguntou a si mesma. Inclinou a ponta fazendo um delicado arranhão com o gume, acima do seio esquerdo de Mapes. O sangue saiu grosso e em quantidade, depois parou. “Coagulação ultra-rápida”, pensou. “Seria uma mutação para conservar umidade?”

Embainhou a lâmina, ordenando:

— Abotoe seu vestido, Mapes.

Mapes obedeceu trêmula, os olhos sem brancos fitando Jessica.

— Você é nossa, é a Escolhida.

Houve um som de material sendo descarregado na entrada. Rapidamente Mapes agarrou a faca embainhada e a escondeu no corpete de Jessica.

— Quem vir a faca deve ser purificado ou morto! — rosnou ela. — Você sabe disso, minha senhora!

“Eu sei agora”, pensou Jessica.

Os carregadores partiram sem entrar no grande salão.

Mapes recuperou a calma e se recompôs, dizendo:

— Aos impuros que virem a faca cristalina não deve ser permitido deixar com vida Arrakis. Nunca esqueça isso, minha senhora. Foi-lhe confiada a faca cristalina. — Respirou fundo e acrescentou: — Agora tudo deve tomar seu devido curso, que não pode ser apressado.

Olhou para as caixas empilhadas e os pertences amontoados à volta.

— E há trabalho de sobra para nós aqui.

Jessica hesitou.

— “As coisas devem tomar seu curso.” Esta era uma frase específica do estoque de encantamentos da Missionária Protetora. — A vinda da Reverenda Madre para libertá-los.

“Mas eu não sou a Reverenda Madre”, pensou Jessica, e depois “Grande Mãe! Eles plantaram isso aqui! Deve ser um lugar hediondo!”

Em tom casual, Mapes indagou:

— O que deseja que eu faça primeiro, senhora?

O instinto levou Jessica a responder no mesmo tom.

— A pintura do velho Duque deve ser pendurada neste lado da sala de jantar. A cabeça do touro deve ser colocada na parede oposta à da pintura.

Mapes caminhou para a cabeça do touro.

— Que grande animal deve ter sido para ter uma cabeça dessas. — Parou observando. — Vou limpá-la primeiro, não, minha senhora?

— Não.

— Mas há sujeira acumulada nos chifres.

— Isso não é sujeira, Mapes. É o sangue do pai do nosso Duque. Os chifres foram pulverizados com um fixador transparente, horas depois que esse animal matou o velho Duque.

Mapes levantou-se.

— Ah, nossa!

— É apenas sangue. Sangue muito velho. Peça alguma ajuda para pendurar estas coisas, são muito pesadas.

— Acha que o sangue me incomodou? — indagou Mapes. — Eu sou do deserto e já vi sangue em quantidade.

— Vejo que viu.

— Incluindo o meu — continuou Mapes. — Mais do que a senhora tirou com aquele arranhãozinho tolo.

— Preferiria que eu tivesse cortado mais fundo?

— Ah não! A água do corpo já é muito escassa para ser esguichada dispendiosamente no ar. Fez a coisa certa.

Jessica, notando as palavras e a maneira como eram ditas, percebia as profundas implicações da expressão “a água do corpo”.

Novamente sentia a opressão que a importância da água exercia sobre Arrakis.

— Em que lado da sala de jantar eu devo pendurar estas lindas coisas, senhora?

“Sempre prática essa Mapes”, pensou Jessica, e respondeu: Use seu próprio julgamento, Mapes. Não faz realmente qualquer diferença.

— Se diz assim, senhora.

Mapes curvou-se começando a retirar os restos de fio de embalagem da cabeça.

— Então você matou o velho Duque? — cantarolou ela.

— Devo pedir um carregador para ajudá-la?

— Não, eu conseguirei, senhora.

“Sim, ela conseguirá”, pensou Jessica, “esta criatura Fremen gira ao redor disso: o impulso para conseguir.”

Sentia a lâmina fria da faca cristalina sob seu corpete, e pensava na longa cadeia de intrigas e maquinações Bene Gesserit, que forjara outro elo aqui nesse lugar. Graças a essas maquinações ela sobrevivera a uma crise mortal.

— Não pode ser apressado — dissera Mapes. Todavia sentia um ritmo impetuoso nesse lugar que a enchia de pressentimentos. E, nem todos os arranjos da Missionária Protetora, ou a inspeção desconfiada de Hawat sobre essa pilha de rochas, iriam apagar este agouro.

— Quando terminar de pendurar, comece a esvaziar as caixas.

Um dos encarregados na entrada tem as chaves, e sabe onde as coisas devem ser colocadas. Apanhe as chaves e a lista com ele. Se houver alguma pergunta, eu estarei na ala sul.

— Como quiser, minha senhora.

Jessica afastou-se, pensando: “Hawat pode ter considerado esta residência segura, mas há alguma coisa errada com este lugar. Posso senti-lo.”

Uma urgente necessidade de ver seu filho apoderou-se de Jessica.

Ela começou a caminhar em direção à porta abobadada, que conduzia a uma passagem ligando o salão de jantar com as alas familiares. Cada vez mais rápido, ela caminhou até estar quase correndo.

Por trás dela Mapes parou de retirar os fios da cabeça de touro, olhou para a figura que se afastava e murmurou:

— Ela é a Escolhida, sim. Pobre coitada.

 “Yueh! Yueh! Yueh!” diz o refrão. “Um milhão de mortes não eram suficientes para Yueh!”

 

— de História infantil de Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

A porta encontrava-se escancarada e Jessica passou por ela, entrando na sala de paredes amarelas. A sua esquerda estendia-se um longo sofá de couro negro, duas prateleiras para livros, vazias, e um frasco de água suspenso, com pó acumulado em seus lados bojudos. A direita, ao redor de outra porta, havia mais estantes vazias, uma mesa de Caladan e três cadeiras. Nas janelas, diretamente à frente, via-se o Dr. Yueh, de costas para ela, a atenção fixa no mundo exterior.

Jessica deu um passo silencioso para dentro da sala.

Percebeu que o casaco de Yueh estava amarrotado, com uma mancha branca próxima do cotovelo esquerdo, como se ele tivesse se apoiado em giz. Visto de trás, ele parecia um boneco, marionete de palitos, todo sem carne dentro de uma roupa muito larga, pronto para saltar na direção de seu dono. Apenas o bloco quadrangular da cabeça, com o longo cabelo cor de ébano preso ao anel prateado da Escola Suk, sobre o ombro, parecia ter vida — virando-se lentamente para seguir algum movimento do lado de fora.

Novamente ela observou a sala, sem ver sinal de seu filho. Mas a porta fechada à esquerda conduzia ao pequeno quarto, pelo qual Paul expressara seu agrado.

— Boa tarde, Dr. Yueh. Onde está Paul?

Ele acenou, como se para alguma coisa lá fora, e falou de um modo distraído, sem se voltar.

— Seu filho ficou cansado, Jessica. Eu o mandei repousar na sala ao lado.

Abruptamente ele se enrijeceu, voltou-se para ela com o bigode balançando sobre seus lábios rosados.

— Perdoe-me, minha senhora! Meus pensamentos estavam muito distantes... Eu... não tencionava parecer petulante.

Ela sorriu, estendendo a mão direita. Temeu, por um momento, que ele fosse ajoelhar-se.

— Wellington, por favor...

— Usar seu primeiro nome daquele modo... eu...

— Nós nos conhecemos há seis anos — disse ela. — É um longo passado. Creio que as formalidades deviam ser dispensadas entre nós, quando em particular.

Yueh arriscou um leve sorriso, pensando: “Acho que funcionou. Agora ela vai pensar que qualquer mudança em minhas atitudes será devida ao embaraço. Ela não buscará razões mais profundas enquanto acreditar que já possui a resposta.”

— Receio ter estado divagando. Sempre que me sinto... especialmente pesaroso a seu respeito... sinto pensar na senhora como... Jessica.

— Pesaroso quanto a mim? Por quê?

Yueh deu de ombros. Há muito tempo percebera que Jessica não era dotada com o dom completo da clarividência, como a sua Wanna fora. Todavia sempre usava da verdade com ela, sempre que fosse possível. Era mais seguro.

— Viste este lugar, minha... Jessica. — Ele tropeçou no nome, mergulhou adiante: — Tão desolado... depois de Caladan. E o povo! As mulheres da cidade por que passamos quando vínhamos para cá, uivando debaixo daqueles véus. O modo como olhavam para nós.

Jessica cruzou os braços sobre o peito, abraçando a si mesma, sentindo a faca cristalina, a lâmina feita do dente de um verme da areia, se os relatórios eram corretos.

— Somos apenas estranhos para eles. Gente diferente, com costumes diferentes. Eles só conhecem os Harkonnen. — Olhou além dele, para as janelas. — Que estava olhando lá fora?

Ele virou-se para a janela.

— O povo.

Jessica caminhou até ficar ao seu lado, olhando para a esquerda em direção à fachada da casa, onde a atenção de Yueh se focalizava. Uma linha de vinte palmeiras crescia lá, o solo abaixo delas limpo e desolado. Uma cerca-tela as separava da estrada na qual as pessoas, cobertas com mantos, iam passando. Jessica percebeu um leve tremular no ar entre ela e as pessoas — o escudo caseiro — e prosseguiu observando a multidão que passava, tentando imaginar por que Yueh os julgava tão interessantes.

O padrão surgiu e ela levou a mão ao rosto. O modo como as pessoas olhavam para as palmeiras. Percebeu inveja, ódio e mesmo um certo senso de esperança. Cada pessoa varria aquelas árvores com uma expressão fixa.

— Sabe o que eles estão pensando? — indagou Yueh.

— É capaz de ler mentes?

— Aquelas mentes — disse ele. — Elas olham para aquelas árvores e pensam: “Lá estão cem de nós”. Isto é o que elas pensam.

Olhou para ele intrigada:

— Por quê?

— Aquelas são tamareiras. Uma tamareira consome quarenta litros de água por dia. Um homem necessita de apenas oito litros. Uma tamareira, então, equivale a cinco homens. Há vinte tamareiras lá, portanto, cem homens.

— Mas algumas daquelas pessoas olham para as árvores com esperança.

— Elas esperam que algumas tâmaras caiam, todavia esta é a estação errada.

— Nós observamos este lugar com uma visão muito crítica — disse ela. — Existe esperança ao lado do perigo, por aqui. Aquela especiaria poderia nos tornar ricos. Com um tesouro gordo poderíamos transformar este mundo no que desejássemos.

Interiormente ela riu de si mesma: “A quem eu estou tentando convencer?” O riso escapou-lhe ao controle, emergindo áspero e sem humor.

— Mas não se pode comprar segurança — acrescentou.

Yueh virou o rosto, para escondê-lo de Jessica. “Se ao menos fosse possível odiar essa gente, em vez de amá-la!” A sua maneira, de muitos modos, Jessica era como a sua Wanna. Mas o pensamento carregava suas próprias exigências, endurecendo-o quanto ao seu propósito. Os caminhos da crueldade Harkonnen eram tortuosos.

Wanna poderia não estar morta. Ele tinha que ter certeza.

— Não se preocupe por nós, Wellington. O problema é nosso, não seu.

“Ela pensa que me preocupo com ela!” Ele piscou para conter as lágrimas. “E eu o faço, é claro. Mas preciso me colocar diante daquele Barão negro, com sua façanha realizada, e me arriscar a golpeá-lo em seu momento mais fraco: na hora da exaltação!”

Suspirou.

— Eu incomodaria Paul se fosse observá-lo? — perguntou Jessica.

— Nem um pouco. Dei-lhe um sedativo.

— Ele está recebendo bem a mudança?

— Exceto por ficar um pouco exausto. Ele está excitado, mas qual o rapaz de quinze anos que não estaria nestas circunstâncias? — Caminhou para a porta e abriu-a, mostrando a Jessica.

— Ele está aqui.

Jessica se aproximou, observando a penumbra do quarto.

Paul estava deitado num leito estreito, um braço debaixo do fino cobertor e o outro sob a cabeça. Ao lado da cama, as venezianas sobre a janela teciam uma rede de sombras projetadas ao rosto e no cobertor.

Jessica fitou o filho, vendo a forma oval do rosto, igual ao seu. Mas o cabelo era como o do Duque — cor de carvão e emaranhado. Longas pestanas ocultavam os olhos cor de limas. Jessica sorriu, sentindo seus temores recuarem. Subitamente, a idéia dos traços genéticos nas feições do filho dominou seus pensamentos.

Seus traços no contorno da face, com os toques agudos do pai surgindo através desse contorno, como maturidade emergindo da infância.

Ela pensava nas feições do rapaz como uma singular destilação de padrões casuais. Filas intermináveis de tendências, encontrando-se nesse nexo. O pensamento fez com que desejasse ajoelhar-se ao lado da cama, tomando o filho em seus braços, mas foi inibida pela presença de Yueh. Recuou fechando a porta suavemente.

Yueh retornara para a janela, incapaz de suportar o modo como Jessica olhava seu filho. “Por que Wanna nunca me deu filhos? Sei, como médico, que não havia nenhuma razão física contra isso. Haveria alguma razão Bene Gesserit? Teria ela, talvez, sido instruída quanto a servir um propósito diferente? O que teria sido? Ela me amava, certamente.”

Pela primeira vez, ele teve consciência de que poderia ser parte de um padrão mais complicado, e emaranhado, do que sua mente poderia compreender.

Jessica parou novamente ao lado dele:

— Que maravilhoso abandono é o sono de uma criança.

Yueh respondeu mecanicamente:

— Se ao menos os adultos pudessem relaxar assim.

— Exato.

— Onde será que nós perdemos essa capacidade? — murmurou ele.

Ela olhou para ele, captando o tom estranho, sua mente, todavia, ainda com Paul, pensando nos novos rigores do treinamento aqui, pensando nas diferenças sobre sua vida, agora tão distinta da vida que haviam planejado para ele.

— Nós perdemos de fato alguma coisa — disse ela.

Olhando para a direita podia ver uma colina, com a corcova de um grupo de arbustos verde-cinza amassados pelo vento — folhas empoeiradas e ramos secos como garras. Um céu muito escuro erguia-se sobre a colina como um borrão, enquanto a luz leitosa do sol de Arrakis emprestava à cena uma tonalidade prateada, uma luz como a da faca cristalina oculta em seu corpete.

— O céu é tão escuro — comentou.

— Isso é devido, parcialmente, à ausência de umidade.

— Água! — retrucou ela. — Para qualquer lado que você se volte aqui, você se envolve com a ausência de água.

— É esse o precioso mistério de Arrakis — comentou ele.

— Por que é tão escassa? Existe rocha vulcânica aqui. Existe uma dúzia de fontes de energia que eu poderia citar. Existe gelo polar. Eles dizem que não se pode perfurar no deserto. As tempestades e marés de areia destruiriam o equipamento mais rápido do que pode ser instalado, isso se os vermes não o pegarem primeiro. E nunca encontraram traços de água por lá, de qualquer modo. Mas o mistério, Wellington, o verdadeiro mistério é que poços têm sido perfurados aqui, nas “pias” e “panelas”. Já leu a respeito deles?

— Primeiro um filete, depois nada — disse ele.

— Mas, Wellington, esse é o mistério. A água está lá. Ela seca e nunca mais aparece. Todavia, outro poço perfurado ao lado produz o mesmo resultado: um filete que pára. Ninguém jamais ficou curioso quanto a isso?

— É curioso — ele respondeu. — Você suspeita de algum agente vivo? Não teria ele aparecido nas amostras colhidas?

— O que teria aparecido? Matéria vegetal alienígena?... ou animal? Quem a reconheceria? — Ela voltou as costas para a colina. — A água é interrompida. Alguma coisa a interrompe, tapa o buraco. Esta é minha suspeita.

— Talvez a razão seja conhecida — observou Yueh. — Os Harkonnen eliminaram muitas fontes de informação a respeito de Arrakis. Talvez tivessem uma razão para suprimi-las.

— Que razão? E então existe a umidade atmosférica. Pouca, é verdade, mas existe alguma. É a principal fonte de água por aqui, captada em precipitadores e “armadilhas de vento”. Mas de onde ela vem?

— Das camadas polares?

— Ar frio transporta muito pouca umidade, Wellington. Existem coisas aqui, por trás do véu erguido pelos Harkonnen, que merecem investigação cuidadosa. Nem todas essas coisas estão diretamente envolvidas com a especiaria.

— Nós estamos, de fato, embaixo do véu dos Harkonnen. Talvez, bem... — Ele interrompeu-se, percebendo a maneira intensa com que ela o observava. — Há algo errado?

— O modo como você disse Harkonnen. Nem mesmo o meu Duque carrega em sua voz tamanho rancor ao pronunciar esse nome. Não sabia que tinha razões pessoais para odiá-los, Wellington.

“Grande Mãe!”, pensou ele. “Levantei suas suspeitas! Agora devo usar todos os truques que minha Wanna me ensinou. E só existe uma solução: dizer a verdade, até onde seja possível.”

— Você não sabia que minha esposa, minha Wanna... — Ele estremeceu, incapaz de falar com o súbito aperto em sua garganta. Tentou: — Eles... — mas as palavras não saíam. Sentia-se em pânico, fechou os olhos experimentando a agonia em seu peito, até que uma mão tocou seu braço gentilmente.

— Perdoe-me — disse Jessica. — Eu não desejava abrir uma velha ferida.

E pensou: “Aqueles animais. Sua esposa era Bene Gesserit — os indícios são óbvios nele. E é igualmente óbvio que os Harkonnen a mataram. Eis outra pobre vítima, unida aos Atreides pelos laços do ódio.”

— Sinto muito — disse Wellington. — Sou incapaz de falar a respeito. — Abriu os olhos abandonando-se à consciência de sua mágoa. Isso pelo menos era verdadeiro.

Jessica observou-o, vendo a face angulosa, os olhos amendoados, negros e brilhantes como lantejoulas, o bigode fino, suspenso como um arco ao redor dos lábios purpurinos e do queixo estreito.

Os vincos na testa e nas maçãs do rosto, ela percebia, eram linhas de sofrimento, assim como de idade. Uma profunda afeição pelo homem tomou conta dela.

— Wellington. Sinto tê-lo trazido para este lugar tão perigoso.

— Vim por minha espontânea vontade — respondeu ele. E isso também era verdade.

— Mas o planeta inteiro é uma armadilha Harkonnen. Você sabia disso.

— Será preciso mais do que uma armadilha para pegar o Duque Leto — comentou. E isso também era verdade.

— Talvez eu devesse ter mais confiança nele. É um estrategista brilhante.

— Nós perdemos nossas raízes. É por isso que nos sentimos tão perturbados.

— E é tão fácil matar uma planta arrancada — comentou Jessica. — Principalmente se você a coloca num solo hostil.

— Podemos ter certeza de que este solo é hostil?

— Ocorreram tumultos quando foi revelado quantas pessoas o Duque estava acrescentando à população. Só foram contidos quando as pessoas perceberam que íamos instalar novas “armadilhas de vento” e condensadores para dar conta da sobrecarga.

— Isso é porque existe o mínimo de água para manter a vida humana por aqui. As pessoas percebem que, se chega mais gente para beber a quantidade limitada de água que existe, o preço dispara, e os muito pobres morrem. Mas o Duque resolveu isso. Não significa que os distúrbios da água representem uma hostilidade permanente contra ele.

— E os guardas — disse Jessica. — Guardas em toda parte. E escudos. Pode-se ver o tremular deles para onde quer que se olhe. Não vivíamos desse modo em Caladan.

— Dê uma chance a este planeta.

Jessica continuou a olhar de modo severo para fora da janela.

— Posso sentir o cheiro da morte neste lugar. Hawat enviou agentes avançados para cá, aos batalhões. Aqueles guardas lá fora são homens dele. Os carregadores também. Houve retiradas inexplicadas de largas somas do tesouro. Essas quantias só podem significar uma coisa: subornos em postos elevados. — Ela sacudiu a cabeça. — Aonde quer que vá Thufir Hawat, morte e fraude seguirão com ele.

— Está difamando Thufir.

— Difamando! Eu o estou elogiando. A morte e o logro são nossas únicas esperanças agora. Eu apenas não me iludo quanto aos métodos de Thufir.

— Devia... se manter ocupada — aconselhou ele. — Não dar tempo a pensamentos tão mórbidos...

— Ocupada! O que é que toma mais o meu tempo, Wellington? Eu sou a secretária do Duque. Tão ocupada que cada dia aprendo coisas novas para temer... coisas que nem mesmo suspeitava existirem. — Comprimiu os lábios, falando baixinho: — As vezes me pergunto o quanto do meu treinamento Bene Gesserit, em negócios, influenciou minha escolha.

— O que quer dizer? — Sentia-se surpreendido pelo tom cínico, a amargura que nunca a vira expor.

— Não acha, Wellington, que uma secretária presa a alguém pelos laços do amor não seria muito mais segura?

— Não é um pensamento que valha a pena, Jessica.

A resposta viera naturalmente aos seus lábios. Não havia dúvida quanto aos sentimentos do Duque em relação à sua concubina. Bastava observar o modo como ele a seguia com os olhos.

Ela suspirou.

— Você tem razão, não vale a pena.

Novamente ela comprimiu o corpo com seus braços, sentindo a faca cristalina contra sua carne e pensando em todos os negócios ainda não terminados que ela representava.

— Logo haverá muito derramamento de sangue. Os Harkonnen não descansarão até que estejam mortos, ou meu Duque destruído. O Barão não esquecerá que Leto possui sangue real — não importando quão remoto ele seja — enquanto os títulos dos Harkonnen derivam todos dos lucros da CHOAM. Mas o veneno em sua mente é o conhecimento de que um Atreides baniu um Harkonnen, por covardia, após a Batalha de Corrin.

— A velha rixa — murmurou Yueh, sentindo por um instante o toque ácido do ódio. A velha rixa que o aprisionara em sua teia, matara sua Wanna ou, pior ainda, a deixara para ser torturada pelos Harkonnen até que seu marido cumprisse as exigências. A velha rixa que o envolvera, e a todas essas pessoas, como parte de uma coisa envenenada. A ironia era que algo tão mortal viesse a florescer aqui em Arrakis, a única fonte de melange em todo o universo, o prolongador da vida, a fonte de saúde.

— Em que está pensando?

— Estou pensando que a especiaria rende seiscentos e vinte mil solaris por decagrama no mercado aberto, neste momento. Isso é riqueza para comprar muitas coisas.

— Sentiu o toque da cobiça, Wellington?

— Não é cobiça.

— O que é então?

Ele deu de ombros.

— Futilidade. — Olhou para ela. — Consegue se lembrar da primeira vez que provou da especiaria?

— Tinha gosto de canela.

— Mas nunca tem o mesmo gosto duas vezes. É como a vida, que apresenta uma face diferente cada vez que você a encara. Alguns afirmam que a especiaria produz uma reação de aprendizado de sabor. O corpo, sentindo que uma coisa é boa para ele, interpreta seu sabor como agradável, levemente euforizante. E, como a vida, não pode ser verdadeiramente sintetizado.

— Acho que teria sido mais sábio para nós nos tornarmos renegados, colocando-nos além do alcance do Império — disse ela.

Percebeu que Jessica não estivera realmente ouvindo suas palavras, muito ocupada que estava com as próprias, cheias de assombro: “Por que, por que não o levei a fazer isso? Eu poderia convencê-lo a fazer qualquer coisa.”

Yueh falou rapidamente. Agora havia uma verdade acompanhada de uma mudança no assunto:

— Consideraria atrevimento de minha parte... Jessica, se eu fizesse uma pergunta pessoal?

Ela pressionou o corpo contra a saliência da janela, numa inexplicável reação de ansiedade.

— É claro que não. Você é... meu amigo.

— Por que nunca forçou o Duque a desposá-la?

Ela girou, a cabeça erguida, olhos brilhantes.

— Fazê-lo me desposar? Mas...

— Desculpe, eu não devia ter perguntado.

— Não. Há uma boa razão política. Enquanto meu Duque permanecer solteiro, uma das Grandes Casas ainda pode ambicionar uma aliança. E... — suspirou — influenciar pessoas, forçando-as a realizar suas vontades, produz uma atitude cética com relação à humanidade. Degrada tudo que toca. Se eu o forçasse a realizar meu desejo ele perderia a espontaneidade.

— É algo que minha Wanna teria dito — murmurou Yueh, e aqui havia outra verdade. Colocou a mão sobre a boca, engolindo convulsivamente. Nunca estivera tão próximo de desabafar tudo, confessar seu papel secreto.

Mas foi Jessica quem falou, destruindo a ocasião.

— Além disso, Wellington, o Duque é na verdade dois homens. Um deles eu amo muito. Ele é encantador, atencioso, espirituoso... terno — tudo o que uma mulher poderia desejar. Mas o outro homem é... frio, empedernido, exigente, egoísta — tão duro e cruel quanto um vento de inverno. É o homem que foi moldado por seu pai. — A face de Jessica se contorceu: — Se ao menos aquele velho tivesse morrido quando meu Duque nasceu!

No silêncio que se seguiu entre os dois, a brisa de um ventilador podia ser ouvida soprando nas venezianas.

Daí a pouco ela respirou fundo e disse:

— Leto tem razão. Estas salas são melhores que nas outras seções da casa. — Virou-se, varrendo o aposento com seu olhar. — Vai me desculpar, Wellington, mas preciso dar outra olhada nesta ala antes de selecionar os alojamentos.

Ele assentiu com a cabeça:

— É claro. — No íntimo pensava: “Se ao menos houvesse algum meio de não fazer essa coisa que preciso fazer.”

Jessica deixou cair os braços num gesto de resignação, atravessou o salão e parou na porta, hesitando por um instante, depois saiu. “Todo o tempo em que estivemos falando ele estava escondendo alguma coisa”, pensou ela. “Para não ofender meus sentimentos, sem dúvida. Ele é um bom homem”. Novamente hesitou, quase voltando para confrontar Yueh e forçá-lo a revelar aquela coisa oculta. “Mas isso só iria envergonhá-lo, assustando-o ao perceber que seus sentimentos são tão facilmente revelados. Eu devo ter mais confiança em meus amigos”.

 

Muitos têm notado a rapidez com que o Muad'Dib aprendeu as exigências de Arrakis. Bene Gesserit, é claro, conhece os fundamentos dessa rapidez. Aos outros, nós podemos dizer que o Muad'Dib aprendeu rapidamente porque seu treinamento básico era em como aprender. Sua primeira lição foi a confiança básica em sua capacidade de compreender. É chocante descobrir quantas pessoas não acreditam em sua capacidade de aprender, e quantas mais acreditam que o aprendizado seria algo difícil. Muad'Dib sabia que cada experiência carrega sua lição.

 

— de Humanidade do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan.

 

Paul continuava deitado, fingindo dormir. Fora fácil ocultar na palma da mão o tablete soporífero que lhe dera o Dr. Yueh, e fingir que o engolira. Paul conteve a vontade de rir. Mesmo sua mãe acreditara em seu sono. Quisera saltar da cama e pedir a permissão dela para explorar a casa, mas percebera que não teria sua aprovação. As coisas ainda estavam muito inseguras. Assim era melhor.

“Se eu escapulir sem perguntar, não estarei desobedecendo a ordens. E ficarei na casa onde é seguro.”

Ouviu sua mãe e Yueh conversando na outra sala. As palavras eram indistintas — alguma coisa quanto a especiaria e... os Harkonnen. A conversação se erguia e caía.

As atenções de Paul voltaram-se para a cabeceira esculpida de sua cama. Uma falsa cabeceira presa à parede, e ocultando os controles para as diversas funções desse quarto. Um peixe saltando fora talhada na madeira, com espessas ondas marrons por baixo. Sabia que, se apertasse o olho visível do peixe, acenderia as lâmpadas suspensoras do quarto. Uma das ondas, quando torcida, controlava a ventilação. Outra, modificava a temperatura.

Sem fazer ruído, Paul se sentou na cama. Uma estante alta erguia-se contra a parede à sua esquerda. Podia girar para o lado revelando um armário com gavetas ao longo da face aposta. A maçaneta da porta para o salão fora moldada na forma da barra de empuxo de um ornitóptero.

Era como se todo o quarto houvesse sido decorado para seduzi-lo. Esse quarto e o resto do planeta.

Pensou no livro-filme que Yueh lhe mostrara — “Arrakis: Estação Botânica de Testes em Desertos para sua Majestade Imperial.” Era um velho filme-livro anterior à descoberta da especiaria. Nomes esvoaçavam através da mente de Paul, cada um deles com sua imagem impressa pelo pulso mnemônico do livro: “saguaro, arbusto de burro, tamareira, verbena de areia, prímula noturna, cacto barril, arbusto incenso, árvore fumacenta, arbusto creo-Boto... raposa, falcão do deserto, rato canguru...”

Nomes e imagens, nomes e figuras do passado terreno do homem. Imagens que não se encontravam mais em parte alguma do universo, exceto aqui, em Arrakis.

Tantas coisas para aprender sobre a especiaria.

E os vermes da areia.

Uma porta se fechou na outra sala. Paul ouviu os passos de sua mãe recuarem através do salão. O Dr. Yueh, ele sabia, iria encontrar alguma coisa para ler e permaneceria na outra sala.

Agora era o momento para explorar.

Saiu da cama dirigindo-se para a porta-estante que abria-se no armário. Parou ao ouvir um som às suas costas, e voltou-se. A cabeceira esculpida da cama estava se dobrando sobre o ponto onde ele estivera dormindo. Paul gelou, e a imobilidade salvou sua vida.

Detrás da cabeceira deslizou um minúsculo caçador-rastreador, com não mais do que cinco centímetros de comprimento. Paul logo reconheceu, era um tipo comum de arma para assassinatos, que toda criança de sangue real aprendia a reconhecer muito cedo. Constituía-se de uma voraz farpa de metal, guiada pelo olho e a mão de um agente nas proximidades. Ela poderia mergulhar em carne móvel e abrir seu caminho através dos canais nervosos, até atingir o órgão vital mais próximo.

O rastreador se elevou, virando de lado para atravessar o quarto e voltar.

O conhecimento das limitações desse tipo de arma relampejou pela mente de Paul: seu campo suspensor comprimido distorcia a visão do olho transmissor. Apenas com a luz fraca do quarto para refletir seu alvo, o operador teria que depender de um movimento, apontando para qualquer coisa que se movesse. Um escudo poderia retardar um rastreador, fornecendo o tempo necessário para destruí-lo, mas Paul deixara seu escudo na cama. Pistolas laser poderiam derrubá-los, mas pistolas laser eram dispendiosas e de manutenção notoriamente difícil. Além disso, havia sempre o perigo de uma pirotécnica explosiva, se um laser cruzasse um escudo aquecido. Por isso os Atreides confiavam em seus escudos corpóreos, e em sua destreza.

Paul se mantinha agora num estado de imobilidade quase catatônica, sabendo que teria somente sua astúcia para enfrentar essa ameaça.

O caçador-rastreador ergueu-se mais meio metro. Ondulou através da luz oblíqua das venezianas, para a frente e para trás, dividindo o quarto.

“Devo agarrá-lo”, pensou. “O campo suspensor o tornará escorregadio na parte de baixo. Devo segurar com força.”

A coisa caiu meio metro, correu para a esquerda, circulando ao redor da cama. Emitia um fraco zumbido.

“Quem estará operando esta coisa?”, pensou Paul. “Tem de ser alguém próximo. Eu poderia gritar por Yueh, mas aquilo o atingiria no momento que ele abrisse a porta.”

A porta do salão estalou atrás de Paul. Ouviu-se uma batida e depois ela se abriu.

O rastreador disparou como uma flecha, passando por sua cabeça em direção ao movimento.

A mão direita de Paul saltou agarrando a coisa mortífera num movimento para baixo. Aquilo zumbiu e se contorceu em sua mão, mas seus músculos estavam fechados sobre ela, em desespero. Com uma volta violenta e um impulso ele golpeou a ponta da coisa contra a chapa de metal da porta. Sentiu o ruído quando o olho do rastreador foi esmagado e a coisa ficou morta em sua mão.

Ainda assim continuou segurando, para ter certeza.

Ergueu a cabeça encontrando o azul total dos olhos de Shadout Mapes.

— Seu pai me mandou buscá-lo — disse ela. — Há homens no salão para escoltá-lo.

Paul assentiu, seus olhos e sua consciência focalizados nessa mulher curiosa, com seu vestido-saco na cor marrom dos servos. Ela olhava agora para a coisa em sua mão.

— Já ouvi falar desses — disse. — Ele teria me matado, não?

Paul teve de engolir em seco antes de poder falar.

— Eu... era o alvo.

— Mas estava vindo em minha direção.

— Porque você estava em movimento. — E pensou: “Quem será esta criatura?”

— Então você salvou minha vida?

— Eu salvei nossas vidas.

— Parece-me que você poderia ter deixado que ele me atingisse, para então escapar.

— Quem é você?

— Shadout Mapes, a governanta.

— Como sabia onde me encontrar?

— Sua mãe me disse. Encontrei-a nas escadarias que levam à sala sobrenatural. — Apontou para a direita. — Os homens de seu pai ainda estão aguardando.

“Aqueles serão homens de Hawat”, pensou Paul. “Devemos encontrar o operador desta coisa.”

— Vá encontrar os homens de meu pai. Diga-lhes que apanhei um caçador-rastreador na casa, e que se espalhem para encontrar o operador. Diga-lhes que selem a casa e o terreno imediatamente. Eles saberão como fazê-lo. O operador, certamente, será um estranho entre nós.

“Poderia ser esta criatura?” Mas sabia que não era. O rastreador estava sendo controlado quando ela entrou.

— Antes que eu cumpra as suas ordens — disse Mapes —, devo aparar as arestas entre nós dois. Você colocou uma carga sobre meus ombros que não sei se posso suportar. Mas nós, Fremen, pagamos nossas dívidas, sejam elas dívidas negras ou dívidas brancas. É sabido que existe um traidor no meio de vocês. Quem é eu não sei, mas temos certeza de que ele existe. Talvez seja a mão que guiou este cortador de carne.

Paul absorveu tudo isso em silêncio: um traidor. Antes que ele pudesse responder, a mulher estranha virou-se e correu em direção à entrada.

Pensou em chamá-la de volta, mas ela tinha um ar de quem ficaria ressentida se ele o fizesse. Ela dissera o que sabia e agora estava seguindo para cumprir as suas ordens. A casa estaria fervilhando de homens de Hawat dentro de um minuto.

Sua mente ocupou-se com outras partes da estranha conversação: “sala sobrenatural”. Olhou para a esquerda, na direção que ela apontara. “Nós, Fremen.” Então aquilo era uma Fremen. Ele fez uma pausa para o piscar mnemônico que armazenaria o padrão daquele rosto em sua memória: feições enrugadas, como uma ameixa, cor bronzeada escura, olhos azuis sem qualquer branco. Adicionou o rótulo: a Shadout Maper.

Ainda segurando o rastreador espatifado, Paul voltou-se para o quarto, apanhou seu cinturão-escudo de cima da cama com a mão esquerda. Colocou-o em torno da cintura afivelando enquanto corria para o salão, dirigindo-se para a esquerda.

Ela disse que mamãe estaria em algum lugar por aqui — escadas... “uma sala sobrenatural”.

 

Que tinha Lady Jessica para sustentá-la na ocasião de seu julgamento?

Pense cuidadosamente no provérbio Bene Gesserit e talvez perceba: “Uma estrada, seguida precisamente até o seu final leva a lugar nenhum. Suba a montanha só um pouco, para se certificar de que é uma montanha. Do topo da montanha você não poderá ver a montanha. “

 

— de Comentários sobre a Família do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

No final da ala sul Jessica encontrou uma escada de metal, subindo em espiral até uma porta oval. Tornou a olhar na direção do salão, e depois novamente para cima, na direção da porta.

“Oval? Que forma estranha para a porta de uma casa.”

Através das janelas, embaixo da escada espiral, podia ver o grande sol branco de Arrakis movendo-se em direção ao poente.

Longas sombras golpeavam na direção do salão. Voltou sua atenção para as escadas. A iluminação oblíqua, muito forte, colocava em relevo os fragmentos de terra seca sobre o metal dos degraus.

Jessica colocou a palma sobre o corrimão e começou a subir.

O metal escorregava frio sob sua mão. Ela parou na porta, vendo que faltava a maçaneta. Havia porém uma leve depressão na superfície onde deveria existir a maçaneta.

“Certamente não é um fecho de leitura de palma”, pensou ela.

“Um fecho de leitura de palma é regulado para a forma da mão do indivíduo e as linhas em sua palma.” Contudo, era o que parecia. Havia modos para se abrir qualquer fecho de palma, ela os aprendera na escola.

Jessica olhou para trás, para se certificar de que não era observada, e colocou sua palma contra a depressão na porta. Uma pressão bem suave para distorcer as linhas... um giro do pulso, depois outro, fazendo a palma escorregar sobre a superfície num movimento de torção.

Sentiu o clique.

Passos apressados ecoaram no corredor abaixo. Jessica retirou a mão da porta e voltou-se, vendo Mapes chegar ao pé da escada.

— Há homens no grande salão dizendo que foram enviados pelo Duque para buscar o jovem mestre Paul. Eles têm o sino ducal e o guarda os identificou. — Percebeu que Mapes olhava para a porta e depois para ela.

“Bem cautelosa essa Mapes”, pensou Jessica. “Isso é um bom sinal.”

— Ele está na quinta sala do final deste corredor, o quarto pequeno. Se tiver dificuldade para despertá-lo, chame o Dr. Yueh no salão ao lado. Paul pode precisar de uma injeção para acordar.

Novamente Mapes lançou um olhar penetrante para a porta oval e Jessica julgou detectar uma expressão de ódio. Antes que pudesse indagar sobre a porta ou o que ela ocultava, Mapes se fora, apressada.

“Hawat liberou este lugar. Não pode haver nada muito terrível aqui.”

Empurrou a porta que girou para dentro de uma pequena saleta, com outra porta oval na extremidade oposta. A outra porta tinha um fecho em forma de volante.

“Uma comporta de ar!”, admirou-se Jessica. Olhou para baixo e viu uma escora de porta caída no chão do pequeno cubículo.

A escora levava a marca pessoal de Hawat. “Esta porta foi deixada aberta e escorada”, pensou. “Alguém provavelmente derrubou a escora por acaso, sem perceber que a porta externa se fecharia com a fechadura de palma.

Pulou por sobre o portal e entrou na pequena sala.

“Para que uma eclusa de ar dentro de uma casa?”, perguntou a si mesma. E pensou repentinamente em criaturas exóticas seladas em climas especiais.

“Climas especiais!”

Isso faria sentido em Arrakis, onde até as mais secas das formas cultivadas trazidas para o planeta tinham que ser irrigadas.

A porta atrás dela começou a se fechar. Segurou-a, prendendo-a aberta com a escora que Hawat deixara. Novamente observou o fecho volante da porta interna, notando agora uma fraca inscrição no metal acima. Reconheceu as palavras em Galache que diziam:

— Oh, Homem! Aqui está uma adorável porção da criação divina. Coloque-se diante dela, e aprenda a amar a perfeição de Teu Amigo Supremo.

Jessica fez pressão na roda, girou para a esquerda e a porta interna se abriu. Uma brisa suave acariciou sua face, soprou seus cabelos. Sentiu uma mudança no ar, um odor mais rico. Abriu completamente a porta, olhando através da vegetação compacta, com a luz de um sol amarelo derramando-se por cima.

“Um sol amarelo?”, admirou-se ela. Então percebeu: “Filtros de vidro!”

Passou por sobre a soleira e a porta se fechou atrás.

— Uma estufa de planeta úmido — sussurrou Jessica.

Plantas em vasos e arbustos podados erguiam-se por toda a parte. Ela reconheceu uma mimosa, um marmeleiro florido, sondagi, uma pleniscenta de flores verdes, acarso listrado de verde-branco... rosas...

“Até mesmo rosas!”

Curvou-se para respirar a fragrância de uma gigantesca flor rosada, depois ergueu-se para observar ao redor.

Um som rítmico invadiu seus sentidos.

Abriu caminho através da mata de folhas sobrepostas, olhando para o centro da sala. Uma fonte baixa erguia-se ali, pequena, com lábios acanelados. O som rítmico vinha de um arco de água caindo sobre uma tigela metálica.

Jessica colocou-se numa atitude de rápida clarificação dos sentidos, para iniciar uma inspeção metódica do perímetro da sala. Esta parecia possuir dez metros quadrados. De sua colocação acima do final do corredor, e das sutis diferenças arquitetônicas, presumiu que fora adicionada ao teta dessa ala muito depois da construção do prédio.

Parou na extremidade sul da sala, defronte de uma ampla extensão de vidro-filtrador de luz, olhando ao redor. Cada metro quadrado disponível encontrava-se apinhado de plantas exóticas, típicas de climas úmidos. Alguma coisa se mexeu em meio às folhas, fazendo Jessica ficar tensa, para então perceber um simples servok, acionado por mecanismo de tempo, com braços constituídos por mangueiras e encanamentos. Um desses braços elevou-se, lançando um fino spray de umidade que cobriu de vapor sua face. O braço retraiu-se e Jessica olhou para o que ele estivera regando: uma samambaia. Água por toda parte nessa sala, num planeta onde água era o mais precioso suco da vida. Água sendo desperdiçada tão escandalosamente, que Jessica sentiu-se profundamente chocada.

Olhou para o sol amarelo através do vidro-filtro. Parecia suspenso sobre o horizonte recortado, acima dos penhascos que formavam parte da imensa elevação rochosa conhecida como Muralha Escudo.

“Vidro tingido” pensou ela. “Para transformar um sol branco em alguma coisa mais suave e familiar. Quem teria construído este lugar? Leto? Seria típico dele surpreender-me com semelhante presente, mas não houve tempo. E ele está muito ocupado com problemas mais sérios.”

Lembrou-se de um relatório revelando que muitas das casas de Arrakeen eram seladas por comportas herméticas e janelas de pressão, para conservar a umidade interna. Leto explicara ser uma deliberada declaração de poder e riqueza sua casa ignorar tais precauções, com suas portas e janelas fechadas apenas contra a poeira onipresente.

Mas essa sala incorporava uma declaração muito mais importante que a ausência de selos de umidade em portas e janelas. Jessica estimou que nessa sala de recreação era consumida água suficiente para sustentar mil pessoas em Arrakis, talvez mais.

Moveu-se ao longo da janela, continuando a observar o interior da sala. Percebeu então uma superficie metálica da altura de uma mesa, colocada ao lado da fonte, com um bloco de papel branco e uma caneta, parcialmente encobertos por uma folha em forma de leque. Aproximou-se da mesa notando os sinais da inspeção de Hawat sobre ela, estudando a mensagem escrita no bloco:

 

A LADY Jessica

Que este lugar possa lhe proporcionar tanto prazer quanto forneceu a mim. Por favor, permita que esta sala lhe transmita uma lição que aprendemos das mesmas mestras: a proximidade de algo muito desejado nos tenta ao excesso de indulgência. Neste caminho jaz o perigo.

Meus melhores votos,

MAKGOT LADY FENRING

 

Jessica lembrava-se de que Leto se referira ao antigo representante do Imperador nesse lugar como Conde Fenring. Mas a mensagem oculta na nota exigia atenção imediata, e fora elaborada de modo a informá-la de que sua autora fora outra Bene Gesserit. Um pensamento amargo atingiu Jessica momentaneamente: o Conde se casara com sua senhora.

Mesmo enquanto esse pensamento estalava em sua mente, ela já se curvara para descobrir a mensagem oculta. Que, necessariamente, existiria, uma vez que a nota visível continha uma frase que cada Bene Gesserit, se não restringida por uma proibição da Escola, deveria mencionar a outra Bene Gesserit, quando as condições o exigissem: “Neste caminho jaz o perigo.”

Jessica tateou o verso da folha, esfregando sua superficie em busca dos pontos de código. Nada. A borda do bloco foi apalpada do mesmo modo, e igualmente nada. Recolocou o bloco onde o encontrara, sentindo o peso da urgência.

“Seria algo na posição do bloco?”

Todavia, Hawat estivera nessa sala e, sem dúvida, movera o bloco. Olhou para a folha que estivera sobre o bloco. A folha!

Percorreu com o dedo a sua superficie inferior, ao longo da borda, chegou ao caule. Estava aqui! Seus dedos sentiram os sutis pontos codificados, lendo-os com uma única passagem: “Seu filho e o Duque estão em perigo imediato. Um quarto foi projetado para atrair seu filho. Os H. o carregaram com armadilhas mortais para serem descobertas, deixando uma que possa escapar à detecção.” Jessica conteve o ímpeto de correr de volta para Paul, a mensagem inteira devia ser compreendida. Seus dedos deslizaram apressadamente sobre os pontos. “Não conheço a natureza exata da ameaça, mas tem alguma coisa a ver com uma cama. A ameaça ao seu Duque envolve a deserção de um companheiro de confiança, ou um tenente. H. planeja entregá-la, como presente, para um subordinado. Até onde alcança meu conhecimento, esta estufa é segura. Perdoe-me se não posso lhe dizer mais. Minhas fontes são poucas, uma vez que meu Conde não está na folha de pagamento de H. Com toda a pressa, MF.”

Jessica lançou a folha para o lado e girou para correr ao encontro de Paul. Naquele instante a comporta de ar abriu-se violentamente e Paul entrou correndo, segurando alguma coisa em sua mão direita. Bateu a porta atrás de si e viu sua mãe, correu, abrindo caminho através da folhagem, para alcançá-la. Ao ver a fonte, colocou sua mão com a coisa sobre a água que caía.

— Paul! — Jessica agarrou seu ombro, olhando para a mão. — O que é isso?

Ele falou displicentemente, mas ela percebeu o esforço que fazia para manter esse tom:

— Um caçador-rastreador. Peguei-o em meu quarto e esmaguei-lhe o nariz, mas quero ter certeza. Água deve provocar-lhe um curto-circuito.

— Mergulhe-o — ordenou ela.

Paul obedeceu.

Daí a pouco ela disse:

— Retire sua mão e deixe a coisa na água.

Paul retirou a mão, sacudindo a água, enquanto fitava o metal imóvel dentro da fonte. Jessica quebrou um talo de planta e com ele cutucou a farpa mortífera. Estava morta.

Deixou o talo cair na água e olhou para Paul. Seus olhos estudavam a sala com uma intensidade que ela reconheceu imediatamente: O modo B.G.

— Este lugar poderia ocultar qualquer coisa — disse ele.

— Tenho razões para acreditar que é seguro.

— Meu quarto era supostamente seguro. Hawat disse...

— Era um caçador-rastreador — lembrou ela. — Isso significa alguém dentro da casa para operá-la. Raios controladores de rastreadores possuem alcance limitado. A coisa poderia ter sido introduzida após a investigação de Hawat.

E, entretanto, ela pensava na mensagem da folha “... deserção de um companheiro de confiança ou tenente”. “Não Hawat, com certeza. Oh, não Hawat!”

— Os homens de Hawat estão dando uma busca por toda a casa agora mesmo. Este rastreador quase pegou aquela velha que veio me acordar.

— A Shadout Mapes — disse Jessica, lembrando-se do encontro nas escadarias. — Uma ordem de seu pai para...

— Isso pode esperar — interrompeu Paul. — Por que acha que esta sala é segura?

Ela apontou para a nota, e explicou-a. Ele relaxou ligeiramente.

Jessica permanecia tensa, pensando:

“Um caçador-rastreador, Mãe Misericordiosa!” Exigia todo o seu treinamento para conter um tremor histérico.

Paul falou com convicção:

— Foram os Harkonnen, evidentemente. Nós teremos de destruí-los.

Pancadas rápidas soaram na comporta. O código de chamada de um dos regimentos de Hawat.

— Entre! — gritou Paul.

A porta se abriu dando passagem a um homem alto, com o uniforme dos Atreides, a insígnia de Hawat no quepe.

— Aqui está o senhor! A governanta disse que estaria aqui. — Ele olhou ao redor da sala. — Encontramos um jazigo na adega e capturamos um homem que estava oculto dentro dele. Ele tinha um consolo de rastreador.

— Quero tomar parte no interrogatório — pediu Jessica.

— Eu sinto, minha senhora. Nós o estropiamos ao capturá-lo. Ele morreu.

— Nada que o identificasse?

— Ainda não encontramos nada, minha senhora.

— Ele era um nativo Arrakeen? — perguntou Paul.

Jessica assentiu, percebendo a astúcia da pergunta.

— Ele tinha uma aparência nativa — respondeu o homem. — Foi colocado dentro daquela pilha há mais de um mês, por sua aparência. Deixado lá, aguardando sua vinda. As pedras e a argamassa por onde ele entrou na adega estavam intocadas quando nós inspecionamos o local ontem. Eu arriscaria minha reputação nisto.

— Ninguém questiona sua eficácia.

— Eu questiono, minha senhora. Nós devíamos ter usado sondas sônicas lá embaixo.

— Presumo que é isso que estão fazendo agora — disse Paul.

— Sim, senhor.

— Mande avisar a meu pai que chegaremos atrasados.

— Imediatamente, senhor. — Olhou para Jessica. — É ordem de Hawat que, sob circunstâncias como estas, o jovem mestre seja mantido num lugar seguro. — Mais uma vez seu olhar percorreu a sala. — Que tal este lugar?

— Tenho razões para acreditar que é seguro — respondeu ela.

— Hawat e eu o inspecionamos.

— Então montarei guarda lá fora, minha senhora, até que tenhamos liberado a casa uma vez mais. — Ele se curvou, tocando o quepe em saudação a Paul, recuou e saiu fechando a porta.

Paul interrompeu o súbito silêncio.

— Não seria melhor examinarmos a casa depois, pessoalmente? Seus olhos podem ver coisas que outros não perceberiam.

— Esta ala era o único lugar que eu ainda não tinha examinado. Eu a deixei para o fim porque...

— Porque Hawat dera a ela sua atenção pessoal.

Jessica olhou rápido para o rosto do filho, questionando.

— Você desconfia de Hawat?

— Não, mas ele está ficando velho... vive sobrecarregado. Nós devíamos tirar um pouco do peso sobre os ombros dele.

— Isso apenas o envergonharia, prejudicando sua eficiência. Um inseto desgarrado não seria capaz de vaguear por esta ala depois que Hawat soubesse disso. Ele ficará envergonhado de que...

— Devemos tomar nossas próprias medidas.

— Hawat serviu a três gerações de Atreides com honra — insistiu ela. — Ele merece todo o respeito e confiança que pudermos lhe dar... muitas vezes.

— Quando meu pai fica aborrecido com alguma coisa que você fez, ele diz “Bene Gesserit”, como se fosse uma praga.

— E o que eu faço que aborrece seu pai?

— Quando você discute com ele.

— Você não é seu pai, Paul.

Ele pensou: “Eu a deixarei preocupada, mas devo dizer-lhe o que aquela mulher Mapes falou a respeito de um traidor entre nós.”

— O que você está escondendo? Paul, você não é assim.

Ele deu de ombros, e contou a conversa com Mapes.

Jessica pensou na mensagem na folha, e chegou a uma súbita decisão. Mostrou a folha para Paul e contou-lhe a respeito da mensagem.

— Meu pai deve saber disso imediatamente. Vou radiografar em código.

— Não. Deve esperar até que possa vê-lo em particular. O mínimo de pessoas deve saber disso.

— Quer dizer que não devemos confiar em ninguém?

— Há outra possibilidade. Esta mensagem pode ter sido destinada a confundir-nos. As pessoas que a enviaram podem acreditar que ela seja sincera, enquanto seu único propósito tenha sido o de enviá-la a nós.

O rosto de Paul permanecia resolutamente melancólico: Para semear a desconfiança e a suspeita entre nossas fileiras. Para enfraquecer-nos desse modo.

— Você deve contar a seu pai em particular, e acautelá-lo quanto a esse aspecto.

— Entendo.

Ela voltou-se para a alta extensão de vidro-filtrador, olhando para sudoeste, onde o sol de Arrakis mergulhava — uma bola amarelada sobre os penhascos.

Paul acompanhou-lhe o olhar, dizendo:

— Também não acredito que seja Hawat. Seria possível que fosse Yueh?

— Ele não é um tenente, ou companheiro. E eu lhe asseguro que ele odeia os Harkonnen tão amargamente quanto nós.

Paul olhava para os penhascos, pensando: “E poderia ser Gurney... ou Duncan. Poderia ser um dos subtenentes? Impossível Eles são todos de famílias leais a nós durante gerações — por uma boa razão.”

Jessica passou a mão pela testa sentindo sua própria fadiga.

“Tanto perigo aqui!” Ela olhou para a paisagem tingida de amarelo pelo filtro, estudando-a. Além das terras do Duque estendiam-se os silos de especiaria, cercados por altas cercas com torres de observação erguendo-se sobre pernas finas como palitos, postadas ao redor, como um monte de aranhas espantadas. Ela podia contar pelo menos vinte silos de armazenagem estendendo-se até os penhascos da Muralha Escudo. Silos repetindo-se, através da bacia.

Lentamente, o sol amarelo enterrou-se abaixo do horizonte.

Estrelas surgiram e ela percebeu uma muito brilhante, tão baixa no horizonte que piscava com um ritmo claro e preciso. Um tremular de luz: pisca, pisca, pisca, pisca.

Paul se mexeu ao lado dela na penumbra da sala. Mas Jessica o ignorou. Concentrava-se naquela única estrela brilhante, percebendo que ela se encontrava demasiadamente baixa, que devia vir de um dos penhascos da Muralha Escudo.

“Alguém está sinalizando.”

Tentou ler a mensagem, mas era num código que nunca aprendera.

Outras luzes surgiram na planície abaixo dos penhascos, luzes amarelas pequeninas, espaçadas contra a escuridão azulada. E uma luz à esquerda tornou-se mais brilhante, e começou a piscar para o penhasco. Muito rápida: pisca, brilha, pisca, tremula!

Depois desapareceu.

A falsa estrela no penhasco apagou-se imediatamente.

Sinais... isso a enchia de uma premonição.

“Por que usavam luzes através da bacia?”, ela se perguntava. “Por que não podiam usar a rede de comunicações?”

A resposta era óbvia: a comunirrede estaria, certamente, grampeada agora pelos agentes do Duque Leto. Sinais luminosos só poderiam significar que mensagens estavam sendo enviadas entre seus inimigos: os agentes Harkonnen.

Houve uma batida na porta, por trás deles, e em seguida a voz de um dos homens de Hawat:

— Tudo limpo, senhora. É hora de levar o jovem mestre para seu pai.

 

É costume dizer que o Duque Leto ficou cego aos perigos de Arrakis e caminhou negligentemente para a armadilha. Não seria mais justo sugerir que ele viveu tanto tempo na presença de extremo perigo que julgou mal uma mudança em sua intensidade? Ou seria possível que ele tenha se sacrificado deliberadamente para que seu filho pudesse encontrar uma vida melhor? Tudo indicava que o Duque era um homem que não se deixava enganar com facilidade.

 

— de Comentários sobre a Família do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan.

 

O Duque Leto inclinou-se contra o parapeito da torre de controle de pousos, do lado de fora de Arrakeen. A primeira lua da noite, uma moeda de metal prateado, surgia acima do horizonte sul. Abaixo dela, os penhascos escarpados da Muralha Escudo brilhavam como glacê ressequido, através de uma névoa de pó. As luzes de Arrakeen reluziam na névoa, à sua esquerda — amarelas, brancas, azuis.

Pensou nos avisos colocados com sua assinatura em todos os lugares populosos do planeta: “Nosso sublime Imperador Padishah me encarregou de tomar posse deste planeta, e terminar com todas as disputas.”

A formalidade ritualística atingia-o com um sentimento de solidão. “Quem seria enganado por aquela legalidade tola? Não os Fremen, certamente. Nem as Casas Menores, que controlavam o comércio no interior da Arrakis... Seriam as criaturas Harkonnen verdadeiramente humanas?”

“Eles tentaram tirar a vida de meu filho!”

Sua raiva era difícil de suprimir.

Viu as luzes de um veículo movendo-se em direção ao campo de pouso, vindo de Arrakeen. Esperou que fosse o transporte de tropas trazendo Paul. A demora era irritante, muito embora soubesse que fora motivada pela cautela da parte do tenente de Hawat.

“Eles tentaram tirar a vida de meu filho!”

Sacudiu a cabeça, tentando expulsar os pensamentos de ódio, olhando de volta para o campo onde cinco de suas próprias fragatas postavam-se ao redor do perímetro, como sentinelas monolíticas.

“Melhor um atraso cauteloso que...”

O tenente era um bom homem, ele procurou se lembrar. Um homem marcado para promoção, completamente leal.

“Nosso sublime Imperador Padishah...”

Se as pessoas nesta decadente cidade de guarnição pudessem ver a nota particular do Imperador ao seu “Nobre Duque”. As alusões desdenhosas aos homens e mulheres com véus: “(...) mas o que mais alguém poderia esperar de bárbaros cujo sonho mais acalentado é o de poderem viver fora da segurança ordeira dos faufreluches?”

O Duque sentiu, nesse momento, que seu sonho mais acalentado era acabar com todas as distinções de classe e nunca mais pensar em ordem inflexível. Olhou para cima, para além do pó, em direção às estrelas fixas, pensando: “Em torno de uma daquelas luzes circula Caladan... mas eu nunca mais verei meu lar.” A saudade de Caladan trazia uma dor súbita em seu peito. Sentia que ela não vinha de seu próprio interior e sim de Caladan, estendendo-se para ele através do espaço. Não conseguia chamar essa terra desolada de lar, e duvidava de que algum dia pudesse.

“Preciso ocultar meus sentimentos, pelo bem do rapaz. Se ele tiver que ter um lar, é este lugar. Posso achar que Arrakis é o inferno, aonde cheguei antes da morte, mas ele precisa encontrar algo aqui que o inspire. Tem que haver alguma coisa.”

Uma onda de autopiedade, imediatamente menosprezada e rejeitada, passou através dele e, por alguma razão, lembrou-se de um poema de Gurney Halleck, que freqüentemente repetia:

“Meus pulmões provam do ar do Tempo Soprando através de areias que caem...”

“Gurney encontraria muitas areias caindo por aqui”, pensou o Duque. As vastidões centrais para além daqueles penhascos gelados pela lua eram desertas: rocha nua, dunas, e poeira soprando. Um deserto seco e não cartografado, com tribos de Fremen espalhadas ao longo de sua orla e talvez por dentro dele. E se alguém poderia comprar um futuro para a linhagem dos Atreides aqui, seriam os Fremen.

Desde que os Harkonnen não os tivessem contaminado com seus esquemas venenosos.

“Eles tentaram tirar a vida de meu filho!”

Um clamor de metal rangente vibrou através da torre, sacudindo o parapeito abaixo de seus braços. Obturadores contra explosão baixaram na sua frente, bloqueando a visão.

“Um ônibus espacial vem chegando. Hora de ir lá embaixo e começar a trabalhar”, pensou ele. Voltou-se para as escadarias, dirigindo-se para a grande sala de reuniões, tentando manter-se calmo enquanto descia, preparando seu rosto para o encontro próximo.

“Eles tentaram tirar a vida de meu filho!”

Os homens já estavam chegando do campo quando ele atingiu a sala sob a cúpula amarela. Eles carregavam suas mochilas espaciais sobre os ombros, gritando e fazendo barulho como estudantes de volta das férias.

— Hei! Sentiram aquilo sobre vocês, cães? Aquilo é gravidade, homem!

— Quantos G este lugar puxa? Parece pesado... Nove décimos de G, de acordo com o livro.

O fogo cruzado de palavras tomou conta da grande sala.

— Deu uma boa olhada nesse buraco enquanto descíamos?

— Onde está todo o saque que este lugar devia ter?

— Os Harkonnen levaram consigo.

— Para mim, um chuveiro morno e uma cama macia!

— Ainda não ouviu, estúpido? Nada de chuveiros neste lugar, você esfrega sua bunda com areia!

— Hei! Parem com isso. É o Duque!

O Duque saiu da entrada para a escadaria, entrando num salão repentinamente silencioso.

Gurney Halleck avançou no meio da multidão, sacola sobre um dos ombros, o pescoço de um baliset de nove cordas agarrado na outra mão. Mãos com dedos longos, polegares enormes, cheios de minúsculos movimentos que podiam extrair uma música tão delicada do instrumento.

O Duque observou Halleck, admirando a feia massa de homem, notando os olhos penetrantes como lascas de vidro, cheios de uma compreensão feroz. Aqui estava um homem que vivia fora das faufreluches, embora obedecendo a seus preceitos. Como era mesmo que Paul o chamara?

“Gurney, o Valoroso.”

O cabelo louro, cor de feno, estendia-se sobre os pontos calvos da cabeça. A boca larga contorcida num esgar de prazer, enquanto a cicatriz do chicote inkvine que golpeara seu maxilar parecia mover-se, como se dotada de vida própria. Seu ar era de confiança casual, tranqüilidade assumida. Ele chegou junto do Duque, se curvou.

— Gurney — disse Leto.

— Meu senhor. — Ele gesticulou com o baliset na direção dos homens na sala. — Estes são os últimos. Eu teria preferido chegar com a primeira onda, mas...

— Ainda há alguns Harkonnen para você — respondeu o Duque. — Venha comigo, Gurney, aonde possamos falar.

— As suas ordens, meu senhor.

Dirigiram-se para um quarto ao lado de uma máquina de água, enquanto os homens se remexiam inquietos no grande salão. Halleck deixou cair sua sacola num canto, mas continuou segurando o baliset.

— Quantos homens você pode enviar a Hawat? — indagou o Duque.

— Thufir está com problemas, senhor?

— Ele só perdeu dois agentes, e seus homens de vanguarda nos deram uma excelente cobertura sobre toda a estrutura Harkonnen montada aqui. Se nos movermos rapidamente podemos conquistar uma certa segurança, o espaço de que precisamos para respirar. Ele deseja tantos homens quantos você possa conseguir, homens que não hesitarão na hora de um pequeno trabalho com a faca.

— Ele pode ficar com trezentos dos meus melhores. Para onde devo enviá-los?

— Ao portão principal. Hawat tem um agente lá, esperando para conduzi-los.

— Devo fazer isso imediatamente, senhor?

— Num momento. Temos um outro problema. O comandante do campo vai segurar o ônibus espacial até o nascer do sol mediante um pretexto. O Heighliner da Corporação que nos trouxe até aqui está indo embora em sua rota e o ônibus espacial deverá fazer contato com um cargueiro que está levando uma carga de especiaria.

— Nossa especiaria, meu senhor?

— Nossa especiaria. Mas o ônibus deverá transportar também alguns dos caçadores de especiaria do velho regime. Eles optaram por partir com a mudança de feudo, e o juiz da Mudança permitiu. Eles são trabalhadores valiosos, Gurney, aproximadamente oitocentos homens. Antes que o ônibus decole, você deve persuadir alguns desses homens a se alistarem conosco.

— Quão forte deve ser essa persuasão, senhor?

— Desejo que eles cooperem voluntariamente, Gurney. Esses homens possuem a habilidade e a experiência de que necessitamos. O fato de estarem partindo sugere que não são parte da máquina Harkonnen. Hawat acredita que pode haver alguns maus elementos infiltrados no grupo, mas ele vê assassinos em cada sombra.

— Thufir encontrou algumas sombras muito férteis, em seu tempo, meu senhor.

— E houve algumas que ele não encontrou. Mas acho que plantar agentes nesta multidão de partida revelaria muita imaginação da parte dos Harkonnen.

— Possivelmente, senhor. Onde estão os homens?

— Lá embaixo, na sala de espera do nível inferior. Sugiro que você vá até lá, e toque uma ou duas canções para amaciar suas mentes, e então inicie a pressão. Você pode oferecer posições de autoridade àqueles que se qualificarem para elas. Ofereça salários vinte por cento mais altos do que eles recebiam sob o governo dos Harkonnen.

— Não mais do que isso, senhor? Conheço as escalas de pagamento dos Harkonnen. E para homens com o desejo de viajar e bolsos cheios com o pagamento final... bem, senhor, vinte por cento dificilmente pareceriam uma razão adequada para ficarem.

Leto disse impaciente:

— Então use de seu próprio arbítrio, em casos particulares. Mas lembre-se de que o tesouro não é ilimitado. Mantenha em vinte por cento, sempre que for possível. Nós necessitamos, principalmente, de condutores de especiaria, observadores meteorológicos, homens das dunas — todos os que tiverem experiência na areia.

— Compreendo, senhor. Eles virão todos pela violência: seus rostos erguidos para o vento do leste, reunindo-se no cativeiro da areia.

— Uma citação muito tocante. Entregue sua tripulação a um dos tenentes. Peça a ele para dar uma rápida instrução aos homens quanto à disciplina da água, depois coloque-os para dormir no quartel, junto ao campo. O pessoal do campo irá dirigi-los, então. E não se esqueça dos homens para Hawat.

— Trezentos dos melhores, senhor. — Ele pegou sua mochila espacial e perguntou: — Onde devo me apresentar ao senhor, quando minhas tarefas estiverem terminadas?

— Vou realizar um conselho aqui, na sala superior. Manteremos o comando lá. Quero arranjar uma nova ordem de dispersão planetária, com os esquadrões blindados seguindo na frente.

Halleck parou no ato de se voltar, percebendo o olhar de Leto.

— Está prevendo esse tipo de confusão, senhor? Pensei que havia um juiz de Mudança por aqui.

— Haverá guerra aberta e secreta — respondeu o Duque. — Sangue aos borbotões será derramado por aqui, antes que tenhamos terminado.

— “E a água que tiraste do rio se converterá em sangue sobre a terra árida” — citou Halleck.

O Duque suspirou.

— Vá depressa, Gurney.

— Muito bem, meu senhor. — A cicatriz da chicotada tremulou com o seu sorriso.

— “Olhem! Como um burro selvagem no deserto, eu avanço em meu trabalho.” — Ele se voltou, caminhando para o centro da sala onde parou para transmitir suas ordens, depois seguiu a toda pressa por entre seus homens.

Leto sacudiu a cabeça. Halleck era um assombro contínuo: uma cabeça cheia de canções, citações e frases floreadas... e o coração de assassino, quando chegava a hora de lidar com os Harkonnen.

Daí a pouco Leto seguiu sem pressa, num curso diagonal em direção ao elevador, respondendo às saudações com um aceno da mão. Reconheceu um dos homens da propaganda, e parou para transmitir-lhe uma mensagem que deveria ser enviada aos homens através dos canais adequados: aqueles que haviam trazido suas mulheres gostariam de saber que elas estavam em segurança, e onde poderiam ser encontradas. Os outros desejariam saber que a população aqui parecia gabar-se de ter mais mulheres do que homens.

O Duque bateu no braço do homem da propaganda, um sinal de que a mensagem possuía prioridade máxima, e devia ser transmitida imediatamente, depois continuou seu caminho. Acenou para os homens, sorriu, trocou amenidades com um subalterno.

“O Comandante deve sempre parecer confiante”, pensou ele.

“Toda aquela fé montada sobre seus ombros, enquanto você se senta num ponto crítico sem jamais demonstrá-la.”

Deu um suspiro de alivio quando o elevador o engoliu, e pôde voltar seu rosto para as portas impessoais.

“Eles tentaram tirar a vida de meu filho!”

 

Acima da saída do campo de pouso Arrakeen, toscamente gravada como se por um instrumento inadequado, havia uma inscrição que o Muad'Dib repetiria muitas vezes. Ele a viu em sua primeira noite em Arrakis, quando foi trazido para o posto de comando ducal com vistas a participar da primeira conferência do estado maior de seu pai. As palavras na inscrição eram uma súplica para aqueles que deixavam Arrakis, mas caíram com um significado sombrio nos olhos de um rapaz que acabara de escapar de um encontro muito próximo com a morte. Elas diziam: “Oh você, que conheceu o que sofremos aqui, não nos esqueça em suas preces. “

 

— do Manual do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

— Toda a teoria da guerra repousa sobre o risco calculado — dizia o Duque. — Mas, quando chega a hora de arriscar sua própria família, o elemento de cálculo se afoga em... outras coisas.

Sabia que não estava contendo sua raiva como deveria, e por isso se voltou, caminhando ao longo da comprida mesa, e depois voltando.

O Duque e Paul encontravam-se sozinhos na sala de conferências do campo de pouso. Uma sala que ecoava vazia, mobiliada apenas com a longa mesa, e as cadeiras antiquadas de três pernas ao redor. Numa das extremidades havia um quadro de mapas e um projetor. Paul sentava-se à mesa junto do quadro de mapas.

Contara a seu pai sua experiência com o caçador-rastreador, e transmitira as notícias de que um traidor os ameaçava.

O Duque parou diante de Paul golpeando a mesa.

— Hawat me disse que a casa estava segura!

Paul falou hesitantemente:

— Eu fiquei furioso também no início. E culpei Hawat. Mas a ameaça veio de fora da casa. Era simples, hábil e direta. E teria conquistado êxito se não fosse o treinamento que recebi de você, e de muitos outros — inclusive de Hawat.

— Você o está defendendo? — reclamou o duque.

— Sim.

— Ele está ficando velho. É isso. Ele deveria...

— Ele é sábio, com a experiência que acumulou. Quantos erros de Hawat é capaz de lembrar?

— Deveria ser eu a defendê-lo — respondeu o duque. — Não você.

Paul sorriu.

Leto sentou-se na extremidade da mesa, colocando a mão sobre seu filho.

— Você amadureceu ultimamente, filho. — Ergueu a mão. — Isso me alegra. — Correspondeu ao sorriso do filho. — Hawat punirá a si mesmo. Ele canalizará mais fúria contra si, por causa disso, do que nós dois poderíamos derramar sobre ele.

Paul olhou para as janelas escurecidas além do quadro de mapas, em direção à negrura da noite. As luzes da sala refletiam-se de uma sacada estendendo-se lá fora. Ele viu movimento e reconheceu a silhueta de um guarda no uniforme dos Atreides. Olhou de volta para a parede branca por trás de seu pai, e então para baixo, em direção à superfície brilhante da mesa, onde suas mãos se contraíam em punhos.

A porta oposta ao Duque abriu-se de súbito e Thufir Hawat caminhou para dentro, parecendo mais velho e coriáceo que nunca.

Marchou ao longo de todo o comprimento da mesa, parando diante de Leto em posição de sentido.

— Meu senhor — disse ele, falando para um ponto acima da cabeça do Duque. — Acabo de saber como falhei ao senhor. Torna-se necessário que eu apresente minha resigna...

— Sente-se e pare de agir como um tolo — respondeu Leto, indicando a cadeira na frente de Paul. — Se você cometeu um erro foi ao superestimar os Harkonnen. Suas mentes simples produziram um estratagema simples. Nós não contávamos com truques simples, e meu filho esteve se esforçando para me demonstrar que somente sobreviveu devido ao seu treinamento. Você não falhou lá. — Bateu no recosto da cadeira vazia. — Sente-se, é o que eu digo!

Hawat afundou na cadeira.

— Mas...

— Não ouvirei mais nada sobre isso. O incidente está encerado! Temos assuntos mais urgentes. Onde estão os outros?

— Pedi que esperassem enquanto eu...

— Chame-os.

Hawat olhou nos olhos de Leto.

— Senhor, eu...

— Sei quem são meus verdadeiros amigos, Thufir. Chame os homens.

Hawat engoliu em seco.

— Imediatamente, meu senhor. — Girou na cadeira e gritou para a porta aberta. — Gurney, faça-os entrar.

Halleck liderou a coluna de homens para dentro da sala, os oficiais do estado-maior parecendo sérios e sombrios, seguidos pelos auxiliares mais jovens e os especialistas, todos com uma aparência de impetuosidade. Ruídos breves ecoaram na sala enquanto os homens tomavam seus assentos. Um leve perfume de estimulante rachag atravessou a mesa.

— Há café para aqueles que quiserem — disse Leto.

Olhava para os homens pensando: “Eles são uma boa equipe. Um homem poderia estar muito pior neste tipo de guerra.” Esperou enquanto o café era trazido da sala ao lado e servido, notando o cansaço em alguns rostos.

Em pouco tempo colocou sua máscara de calma eficiência, levantando-se e exigindo a atenção com uma batida do nó dos dedos sobre a mesa.

— Bem, senhores, nossa civilização parece ter caído tão profundamente no hábito da invasão, que nem podemos obedecer a uma simples ordem do Império sem que os velhos hábitos sejam revividos.

Risos secos soaram ao longo da mesa e Paul percebeu que seu pai dissera a coisa adequada, no tom precisamente carreto, para levantar o moral por aqui. Até mesmo o sinal de fadiga em sua voz fora perfeito.

— Creio que, em primeiro lugar, é melhor saber se Thufir tem alguma coisa a acrescentar ao seu relatório sobre os Fremen. Thufir?

Hawat ergueu a cabeça.

— Eu me ocupei de algumas questões econômicas depois de meu relatório inicial, senhor, mas posso afirmar agora que os Fremen parecem cada vez mais ser os aliados de que necessitamos. Eles estão aguardando agora para ver se podem confiar em nós, mas parecem estar negociando abertamente. Eles nos enviaram presentes: trajes destiladores de sua própria confecção... e mapas de certas áreas desertas cercando baluartes que os Harkonnen deixaram para trás... — Abaixou a cabeça fitando a superfície da mesa. — Seus relatórios de inteligência provaram ser totalmente confiáveis, e nos ajudaram consideravelmente em nossos negócios com o juiz da Mudança. Eles também enviaram algumas coisas secundárias: jóias para Lady Jessica, licor de especiaria, doces, remédios. Meus homens estão examinando tudo isso agora, e parece que não há truques.

— Você gosta dessa gente, Thufir? — indagou um homem ao longo da mesa.

Hawat encarou o questionador.

— Duncan Idaho diz que eles devem ser admirados.

Paul olhou para seu pai, depois novamente para Hawat, arriscando uma pergunta:

— Há alguma informação nova quanto ao número de Fremen neste lugar?

Hawat olhou para Paul.

— A partir do sistema de processamento de alimentos e outros indícios, Idaho estima que o complexo caverna que ele visitou tinha umas dez mil pessoas. Seu líder disse que governava um sietch de duas mil almas. Temos razão para crer que exista um grande número de tais comunidades sietch. Todas elas parecem prestar obediência a alguém chamado Liet.

— Isso é algo de novo — observou Leto.

— Pode ser um erro de minha parte, senhor. Há indícios que sugerem que esse Liet possa ser uma divindade local.

Outro homem pigarreou para indagar:

— É verdadeiro que eles comerciam com os contrabandistas?

— Uma caravana de contrabandistas, carregando uma pesada carga de especiaria, deixou este sietch enquanto Idaho lá estava. Eles usaram tropas de bestas e sugeriram que enfrentariam uma jornada de dezoito dias.

— Parece — observou Leto — que os contrabandistas redobraram suas operações durante este período de agitação. Isto deve ser estudado cuidadosamente. Não devemos nos preocupar muito com fragatas não licenciadas operando fora de nosso planeta — isto sempre foi feito. Mas tê-los totalmente fora de nossa vigilância não é recomendável.

— O senhor tem um plano? — indagou Hawat.

O duque olhou para Halleck.

— Gurney, eu queria que você liderasse uma delegação, uma embaixada se preferir, visando contatar esses românticos negociantes. Diga a eles que eu ignorarei suas operações, desde que me entreguem um dízimo ducal. Hawat estima que os subornos e os combatentes extras, necessários às operações deles, têm-lhes custado quatro vezes a quantia que me pagariam.

— E se o imperador souber disso? — indagou Halleck. — Ele tem um ciúme muito grande de seus lucros na CHOAM, meu senhor.

Leto sorriu.

— Nós depositaremos todo o dízimo, abertamente, em nome de Shaddam IV, e deduziremos a quantia legalmente dos nossos custos com o suporte de tropas. Deixe que os Harkonnen combatam isso! E estaremos arruinando alguns funcionários locais que têm engordado sob o sistema Harkonnen. Fim das propinas.

Um sorriso contorceu a face de Halleck.

— Ah, meu senhor, que lindo golpe baixo. Gostaria de ver a cara do barão quando souber disso.

O Duque voltou-se para Hawat:

— Thufir, você conseguiu aqueles livros-razão que disse que poderia comprar?

— Sim, meu senhor. Eles estão sendo examinados detalhadamente agora mesmo. Dei uma olhada neles e posso lhe fornecer uma primeira estimativa.

— Vá em frente.

— Os Harkonnen tiravam dez bilhões de solaris daqui, a cada trezentos e trinta dias Standard.

Um murmúrio de espanto percorreu a mesa. Até mesmo os jovens auxiliares, que demonstravam sinais de tédio, empertigaram-se trocando olhares de admiração.

Halleck murmurou :

— “Pois eles sugaram da abundância dos mares e dos tesouros ocultos na areia...”

— Como podem ver, cavalheiros — disse Leto —, depois disso não creio que ainda exista alguém tão tolo para acreditar que os Harkonnen calmamente empacotaram suas coisas e foram embora, apenas porque o Imperador assim o ordenou.

Houve um acenar de cabeças por toda a sala, expressões de concordância.

— Teremos que tomar isso na ponta da espada — observou Leto, e voltou-se para Hawat. — Seria uma boa medida fazer um inventário do equipamento: quantos tratores de areia, colhedores, processadores de especiaria e equipamento de apoio foram deixados por eles?

— Uma provisão completa, de acordo com o inventário examinado pelo juiz da Mudança, meu senhor. — Hawat gesticulou para que um auxiliar lhe passasse uma pasta que abriu sobre a mesa. — Mas eles se esqueceram de mencionar que metade dos tratores está imprestável e que somente um terço dispõe de “transporta-tudo” para voar com eles até as areias de especiaria, ou seja: que tudo que os Harkonnen nos deixaram está prestes a cair aos pedaços. Nós teremos muita sorte se conseguirmos colocar metade desse equipamento em operação, e mais sorte ainda se um quarto disto ainda estiver funcionando daqui a seis meses.

— Exatamente o que esperávamos — disse Leto. — Qual é a expectativa da firma quanto ao equipamento básico?

Hawat olhou para a pasta.

— Aproximadamente novecentas e trinta colhedoras-processadoras podem ser enviadas dentro de alguns dias. Seis mil duzentos e cinqüenta ornitópteros para busca, patrulhamento e observação do tempo... Os “transporta-tudo” são menos de mil.

Halleck disse:

— Não seria mais barato reabrir as negociações com a Corporação visando obter permissão de orbitar uma fragata, como satélite meteorológico?

O Duque olhou para Hawat.

— Nada de novo neste lado, hein, Thufir?

— Devemos seguir por outros caminhos, por enquanto. O agente da Corporação não estava realmente negociando conosco. Ele estava apenas deixando claro — de um Mentat para outro — que o preço seria fora de nosso alcance, e assim permaneceria, não importando qual a capacidade que desenvolvêssemos. Nossa tarefa é descobrir por quê, antes de nos dirigirmos a ele novamente.

Um dos ajudantes de Halleck remexeu-se em sua cadeira, desabafando:

— Isso não é justo.

— Justiça? — O duque olhou para o homem. — Quem pede por justiça? Nós fazemos nossa própria justiça. Faremos aqui em Arrakis Vença ou morra. Está arrependido de se unir a nós, senhor?

O homem encarou o duque.

— Não, senhor. O senhor não tem escolha, e eu não poderia fazer nada senão segui-lo. Perdoe-me a explosão... é que... nos sentimos amargos às vezes...

— De amargura eu entendo — disse o Duque —, mas não vamos reclamar a respeito de justiça enquanto tivermos braços e a liberdade para usá-los. Mais alguém, entre vocês, abriga amargura? Se assim for pode desabafar. Este é um conselho amistoso onde qualquer um pode falar o que pensa.

Halleck mexeu-se dizendo:

— Acho que o que dói mais, senhor, é que não tivemos voluntários das outras Grandes Casas. Eles se dirigem ao senhor como “Leto, o justo” e prometem eterna amizade, mas desde que isso não lhes custe nada.

— Eles não sabem quem vai vencer esta disputa. A maioria das Casas tem engordado por não correr riscos. Não podemos culpá-los por isso, podemos apenas desprezá-los. — Olhou para Hawat. — Estávamos discutindo equipamento. Você se importaria de projetar algumas amostras, para familiarizar os homens com as máquinas?

Hawat assentiu, gesticulando para um ajudante no projetor.

A imagem de um sólido em terceira dimensão surgiu na superfície da mesa, um terço do comprimento na direção do Duque.

Alguns dos homens mais afastados se levantaram, para ter uma visão melhor da projeção 3D.

Paul inclinou-se para diante, fitando a máquina.

Em escala, com relação às minúsculas figuras humanas ao seu redor, a coisa deveria ter uns cento e vinte metros de comprimento por quarenta de largura. Constituía-se, basicamente, de um longo corpo em forma de besouro, movendo-se sobre plataformas independentes, de esteiras largas.

— Esta é uma fábrica colhedora — explicou Hawat. — Escolhemos uma em boas condições para esta projeção. É um engenho-reboque que chegou aqui com o primeiro grupo de ecologistas imperiais, embora ainda seja mantido em funcionamento... sem que eu saiba como, e por quê.

— Se é aquela que eles chamam de “Velha Maria”, pertence a um museu — explicou um ajudante. — Acho que os Harkonnen a mantinham como uma punição, uma ameaça sobre as cabeças de seus trabalhadores: “comportem-se direito, ou serão enviados para prestar serviço na Velha Maria.”

Risos ecoaram pela mesa.

Paul manteve-se distante desse humor, sua atenção focalizada sobre a projeção e a pergunta que ocupava sua mente. Apontou para a imagem sobre a mesa, dizendo:

— Thufir, os vermes da areia são bastante grandes para engolir esse negócio todo?

Um rápido silêncio tomou conta da sala. O Duque praguejou baixinho e depois pensou: “Não, eles precisam enfrentar as realidades do lugar.”

— Existem vermes no deserto profundo que poderiam tragar toda esta fábrica, de um único gole — explicou Hawat. — Aqui em cima, junto da Muralha Escudo, onde a maior parte da colheita de especiaria é feita, existem vermes em quantidade tal que poderiam danificar esta fábrica, e devorá-la com calma.

— Por que não as dotamos de escudos? — indagou Paul.

— De acordo com o relatório de Idaho, os escudos são perigosos no deserto. Um escudo, do tamanho do corpo de uma pessoa, atrairia todos os vermes num raio de centenas de metros. Parece induzi-los a um frenesi assassino. Temos a palavra dos Fremen quanto a isso, e nenhuma razão para duvidar. Idaho não viu nenhum indício de equipamento de escudos no sietch.

— Nenhum mesmo? — insistiu Paul.

— Seria muito difícil ocultar esse tipo de coisa entre vários milhares de pessoas. Idaho teve livre acesso a todas as partes do sietch. Não viu escudos, ou qualquer indicação quanto ao seu uso.

— É um enigma — observou o duque.

— Os Harkonnen, claramente, usaram escudos à vontade por aqui — continuou Hawat. — Eles tinham depósitos de reparos em cada vila de guarnição, e seus livros mostram uma pesada despesa com substituições de escudos e peças sobressalentes.

— Teriam os Fremen algum meio de anular os escudos? — indagou Paul.

— Não me parece provável. É teoricamente possível, claro, uma imensa contra-carga estática faria o truque, mas até hoje ninguém foi capaz de fazer o teste.

— Teríamos ouvido a respeito — disse Halleck. — Os contrabandistas vivem em contato com os Fremen, e já teriam adquirido tal artefato se houvesse algum disponível. E não teriam inibições quanto a comercializá-la fora do planeta.

— Não gosto de uma pergunta desta importância sem resposta — comentou Leto. — Thufir, quero que dê prioridade máxima à solução deste problema.

— Já estamos trabalhando nele, meu senhor. — Fez uma pausa, pigarreou, continuando. — Ah, Idaho disse uma coisa: ele disse que não há enganos quanto à atitude dos Fremen com relação aos escudos. Ele disse que eles geralmente acham graça.

O Duque franziu a testa.

— O assunto em discussão é o equipamento de especiaria.

Hawat gesticulou para seu ajudante com o projetor.

A imagem 3D da fábrica colhedora foi substituída pela projeção de um engenho alado, que fazia parecerem anões as imagens dos humanos ao seu redor.

— Isto é um transporta-tudo — explicou Hawat. — Essencialmente é um ornitóptero muito grande, cuja única função é descer uma fábrica nas areias ricas em especiaria e resgatá-la, quando um verme da areia aparece. Eles sempre aparecem. A colheita de especiaria é um processo de chegar e correr, levando tanto quanto possível.

— Admiravelmente adequado à moralidade Harkonnen — disse Leto.

A gargalhada foi abrupta, e muito alta.

Um ornitóptero substituiu o transporta-tudo na tela de projeção.

— Estes “tópteros” são razoavelmente convencionais. As maiores modificações são as que os dotam de um alcance extra. Um cuidado especial tem sido dedicado a vedar as áreas essenciais contra areia e pó. Somente um, em cada trinta, possui escudo possivelmente para descartar o peso do gerador em beneficio de um alcance maior.

— Não gosto desta desmitificação em escudos — murmurou o Duque, e pensou: “Seria esse o segredo dos Harkonnen? Significará que não seremos capazes de escapar, nem mesmo em fragatas com escudos, se tudo virar contra nós?” Sacudiu a cabeça para afastar o pensamento e disse: — Vamos fazer uma estimativa de trabalho. Qual seria o nosso lucro?

Hawat virou duas páginas em seu livro de notas.

— Após inventariar os reparos e o equipamento operacional, calculamos nossa primeira estimativa de custos operacionais. É baseada, naturalmente, num número baixo, para fornecer uma clara margem de segurança. — Fechou os olhos, no semi-transe Mentat: — Sob o governo dos Harkonnen, os salários e a manutenção eram mantidos em quatorze por cento. Teremos sorte se conseguirmos trinta por cento, no início. Com reinvestimento e fatores de crescimento adicionados, incluindo a porcentagem da CHOAM e os custos militares, nossa margem de lucros será reduzida a uns estreitos seis ou sete por cento, até que possamos substituir o equipamento gasto. Seremos, então, capazes de impulsioná-la para os doze ou quinze por cento ideais. — Abriu os olhos. — A não ser que o meu senhor deseje adotar métodos Harkonnen.

— Estamos trabalhando para conquistar uma base planetária sólida e permanente, para isso teremos que manter uma grande percentagem das pessoas satisfeitas, principalmente os Fremen.

— Especialmente os Fremen — concordou Hawat.

— Nossa supremacia em Caladan — lembrou o Duque — dependia do poder aeronaval. Aqui, devemos desenvolver alguma coisa que eu chamaria de poder no deserto. Isso pode incluir força aérea, mas é possível que não. Chamo a atenção de vocês para a ausência de escudos nos tópteros. — Sacudiu a cabeça. — Os Harkonnen dependiam da rotatividade de seu pessoal de fora do planeta em alguns dos postos-chaves. Nós não podemos fazer o mesmo. Cada novo grupo de substitutos traria sua quota de agitadores.

— Então teremos que nos contentar com um lucro mais reduzido e colheitas reduzidas — explicou Hawat. — Nossa produção, nas duas primeiras safras, cairá para um terço da média Harkonnen.

— Aí está — disse Leto. — Exatamente como esperávamos. Teremos que nos mover rápido com os Fremen. Quero dispor de cinco batalhões completos de tropas Fremen, antes da primeira fiscalização da CHOAM.

— Não nos dá muito tempo, senhor — comentou Hawat.

— Não temos muito tempo, como você bem sabe. Eles estarão aqui, com Sardaukar disfarçados de Harkonnen na primeira oportunidade. Quantos acha que eles poderão embarcar, Thufir?

— Quatro ou cinco batalhões, senhor. Não mais do que isso, sendo os custos de transporte de tropas pela Corporação o que são.

— Então, cinco batalhões de Fremen mais as nossas próprias forças devem dar conta. Vamos ter alguns Sardaukar prisioneiros para desfilarem em frente do Conselho da Landsraad e as coisas ficarão bem diferentes, com lucros ou sem eles.

— Faremos o melhor que pudermos, senhor.

Paul olhou para seu pai e depois para Hawat, subitamente consciente da idade avançada do Mentat, consciente de que aquele velho servira três gerações de Atreides. Envelhecido. Era evidente no brilho embaçado dos olhos castanhos, nas maçãs do rosto fendidas e queimadas por climas exóticos, na curva arredondada dos ombros e nos lábios finos, com a tintura do suco de sapho.

“É muita dependência de um homem idoso”, pensou Paul.

— Estamos atualmente numa guerra de assassinos — explicou o Duque —, mas ela ainda não chegou ao seu ponto máximo. Thufir, qual é a situação da máquina Harkonnen neste planeta?

— Eliminamos duzentos e cinqüenta e nove de seus elementos-chave, meu senhor. Não mais do que três células Harkonnen permanecem. Talvez cem pessoas ao todo.

— Essas criaturas Harkonnen que você eliminou possuíam propriedades?

— A maioria estava bem situada, meu senhor, na classe empresarial.

— Quero certificados forjados de lealdade com as assinaturas de cada um — ordenou o Duque. — Arquive cópias com o juiz da Mudança. Adotaremos a acusação legal de que eles falsearam sua fidelidade. Isso nos permitirá confiscar suas propriedades, tomar tudo, pegar suas famílias e despi-las. E certifique-se de que a Coroa obtenha seus dez por cento. Deve ser tudo inteiramente legal.

Thufir sorriu, revelando dentes tingidos de vermelho por baixo dos lábios carmesins.

— Um movimento digno de sua grandeza, meu senhor. Envergonha-me não ter pensado nisto antes.

Halleck franziu a testa, surpreendendo a expressão aborrecida no rosto de Paul. Todos os outros sorriam e faziam gestos de concordância.

“Isso é errado”, pensava Paul. “Apenas fará com que os outros lutem mais duramente. Eles não terão nada a ganhar se rendendo.”

Sabia que as convenções abertas que governavam um kanly permitiam isso, mas era o tipo de movimento que poderia destruí-los, ainda que lhes desse a vitória.

“Eu tenho sido um estranho numa terra estranha” — citou Halleck.

Paul olhou para ele, reconhecendo a citação da Bíblia C.L., e perguntando a si mesmo: “Será que Gurney também deseja um fim para estas tramas tortuosas?”

O Duque olhou para a escuridão além das janelas e voltou-se para Halleck.

— Gurney, quantos daqueles trabalhadores das areias você persuadiu para ficarem conosco?

— Duzentos e oitenta e seis ao todo, senhor. Creio que devemos ficar com eles e nos considerarmos felizes. Eles estão todos nas categorias mais úteis.

— Não mais? — O Duque apertou os lábios. — Faremos correr a notícia de que...

Uma confusão na porta o interrompeu. Duncan Idaho passou pelos guardas, avançou apressado ao longo da mesa e se curvou para falar junto ao ouvido do Duque.

Leto acenou para que se erguesse.

— Fale alto, Duncan. Como pode ver, este é um conselho estratégico de estado-maior.

Paul estudava as feições de Idaho, os movimentos felinos, a rapidez de reflexos que o tornavam um professor de armas difícil de imitar. O rosto escuro e redondo voltou-se para ele, os olhos eram de um animal das cavernas, não dando nenhuma demonstração de nada, porém Paul reconhecia a máscara de serenidade tapando a excitação.

Idaho olhou ao longo da mesa e disse:

— Pegamos uma força de mercenários Harkonnen disfarçados de Fremen. Os próprios Fremen nos enviaram um mensageiro para avisar quanto ao grupo falso. Durante o ataque, contudo, nós descobrimos que os Harkonnen tinham emboscado o mensageiro. Ele foi gravemente ferido e nós o estávamos trazendo para cá, para ser tratado por nossos médicos, quando ele morreu. Percebi como o homem estava mal e parei para ver o que podia fazer. Surpreendi-o tentando jogar longe alguma coisa. — Idaho olhou para Leto: — Uma faca, meu senhor, uma faca como o senhor nunca viu.

— Faca cristalina? — indagou alguém.

— Sem dúvida alguma. Branco-leitosa e brilhando com uma luz interior. — Ele estendeu a mão para a túnica e tirou uma bainha, com um cabo negro projetando-se.

— Mantenha essa lâmina embainhada!

A voz vinha da porta aberta, no final da sala. Uma voz vibrante e penetrante, que fez todos olharem naquela direção.

Uma figura alta envolta em manto erguia-se na porta, bloqueada pelas espadas cruzadas dos guardas. Um manto cor de bronze claro o envolvia completamente, com exceção de uma pequena abertura no capuz e no véu negro a revelar olhos totalmente azuis, sem nenhum sinal de branco.

— Deixe-o entrar — sussurrou Idaho.

— Deixem o homem passar — disse o Duque.

Os guardas hesitaram, e então baixaram suas espadas.

O homem deslizou pela sala parando diante de Leto.

— Este é Stilgar, chefe do sietch que visitei, e líder daqueles que nos avisaram sobre o falso bando — explicou Idaho.

— Bem-vindo, senhor — disse Leto. — Por que não devemos desembainhar esta lâmina?

Stilgar olhou para Idaho, dizendo:

— Você observou os costumes de honra e purificação entre nós. Eu lhe permitiria ver a lâmina do homem que você socorreu. — Seu olhar varreu os outros na sala. — Mas eu não conheço esses outros. Você permitiria que eles violassem uma arma honrada?

— Eu sou o Duque Leto. Permitiria que eu visse a lâmina?

— Permitiria que adquirisse o direito de desembainhá-la — respondeu Stilgar, enquanto um murmúrio de protesto percorria a mesa. Ele ergueu a mão magra e coberta por véu escuro. — Devo lembrá-lo de que esta lâmina pertence àquele de quem você se tornou amigo.

No silêncio que se seguiu, Paul estudou o homem, sentindo a aura de poder que dele se irradiava. Tratava-se de um líder, um líder Fremen.

O homem próximo ao centro da mesa no lado oposto a Paul balbuciou:

— Quem é ele para nos dizer que direitos temos em Arrakis?

— Costuma-se dizer que o Duque Leto governa com a aprovação dos governados — disse o Fremen. — Ah, sim, eu devo lhes falar sobre os nossos costumes: uma certa responsabilidade recai sobre aqueles que fitam uma faca cristalina. — Ele passou um olhar sombrio na direção de Idaho. — Eles se tornam parte de nós, e jamais poderão deixar Arrakis sem o nosso consentimento.

Halleck e vários dentre os outros começaram a se levantar, com expressões de fúria em seus rostos. Halleck disse:

— O Duque Leto determina se...

— Um momento por favor — pediu Leto e a brandura em sua voz os conteve. “Não devo permitir que isto escape ao controle”, ele pensou. Dirigiu-se ao Fremen: — Senhor, eu honro e respeito a dignidade pessoal de qualquer homem que respeite a minha dignidade. Tenho uma dívida para consigo e eu sempre pago minhas dívidas. Se é seu costume que esta faca permaneça embainhada, então assim é ordenado, por mim. E se houver algum outro modo pelo qual possamos honrar o homem que morreu em nosso serviço, basta que nos diga.

O Fremen olhou para o Duque e então, lentamente, puxou para o lado o véu que lhe cobria o rosto, revelando um nariz fino e uma boca de lábios grossos em meio a barba negra brilhante. Deliberadamente, ele se curvou sobre a extremidade da mesa e cuspiu em sua superfície polida.

Enquanto os homens ao redor se erguiam, indignados, a voz de Idaho trovejou através da sala:

— Parem!

Na tensa imobilidade que se seguiu, Idaho disse:

— Nós lhe agradecemos, Stilgar, pela dádiva de sua umidade corporal. Nós a aceitamos pela intenção com que é dada. — E Idaho cuspiu na mesa diante do Duque.

Ao lado do Duque ele explicou:

— Lembre-se quão preciosa é a água aqui, senhor. Aquele foi um gesto de respeito.

Leto sentou-se novamente, percebendo o olhar de Paul e o sorriso triste no rosto do filho. Sentiu o lento relaxar da tensão em torno da mesa, enquanto a compreensão chegava à mente de seus homens.

O Fremen olhou para Idaho, dizendo:

— Você se portou bem em meu sietch, Duncan Idaho. Existe um compromisso em sua fidelidade ao Duque?

— Ele me pede para me alistar com ele, senhor! — explicou Idaho.

— Aceitaria uma lealdade dupla? — indagou Leto.

— Deseja que eu vá com ele, senhor?

— Eu desejo que tome sua própria decisão — respondeu Leto, incapaz de evitar o tom de urgência em sua voz.

Idaho observou o Fremen.

— Você me aceitaria sob estas condições, Stilgar? Haveria ocasiões em que eu deveria retornar para servir ao meu Duque.

— Você luta bem e fez o melhor que pôde pelo nosso amigo — respondeu Stilgar, depois olhou para o Duque. — Vamos deixar assim: o homem Idaho fica com a faca cristalina, como marca de sua lealdade para conosco. Ele deve ser purificado, é claro, e os ritos seguidos, mas isto pode ser feito. Ele será Fremen e soldado dos Atreides. Há um precedente para isto: Liet serve a dois mestres.

— Duncan? — indagou Leto.

— Compreendo, senhor.

— Então chegamos a um acordo.

— Sua água é nossa, Duncan Idaho — disse Stilgar. — O corpo do nosso amigo permanece com o seu Duque. A água dele é água dos Atreides. Que isto seja o laço de união entre nós.

Leto suspirou olhando para Hawat, percebendo o olhar do velho Mentat. Hawat acenou, sua expressão satisfeita.

— Eu esperarei lá embaixo — continuou Stilgar —, enquanto Idaho se despede de seus amigos. Turok era o nome de nosso colega morto. Lembre-se disso quando chegar a ocasião de libertar seu espírito. Vocês são amigos de Turok.

Stilgar começou a se virar.

— Não quer ficar conosco um pouco? — indagou Leto.

O Fremen se voltou, recolocando o véu sobre o rosto com um gesto casual e ajustando alguma coisa debaixo dele. Paul vislumbrou o que parecia um fino tubo antes que o véu assentasse em sua posição.

— Há alguma razão para que eu fique?

— Nós o honraríamos — disse o Duque.

— A honra exige que eu esteja em outra parte muito em breve — respondeu o Fremen, lançando outro olhar para Idaho enquanto se virava num movimento rápido, passando pelos guardas da porta.

— Se os outros Fremen forem como ele, nós serviremos muito bem uns aos outros — disse Leto.

Idaho disse com voz rouca:

— Ele é uma amostra regular, senhor.

— Você entende o que deve fazer, Duncan?

— Sou seu embaixador junto aos Fremen.

— Depende muito de você, Duncan. Nós vamos necessitar de, pelo menos, cinco batalhões dessa gente antes que os Sardaukar desçam sobre nós.

— Isto vai levar algum tempo, senhor. Os Fremen são um grupo muito independente. — Idaho hesitou e então acrescentou: — E, senhor, há uma outra coisa. Um dos mercenários que nós derrubamos estava tentando tirar a lâmina do nosso amigo Fremen morto. O mercenário diz que há uma recompensa Harkonnen de um milhão de solaris para qualquer um que traga uma única faca cristalina.

O queixo de Leto ergueu-se em evidente surpresa.

— Por que eles precisam tanto de uma dessas lâminas?

— A faca é extraída do dente de um verme da areia, é a marca dos Fremen, senhor. Com ela, um homem de olhos azuis pode penetrar em qualquer sietch que exista. Eles questionariam a mim, a menos que eu fosse conhecido. Eu não me pareço com um Fremen, mas...

— Piter de Vries — disse o Duque.

— Um homem de astúcia diabólica, meu senhor — comentou Hawat.

Idaho colocou a faca embainhada em sua túnica.

— Guarde essa faca — recomendou o Duque.

— Eu entendo, meu senhor. — Ele bateu no transceptor, no estojo do cinturão. — Eu enviarei um relatório assim que for possível. Thufir tem meu código de chamada. Use linguagem de batalha. — Ele fez uma saudação, girou nos calcanhares e partiu apressadamente ao encontro do Fremen.

Ouviram seus passos afastando-se ao longo do corredor.

Um olhar de compreensão passou entre Leto e Hawat. Eles sorriram.

— Temos muito a fazer, senhor — disse Halleck.

— E eu o afasto de seu trabalho.

— Tenho o relatório sobre as bases avançadas — disse Hawat.

— Devo reservá-la para outra ocasião, senhor?

— Vai ser longo?

— Não para um resumo. Diz-se, entre os Fremen, que existiam mais de duzentas dessas bases avançadas, construídas aqui em Arrakis durante o período da Estação de Testes Botânicos de Deserto. Todas supostamente abandonadas, mas existem relatórios de que elas foram lacradas antes de serem abandonadas.

— Equipamento nelas?

— De acordo com os relatórios que eu tenho do Duncan.

— Onde estão localizadas? — indagou Halleck.

— A resposta a essa pergunta — disse Hawat — é, invariavelmente: — “Liet sabe.”

— Só Deus sabe — murmurou Leto.

— Talvez não, senhor — continuou Hawat. — Ouviu esse Stilgar usar o nome. Estaria ele se referindo a uma pessoa real?

— Servindo a dois senhores — observou Halleck. — Soa como uma citação religiosa.

— E você devia saber — disse o Duque.

Halleck sorriu.

— Esse juiz da Mudança — continuou Leto. — O ecologista imperial, Kynes... não saberia ele onde ficam essas bases?

— Senhor — advertiu-o Hawat. — Esse Kynes é um servo imperial.

— Mas está bem longe do imperador. Eu quero aquelas bases. Elas estarão carregadas de material que nós poderíamos recuperar e usar para reparos em nosso equipamento de trabalho.

— Senhor, aquelas bases ainda são, legalmente, feudo de Sua Majestade.

— O clima aqui é suficientemente violento para destruir qualquer coisa — explicou o Duque. — Nós poderemos sempre culpar o clima. Pegue esse Kynes e finalmente descubra se essas bases existem.

— Seria perigoso comandá-las — insistiu Hawat. — Duncan deixou claro uma coisa: essas bases, ou a idéia delas, possui algum profundo significado para os Fremen. Nós poderíamos nos indispor com eles se tomássemos tais bases.

Paul observava os rostos dos homens a sua volta, notando o modo intenso com que acompanhavam cada palavra. Eles pareciam profundamente perturbados pela atitude de seu pai.

— Ouça o que ele diz, pai — falou Paul baixinho. — Ele fala a verdade.

— Senhor — continuou Hawat —, aquelas bases poderiam nos fornecer material para consertar cada peça de equipamento que nos deixaram e ainda assim permanecerem além do nosso alcance por razões estratégicas. Seria precipitado mover-se nesse terreno sem um conhecimento maior. Esse Kynes tem a autoridade de árbitro do Império. Não devemos nos esquecer disso. E os Fremen o respeitam.

— Faça tudo gentilmente, então. Só quero saber se aquelas bases existem.

— Se assim o deseja, senhor. — Hawat recostou-se no assento abaixando a cabeça.

— Tudo bem, então — disse Leto. — Já sabemos o que temos à nossa frente: trabalho. Fomos treinados para realizá-la, temos alguma experiência, sabemos quais serão as recompensas e as alternativas são claras. Todos vocês possuem suas tarefas. — Olhou para Halleck. — Gurney, cuide da situação dos contrabandistas em primeiro lugar.

“Eu irei ao encontro dos rebeldes que habitam a terra seca...”, — entoou Halleck.

— Algum dia eu surpreenderei este homem sem uma citação, e ele vai parecer despido — disse Leto.

Risos ecoaram ao redor da mesa, mas Paul notou o esforço empregado neles.

O Duque voltou-se para Hawat:

— Instale outro posto de comando para inteligência e comunicações neste andar, Thufir. Quando o tiver aprontado, eu quero vê-lo.

Hawat se levantou olhando ao redor da sala como se buscasse apoio. Voltou-se, liderando a procissão para fora da sala. Os outros se moveram apressadamente, arrastando suas cadeiras no piso, aglomerando-se em pequenos nós de confusão.

“Terminou em confusão”, pensou Paul, olhando para as costas dos homens que partiam. Anteriormente, reuniões como essa costumavam terminar numa atmosfera de decisão. Esse encontro por outro lado parecera se arrastar, consumido por suas próprias insuficiências e com uma discussão para coroar tudo.

Pela primeira vez ele se permitia pensar na possibilidade de derrota — pensando nela não por medo ou por causa de avisos como o da velha Reverenda Madre, mas enfrentando-a devido ao seu próprio julgamento da situação.

“Meu pai está desesperado” — concluiu —, “as coisas não vão bem para nós, nem um pouco.”

E Hawat, Paul lembrou-se de como o velho Mentat agira durante a conferência — hesitações sutis, sinais de inquietação.

Hawat se encontrava profundamente perturbado por alguma coisa.

— É melhor você permanecer aqui pelo resto da noite, filho — aconselhou o Duque. — O dia vai raiar logo, de qualquer modo. Eu avisarei sua mãe. — Ele se levantou lentamente, de modo rígido. — Por que não junta algumas dessas cadeiras e se estica para repousar um pouco?

— Eu não estou muito cansado, senhor.

— Como quiser.

O Duque cruzou as mãos às costas e começou a caminhar, indo e vindo ao longo da mesa.

“Como um animal enjaulado”, pensou Paul.

— Vai discutir a possibilidade do traidor com Hawat?

O Duque parou diante de seu filho, falando para as janelas escuras.

— Já discutimos essa possibilidade muitas vezes.

— A velha parecia muito segura, e a mensagem que mamãe...

— Precauções foram tomadas. — Leto olhou ao redor da sala e Paul percebeu o olhar de ansiedade. — Fique aqui. Há algumas coisas a respeito dos postos de comando que eu quero discutir com Thufir. Ele virou-se, saindo da sala com um rápido aceno para os guardas.

Paul observou o lugar onde seu pai se colocara. Um espaço que estivera vazio antes mesmo que o Duque deixasse a sala. Lembrou-se do aviso da velha “... para o pai, nada”.

 

No primeiro dia, quando o Muad'Dib passou pelas ruas de Arrakeen com sua família, algumas das pessoas ao longo do caminho se lembraram das lendas e da profecia, arriscando-se a gritar. — “Mahdi!” Mas seu grito era mais uma pergunta que uma afirmação, já que eles podiam apenas esperar que ele fosse aquele que fora previsto como o Lisan al-Gaib, A Voz do Mundo Exterior. A atenção deles foi concentrada na mãe também, já que tinham ouvido dizer que ela era Bene Gesserit, e parecia óbvio a eles que ela fosse a outra Lisan al-Gaib.

 

— do Manual do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

O Duque encontrou Thufir Hawat sozinho, no canto de uma sala aonde o guarda o encaminhara. Havia o ruído de homens instalando equipamentos de comunicações na sala adjacente, mas esse lugar parecia razoavelmente tranqüilo. O Duque olhou à volta, enquanto Hawat se levantava da mesa apinhada de papéis. Tratava-se de uma divisão de paredes verdes que, acrescentando-se à mesa, ostentava três cadeiras suspensoras de onde a marca “H”, dos Harkonnen, fora apressadamente removida, deixando uma mancha colorida irregular.

— As cadeiras são soltas, mas bastante seguras — disse Hawat.

— Onde está Paul, senhor?

— Deixei-o na sala de conferências. Espero que ele descanse um pouco, sem que eu esteja por perto para distraí-lo.

Hawat assentiu e caminhou para a porta, em direção à sala ao lado e fechou-a, interrompendo o ruído de estática e centelhas elétricas.

— Thufir — principiou Leto —, os depósitos de especiaria do Império e dos Harkonnen atraem a minha atenção.

— Meu senhor?

O Duque comprimiu os lábios.

— Armazéns são suscetíveis de destruição. — Ergueu a mão quando Hawat ia começar a falar.

— Ignore as reservas secretas do Imperador. Ele, secretamente, gostará de ver os Harkonnen ficarem embaraçados. E pode o Barão reclamar a destruição de alguma coisa sem admitir, abertamente, que a possuía?

Hawat sacudiu a cabeça.

— Dispomos de poucos homens, senhor.

— Use alguns homens de Idaho. E talvez alguns Fremen apreciem uma viagem para fora do planeta. Uma incursão em Giedi Prime. Há vantagens táticas para tal diversão, Thufir.

— Como quiser, meu senhor. — Hawat voltou-se e o Duque percebeu os sinais de seu nervosismo. — Talvez ele suspeite de que desconfio dele. Deve saber que tenho relatórios confidenciais sobre traidores. Melhor acalmar seus temores imediatamente.

— Thufir, desde que você é um dos poucos em que posso confiar completamente, há um outro assunto pedindo uma discussão. Ambos sabemos a vigilância constante que temos que manter para evitar que traidores se infiltrem em nossas forças... mas eu tenho dois novos relatórios.

Hawat olhou para ele e Leto repetiu as histórias que Paul contara.

Em lugar de produzirem a intensa concentração Mentat, os relatórios apenas aumentaram a agitação de Hawat.

Leto estudou o velho e depois disse:

— Você está guardando alguma coisa, velho amigo. Eu devia ter suspeitado quando o vi tão nervoso durante a reunião. O que é que era quente demais para derramar na frente daquela reunião?

Os lábios tingidos de sapho contraíram-se numa linha reta, com minúsculos vincos dela se irradiando. Mantiveram-se nessa rigidez enrugada enquanto ele dizia:

— Meu senhor, eu não sei como abordar esta questão.

— Nós já infligimos mais de uma cicatriz um ao outro, Thufir — disse Leto. — Você sabe que pode abordar qualquer assunto comigo.

Hawat continuava a fitá-lo, pensando: “Este é o modo como eu o aprecio mais. Este é o homem honrado que merece toda a minha lealdade e serviço. Por que devo feri-lo?”

— Bem? — exigiu Leto.

Hawat encolheu os ombros.

— É só um pedaço de mensagem. Nós a tiramos de um correio Harkonnen. A mensagem era endereçada a um agente chamado Pardee. Temos boas razões para crer que esse Pardee era um dos homens-chave no movimento subterrâneo dos Harkonnen por aqui. A nota é algo que poderia ter grandes conseqüências, ou nenhuma. É suscetível a várias interpretações.

— Qual é o delicado conteúdo dessa nota?

— Pedaço de uma nota, meu senhor. Incompleta. Estava sobre um filme minímico com a cápsula de destruição usual presa a ele. Interrompemos a ação do ácido um pouco antes da rasura total, e apenas um fragmento restou. Esse fragmento, porém, era extremamente sugestivo.

— Sim?

Hawat esfregou os lábios:

— A nota diz: “...eto nunca suspeitará e quando o golpe o atingir, vindo de uma mão adorada, o reconhecimento de sua origem em si será o suficiente para destruí-lo.” A mensagem estava sob o selo do Barão, e já autentiquei esse selo.

— Sua suspeita é óbvia — disse o Duque numa voz repentinamente fria.

— Eu preferiria decepar meus braços a feri-lo, senhor. Mas e se...

— Lady Jessica — concluiu Leto, sentindo o ódio consumi-lo. — Não foi capaz de extrair os fatos desse Pardee?

— Infelizmente, Pardee não se encontrava mais entre os vivos quando interceptamos o correio. O mensageiro certamente não sabia o que transportava.

— Percebo.

Leto sacudiu a cabeça, pensando. “Que negócio mais nojento. Não pode haver nenhuma verdade nisso. Eu conheço bem a minha mulher.”

— Meu senhor, e se...

— Não! — gritou o Duque. — Há um engano aqui e...

— Nós não podemos ignorar, meu senhor.

— Ela está comigo há dezesseis anos. Houve incontáveis oportunidades para... Você mesmo investigou a escola e a mulher!

Hawat falou num tom amargo:

— É sabido que as coisas às vezes me escapam.

— É impossível, eu lhe digo! Os Harkonnen querem destruir a linhagem dos Atreides, e isso significa Paul também. Eles já tentaram uma vez. Pode uma mulher conspirar contra seu próprio filho?

— Talvez ela não conspire contra seu filho. O atentado de ontem pode ter sido uma farsa.

— É impossível que tenha sido uma farsa.

— Senhor, presume-se que ela não conheça seus pais, mas e se conhece? E se ela for uma órfã, digamos órfã por uma ação dos Atreides?

— Se assim fosse, ela teria agido muito antes. Envenenado minha bebida... ou um punhal durante a noite. Quem teve melhores oportunidades?

— Mas os Harkonnen querem destruí-lo, meu senhor. Seu objetivo não é simplesmente matar. Existe todo um espectro de sutis distinções num kanly. Este poderia ser um trabalho de arte entre as vendetas.

Os ombros do Duque cederam. Ele fechou os olhos, parecendo velho e cansado. “Não pode ser”, pensou, “aquela mulher tem aberto seu coração para mim.”

— Que melhor modo de destruir-me do que semear a suspeita sobre a mulher que eu amo?

— Uma interpretação que eu já considerei — respondeu Hawat. — Ainda assim...

O Duque abriu os olhos, fitando Hawat enquanto pensava: “Deixe que ele suspeite. Suspeita é o seu negócio, não o meu. Talvez se eu fingir que acredito nisso o outro homem se torne descuidado.”

— O que sugere?— sussurrou o Duque.

— Por enquanto, constante vigilância, meu senhor. Ela deve ser observada todo o tempo. Cuidarei para que seja feito discretamente. Idaho seria o homem ideal para o trabalho. Talvez dentro de uma semana possamos tê-lo de volta. Existe um rapaz na tropa de Idaho que temos treinado. Ele seria o elemento ideal para mandar aos Fremen como substituto. Tem o dom da diplomacia.

— Não arrisque nossa ligação com os Fremen.

— Claro que não, senhor.

— E quanto a Paul?

— Talvez possamos alertar o Dr. Yueh.

Leto voltou as costas para Hawat.

— Deixo isso em suas mãos.

— Serei discreto, meu senhor.

“Pelo menos posso contar com isso”, pensou Leto, e depois disse:

— Vou dar uma caminhada. Se precisar de mim, estarei no perímetro. O guarda poderá...

— Meu senhor, antes que se vá eu tenho uma seção de filme que devia ler. É uma análise da primeira abordagem da religião Fremen. Lembra-se de que me pediu para fazer um relatório a respeito?

O Duque parou, falando sem se voltar:

— Não pode esperar?

— É claro, meu senhor. Perguntou-me o que eles estavam gritando. Era “Mahdi!” Eles dirigiam o termo para o jovem mestre. Quando eles...

— Ao Paul?

— Sim, meu senhor. Existe uma lenda aqui, uma profecia de que um líder virá para eles, filho de uma Bene Gesserit. Para conduzi-los em direção à verdadeira liberdade. Segue o padrão messiânico familiar.

— E eles pensam que Paul é... esse...

— Eles apenas esperam que ele seja, meu senhor. — Hawat estendeu a cápsula com o fragmento de filme.

O Duque aceitou, colocando-o no bolso.

— Eu olharei depois.

— Certamente, meu senhor.

— Neste momento eu preciso pensar.

— Sim, meu senhor.

O Duque inspirou profundamente, quase num lamento, e caminhou para a porta. Voltou-se para a direita ao longo do corredor e começou a caminhar, mãos cruzadas para trás, prestando pouca atenção ao que existia naquele lugar. Havia passagens e escadarias, sacadas e salões... pessoas que faziam saudações e se afastavam para deixá-lo passar.

Algum tempo depois ele retornou à sala de conferências, encontrando-a às escuras. Paul dormia sobre a mesa com o manto de um guarda lançado sobre ele, e uma mochila servindo de travesseiro. O Duque atravessou a sala silenciosamente e chegou à sacada por sobre o campo de pouso. Um guarda na extremidade da sacada reconheceu-o através do fraco reflexo das luzes do campo, e ficou em posição de sentido.

— A vontade — murmurou Leto, recostando-se sobre o frio metal do parapeito.

Uma quietude anterior à aurora estabelecera-se sobre o deserto.

Ele olhou para cima. Lá no alto, as estrelas eram como um xale de lantejoulas lançado sobre um fundo azul. Baixa, no horizonte sul, a segunda lua da noite fitava através de um fino véu de poeira — uma lua inacreditável, lançando-lhe o seu olhar cínico.

Enquanto Leto a observava, a lua mergulhou atrás dos penhascos da Muralha Escudo, fazendo-os parecer cobertos de geada.

Na súbita intensidade da escuridão ele experimentou um calafrio. Estremeceu. Raiva ferveu em seu interior.

“Os Harkonnen me caçaram, estorvaram e perseguiram pela última vez. Eles são pilhas de excremento, com mentes dignas de um delegado de vilarejo! Aqui eu fincarei pé!”, pensou com um toque de tristeza. “Devo governar com olho e garra — como um falcão entre os pássaros.” Inconscientemente sua mão tocou o emblema do falcão na túnica.

Para o leste, a noite criou um feixe de cinza luminoso, depois uma opalescência de concha marinha que enfraqueceu as estrelas.

E, então, chegou o longo e radioso momento da aurora, atingindo o horizonte acidentado.

Uma visão de tamanha beleza, que captou sua atenção.

“Algumas coisas superam a rotina.”

Jamais julgara que alguma coisa aqui pudesse ser tão bela quanto esse horizonte vermelho despedaçado, e aqueles penhascos purpúreos e ocres. Além do campo de pouso, onde o fraco orvalho da noite lançara vida sobre as sementes de Arrakis, ele viu grandes aglomerados de flores vermelhas, com uma trilha articulada de violeta... como pegadas de um gigante.

— É uma linda manhã, senhor — disse o guarda.

— Sim, realmente.

“Talvez este planeta possa cultivar a amizade de alguém”, pensou ele. “Talvez possa tornar-se um bom lar para meu filho.”

Percebeu então as figuras humanas movendo-se nos campos de flores, varrendo-os com estranhos engenhos em forma de foices recolhedoras de orvalho. A água é tão preciosa aqui que até mesmo o orvalho deve ser colhido.

“Este pode ser um lugar hediondo”, pensou o Duque.

 

“Não existe, provavelmente, um instante mais terrível de conhecimento do que aquele em que você descobre que seu pai é apenas um homem — de carne e osso.”

 

— de Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

O Duque disse:

— Paul, vou fazer uma coisa odiosa, mas é preciso. — Leto colocara-se ao lado do farejador de veneno, trazido para a sala de conferências com vistas ao desjejum. Os braços sensores da coisa tombavam frouxos sobre a mesa, lembrando a Paul o aspecto de um estranho inseto recém-morto.

A atenção do Duque parecia voltar-se para as janelas, em direção ao campo de pouso e à poeira contra o céu da manhã.

Paul tinha uma unidade de leitura diante dos olhos, observando o curto segmento de filme a respeito das práticas religiosas Fremen. O clip fora compilado por um dos especialistas de Hawat e Paul se sentia perturbado pelas referências a si próprio.

“Mahdi!”

“Lisan al-Gaib!”

Podia fechar os olhos e relembrar os gritos da multidão. “Então é isto que eles esperam”, pensou. E lembrava-se do que a velha Reverenda Madre dissera: Kwisatz Haderach. As memórias tocavam os sentimentos de um terrível propósito, obscurecendo esse estranho mundo com sensações de uma familiaridade que era incapaz de entender.

— Uma coisa odiosa — repetiu o Duque.

— Que quer dizer, senhor?

Leto virou-se, olhando para o filho.

— Porque os Harkonnen planejam me pegar, fazendo-me desconfiar de sua mãe. Eles não sabem que antes eu desconfiaria de mim mesmo.

— Não entendo, senhor.

Leto olhou novamente para as janelas. O sol branco encontrava-se bem elevado em seu quadrante matinal. Sua luz leitosa atingia a poeira fervilhante, a derramar-se em nuvens sobre os canyons sem saída, entremeando-se pela Muralha Escudo.

Falando lentamente, com voz baixa para conter seu ódio, o Duque explicou a Paul o conteúdo da misteriosa nota.

— Poderia igualmente desconfiar de mim — disse ele.

— Eles precisam pensar que tiveram sucesso. Devem me julgar semelhante tolo. Deve parecer real. Nem mesmo sua mãe pode saber que se trata de uma farsa.

— Mas senhor, por quê?

— A resposta de sua mãe não pode ser uma encenação. Oh, ela é capaz da suprema encenação... mas muita coisa depende disso. Espero revelar o traidor. Deve parecer que eu fui inteiramente logrado. Ela precisa ser magoada desse modo, para que não sofra um mal maior.

— Por que me diz isso, pai? Talvez eu deixe escapar...

— Eles não vão vigiar você. Você manterá o segredo. É preciso. — Caminhou para as janelas sem se virar, dizendo: — Desse modo, se alguma coisa me acontecer, você pode avisá-la, contar a ela que eu nunca duvidei, nem pelo menor instante. Eu gostaria que ela soubesse disso. — Paul reconheceu os pensamentos de morte nas palavras de seu pai, falando rapidamente:

— Nada vai lhe acontecer, senhor. Os...

— Cale-se, filho.

Paul observou seu pai pelas costas, percebendo a fadiga no ângulo do pescoço, na linha dos ombros, nos movimentos lentos.

— Está apenas cansado, pai.

— Estou cansado — concordou o Duque. — Estou moralmente cansado. A melancólica degeneração das Grandes Casas me atingiu afinal. E nós fomos tão fortes um dia!

Paul respondeu em rápida irritação:

— Nossa Casa não degenerou!

— Será que não?

O Duque voltou-se, encarando o filho, revelando os círculos escuros ao redor de seus olhos, uma contorção desdenhosa na boca.

— Eu devia ter me casado com sua mãe, fazendo dela minha duquesa. E no entanto... minha condição de solteiro poderia dar a alguma das Casas a esperança de se aliarem comigo, através de suas filhas em idade de casamento. — Deu de ombros. — E assim...

— Mamãe explicou tudo isso para mim.

— Nada conquista mais lealdade para um líder que um ar de bravura. Portanto, eu cultivei essa aparência.

— O senhor lidera muito bem — protestou Paul. — E governa bem. Os homens o seguem por vontade própria, e o amam.

— Meu corpo de propaganda é um dos melhores — continuou o Duque, voltando-se para fitar novamente a depressão. — Existe maior oportunidade para nós, aqui, em Arrakis, do que o Império suspeita. No entanto, às vezes eu penso se não teria sido melhor se tivéssemos fugido, tornando-nos renegados. As vezes eu gostaria de poder afundar num anonimato entre as pessoas, tornar-me menos exposto...

— Pai!

— Sim, estou cansado. Você sabia que estamos usando resíduo de especiaria como matéria-prima, e já temos nossa própria fábrica para manufaturar filme-base?

— Senhor?

— Não podemos sofrer escassez de filme-base. De outro modo, como poderíamos inundar cada vila e cidade com nossas informações? As pessoas devem tomar conhecimento de quão bem as governo. E como poderiam saber se não lhes contássemos?

— O senhor deve descansar um pouco — aconselhou Paul.

Mais uma vez o Duque encarou o filho.

— Arrakis tem outra vantagem que eu quase esqueci de mencionar. Especiaria está em toda parte, aqui. Você a respira e come em quase tudo. E eu descobri que isso confere certa imunidade aos venenos mais comuns do Manual dos Assassinos. A necessidade de vigiar cada gota de água coloca toda a produção de alimentos — cultura de lêvedo, hidropônica, chemavit, tudo — sob a mais cuidadosa fiscalização. Não podemos eliminar grandes segmentos de nossa população com veneno, e igualmente não podemos ser atacados desse modo. Arrakis nos torna moralmente éticos.

Paul começou a falar, mas o Duque o interrompeu:

— Eu precisava de alguém para quem pudesse dizer estas coisas, filho. — Ele suspirou, olhando de volta para a paisagem seca, onde até mesmo as flores haviam desaparecido, pisadas pelos colhedores de orvalho, secas sob o sol da manhã, após seu crescimento explosivo durante a noite. — Em Caladan nós governávamos com poder aéreo e marítimo. Aqui, nós precisamos engatinhar atrás de um poder sobre o deserto. Esta é a sua herança, Paul. No que você se tornará, se algo me acontecer? Você não se tornará uma Casa renegada, e sim uma Casa guerrilheira caçada, fugindo.

Paul buscou as palavras, incapaz de encontrar algo para dizer. Nunca antes vira seu pai tão abatido.

— Para manter Arrakis — continuou ele —, nos defrontamos com decisões que podem nos custar o auto-respeito. — Apontou para fora da janela, em direção à bandeira verde e negra dos Atreides, pendendo imóvel de um mastro na extremidade do campo. — Aquela honrosa flâmula pode vir a significar muitas coisas maléficas.

Paul engoliu, sentindo a garganta seca. As palavras do pai traziam futilidades, o senso de fatalismo que deixava o rapaz com uma sensação de vazio no peito.

O Duque pegou um tablete antifadiga de dentro do bolso, engoliu-o sem água.

— Poder e medo — continuou. — As ferramentas da arte de governar. Devo ordenar nova ênfase no treinamento de guerrilha para você. Naquele filme ali — eles o chamam de “Mahdi Lisan al-Gaib” — como último recurso, você deve capitalizar isso.

Paul observou os ombros de seu pai se endireitarem, enquanto o tablete fazia efeito, mas as palavras de medo e dúvida permaneciam em sua mente.

— O que está retardando aquele ecologista? Eu disse a Thufir que o trouxesse aqui cedo.

 

Meu pai, o Imperador Padishah, me pegou pela mão um dia e senti, pelo que minha mãe me ensinara, que ele estava perturbado. Ele me levou até o Salão dos Retratos, até a ego-semelhança do Duque Leto Atreides. Eu percebi a forte semelhança entre eles — entre meu pai e aquele homem no retrato — ambos com rostos magros e elegantes,  feições incisivas dominados por olhos frios.

— Princesa-filha — disse ele — eu desejei que você estivesse mais velha, quando chegou a ocasião deste homem escolher uma esposa. — Meu pai tinha 71 naquela ocasião, mas não parecia mais velho que o homem no retrato. Eu só tinha 14, mas me lembro de perceber imediatamente que meu pai desejava secretamente que o Duque fosse seu filho, e lamentava as razões políticas que fariam deles inimigos.

 

— de Na Casa de Meu Pai, escrito pela Princesa Irulan

 

O primeiro encontro do Dr. Kynes com as pessoas a quem lhe haviam ordenado trair deixou-o abalado. Ele se orgulhava de ser um cientista, para quem as lendas eram apenas indícios apontando raízes culturais. Entretanto, o rapaz se adequava muito precisamente na velha profecia. Ele tinha os “olhos indagadores” e o ar de “franqueza reservada”.

É claro que a profecia deixava uma certa liberdade quanto ao detalhe se a Deusa-Mãe traria o Messias com ela, ou o produziria no local. Ainda assim havia uma correspondência curiosa entre previsão e pessoa.

Eles se encontraram no meio da manhã, do lado de fora do prédio da administração do campo de pouso de Arrakeen. Um ornitóptero sem marcas agachava-se nas proximidades, zumbindo suavemente, de prontidão como um inseto sonolento. Um guarda dos Atreides colocava-se ao lado, com a espada desembainhada e provocando uma fraca distorção do escudo ao seu redor.

Kynes sorriu desdenhosamente ante o padrão do escudo, pensando: “Arrakis tem uma surpresa guardada para eles!”

O planetólogo ergueu a mão, sinalizando para que sua guarda Fremen retrocedesse. Caminhou adiante, na direção da entrada do edifício — um buraco negro na rocha envolta em plástico. “Tão exposto este prédio monolítico”, pensou ele. “Tão menos adequado que uma caverna.”

O movimento dentro da entrada prendeu sua atenção. Ele parou, aproveitando o momento para ajustar seu manto, e o controle do traje destilador no ombro esquerdo.

As portas da entrada se abriram. Guardas Atreides emergiram, todos pesadamente armados: atordoadores de projéteis lentos, escudos e espadas. Por trás deles vinha um homem alto, de feições aquilinas, com pele e cabelos escuros. Usava um manto-juba, com a crista dos Atreides no peito, e o usava de um modo que traía sua pouca familiaridade com o traje, que se agarrava às pernas do traje-destilador num dos lados. Faltava-lhe um ritmo livre e gingado ao caminhar.

Ao lado do homem caminhava um jovem com o mesmo cabelo escuro, mas de rosto mais arredondado. Parecia muito pequeno para ter quinze anos, que Kynes sabia ser sua idade. Todavia, o corpo jovem carregava um senso de comando, uma segurança empertigada, como se visse e conhecesse coisas à sua volta que fossem invisíveis aos outros. Usava um manto do mesmo tipo que o do pai, mas com uma naturalidade espontânea aparentando a familiaridade de quem sempre usara tal vestuário.

— “O Mahdi terá consciência de coisas que os outros não podem ver”, dizia a profecia.

Kynes sacudiu a cabeça, dizendo para si mesmo: “Eles são apenas pessoas.”

Junto com os dois, e vestido como eles para o deserto, vinha um homem que Kynes reconheceu: Gurney Halleck. Respirou fundo para conter seu ressentimento contra Halleck, que lhe dera instruções quanto ao modo de se portar diante do duque e seu herdeiro.

— Pode chamar o Duque de “meu senhor”, ou “Sir”. “Meu Nobre” também é correto, mas geralmente reservado para ocasiões mais formais. O filho deve ser chamado “jovem mestre”, ou “meu senhor”. O Duque é um homem de muita indulgência, mas não tolera intimidade — dissera-lhe.

E Kynes pensava, enquanto observava o grupo se aproximar: “Eles aprenderão logo quem é o senhor aqui em Arrakis. Mandam-me ser interrogado no meio da noite por aquele Mentat, não mandam? Esperam que eu os guie numa inspeção da mineração de especiaria, não esperam?”

O significado das perguntas de Idaho não escapara a Kynes.

Eles queriam as bases Imperiais. E era óbvio que haviam tomado conhecimento das bases por obra de Idaho.

“Cuidarei para que Stilgar envie a cabeça de Idaho para o seu Duque”, disse Kynes para si mesmo.

O grupo do Duque encontrava-se a apenas alguns passos de distância, seus pés em botas de deserto esmagando a areia.

Kynes se curvou.

— Meu senhor Duque.

Ao se aproximar, Leto observara com interesse a figura solitária, de pé ao lado do ornitóptero: alto, magro, vestido para o deserto com um manto largo, traje-destilador e botas de cano curto.

O capuz do homem estava lançado para trás, o véu pendendo de um dos lados, revelando o cabelo louro-palha longo e uma barba rala. Seus olhos insondáveis eram de um azul dentro de azul, sob sobrancelhas espessas. Restos de manchas negras permaneciam ao redor dos olhos.

— Você é o ecologista — disse o Duque.

— Nós preferimos, por aqui, o velho título, meu senhor: planetólogo.

— Como desejar. — Leto olhou para Paul. — Filho, este é o juiz da Mudança, árbitro das disputas, o homem colocado aqui para verificar se as formalidades são obedecidas em nossa suposição de poder sobre este feudo. — Olhou para Kynes. — E este é meu filho.

— Meu senhor — disse Kynes.

— Você é um Fremen? — indagou Paul.

Kynes sorriu.

— Sou aceito em ambos os lugares, sietch e vilarejos, jovem mestre. Mas estou a serviço de Sua Majestade, o Planetólogo Imperial.

Paul assentiu, impressionado pela aparência de força transmitida pelo homem. Halleck lhe apontara Kynes de uma das janelas superiores no prédio da administração.

— Aquele homem, com a escolta de Fremen, movendo-se agora para o ornitóptero.

Paul observara Kynes durante alguns segundos, através dos binóculos, notando a boca reta, a testa alta. Halleck dissera em seu ouvido:

— Um tipo estranho. Tem um modo preciso de falar, direto, incisivo como uma lâmina.

E o Duque por trás deles dissera:

— Tipo cientista.

Agora, a apenas alguns passos do homem, Paul sentia o poder de Kynes, o impacto de sua personalidade, como se ele tivesse sangue real, nascido para comandar.

— Compreendo que devemos agradecer-lhe nossos trajes destiladores e estes mantos — disse Leto.

— Espero que eles lhe sirvam bem, meu senhor. São de confecção Fremen e tão próximos quanto possível das dimensões fornecidas a mim por seu homem, Halleck.

— Eu me preocupei quando disse que não poderia nos levar para o deserto a menos que usássemos estes trajes. Nós podemos carregar bastante água, não pretendemos ficar muito tempo fora e teremos cobertura aérea — a escolta que pode ver acima de nós, neste momento. Não é provável que sejamos forçados a descer.

Kynes olhou para Leto, vendo a carne gorda de água e falou friamente:

— Nunca fale em probabilidade em Arrakis. Você fala somente em possibilidades.

Halleck ficou rígido.

— O Duque deve ser tratado como Meu Senhor ou Sir!

Leto fez o sinal particular com a mão, avisando a Halleck para desistir, e disse:

— Nossos costumes são novos aqui, Gurney. Devemos ser tolerantes.

— Como quiser, senhor.

— Temos uma dívida para com o senhor, Dr. Kynes. Estes trajes e a consideração por nosso bem-estar serão lembrados.

Num impulso, Paul lembrou-se de uma citação da Bíblia C. L., dizendo:

— “A dádiva é a bênção do rio.”

As palavras foram transportadas no ar parado e a escolta Fremen, que Kynes deixara na sombra do prédio da administração, saltou de sua posição agachada de repouso, balbuciando em clara agitação. Um deles gritou:

— Lisan al-Gaib!

Kynes girou nos calcanhares, fazendo um sinal curto, como um golpe com a mão, mandando os guardas embora. Eles se afastaram balbuciando, dando a volta ao prédio.

— Muito interessante — observou Leto.

Kynes olhou duramente para o Duque e para Paul:

— A maioria dos nativos do deserto por aqui é muito supersticiosa. Não lhes dê atenção, eles não pretendiam fazer nenhum mal. — No íntimo ele pensava nas palavras da lenda: — “Ele o saudará com palavras sagradas, e sua dádiva será uma bênção.”

O julgamento de Leto, com relação a Kynes — baseado parcialmente num breve relatório verbal de Hawat (cheio de suspeitas e cauteloso) —, cristalizou-se subitamente. O homem era um Fremen. Kynes viera com uma escolta Fremen, o que poderia significar que os Fremen testavam sua nova liberdade para entrar nas áreas urbanas. Todavia, parecera uma guarda de honra. Por seus modos, Kynes era um homem orgulhoso, acostumado à liberdade, seus modos e sua língua contidos apenas por suas próprias suspeitas. A pergunta de Paul fora direta e pertinente.

Kynes se tornara nativo.

— Não devíamos partir, senhor? — indagou Halleck.

O Duque assentiu.

— Pilotarei meu próprio “tóptero”. Kynes pode se sentar na frente comigo e me orientar. Você e Paul tomam os assentos traseiros.

— Um momento, por favor — disse Kynes. — Com sua permissão, senhor, devo checar a segurança de seus trajes.

O Duque tentou dizer alguma coisa mas Kynes insistiu:

— Eu me preocupo com minha própria carne, assim como com a sua... meu senhor. Sei muito bem qual será a garganta a ser cortada, se algo acontecer a vocês dois enquanto estiverem sob meus cuidados.

O Duque franziu a testa, pensando: “Como é delicado este momento. Se me recusar posso ofendê-lo. E este pode ser um homem cujo valor para mim ultrapassa as medidas. Entretanto... deixá-lo penetrar meu escudo, tocando minha pessoa quando conheço tão pouco a seu respeito!”

Os pensamentos relampejaram em sua mente, com uma decisão seguindo rápido em seu encalço:

— Estamos em suas mãos — disse, e deu um passo adiante abrindo seu manto. Viu Halleck ficar na ponta do pé, sério e alerta, mas permanecendo onde estava. — E se tiver a bondade, eu apreciaria uma explicação a respeito do traje, fornecida por alguém que vive tão intimamente com ele.

— Certamente — respondeu Kynes. Tateou sob o manto, sentindo os fechos de ombro, falando enquanto inspecionava o traje. — Trata-se, basicamente, de um micro sanduíche: um filtro de alta eficiência com sistema de troca de calor. — Ajustou os selos de ombro. — A camada de contato com a pele é porosa. O suor passa através dela resfriando o corpo num processo de evaporação quase normal. As duas camadas seguintes... — corrigiu o assentamento, apertando mais no peito — ... incluem filamentos para troca de calor, e precipitadores de sal. O sal é recuperado.

O Duque ergueu os braços num gesto, e disse:

— Muito interessante.

— Respire profundamente — instruiu Kynes.

Leto obedeceu.

Kynes observou os fechos sob o braço, ajustando um.

— Os movimentos do corpo, principalmente a respiração e um pouco de ação osmótica, fornecem a força de bombeamento. — Afrouxou levemente o ajuste no peito. — A água recuperada circula para bolsas de armazenagem, das quais você suga, através deste tubo, no prendedor sobre seu pescoço.

O Duque virou o queixo abaixando a cabeça para ver a extremidade do tubo.

— Eficiente e conveniente — disse ele. — Boa engenharia.

Kynes ajoelhou-se, observando o vedamento das pernas.

— Urina e fezes são processados nos bolsões da coxa. — Levantou-se verificando o caimento no pescoço, erguendo uma aba seccionada lá. — No deserto você usa este filtro sobre seu rosto, com este tubo nas narinas e tampões para assegurar um encaixe perfeito. Respire através do filtro sobre a boca, e expire pelo tubo no nariz. Com um traje Fremen em boas condições de funcionamento, não perderá mais que um dedal de umidade por dia — mesmo se for apanhado no Grande Erg.

— Um dedal por dia — repetiu Leto.

Kynes comprimiu o dedo contra a almofada do traje sobre a testa:

— Isto pode roçar um pouco. Se irritá-lo, por favor me diga. Eu poderia ajustar um pouco mais.

— Meus agradecimentos. — O Duque moveu os ombros dentro do traje, enquanto Kynes recuava, percebendo que ficava melhor agora — mais justo e menos irritante.

Kynes voltou-se para Paul.

— Agora vamos dar uma olhada em você, rapaz.

“Um bom homem”, pensou o Duque, “mas terá de aprender a se dirigir a nós no modo conveniente.”

Paul permaneceu passivo enquanto Kynes inspecionava o traje. Fora uma sensação estranha vestir o traje enrugado, com sua superfície escorregadia. Em sua consciência existia o conhecimento absoluto de que nunca antes usara um traje-destilador. E, no entanto, cada movimento, ao ajustar as presilhas adesivas sob a inexperiente orientação de Gurney, lhe parecera natural, instintivo.

Ao apertar o ajuste do peito, para obter o máximo de ação bombeadora a partir do movimento da respiração, sabia o que fazia e por quê. Ao ajustar as presilhas do pescoço e da testa soubera ser necessário tê-las bem apertadas, para evitar esfoladuras por fricção.

Kynes endireitou o corpo recuando com uma expressão intrigada.

— Já usou um traje-destilador antes?

— Esta é a primeira vez.

— Então alguém o ajustou para você?

— Não.

— Suas botas para o deserto estão encaixadas no estilo chinelo, nos calcanhares. Quem lhe disse para fazer desse modo?

— Parecia o modo correto.

— Certamente que é.

Kynes passou a mão pelo rosto, pensando na lenda: — “Ele conhecerá teus caminhos como se neles houvesse nascido.”

— Nós estamos perdendo tempo — disse Leto. Gesticulou para o tóptero que aguardava e tomou a frente, aceitando a saudação do guarda com um aceno. Entrou ajustando o cinto de segurança, verificando controles e instrumentos. O aparelho estalou enquanto os outros subiam a bordo.

Kynes prendia seus cinturões enquanto notava o conforto acolchoado da aeronave — um luxo suave de estofamentos cinza esverdeados, instrumentos brilhantes, e a sensação de ar filtrado e umedecido em seus pulmões enquanto as portas se fechavam e as aberturas de ventilação começavam a zumbir.

“Tão suave”, pensou ele.

— Tudo pronto, senhor! — avisou Halleck.

Leto liberou a energia para as asas, sentindo-as erguer-se e baixar uma, duas vezes. Estavam no ar, dez metros de altura, asas embandeiradas e jatos traseiros impulsionando-os para cima, numa ascensão íngreme.

— Sudeste, sobre a Muralha Escudo — orientou Kynes. — É para onde instruí o seu mestre de areia a concentrar o equipamento.

— Certo.

O Duque inclinou-se em direção à sua escolta, as outras aeronaves assumindo posições de guarda enquanto se dirigiam para sudeste.

— O projeto e a manufatura desses trajes revelam um alto grau de sofisticação — comentou Leto.

— Algum dia eu lhe mostrarei uma fábrica-sietch — respondeu Kynes.

— Eu acharia interessante. Percebi que alguns trajes são manufaturados em cidades de guarnição.

— Cópias inferiores. Qualquer homem de Duna que dê valor a sua pele usa um traje Fremen.

— Que reduzirá sua perda de água a um dedal por dia?

— Adequadamente trajado, com o capuz da testa lacrado, todos os fechos em ordem, sua maior perda de água é através das palmas em suas mãos — explicou Kynes. — Pode usar luvas se não estiver usando as mãos em trabalho delicado, mas a maioria dos Fremen, quando no deserto, esfrega suas mãos com o suco das folhas do arbusto creosoto. Ele inibe a transpiração.

O Duque olhou à esquerda e para baixo, em direção ao panorama acidentado da Muralha Escudo. Abismos de rocha torturada, manchas de amarelo-marrom cruzadas por linhas negras de rompimento de falhas. Era como se alguém houvesse deixado cair essa região do espaço, abandonando-a onde se esmagara.

Cruzaram uma depressão estreita, com um nítido contorno de areia cinzenta espalhando-se para dentro da bacia. Um delta seco delineado de encontro à rocha mais escura.

Kynes recostou-se no assento, pensando na carne gorda de água que sentira por baixo dos trajes-destiladores. Eles usavam cinturões escudos sobre seus mantos, atordoadores de projéteis lentos na cintura, e transmissores de emergência do tamanho de moedas em cordões ao redor do pescoço. Ambos, o Duque e seu filho, carregavam facas em bainhas afiveladas ao redor dos pulsos, e parecendo bem gastas. Pessoas que transmitiam a Kynes uma curiosa combinação de delicadeza e força armada. Havia uma atitude neles completamente diferente dos Harkonnen.

— Quando fizer seu relatório ao imperador sobre a mudança de governo, dirá que nós obedecemos às regras? — indagou Leto, olhando rapidamente para Kynes, depois voltando sua atenção para o curso seguido.

— Os Harkonnen se foram, vocês vieram — disse Kynes laconicamente.

— E está tudo como deveria ser? — insistiu Leto.

Uma tensão momentânea mostrou-se no contrair de um músculo no queixo de Kynes.

— Como planetólogo e juiz da Mudança, sou um servidor direto do Império... meu senhor.

O Duque sorriu friamente.

— Mas nós conhecemos as realidades.

— Eu relembro que Sua Majestade apóia meu trabalho.

— Deveras? E qual é o seu trabalho?

No breve silêncio que se seguiu, Paul pensou: “Ele está forçando Kynes muito precipitadamente.” Olhou para Halleck, mas o menestrel-guerreiro olhava para fora, em direção ao panorama desolado.

Kynes falou de modo duro:

— Obviamente refere-se ao meu trabalho como planetólogo.

— Obviamente.

— Trata-se principalmente de biologia das terras áridas e botânica... algum trabalho geológico de perfuração de solo para obter amostras, e testes. As possibilidades de um planeta inteiro nunca se esgotam.

— Também investigou a especiaria?

Kynes voltou-se, e Paul reparou na linha de severidade sobre a face do homem.

— Uma pergunta singular, meu senhor.

— Tenha em mente, Kynes, que este agora é o meu feudo. Meus métodos diferem daqueles dos Harkonnen. Eu não me importo que você estude a especiaria desde que eu compartilhe de suas descobertas. — Olhou para o planetólogo e indagou: — Os Harkonnen desencorajavam o estudo da especiaria, não?

Kynes correspondeu ao olhar sem responder.

— Pode falar francamente — disse Leto —, sem temer por sua pele.

— A Corte Imperial se encontra de fato muito distante — murmurou Kynes enquanto pensava: “O que espera este invasor? Será que me julga tão tolo a ponto de me colocar ao seu lado?”

O Duque riu, voltando sua atenção para a tarefa de manter a aeronave no curso.

— Percebo um tom amargo em sua voz, senhor. Entramos aqui com nosso grupo de matadores domesticados, hein? E esperamos que perceba imediatamente que somos diferentes dos Harkonnen?

— Já vi a propaganda com que inundaram cada sietch e vila — respondeu Kynes.—  “Ame o bom Duque, seu corpo de...”

— Agora chega! — gritou Halleck inclinando-se para a frente.

Paul pôs a mão no ombro de Halleck.

— Gurney! — advertiu Leto, olhando para trás. — Este homem passou muito tempo sob o governo dos Harkonnen.

Halleck recostou-se novamente no assento.

— Sim.

— Seu homem, Hawat, foi muito sutil — disse Kynes. — Mas seu objetivo era claro.

— Abrirá aquelas bases para nós, então?

Kynes respondeu bruscamente:

— Elas são propriedade de sua Majestade Imperial.

— Mas não estão sendo usadas.

— Elas poderiam ser usadas.

— E Sua Majestade concorda?

Kynes lançou um olhar duro sobre o Duque.

— Arrakis poderia ser um éden se seus governantes olhassem além da mera escavação de especiaria!

“Ele não respondeu à minha pergunta”, pensou o Duque.

“Como pode um planeta se tornar um Éden sem dinheiro?”

— Para que serve o dinheiro, se não compra os serviços de que se necessita?

“Ah, agora sim!”, pensou Leto, dizendo:

— Discutiremos isso em outra ocasião. Agora creio que estamos chegando à borda da Muralha Escudo. Devo manter o mesmo curso?

— O mesmo curso — murmurou Kynes.

Paul olhou pela janela. Abaixo deles o terreno acidentado começava a rebaixar em cristas que se amontoavam em direção a uma planície de rocha nua terminando numa saliência de bordas nítidas. Além da borda, finos crescentes de dunas marchavam em direção ao horizonte, com manchas monótonas aqui e ali indicando a existência de alguma coisa que não areia. Afloramentos de rocha, talvez. No ar tremulante de calor, Paul não podia ter certeza.

— Existem plantas lá embaixo? — indagou Paul.

— Algumas — respondeu Kynes. — Na zona de vida desta latitude, existem principalmente o que chamamos de pequenos ladrões-de-água, adaptados para invadirem um ao outro, em busca de umidade, engolindo os vestígios de orvalho. Algumas partes do deserto pululam com vida, cada variedade aprendeu como sobreviver nestes rigores. Se for apanhado lá, você também terá que imitar esse tipo de vida, ou então morrer.

— Quer dizer roubar água um ao outro? — perguntou Paul.

A idéia lhe parecia uma afronta, e sua voz traía sua emoção.

— Acontece — continuou Kynes —, mas isso não era precisamente o que eu tinha em mente. Como vêem, meu clima exige uma atitude especial com relação à água. Você se torna consciente da água todo o tempo. Não desperdiça nada que contenha umidade.

O Duque pensou: — “... meu clima.”

— Gire dois graus mais ao sul, meu senhor — advertiu Kynes. — Há um vento soprando do oeste.

O Duque assentiu com a cabeça. Já vira os rolos de poeira cor de cobre naquela direção. Inclinou o “tóptero” numa curva, percebendo o modo como as asas dos escoltas refletiam o laranja leitoso da luz refratada pela poeira, ao se virarem para acompanhá-los.

— Isso deve nos colocar além da borda da tempestade — explicou Kynes.

— Aquela areia deve ser perigosa, se você voar dentro dela — comentou Paul. — É verdade que ela corta os metais mais fortes?

— Nesta altitude não é areia, e sim pó — respondeu Kynes. — O perigo reside na falta de visibilidade, turbulência e obstrução das entradas de ar dos motores.

— Veremos mineração de especiaria hoje?

— Muito provável.

Paul recostou-se no assento. Tinha usado suas perguntas e a hiperconsciência para fazer o que sua mãe chamava de “registrar” uma pessoa. Possuía Kynes agora — tom de voz, cada detalhe na face ou gesto. Um dobramento irregular na manga esquerda do manto revelava uma faca numa bainha de punho. A cintura se avolumava estranhamente. Dizia-se que os homens do deserto usavam uma cinta, na qual enfiavam pequenos acessórios.

Talvez as protuberâncias fossem produzidas por tal cinta, certamente não eram de algum cinturão escudo oculto. Um pino de cobre entalhado com uma figura semelhante a uma lebre prendia o manto de Kynes no pescoço. Outro pino menor, de forma semelhante, prendia-se na extremidade do capuz, agora caído sobre os ombros.

Halleck virou-se no assento ao lado de Paul, estendendo a mão para o compartimento traseiro, de onde tirou seu baliset. Kynes observou enquanto Halleck afinava o instrumento, depois voltou sua atenção para a rota percorrida.

— Que gostaria de ouvir, jovem Mestre?

— Você escolhe, Gurney.

Halleck aproximou o ouvido do quadro sonoro, tocou uma corda e cantou suavemente:

 

“Nossos pais comiam maná no deserto,

Nos locais flamejantes onde nascem os torvelinhos.

Senhor, salve-nos daquela terra horrível!

Salve-nos... ohhh, salve-nos

Da terra seca e sedenta.”

 

Kynes olhou para o Duque, dizendo:

— Você viaja com uma guarda bem pequena, meu senhor. São todos eles homens de muito talento?

— Gurney? — Leto sorriu. — Gurney é único. Eu gosto de tê-lo comigo por seus olhos. Seus olhos não deixam escapar quase nada.

O planetólogo franziu as sobrancelhas.

Sem perder o tom ou a rima, Halleck interpôs:

“Pois eu sou como a coruja do deserto Ahh! Como a coruja do deserto!”

Leto estendeu a mão apanhando um microfone do painel de instrumentos, que ativou com o polegar, dizendo :

— Líder para escolta Gamma. Objeto voador às nove horas, setor B. Pode identificá-la?

— É apenas um pássaro — disse Kynes, e acrescentou. — Você tem olhos penetrantes.

O alto-falante do painel estalou, e uma voz se ouviu:

— Escolta Gamma. Objeto examinado sob ampliação total. É um grande pássaro.

Paul olhou na direção indicada, vendo o ponto distante: um ponto em movimento intermitente, e percebeu quão alerta seu pai devia estar. Cada sentido perfeitamente atento.

— Eu não sabia que havia pássaros desse tamanho tão longe, deserto adentro — comentou o Duque.

— Provavelmente era uma águia — explicou Kynes. — Muitas criaturas se adaptaram a este lugar.

O ornitóptero voou sobre uma planície de rocha nua. Paul olhou para baixo, de uma altura de dois mil metros, vendo a sombra enrugada de sua nave e da escolta. A terra embaixo parecia plana, mas as ondulações na sombra revelavam o contrário.

— Alguém já conseguiu escapar do deserto? — indagou o Duque.

A música de Halleck parou. Ele inclinou-se para a frente a fim de ouvir melhor a resposta.

— Não do deserto profundo — disse Kynes. — Homens já caminharam para fora da zona secundária várias vezes. Eles sobreviveram ao cruzá-la através das áreas rochosas, onde os vermes raramente vão.

O timbre na voz de Kynes prendeu a atenção de Paul. Percebeu seus sentidos tornando-se alertas na maneira como haviam sido treinados.

— Ah, os vermes — disse Leto. — Preciso ver um algum dia.

— Pode ver um hoje — respondeu Kynes. — Onde quer que exista especiaria, existirão vermes.

— Sempre? — indagou Halleck.

— Sempre.

— Existe então uma relação entre os vermes e a especiaria?

Kynes voltou-se, e Paul percebeu os lábios contraídos enquanto ele falava.

— Eles defendem areias de especiaria. Cada verme tem um... território. Quanto à especiaria, quem sabe? Os espécimes de vermes que examinamos nos levam a suspeitar de complicadas interações químicas dentro deles. Descobrimos traços de ácido hidroclorídrico nos dutos, formas mais complicadas de ácido em outras partes. Posso dar-lhe uma de minhas monografias a respeito.

— E um escudo não é defesa? — indagou Leto.

— Escudos! — zombou Kynes. — Ative um escudo dentro da zona dos vermes e selará seu destino. Os vermes ignorarão as divisões territoriais e virão de muito longe para atacar o escudo. Nenhum homem usando escudo jamais sobreviveu a tal ataque.

— Como se podem abater os vermes, então?

— Choque elétrico de alta voltagem, aplicado separadamente em cada um dos anéis-segmentos, é o único modo conhecido de matar e preservar um verme inteiro. Eles podem ser atordoados e despedaçados com explosivos, mas cada anel-segmento possui vida própria. Excetuando-se os atômicos, eu não conheço nenhum explosivo suficientemente poderoso para destruir inteiramente um grande verme. Eles são incrivelmente resistentes.

— Por que não foi feito nenhum esforço no sentido de exterminá-los totalmente? — indagou Paul.

— Muito dispendioso. Seria preciso cobrir uma área muito grande.

Paul acomodou-se em seu canto. Seu senso de verdade e sua consciência de tonalidade de voz revelavam-lhe que Kynes estava mentindo e dizendo meias-verdades. Pensou: “Se existe um relacionamento entre os vermes e a especiaria, então matar os vermes destruiria a especiaria.”

— Breve, ninguém terá que caminhar para fora do deserto — explicou Leto. — Colocando-se estes pequenos transmissores no pescoço, o salvamento estará a caminho. Todos os nossos trabalhadores vão usá-los. Estamos instalando um serviço especial de salvamento.

— Muito louvável — disse Kynes.

— Seu tom de voz revela que não concorda — observou Leto.

— Concordar? É claro que eu concordo, mas não vai adiantar muito. A eletricidade estática das tempestades de areia cobre muitos sinais. Os transmissores entram em curto. Isso já foi tentado antes, como deve saber. Arrakis é muito duro com equipamentos. E se há um verme caçando, não lhe sobra muito tempo. Freqüentemente não se tem mais do que quinze ou vinte minutos.

— Qual seria a sua recomendação?

— Pede o meu conselho?

— Como planetólogo, sim.

— E o seguiria?

— Se julgá-lo sensato.

— Muito bem, meu senhor: nunca viaje sozinho.

O Duque voltou sua atenção aos controles.

— Isso é tudo?

— É. Nunca viaje sozinho.

— E se ficar desgarrado durante uma tempestade e for forçado a descer? — indagou Halleck. — Não há alguma coisa que se possa fazer?

— Alguma coisa cobre um campo de possibilidades muito grande.

— O que você faria? — indagou Paul.

Kynes olhou duramente para o rapaz, depois concentrou sua atenção de novo no Duque.

— Eu me lembraria de proteger a integridade de meu traje-destilador. Se estivesse fora da zona dos vermes, ou sobre terreno rochoso, eu ficaria junto da nave. Se estivesse sobre areia aberta, me afastaria da nave o mais rápido que pudesse. Uns mil metros seriam o suficiente. Então me esconderia debaixo de meu manto. Um verme pegaria a nave, mas poderia deixar de me perceber.

— E então o quê? — indagou Halleck.

Kynes deu de ombros.

— Esperaria que o verme fosse embora.

— Isso é tudo? — indagou Paul.

— Depois que o verme se fosse, tentaria sair caminhando. Deve-se andar de modo suave, evitar areias-tambor ou bacias de maré-poeira, dirigir-se para a área rochosa mais próxima. Existem muitas áreas assim. Pode-se conseguir.

— Areias-tambor? — indagou Halleck.

— Uma forma de compactação da areia. O mais leve passo a faz ressoar. Isto sempre atrai a atenção dos vermes.

— E uma bacia de maré-poeira? — perguntou Leto.

— São certas depressões no deserto que ficaram cheias de pó ao longo dos séculos. Algumas são tão vastas a ponto de possuírem correntes e marés. Todas engolirão o descuidado que pisar nelas.

Halleck recostou-se, dedilhando novamente o baliset. Daí a pouco ele cantou:

 

“Os animais selvagens do deserto caçam por lá, esperando os inocentes passarem.

Ohh não provoques os deuses do deserto, ou terás um epitáfio solitário.

Os perigos do...”

 

Interrompeu a canção inclinando-se para a frente.

— Nuvem de poeira adiante, senhor.

— Estou vendo, Gurney.

— Isso é o que procuramos — disse Kynes.

Paul esticou-se no assento para olhar, vendo uma nuvem ondulada de cor amarela, agarrando-se à superfície do deserto, uns trinta quilômetros adiante.

— Um de nossos tratores-fábricas — disse Kynes. — Está sobre a superfície, o que indica se encontrar colhendo especiaria. A nuvem é areia sendo expelida, depois que a especiaria foi centrifugamente removida. Não há outra nuvem exatamente igual àquela.

— Aeronave acima dela — disse Leto.

— Estou vendo dois... três... quatro vigias. Estão observando para detectar sinal de verme.

— Sinal de verme? — indagou o Duque.

— Uma onda de areia movendo-se em direção ao trator. Eles devem ter sondas sísmicas na superfície, também. Os vermes às vezes viajam muito profundos, o que dificulta que a onda se mostre. — Kynes observou o céu ao redor. — Devia haver um transporta-tudo por aqui, mas não consigo vê-lo.

— O verme sempre aparece, hein? — indagou Halleck.

— Sempre.

Paul inclinou-se, tocando o ombro de Kynes.

— Qual é o tamanho de cada área exigida por um verme?

Kynes franziu a testa. A criança continua a fazer perguntas de adulto.

— Isto depende do tamanho do verme.

— Qual é a variação? — perguntou Leto.

— Os grandes podem controlar trezentos ou quatrocentos quilômetros quadrados. Os pequenos... — parou enquanto o Duque pisava nos freios dos jatos. A aeronave sacudiu-se enquanto os casulos dos jatos na cauda sussurravam, silenciando. Asas curtas alongaram-se, colhendo o ar. A nave tornou-se um verdadeiro “tóptero” enquanto o Duque fazia uma curva, mantendo as asas numa batida suave, e apontando com sua mão esquerda para o leste, além da fábrica-trator.

— Aquilo lá é um sinal de verme?

Kynes inclinou-se sobre o Duque para olhar na direção indicada.

Halleck e Paul se reuniram, olhando na mesma direção, e este percebeu que a escolta, apanhada de surpresa pela manobra súbita, se adiantara, e agora iniciava uma curva de retorno. O trator-fábrica encontrava-se ainda a três quilômetros de distância.

Aonde o Duque apontara, as dunas em forma de crescente lançavam sombras onduladas na direção do horizonte, e estendendo-se ao longo delas, como uma curva de nível esticada na distância, vinha um alongado monte em movimento, uma crista de areia. Paul lembrou-se da turbulência causada por um grande peixe nadando logo abaixo da superfície.

— Verme — disse Kynes. — Um dos grandes. — Inclinou-se para trás, pegando o microfone do painel e acionando uma nova freqüência no seletor. Olhando para a carta quadriculada, colocada num tambor acima de suas cabeças, ele chamou: — Chamando trator em Delta Ajax Niner, aviso sinal de verme. Trator em Delta Ajax Niner, aviso sinal de verme. Confirme recebimento, por favor.

O alto-falante do painel emitiu estalidos de estática, depois uma voz:

— Quem chama Delta Ajax Niner? Câmbio.

— Eles parecem muito calmos — comentou Halleck.

Kynes falou no microfone.

— Vôo não registrado, a norte e a leste de vocês, aproximadamente três quilômetros. Sinal de verme em curso de colisão com sua posição, tempo de contato estimado em vinte e cinco minutos.

Outra voz soou no alto-falante:

— Aqui é o controle-localizador. Observação confirmada. Fiquem de prontidão para o cálculo de contato. — Houve uma pausa e então: — Contato em vinte e seis minutos, não mais. Foi uma estimativa precisa. Quem está no vôo sem registro? Câmbio.

Halleck soltara seu cinturão de segurança e se colocara na frente, entre Kynes e o Duque.

— Esta é a freqüência regular de trabalho, Kynes?

— Sim, por quê?

— Quem está ouvindo?

— Apenas as equipes de trabalho nesta área. Reduz a interferência.

Novamente o rádio estalou e então:

— Aqui é Delta Ajax Niner. Quem recebe o crédito de bônus por esta localização? Câmbio.

Halleck olhou para o Duque.

Kynes explicou:

— Existe um bônus, calculado com base no valor da carga de especiaria, para quem quer que dê o primeiro aviso de verme. Eles querem saber...

— Diga-lhes quem avistou primeiro aquele verme disse Halleck.

O Duque assentiu.

Kynes hesitou, depois ergueu o microfone.

— Crédito de localização para o Duque Leto Atreides. O Duque Leto Atreides. Câmbio.

A voz do alto-falante era monótona e parcialmente distorcida por uma descarga de estática.

— Recebemos, obrigado.

— Agora diga a eles para dividirem o bônus entre si — ordenou Halleck. — Diga-lhes que é o desejo do Duque.

Kynes respirou fundo e então:

— É o desejo do Duque que vocês dividam o bônus entre os membros da tripulação. Receberam-me? Câmbio.

— Recebemos. Obrigado.

Leto explicou:

— Esqueci-me de mencionar que Gurney é um relações-públicas muito talentoso.

Kynes olhou intrigado para Halleck.

— Isso fará com que os homens saibam que o Duque se preocupa com sua segurança — disse Halleck. — A notícia se espalhará. Está na freqüência de trabalho da área, é improvável que os agentes Harkonnen ouçam. — Olhou na direção da cobertura aérea. — Além disso, somos uma força bem poderosa. Foi um bom risco.

O Duque inclinou a aeronave em direção à nuvem de areia em erupção da fábrica-móvel.

— O que está acontecendo agora?

— Existe uma asa transporta-tudo em algum lugar aqui perto — disse Kynes. — O transporta-tudo virá e levará a fábrica.

— E se o transporta-tudo estiver danificado? — indagou Halleck.

— Algum equipamento é sempre perdido. Aproxime-se do trator, meu senhor, vai achar isso interessante.

O Duque olhou carrancudo, ocupado com os controles enquanto se aproximavam do ar turbulento sobre o trator.

Paul olhou para baixo, vendo a areia ainda esguichando do monstro de metal e plástico, agora diretamente abaixo. Parecia um imenso besouro azul-bronze, com muitas esteiras largas montadas na extremidade, com braços estendidos ao redor. Ele viu um focinho, em forma de gigantesco funil invertido, enfiado na areia escura adiante.

— Um rico leito de especiaria, a julgar pela cor — disse Kynes. — Eles continuarão trabalhando até o último minuto.

O Duque alimentou as asas com mais força, enrijeceu-as para uma descida brusca e nivelou abaixo, planando num círculo acima do trator. Uma olhada à esquerda e à direita mostrou sua escolta mantendo altura e circulando acima.

Paul observou a nuvem amarela esguichando dos canos de ventilação do trator, olhou para o deserto, na direção da trilha do verme que se aproximava.

— Não deveríamos ouvi-los chamando o transporta-tudo? — indagou Halleck.

— Eles geralmente operam numa freqüência diferente.

— Não deveriam ter dois transporta-tudo de prontidão para cada trator? — indagou Leto. — Deve haver vinte e seis homens naquela máquina lá embaixo, para não mencionar o custo do equipamento.

Kynes respondeu:

— Nós não temos bastante aqui...

Parou no meio da frase ao ouvir uma voz irada no altofalante:

— Algum de vocês pode ver a asa? Não está respondendo.

Um ruído desconexo se seguiu, afagou-se num abrupto sinal de superposição, depois silêncio. A primeira voz falou de novo:

— Reportem pelos números! Câmbio.

— Aqui é o controle localizador. A última vez que a vi, a asa estava muito alta, e circulando para noroeste. Não posso vê-la agora. Câmbio.

— Localizador Um: Negativo. Câmbio.

— Localizador Dois: Negativo. Câmbio.

— Localizador Três: Negativo. Câmbio.

Silêncio.

O Duque olhou para baixo. A sombra de sua própria aeronave passava agora sobre o trator.

— Somente quatro localizadores. Isso é correto?

— Correto — respondeu Kynes.

— Existem cinco em nosso grupo. Nossas aeronaves são maiores. Podemos carregar mais três pessoas. Aqueles localizadores devem poder levar mais dois em cada um.

Paul fez a aritmética mental.

— Vão sobrar três homens.

— Por que eles não colocam dois transporta-tudo para cada trator? — reclamou Leto.

— Não há equipamento extra em número suficiente — explicou Kynes.

— Maior razão para proteger o que temos!

— Para onde pode ter ido aquele transporta-tudo? — indagou Halleck.

— Pode ter sido forçado a pousar em algum lugar fora da vista — respondeu Kynes.

O Duque pegou o microfone, hesitou com o polegar sobre o botão.

— Como eles podem perder o transporta-tudo de vista?

— Eles mantêm a atenção no solo, procurando sinais de vermes — explicou Kynes.

O Duque apertou o botão, dizendo:

— Aqui é o seu Duque. Estamos descendo para pegar a tripulação do Delta Ajax Niner. Todos os localizadores devem nos seguir. Localizadores devem pousar no lado leste. Desceremos no oeste. Câmbio. — Estendeu a mão para baixo, acionando sua própria freqüência de comando.

Repetiu a ordem para a escolta, entregou o microfone de novo para Kynes.

Kynes colocou o aparelho na freqüência de trabalho e uma voz gritou no alto-falante:

— ... uma carga quase completa de especiaria! Temos uma carga quase completa! Não podemos deixá-la para aquele maldito verme! Câmbio!

— Dane-se a especiaria — retrucou Leto, furioso. Apanhou de volta o microfone, dizendo: — Poderemos sempre pegar mais especiaria. Há lugar em nossas aeronaves para levar todos, com exceção de três de vocês. Tirem a sorte ou decidam do modo que preferirem quem deve ir. Mas vocês vão e isto é uma ordem! — Colocou o microfone de volta nas mãos de Kynes com violência, e murmurou um “desculpe” quando Kynes sacudiu um dedo ferido.

— Quanto tempo? — indagou Paul.

— Nove minutos — respondeu Kynes.

O Duque considerou:

— Esta aeronave tem mais potência que as outras. Se decolarmos com força dos jatos, com as asas a três quartos, poderíamos colocar mais um homem a bordo.

— Essa areia é mole — disse Kynes.

— Com quatro homens a mais durante uma decolagem a jato, nós poderemos perder as asas, senhor — advertiu Halleck.

— Não nesta nave — respondeu Leto. Voltou sua atenção aos controles enquanto o “tóptero” planava ao lado do trator. As asas inclinaram-se para cima, freando o “tóptero”, que deslizou parando a vinte metros da fábrica.

O trator encontrava-se silencioso agora, nenhuma areia saía de seus ventiladores, e apenas um fraco troar mecânico ressoava de seu interior, tornando-se mais audível quando o Duque abriu a porta do seu lado.

Imediatamente suas narinas foram atingidas pelo odor de canela, forte e penetrante.

Com um forte bater de asas, a aeronave localizadora planou em direção à areia do outro lado da grande máquina. A escolta do Duque desceu para pousar em perfeito alinhamento com seu “ornitóptero”.

Paul, olhando para a fábrica, percebia como todos os “tópteros” pareciam minúsculos diante dela. Mosquitos diante de um enorme besouro.

— Gurney, você e Paul joguem fora o assento traseiro — instruiu o Duque. Manualmente ele ajustou as asas para três quartos, travou o ângulo e verificou os controles das nacelas dos jatos. — Por que diabos eles não estão saindo daquela máquina?

— Eles esperam que o transporta-tudo apareça — disse Kynes.

— Eles ainda têm alguns minutos. — Olhou para o leste.

Todos olharam na mesma direção, sem ver sinal do verme, todavia, permanecia no ar um sentimento pesado, de ansiedade.

O Duque pegou o microfone, acionando sua freqüência de comando.

— Dois de vocês joguem fora seus geradores de escudo. Pelos números. Vocês podem carregar mais um homem desse modo. Não vamos deixar ninguém para aquele monstro. Depois acionou novamente a freqüência de trabalho, e gritou:

— Muito bem, vocês em Delta Ajax Niner! Todos para fora! Agora! Esta é uma ordem de seu Duque! Depressa, ou eu cortarei esse trator em pedaços com uma arma laser!

Uma escotilha abriu-se na dianteira da fábrica, outra na traseira e mais uma no topo. Homens saíram aos trambolhões, escorregando e se arrastando para a areia. Um homem alto, num manto de trabalho remendado, foi o último a emergir. Ele saltou para uma das esteiras e daí para a areia.

O Duque recolocou o microfone no painel, e saiu para o degrau da asa, gritando:

— Dois homens em cada um dos localizadores.

O homem de manto remendado começou a separar sua tripulação em pares, empurrando-os em direção às aeronaves que esperavam do outro lado.

— Quatro para cá! — gritou o Duque. — Mais quatro naquela nave lá atrás! — Apontou para um dos “tópteros” de escolta, logo atrás. Os guardas acabavam de arrastar o gerador de escudo para fora. — Quatro naquela outra! — Apontou para outra escolta que lançara fora seu gerador. — Três homens em cada uma das outras aeronaves! Corram, seus cães da areia!

O homem alto terminou de dirigir seus companheiros, e veio caminhando com dificuldade através da areia, seguido por três homens.

— Eu ouço o verme, mas não consigo vê-la — disse Kynes.

Os outros ouviram, então, um resvalar abrasivo, distante e se tornando mais alto a cada momento.

— Maldito modo de operar — murmurou o Duque.

Aeronaves começaram a bater as asas, saltando da areia à volta deles. Leto lembrou-se de uma ocasião, nas selvas de seu planeta natal, quando emergira subitamente numa clareira e vira pássaros carnívoros erguerem-se em debandada da carcaça de um búfalo.

Os trabalhadores da especiaria chegaram ao lado do “tóptero” e começaram a subir a bordo, por trás do Duque. Halleck ajudava, arrastando-os para dentro.

— Entrem, rapazes, depressa!

Paul, empurrado contra um canto pelos homens suarentos, sentiu o odor do medo, percebeu que dois dos homens tinham péssimos ajustes no pescoço de seus trajes-destiladores. Arquivou a informação em sua memória para uso futuro. Seu pai teria que ordenar disciplina mais rigorosa quanto aos trajes-destiladores. Os homens tendem ao relaxamento se você não vigia certas coisas.

O último homem penetrou ofegante na traseira, dizendo:

— O verme! Está quase em cima de nós! Decole!

O Duque acomodou-se em seu assento, franziu a testa dizendo:

— Ainda temos quase três minutos, segundo estimativa de contato original. Certo, Kynes? — Fechou a porta, verificando a tranca.

— Quase exato, meu senhor — respondeu Kynes e pensou: “Um homem frio, este duque.”

— Tudo seguro aqui, senhor — avisou Halleck.

Leto fez um sinal de concordância observando o último de seus escoltas decolar. Ajustou a ignição, olhou uma vez mais para as asas e os instrumentos e acionou a seqüência dos jatos.

A decolagem comprimiu Leto e Kynes em seus assentos, pressionando as pessoas na traseira. Kynes observava o modo como Leto manuseava os controles — suave, seguro. O “tóptero” encontrava-se no ar agora, e o Duque verificava os instrumentos, olhando à esquerda e à direita, para as asas.

— Está muito pesada, senhor — disse Halleck.

— Bem dentro das tolerâncias desta nave — respondeu ele. — Você não pensa realmente que eu arriscaria esta carga, pensa, Gurney?

Halleck sorriu.

— Nem um pouco, senhor.

O Duque inclinou a aeronave numa curva aberta, elevando-se acima do trator.

Paul, espremido num canto junto da janela, olhou para a máquina silenciosa sobre a areia. O sinal de verme interrompera-se a quatrocentos metros do trator, e agora parecia haver uma turbulência na areia ao redor da fábrica.

— O verme se encontra debaixo do trator — disse Kynes. — Estão a ponto de testemunhar algo que poucos já viram.

Montes de areia produziam sombras em torno do trator, agora.

A grande máquina começou a se inclinar para a direita. Um imenso redemoinho de areia formava-se nessa direção. Movia-se cada vez mais rápido, enquanto a areia e o pó enchiam o ar por centenas de metros ao redor.

E então eles viram!

Um enorme orifício emergiu da areia. Luz do sol faiscando dos brilhantes raios brancos dentro dele. O diâmetro do orifício era pelo menos duas vezes o comprimento do trator, calculou Paul. Observou enquanto a máquina escorregava para dentro daquela abertura escura, numa onda de areia e pó. O orifício recuou.

— Deuses, que monstro! — murmurou um homem ao lado de Paul.

— Pegou toda a nossa famosa especiaria — resmungou outro.

— Alguém vai pagar por isso — disse o Duque. — Prometo-lhe isso.

Pelo tom da voz de seu pai, Paul percebia sua raiva profunda, e descobriu que a compartilhava, isto fora um desperdício criminoso.

No silêncio que se seguiu, eles ouviram a voz de Kynes.

— Abençoado o Produtor e Sua água — murmurava Kynes. — Abençoada Sua chegada e Sua partida. Que Sua passagem possa purificar o mundo. Que Ele possa manter o mundo para Seu povo.

— Que é que está dizendo? — indagou o Duque.

Kynes permaneceu silencioso.

Paul olhou para os homens apinhados à sua volta. Eles olhavam cheios de temor para Kynes. Um deles sussurrou:

— Liet.

Kynes voltou-se, carrancudo. O homem se encolheu, intimidado. Outro começou a tossir. Uma tosse seca, áspera. Daí a pouco ele balbuciou ofegante.

— Maldito seja aquele buraco infernal.

O alto nativo de Duna, que fora o último a deixar o tratar, disse:

— Cale-se, Coss. Você não tem nada pior do que sua tosse.

Ele se remexeu entre os homens até conseguir olhar o Duque pelas costas.

— É o Duque Leto, eu presumo. Ao senhor nós damos graças por nossas vidas. Estávamos prontos a acabar lá, até que o senhor chegou.

— Calma, homem, deixe o Duque pilotar esta nave — advertiu Halleck.

Paul olhou para Halleck. Ele também vira os sinais de tensão no rosto de seu pai. Caminha-se com cuidado quando o Duque está furioso.

Leto começou a retirar seu “tóptero” do grande círculo em que o colocara, mas interrompeu a manobra ante um novo sinal de movimento na areia. O verme se retirara para as profundezas e agora, próximo ao ponto onde estivera o trator, duas minúsculas figuras podiam ser vistas, movendo-se para o norte, afastando-se da depressão da areia. Pareciam deslizar sobre a superfície, sem levantar qualquer pó que marcasse a passagem deles.

— Quem está lá embaixo? — indagou Leto.

— Dois sujeitos que vieram conosco passear, sor — respondeu o alto homem de Duna.

— Por que não me disse nada a respeito deles?

— Foi um risco que eles aceitaram, sor.

— Meu senhor — disse Kynes —, eles sabem que não se pode fazer nada por homens apanhados no deserto em território de verme.

— Mandaremos uma nave da base vir buscá-los! — afirmou Leto.

— Como quiser, meu senhor — continuou Kynes. — Mas é provável que quando a aeronave aqui chegar não haja nada para ser salvo.

— Mandaremos a nave, de qualquer modo.

— Eles estavam bem junto ao ponto de onde o verme saiu — comentou Paul. — Como puderam escapar?

— Os lados da cratera desmoronam e tornam as distâncias ilusórias — explicou Kynes.

— Desperdiça combustível ficando aqui, senhor — arriscou Halleck.

— Certo, Gurney.

O Duque virou a aeronave na direção da Muralha Escudo.

Seus escoltas desceram de seus altos círculos, tomando posições acima e em ambos os lados.

Paul pensava no que Kynes e o homem de Duna haviam dito.

Sentira meias-verdades e mentiras completas. Os homens na areia tinham deslizado sobre a superfície com muita segurança, movendo-se de um modo claramente calculado para evitar que o verme fosse atraído de suas profundezas.

“Fremen!”, pensou. “Quem mais pareceria tão seguro de si na areia? Quem mais seria deixado para trás sem preocupações, como algo natural — por que não estariam realmente em perigo? Eles sabem como viver aqui! Sabem como enganar os vermes!”

— O que aqueles Fremen faziam no trator? — indagou.

Kynes voltou-se rapidamente.

O homem alto de Duna olhava de olhos arregalados para Paul azul-dentro-de-azul, sem nenhum traço de branco.

— Quem é este rapaz? — indagou.

Halleck se moveu, colocando-se entre o homem e Paul.

— Este é Paul Atreides, o herdeiro ducal.

— Por que ele diz que havia Fremen em nosso roncador?

— Eles se ajustavam à descrição — insistiu Paul.

Kynes falou aborrecido.

— Não se pode reconhecer Fremen apenas olhando para eles! — Olhou para o homem. — Você! Quem eram aqueles homens?

— Amigos de um dos outros. Apenas amigos de uma vila, que desejavam ver as areias de especiaria.

Kynes voltou as costas, resmungando:

— Fremen!

Lembrava-se das palavras da lenda: “O Lisan al-Gaib verá através de todos os subterfúgios.”

— Eles devem estar mortos agora, sor, não devemos falar deles desrespeitosamente.

Paul ouvia a falsidade nas vozes, sentira a ameaça que trouxera Halleck, instintivamente, para uma posição defensiva.

Falou secamente:

— Um lugar terrível para morrerem.

Kynes disse sem se voltar:

— Quando Deus ordena a uma criatura que morra num lugar determinado, Ele faz com que a vontade dessa criatura leve-a para aquele lugar.

Leto olhou duramente para Kynes.

E Kynes devolveu o olhar, mas sentindo-se perturbado por um fato que observara aqui: “Este Duque preocupa-se mais com seus homens do que com a especiaria. Ele arriscou sua própria vida, e a de seu filho, para resgatar aqueles homens. Aceitou a perda daquele trator de especiaria com um simples gesto. A ameaça sobre as vidas dos homens, contudo, o deixou furioso. Um líder como este comandará uma lealdade fanática. Será muito difícil derrotá-la.”

Contra sua própria vontade e todos os julgamentos prévios, Kynes admitiu para si mesmo: “Gosto desse Duque.”

 

Grandeza é uma experiência transitória. Nunca é consistente. Ela depende, em parte, da imaginação criadora de mitos da humanidade. A pessoa que experimenta a grandeza deve refletir a respeito do mito que encarna. Deve refletir sobre aquilo que nela se projeta. E deve possuir forte senso do sarcástico. Isso é o que a separa da crença em sua própria pretensão. O sarcasmo é o que lhe permitirá mover-se dentro de si mesma. Sem esta qualidade, até mesmo a grandeza ocasional será suficiente para destruir um homem.

 

— de Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

No salão de jantar da grande casa Arrakeen, as lâmpadas suspensoras brilhavam contra o crepúsculo vespertino, lançando seu brilho amarelado sobre a cabeça do touro negro com seus chifres sangrentos e sobre a pintura do Velho Duque, em escuro óleo lustroso.

Abaixo desses talismãs, linho branco reluzia, ao redor dos reflexos na prataria polida dos Atreides, toda colocada em arranjos precisos ao redor da grande mesa — pequenos arquipélagos de utensílios à espera, ao lado dos copos de cristal, cada conjunto disposto diante de um pesado assento de madeira. O clássico candelabro central permanecia apagado, sua corrente de sustentação torcendo-se para cima em direção às sombras onde se ocultava o mecanismo farejador de venenos.

Parando na porta para inspecionar o arranjo, o Duque pensou a respeito do farejador, e do que ele significava em sua sociedade.

“Todo um padrão. Podemos ser sondados através de nossa linguagem — as variações precisas e delicadas nos modos de administrar a morte traiçoeira. Irá alguém tentar chaumurky esta noite — o veneno na bebida? Ou será chaumas — veneno na comida?”

Sacudiu a cabeça.

Ao lado de cada prato colocara-se uma jarra d'água. Ao longo dessa mesa havia água suficiente, estimou Leto, para sustentar uma família pobre de Arrakeen por mais de um ano.

Flanqueando a porta havia duas largas pias de lajotas verdes e amarelas. Cada uma com seu suporte para toalhas. Era costume, explicara a governanta, que os convidados, ao entrarem, mergulhassem suas mãos cerimoniosamente na pia, derramando vários copos de água sobre o piso, secando suas mãos numa das toalhas que depois era lançada sobre a poça que crescia junto à porta.

Depois do jantar, mendigos se reuniriam do lado de fora para levar a água espremida das toalhas.

“Bem típico de um feudo Harkonnen. Cada degradação do espírito humano que possa ser concebida.” Respirou fundo, sentindo o ódio apertar seu estômago.

— Esse costume termina neste momento — murmurara.

Viu uma serviçal, uma das velhas ossudas que a governanta recomendara, observando da porta da cozinha à sua frente. Ele a chamou com a mão erguida. Ela moveu-se para fora das sombras, dando a volta apressada ao redor da mesa. Notou a face ressequida, os olhos de azul-dentro-de-azul.

— O que o meu senhor deseja? — Mantinha a cabeça baixa, os olhos encobertos.

Ele gesticulou:

— Mande que estas pias e toalhas sejam retiradas.

— Mas, nobre senhor... — Ela olhou para cima, de boca aberta.

— Eu conheço o costume! — ralhou ele. — Coloque estas pias na porta da frente. Enquanto estivermos jantando, e até que terminemos, cada mendigo poderá apanhar um copo cheio de água. Entendido?

A face enrugada exibiu emoções mutáveis: desapontamento, raiva.

Subitamente Leto percebeu que a mulher devia ter planejado vender a água espremida das toalhas pisadas, conseguindo alguns cobres dos desgraçados que se reuniam junto à porta. Talvez isto também fosse um costume.

Seu rosto tornou-se sombrio e ele resmungou:

— Vou postar um guarda para garantir que minhas ordens sejam cumpridas.

Virou-se, caminhando de volta para a passagem do Grande Salão. Memórias rolavam em sua mente, como os murmúrios da velha. Lembrava-se de água em espaço aberto e ondas — dias de relva, não de areia —, verões deslumbrantes, que haviam passado como folhas num vento de tormenta.

Tudo perdido.

“Estou ficando velho”, pensou. “Senti a mão fria de minha mortalidade. E no quê? Na cobiça de uma velha.”

No Grande Salão, Lady Jessica era o centro de um grupo variado defronte à lareira. Um fogo estalava, lançando ondulações de luz laranja sobre as jóias e rendas, sobre os tecidos caros. Reconheceu em meio ao grupo um fabricante de trajes-destiladores de Carthag, um importador de equipamentos eletrônicos, um fornecedor de água, cuja mansão de veraneio situava-se junto de sua fábrica, na calota polar, um representante do Banco da Corporação (esguio e fechado), um vendedor de peças sobressalentes para equipamentos de mineração, e finalmente uma mulher magra, de rosto cruel, cujo serviço de acompanhante para visitantes vindos de fora do planeta era, reconhecidamente, uma cobertura para diversas operações de chantagem, contrabando e espionagem.

A maioria das mulheres no salão parecia ter sido escolhida pelo tipo específico — decorativas, selecionadas, uma curiosa amostra de sensualidade intocável.

Mesmo sem sua condição de anfitriã, Jessica teria dominado o grupo, pensou Leto. Ela não usava jóias e escolhera cores cálidas — um longo vestido, quase da cor do fogo na lareira, com uma fita marrom, cor de terra, envolvendo seus cabelos ruivos.

Percebia que ela fizera isso para tentá-lo sutilmente, numa resposta à recente atitude de frieza. Tinha consciência de que ele a apreciava mais quando usava esses tons, vendo-a num ondular de cores quentes.

Nas proximidades, mais como um líder que um membro do grupo, colocava-se Duncan Idaho, vestido num cintilante uniforme, face inescrutável, com o cabelo negro encaracolado muito bem penteado. Fora convocado de volta do convívio com os Fremen, e recebera suas ordens de Hawat: — “Sob o pretexto de guardá-la, você manterá Lady Jessica sob constante vigilância.”

Leto olhou ao longo da sala.

Lá estava Paul num canto, cercado por um bajulante grupo de jovens riquezas de Arrakeen, enquanto três oficiais da Tropa da Casa faziam contraste no grupo. O Duque reparou particularmente nas mulheres mais jovens. Que conquistas um herdeiro ducal não faria! Mas Paul tratava a todas igualmente, com seu ar de nobreza reservada.

“Ele usará bem o título”, pensou o Duque, e percebeu, com um súbito calafrio, que esse fora outro pensamento mórbido.

Paul percebeu seu pai na porta e evitou seu olhar. Observou os grupos de convidados, as mãos cobertas de jóias segurando bebidas (e as discretas inspeções com minúsculos farejadores remotos).

Vendo todas as faces que falavam animadamente, e sentindo-se repelido por elas. Eram todas como máscaras baratas, presas sobre pensamentos corrompidos — vozes tagarelando para encobrir o profundo silêncio interior.

“Estou amargurado”, pensou ele, e imaginou o que Gurney não diria a respeito.

Conhecia a fonte de sua depressão. Não quisera vir a essa festa, mas seu pai fora inflexível:

— Você tem um lugar e uma posição para manter, já está na idade disso. Você já é quase um homem.

Paul observou seu pai sair da porta, inspecionar a sala, e então avançar para o grupo em torno de Jessica.

Quando Leto se aproximou, o fornecedor de água estava indagando:

— É verdade que o Duque vai instalar controle climático?

Atrás dele o Duque respondeu:

— Ainda não fomos tão longe em nossos planos, senhor.

O homem se voltou, revelando um rosto arredondado e melífluo, fortemente bronzeado.

— Ahh! o Duque! Sentimos sua falta.

Leto olhou para Jessica. “Uma coisa que precisava ser feita.”

Voltou sua atenção para o comerciante de água, e explicou o que ordenara com relação às pias de lavagem, acrescentando:

— No que me concerne, o velho costume termina aqui.

— Trata-se de uma ordem ducal? — indagou o homem.

— Deixo isto para sua... ah... consciência — respondeu Leto, voltando-se ao perceber a chegada de Kynes.

Uma das mulheres comentou:

— Acho que é um gesto muito generoso. Dar água para os... — Alguém fez com que ela se calasse.

Leto observava Kynes, notando que o planetólogo usava um uniforme marrom-escuro em estilo antigo, com dragonas de Servo Civil Imperial, e uma pequena gota dourada, indicadora de posto, no colarinho.

O comerciante de água indagou, com fúria na voz.

— O Duque está criticando o nosso costume?

— Este costume acaba de ser mudado — disse Leto. Acenou com a cabeça para Kynes e notou a preocupação no rosto de Jessica, pensando: “Um olhar de censura não a caracteriza muito, mas aumentará os rumores de discórdia entre nós dois.”

— Com a permissão do Duque — insistiu o fornecedor de água —, eu gostaria de indagar mais a respeito de costumes.

Leto notou o súbito tom oleoso na voz do homem, percebeu o silêncio de expectativa do grupo, o modo como as cabeças começavam a se voltar em direção a eles, por toda a sala.

— Já não é quase hora do jantar? — indagou Jessica.

— Mas nosso convidado tem algumas perguntas — disse Leto, encarando o fornecedor de água. Via um homem de rosto redondo e grandes olhos, com lábios grossos que o faziam lembrar-se do memorando de Hawat: “Esse fornecedor de água é um homem a quem devemos vigiar — Lingar Bewt, lembre-se do nome. Os Harkonnen o usaram, mas nunca chegaram a controlá-lo inteiramente.

— Costumes com relação à água são tão interessantes dizia Bewt com um sorriso. — Sinto-me curioso a respeito do que pretende fazer quanto à estufa ligada a esta casa. Pretende continuar a pavoneá-la na cara das pessoas... meu senhor?

Leto conteve seu ódio, observando o homem. Pensamentos atravessavam rapidamente a sua mente. Era necessário ter coragem para desafiá-lo em seu próprio castelo ducal, principalmente quando possuía a própria assinatura de Bewt sobre um contrato de fidelidade. A ação exigia, igualmente, a consciência de um certo poder pessoal. Água de fato era uma força nesse lugar. Se as instalações fornecedoras de água fossem minadas, por exemplo, prontas para serem destruídas mediante um sinal... O homem parecia capaz de tal coisa. Destruição das instalações de água poderia muito bem destruir Arrakis. Essa devia ter sido a ameaça que Bewt mantivera sobre os Harkonnen.

— Meu senhor, o Duque e eu temos outros planos para a nossa estufa — disse Jessica. Ela sorriu para Leto. — Nós pretendemos mantê-la, certamente, mas somente como um símbolo de confiança para o povo de Arrakis. É nosso sonho que um dia o clima de Arrakis possa ser suficientemente modificado para que plantas cresçam por toda parte aqui.

“Deus a abençoe!”, pensou Leto. “Que o nosso fornecedor de água rumine isso.”

— Seu interesse em água e controle de clima é óbvio — disse ele. — Mas devo aconselhá-lo a diversificar seus negócios. Um dia, a água não será um bem tão precioso em Arrakis.

“Hawat deve redobrar seus esforços para se infiltrar na organização deste Bewt. E nós devemos iniciar a construção de instalações de fornecimento de água sobressalente imediatamente. Nenhum homem vai segurar uma espada sobre minha cabeça!”, pensou o Duque.

Bewt assentiu, o sorriso vinda em seu rosto. — Um sonho louvável, meu senhor. — E se afastou.

A atenção de Leto foi despertada pela expressão no rosto de Kynes. O homem fitava Jessica extasiado — como um apaixonado, ou uma pessoa em transe religioso.

Os pensamentos de Kynes estavam dominados, afinal, pelas palavras da profecia. “E eles compartilharão teu sonho mais precioso.” Falou diretamente para Jessica:

— Você traz o encurtamento do caminho?

— Ah! Dr. Kynes — disse o fornecedor de água. — Chegando de suas caminhadas com seus grupos de Fremen. Que gentileza sua ter vindo.

Kynes olhou de modo inescrutável para Bewt, dizendo:

— Costuma-se dizer, lá no deserto, que a posse de uma grande quantidade de água pode levar um homem a um descuido fatal.

— Eles têm muitos ditados estranhos lá no deserto — respondeu Bewt, sua voz revelando apreensão.

Jessica aproximou-se de Leto, escorregando a mão por sobre o braço dele, para conseguir apoio e se acalmar. Kynes dissera : “... o encurtamento do caminho.” No velho idioma, esta frase traduzia-se como “Kwisatz Haderach”. A curiosa pergunta do planetólogo não fora percebida pelos outros, e agora Kynes se curvava junto a uma mulher, ouvindo um galanteio em voz baixa.

“Kwisatz Haderach”, pensava Jessica. “Será que nossa Missionária Protetora também plantou esta lenda por aqui?” O pensamento trazia-lhe uma nova esperança para Paul. “Ele pode ser o Kwisatz Haderach. Ele pode ser.”

O representante do Banco da Corporação iniciara uma conversa com o comerciante de água, e a voz de Bewt se ergueu acima do rumor das conversas:

— Muitas pessoas já tentaram mudar Arrakis.

O Duque percebeu como as palavras pareceram ferir Kynes, fazendo-o erguer-se e abandonar o flerte com a mulher.

No súbito silêncio, um membro das tropas da casa, em uniforme de infantaria, aproximou-se de Leto por trás, dizendo:

— O jantar está servido, meu senhor.

O Duque dirigiu um olhar indagador para Jessica.

— É costume aqui que anfitrião e anfitriã sigam seus convidados até a mesa — ela disse sorrindo. — Devemos mudá-lo também, meu senhor?

Leto respondeu com frieza:

— Este me parece um bom costume. Vamos deixá-la como está, por enquanto.

“A ilusão de que suspeito dela por traição deve ser mantida.”

Observou os convidados passarem. “Quem entre vocês acredita nessa mentira?”

Jessica, sentindo seu distanciamento, pensava, como fizera freqüentemente na última semana: “Ele age como um homem lutando consigo mesmo. Será porque fui tão rápida organizando este jantar?

No entanto ele sabe como é importante que comecemos a entrosar nossos oficiais e soldados com os locais, no plano social. Somos pai e mãe adotivos para todos eles, e nada afirma esse fato mais fortemente do que este tipo de atividade social.”

Leto observava os convidados enfileirados, lembrando-se do que Thufir Hawat dissera ao ser informado do jantar: “Senhor, eu o proíbo!”

Um sorriso amargo surgiu em seus lábios. Que cena tinha sido.

E quando o Duque permanecera inflexível quanto a comparecer ao jantar, Hawat sacudira a cabeça.

— “Eu tenho um mau pressentimento a respeito disso, meu senhor. As coisas estão acontecendo muito rapidamente em Arrakis. Este não é o estilo dos Harkonnen. Não se parece nem um pouco.”

Paul passou por seu pai em companhia de uma jovem, meia cabeça mais alta que ele mesmo. Lançou um olhar frio para Leto, e assentiu para alguma coisa que a jovem mulher lhe dissera.

— O pai dela fabrica trajes-destiladores — explicou Jessica.

— E me contaram que somente um tolo se deixaria apanhar no deserto profundo usando um dos trajes desse homem.

— Quem é o homem com o rosto marcado, na frente de Paul? — perguntou Leto. — Eu não o reconheço.

— Uma adição tardia à lista — sussurrou ela. — Foi Gurney quem conseguiu. É um contrabandista.

— Gurney conseguiu?

— A meu pedido. Foi liberado por Hawat, embora eu pense que Hawat não se sentiu muito à vontade. O contrabandista chama-se Tuek, Esmar Tuek. Ele é uma força entre sua gente. Todos o conhecem por aqui, ele janta em muitas casas.

— Por que está aqui?

— Todos os presentes farão a mesma pergunta. Tuek espalhará a dúvida e a suspeita, apenas com sua presença. Também servirá para demonstrar que você pretende manter suas ordens contra subornos com reforço do lado dos contrabandistas também. Este foi um ponto que Hawat pareceu apreciar.

— Não estou certo se aprecio. — Ele acenou para um casal que passava, vendo que apenas alguns poucos convidados ainda restavam para precedê-los. — Por que não convidou alguns Fremen?

— Há Kynes.

— Sim, há Kynes — repetiu ele. — Arranjou mais alguma outra pequena surpresa para mim? — Caminhou com ela por trás da procissão.

— Tudo o mais é bem convencional.

E ela pensou: “Meu querido, não percebes que este contrabandista controla naves rápidas e pode ser subornado? Nós devemos ter uma saída aberta, uma porta por onde escapar de Arrakis se tudo o mais nos falhar aqui.”

Ao entrarem no salão, soltou seu braço, permitindo que ele puxasse a cadeira para ela. Sentou-se enquanto Leto caminhava para o lado oposto, onde um soldado de infantaria aguardava, segurando a cadeira do Duque. Os convidados sentaram-se com um arrastar de cadeiras e o ruído de panos roçando, mas o Duque permaneceu de pé. Fez um sinal com a mão e os soldados em torno da mesa recuaram um passo, assumindo posição de sentido.

Um silêncio nervoso desceu sobre o salão.

Jessica, olhando ao redor da mesa, percebeu um leve tremor na extremidade dos lábios de Leto, notou o rubor de ódio em sua face. “O que o enfureceu? Certamente não foi o meu convite ao contrabandista.”

— Algumas pessoas questionaram meu ato de mudar o costume das pias de lavagem — disse Leto. — Este é o meu modo de mostrar a vocês que muitas coisas vão mudar.

Seguiu-se um silêncio embaraçoso.

“Devem achar que ele está bêbado”, pensou Jessica.

Leto ergueu seu frasco de água, mantendo-o numa posição onde os raios de luz das lâmpadas suspensoras cintilavam sobre ele. Como um cavalheiro do Império, então, eu brindo a todos vocês.

Os outros pegaram seus frascos, os olhos voltados para o Duque. Sobre sua súbita imobilidade, uma lâmpada suspensora deslizou levemente, empurrada por uma brisa vinda do corredor da cozinha. Sombras percorreram as feições aquilinas do Duque.

— Aqui estou, e aqui permanecerei!

Houve um movimento interrompido de frascos em direção às bocas. O Duque permanecia com o braço erguido.

— Meu brinde constitui uma daquelas máximas tão queridas de todos nós: “Negócios trazem progresso! Que a fortuna passe por todos os lugares.”

Provou de sua água e os outros o imitaram. Olhares indagadores eram trocados.

— Gurney! — chamou o Duque.

De um quarto na extremidade do salão veio a voz de Halleck:

— Aqui, meu senhor!

— Toque uma canção para nós, Gurney.

Um ritmo de baliset flutuou no ar. Servos começaram a colocar os pratos com a comida sobre a mesa, após um gesto de autorização do Duque: lebre do deserto assada em molho cepeda, aplo-mage siriana, chukka e café com melange (o cheiro forte de canela produzido pela especiaria espalhou-se pela mesa), um verdadeiro banquete acompanhado de cintilante vinho caladaniano.

E no entanto o Duque continuava de pé.

Enquanto os convidados aguardavam, a atenção dividida entre os pratos colocados diante deles e o Duque, Leto disse:

— Em épocas passadas constituía tarefa do anfitrião entreter seus hóspedes com seus próprios talentos. — Os nós em seus dedos estavam brancos, tão fortemente ele segurava o frasco de água: — Eu não sei cantar, mas repito para vocês as palavras da canção de Gurney. Considerem-nas como outro brinde. Um brinde a todos aqueles que morreram para que pudéssemos chegar a esta estação.

Um remexer desconfortável soou ao redor da mesa.

Jessica observou as pessoas sentadas nos lugares mais próximos. Lá estava o fornecedor de água e sua mulher, o pálido e austero representante do Banco da Corporação (parecendo um espantalho com os olhos fixos em Leto), o robusto Tuek com a cicatriz no rosto, seus olhos de azul dentro de azul abaixados.

— Revista meus amigos, tropas que passaram em revista — entoou o Duque. — Todos a sofrerem do peso de dores e dólares. Seus espíritos usam nossas insígnias de prata. Revista amigos, tropas que passaram em revista: cada um, um ponto no tempo, sem ambição ou malícia. Com eles passou a sedução da fortuna. Revista amigos, tropas que passaram em revista. Quando nosso tempo terminar, com seu sorriso amargo, nós também passaremos no rastro da fortuna.

O Duque deixou que sua voz diminuísse na última frase, até se tornar quase um murmúrio. Bebeu um gole de seu frasco colocando-o sobre a mesa de modo violento. A água derramou da borda, molhando o linho branco.

Os outros beberam num silêncio embaraçado.

Novamente o Duque ergueu seu frasco e dessa vez derramou a metade que restara sobre o piso, sabendo que os outros ao redor da mesa deviam fazer o mesmo.

Jessica foi a primeira a seguir o exemplo.

Os outros hesitaram antes de começar a esvaziar seus frascos, e Jessica notou como Paul, sentado junto de seu pai, observava as reações dos outros. Ela própria também se encontrou fascinada por aquilo que o comportamento dos convidados revelava, principalmente nas mulheres. Esta era água clara, potável, não alguma coisa suja numa toalha ensopada. A relutância em desperdiçá-la era visível nas mãos trêmulas, nas reações lentas, nos risos nervosos... e na obediência violenta à imposição. Uma mulher deixou cair seu frasco e olhou em outra direção enquanto seu companheiro o recuperava.

Kynes, entretanto, foi quem mais lhe chamou a atenção. O planetólogo hesitou, e então esvaziou seu copo num recipiente que trazia por baixo da jaqueta. Sorriu para Jessica ao perceber que ela o observava, e ergueu o frasco vazio num brinde silencioso.

Ele não parecia nem um pouco embaraçado por seu gesto.

A música de Halleck ainda ressoava pela sala, mas mudara de tom e elevava-se agora alegre e animada, como se tentasse levantar os ânimos.

— Que o jantar comece — disse Leto e sentou finalmente em sua cadeira.

“Ele está furioso e indeciso”, pensou Jessica. “A perda daquele trator-fábrica o atingiu mais profundamente do que deveria. Deve haver alguma coisa a mais do que a simples perda. Ele age como um homem desesperado.” Ergueu o garfo esperando que o movimento ocultasse sua própria e súbita amargura. “Por que não? Ele está desesperado.”

A princípio lentamente, depois com crescente animação, o jantar seguiu seu curso. O fabricante de trajes-destiladores cumprimentou Jessica pelo vinho e por seu cozinheiro.

— Trouxemos ambos de Caladan — explicou ela.

— Soberbo! — disse ele, provando chukka. — Simplesmente soberbo! Sem nenhum traço de melange. A gente se cansa de provar especiaria em tudo.

O representante do Banco da Corporação olhou para Kynes:

— Eu soube, Dr. Kynes, que outro trator-fábrica foi perdido para um verme.

— As notícias andam rápido — disse Leto.

— Então é verdade? — indagou o banqueiro, mudando sua atenção para Leto.

— Claro que é verdade! — respondeu o Duque. — O maldito transporta-tudo desapareceu. E não devia ser possível uma coisa tão grande desaparecer assim!

— Quando o verme veio, não havia nada para recuperar o trator — explicou Kynes.

— Isso não devia ser possível — repetiu o Duque.

— Ninguém viu o transporta-tudo partir? — indagou o banqueiro.

— Os localizadores costumam manter seus olhos voltados para a areia — disse Kynes. — Eles estão primeiramente interessados em sinais de verme. A tripulação de um transporta-tudo é composta, normalmente, de quatro homens — dois pilotos e dois oficiais. Se um, ou até mesmo dois desses tripulantes estivessem a serviço dos inimigos do Duque...

— Ahh, entendo — disse o banqueiro. — E você, como juiz da Mudança, faz objeção a isso?

— Eu devo considerar minha posição cuidadosamente — respondeu Kynes —, e certamente não devo discuti-la à mesa. Ele pensou : “Aquele esqueleto! Ele sabe que este é o tipo de infração que fui instruído a evitar.”

O banqueiro sorriu, voltando sua atenção para a comida.

Jessica sentou-se, lembrando-se de uma palestra dos tempos de sua escola Bene Gesserit. O assunto fora espionagem e contra-espionagem. Uma Reverenda Madre gorducha, de cara alegre, fora a conferencista, sua voz animada contrastando curiosamente com o assunto da aula.

“Uma coisa a ser notada a respeito de qualquer escola de espionagem e contra-espionagem é o padrão de reações básicas em todos os seus graduados. Qualquer disciplina fechada deixa sua marca, seu padrão sobre seus estudantes. Esses padrões são suscetíveis de análise e predição.

“Padrões motivacionais, por outro lado, serão similares entre todos os agentes de espionagem. Quer dizer: há certos tipos de motivação que são similares, a despeito das diferentes estolas ou objetivos opostos. Vocês estudarão primeiro como separar esses elementos para sua análise — no início através de padrões de perguntas que traem a orientação interior dos interrogadores, depois através da observação cuidadosa da orientação pensamento-linguagem, sob essa análise. Descobrirão ser razoavelmente simples determinar a raiz linguística de seus objetos de análise através de ambos: inflexão de voz e padrão de fala.”

Agora, sentando-se à mesa com seu filho, seu Duque e seus convidados, e ouvindo o representante do Banco, Jessica sentia um arrepio: o homem era um agente Harkonnen, ele possuía o padrão vocal de Giedi Prime — sutilmente disfarçado, mas tão exposto à sua percepção treinada que era como se ele a tivesse anunciado claramente.

“Isso significa que a própria Corporação se colocou como adversária dos Atreides?” O pensamento a deixava chocada, e ela dissimulou a emoção pedindo um novo prato, ouvindo todo o tempo o homem trair suas intenções. “Ele vai mudar a conversa a seguir para um assunto aparentemente inocente, mas com sugestões funestas”, ela pensou. “É o padrão.”

O banqueiro engoliu em seco, provou um gole de vinho e sorriu para alguma coisa que a mulher ao lado lhe dissera. Pareceu ouvir por um momento o que um homem dizia, explicando ao Duque como as plantas nativas de Arrakis não tinham espinhos.

— Gosto de observar o vôo dos pássaros de Arrakis — disse o banqueiro dirigindo suas palavras para Jessica. — Todos os nossos pássaros, é claro, são comedores de carniça, e muitos deles sobrevivem sem água, tendo se tornado bebedores de sangue.

A filha do fabricante de trajes-destiladores, sentada entre Paul e seu pai, na outra extremidade da mesa, torceu seu belo rosto numa careta e reclamou:

— Oh Soo-Soo, você diz coisas tão desagradáveis.

O banqueiro sorriu.

— Eles me chamam de Soo-Soo porque sou conselheiro de finanças para a União dos Mascates de Água.

Como Jessica continuasse a olhar para ele sem comentários, ele acrescentou:

— Por causa do grito dos vendedores de água “SooSoo Sook!” — Imitou o chamado com tamanha precisão que muitos em torno da mesa riram.

Jessica ouvia o tom presunçoso na voz, mas percebia, principalmente, o motivo que levara a jovem a falar. Ela produzira a desculpa para que o banqueiro falasse o que queria dizer. Olhou para Lingar Bewt. O magnata da água parecia carrancudo, concentrado em seu jantar. Para Jessica era como se o banqueiro houvesse dito: “Eu também controlo a fonte máxima de poder em Arrakis: Água!”

Paul percebera a falsidade na voz de seu companheiro de jantar, e como sua mãe seguira a conversação com a meticulosidade de uma Bene Gesserit. Agindo num impulso, ele decidiu entrar no jogo. Dirigiu-se ao banqueiro.

— Quer dizer, senhor, que esses pássaros são canibais?

— Esta é uma pergunta curiosa, jovem mestre. Eu apenas disse que os pássaros bebem sangue. Não tem que ser o sangue de sua própria espécie, tem?

— Não era uma pergunta curiosa — continuou Paul. Jessica notou a qualidade da réplica imediata, uma característica de seu treinamento, exposta na voz do rapaz. — A maior parte das pessoas cultas sabe que o pior tipo de competição potencial, para um organismo jovem, vem dos membros de sua própria espécie. — Deliberadamente, ele estendeu o garfo e pegou uma amostra de comida do prato de seu companheiro, levando-a à boca. — Eles estão comendo do mesmo prato. Possuem as mesmas necessidades básicas.

O banqueiro se empertigou, olhando aborrecido para o Duque.

— Não cometa o erro de pensar que meu filho é uma criança disse Leto sorrindo.

Jessica notou que Bewt se animara e que Kynes e o contrabandista Tuek estavam sorrindo.

— É uma regra de ecologia — disse Kynes — que o jovem mestre parece compreender muito bem. A luta entre elementos vitais é a luta pela energia livre de um sistema. Sangue é uma fonte eficiente de energia.

O banqueiro baixou o garfo, falando numa voz irada:

— Diz-se que a ralé Fremen costuma beber o sangue de seus mortos.

Kynes sacudiu a cabeça, falando num tom de palestra:

— Não só o sangue, meu senhor, mas toda a água de um homem pertence enfim ao seu povo, à sua tribo. Torna-se uma necessidade quando se vive junto da Grande Planície. Toda a água é preciosa lá, e o corpo humano é composto de setenta por cento de água em relação ao peso. Um homem morto certamente não necessita mais dessa água.

O banqueiro colocou ambas as mãos contra a mesa ao lado do prato e pareceu a Jessica que ele ia empurrar a cadeira para trás e abandonar o jantar em fúria.

Kynes olhou para ela.

— Perdoe-me, minha senhora, por tratar de um assunto tão desagradável na mesa, mas vocês estavam ouvindo velhas falsidades e necessitavam de um esclarecimento.

— Tem estado em contato há tanto tempo com os Fremen, que perdeu todo o tato — retrucou o banqueiro.

Kynes olhou para ele calmamente, estudando sua face pálida e trêmula:

— Está me desafiando, senhor?

O banqueiro gelou. Engoliu em seco e falou rapidamente:

— É claro que não. Eu não insultaria nossos anfitriões.

Jessica percebeu o medo na voz do homem, notando o temor em seu rosto, em sua respiração, no pulsar das veias em sua têmpora. Kynes deixara o homem aterrorizado!

— Nossos anfitriões são perfeitamente capazes de decidir por si mesmos quando se sentem insultados — continuou Kynes. — Eles são gente corajosa, que compreende a defesa da honra. Nós todos podemos testemunhar sua coragem pelo simples fato de se encontrarem aqui... agora... em Arrakis.

Jessica percebeu que Leto estava apreciando tudo isso. A maioria dos outros convidados não fazia o mesmo. Pessoas à volta pareciam se preparar para a luta, as mãos fora de vista, sob a mesa. Duas notáveis exceções eram Bewt, que sorria abertamente ante o embaraço do banqueiro, e o contrabandista Tuek, que parecia observar Kynes à espera de um sinal. Jessica viu que Paul olhava para Kynes com admiração.

— Então? — indagou Kynes.

O banqueiro murmurou:

— Eu não pretendia ofender, por favor, aceite minhas desculpas!

— Livremente oferecida, livremente aceita — disse Kynes. Sorriu para Jessica e voltou a comer, como se nada houvesse acontecido.

Jessica percebeu que o contrabandista também relaxara. Ela anotou isto: o homem mostrara todo o aspecto de um auxiliar, pronto a saltar em socorro de Kynes. Devia existir um acordo de algum tipo entre os dois.

Leto remexia o garfo, olhando de modo indagador para Kynes.

Os modos do ecologista indicavam uma mudança de atitude com relação à Casa dos Atreides. Ele parecera muito mais frio durante sua viagem pelo deserto.

Jessica ordenou outra entrada de comida e bebida. Servos apareceram com langues de lapins de garenne, mais vinho tinto e molho de cogumelos, ao lado.

Lentamente a conversação voltou ao normal, mas Jessica percebia uma certa agitação, uma tonalidade nervosa, e percebeu que o banqueiro comia em carrancudo silêncio. “Kynes o teria matado sem hesitação”, ela pensou. Notava uma atitude tranqüila, em relação ao assassinato, nas maneiras de Kynes. Ele era um assassino eventual, e Jessica calculava que essa fosse uma atitude Fremen.

Voltou-se para o fabricante de trajes-destiladores, à sua esquerda, e disse:

— Fico freqüentemente admirada com a importância que a água tem aqui em Arrakis.

— Muito importante — concordou ele. — Que prato é esse? É delicioso!

— Línguas de coelho selvagem com molho especial. Uma receita muito antiga.

— Preciso conseguir essa receita.

Ela assentiu com a cabeça.

— Cuidarei para que a receba.

Kynes olhou novamente para Jessica, dizendo:

— O recém chegado a Arrakis subestima freqüentemente a importância da água aqui. Vocês estão lidando com a Lei do Mínimo.

Ela ouviu o tom de sondagem na voz dele e respondeu:

— O crescimento é limitado pela necessidade presente na quantidade mínima. E, naturalmente, as condições menos favoráveis controlam a taxa de crescimento.

— É raro encontrar membros de uma Grande Casa conscientes de problemas planetológicos. Água é a condição mínima favorável à vida aqui em Arrakis. E lembre-se que o próprio “crescimento” pode produzir condições desfavoráveis, a menos que tratado com extremo cuidado.

Jessica percebeu uma mensagem oculta nas palavras de Kynes, mas não conseguia decifrá-la. — Crescimento — ela disse. — Você quer dizer que Arrakis pode ter um ciclo de água ordenado, capaz de sustentar a vida humana sob condições mais favoráveis?

— Impossível! — retrucou o magnata da água.

Jessica voltou sua atenção para Bewt.

— Impossível?

— Impossível para Arrakis. Não ouça este sonhador. Todas as evidências de laboratório estão contra ele.

Kynes olhou para Bewt, e Jessica percebeu que toda a conversação ao redor da mesa se interrompera, enquanto as pessoas se concentravam nessa nova discussão.

— Provas de laboratório tendem a nos cegar quanto a um fato muito simples — disse Kynes. — O fato é o seguinte: estamos lidando aqui com questões que se originam e existem fora de quatro paredes, onde as plantas e os animais vivem sua existência normal.

— Normal! — vociferou Bewt. — Nada em Arrakis é normal!

— Muito ao contrário — continuou Kynes. — Certos equilíbrios poderiam ser estabelecidos aqui ao longo de linhas de auto-sustentação. É apenas necessário entender os limites do planeta e as pressões exercidas sobre ele.

— Nunca será feito — concluiu Bewt.

O Duque percebeu, subitamente, o ponto exato em que a atitude de Kynes se modificara: fora quando Jessica falara a respeito de manter a estufa de plantas como uma promessa para Arrakis.

— O que seria necessário para estabelecer o sistema auto-sustentável, Dr. Kynes? — indagou Leto.

— Se conseguirmos colocar três por cento dos elementos das plantas verdes de Arrakis, envolvidos na formação de compostos de carbono como substância alimentar, nós teremos iniciado o sistema cíclico.

— Água é o único problema, então? — indagou o Duque. Sentia o entusiasmo de Kynes e dele compartilhava.

— A água obscurece os outros problemas. Este planeta tem muito oxigênio sem seus acompanhantes normais: vida vegetal difundida e bióxido de carbono livre, produzido em fenômenos tais como vulcões. Aqui ocorrem interações químicas pouco comuns sobre superfícies muito grandes.

— Já tem projeto-piloto?

— Tivemos muito tempo para construir o Efeito Tansley. Pequenas unidades experimentais, em bases amadorísticas, das quais minha ciência, agora, pode retirar suas bases de trabalho.

— Não existe água suficiente — insistiu Bewt. Simplesmente não existe água.

— Mestre Bewt é um especialista em água — concluiu Kynes.

Sorriu, voltando-se para terminar seu jantar.

O Duque gesticulou bruscamente, num gesto incisivo com a mão, e exigiu.

— Não! Eu quero uma resposta! Existe água suficiente, Dr. Kynes?

Kynes olhava para seu prato, e Jessica observava o jogo de emoções em seu rosto. “Ele disfarça muito bem”, pensou ela, mas conseguira registrá-lo agora e lia que Kynes lamentava suas palavras.

— Existe água suficiente? — insistiu Leto.

— Pode... haver — respondeu Kynes, finalmente.

“Ele está fingindo incerteza”, pensou Jessica.

Com seu senso de verdade mais profundo, Paul captava o motivo subjacente e precisava de todo o seu treino para ocultar sua excitação. “Existe água suficiente, mas Kynes não deseja que isso seja conhecido.”

— Nosso planetólogo tem muitos sonhos interessantes disse Bewt. — Ele sonha com os Fremen, com profecias e messias.

Risos soaram em pontos isolados em torno da mesa. Jessica os marcou bem: o contrabandista, a filha do fabricante de trajes-destiladores, Duncan Idaho, a mulher do misterioso serviço de acompanhantes.

“As tensões estão curiosamente distribuídas aqui, nesta noite”, concluiu ela. “Está se passando muita coisa de que não tenho consciência. Preciso desenvolver novas fontes de informação.”

O Duque olhou para Kynes, Bewt e Jessica. Sentia-se curiosamente ludibriado, como se alguma coisa vital houvesse acabado de lhe escapar.

— Talvez — ele murmurou.

Kynes disse rapidamente:

— Talvez possamos discutir isso em outra ocasião, meu senhor. Existem tantas...

O planetólogo interrompeu-se quando um soldado em uniforme Atreides entrou apressado pela porta de serviço, passou pelo guarda e parou ao lado do Duque. O homem curvou-se e sussurrou no ouvido de Leto.

Jessica reconheceu o distintivo de Hawat no boné do soldado, e lutou contra uma inquietação crescente. Dirigiu-se para a companheira do fabricante de trajes-destiladores, uma pequenina mulher de cabelos pretos com uma cara de boneca e um sinal de dobra epicântica nos olhos.

— Quase não tocou seu jantar, minha querida. Devo pedir algo especial para você?

A mulher olhou para seu companheiro antes de responder:

— Não estou com fome.

O Duque ergueu-se abruptamente ao lado do soldado, falando num duro tom de comando:

— Fiquem todos sentados. Terão que me desculpar, mas surgiu um problema que exige minha atenção pessoal. — Ele se levantou. — Paul, assuma o meu lugar como anfitrião, por gentileza.

Paul também se levantou, desejando indagar de seu pai por que ele tinha de sair, mas sabendo que precisava se comportar à altura. Ele se moveu até a cadeira de Leto e sentou-se.

O Duque virou-se para o aposento onde se encontrava Halleck, dizendo:

— Gurney, por favor, tome o lugar de Paul na mesa.

Não devemos ter um número ímpar aqui. Quando o jantar terminar, talvez eu precise de você para conduzir Paul até o P.C. de campo. Espere por minha chamada.

Halleck emergiu do aposento contíguo trajando uniforme, sua feiúra gorda parecendo fora de lugar, em meio àquela elegância cintilante. Ele encostou o baliset na parede e caminhou para o lugar vazio de Paul.

— Não há motivo para alarme — disse Leto. — Mas devo pedir para que ninguém saia, até que a guarda da casa diga que é seguro. Vocês estarão em perfeita segurança contanto que permaneçam aqui, e nós resolveremos este pequeno problema muito brevemente.

Paul percebeu as palavras de código na mensagem de seu pai: guarda-segurança-brevemente. O problema era uma falha na segurança, não violência. Viu que sua mãe também recebera a mensagem, e parecia mais calma.

O Duque deu um aceno rápido, virou-se e saiu pela porta de serviço, seguido pelo soldado.

Paul disse:

— Por favor, continuemos com o jantar. Acho que o Dr. Kynes estava discutindo a questão da água.

— Podemos discuti-la em outra ocasião? — pediu Kynes.

— Sem dúvida — respondeu Paul.

Jessica notava com orgulho a dignidade de seu filho, seu maduro senso de auto-confiança.

O banqueiro ergueu seu frasco de água, gesticulando para Bewt.

— Nenhum de nós aqui pode superar Mestre Lingar Bewt, no que diz respeito a frases floreadas. Pode-se até julgar que ele aspira ao status de Grande Casa. Vamos, mestre Bewt, acompanhe-nos num brinde. Talvez tenha um torrão de sabedoria para o menino que deve ser tratado como homem.

Jessica cerrou o punho direito, por baixo da mesa. Viu um sinal passar de Halleck para Idaho, enquanto as tropas ao longo da parede se moviam para posições de máxima guarda.

Bewt lançou um olhar fulminante para o banqueiro.

Paul olhou rapidamente para Halleck, notando a posição defensiva de seus guardas e fitou o banqueiro até que o homem abaixou o frasco de água.

— Uma vez, em Caladan — disse Paul —, vi o corpo de um pescador afogado ser recuperado. Ele...

— Afogado? — indagou a filha do fabricante de trajes.

Paul hesitou, e então explicou: — Sim, imerso em água até morrer. Afogado.

— Que modo interessante de morrer — murmurou ela.

O sorriso de Paul tornou-se uma expressão irritada. Ele voltou sua atenção para o banqueiro. — A coisa interessante a respeito desse homem eram os ferimentos em seus ombros — feitos pelas botas com cravos de outro pescador. Esse pescador era um, entre vários, num bote — um veículo para viajar através da água — que afundara, mergulhando embaixo d'água. Um outro pescador, auxiliando no resgate, disse já ter visto marcas como aquelas várias vezes. Elas significavam que outro pescador afogado tentara subir nos ombros de seu infeliz companheiro, numa tentativa para alcançar a superfície, para alcançar o ar.

— Por que isso é interessante? — indagou o banqueiro.

— Por causa de uma observação feita por meu pai na ocasião. Ele disse que o homem se afogando, que sobe nos ombros de outro para se salvar, é compreensível, exceto quando se vê isso acontecendo na sala de visitas. — Paul hesitou, o suficiente para que o banqueiro percebesse o duplo sentido, e então concluiu. — E eu devo acrescentar: exceto quando se vê acontecer na mesa de jantar.

Um silêncio súbito desceu sobre a sala.

“Isso foi imprudente”, pensou Jessica. “Este banqueiro tem poder suficiente para exigir desculpas.” Viu que Idaho estava pronto para a ação imediata, e as tropas da casa estavam alertas. Gurney Halleck tinha os olhos voltados para os homens à sua frente.

— Ho, ho, ho, ho! — Era o contrabandista Tuek, cabeça lançada para trás, rindo em completo abandono.

Sorrisos nervosos surgiram ao redor da mesa.

Bewt parecia se divertir.

O banqueiro empurrara sua cadeira para trás e fitava Paul com olhar fixo.

Kynes comentou:

— Quem irrita um Atreides corre seu próprio risco.

— É costume dos Atreides insultar seus convidados? — perguntou o banqueiro.

Antes que Paul pudesse responder, Jessica inclinou-se para a frente, dizendo:

— Senhor! — Ela pensava: “Devemos descobrir qual é o jogo desta criatura Harkonnen. Estará ela aqui para tentar algum movimento contra Paul? Será que tem ajuda?”

— Meu filho mostra uma carapuça e o senhor afirma que ela tem as suas medidas? Que revelação fascinante — disse Jessica, enquanto deslizava com a mão ao longo da perna, buscando a faca cristalina que prendera numa bainha abaixo do joelho.

O banqueiro voltou seu olhar furioso para Jessica. A atenção se deslocou de Paul, e Jessica percebeu satisfeita que ele se afastava da mesa o suficiente para liberar as mãos para ação. Compreendera a palavra-chave: carapuça. “Prepare-se para a violência.”

Kynes dirigiu um olhar indagador para Jessica, e fez um sinal muito sutil com a mão para Tuek.

O contrabandista colocou-se de pé, erguendo seu frasco de água.

— Eu ofereço um brinde. Ao jovem Paul Atreides, ainda um garoto por sua aparência, mas um homem em suas ações.

“Por que eles se meteram?”, pensou Jessica.

O banqueiro olhava agora para Kynes, e ela viu o terror retornando ao rosto do agente.

Pessoas começavam a responder ao brinde ao redor da mesa.

“Aonde Kynes vai, as pessoas o seguem. Ele nos revela estar ao lado de Paul. Qual é o segredo de seu poder? Não pode ser devido ao posto de juiz da Mudança, isso é temporário. E, certamente, não por ele ser um funcionário público”, pensou Jessica.

Ela removeu a mão do cabo da faca cristalina, ainda presa à barriga da perna, e ergueu seu frasco para Kynes que respondeu adequadamente.

Somente Paul e o banqueiro (“Soo-Soo! Que apelido idiota!”, pensou Jessica) permaneciam de mãos vazias. A atenção do banqueiro fixava-se em Kynes, Paul olhava para seu prato.

“Eu estava lidando com a situação adequadamente”, pensava Paul. “Por que eles interferiram?” Olhou veladamente para os convidados mais próximos. “Prepare-se para a violência? De quem? Certamente não da parte daquele banqueiro.”

Halleck se remexeu, e falou sem se dirigir a ninguém em particular:

— Em nossa sociedade, as pessoas não deviam ser tão rápidas em se considerar ofendidas. Isso é, freqüentemente, um gesto suicida. — Olhou para a filha do fabricante de trajes-destiladores ao seu lado. — Não pensa assim, senhorita?

— Oh sim, de fato — respondeu ela. — Existe violência em demasia. Ela me deixa enjoada. E na maior parte dos casos não há nenhuma intenção de ofender, mas as pessoas morrem do mesmo jeito. Não faz sentido.

— Realmente não faz — disse Halleck.

Jessica notou a quase perfeição no gesto da garota, e concluiu: “Aquela mocinha de cabeça oca não é uma mocinha de cabeça oca, afinal. Vira o padrão da ameaça, e entendera que Halleck também o detectara. Eles haviam planejado atrair Paul com sexo.

Jessica se acalmou. Seu filho fora provavelmente a primeira pessoa a perceber, seu treinamento não deixara de notar o estratagema óbvio.

Kynes disse ao banqueiro:

 — Não está na hora de outra desculpa?

O banqueiro voltou um sorriso amarelo na direção de Jessica, dizendo:

— Minha senhora, eu temo ter me excedido em seus vinhos. A senhora serve bebidas fortes em sua mesa, e eu não estou acostumado a elas.

Jessica percebia o veneno por baixo do tom, e respondeu suavemente:

— Quando estrangeiros se encontram, grandes concessões devem ser feitas quanto às diferenças de costumes e treinamentos.

— Obrigado, minha senhora.

A companheira de cabelos negros do fabricante de trajes-destiladores inclinou-se em direção a Jessica:

— O Duque disse que ficaríamos seguros aqui. Espero que isso não signifique mais lutas.

“Ela foi instruída para levar a conversa para esse assunto”, pensou Jessica.

— Provavelmente será algo sem importância — disse ela. — Mas existem muitas coisas exigindo a atenção do Duque atualmente. Enquanto continuar a inimizade entre Atreides e Harkonnen não podemos nos descuidar. O Duque jurou kanly, e obviamente não deixará nenhum agente Harkonnen vivo em Arrakis. — Olhou para o agente do Banco da Corporação. — E as Convenções naturalmente permitem isso. — Voltou a atenção para Kynes: — Não é verdade, Dr. Kynes?

— Certamente que sim — respondeu ele.

A companheira do fabricante de trajes olhou para ele, dizendo:

— Creio que comerei alguma coisa agora. Gostaria de um pouco daquela ave que serviram antes.

Jessica fez sinal para um servo, e voltou-se para o banqueiro.

— O senhor estava falando de pássaros e seus hábitos, no início. Eu acho tantas coisas a respeito de Arrakis interessantes. Diga-me, onde é encontrada a especiaria? Os caçadores precisam penetrar muito no deserto?

— Oh não, minha senhora — respondeu ele. — Muito pouco se conhece a respeito do deserto profundo. E praticamente nada quanto às regiões austrais.

— Existe uma lenda a respeito de um grande Veio-Mãe de especiaria, que aguardaria descoberta nas vastidões do sul disse Kynes. — Mas suspeito que isso seja uma invenção, criada unicamente para servir a uma canção. Alguns dos caçadores de especiaria mais ousados às vezes penetram na borda do cinturão central, mas isso é extremamente perigoso. A navegação é incerta, e as tempestades freqüentes. As baixas em pessoal aumentam dramaticamente à medida que se opera mais distante das bases na Muralha Escudo. Não foi considerado lucrativo se aventurar muito para o sul. Talvez se possuíssemos um satélite meteorológico...

Bewt olhou para cima, falando com a boca cheia.

— Diz-se que os Fremen viajam por lá, que eles vão a toda parte e que caçam esponjas e poços de sugar até mesmo nas latitudes austrais.

— Esponjas e poços de sugar? — indagou Jessica.

Kynes respondeu rapidamente.

— Simples boatos extravagantes, minha senhora. Uma esponja é um local onde a água se filtra para a superfície, ou suficientemente próximo da superfície, que permite escavar seguindo certos indícios. Um poço de sugar é uma forma de esponja de onde se retira água através de um canudo... ou assim se diz.

“Há engano em suas palavras”, pensou Jessica e Paul perguntou a si mesmo: “Por que é que ele mente?”

— Que interessante! — exclamou Jessica, pensando: “Costuma-se dizer.. Que modo curioso de falar eles possuem aqui. Se ao menos soubessem o quanto isso revela de sua dependência de superstições.”

— Ouvi dizer que vocês possuem um ditado — disse Paul. — Que a polidez vem das cidades e a sabedoria do deserto.

— Há muitos ditados em Arrakis — respondeu Kynes.

Antes que Jessica pudesse formular outra pergunta, um servo inclinou-se ao lado dela com um bilhete. Ela o abriu notando a caligrafia do duque e os sinais em código.

— Todos ficarão satisfeitos em saber — disse ela — que nosso Duque manda avisar que podemos ficar tranqüilos. O assunto que o obrigou a se ausentar já foi resolvido. O transporta-tudo perdido foi encontrado. Um agente Harkonnen na tripulação subjugou os outros e voou com a máquina até uma base de contrabandistas, esperando vendê-la por lá. Ambos, homem e máquina, foram devolvidos às nossas forças.

— Ela acenou para Tuek, que respondeu ao cumprimento.

Jessica dobrou novamente a nota, guardando-a em sua manga.

— Fico feliz em saber que isto não levou a uma luta aberta disse o banqueiro. — Todo o povo espera que os Atreides tragam a paz e a prosperidade.

— Especialmente a prosperidade — disse Bewt.

— Devemos ter a nossa sobremesa agora? — indagou Jessica.

— Eu pedi ao nosso chefe de cozinha que preparasse um doce de Caladan: arroz pongi com molho dolsa.

— Parece maravilhoso — comentou o fabricante de trajes. — Seria possível ter a receita?

— Qualquer receita que desejar — respondeu Jessica, registrando o homem para mencioná-lo posteriormente a Hawat. O fabricante de trajes era um tremendo arrivista, e poderia ser comprado.

Trivialidades voltaram a ser o assunto principal da conversa ao redor: — Que tecido maravilhoso... ele está fazendo um engaste para colocar a jóia... podemos tentar um aumento de produção na próxima quinzena...

Jessica olhava para o prato, pensando na parte codificada da mensagem de Leto. “Os Harkonnen tentaram introduzir um carregamento de armas laser. Nós o capturamos, mas isso pode significar que eles já tiveram sucesso com outros carregamentos. E certamente quer dizer que não podemos confiar mais em escudos. Tomem as precauções apropriadas.”

Focalizou sua mente em armas laser. Os feixes aquecidos ao branco da luz disruptora podiam cortar através de qualquer substância conhecida, desde que não houvesse um escudo ao redor da substância. O fato de que a retrocarga de um escudo faria explodir a arma laser e o escudo não incomodava os Harkonnen. Por quê?

Uma explosão escudo-arma laser constituía-se numa variável incerta e perigosa, podendo ser mais poderosa que uma arma atômica, ou apenas o suficiente para matar o portador da arma e o seu alvo sob o escudo.

As dúvidas a enchiam de intranqüilidade.

Paul comentou:

— Nunca duvidei de que encontraríamos o transporta-tudo. Uma vez que meu pai age para resolver um problema, ele o resolve. Este é um fato que os Harkonnen estão começando a descobrir.

“Ele está se gabando”, pensou Jessica. “Não devia. Uma pessoa que vai dormir no subsolo esta noite, como precaução contra armas laser, não tem o direito de se gabar.”

 

Não há escapatória — nós pagamos pela violência dos nossos ancestrais. “

— de Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Jessica ouviu o tumulto no grande salão e acendeu a luz ao lado de sua cama. O relógio colocado lá não fora adequadamente ajustado para a hora local, e ela precisou subtrair vinte e um minutos para determinar que eram aproximadamente duas horas da madrugada.

O ruído era alto e indistinto. Seria o ataque dos Harkonnen?

Saiu da cama e verificou as telas monitoras, para ver onde se encontrava sua família. A tela mostrou Paul dormindo em uma profunda sala da adega, apressadamente convertida em dormitório para o rapaz. O ruído obviamente não estava penetrando lá embaixo. Não havia ninguém no quarto do Duque, sua cama estava arrumada. Estaria ele ainda no P.C. de campo?

Ainda não existiam telas para a parte frontal da casa.

Jessica ficou imóvel no meio do quarto, ouvindo.

Ouviam-se gritos e vozes ininteligíveis. Ouviu o nome do Dr. Yueh sendo chamado, encontrou um robe e o colocou sobre os ombros, calçando chinelas e prendendo a faca cristalina na perna.

Novamente uma voz chamou pelo Dr. Yueh.

Jessica prendeu o roupão na cintura e saiu para o corredor. Um pensamento lhe ocorreu subitamente: “E se Leto estiver ferido?”

O corredor parecia se estender infinitamente sob seus pés. Ela passou através da abóbada na extremidade, atravessou o salão de jantar e chegou ao Grande Salão encontrando o lugar brilhantemente iluminado, com todas as lâmpadas suspensoras brilhando ao máximo.

À sua direita, próximo à entrada frontal, ela viu dois guardas da casa segurando Duncan Idaho entre eles. Sua cabeça oscilava para a frente, e havia um silêncio abrupto em toda a cena.

Um dos guardas falou de modo acusador:

— Viu o que você fez? Acordou Lady Jessica.

As grandes cortinas por trás dos homens enfunavam-se, mostrando que a porta permanecia aberta. Não havia sinal do duque ou de Yueh. Mapes aparecia de pé ao lado, olhando friamente para Idaho.

Ela usava um longo roupão marrom com um desenho de serpentina. Seus pés estavam colocados em botas de deserto não amarradas.

— Então eu acordei Lady Jessica — balbuciou Idaho. Ergueu o rosto para o teto e berrou:

— Minha espada foi banhada no sangue de Grumman!

“Grande Mãe!”, pensou ela. “O homem está bêbado.”

O rosto escuro e redondo de Idaho se contorcia numa carranca.

Seu cabelo, encaracolado como o pêlo de um bode negro, parecia emplastrado de sujeira. Um rasgo em sua túnica deixava à mostra a camisa que ele usara durante o jantar.

Jessica aproximou-se dele.

Um dos guardas acenou com a cabeça para ela, sem largar Idaho.

— Não sabíamos o que fazer com ele, minha senhora. Ele estava causando confusão aí em frente, recusando-se a entrar. Nós temíamos que os moradores locais aparecessem e o vissem assim. Isto nos daria um mau nome por aqui.

— Onde foi que ele esteve? — indagou Jessica.

— Ele acompanhou uma das jovens damas até sua casa depois do jantar, minha senhora. Ordens de Hawat.

— Que jovem dama?

— Uma daquelas acompanhantes, entende, senhora? Olhou para Mapes abaixando a voz: — Eles estão sempre chamando Idaho para tomar conta das damas.

Jessica pensou: “Sim, mas por que ele está bêbado?”

Franziu a testa voltando-se para Mapes:

— Mapes, traga um estimulante. Sugiro cafeína. Talvez ainda tenha sobrado um pouco de café de especiaria.

Mapes deu de ombros e dirigiu-se para a cozinha. Suas botas de deserto não amarradas faziam ruído no chão de pedra.

Idaho girou sua cabeça bamba para olhar Jessica de esguelha.

— Matei mais de trezentos pro Duque — balbuciou ele —, só quero saber por que eu tô aqui? Não posso viver em cima ou embaixo deste solo. Que tipo de lugar é este, hein?

Um ruído no corredor lateral chamou a atenção de Jessica. Ela voltou-se vendo o Dr. Yueh se aproximar com o estojo médico na mão esquerda. Ele encontrava-se completamente vestido, e parecia pálido e exausto. A tatuagem em forma de diamante aparecia nítida em sua testa.

— O bom doutor! — gritou Idaho. — Quem é você, doutor, o homem das pílulas e ataduras? — Olhou de olhos turvos para Jessica. Tô fazendo um papel ridículo, não tô?

Jessica franziu o cenho, ficou em silêncio, pensando: “Por que iria Idaho se embebedar? Será que ele foi drogado?”

— Muita cerveja de especiaria! — disse Idaho tentando se endireitar.

Mapes voltou com uma xícara fumegante nas mãos, parou incerta ao lado de Yueh. Olhou para Jessica, que sacudiu a cabeça.

Yueh colocou o estojo no chão e acenou, saudando Jessica.

— Cerveja de especiaria, hein? — comentou ele.

— Coisa mais danada que já provei — disse Idaho, tentando ficar em posição de sentido. — Minha espada conheceu o sangue pela primeira vez em Grumman! Matei um Harko... Harko... matei ele pro Duque.

Yueh olhou para a xícara nas mãos de Mapes.

— O que é isso?

— Cafeína — respondeu Jessica.

Yueh pegou a xícara e aproximou-a dos lábios de Idaho.

— Beba isso, rapaz.

— Não quero mais bebida.

— Beba, estou mandando!

A cabeça de Idaho tombou para a frente e ele deu um passo cambaleante na direção de Yueh, arrastando consigo os guardas.

— Já estou cheio de ter que agradar este Universo Imperial, doutor. Só uma vez quero fazer as coisas ao meu modo.

— Depois que beber isso — disse Yueh. — É apenas cafeína.

— Esquisito como todo o resto desse lugar! Maldito sol muito brilhante, nada tem as cores certas. Tudo errado ou...

— Bem, é noite agora — observou Yueh. Ele falava com calma: Beba isso como um bom rapaz, e vai se sentir melhor.

— Num quero me sentir melhor!

— Não podemos discutir com ele a noite inteira — disse Jessica. “Isto pede um tratamento de choque”, pensou ela.

— Não é preciso ficar, minha senhora — disse Yueh. Posso cuidar disso.

Jessica sacudiu a cabeça, deu um passo à frente e esbofeteou Idaho.

Ele cambaleou para trás com os guardas, olhando furioso para ela.

— Isto não é modo de se comportar na casa de seu Duque — disse ela, e arrancou a xícara das mãos de Yueh derramando parte de seu conteúdo. Empurrou-a na direção de Idaho e gritou: — Agora beba! Isto é uma ordem!

Idaho se colocou de pé e falou lentamente, com uma pronúncia cuidadosa e precisa:

— Não recebo ordens de uma maldita espiã Harkonnen.

Yueh se enrijeceu, voltando-se para encarar Jessica.

Seu rosto tornou-se muito pálido, mas ela compreendeu. Tudo se tornava claro agora, todos os ramos interrompidos dos significados que ela vira em palavras e ações ao seu redor, por todos esses dias passados, podiam agora ser traduzidos. Encontrou-se presa de uma fúria quase que grande demais para ser contida. Foi necessário seu treinamento Bene Gesserit mais profundo para acalmar seu pulso, e normalizar a respiração, e ainda assim sentia um fogo interior lutando para extravasar.

“Eles estão sempre chamando Idaho para tomar conta das damas.”

Ela encarou Yueh, que abaixou a cabeça.

— Você sabia disso?

— Eu...ouvi rumores, minha senhora. Mas não queria aumentar suas preocupações.

— Hawat! — exigiu ela. — Quero que me tragam Thufir Hawat imediatamente!

— Mas, minha senhora...

— Imediatamente!

“Tem que ser Hawat”, pensou ela. “Suspeita como esta não poderia vir de outra fonte sem ser descartada imediatamente.”

Idaho sacudiu a cabeça, murmurando:

 — Estourem a maldita coisa inteira.

Jessica olhou para a xícara em sua mão, e abruptamente atirou seu conteúdo no rosto de Idaho.

— Tranquem-no em um dos quartos de hóspedes da ala leste — ordenou ela. — Deixem que ele durma.

Os dois guardas olharam para ela angustiados. Um deles arriscou:

— Talvez devêssemos levá-lo para algum outro lugar, senhora. Poderíamos...

— Ele deve ficar aqui! — retrucou ela. — Ele tem um trabalho a fazer aqui. — Sua voz revelava amargura: — Ele é tão bom para tomar conta das damas.

O guarda engoliu em seco.

— Sabe onde está o Duque?

— No posto de comando, minha senhora.

— Hawat está com ele?

— Hawat está na cidade, minha senhora.

— Vocês trarão Hawat para mim imediatamente. Estarei em minha sala quando ele chegar.

— Mas, minha senhora...

— Se necessário eu chamarei o Duque — ameaçou ela. Mas espero que não seja necessário. Não quero perturbá-lo com isso.

— Sim, minha senhora.

Jessica colocou a xícara vazia nas mãos de Mapes percebendo o olhar questionador nos olhos de azul-dentro-de-azul. — Você pode voltar para o quarto, Mapes.

— Tem certeza de que não vai precisar de mim?

Jessica sorriu amargamente:

— Tenho.

— Talvez isso possa esperar até amanhã — sugeriu Yueh. — Eu poderia lhe dar um sedativo e...

— Você retornará para os seus aposentos e me deixará cuidar disso ao meu modo. — Deu uma leve pancada em seu braço para suavizar o tom de comando. — Este é o único modo.

Abruptamente, de cabeça erguida, ela se voltou e saiu, caminhando através da casa em direção aos seus aposentos. Paredes frias... passagens... uma porta familiar... Abriu a porta com violência, passou por ela e fechou-a num estrondo. Parou, olhando para as janelas cobertas de escudos de sua sala de estar. “Hawat! Podia ter sido ele a quem os Harkonnen haviam comprado? Veremos.”

Foi até a cadeira. Uma cadeira em estilo antigo, estofada com um revestimento de pele de schlag bordada, e moveu-a para uma posição voltada para a porta. Tornou-se subitamente muito consciente da faca cristalina na bainha, sobre sua perna. Removeu a bainha e prendeu-a ao braço, testando seu ajuste. Uma vez mais observou a sala, localizando todas as coisas precisamente em sua memória para qualquer emergência: a espreguiçadeira junto de um dos cantos, as cadeiras ao longo da parede, as duas mesas baixas e a cítara montada num suporte junto da porta de seu quarto.

Uma luz pálida derramava-se das lâmpadas suspensoras. Enfraqueceu-as ainda mais e se sentou, alisando o estofamento e apreciando o aspecto nobre da cadeira, adequada para a ocasião.

“Agora deixe que ele venha”, pensou ela. “E então veremos.”

Preparou-se para a espera no modo Bene Gesserit, acumulando paciência, poupando as forças.

Mais cedo do que esperava uma batida soou na porta, e Hawat entrou.

Ela o observou sem se mover de sua cadeira, percebendo a aparência de energia induzida por drogas em seus movimentos, sentindo a fadiga que se acumulava por baixo. Os olhos cansados e injetados brilhavam. Sua pele coriácea parecia fracamente amarelada na luz do salão, e havia uma mancha úmida, comprida, na manga do braço onde usava a faca.

Ela sentiu cheiro de sangue ali.

Apontou para uma das cadeiras e disse:

— Traga aquela cadeira e sente-se de frente para mim.

Hawat inclinou-se e obedeceu. “Aquele bêbado idiota do Idaho!” — ele pensou. Observou o rosto de Jessica, tentando visualizar um meio de salvar a situação.

— É hora de esclarecer a situação entre nós — disse Jessica.

— O que a perturba, minha senhora? — indagou ele, sentando-se e colocando a mão sobre os joelhos.

— Não banque o reservado comigo! Se Yueh não lhe contou por que o chamei aqui, então um de seus espiões em minha casa o fez. Não podemos ser honestos um com o outro?

— Como quiser, minha senhora.

— Primeiro você me responderá a uma pergunta — disse ela. — Você é um agente Harkonnen?

Hawat ergueu-se, quase se levantando da cadeira, seu rosto escuro de fúria:

— Você se atreve a me insultar!?

— Sente-se. Você me insultou primeiro.

Lentamente ele deixou o corpo afundar no assento.

E Jessica, lendo os sinais faciais que conhecia tão bem, respirou fundo. “Não é o Hawat.”

— Agora sei que permanece leal ao meu Duque. Estou preparada portanto para perdoar sua afronta contra mim.

— Existe alguma coisa para ser perdoada?

Jessica franziu a testa, pensando: “Devo jogar com meu trunfo?

Devo contar a respeito da filha do Duque, que carrego comigo há algumas semanas? Não, nem mesmo Leto sabe. Isso só iria complicar sua vida, distraí-lo numa ocasião em que precisa estar concentrado para assegurar nossa sobrevivência. Ainda haverá tempo para usar isso.”

— Uma reveladora da verdade resolveria esse problema — disse ela —, mas nós não temos nenhuma qualificada pela Alta junta.

— Como diz, nós não temos uma Reveladora da Verdade.

— Existe um traidor entre nós? — indagou ela. — Eu tenho observado nossa gente com extremo cuidado. Quem poderia ser? Não é o Gurney, e certamente nem o Duncan. Seus tenentes não ocupam funções estratégicas, para serem considerados. Também não é você, Thufir, nem pode ser o Paul. Sei que não sou eu. Será o Dr. Yueh então? Devo chamá-lo e submetê-lo ao teste?

— Sabe que seria um gesto inútil. Ele é condicionado pelo Alto Colégio. Isso eu sei com certeza.

— Para não mencionar que sua esposa era uma Bene Gesserit assassinada pelos Harkonnen — disse Jessica.

— Então foi isso que aconteceu com ela!

— Não ouviu o ódio em sua voz quando ele menciona os Harkonnen?

— Sabe que eu não tenho ouvidos para isso.

— O que levantou essa sua suspeita contra mim? — indagou ela.

Hawat amarrou a cara.

— Minha senhora, está colocando seu servo numa posição difícil. Minha lealdade em primeiro lugar é para com o Duque.

— Estou preparada para perdoar muito devido a essa mesma lealdade.

— E novamente devo indagar: existe algo para ser perdoado?

— Impasse? — perguntou ela.

Ele deu de ombros.

— Vamos conversar sobre outra coisa, então. Duncan Idaho, esse admirável lutador cujas habilidades para guarda e vigilância são tão estimadas. Esta noite ele se excedeu em alguma coisa chamada cerveja de especiaria. Ouvi relatórios de que outros entre nossa gente já foram entorpecidos por essa. mistura. Isso é verdade?

— Tem os seus relatórios, minha senhora.

— Eu os tenho. Não pode ver nesses excessos com a bebida um sintoma, Thufir?

— Minha senhora fala por charadas.

— Aplique suas habilidades Mentat! Qual é o problema com Duncan e os outros? Eu posso dizê-la em apenas quatro palavras: Eles estão sem lar.

Hawat apontou o dedo para o piso.

— Arrakis é o lar de todos eles.

— Arrakis é uma terra desconhecida! Caladan era o lar deles, mas nós lhes arrancamos as raízes. Eles não têm lar, e temem que o Duque esteja falhando em sua confiança.

Ele se empertigou.

— Uma conversa dessas, partindo de um dos homens, seria causa para...

— Ora, pare com isso, Thufir. É derrotismo ou traição se um médico diagnostica uma doença corretamente? Minha única intenção é curar a doença.

— O Duque me encarrega dessas questões.

— Mas você compreende que eu tenho uma preocupação natural quanto ao progresso da doença. E talvez reconheça que tenho certas habilidades para agir ao longo dessa linha.

“Terei de chocá-lo severamente?”, pensou ela. “Ele precisa ser sacudido com algo que o arranque de uma rotina imposta.”

— Podem existir muitas interpretações para sua preocupação — disse ele.

— Então já me condenou?

— Claro que não, minha senhora. Mas não posso me permitir correr nenhum risco, estando a situação como está.

— Uma ameaça à vida de meu filho passou por você, aqui mesmo nesta casa. Quem correu o risco?

Seu rosto se enrubesceu.

— Ofereci minha renúncia ao Duque.

— Ofereceu sua renúncia a mim? Ou ao Paul?

“Agora ele está furioso”, pensou ela. “Posso ver isso na rapidez de sua respiração, na dilatação das narinas, olhar fixo.” Percebeu o pulso batendo em sua têmpora.

— Sou um homem do Duque — respondeu ele, seco.

— Não há traidor algum — disse Jessica. — A ameaça é alguma outra coisa. Talvez tenha a ver com armas laser. Talvez eles se arrisquem ocultando algumas armas laser com mecanismos de tempo, apontadas para os escudos desta casa. Talvez eles...

— E quem poderia dizer, depois da explosão, que não fora atômica? — indagou ele. — Não, minha senhora. Eles não arriscariam nada tão ilegal. Radiação permanece. A evidência é difícil de apagar. Não, eles seguirão a maioria das normas. Tem que ser um traidor.

— Você é o homem do Duque — retrucou ela. — Você o destruiria no esforço para salvá-lo?

Ele respirou fundo e disse:

— Se a senhora for inocente, terá minhas desculpas mais humildes.

— Olhe para você agora, Thufir. Os humanos vivem melhor quando cada um tem seu próprio lugar, quando cada um sabe onde se vincula ao esquema geral das coisas. Destrua o lugar e você destruirá a pessoa. Você e eu, Thufir, dentre todas as pessoas que amam o Duque, estamos justamente situados numa posição em que poderíamos facilmente destruir um ao outro. Eu poderia sussurrar suspeitas a seu respeito ao ouvido do Duque toda a noite, não poderia? No momento em que ele estivesse mais suscetível a tais cochichos? Preciso explicar mais claramente?

— Está me ameaçando?

— De fato, não. Eu apenas demonstro para você que alguém está nos atacando através do vínculo básico de nossas vidas. É diabolicamente hábil. Eu proponho que devolvamos esse ataque ordenando nossas vidas de um modo tal que não restarão fendas onde farpas como essas possam penetrar.

— Acusa-me de sussurrar suspeitas sem base?

— Sem base, sim.

— E você responderia a isso com seus próprios cochichos.

— Sua vida é feita de cochichos, Thufir, não a minha.

— Então questiona minhas habilidades?

Ela suspirou.

— Thufir, eu quero que examine seu próprio envolvimento emocional nisso tudo. Um humano ao natural é um animal sem lógica. Suas projeções de lógica sobre todos os assuntos são anti-naturais, mas devem continuar a ser feitas por sua utilidade. Você é a personificação de lógica, um Mentat. No entanto, suas soluções e problemas são conceitos que num sentido real se projetam para fora de você mesmo, para serem estudados e examinados de todos os ângulos.

— Acha que pode me ensinar meu próprio ofício? — indagou ele sem tentar esconder o desprezo na voz.

— Você pode aplicar sua lógica em qualquer coisa fora de você mesmo — continuou ela —, mas é uma tendência humana que, quando nós encontramos problemas pessoais, principalmente os mais profundos, torna-se extremamente difícil trazê-los à tona para que possam ser analisados logicamente. Nos debatemos ao redor, culpando tudo, menos o motivo verdadeiro e profundamente enraizado que se encontra realmente nos devorando.

— Está deliberadamente tentando minar a minha fé em minhas habilidades como um Mentat — acusou ele asperamente. — Se eu encontrasse alguém de nossa gente tentando sabotar deste modo qualquer outra arma de nosso arsenal, eu não hesitaria em denunciá-lo e destruí-lo.

— Os melhores Mentat possuem um respeito saudável pelo fator de erro em suas computações.

— Eu nunca disse outra coisa!

— Então aprofunde-se nestes sintomas que ambos observamos: embriaguez entre os homens, lutas — mexericos e troca de rumores extravagantes a respeito de Arrakis, eles ignoram as mais simples...

— Chega de frivolidade! — disse ele. — Não tente distrair minha atenção fazendo uma questão simples parecer misteriosa.

Jessica olhou para ele, pensando em todos os homens do Duque ruminando suas mágoas nos alojamentos, até que se pudesse quase sentir a tensão acumulada, como isolamento, queimando. “Eles estão se tornando como os homens da lenda anterior à Corporação”, pensou ela. “Como os homens da nave estelar perdida Ampoliros — esgotados sobre seus canhões — eternamente buscando, eternamente preparados e eternamente desprevenidos.”

— Por que nunca usou plenamente as minhas habilidades em seus serviços para o Duque? Tem medo de uma rival para sua posição?

Ele olhou para ela, os velhos olhos queimando.

— Conheço parte do treinamento que recebem suas... — Não concluiu.

— Vá adiante, diga, “suas bruxas Bene Gesserit”.

— Sei algo a respeito do verdadeiro treinamento que recebem.

Observei-o refletir-se em Paul. Não sou iludido pelo que suas escolas dizem ao público: Que existem apenas para servir.

“O choque precisa ser severo e ele está quase pronto para ele”, pensou ela.

— Você me ouve respeitosamente no Conselho, e no entanto raramente dá crédito aos meus conselhos. Por quê?

— Não confio em suas razões Bene Gesserit — respondeu ele. — Vocês podem achar que vêem através de um homem, podem pensar que são capazes de obrigar um homem a fazer exatamente o que vocês...

— Thufir, seu pobre tolo! — exclamou ela, furiosa.

Ele olhou carrancudo, remexendo-se na cadeira.

— Quaisquer que sejam os rumores que tenha ouvido a respeito de nossas escolas, a verdade é muito mais surpreendente. Se eu desejasse destruir o Duque, ou você, ou qualquer pessoa ao meu alcance, você não poderia me deter.

“Por que permite que o orgulho arranque estas palavras de mim?”, pensou ela. “Não foi este o modo como fui treinada. Não é a maneira de chocá-lo.”

Hawat deslizou a mão por baixo de sua túnica, onde mantinha um pequenino projetor de agulhas envenenadas. “Ela não está usando escudo. Será isso apenas uma bravata? Eu poderia matá-la agora... mas ah, as conseqüências se eu estiver errado!”

Jessica percebeu o gesto na direção do bolso e disse:

— Vamos rezar para que a violência nunca seja necessária entre nós.

— Uma boa idéia.

— Entretanto, a doença se espalha entre nós, e eu devo perguntar novamente: não é mais razoável supor que os Harkonnen plantaram essa suspeita para nos lançar um contra o outro?

— Parece que voltamos ao impasse — disse ele.

Ela suspirou, pensando: “Ele já está quase pronto.”

— O Duque e eu somos pai e mãe substitutos para o nosso povo. A posição...

— Ele não se casou com você — disse Hawat.

Jessica procurou se manter calma. “Esta foi uma boa resposta.”

— Mas ele não se casará com mais ninguém. Não enquanto eu viver. E nós somos substitutos, como eu dizia. Para quebrar essa ordem natural entre nós, para confundir, dissolver e perturbar, que alvo seria mais sedutor para os Harkonnen?

Ele sentia a direção para onde ela o levava, e suas sobrancelhas contraíram-se.

— O Duque? — indagou Jessica. — Um alvo atraente, sim, mas ninguém, com a possível exceção de Paul, é melhor guardado. Eu? Devo tentá-los, certamente, mas eles devem saber que uma Bene Gesserit é um alvo difícil. Mas há um objetivo melhor, alguém cujas tarefas criam necessariamente um ponto cego. Alguém para quem a suspeita é tão natural quanto o ato de respirar. Alguém que constrói a sua vida com insinuações e mistérios. Apontou a mão direita para ele. — Você!

Hawat tentou saltar de sua cadeira.

— Não lhe dei licença para sair, Thufir!

O velho Mentat praticamente caiu de volta no assento, tão rapidamente que seus músculos lhe falharam.

Ela sorriu friamente.

— Agora você conhece algo a respeito do verdadeiro treinamento que nós recebemos.

Hawat tentou engolir em seco. Aquela ordem fora régia, decidida, pronunciada num tom e de um modo que a tornavam completamente irresistível. Seu corpo obedecera antes que sua mente pudesse pensar a respeito. Nada teria evitado sua reação, nem lógica, nem fúria... nada. Para fazer o que ela acabara de realizar, era preciso um conhecimento íntimo, apurado, da pessoa assim dominada, um controle profundo como sequer sonhara ser possível.

— Já lhe disse antes que nós devíamos entender um ao outro. E quero dizer com isso que deve tentar me compreender. Eu já entendo você. E lhe digo agora que sua lealdade para com o Duque é tudo que garante a sua segurança comigo.

Ele olhava-a, umedecendo os lábios com a língua.

— Se eu desejasse uma marionete faria o Duque se casar comigo — continuou ela. — Ele podia até pensar que o fizera por sua livre vontade.

Hawat abaixou a cabeça, olhando através de seus escassos cílios.

Apenas um auto-controle rígido o impedia de chamar o Controle da guarda... e a suspeita agora de que a mulher poderia impedi-lo. Sua pele coçava com a lembrança de como ela o controlara.

Naquele momento de hesitação ela poderia ter sacado uma arma e tê-lo morto.

“Será que cada humano possui esse ponto cego?”, perguntava ele a si mesmo. “Qualquer um de nós pode ser impulsionado para agir sem resistência?” A idéia o atordoava. “Quem poderia deter uma pessoa com tamanho poder?”

— Você teve um vislumbre do punho que existe dentro da luva Bene Gesserit — disse ela. — Poucos chegam a percebê-la e apenas o vivenciam através da experiência. O que eu fiz foi algo relativamente simples para nós. Ainda não viu todo o meu arsenal. Pense nisto.

— Por que não sai então destruindo os inimigos do Duque?

— Quem você teria para destruir? Gostaria que eu fizesse do Duque um fraco? Eternamente se apoiando em mim?

— Mas com tal poder...

— O poder é uma espada de dois gumes, Thufir. Você pensa: “Como é fácil para ela moldar uma ferramenta humana para golpear nas entranhas do inimigo.” É verdade, Thufir. Até mesmo nas suas entranhas. No entanto o que eu conseguiria com isso? Se muitas Bene Gesserit agissem desse modo, isso não tornaria todas as Bene Gesserit suspeitas? Nós não queremos isso, Thufir. Não desejamos destruir a nós mesmas. — Ela acenou com a cabeça. — Verdadeiramente, nós existimos apenas para servir.

— Eu não posso lhe responder — disse ele. — Sabe que eu não posso lhe responder.

— Você não dirá nada a respeito do que aconteceu hoje aqui, para ninguém. Eu o conheço, Thufir.

— Minha senhora... — novamente o velho tentou engolir em seco.

E pensou: “Ela tem grandes poderes, sim. Mas eles não fariam dela uma arma ainda mais admirável para os Harkonnen?”

— O Duque pode ser destruído tão rapidamente por seus amigos como por seus inimigos. Eu confio agora que você chegará ao fundo desta suspeita e a eliminará.

— Se ela se mostrar desprovida de bases, sim.

— Se — sorriu ela com desdém.

— Se — insistiu ele.

— Você é tenaz.

— Cauteloso — respondeu ele. — E consciente do fator erro.

— Então eu farei outra pergunta: o que significa para você estar preso e desarmado diante de outro ser humano, enquanto o outro segura uma faca diante de sua garganta? E, no entanto, esse outro ser humano evita matá-lo, livra-o das cordas que o prendem e lhe entrega a faca, para que use como desejar? O que acha disso?

Ela se levantou da cadeira e voltou as costas para ele. Você pode ir agora, Thufir.

O velho Mentat levantou-se hesitando, a mão movendo-se vagarosa em direção à arma mortífera sob a túnica. Lembrava-se do touro e do pai do Duque (que fora um bravo, não importando suas falhas). Num dia de tourada, há muito tempo, o terrível animal negro lá estava, de cabeça baixa, imóvel e confuso. O velho Duque voltara as costas para os chifres, capa lançada ostentosamente sobre o ombro, enquanto as palmas choviam das arquibancadas.

Eu sou o touro e ela é o matador. Afastou a mão da arma olhando o suor que brilhava na palma vazia.

Não importava o que os fatos provassem no final, ele sabia que nunca esqueceria esse momento, nem perderia um sentimento de suprema admiração por Lady Jessica.

Sem fazer ruído, ele se voltou e deixou a sala.

Jessica abaixou o olhar dos reflexos nas janelas, virou-se e fitou a porta fechada.

— Agora veremos um pouco de ação adequada — sussurrou ela para si mesma.

 

Você se debate com seus sonhos?

Luta contra as sombras?

E se move num transe?

O tempo lhe escapou.

Sua vida está perdida.

Você a desperdiçou em ninharias.

Vítima de sua loucura.

 

— Lamento por Jamis na Planície Funerária, de Canções do Muad'Dib,

escrito pela Princesa Irulan

 

Leto parou no vestíbulo de sua casa, estudando a nota à luz de uma única lâmpada suspensora. Faltavam apenas algumas horas para o raiar do dia, e ele sentia um cansaço profundo. Um mensageiro Fremen trouxera o bilhete ao posto externo de guarda, exatamente quando o Duque chegava de seu posto de comando.

A nota dizia: “Uma coluna de fumaça durante o dia, um pilar de fogo à noite.”

Não havia assinatura.

“O que significa isso?”, perguntou com os seus botões.

O mensageiro se fora sem esperar por uma resposta e antes que pudesse ser interrogado. Desaparecera dentro da noite como uma sombra.

Leto colocou o papel dentro do bolso de sua túnica, pensando em mostrá-lo a Hawat, posteriormente. Afastou uma mecha de cabelos de sobre a testa e respirou fundo. As pílulas antifadiga estavam começando a perder o efeito. Haviam sido dois longos dias desde aquele jantar e, mais do que isso, desde que dormira pela última vez.

Além de todos os problemas militares houvera aquela perturbadora conversa com Hawat, e o relatório de seu encontro com Jessica.

“Devo acordar Jessica?” Ele hesitou. “Não há mais razão para continuar com este jogo de segredo com ela. Ou há?”

“Maldito Duncan Idaho.”

Sacudiu a cabeça. “Não, não foi Duncan. O erro foi meu de não confiar em Jessica desde o princípio. Devo fazê-lo agora, antes que maior dano seja provocado.”

A decisão fez com que se sentisse melhor, e ele correu para o Grande Salão, e ao longo das passagens, em direção à ala familiar.

No ponto em que o corredor virava para a área de serviço, ele parou. Um estranho gemido vinha de algum ponto no corredor de serviço. Leto levou a mão esquerda ao botão de seu cinturão-escudo, e colocou sua kindjal na mão direita. A faca lhe transmitia um sentimento de confiança. O estranho som provocara um arrepio através de seu corpo.

Suavemente o Duque se moveu pela passagem, amaldiçoando a iluminação inadequada. As suspensoras menores haviam sido colocadas em intervalos de oito metros, e reguladas no nível de iluminação mais fraco. As paredes de pedra negra devoravam a luz.

Hesitou novamente, quase acionando seu escudo, mas se conteve porque isso limitaria seus movimentos e sua audição... e porque o carregamento capturado de armas laser o deixara cheio de dúvidas. Havia um vulto escuro estirado no piso, aparecendo na penumbra, adiante.

Silenciosamente ele se moveu em sua direção, percebendo tratar-se de uma figura humana, caída com o rosto contra o chão de pedra. Leto virou-a com o pé, a faca erguida, e se abaixou na luz fraca para ver o rosto. Era o contrabandista Tuek, com uma mancha úmida ao longo do peito. Os olhos sem vida fitando a escuridão vazia. Leto tocou a mancha, estava quente.

“Como pode este homem estar morto aqui? Quem o matou?”

O gemido era mais alto agora. Vinha de um ponto à frente e ao longo do corredor lateral, que dava na sala central onde havia sido instalado o principal gerador de escudo para a casa.

Com a mão no botão do cinto e a faca pronta, o Duque passou por sobre o cadáver e deslizou pela passagem, olhando cautelosamente em torno da curva para a sala do gerador de escudo.

Outro vulto cinzento estendia-se no piso, alguns passos à frente, e ele percebeu imediatamente ser essa a origem do gemido. A forma arrastou-se em sua direção, com dolorosa lentidão, murmurando, ofegando.

Leto dominou sua súbita contrição de medo e correu atravessando a passagem para abaixar-se ao lado do vulto rastejante. Era Mapes, a governanta Fremen, seu cabelo caído sobre o rosto, roupas em desordem. Uma mancha negra tomava-lhe as costas até um dos lados. Ele tocou-lhe o ombro e ela ergueu-se sobre os cotovelos, a cabeça inclinada para fitá-lo com olhos vazios e escuros.

— Você — disse ela ofegante — matou... guarda... mandado... buscar... Tuek... escapar... minha senhora... você... você... aqui... não... Caiu para a frente, a cabeça batendo contra a pedra.

Leto procurou sentir o pulso nas têmporas. Não havia nenhum.

Olhou para a mancha na roupa. Ela fora apunhalada pelas costas.

Quem? Seus pensamentos se aceleraram. Ela estaria querendo dizer que alguém matara o guarda? E Tuek? Jessica teria mandado buscá-lo? Por quê?

Começou a se levantar. Súbito, um sexto sentido o advertiu. Sua mão lançou-se em busca do botão que acionava o cinturão-escudo, mas era muito tarde. Um choque entorpecedor lançou-lhe o braço para o lado. Sentiu uma dor naquele local e viu um dardo projetando-se de sua manga. A paralisia propagava-se em direção ao ombro. Exigiu-lhe um esforço agonizante para erguer a cabeça e olhar ao longo da passagem.

Yueh encontrava-se na porta aberta da sala do gerador, seu rosto refletindo a luz amarela de uma única lâmpada suspensora acima da porta. Havia silêncio na sala atrás dele, não se ouvia nenhum som vindo dos geradores.

“Yueh!”, pensou Leto. “Ele sabotou os geradores da casa! Estamos abertos para o exterior!”

Yueh começou a caminhar em sua direção, colocando o revólver de dardos no bolso.

Leto descobriu ainda ser capaz de falar, balbuciou:

— Yueh! Como?

Então a paralisia atingiu suas pernas, e ele deslizou para o chão com as costas contra a parede de pedra.

O rosto de Yueh carregava uma expressão de tristeza enquanto se inclinava para tocar a testa de Leto. O Duque percebeu que ainda podia sentir o toque, porém levemente.

— A droga no dardo é seletiva — disse Yueh. — Você pode falar, mas não o aconselho a fazê-la. — Ele olhou ao longo do corredor e novamente se curvou sobre Leto, puxando o dardo e lançando-o para o lado. O som do dardo tinindo sobre as pedras era fraco e soava distante aos ouvidos do Duque. “Não pode ser Yueh”, pensou Leto. “Ele é condicionado.”

— Como? — sussurrou ele.

— Eu sinto, meu querido Duque, mas existem coisas que vão impor exigências mais profundas que isso — disse, tocando a tatuagem em forma de diamante sobre sua testa. — Eu mesmo acho muito estranho — uma anulação de minha consciência pirética —, mas eu desejo matar um homem. Sim, eu realmente o desejo, e não hesitarei diante de nada para fazê-lo.

Abaixou a cabeça olhando para o Duque.

— Oh, não é você, meu querido Duque. O Barão Harkonnen. Eu desejo matar o Barão.

— Bar... ão... Har...

— Fique quieto, por favor, meu pobre Duque. Você não tem muito tempo. Aquele dente pivô que coloquei em sua boca, depois daquela queda em Narcal, deve ser substituído neste momento. Eu o deixarei inconsciente e substituirei o dente. — Abriu a mão fitando, alguma coisa na palma. — Uma duplicata exata, com o núcleo moldado com perfeição na forma de um nervo. Escapará aos detetores, e mesmo a um esquadrinhamento rápido. Mas se você morder sobre ele com força, a cobertura se parte. Então, quando exalar sua respiração fortemente, encherá o ar ao seu redor com gás venenoso extremamente mortífero.

Leto olhou para Yueh, vendo a loucura nos olhos do homem, a transpiração ao longo do queixo e da testa.

— Você já está morto de qualquer maneira, meu pobre Duque, mas chegará perto do Barão antes de morrer. Ele acreditará que está atordoado pelas drogas e incapaz de qualquer esforço final para atacá-lo. Você estará drogado e amarrado. Mas um ataque pode tomar muitas formas estranhas. Você se lembrará do dente. O dente, Duque Leto Atreides. Você tem que se lembrar do dente.

O velho médico se inclinou cada vez mais próximo, até que todo o seu rosto, com o bigode pendente, dominava o estreito campo de visão do Duque.

— O dente — sussurrou ele.

— Por quê? — suspirou Leto.

Yueh ajoelhou-se ao lado do Duque.

— Fiz um acordo de shaitan com o Barão, e devo me certificar de que ele cumpriu com sua parte. Quando eu o vir, saberei. Quando olhar para o Barão, então eu saberei. Mas nunca chegarei em sua presença sem o preço. Você é o preço, meu pobre Duque, e saberei quando encontrá-lo. Minha pobre Wanna me ensinou muitas coisas, e uma delas foi a ter certeza da verdade, quando a tensão é muito grande. Não posso fazê-lo sempre, mas quando vir o Barão, eu saberei.

Leto tentou olhar para o dente na mão de Yueh. Sentia como se aquilo estivesse acontecendo num pesadelo. Não podia ser verdade.

Os lábios purpúreos de Yueh torceram-se numa careta. Não chegarei suficientemente perto do Barão, do contrário, eu mesmo o mataria. Não, eu serei mantido numa distância segura. Mas você... ah minha adorável arma! Ele vai querê-lo muito perto, para exultar e se gabar um pouco.

Leto achava-se quase hipnotizado pelo movimento de um músculo no lado esquerdo do queixo de Yueh. O músculo se torcia enquanto o homem falava. Yueh inclinou-se ainda mais perto. E você, meu bom Duque, meu precioso Duque, você se lembrará do dente. — Mostrou-o seguro entre o indicador e o polegar. — Será tudo que lhe restará.

A boca de Leto moveu-se sem produzir um som, e então:

— Recuso-me.

— Ah, isso não. Você não pode recusar. Porque em troca desse pequeno serviço estou fazendo algo por você. Eu salvarei sua mulher e seu filho. Nenhum outro pode fazê-lo, apenas eu. Eles podem ser removidos para um lugar onde nenhum Harkonnen poderá alcançá-los.

— Como... salvá-los? — sussurrou Leto.

— Fazendo parecer que estão mortos, colocando-os entre uma gente que puxa uma faca ao ouvir o nome dos Harkonnen, que odeia tanto os Harkonnen que ateará fogo a uma cadeira onde um Harkonnen houver sentado e salgará o solo por onde um Harkonnen passar. — Tocou o queixo de Leto. — Sente alguma coisa no maxilar?

O Duque percebeu que não seria capaz de responder. Sentia um puxar distante, viu a mão de Yueh aparecer com seu anel ducal.

— Para Paul — disse ele. — Você estará inconsciente em breve. Adeus, meu pobre Duque. Na próxima vez em que nos virmos não haverá tempo para conversas.

Um frio se propagava do queixo de Leto sobre sua face. Sentia-se distante, o corredor às escuras encolhia para se tornar um ponto centrado nos lábios de Yueh.

— Lembre-se do dente! — sussurrou o médico. — O dente!

 

Devia existir uma ciência do descontentamento. As pessoas necessitam de tempos difíceis e de opressão para desenvolver seus músculos psíquicos.

 

— de Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Jessica acordou na escuridão sentindo um pressentimento na quietude aparente ao seu redor. Não podia entender por que seu corpo e sua mente pareciam tão lânguidos. Comichões de medo percorreram seus nervos. Ela pensou em se levantar e acender a luz, mas alguma coisa retardou sua decisão.

Sua boca se sentia... estranha.

Lump-lump-lump-lump!

Um som monótono, sem direção, no escuro. Em algum lugar.

Começou a sentir seu corpo, tomando consciência das cordas prendendo seus pulsos e tornozelos, da mordaça em sua boca. Estava deitada de lado, com as mãos presas às costas. Testou as ligaduras, percebendo se tratarem de fibras krimskell, que penetrariam mais fundo em sua carne se ela tentasse rebentá-las.

E agora ela se lembrava.

Um movimento na escuridão de seu quarto, alguma coisa úmida e de odor penetrante caindo sobre seu rosto, enchendo sua boca, mãos agarrando-a. Ela arquejara, apenas uma única inspiração, sentindo o narcótico na umidade. A consciência recuara então, mergulhando-a na caixa negra do terror.

“Chegou a hora”, pensou ela. “Como é fácil subjugar uma Bene Gesserit. Tudo que é preciso é traição. Hawat estava certo.”

Procurou se acalmar para não se ferir nas cordas.

“Este não é o meu quarto”, pensou ela. “Eles me trouxeram para algum outro lugar.”

Lentamente conseguiu despertar sua paz interior, e tornou-se consciente do próprio suor, com sua infusão química de medo.

“Onde está Paul? Meu filho, o que terão feito com ele?”

“Acalme-se.”

Forçou-se a si mesma a se controlar, usando as ancestrais rotinas. Mas o terror permanecia à espreita, bem perto.

“Leto? Onde está você, Leto?”

Sentiu um abrandamento da escuridão. Começou com sombras. Dimensões separando-se, tornando-se novos espinhos de consciência. Branco. Uma linha sob a porta.

“Eu estou no chão.”

Pessoas andando. Sentia através do piso.

Controlou a memória do terror que ameaçava retornar. “Devo permanecer calma, alerta e preparada. Posso dispor apenas de uma chance.” Novamente forçou a calma interior.

A batida irregular de seu coração se harmonizou contando a passagem do tempo. Ela contou para trás. “Estive inconsciente durante uma hora.” Fechou os olhos, focalizando sua consciência nos passos que se aproximavam.

“Quatro pessoas.”

Contou as diferenças em seus passos.

“Devo fingir que ainda estou inconsciente.” Relaxou-se contra o piso frio, testando a disposição de seu corpo, ouvindo a porta abrir e sentindo o aumento de luz sobre suas pálpebras.

Pés se aproximaram, alguém se inclinava sobre ela.

— Você está acordada — trovejou uma voz grave. — Não finja o contrário.

Ela abriu os olhos.

O Barão Vladimir Harkonnen erguia-se sobre ela. À sua volta reconheceu a sala da adega onde Paul dormira, viu seu beliche num dos lados. Vazio. Lâmpadas suspensoras foram trazidas pelos guardas e distribuídas ao redor da porta aberta. Havia um clarão de luz na passagem, além, que feria seus olhos.

Ela olhou para cima, em direção ao Barão. Ele usava uma capa amarela que se avolumava sobre seus suspensores portáteis. As bochechas gordas eram dois montes querubínicos, por baixo de olhos negros como os de uma aranha.

— A droga foi cronometrada — rugiu ele. — Sabíamos o instante em que se recobraria.

“Como pode ser?”, perguntou a si mesma. “Eles teriam de conhecer meu peso exato, meu metabolismo, meu... Yueh!”

— É uma pena que tenha de permanecer amordaçada. Poderíamos ter uma conversa tão interessante.

“Yueh é o único que poderia ter feito”, pensava ela. “Como?”

O Barão olhou para trás na direção da porta.

— Entre, Piter.

Ela nunca vira antes o homem que entrou para se colocar ao lado do Barão, mas o rosto era conhecido, e o homem era Piter de Vries, o Mentat-assassino. Procurou estudá-lo: feições aquilinas, olhos completamente azuis, que sugeriam tratar-se de um nativo de Arrakis, mas as sutilezas do movimento e sua postura revelavam que não. Sua carne estava muito firme, com água. Ele era alto, delgado, e tinha algo que sugeria efeminação.

— Pena que não possamos ter uma conversa, minha cara Lady Jessica — disse o Barão. — No entanto, estou ciente de suas habilidades. — Olhou para o Mentat. — Não é verdade, Piter?

— É como o senhor diz, Barão.

A voz era de tenor. Tocou-lhe a espinha com uma onda gelada.

Nunca ouvira uma voz tão fria. Para alguém com um treinamento Bene Gesserit a voz gritava: “Assassino!”

— Tenho uma surpresa para o Piter — continuou o Barão. — Ele pensa que veio aqui para receber sua recompensa: você, Lady Jessica. Mas eu desejo demonstrar uma coisa: ele não a quer realmente.

— Está brincando comigo, Barão? — indagou Piter, e sorriu.

Ao ver aquele sorriso, Jessica se admirou de o Barão não ter saltado para se defender de Piter. Então se corrigiu. O Barão não poderia ler o significado daquele sorriso. Ele não possuía o Treinamento.

— Em muitas coisas Piter é bem ingênuo — explicou o Barão. — Ele se recusa a admitir que criatura mortífera é você, Lady Jessica. Eu poderia mostrar a ele, mas isso seria correr um risco tolo. — O Barão sorriu para Piter, cujo rosto se tornara uma máscara de expectativa.

— Sei o que Piter realmente quer. Piter quer o poder.

— Você me prometeu que eu poderia tê-la — disse Piter. A voz de tenor perdera parte de sua fria discrição.

Jessica percebia os sinais na voz do homem, permitindo-se um estremecimento interior. “Como pudera o Barão transformar um Mentat em semelhante animal?”

— Eu lhe dou uma escolha, Piter.

— Que escolha?

O Barão estalou seus dedos gordos.

— Esta mulher e o exílio para longe do Império, ou o Ducado de Atreides em Arrakis, para governar como achar adequado, em meu nome.

Jessica observou os olhos de aranha que estudavam Piter.

— Você poderia ser o Duque aqui, em tudo, menos no nome.

“Estará meu Leto morto então?”, perguntou Jessica de si para si. Sentia um gemido silencioso começar em alguma parte de sua mente.

O barão mantinha a atenção voltada para o Mentat.

— Procure compreender a si próprio, Piter. Você a deseja por ser ela a mulher do Duque, um símbolo de seu poder: bela, útil, requintadamente treinada para o seu papel. Mas um ducado inteiro, Piter! Isso é mais do que um símbolo, isso é realidade. Com ele você poderia ter muitas mulheres... e mais.

— Você não zomba de Piter?

O Barão voltou-se, com a leveza de dançarino proporcionada pelos suspensores.

— Zombar? Eu? Lembre-se de que estou desistindo do garoto. Você ouviu o que o traidor disse a respeito do treinamento do rapaz. Eles são iguais, mãe e filho: ambos mortíferos. — O Barão sorriu. — Devo sair agora, mas mandarei o guarda que reservei para este momento. Ele é surdo como uma pedra. Tem ordens para conduzi-lo no primeiro trecho de sua jornada para o exílio. Ele deverá subjugar esta mulher, caso perceba que ela está ganhando controle sobre você. E não permitirá que lhe retire a mordaça até que estejam fora de Arrakis. Se escolher não partir, ele tem outras ordens.

— Não precisa sair — disse Piter. — Eu já escolhi.

— Ah, ah! — O Barão riu. — Uma decisão tão rápida só pode significar uma coisa.

— Eu ficarei com o ducado.

E Jessica pensou: “Será que Piter não percebe que o Barão está mentindo para ele? Mas como ele poderia saber? Ele é um Mentat degenerado.”

O Barão olhou para Jessica.

— Não é maravilhoso que eu conheça Piter tão bem? Apostei com o meu Mestre-de-Armas que esta seria a escolha de Piter. Ah! Bem, eu os deixo agora. Isso é muito melhor, ah, muito melhor. Você compreende, Lady Jessica? Não guardo rancor contra você. É a necessidade que me obriga. É muito melhor desse modo. Sim. E eu não ordenei que você a destruísse de fato. Quando me perguntarem o que lhe aconteceu, posso dizer que não sei, sinceramente.

— Vai deixar isso a meu cargo? — indagou Piter.

— O guarda que lhe mandei acatará suas ordens. O que quer que seja feito, eu o deixo a seu cargo. — Olhou diretamente para Piter. — Sim, não haverá sangue em minhas mãos aqui. Será sua a decisão. Eu não saberei nada. Você aguardará até que eu tenha partido, antes de fazer o que julgar necessário. Bem... ah, sim. Ótimo.

“Ele teme o questionamento da Reveladora da Verdade”, pensou Jessica. “Quem? A Reverenda Madre Gaius Helen, é claro! E se ele sabe que deverá enfrentar seu questionamento, então o Imperador está metido nisso com certeza. Ahh-h-h-h, meu pobre Leto.”

Com um último olhar para Jessica, o Barão se voltou e saiu pela porta. Ela o seguiu com seu olhar, pensando: “Como a Reverenda Madre advertiu: um adversário muito poderoso.”

Dois soldados Harkonnen entraram. Outro, com o rosto transformado numa máscara de cicatrizes, parou na porta com uma arma laser na mão.

“O surdo”, pensou Jessica, estudando o rosto coberto de cicatrizes. “O Barão sabe que eu poderia usar a Voz em qualquer outro.”

Scarface olhou para Piter.

— Temos o garoto numa padiola aí fora. Quais são as suas ordens?

Piter disse a Jessica:

— Pensei em prendê-la com uma ameaça sobre seu filho, mas começo a perceber que isso não funcionaria. Deixei que a emoção subjugasse a razão, o que é um péssimo hábito para um Mentat. — Voltou-se para o primeiro par de soldados, certificando-se de que o surdo podia ler seus lábios: — Levem os dois para o deserto, como o traidor sugeriu que fosse feito com o rapaz. O plano dele é muito bom. Os vermes destruirão todas as provas, e seus corpos nunca serão encontrados.

— Não deseja matá-los você mesmo? — indagou Scarface.

“Ele pode ler nos lábios”, pensou Jessica.

— Eu sigo o exemplo do meu Barão — disse Piter. — Leve-os para onde o traidor mandou.

Jessica ouviu o duro controle Mentat na voz de Piter, e pensou: “Ele também teme a Reveladora da Verdade.”

Piter deu de ombros, voltou-se, e saiu pela porta. Hesitou por um momento antes de sair, e Jessica pensou que ele ia se voltar para fitá-la pela última vez, mas ele se foi sem o fazer.

— Eu não gostaria de enfrentar uma Reveladora da Verdade após o trabalho desta noite. — disse Scarface.

— Não é provável que você esbarre com aquela velha bruxa — disse um dos outros soldados. Ele deu a volta em torno de Jessica e inclinou-se sobre ela. — Não vamos fazer o nosso trabalho ficando aqui conversando. Pegue os pés...

— Por que não os matamos aqui mesmo? — indagou Scarface.

— Muito sujo — disse o primeiro. — A não ser que você queira estrangulá-los. Eu gosto de um trabalho direito. Jogue-os no deserto como o traidor disse, corte-os em dois ou três lugares e deixem o chamariz para os vermes. Nada para limpar depois.

— Sim... bem, eu suponho que você tem razão — respondeu Scarface.

Jessica ouvia-os, observando, registrando. Mas a mordaça bloqueava sua Voz, e havia que levar em conta o surdo.

Scarface colocou a arma laser no coldre e pegou Jessica pelos pés. Eles a levantaram como um saco de cereal, manobrando-a através da porta para jogá-la sobre uma maca flutuando em suspensores, onde havia outra figura amarrada. Quando eles a viraram para acomodá-la, ela viu o rosto de seu companheiro. Era Paul. Ele estava amarrado mas não tinha mordaça. Seu rosto estava a menos de dez centímetros do dela, olhos fechados, respiração normal.

“Estará drogado?”, perguntou ela a si mesma.

Os soldados ergueram a maca e os olhos de Paul entreabriram-se um pouco — fendas negras a fitá-la.

“Ele não deve tentar a Voz.” Ela rezou mentalmente. “O guarda surdo!”

Os olhos de Paul se fecharam.

Ele estivera praticando respiração-consciente, acalmando sua mente enquanto ouvia seus captores. O surdo constituía um sério problema, mas Paul procurou conter seu desespero. O regime Bene Gesserit para acalmar, aprendido com sua mãe, contribuía para mantê-lo alerta, pronto para utilizar qualquer oportunidade.

Permitiu-se outra inspeção, com os olhos semi-cerrados. Sua mãe parecia ilesa, embora estivesse amordaçada.

Tentou imaginar quem a teria capturado. Sua própria prisão fora bem simples. Fora para a cama tomando a cápsula prescrita pelo Dr. Yueh e acordara para se encontrar amarrado nessa maca.

Talvez algo similar acontecera com ela. A lógica apontava o traidor como sendo o Dr. Yueh, mas Paul mantinha sua conclusão final em suspenso. Era difícil aceitar que um médico Suk pudesse ser um traidor.

A maca inclinou-se levemente enquanto os soldados passavam com ela através da porta, saindo para a noite estrelada. Uma bóia suspensora raspou contra o portal, e eles começaram a andar na areia, pés rangendo sobre ela. A asa de um “tóptero” na frente tapava as estrelas. A maca baixou ao solo.

Paul adaptou seus olhos à luz fraca, reconhecendo o soldado surdo que agora abria a porta do ornitóptero e olhando para a penumbra verde do interior, provocada pelo painel de instrumentos.

— Este é o “tóptero” que devemos usar? — indagou o surdo, voltando-se para observar os lábios dos companheiros.

— É o que o traidor disse estar preparado para trabalho no deserto — respondeu o outro.

Scarface acenou com a cabeça.

— Mas esse é um daqueles usados em pequenos trabalhos de ligação. Só há espaço aí dentro para dois de nós.

— Dois é o suficiente — disse o carregador da maca, movendo-se para chegar mais perto e mostrar seus lábios para leitura.

— Nós podemos nos encarregar de tudo daqui para a frente, Kinet.

— O Barão disse que eu me certificasse do que acontecera a esses dois — disse Scarface.

— Com que se preocupa? — indagou outro soldado por trás da maca.

— Ela é uma Bene Gesserit, elas possuem poderes.

— Ahh... — O carregador da maca fez o sinal do punho junto do ouvido.

— Uma delas, hein? Sabe o que isso significa.

O soldado por trás dele grunhiu.

— Ela será carne para os vermes logo. Não acredita que mesmo uma bruxa Bene Gesserit tenha poderes sobre um daqueles grandes vermes, hein, Czigo? — Deu um empurrão na maca.

— Eh eh! — exclamou o carregador. Voltou-se para a maca, pegando Jessica pelos ombros. — Vamos, Kinet. Você pode vir conosco, se quiser se certificar.

— Muita gentileza sua me convidar, Czigo — respondeu Scarface.

Jessica sentiu-se sendo erguida, a sombra da asa girando, estrelas. Foi empurrada para a traseira do “tóptero”, as fibras krimskell que a prendiam foram examinadas e depois amarradas ao piso. Paul foi colocado ao seu lado, amarrado firmemente, mas Jessica notou que o rapaz fora imobilizado com cordas simples.

Scarface, o surdo a quem os companheiros chamavam Kinet, tomou seu assento na frente. O carregador de maca chamado Czigo deu a volta e ocupou o outro assento frontal.

Kinet fechou a porta do seu lado e curvou-se sobre os controles. O “tóptero” decolou ao impulso de uma batida da asa e dirigiu-se para o sul, por sobre a Muralha Escudo. Czigo bateu no ombro do companheiro, dizendo:

— Por que não vai lá atrás e fica de olho naqueles dois?

— Tem certeza de que sabe o caminho? — indagou Kinet, observando os lábios do outro.

— Eu ouvi o traidor tanto quanto você.

Kinet girou seu assento e Jessica percebeu uma cintilação de luz estelar na arma laser em sua mão. O interior de paredes finas do ornitóptero parecia coletar a iluminação, enquanto seus olhos se ajustavam, todavia, a face cheia de cicatrizes do guarda permanecia indistinta. Jessica testou o cinturão de seu assento e o encontrou frouxo. Havia uma aspereza no cinto sobre seu braço esquerdo, e ela percebeu que a correia fora quase cortada. Arrebentaria com um puxão súbito.

“Será que alguém esteve neste “tóptero” preparando-o para nós?”, perguntou ela com os seus botões. “Quem?” Lentamente, torceu seus pés amarrados para longe dos pés de Paul.

— Certamente é uma vergonha desperdiçar uma mulher tão bonita como esta — disse Scarface. — Você já possuiu algum tipo nobre? — Voltou-se para olhar o piloto.

— Nem todas as Bene Gesserit são nobres — respondeu ele.

— Mas todas elas parecem.

“Ele pode me ver muito bem”, pensou Jessica. Ergueu suas pernas amarradas por sobre o assento encolhendo-se numa bola sinuosa e olhando para Scarface.

— Realmente muito bonita — disse Kinet. Umedeceu os lábios com a língua. — Certamente seria uma vergonha. — Olhou para Czigo.

— Está pensando o que eu estou pensando? — indagou o piloto.

— E quem saberia? — perguntou o guarda. — Depois... — Deu de ombros. — Eu nunca tive nenhuma nobre para mim. Posso nunca mais ter outra chance como esta.

— Se colocar a mão na minha mãe... — gritou Paul, olhando com ódio para Scarface.

— Ei! — riu o piloto. — O filhote sabe latir. Mas não vai morder.

E Jessica pensou: “Paul está colocando sua voz num tom muito agudo. Mas pode funcionar.”

Voaram em silêncio.

“Esses pobres tolos”, pensou Jessica observando os guardas e relembrando as palavras do Barão. “Eles serão mortos assim que relatarem o sucesso de sua missão. O Barão não vai querer testemunhas.”

O “tóptero” fez uma curva sobre a extremidade sul da Muralha Escudo e ela viu uma extensão de areia sombreada pelo luar estender-se por baixo.

— Aqui já deve ser longe o suficiente — disse o piloto. — O traidor falou para colocá-los na areia em qualquer lugar perto da Muralha Escudo. — Inclinou a aeronave em direção às dunas numa longa descida curva até trazê-la num vôo rasante sobre a superfície do deserto.

Jessica percebeu que Paul iniciara a respiração rítmica dos exercícios de auto-controle. Ele fechou os olhos e depois abriu.

Ela observava sem poder ajudá-lo. “Ele não dominou a voz ainda.” pensou ela. “Ele falha.”

O “tóptero” tocou na areia com uma sacudidela suave e Jessica, olhando para o norte na direção da Muralha Escudo, viu a sombra de asas descendo para se ocultar por lá.

“Alguém está nos seguindo! Quem? Aqueles que o Barão enviou para vigiarem este par. E existirão vigias para os vigias também.”

Czigo desligou os rotores das asas e o silêncio se derramou sobre eles.

Jessica voltou a cabeça podendo enxergar através da janela, além de Scarface. Viu o brilho fraco da lua nascente, e o lado coberto de geada de uma rocha erguendo-se do deserto. Estrias escavadas pela erosão riscavam sua superfície.

Paul pigarreou.

E o piloto disse:

— Agora, Kinet?

— Eu não, Czigo.

Czigo voltou-se, dizendo:

— Ah, olhe só. — E estendeu a mão para a saia de Jessica.

— Remova-lhe a mordaça! — comandou Paul.

Jessica sentiu as palavras ressoarem no ar. O tom, o timbre excelentes, imperativos, muito precisos. Uma tonalidade levemente mais baixa teria sido ideal mas essa também poderia cair dentro do espectro desse homem.

Czigo ergueu a mão para o pano sobre a boca de Jessica, desfez o nó.

— Pare com isso! — ordenou Kinet.

— Ah, cale a boca — respondeu Czigo. — As mãos dela estão amarradas.

A tira de pano caiu e os olhos dele brilharam enquanto observava Jessica.

Kinet colocou a mão no ombro do piloto.

— Olhe, Czigo, não é preciso...

Jessica torceu o pescoço, cuspiu a mordaça ajustando sua voz num tom íntimo e baixo.

— Cavalheiros! Não precisam lutar por minha causa. — E ao mesmo tempo contorceu-se sinuosamente em direção a Kinet.

Viu que ficavam tensos, percebendo que naquele instante estavam convictos da necessidade de lutar por ela. Sua discórdia não requeria nenhum outro motivo, em suas mentes, já estavam brigando por sua causa.

Ergueu o rosto para o brilho do painel de instrumentos, para ter certeza de que Kinet leria seus lábios e disse:

— Vocês não devem discordar. — Eles se afastaram subitamente olhando-se desconfiados. — Vale a pena lutar por uma mulher? — indagou ela.

Simplesmente por pronunciar aquelas palavras, por estar ali, ela tornava infinitamente importante que lutassem por ela.

Paul comprimiu os lábios, forçando-se a ficar calado. Ele tivera sua chance de utilizar a Voz. Agora tudo dependia de sua mãe, cuja prática ia muito além da sua.

— Sim — exclamou Scarface. — Não é preciso lutar...

Sua mão disparou em direção ao pescoço do piloto. O golpe foi recebido com um brilho de metal que deteve o braço, e no mesmo movimento, atingiu o peito de Kinet.

Scarface gemeu e tombou para trás de encontro à porta.

— Pensou que eu era algum idiota para não conhecer esse truque — comentou Czigo. Recuou a mão, revelando a faca que brilhou na luz do luar.

— Agora o garoto — disse ele, inclinando-se para Paul.

— Não há necessidade disso — murmurou Jessica.

Czigo hesitou.

— Você não preferiria que eu cooperasse? — indagou ela. — Dê uma chance ao garoto. — Seu lábio contorceu-se num sorriso de desdém. — Ele não terá muita chance lá naquela areia. Permita-lhe isso e... — Ela sorriu. — Será bem recompensado.

Czigo olhou para a esquerda e para a direita, e voltou sua atenção para Jessica.

— Já ouvi o que pode acontecer com um homem neste deserto. O garoto acharia minha faca um gesto de misericórdia.

— Estou pedindo muito? — suplicou ela.

— Está tentando me enganar.

— Não quero ver meu filho morrer — disse Jessica. — Isto é truque?

Czigo moveu-se para trás, abriu o trinco da porta com o cotovelo e agarrou Paul arrastando-o por cima do assento e empurrando-o até estar com metade do corpo fora da porta. Ergueu a faca.

— O que você faria, garoto, se eu lhe cortasse as cordas?

— Ele sairia daqui imediatamente, e correria para aquelas rochas — disse Jessica.

— É isso o que você faria, filhote? — indagou Czigo.

A voz de Paul foi apropriadamente sombria.

— Sim.

A faca moveu-se para baixo, cortando as cordas que prendiam suas pernas. Paul sentiu a mão do homem em suas costas, para empurrá-lo para fora e fingiu que caía em direção à moldura da porta, tentando se apoiar, voltou-se, como se lutasse para se equilibrar, e golpeou subitamente com o pé direito.

O dedo do pé foi apontado com tamanha precisão, que justificaria os longos anos de treinamento, como se todo aquele aprendizado se reunisse num único instante. Quase todos os músculos do corpo cooperaram na colocação e no direcionamento do pé, de modo que a extremidade atingiu a parte macia do abdômen de Czigo, logo abaixo do esterno, pressionou para cima com terrível força sobre o fígado, e através do diafragma, para esmagar o ventrículo direito do coração do homem.

Com um grito e um som gorgolejante o guarda tombou para trás, num espasmo, e desabou sobre os assentos. Paul, incapaz de usar suas mãos, caiu na areia lá fora, rolando para dissipar a energia da queda e colocando-se de pé. Saltou de volta para a cabine, onde encontrou a faca e segurou-a nos dentes, enquanto sua mãe roçava suas cordas no gume até se soltar. Ela apanhou a lâmina e livrou as mãos do rapaz.

— Eu teria cuidado dele — disse ela. — Ele teria cortado minhas cordas. Aquilo foi um risco tolo.

— Eu vi a abertura e a usei — respondeu ele.

Ela percebeu o duro controle em sua voz e disse:

— O sinal da casa de Yueh está rabiscado no tela desta cabine.

Olhou para cima e viu o símbolo encaracolado.

— Vamos sair e dar uma olhada nesta aeronave. Existe um pacote debaixo do assento do piloto. Eu o percebi quando entramos.

— Bomba?

— Duvido. Há algo peculiar aqui.

Paul saltou de novo para a areia e Jessica o seguiu. Ela voltou-se estendendo a mão por baixo do assento em busca do estranho embrulho, vendo os pés de Czigo perto de seu rosto e sentindo umidade no embrulho enquanto o removia. Percebeu que a umidade era o sangue do piloto.

“Desperdício de umidade”, pensou ela, sabendo que isso era típico da mentalidade de Arrakeen.

Paul olhou em torno, vendo a escarpa rochosa elevar-se do deserto como uma praia saindo do mar, com paliçadas escavadas pelo vento erguendo-se além. Voltou-se enquanto sua mãe levantava o embrulho para retirá-la do “tóptero”, e viu quando ela olhou na direção da Muralha Escudo. Fez o mesmo, para descobrir o que lhe atraíra a atenção, e percebeu outro ornitóptero descendo em direção a eles. Não teriam tempo para retirar os corpos do aparelho e escapar.

— Corra, Paul! — gritou Jessica. — São os Harkonnen.

 

Arrakis ensina a mentalidade da faca: cortar aquilo que está incompleto e dizer.

 — Agora está completo porque termina aqui.

 

— de Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Um homem no uniforme dos Harkonnen parou na extremidade do corredor e encarou Yueh, depois de olhar rapidamente para o corpo de Mapes e o vulto estendido do Duque. Levava uma arma laser em sua mão direita. Havia uma aparência de brutalidade espontânea em sua figura, um senso de dureza e equilíbrio que causou um calafrio em Yueh.

“Sardaukar”, pensou ele. “Um Bashar, por sua aparência. Provavelmente do Imperador, enviado aqui para ficar de olho no que está acontecendo. Não importa o uniforme, não há meio de disfarçá-los.”

— Você é Yueh? — perguntou o homem. Olhou de modo questionador para o anel da Escola Suk no cabelo do doutor e para a tatuagem em forma de diamante. Depois fitou os olhos de Yueh.

— Eu sou Yueh — respondeu o médico.

— Pode ficar tranqüilo, Yueh. Quando abaixou os escudos da casa nós entramos diretamente. Está tudo sob controle aqui. Este é o Duque?

— Este é o Duque.

— Morto?

— Apenas inconsciente. Sugiro que o amarre.

— Você cuidou destes outros? — Ele olhou para trás na direção do corredor onde jazia o cadáver de Mapes.

— Maior é o pesar — murmurou Yueh.

— Pesar? — zombou o Sardaukar. Ele avançou e examinou Leto. — Então este é o grande Duque Vermelho.

“Se houvesse alguma dúvida a respeito da identidade deste homem, ela terminaria aqui”, pensou Yueh. “Somente o imperador chama os Atreides de os 'Duques Vermelhos'.”

O Sardaukar se abaixou e cortou a insígnia do falcão vermelho do uniforme de Leto.

— Um pequeno souvenir — ele explicou. — Onde está o anel do sinete ducal?

— Não estava com ele — respondeu Yueh.

— Estou vendo — retrucou bruscamente o Sardaukar.

Yueh engoliu em seco e ficou tenso. “Se me pressionarem e trouxerem uma Reveladora da Verdade, eles descobrirão a respeito do anel e do “tóptero”, que preparei. Tudo será em vão”, pensou.

— Algumas vezes o Duque envia o anel por um mensageiro, como garantia de que uma ordem está vindo diretamente dele — explicou o médico.

— Devem ser mensageiros de uma confiança tremenda, hein? — murmurou o Sardaukar.

— Não vai amarrá-lo?

— Quanto tempo ele estará inconsciente?

— Duas horas ou mais. Minha dosagem não foi tão precisa quanto no caso da mulher e do menino.

O Sardaukar cutucou o Duque com o pé.

— Não há nada a temer, mesmo quando ele acordar. Quando a mulher e o menino acordarão?

— Dentro de dez minutos.

— Tão cedo?

— Disseram-me que o Barão chegaria logo atrás de seus homens.

— Assim será. Você aguardará lá fora, Yueh. — Olhou duramente para o médico. — Agora!

Yueh ainda fitou Leto.

— E a respeito...

— Ele será entregue ao Barão, adequadamente amarrado e embalado, como um assado para o forno. — Novamente o Sardaukar olhou para a tatuagem-diamante na testa de Yueh. — Você é conhecido. Estará seguro dentro dos corredores. Não temos mais tempo para conversas, traidor, eu ouço os outros chegando.

“Traidor”, pensou Yueh. Abaixou a cabeça e passou pelo Sardaukar, percebendo num vislumbre como a história iria lembrá-lo: “Yueh, o traidor”.

Encontrou mais corpos em seu caminho para a entrada frontal e olhou para eles, temeroso de que pudessem ser Paul ou Jessica.

Todos eram das tropas da casa, ou então usavam uniformes Harkonnen.

Guardas Harkonnen surgiram alertas, olhando para ele quando saiu pela porta da frente diretamente para a noite iluminada por chamas. As palmeiras ao longo da estrada haviam sido incendiadas no intuito de iluminar a casa. Uma fumaça negra, proveniente dos inflamáveis usados para queimar as palmeiras, elevava-se através de labaredas cor de laranja.

— É o traidor — disse alguém.

— O Barão vai querer vê-lo logo.

“Devo chegar ao “tóptero”, — pensou ele. Preciso colocar o anel do sinete ducal onde Paul possa encontrá-la.” Um medo súbito o atingiu: “E se Idaho suspeitar de mim ou ficar impaciente? Se ele não esperar, nem for exatamente para onde eu lhe disse, Jessica e Paul nunca serão salvos deste massacre. E terei negado até mesmo o menor alívio para minha consciência.”

O guarda Harkonnen soltou-lhe o braço, dizendo:

— Espere ali e fique fora do caminho.

Abruptamente Yueh viu-se abandonado nesse cenário de destruição, sem que nada lhe fosse poupado, sem receber a menor compaixão. “Idaho não pode falhar!”

Outro guarda esbarrou nele e gritou:

— Fique fora do caminho, seu!

“Mesmo depois de lucrarem com meus atos eles me desprezam.”

Empertigou-se ao ser empurrado para o lado e tentou recuperar algo de sua dignidade.

— Espere pelo Barão — rosnou o oficial da guarda.

Yueh respondeu com um aceno e caminhou com uma naturalidade controlada ao longo da fachada da casa, virou na extremidade, penetrando nas sombras, longe da visão das palmeiras em chamas. Rapidamente, cada passo traindo-lhe a ansiedade, ele dirigiu-se para o pátio dos fundos, abaixo da estufa, onde o “tóptero” esperava: a aeronave colocada para transportar Paul e sua mãe.

Um guarda colocara-se na porta dos fundos, sua atenção voltada para o corredor iluminado e os homens fazendo ruído lá dentro, dando busca nos aposentos.

“Como estão confiantes!” pensou.

Manteve-se nas sombras e deu a volta ao redor do “tóptero”, abrindo a porta no lado oposto ao guarda. Tateou por baixo dos assentos frontais procurando o estojo Fremen que escondera, levantou uma aba e enfiou o anel ducal. Sentiu o papel crespo de especiaria, onde escrevera a nota e pressionou o anel contra o papel. Removeu a mão, fechando de novo o embrulho.

Suavemente, fechou a porta do “tóptero”, e caminhou de volta até o canto da fachada, de onde atravessou sob a luz das palmeiras incendiadas.

“Agora está feito”, disse para si mesmo.

Novamente caminhava na luz das chamas. Puxou o manto ao redor da cabeça e olhou para o fogo. “Logo saberei. Logo verei o Barão e saberei. E o Barão encontrará um pequeno dente...”

 

Uma lenda diz que, no instante em que o Duque Leto Atreides morria, um meteoro riscava o céu, acima de seu palácio ancestral em Calada”.

 

— Princesa Irulan: Introdução a uma história infantil do Muad'Dib

 

O Barão Vladimir Harkonnen encontrava-se de pé, diante de uma das vigias da fragata leve, agora pousada, que usava como posto de comando. Mais além da janela circular via a noite de Arrakeen iluminada pelas chamas, sua atenção voltada para a distante Muralha Escudo onde suas armas secretas funcionavam.

Artilharia explosiva.

Os canhões disparavam contra as cavernas para onde os soldados do Duque haviam se retirado, numa resistência final. Disparos cuidadosamente medidos, de luz alaranjada, lançando chuveiros de rocha e pó na breve iluminação. Os homens do Duque estavam sendo fechados pelos desmoronamentos, para morrerem de inanição, presos como animais em suas tocas.

O Barão podia sentir o distante martelar dos canhões: uma batida de tambor conduzida até ele pelo metal da nave: brump... brump. Então: BRUUMP — brump!

“Quem iria pensar em reviver a artilharia nesta era de escudos?” O pensamento era como um sorriso mental. “Era previsível que os homens do Duque fugissem para aquelas cavernas e o Imperador apreciará minha habilidade em poupar as vidas em nossas forças conjuntas.”

Ajustou um dos pequenos suspensores que levantavam seu corpo obeso contra a força da gravidade. Um sorriso vincou sua boca, pressionando a linha do queixo.

“Uma pena desperdiçar tropas como as do Duque”, pensou ele.

E sorriu mais amplamente, rindo de si próprio. “Ter pena deve ser cruel!” Balançou afirmativamente a cabeça. Falhas eram, por definição, intoleráveis. O Universo inteiro estava lá, à espera do homem que pudesse tomar as decisões certas. Os coelhos indecisos tinham que ser descobertos, colocados para correr em busca de suas tocas. De que outro modo poderia controlá-los e fazer com que se reproduzissem? Imaginou seus soldados como abelhas colocando os coelhos em fuga e pensou: “O dia zumbe suavemente quando tem um bom número de abelhas trabalhando para você.”

Uma porta se abriu por trás dele, e o Barão observou o reflexo na janela enegrecida pela noite, antes de se voltar.

Piter de Vries avançou para dentro da câmara seguido por Umman Kudu, o capitão da guarda pessoal do Barão. Havia um movimento de homens além da porta, os rostos submissos de seus guardas, com suas expressões cuidadosamente servis em sua presença.

O Barão se virou.

Piter levou o dedo ao topete numa falsa saudação.

— Boas notícias, meu senhor. Os Sardaukar trouxeram o Duque.

— Claro que trouxeram — trovejou o Barão.

Observou a sombria máscara de maldade no rosto efeminado de Piter. E os olhos, aquelas fendas sombreadas do mais puro azul.

“Logo terei que removê-lo”, pensou. “Ele quase ultrapassou sua utilidade, quase chegou ao ponto de positiva ameaça para minha pessoa. Mas primeiro ele deve fazer com que o povo de Arrakis o odeie. Desse modo, saudarão meu querido Feyd-Rautha como a um salvador.”

Voltou sua atenção para o capitão da guarda — Umman Kudu músculos da mandíbula lembrando uma tesoura, queixo parecendo a extremidade de uma bota —, um homem em quem podia confiar por serem seus vícios bem conhecidos.

— Primeiro quero saber onde está o traidor que me entregou o Duque. Devo dar a esse homem sua recompensa.

Piter virou-se e fez sinal para o guarda do lado de fora.

Houve um movimento de vultos negros e o Dr. Yueh entrou.

Seus movimentos eram firmes, rígidos. O bigode caía-lhe sobre os cantos dos lábios purpúreos. Apenas os velhos olhos pareciam vivos. Yueh parou a três passos da porta, obedecendo a um gesto de Piter, e ficou lá, olhando para o Barão.

— Ahh, Dr. Yueh.

— Meu senhor Harkonnen.

— Ouvi dizer que nos entregou o Duque.

— Minha parte no acordo, meu senhor.

O Barão olhou para Piter.

Piter assentiu com a cabeça e ele voltou sua atenção para Yueh.

— A parte do acordo, hein? E eu... — disse depressa. — O que eu devia fazer em troca?

— Sabe muito bem, meu senhor Harkonnen.

Yueh permitia-se pensar agora. Percebera a traição nos modos do Barão. Wanna estava de fato morta, perdida além de seu alcance. De outro modo ainda existiria algum poder sobre o fraco doutor. Os modos do Barão indicavam que tal não acontecia.

— Sei?

— Prometeu libertar minha Wanna de sua agonia.

— Oh, sim! Agora me lembro. E assim fiz. Essa era a minha promessa. Foi desse modo que dominamos o Condicionamento Imperial. Você não podia suportar a visão de sua bruxa Bene Gesserit rastejando sob os amplificadores de dor do Piter. Bem, o Barão Vladimir Harkonnen sempre cumpre suas promessas. Eu lhe disse que a livraria de sua agonia e permitiria que se reunisse a ela. Assim será. — Acenou com a mão para Piter.

Os olhos azuis de Piter assumiram urna aparência vítrea. Seus movimentos eram elegantes e imprevistos como os de um gato.

A faca em sua mão brilhou como garra enquanto se lançava sobre as costas de Yueh.

O velho se enrijeceu, sem tirar os olhos do Barão.

— Assim, junte-se a ela.

Yueh continuava de pé, oscilando. Seus lábios se moveram com uma precisão cuidadosa, a voz saindo numa cadência curiosamente controlada:

— Você... pensa... que... me... derrotou... Você... pensa... que... não... sei... o... que... conquistei... para... minha... Wanna.

E ele caiu. Sem se curvar ou desfalecer. Caiu ereto como uma árvore.

— Assim, junte-se a ela — repetiu o Barão. Mas suas palavras eram como um fraco eco.

Yueh lhe dera uma sensação de presságio. Ele voltou sua atenção rapidamente para Piter, observando-o limpar a lâmina num pedaço de pano, e a aparência cremosa de satisfação nos olhos azuis.

“Então é assim que ele mata por suas próprias mãos”, pensou ele. “É bom saber.”

— Ele nos entregou o Duque?

— Certamente, meu senhor — respondeu Piter.

— Então, traga-o aqui!

Piter olhou para o capitão da guarda que girou para obedecer.

O Barão olhou para Yueh no chão. Pelo modo como o homem caíra, fazia pensar que tinha carvalho em vez de ossos no seu interior.

— Nunca consegui confiar num traidor — disse ele. — Nem mesmo num traidor que fabriquei.

Olhou para a janela obscurecida pela noite. A quietude negra além era toda sua, ele o sabia. Não havia mais o troar da artilharia contra a Muralha Escudo. As tocas encontravam-se seladas. Naquele instante sua mente não conseguiu conceber nada mais belo do que o vazio negro. A não ser que houvesse branco sobre o negro. Branco lustroso como porcelana.

Mas permanecia o sentimento de dúvida.

Que teria tentado dizer o tolo do doutor? Obviamente ele sabia o que o esperava no final. Mas aquele trecho a respeito de julgar que o derrotara. “Você pensa que me derrotou.” O que significaria?

O Duque Leto Atreides entrou pela porta. Seus braços presos por correntes, seu rosto aquilino manchado de pó. O uniforme fora rasgado no ponto onde alguém lhe arrancara a insígnia. Havia farrapos sobre a cintura onde o cinturão-escudo fora removido sem desatar os laços do uniforme. Os olhos do Duque tinham uma aparência esgazeada e insana.

— Bem — disse o Barão. Hesitou, respirando fundo. Percebera ter falado muito alto e esse momento, tão imaginado, perdera parte de seu sabor.

“Maldito doutor por toda a eternidade!”, pensou.

— Creio que o bom Duque está drogado — explicou Piter. — Foi deste modo que Yueh o apanhou para nós. — Voltou-se para o Duque: — Não está drogado, meu querido Duque?

A voz era distante. Leto podia sentir as correntes, a dor em seus músculos, os lábios partidos. Suas faces queimavam, o sabor seco da sede irritando-lhe a boca. Mas os sons eram monótonos, como se amortecidos por um revestimento de algodão. Só podia ver formas vagas através desse revestimento.

— E quanto à mulher e ao menino, Piter? — indagou o Barão. — Alguma notícia?

A língua de Piter moveu-se sobre os lábios.

— Você ouviu alguma coisa! — exigiu o Barão. — O quê?

Piter olhou rapidamente para o capitão da guarda e de volta ao Barão.

— Os homens que enviamos para o trabalho, meu senhor. Eles... ah... foram... encontrados.

— Bem, e disseram que tudo estava satisfatório?

— Eles estão mortos, meu senhor.

— Mas é claro que estão! O que eu quero saber é...

— Eles estavam mortos quando os encontramos, meu senhor.

O rosto do Barão ficou lívido.

— E a mulher e o menino?

— Nenhum sinal, meu senhor, mas havia um verme. Ele chegou enquanto o local estava sendo examinado. Talvez tenha acontecido como desejávamos: um acidente. Possivelmen...

— Nós não nos baseamos em possibilidades, Piter. E quanto ao “tóptero” desaparecido? Isso sugere alguma coisa ao meu Mentat?

— Um dos homens do Duque obviamente escapou nele, meu senhor. Matou nosso piloto e escapou.

— Qual dos homens do Duque?

— Foi uma morte limpa e silenciosa, meu senhor. Isso indica trabalho de Hawat ou daquele Halleck. Possivelmente Idaho. Ou qualquer um dos principais tenentes.

— Possibilidades — murmurou o Barão. Olhou para a figura drogada e cambaleante do Duque.

— A situação está sob nosso controle, meu senhor — insistiu Piter.

— Não, não está! Onde se encontra aquele estúpido planetólogo? Onde está aquele Kynes?

— Soubemos onde ele pode ser encontrado e já mandamos buscá-lo, meu senhor.

— Não gosto do modo como esse servo do Imperador está nos ajudando — resmungou o Barão.

Eram palavras que lhe chegavam surdas, abafadas, mas algumas delas queimaram na mente de Leto. “A mulher e o menino, nenhum sinal.” Paul e Jessica haviam escapado. E o destino de Hawat, Halleck e Idaho permanecia desconhecido. Ainda havia esperança.

— Onde está o anel do sinete ducal? — perguntou o barão. — Não está em seu dedo.

— O Sardaukar diz que não estava com ele quando foi apanhado — respondeu o capitão da guarda.

— Você matou o doutor muito cedo. Aquilo foi um erro, você devia ter me avisado, Piter. Moveu-se muito precipitadamente para o êxito de nosso empreendimento. — Olhou carrancudo. — Possibilidades!

O pensamento ficou suspenso como uma onda senoidal na mente de Leto. “Paul e Jessica escaparam!” E havia algo mais em sua memória: um acordo, quase podia se lembrar...

“O dente!”

Lembrava-se de parte daquilo agora: “uma pílula de gás venenoso moldada na forma de um dente postiço.”

Alguém lhe dissera para lembrar-se do dente. O dente encontrava-se em sua boca, podia sentir sua forma com a língua. Tudo que devia fazer era mordê-la com força.

“Ainda não”, pensou.

Alguém lhe dissera para esperar até que o Barão estivesse perto.

Quem lhe dissera? Não conseguia se lembrar.

— Durante quanto tempo ele permanecerá drogado desse modo? — indagou o Barão.

— Talvez mais uma hora, meu senhor.

— Talvez — resmungou o Barão. Voltou-se novamente para a janela escurecida pela noite. — Estou faminto.

“Aquele é o Barão, aquela forma cinzenta e enevoada ali”, pensou Leto. A forma dançava para a frente e para trás, oscilando com o movimento da sala. E a sala se expandia e contraia, tornava-se brilhante e depois escura. Dobrou-se na escuridão e apagou.

O tempo tornou-se uma seqüência de camadas para o Duque.

Ele deslizava através delas. “Devo esperar.”

Havia uma mesa. Leto via a mesa muito claramente. E um homem gordo e grosseiro do outro lado da mesa com os restos de uma refeição à sua frente. Leto sentiu-se sentado numa cadeira diante do homem gordo, sentiu as correntes, as correias que prendiam seu corpo dormente à cadeira. Tinha consciência da passagem do tempo, mas sua extensão lhe escapara.

— Creio que ele está se recobrando, Barão.

“Uma voz aveludada. Era Piter.”

— Assim eu vejo, Piter.

“Um ronco grave: o Barão.”

Leto sentia que as coisas se tornavam consistentes à sua volta.

A cadeira tornava-se firme, as correntes mais apertadas.

E podia ver o Barão claramente agora. Observou os movimentos das mãos do homem, seus toques compulsivos. A borda do prato, o cabo de uma colher, um dedo traçando a dobra da papada.

Leto fitava a mão se movendo, fascinado por ela.

— Você pode me ouvir, Duque Leto. Sei que pode me ouvir — disse o Barão. — Queremos saber de você onde poderemos encontrar sua concubina e a criança que nela gerou.

Nenhum sinal escapara a Leto, mas as palavras formaram uma onda de calma através dele. “Então é verdade, eles não pegaram Paul e Jessica.”

— Isto não é um brinquedo de criança — roncou o Barão. — Deve saber que não estamos brincando. — Inclinou-se na direção de Leto, estudando-lhe a face. Magoava o Barão que essa questão não pudesse ser resolvida particularmente, apenas entre eles dois.

Permitir que outros vissem a realeza em tais apertos era um mau precedente.

Leto sentia suas forças retornarem. E agora a memória do falso dente surgia em sua mente, nítida como uma torre numa planície.

A cápsula em forma de nervo dentro do dente — o gás venenoso — lembrava-se de quem havia colocado a arma mortal em sua boca: “Yueh.”

A memória enevoada pela droga recordava-se indistintamente de um cadáver sendo arrastado nessa sala. Algo que permanecera como um vapor suspenso na mente de Leto. Sabia que fora Yueh.

— Ouviu este som, Duque Leto? — indagou o Barão.

Leto tornou-se consciente de um som rouco, o gemido abafado de alguém em agonia.

— Pegamos um de seus homens disfarçados de Fremen. Desvendamos o disfarce muito facilmente: os olhos, como sabe.

Ele insiste que foi mandado para se infiltrar entre os Fremen e espioná-los, mas vivi algum tempo neste planeta, meu caro primo. Ninguém espiona aquela ralé esfarrapada do deserto. Diga-me, você conseguiu comprar a ajuda deles? Mandou sua mulher e seu filho para eles?

Leto sentiu o medo apertar seu peito. “Se Yueh os enviou para o deserto... a busca não cessará até que sejam encontrados”, pensou.

— Vamos, vamos — continuou o Barão. — Nós não temos muito tempo e a dor é rápida. Por favor, não me leve a fazer isso, meu querido Duque. — Olhou para Piter, que permanecia ao lado de Leto. — Piter não tem todas as suas ferramentas aqui, mas tenho certeza de que poderá improvisar.

— Improvisação às vezes é melhor, Barão.

“Aquela voz aveludada, insinuante!” Leto podia ouvi-la junto de sua orelha.

— Você tinha um plano de emergência — disse o Barão. — Para onde foram enviados a mulher e o menino? — Olhou para a mão de Leto. — Seu anel está faltando. Está com o garoto?

O Barão fitou diretamente os olhos de Leto.

— Você não responde. Vai me forçar a fazer uma coisa que não quero? Piter usará métodos simples e diretos, e eu concordo que algumas vezes eles são o que há de melhor, mas não é bom que você seja submetido a tais coisas.

— Sebo quente nas costas, talvez, ou então nas pálpebras — disse Piter. — Talvez em outras partes do corpo. É especialmente eficiente quando a vítima não sabe onde o sebo vai cair em seguida. É um bom método e há uma espécie de beleza no padrão de bolhas de pus brancas na pela nua, hein, Barão?

— Primoroso — respondeu o Barão, sua voz soando mal-humorada.

“Aqueles dedos tocando!” Leto observava as mãos gordas, as jóias brilhantes nas mãos gordas como as de um recém-nascido seus movimentos compulsivos.

Os sons da agonia chegando através da porta atingiam os nervos do Duque. “Quem eles apanharam? Teria sido Idaho?”

— Acredite-me, querido primo. Não quero chegar a esse ponto.

— Pense em mensagens nervosas, correndo para buscar a ajuda que não virá — disse Piter. — Possuo um talento artístico para isso, como sabe.

— Você é um artista soberbo — rosnou o Barão. — Agora tenha a decência de ficar calado.

Leto lembrou-se subitamente de algo que Gurney Halleck dissera uma vez, ao ver uma pintura do Barão: “E eu fiquei de pé sobre a areia, vendo a besta se erguer do mar... e sobre sua cabeça o nome da blasfêmia.”

— Nós perdemos tempo, Barão — disse Piter.

— Talvez. Você sabe, meu querido Leto, que no final vai nos dizer onde eles estão. Existe um nível de dor que irá subjugá-lo.

“Ele tem razão”, pensou Leto. “Se não fosse pelo dente... e o fato de que verdadeiramente não sei onde eles se encontram.”

O Barão pegou uma fatia de carne, enfiou na boca, mastigou lentamente e engoliu. “Devemos tentar uma nova abordagem”, pensou.

“Observe esta pessoa singular que nega poder ser comprada. Observe-a, Piter.”

E o Barão pensou: “Sim! Olhe para ele, este homem que se acredita acima de qualquer suborno. Veja-o preso aqui por um milhão de frações de si mesmo, vendidas em bocados por cada segundo de sua vida! Se você o segurasse agora e sacudisse ele chocalharia oco por dentro. Esvaziado! Vendido! Que diferença faz como ele morre agora?”

O coaxar de sapos ao fundo parou.

O Barão viu Umman Kudu, o capitão da guarda, aparecer na porta do outro lado da sala e sacudiu a cabeça. O prisioneiro não fornecera a necessária informação. Outro fracasso. Hora de parar de desperdiçar o tempo com esse Duque idiota, esse estúpido tolo que não percebe o inferno que jaz tão próximo, a distância medida pela espessura de um nervo.

Esse pensamento acalmou o Barão, vencendo sua relutância em ter um membro da realeza submetido a tortura. Viu-se subitamente como um cirurgião realizando soberbas e intermináveis dissecações com a tesoura — cortando fora as máscaras dos tolos para expor o inferno existente por baixo.

“Coelhos, todos eles”, pensou.

E como se acovardavam quando viam um carnívoro!

Leto olhava por sobre a mesa, perguntando a si mesmo por que esperava tanto. O dente acabaria com tudo aquilo rapidamente.

Mas, ainda assim, a maior parte de sua vida fora boa. Encontrou-se lembrando de uma pipa em forma de antena, suspensa na concha azul do céu de Caladan, e Paul rindo de alegria ao vê-la. Lembrou-se do nascer do sol aqui em Arrakis, com as camadas coloridas de estratos na Muralha Escudo, barrentas na atmosfera empoeirada.

— Muito mal — murmurou o Barão. Empurrou o corpo para longe da mesa, com as mãos apoiadas nas bordas, levantou-se rápido em seus suspensores e hesitou, vendo uma mudança na fisionomia do Duque. Viu o homem respirar fundo e o queixo se enrijecer. Um ondular de músculos no maxilar enquanto o Duque fechava a boca com força.

“Como ele tem medo de mim!”, pensou o Barão.

Movido pelo medo de que o Barão pudesse lhe escapar, Leto mordeu com força a cápsula-dente e sentiu-a partir-se. Abriu a boca expelindo o vapor cáustico que pudera sentir formando-se sobre sua língua. O Barão ficou pequeno, uma figura vista no final de um túnel que se fechava. Ouviu um som estrangulado ao seu lado.

“Piter, o de voz suave, eu o peguei também!”, pensou.

— Piter! O que está havendo?

A voz tonitruante vinha de muito longe. Leto sentia lembranças atropelarem-se em sua mente, como velhos murmúrios de bruxas desdentadas. A sala, a mesa, o Barão, um par de olhos aterrorizados — azul-dentro-de-azul —, tudo comprimido ao seu redor em arruinada simetria.

E havia um homem com um queixo como a extremidade de uma bota, um homem de brinquedo caindo. Um homem de brinquedo com um nariz quebrado inclinado para a esquerda. Um metrônomo desregulado, preso para sempre no início de uma batida. Leto ouviu louças quebrando-se — tão distante —, um rugido em seus ouvidos. Sua mente era uma cesta sem fundo, recebendo tudo. Tudo que já existira, cada grito, sussurro, cada... silêncio.

No final apenas um pensamento restava, aparecendo para Leto numa luz informe, sobre raios negros: “O dia que a carne molda, e a carne que o dia molda.” O pensamento lhe dava um sentimento de plenitude que sabia nunca poder explicar.

Silêncio.

O Barão encontrava-se de pé, com as costas para sua porta particular, sua própria saída de emergência por trás da mesa. Ele a fechara sobre uma sala cheia de homens mortos. Seus sentidos percebiam os guardas afluindo em grande número à sua volta. “Será que eu respirei aquilo?”, perguntou a si mesmo. “O que quer que fosse será que me pegou também?”

Sons retornavam, e com eles o raciocínio. Ouviu alguém gritando ordens, pedindo máscaras contra gás... “mantenham a porta fechada... ponham os ventiladores a toda força!”

“Os outros caíram rapidamente, mas eu ainda estou de pé. Ainda respiro. Diabos, esta foi perto!”, pensou.

Podia analisar o que acontecera agora. Seu escudo fora ativado numa regulagem baixa, mas ainda assim o suficiente para retardar a troca molecular através da barreira do campo. E ele estivera se afastando da mesa... Isto e o som de Piter sufocando-se, que trouxera o capitão da guarda correndo para dentro da sala, para seu próprio fim.

O acaso e um aviso de um homem no último suspiro haviam lhe salvado a vida.

O Barão não sentia gratidão por Piter. O idiota se deixara matar. E quanto àquele estúpido capitão da guarda? Ele afirmara ter revistado todos antes de trazê-los à presença do Barão! “Como fora possível que o Duque...? Não houvera nenhum aviso, nem mesmo do farejador de venenos sobre a mesa, até que fosse muito tarde. Como?”

“Bem, não importa agora”, pensou o Barão, sua mente se clareando. “O próximo capitão da guarda começará uma investigação para encontrar as respostas a todas essas perguntas.”

Tornou-se mais consciente da atividade no corredor, além da curva, para a outra porta da sala da morte. O Barão afastou-se de sua porta, observando os lacaios ao seu redor. Eles estavam lá esperando, silenciosos, olhando para o Barão.

“Será que o Barão vai ficar furioso?”

E o Barão percebia que apenas alguns segundos haviam transcorrido desde sua fuga daquela sala terrível.

Alguns guardas tinham armas apontadas para a porta. Outros dirigiam sua ferocidade contra o corredor vazio que se estendia além, em direção aos ruídos que vinham da curva à direita.

Um homem veio correndo daquela direção, máscara contra gases pendente de seu pescoço, olhos atentos aos farejadores de veneno alinhados em fila ao longo do teto desse corredor. Tinha cabelo louro, rosto chato e olhos verdes. Linhas marcadas irradiavam-se de sua boca de lábios grossos. Parecia uma criatura aquática colocada erradamente entre aqueles que caminhavam sobre a terra.

O Barão olhou para o homem, lembrando seu nome: Nefud. Lakin Nefud. Cabo da Guarda. Nefud era viciado em semuta, a combinação de droga e música que atingia estágios profundos da consciência. Uma informação bem útil.

Ele parou diante do Barão e fez a saudação.

— O corredor está limpo, meu senhor. Eu estava do lado de fora observando e vi que deve ter sido gás venenoso. Os ventiladores em sua sala estão sugando ar destes corredores. — Olhou para o farejador acima da cabeça do Barão. — Nada daquela substância escapou, temos a sala limpa agora. Quais são as suas ordens?

O Barão reconheceu a voz do homem. O mesmo que gritara as ordens. “Eficiente, este cabo”, pensou.

— Estão todos mortos lá dentro?

— Sim, meu senhor.

“Bem, devemos nos ajustar”, pensou o Barão.

— Primeiro deixe-me felicitá-lo, Nefud. Você é o novo capitão de minha guarda. Espero que guarde no coração a lição aprendida com o destino de seu predecessor.

Observou a consciência da promoção crescer em seu novo oficial. Nefud percebia que nunca mais ficaria sem semuta.

Nefud acenou com a cabeça.

— Meu senhor, sabe que me devotarei inteiramente à sua segurança.

— Sim. Bem, de volta ao trabalho. Suspeito que o Duque tinha alguma coisa em sua boca. Você descobrirá o que era essa alguma coisa, como foi utilizada e quem o ajudou a colocá-la lá. Tornará todas as precauções...

O Barão interrompeu a frase, sua linha de pensamento destruída por um tumulto no corredor às suas costas. Guardas na porta do elevador para os andares inferiores da fragata tentavam conter um alto coronel Bashar que acabara de sair.

O Barão sentiu-se incapaz de analisar-lhe o rosto: magro, com uma boca fina como um talho em couro, olhos escuros como tinta.

— Tirem as mãos de mim, seu bando de comedores de carniça! — rugiu o homem, arremessando os guardas para o lado.

“Ah, um dos Sardaukar”, pensou o Barão.

O coronel caminhou a passos largos para o Barão, cujos olhos semicerraram-se com apreensão. Os oficiais do Sardaukar deixavam-no inquieto. Todos pareciam ser parentes do Duque, e seus modos para com ele...

O coronel plantou-se à sua frente, a meio passo de distância e com as mãos nas cadeiras. Os guardas atrás em nervosa indecisão.

O Barão reparou na ausência de saudação, no desdém nas maneiras do Sardaukar, e seu desconforto aumentou. Eles tinham apenas uma legião nesse local — dez brigadas — reforçando as legiões Harkonnen, mas o Barão não se enganava. Essa única legião seria perfeitamente capaz de derrotá-lo.

— Diga aos seus homens que não devem tentar me impedir de vê-lo, Barão — rosnou o Sardaukar. — Meus homens trouxeram-lhe o Duque Atreides antes que pudesse discutir seu destino consigo. Vamos fazer isso agora.

“Eu não posso ser humilhado diante de meus homens”, pensou o Barão.

— E então? — disse numa voz tão fria e controlada que o deixou orgulhoso de si mesmo.

— Meu Imperador me encarregou de assegurar que seu primo real morreria de modo limpo e sem agonia.

— Foram essas as ordens imperiais que recebi — mentiu o Barão. — Acha que eu desobedeceria?

— Devo relatar ao Imperador o que vejo com meus próprios olhos — disse o Sardaukar.

— O Duque já está morto — retrucou o Barão, e acenou com a mão para que o sujeito se retirasse.

O coronel Bashar continuou encarando o Barão. Nenhum tremor nos olhos ou nos músculos dizia que ele reconhecera a ordem para retirar-se.

— Como?

“Realmente!”, pensou o Barão. “Isso e demais.”

— Por suas próprias mãos, se quer saber. Ele tomou veneno.

— Eu quero ver o corpo agora! — exigiu o coronel.

O Barão olhou para o teta com fingida irritação enquanto pensava: “Maldição! Este Sardaukar verá a sala antes que a disposição dos corpos possa ser mudada!”

— Agora! — rugiu o Sardaukar. — Quero ver com meus próprios olhos.

Não havia meio de evitá-la, percebeu o Barão. O Sardaukar veria tudo. Saberia que o Duque matara homens dos Harkonnen... e que o Barão escapara por pouco. Havia a evidência dos restos do jantar sobre a mesa, e o Duque morto sobre ela cercado de destruição. Não havia meio de evitar.

— Eu não serei logrado — acrescentou o coronel.

— E não está sendo — retrucou o Barão, e olhou para os olhos do oficial. — Não escondo nada de meu Imperador. — Acenou para Nefud. — O coronel Bashar deve ver tudo de uma vez. Leve-o pela porta, Nefud.

— Por aqui, senhor — disse Nefud.

Lentamente, de modo insolente, o Sardaukar passou pelo Barão abrindo caminho com os ombros entre os guardas.

“Insuportável”, pensava o Barão. “Agora o Imperador saberá como fui logrado e reconhecerá nisso um sinal de fraqueza.”

E era cruel perceber como o Imperador e seus Sardaukar eram parecidos em seu desprezo pela fraqueza. O Barão mordeu o lábio inferior, consolando-se com o fato de que o Imperador pelo menos não saberia do ataque dos Atreides em Giedi Prime e da destruição dos estoques de especiaria que os Harkonnen mantinham lá.

“Maldito Duque!”, pensou.

Observou os homens por trás: o arrogante Sardaukar e o atarracado e eficiente Nefud.

“Terei que fazer ajustes”, pensou. “Terei que colocar Rabban governando este maldito planeta uma vez mais. Sem restrições. Terei que gastar meu próprio sangue Harkonnen para colocar Arrakis em condições de aceitar Feyd-Rautha. Maldito Piter! Ele tinha que se deixar matar antes que eu terminasse com ele?!”

E o Barão suspirou.

“Devo mandar pedir um novo Mentat em Tleielax, imediatamente. Eles sem dúvida possuem um novo, pronto para mim, a esta altura.”

Um dos guardas ao seu lado tossiu. O Barão voltou-se para o homem.

— Eu estou com fome.

— Sim, meu senhor.

— E eu desejo me divertir enquanto vocês limpam aquela sala e estudam seus segredos para mim.

O guarda olhou para o chão.

— Que diversão meu senhor deseja?

— Estarei em meu quarto. Tragam-me aquele jovem que compramos em Gamont, aquele com os olhos lindos. Deixem-no bem drogado, não me sinto com disposição para a luta.

— Sim, meu senhor.

O Barão voltou-se e começou a andar de modo ondulante, característico da flutuabilidade produzida pelos suspensores. “Sim”, pensava ele, “aquele rapazinho com os olhos lindos, que se parece tanto com o Paul Atreides.”

 

O mares de Caladan,

Ó Povo do Duque Leto...

A Cidadela de Leto caiu,

Caiu para sempre...

 

— de Canções do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan

 

Paul sentia que todo o seu passado, cada experiência anterior a essa noite tornava-se como areia, escorrendo dentro de uma ampulheta. Estava sentado junto de sua mãe, encolhido com os braços ao redor dos joelhos, dentro de uma pequena tenda de tecido e plástico. Uma tenda destiladora que viera, como os trajes Fremen que agora usavam, de dentro do embrulho deixado no “tóptero”.

Não havia mais dúvida na mente de Paul a respeito de quem colocara o estojo Fremen lá, quem dirigira a rota do “tóptero” que os transportara prisioneiros.

“Yueh.”

O médico traidor os enviara diretamente para as mãos de Duncan Idaho.

Paul observava através da extremidade transparente da tenda, vendo as rochas sombreadas pela luz do luar cercando esse lugar onde Idaho os deixara escondidos.

“Escondendo-me como uma criança quando agora eu sou o Duque”, pensou. Sentia a idéia atormentá-lo, mas não podia negar a sabedoria do que estavam fazendo.

Alguma coisa acontecera à sua consciência essa noite. Via com uma claridade precisa cada circunstância e ocorrência ao seu redor. Sentia-se incapaz de deter o afluxo de dados, ou a fria precisão com que cada novo item era acrescentado ao seu conhecimento, ou o poder de computação centrado em sua consciência. Isso era poder Mentat e muito mais.

Pensou de novo naquele instante de ódio impotente quando o estranho “tóptero” mergulhara sobre eles, baixando como um gigantesco falcão sobre o deserto, o vento uivando através de suas asas. A coisa em sua mente acontecera então. O “tóptero” deslizara pousando e abrindo um sulco numa crista de areia, no encalço das duas figuras correndo: ele mesmo e sua mãe. Lembrava-se agora do cheiro de enxofre provocado pela abrasão dos esquis da aeronave contra a areia.

Sua mãe, ele sabia, voltara-se esperando uma arma laser nas mãos de um mercenário Harkonnen e reconhecera Duncan Idaho inclinando-se para fora da porta aberta, gritando:

— Depressa. Há um sinal de verme ao sul de vocês.

Mas Paul já sabia, ao se virar, quem pilotava aquele “tóptero”. Uma acumulação de minúcias: no modo como o aparelho voara, a corrida do pouso — indícios tão pequenos que nem mesmo sua mãe os detectara —, tudo indicando-lhe a identidade exata da pessoa sentada nos controles.

Jessica se mexeu ao lado dele, dizendo:

— Só pode haver uma explicação. Os Harkonnen tinham a esposa de Yueh. Ele odiava os Harkonnen! Tenho certeza disso. Você leu sua nota. Mas por que ele nos salvou da carnificina?

“Só agora ela percebe e assim mesmo pobremente”, pensou Paul. O pensamento era um choque. Ele soubera do fato como algo natural, percebido ao ler a nota que acompanhara o sinete ducal no embrulho.

“Não tente me perdoar”, escrevera Yueh. “Não quero seu perdão, já carrego uma culpa suficiente. O que fiz foi feito sem malícia ou esperança de compreensão da parte dos outros. É meu próprio tahaddi al-burhan, meu teste final. Eu lhe dou o sinete ducal dos Atreides como prova de minha sinceridade. Quando ler isso, o Duque Leto estará morto. Console-se com minha garantia de que ele não terá morrido sozinho, que aquele que odiamos acima de todos os outros morreu com ele.”

A nota não fora assinada mas não havia engano na caligrafia quase ilegível e bem familiar: Yueh.

Relembrando a carta, Paul experimentava novamente a angústia daquele momento. Algo agudo e estranho que parecera ocorrer fora de sua nova perspicácia. Lera que seu pai estava morto e conhecera a verdade das palavras, mas sentira-as como se fossem nada além de outro dado, outra informação a ser acrescentada em sua mente e utilizada.

“Eu amava meu pai”, pensou Paul, e sabia que isso era verdade. “Eu devia lamentar sua morte, chorar, sentir alguma coisa.”

Mas não sentia nada além de: “Eis um fato importante.”

Apenas um, entre todos os outros fatos.

E durante todo aquele tempo sua mente continuava acrescentando impressões sensoriais, extrapolando, computando.

As palavras de Halleck voltaram à sua mente: “Disposição é coisa para gado ou para fazer amor Você luta quando é necessário, não importando a disposição.”

“Talvez se]a isso”, pensou. “Lamentarei por meu pai mais tarde... quando for a hora.”

Não sentia nenhuma diminuição na fria precisão de seu ser.

Sentia, isso sim, que essa nova consciência era somente um começo, que ela estava aumentando. Penetrara-o o sentimento de um terrível propósito que experimentara primeiro durante sua provação com a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam. Sua mão direita, a mão que recordava da dor, comichava e pulsava.

“É assim que é ser o Kwisatz Haderach?”, perguntou com os seus botões.

— Por algum tempo pensei que Hawat falhara outra vez — disse Jessica. — Pensei que talvez Yueh não fosse um médico Suk.

— Ele era tudo que nós julgávamos ser... e muito mais — respondeu Paul, enquanto pensava: “Por que ela é tão lenta em perceber essas coisas?” Depois acrescentou: — Se Idaho não conseguir chegar até Kynes, nós...

— Ele não é nossa única esperança — disse ela.

— Não foi isso que sugeri.

Ela ouviu o frio do aço em sua voz, o senso de comando, e olhou para o filho através da escuridão acinzentada da tenda destiladora. Paul era uma silhueta delineada contra as rochas cobertas de geada pelo luar, que apareciam na extremidade transparente da tenda.

— Outros dentre os homens de seu pai devem ter escapado. Nós devemos reuni-los novamente, encontrar...

— Teremos que contar apenas conosco — disse ele. — Nossa principal preocupação são as armas atômicas da família. Devemos apanhá-las antes que os Harkonnen possam dar uma busca.

— Não é provável que as encontrem, o modo como foram ocultas...

— Não podemos dar-lhes sequer uma chance!

E ela pensou: “Chantagem com os atômicos da família, ameaçando o planeta e a especiaria — isto é o que ele tem em mente. Mas tudo que pode esperar agora é uma fuga para o anonimato como renegado.”

As palavras de sua mãe haviam provocado outra cadeia de pensamentos em Paul: a preocupação do duque com todas as pessoas que haviam perdido essa noite. “Pessoas são a verdadeira força de uma Grande Casa”, pensou ele. E lembrou-se das palavras de Hawat: “Separar-se de pessoas é uma tristeza, um lugar é somente um lugar.”

— Eles estão usando Sardaukar — lembrou Jessica. — Devemos aguardar até que os Sardaukar sejam retirados.

— Eles pensam que nos apanharam entre o deserto e os Sardaukar — observou. — Eles não pretendem deixar sobreviventes entre os Atreides, exterminação total. Não conte com ninguém da nossa gente escapando.

— Não podem continuar se arriscando indefinidamente com uma exposição da participação do Imperador nisso tudo.

— Não podem?

— Alguns dentre os nossos devem conseguir escapar.

— Será?

Jessica voltou-se assustada com a amargura na voz de seu filho, ouvindo o preciso julgamento das chances. Sentia que a mente dele saltava na frente da sua, vendo mais em certos aspectos do que poderia. Ajudara a treinar essa inteligência, mas agora sentia-se temerosa. Seus pensamentos voltaram-se buscando o perdido santuário de seu Duque, e lágrimas queimaram seus olhos.

“Este é o modo como devia ser Leto, um tempo para o amor e um tempo para a tristeza.” Colocou a mão sobre o abdômen, sua consciência focalizada no embrião em seu interior. “Eu tenho comigo a filha dos Atreides que recebi ordens para gerar, mas a Reverenda Madre estava errada: uma filha não teria salvo meu Leto. Esta criança é somente vida brotando para o futuro, no meio da morte. Eu a concebi por instinto, não por obediência.”

— Tente o receptor da comunirrede agora — pediu Paul.

“A mente continua funcionando, não importa como tentemos contê-la”, pensou ela.

Jessica encontrou o minúsculo receptor deixado por Idaho e apertou o botão. Uma luz verde brilhou no instrumento e pequenos chiados saíram do alto-falante. Ela reduziu o volume e procurou através das faixas de onda. Uma voz falando no código de batalha dos Atreides soou na tenda.

“... voltem e reagrupem-se na crista. Fedor informa que não há sobreviventes em Carthag, e que o Banco da Corporação foi saqueado.”

“Carthag!”, pensou Jessica. “Esse era o centro dos Harkonnen.”

— Eles são Sardaukar — disse outra voz. — Cuidado com Sardaukar em uniformes Atreides. Eles...

Um rugido encheu o alto-falante e a voz se calou.

— Tente outras faixas — disse Paul.

— Percebe o que isso significa? — indagou Jessica.

— Eu já esperava. Eles querem que a Corporação nos culpe pela destruição de seu banco. Com a Corporação contra nós, estamos presos em Arrakis. Tente outras faixas.

Ela pesou suas palavras: “Eu já esperava.” O que acontecera com ele? Lentamente Jessica voltou ao aparelho. Enquanto movia o botão de sintonia captava outros vislumbres da violência nas poucas vozes ainda usando o código Atreides: “... recuar...”, “... tentem se reagrupar em...” “...presos numa caverna em...”

E não havia engano na exaltação vitoriosa da algaravia Harkonnen que se derramava das outras faixas. Comandos rápidos, relatórios de batalha. Não havia o suficiente para Jessica registrar e quebrar o código, mas o tom era óbvio.

Vitória Harkonnen.

Paul sacudiu o embrulho ao seu lado, ouvindo os dois recipientes de água sacudirem gorgolejando. Respirou fundo olhando através da extremidade transparente da tenda, para o escarpamento de rocha delineado contra as estrelas. Sua mão esquerda tateou em busca do selo-esfíncter na entrada da tenda.

— O dia não tarda a nascer — disse ele. — Podemos esperar durante este dia por Idaho, mas não durante outra noite. No deserto deve-se viajar à noite e repousar na sombra durante o dia.

A lembrança da tradição insinuou-se na mente de Jessica: “Sem um traje-destilador, um homem, sentado na sombra, no deserto, necessita de cinco litros de água por dia para manter o peso de seu corpo.” Sentia a pele suave e escorregadia do traje-destilador envolvendo-lhe o corpo, e pensava como suas vidas dependiam agora daquela vestimenta.

— Se sairmos daqui, Idaho não poderá nos encontrar — disse ela.

— Existem modos de se fazer um homem falar — disse Paul. — Se Idaho não houver retornado ao amanhecer, devemos considerar a possibilidade de que tenha sido capturado. Quanto tempo acha que ele poderia resistir?

A pergunta não necessitava de resposta e Jessica ficou em silêncio.

Paul levantou a aba do embrulho e retirou um micromanual com ampliador e aba luminosa. Letras verdes e laranja destacavam-se nas páginas: “reservatórios de água, tenda destiladora, capas de energia, recaths, respirador para areia, binóculos, estojo para reparos em traje-destilador, pistola baramarca, mapa de escoadouro, filtroplugs, parabússola, ganchos de produtor, batedor, estojo Fremen, pilar de fogo...”

Tantas coisas necessárias à sobrevivência no deserto.

Daí a pouco ele colocou o manual no piso da tenda.

— Para onde poderemos ir? — perguntou Jessica.

— Meu pai falava de poder do deserto. Os Harkonnen não podem governar este planeta sem ele. Eles nunca o governaram inteiramente nem deverão. Nem mesmo com dez mil legiões de Sardaukar.

— Paul, você não deve achar que...

— Temos todas as provas em nossas mãos. Exatamente aqui nesta tenda, na própria tenda, neste embrulho e seu conteúdo, nestes trajes-destiladores. Sabemos que a Corporação pede um preço proibitivo pelos satélites meteorológicos. Sabemos que...

— Que têm os satélites meteorológicos a ver com isso? Eles não poderiam... — Jessica interrompeu a frase.

Paul sentia sua mente hiperalerta, anotando as reações de Jessica, computando as minúcias.

— Percebe agora? — ele disse. — Satélites observam o terreno embaixo e há coisas no deserto profundo que não devem ser submetidas à inspeção freqüente.

— Está sugerindo que a própria Corporação controla este planeta?

Ela era tão lenta...

— Não! — respondeu ele. — Os Fremen! Eles pagam à Corporação em troca de privacidade, pagam numa moeda disponível a todos com poder sobre o deserto: especiaria. Isso é mais do que uma resposta em aproximação secundária, é uma computação em linha reta. Confie nela.

— Paul, você ainda não é um Mentat, não pode saber com certeza como...

— Eu nunca serei um Mentat. Sou alguma coisa mais... uma aberração.

— Paul! Como pode dizer uma coisa dessas...

— Deixe-me em paz!

Virou as costas para ela olhando dentro da noite. “Por que não choro?”, pensou. Sentia cada fibra de seu ser desejar esse desabafo, e sabia que lhe seria negado para sempre.

Jessica nunca ouvira tamanha mágoa na voz de seu filho. Queria estender a mão para ele, segurá-lo confortando-o, ajudando-o, e todavia sentia não existir nada que pudesse fazer. Ele teria que superar esse problema sozinho.

A aba brilhante do manual do estojo Fremen colocada entre eles chamou sua atenção. Pegou-a olhando para a folha e lendo: “Manual do Deserto Amistoso — o lugar cheio de vida. Aqui estão o ayat e o burhan da Vida. Acredite e al-Lat nunca o queimará.”

“Parece-se com o livro de Azhar”, pensou Jessica lembrando-se de seus estudos sobre os Grandes Segredos. “Será que um Manipulador de Religiões visitou Arrakis?”

Paul tirou a parabússola de dentro do estojo, colocou-a de volta e disse:

— Pense em todas essas máquinas Fremen especializadas. Elas mostram uma sofisticação sem par. Admita isto. A cultura que produz estas coisas demonstra profundezas das quais ninguém suspeita.

Hesitante, ainda preocupada com a dureza em sua voz, Jessica voltou a olhar o livro, observando uma constelação ilustrada no céu de Arrakis: “Muad'Dib: O Rato”. Notou que sua cauda apontava para o norte.

Paul observava os movimentos de sua mãe, quase indistintos na escuridão da tenda, revelando-se na luz do manual. “Agora é hora de realizar o desejo de meu pai”, pensou ele. “Devo transmitir sua mensagem agora, quando ela ainda tem tempo para tristeza e mágoa. Mais tarde isto seria um inconveniente para nós.” Descobriu-se chocado com a precisão de sua própria lógica.

— Mãe — disse ele.

— Sim?

Ela percebeu a mudança no tom de voz, sentiu um frio nas entranhas ao ouvi-lo. Nunca antes percebera um controle tão cruel.

— Meu pai está morto.

Buscou dentro de si mesma pelo alinhamento de fato com fato, o modo Bene Gesserit de avaliar dados. Finalmente a análise foi atingida e com ela a sensação de uma terrível perda.

Jessica apenas assentiu com a cabeça, incapaz de falar. Paul prosseguiu:

— Meu pai me encarregou uma vez de lhe transmitir uma mensagem se algo lhe acontecesse. Ele temia que pudesse acreditar que perdera a confiança em você.

“Aquela inútil suspeita”, pensou ela.

— Ele queria que soubesse que jamais suspeitou, queria que soubesse que sempre confiou em você completamente, sempre a amou e estimou muito. Ele disse que antes desconfiaria de si mesmo e que tinha apenas um arrependimento: de nunca tê-la feito sua Duquesa.

Ela passou a mão na face, limpando as lágrimas, e pensou: “Que estúpido desperdício de umidade corporal!”, mas sabia instantaneamente a razão desse pensamento: uma simples tentativa de fugir da mágoa, refugiando-se no ódio. “Leto, meu Leto, que coisas terríveis nós fazemos àqueles que amamos!”

Com um movimento violento apagou a pequenina aba luminosa do manual.

Soluços sacudiram seu corpo.

Paul ouvia o sofrimento de sua mãe e sentia apenas o vazio dentro de si mesmo. “Não tenho tristeza”, concluiu. “Por quê? Por quê?” Sentia essa incapacidade para se magoar como uma falha terrível.

“Um tempo para receber e um tempo para perder”, pensou Jessica, relembrando-se da Bíblia C.L. “Um tempo para manter e um tempo para abandonar, tempo para amor e tempo para ódio, tempo de guerra e tempo de paz.”

A mente de Paul avançava em sua fria precisão. Via os caminhos que se estendiam à sua frente nesse planeta hostil. Sem possuir agora nem mesmo a válvula de segurança representada pelo sonho, ele focalizava essa consciência presciente, vendo-a como uma computação dos futuros mais prováveis, mas acrescida de alguma coisa mais, uma franja de mistério. Como se sua mente mergulhasse em alguma camada eterna e sentisse os ventos do futuro.

Abruptamente, como se houvesse encontrado a chave necessária, a mente de Paul saltou outro nível de percepção. Sentiu-se a si mesmo agarrando-se nessa nova camada, segurando-se num apoio precário e observando ao redor. Era como se estivesse dentro de um globo com estradas irradiando-se para longe em todas as direções... e no entanto isso constituía apenas uma sensação aproximada.

Lembrou-se uma vez de ter visto um lenço de gaze sendo levado pelo vento. Sentia o futuro como alguma coisa torcendo-se sobre uma superfície ondulante e não-permanente igual à do lenço soprado ao vento.

E viu pessoas.

Sentiu o calor e o frio de incontáveis possibilidades.

Conheceu nomes e lugares, experimentou emoções incontáveis, reviu dados em fendas inexploradas. Havia tempo para sondar, testar e provar — mas nenhum para moldar.

A coisa era um espectro de possibilidades — desde o passado mais remoto até o futuro mais distante — do mais provável ao mais improvável. Testemunhou sua própria morte de modos incontáveis. Viu novos planetas e novas culturas.

Gente.

Gente.

Podia vê-los em tamanha quantidade que não poderiam ser enumerados, e no entanto sua mente os catalogava.

Até mesmo os Homens da Corporação.

E pensou: “A Corporação — ali haveria um lugar para nós, minha estranheza aceita como algo familiar e altamente valioso, sempre com um suprimento assegurado da especiaria agora necessária.”

Mas a idéia de viver sua vida com a mente tateando à frente, através dos futuros possíveis, para guiar espaçonaves se arremessando no vazio, o assustava. Esse era um caminho, todavia, e ao encontrar o futuro possível, que continha os Homens da Corporação, ele reconheceu sua própria estranheza.

“Eu tenho outro tipo de visão. Vejo outro tipo de terreno: as trilhas disponíveis.”

Essa consciência lhe proporcionava, ao mesmo tempo, confiança e medo. Tantos eram os lugares, naquele outro tipo de terreno, que mergulhavam ou viravam para fora de sua vista.

E tão rapidamente como viera, a sensação desapareceu e Paul percebeu que toda aquela experiência durara o tempo de um único batimento de coração.

E, no entanto, sua consciência pessoal fora como que virada pelo avesso, “iluminada” de um modo terrível. Ele olhou à sua volta.

A noite envolvia a tenda destiladora, oculta em seu esconderijo entre as rochas. O sofrimento de sua mãe ainda podia ser ouvido.

Sua própria ausência de pesar também podia ser sentida... aquele lugar vazio nalgum ponto separado de sua mente, que prosseguia em seu ritmo uniforme — lidando com dados, avaliando, computando, apresentando respostas como o pensamento de um Mentat.

E agora ele percebia possuir uma riqueza de informações como poucas mentes já haviam reunido, embora isso não fizesse aquele lugar vazio mais suportável. Sentia como se alguma coisa fosse partir, como o dispositivo de disparo para uma bomba-relógio tiquetaqueando em seu interior. Aquilo prosseguia indiferente à sua vontade, registrando minúsculas variações ao seu redor: uma leve alteração na umidade, uma queda fracional de temperatura, o avanço de um inseto sobre o teto da tenda, a solene aproximação da aurora no trecho de céu estrelado que podia ver pela extremidade transparente da tenda.

O vazio tornava-se insuportável. Saber como o relógio fora colocado em movimento não fazia diferença. Podia olhar para seu próprio passado e ver o seu princípio — o treinamento, o aguçamento de talentos, as refinadas pressões de disciplinas sofisticadas, até mesmo a exposição da Bíblia C.L. num momento crítico... e finalmente o forte consumo da especiaria. E podia olhar para a frente, na direção mais aterradora, vendo até onde ela conduzia.

“Eu sou um monstro!”, pensou. “Uma aberração!”

— Não! — exclamou. E depois repetiu: — Não, não! NÃO!

Descobriu que estava batendo com os punhos contra o fundo da tenda. (Com aquela sua parte implacável registrando isso como um interessante dado emocional a ser alimentado na computação.)

— Paul!

Sua mãe estava ao seu lado, segurando suas mãos, sua face era uma mancha cinzenta a observá-lo.

— Paul, o que está errado?

— Você! — respondeu ele.

— Eu estou aqui, Paul. Está tudo bem.

— O que fez comigo?

Numa súbita percepção ela sentiu algumas das raízes da pergunta e disse:

— Eu dei à luz você.

Esta era, tanto por instinto como por seu próprio conhecimento sutil, a resposta precisamente correta para acalmá-lo. Ele sentiu suas mãos a segurá-lo, focalizando no fraco contorno do rosto.

(Para Paul, certos traços genéticos na estrutura facial de Jessica tornavam-se indícios, registrados de um novo modo por sua mente fluente, e adicionados a outros dados, para que a resposta da soma final fosse apresentada.)

— Largue-me!

Ela ouviu a frieza em sua voz e obedeceu.

— Quer me dizer o que está errado, Paul?

— Tinha consciência do que estava fazendo quando me treinava?

“Não há mais infantilidade em sua voz”, pensou ela e disse:

— Eu esperava o que qualquer mãe ou pai espera. Que você fosse... superior, diferente.

— Diferente?

Ela percebeu a amargura na voz e tentou se justificar.

— Paul, eu...

— Você não queria um filho! Você queria um Kwisatz Haderach! Queria uma Bene Gesserit macho!

Ela recuou ante sua mágoa.

— Mas Paul...

— Algum dia consultou meu pai a esse respeito?

Ela respondeu suavemente, com uma tristeza ainda recente:

— Seja você o que for, Paul, sua hereditariedade vem tanto de seu pai quanto de mim.

— Mas não o treinamento. Não as coisas que... despertaram... o que dormia.

— O que dormia?

— Está aqui. — Ele colocou a mão sobre a cabeça e o peito. — Dentro de mim. E continua sem parar...

— Paul!

Percebera a ponta de histeria na voz dele.

— Ouça-me! — continuou ele. — Você queria que a Reverenda Madre ouvisse a respeito de meus sonhos. Escute no lugar dela agora. Eu acabei de sonhar acordado. Sabe por quê?

— Deve procurar se acalmar — disse ela. — Se há...

— A especiaria. Está em tudo aqui, no ar, no solo, na comida. A especiaria geriátrica. É como a droga reveladora da verdade. É um veneno!

Jessica retesou o corpo.

A voz de Paul tornou-se mais baixa. Ele repetiu:

— Um veneno... tão sutil, tão insidioso... tão irreversível. Não matará você a menos que pare de tomá-lo. Não podemos deixar Arrakis, a não ser que levemos parte de Arrakis conosco.

A terrível presença naquela voz não permitia discussão.

— Você e a especiaria. A especiaria pode mudar qualquer um que consome essa quantidade dela, mas graças a você eu pude trazer essa mudança ao nível da consciência. E não consigo deixá-la no inconsciente, onde sua perturbação poderia ser abafada. Posso vê-la.

— Paul, você...

— Eu vejo!— repetiu ele.

Jessica percebeu loucura em sua voz e não soube o que fazer, mas ele falou de novo, e seu controle férreo retomou:

— Estamos presos aqui.

— Estamos presos aqui — concordou ela.

E aceitou a verdade em suas palavras. Nenhuma pressão das Bene Gesserit, nenhum truque ou artifício poderia libertá-los completamente de Arrakis. A especiaria viciava. Seu corpo conhecera o fato muito antes que sua mente despertasse para ele.

“Assim, é aqui que nós viveremos nossas vidas”, pensou ela, “neste planeta infernal. O lugar está preparado para nós, se conseguirmos escapar dos Harkonnen. E não resta dúvida quanto ao meu destino: uma reprodutora preservando uma importante linha hereditária para o Plano Bene Gesserit.”

— Devo lhe contar a respeito de meu sonho acordado — insistiu Paul, agora com fúria em sua voz. — E para ter certeza de que aceitará o que digo, revelarei primeiro que sei que terá uma filha, minha irmã, aqui em Arrakis.

Jessica colocou suas mãos contra o fundo da tenda, pressionando contra a parede de tecido curvo para sufocar a angústia e o medo. Sabia que sua gravidez não se mostrara ainda, somente seu próprio treinamento Bene Gesserit lhe permitira ler os primeiros sinais débeis em seu corpo e tomar conhecimento do embrião com apenas algumas semanas de idade.

— Somente para servir — sussurrou ela, agarrando-se ao lema Bene Gesserit. — Existimos apenas para servir.

— Nós encontraremos um lar entre os Fremen — disse Paul. — Onde sua Missionária Protetora comprou-nos uma saída de emergência.

“Elas prepararam um caminho para nós no deserto”, pensou Jessica. “Mas como ele pode saber da Missionária Protetora?” Encontrava mais dificuldade em dominar seu terror ante a estranheza dominante de Paul.

Ele estudava-lhe a sombra na escuridão, vendo seu medo e cada reação em sua nova consciência, como se estivessem delineados contra uma luz cegante. Um sentimento de compaixão pela mãe começou a se insinuar em seu interior.

— As coisas que podem acontecer aqui eu não posso nem começar a lhe dizer. Não posso nem sequer dizê-las a mim mesmo, embora as tenha testemunhado. Esse senso do futuro... não pareço ter controle sobre ele, a coisa simplesmente acontece. O futuro imediato, digamos dentro de um ano, eu posso ver parte dele... uma estrada tão larga quanto nossa Avenida Central em Caladan. Alguns lugares eu não vejo... lugares sombreados... como que ocultando-se por trás de uma colina (novamente pensou na superfície do lenço levado pelo vento) e existem ramificações.

Ficou em silêncio, a memória da visão a subjugá-lo. Nenhum sonho presciente, nenhuma experiência em sua vida o preparara inteiramente para a totalidade com que os véus haviam sido arrancados revelando a nudez do tempo.

Relembrando a experiência, ele reconhecia seu próprio terrível propósito: a pressão de sua vida expandindo-se como uma bolha crescente... o tempo recuando diante dela.

Jessica encontrou o controle da iluminação da tenda e o ativou.

Uma luz verde fez recuar as sombras diminuindo seu medo. Ela olhou para o rosto de Paul, para seus olhos... aquele olhar para dentro. Sabia onde havia visto esse olhar: registrado em gravações sobre desastres, nos rostos de crianças que haviam experimentado a fome ou terríveis ferimentos. Os olhos eram como fossos, a boca uma linha reta, as maçãs do rosto flácidas.

“É o olhar da consciência aterrorizada”, pensou ela, “de alguém forçado ao conhecimento de sua própria mortalidade.”

De fato, ele não era mais uma criança.

A importância subjacente às suas palavras começou a se instalar em sua mente, eliminando tudo mais. Paul podia ver o futuro, ver um meio para escaparem.

— Existe um caminho para escapar dos Harkonnen — disse Jessica.

— Os Harkonnen! — zombou ele. — Tire aqueles humanos pervertidos de sua mente. — Olhou para a mãe observando-lhe as feições sob a luz da tenda. Linhas reveladoras...

— Não devia se referir a pessoas como humanas sem...

— Não esteja tão certa de poder traçar uma linha de separação — retrucou ele. — Nós carregamos nosso passado conosco. E, minha mãe, há uma coisa que não sabe, e deveria saber. Nós somos Harkonnen.

A mente de Jessica fez algo terrível: fechou-se como se necessitasse isolar-se de toda sensação. A voz de Paul todavia continuou, naquele passo implacável, a arrastá-la com ele.

— Na próxima vez que encontrar um espelho estude seu rosto, estude o meu agora. Os traços estão aqui, se quiser vê-los. Olhe para minhas mãos, para a disposição de meus ossos. E se nada disso convencê-la, então aceite a minha palavra a respeito. Caminhei no futuro, olhei num registro, vi um lugar e tenho todos os dados. Nós somos Harkonnen.

— Um... ramo renegado da família — disse ela. — É isso, não é? Algum primo Harkonnen que...

— Você é a filha do Barão — disse ele e observou a maneira como Jessica pressionava as mãos contra a boca. — O Barão experimentou muitos prazeres em sua juventude, e uma vez permitiu-se ser seduzido. Isso foi feito com propósitos genéticos pelas Bene Gesserit, por uma de vocês.

O modo como ele dissera vocês atingiu-a como uma bofetada.

Sua mente entretanto já funcionava de novo e ela não podia negar as palavras. Tantas linhas soltas e sem significado em seu passado estendiam-se agora conectando-se. A filha que as Bene Gesserit queriam não era com o propósito de terminar a velha rivalidade Atreides-Harkonnen, e sim de solidificar algum fator genético em suas linhas de parentesco. Mas qual? Ela tateou em busca de uma resposta.

Como se observasse dentro de sua mente, Paul lhe disse:

— Elas pensavam estar me alcançando. Mas eu não sou o que esperam, e além disso cheguei antes do tempo. E elas não sabem disso.

Jessica levou as mãos à boca.

“Grande Mãe! Ele é o Kwisatz Haderach!”

Sentia-se nua e exposta diante dele, percebendo que a fitava com olhos aos quais muito pouco poderia ser escondido. E isso, sabia, era a base de seu medo.

— Você pensa que eu sou o Kwisatz Haderach. Tire isso de sua cabeça. Eu sou alguma coisa inesperada.

“Devo avisar uma de nossas escolas”, pensou ela. “O índice de casamentos pode nos mostrar o que aconteceu.”

— Elas não vão descobrir a meu respeito até que seja muito tarde — disse ele.

Jessica tentou distraí-lo, abaixando as mãos e dizendo:

— Bem, nós encontraremos refúgio entre os Fremen?

— Os Fremen possuem um ditado que atribuem ao shai-hulud, o Velho Pai da Eternidade. Ele diz: “Esteja preparado para apreciar aquilo que encontras.” — E pensou: “Sim, minha mãe, entre os Fremen. Você adquirirá os olhos azuis e uma calosidade ao lado de seu lindo nariz, produzido pelo tubo filtrador de seu traje... E dará luz à minha irmã: Santa Alia da Faca.”

— Se você não é o Kwisatz Haderach — perguntou ela —, então o que...

— Não poderia saber — respondeu ele. — E nem acreditaria se pudesse ver.

“Eu sou uma semente”, pensou.

Percebia subitamente quão fértil era o solo sobre o qual caíra e com essa compreensão o terrível propósito tomou conta de seu interior, rastejando através daquele espaço vazio e ameaçando sufocá-lo de tristeza.

Observara duas ramificações principais ao longo do caminho. Em uma delas confrontava o maligno Barão e dizia: — “Olá, vovô.”

O pensamento dessa trilha, e do que existia em sua extensão, deixou-o enjoado.

O outro caminho possuía longas extensões de obscuridade cinzenta com a exceção de picos de violência. Via uma religião guerreira surgir aqui, um fogo espalhando-se através do Universo, com a bandeira verde e negra dos Atreides ondulando na frente de legiões de fanáticos, embriagados com licor de especiaria. Gurney Halleck e mais alguns dentre os homens de seu pai — muito poucos — estavam entre eles, todos marcados pelo símbolo do falcão tirado do santuário do crânio de seu pai.

— Eu não posso seguir este caminho — murmurou ele. — Isso é o que as velhas bruxas em suas escolas desejam.

— Eu não o compreendo, Paul! — exclamou Jessica.

Ele permaneceu silencioso, pensando na semente que encantava, pensando com a consciência racial com que pela primeira vez experimentara aquele terrível propósito. Percebeu que já não podia odiar as Bene Gesserit, o Imperador ou mesmo os Harkonnen.

Eles estavam todos amarrados à necessidade que a espécie tinha de renovar sua herança dispersa, cruzando, misturando e derramando suas linhas consangüíneas numa nova seleção de genes. E a raça só conhecia um meio de fazê-la. O modo antigo, já experimentado e certo, que avançava sobre tudo em seu caminho: jihad.

“Eu certamente não posso escolher este caminho.”

Entretanto, via novamente, com seu olhar mental, o santuário do crânio de seu pai e toda a violência, com as bandeiras verde e negras ondulando no meio.

Jessica pigarreou, preocupada com seu silêncio.

— Então... os Fremen nos oferecerão santuário?

Ele olhou para cima, através da luz esverdeada da tenda, para as linhas aristocráticas no rosto dela.

— Sim, este é um dos caminhos. — E assentiu com a cabeça. — Eles me chamarão... Muad'Dib, “Aquele que aponta o caminho.” Sim, é desse modo que eles me conhecerão. E fechou os olhos pensando: “Agora, meu pai, eu posso chorar por você.” Sentiu as lágrimas escorrerem sobre seu rosto.

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades