Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Saga do Planeta “Duna”
DUNA
Parte II
MUAD'DIB
Quando meu pai, o Imperador Padishah, foi informado da morte do Duque Leto e das circunstâncias em que ocorrera, ficou furioso, de um modo como eu nunca vira antes. Ele culpou minha mãe e o acordo que o forçara a colocar uma Bene Gesserit no trono. Ele culpou a Corporação e o velho e maligno Barão. Culpou todos à sua vista, sem excetuar nem mesmo a mim, pois, como ele disse, eu era uma bruxa como todas as outras. E, quando tentei confortá-lo, dizendo-lhe que tudo fora feito de acordo com as velhas leis da auto-preservação, às quais até mesmo os mais antigos governantes prestaram obediência, ele me olhou com desprezo e me perguntou se o julgava um fraco. Percebi então que ele se irritara tanto não por se preocupar com o Duque morto, e sim com o que essa morte significaria para a realeza. Quando olho para trás, em direção a esse incidente, penso que pode ter havido alguma presciência da parte de meu pai também, já que é certo que sua linha de parentesco e a do Muad'Dib compartilhavam uma origem comum.
— de Na Casa de Meu Pai, escrito pela Princesa Irulan
— Agora, Harkonnen matará Harkonnen — sussurrou Paul.
Acordara um pouco antes do cair da noite e sentara-se na tenda selada e às escuras. Ao falar ouviu o ruído fraco de sua mãe se mexendo onde dormira, de encontro à parede oposta.
Paul observou o detector de proximidade no piso, estudando-lhe os mostradores iluminados na escuridão por tubos fosforescentes.
— Será noite logo — disse sua mãe. — Por que não levanta as cortinas da tenda?
Paul percebia que a respiração de Jessica permanecera diferente durante algum tempo. Estivera silenciosa na escuridão, aguardando até se certificar de que ele estava acordado.
— Erguer as cortinas não vai ajudar em nada. Houve uma tempestade e a tenda está coberta pela areia. Vou escavar uma saída logo.
— Nenhum sinal de Duncan ainda?
— Nenhum.
Paul esfregou, distraidamente, o anel com o sinete ducal em seu polegar, sentindo um ódio súbito contra a própria substância desse planeta que ajudara a matar seu pai, um ódio que o deixou trêmulo.
— Eu ouvi a tempestade começando — disse Jessica.
O vazio de suas palavras ajudou-o a restaurar um pouco a calma. Sua mente relembrando o começo da tempestade, visto através da extremidade transparente da tenda: frios glóbulos de areia cruzando a depressão rochosa, e depois rios e caudais de pó percorrendo o céu. Olhara para a agulha rochosa lá fora, vendo-a mudar de forma sob o impacto do vento, tornando-se uma cunha baixa cor de madeira. A areia canalizada para dentro da depressão sombreara o céu com um tom escuro e depois bloqueara toda a luz ao cobrir a tenda.
O teto estalara uma única vez, enquanto ajustava-se à pressão, depois o silêncio, rompido apenas pelo fraco chiar de foles enquanto o snorkel de areia bombeava o ar da superfície.
— Tente o receptor novamente — pediu Jessica.
— Não adianta — respondeu ele.
Encontrou o tubo de água do traje-destilador, em seu grampo no pescoço, e sugou o líquido morno. Pensou que nesse ato encontrava-se o verdadeiro começo de sua existência em Arrakis, vivendo da umidade recuperada de sua própria respiração e de seu corpo. Uma água sem sabor, insípida, mas que aliviou sua garganta.
Jessica ouviu Paul beber, sentiu a maciez de seu próprio traje-destilador grudando-se ao seu corpo, mas recusou-se a admitir a própria sede. Aceitá-la significaria despertar inteiramente para as terríveis exigências de Arrakis, onde era preciso aproveitar até mesmo traços de umidade, reunindo as poucas gotas nas bolsas de armazenagem da tenda, lamentando um suspiro desperdiçado.
Bem mais fácil refugiar-se novamente no sono.
No entanto houvera um sonho quando dormira durante o dia e a fazia estremecer só de relembrá-lo. Estendia suas mãos para deter a areia escorrendo e proteger um nome escrito: Duque Leto Atreides. O nome estava sendo apagado pela areia e ela tentou reescrevê-lo, mas a primeira letra desaparecia antes que a última fosse delineada.
A areia não parava.
E o sonho se tornava um choro estridente, cada vez mais alto.
Um choro ridículo que percebia partir de si própria quando ainda era uma pequena criança, pouco mais que um bebê. Uma mulher, não inteiramente visível em sua memória, estava se afastando.
“Minha mãe desconhecida”, pensou. “A Bene Gesserit que me deu à luz e me entregou às Irmãs, porque assim lhe fora ordenado. Estaria ela feliz por se livrar de uma criança Harkonnen?”
— O lugar para golpeá-los é na especiaria — disse Paul subitamente.
“Como pode ele pensar em ataque numa ocasião dessas?”, perguntou ela a si mesma.
— Um planeta inteiro, cheio de especiaria. Como pode atingi-los nessa parte?
Podia ouvi-la mexer-se, o som do embrulho sendo arrastado pelo piso.
“Tínhamos poder aéreo e naval, em Caladan. Aqui será o poder do deserto. Os Fremen são a chave.”
Sua voz vinha das proximidades do esfincter da tenda. Com seu treino Bene Gesserit podia sentir naquela voz um tom de amargura voltado contra ela.
“Toda a sua vida ele foi treinado para odiar os Harkonnen. E agora ele descobre que é um Harkonnen... por minha causa. E quão pouco ele me conhece! Eu era a única mulher do meu Duque, aceitei sua vida e seus valores, a ponto de desafiar minhas ordens Bene Gesserit.”
A iluminação da tenda foi acionada pela mão de Paul, enchendo o interior abobadado de radiação esverdeada. Paul agachou-se sob o esfíncter, com o capuz de seu traje-destilador ajustado para o deserto. Testa coberta, filtro bucal no lugar, tampões de nariz ajustados. Apenas seus olhos escuros eram visíveis. A estreita faixa visível de seu rosto voltou-se apenas uma vez em direção a Jessica.
— Apronte-se para sair — disse ele, com a voz abafada pelo filtro, Jessica puxou o filtro sobre a boca e começou a ajustar o capuz enquanto Paul abria o lacre da tenda.
A areia fez ruído quando ele abriu o esfincter, e um crepitar de grãos percorreu o interior da tenda antes que ele pudesse imobilizá-los com a ferramenta de compactação estática. Um orifício cresceu na parede de areia enquanto a ferramenta realinhava os grãos.
Paul deslizou para fora e os ouvidos de Jessica acompanharam seu progresso pela superfície.
“O que ele irá encontrar lá fora?”, perguntou a si mesma. “Tropas Harkonnen e Sardaukar são perigos que podemos esperar. Mas e quanto aos perigos que desconhecemos?”
Pensou na ferramenta de compactação e nos outros instrumentos estranhos dentro do embrulho. Cada um deles surgindo em sua mente como um indício de ameaças misteriosas.
Sentiu a brisa quente da superfície tocar sua face onde o filtro a deixava exposta.
— Passe-me o embrulho. — Era a voz de Paul, baixa e cautelosa.
Jessica moveu-se para obedecer ouvindo os litrojons de água gorgolejarem enquanto ela arrastava o pacote pelo piso. Olhou para cima vendo Paul emoldurado contra as estrelas.
— Aqui — disse ele, estendendo a mão e puxando o pacote para a superfície.
Agora ela podia ver o círculo de céu estrelado na extremidade do orifício. Pareciam-lhe as pontas luminosas de armas apontadas contra ela. Uma chuva de meteoros cruzou aquele trecho de noite, parecendo-lhe um aviso, como as listras de um tigre, ou gotas luminosas coagulando-lhe o sangue. Sentia frio ao pensar no preço sobre suas cabeças.
— Depressa — pediu Paul. — Quero desinflar a tenda.
Uma chuva de areia da superfície roçou-lhe a mão esquerda.
“Quanta areia a mão pode segurar?”, pensou ela.
— Preciso puxá-la? — indagou ele.
— Não.
Ela engoliu com a garganta seca e escorregou pelo buraco, sentindo a areia estaticamente compactada raspar sob suas mãos. Paul segurou-lhe o braço e puxou-a para fora. Ela ficou de pé, ao lado dele, sobre um trecho uniforme de deserto iluminado pelas estrelas, olhando ao redor. A areia enchera a depressão em que se encontravam quase até a borda, deixando apenas uma indistinta orla de rochas circundantes. Ela sondou a escuridão distante com seus sentidos treinados.
Ruído de pequenos animais.
Pássaros.
Uma queda de areia deslocada e sons fracos de uma criatura dentro dela.
Paul esvaziando a tenda e recuperando-a através do buraco.
A luz das estrelas apenas quebrava a escuridão, o suficiente para carregar cada sombra de ameaças. Jessica olhou para os trechos de absoluta escuridão.
“Negro é uma cega lembrança”, pensou ela. “Você ouve os sons da matilha, os ruídos daqueles que caçaram seus ancestrais num passado tão antigo que somente suas células mais primitivas podem recordar. Os ouvidos vêem, as narinas vêem.”
Daí a pouco Paul chegou junto dela dizendo:
— Duncan disse-me que, se fosse capturado, poderia agüentar por esse período de tempo. Devemos partir agora. — Colocou o embrulho nos ombros e atravessou a borda rasa da bacia rochosa, subindo para a saliência de onde podia ver melhor a vastidão do deserto.
Jessica acompanhou-o automaticamente, percebendo como vivia agora ao seu redor.
“Pois agora a minha dor é mais pesada que a areia dos mares”, pensou. “Este mundo me esvaziou de tudo, exceto do ancestral propósito: a vida que deve me suceder. Vivo agora para o meu jovem Duque, e para a filha que ainda vai nascer.”
Sentia a areia dificultar seus passos, enquanto subia para junto de Paul.
Ele olhou para o norte, ao longo de uma linha de rochas e observou uma escarpa longínqua.
O distante perfil das rochas era como um antigo encouraçado dos mares recortando-se contra as estrelas. Sua longa extensão erguendo-se sobre uma onda invisível, como sílabas de antenas bumerangue, chaminés inclinando-se para trás, e uma superestrutura em forma de T elevando-se na popa.
Um clarão alaranjado surgiu subitamente acima da silhueta, seguido por uma brilhante linha de púrpura cortando o espaço em direção ao brilho.
Outra linha de púrpura!
E outro brilho alaranjado lançando-se para o alto!
Era como uma antiga batalha naval, com canhoneio e fogo antiaéreo, e sua visão deixou-os absortos, observando.
— Pilares de fogo — sussurrou Paul.
Um anel de olhos vermelhos ergueu-se sobre as rochas distantes. Linhas vermelhas riscaram o céu.
— Escapamento de jatos e armas laser — disse Jessica.
A primeira lua de Arrakis, avermelhada pela poeira, erguia-se acima do horizonte à esquerda e eles perceberam o sinal de uma tempestade naquela direção. Uma faixa movendo-se sobre o deserto.
— Devem ser “tópteros” dos Harkonnen nos caçando observou Paul. — Pelo modo como estão varrendo o deserto... é como se quisessem ter certeza de esmagar o que estiver por lá, como se esmaga um ninho de insetos.
— Ou um ninho de Atreides — respondeu Jessica.
— Devemos procurar abrigo — disse Paul. — Vamos para o sul mantendo-nos junto das rochas. Se nos apanharem em espaço aberto... — Ele voltou-se ajustando o pacote sobre os ombros. — Estão matando tudo o que se move.
Deu um longo passo sobre a saliência rochosa e no mesmo instante ouviu o sussurrar de uma aeronave em vôo planado, vendo as formas negras dos ornitópteros acima deles.
Meu pai disse-me uma vez que o respeito à verdade se encontra muito próximo de ser a base de toda a moralidade. — Nada pode surgir do nada — disse ele. E isso é um pensamento profundo se você compreende quão instável “a verdade” pode ser.
— de Conversas com o Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
— Sempre me orgulhei de ver as coisas da forma como são realmente — disse Thufir Hawat. — Esta é a maldição de ser um Mentat. Não se pode parar de analisar dados.
O velho rosto coriáceo parecia tranqüilo na penumbra anterior à alvorada. Seus lábios tingidos de sapho formavam uma linha reta com vincos radiais que se estendiam para cima.
Um homem envolto em mantos agachava-se, silencioso, sobre a areia, diante de Hawat, aparentemente impassível.
Os dois encontravam-se abaixo de uma projeção de rocha dominando uma depressão larga e rasa. A aurora começava a se espalhar sobre a linha acidentada das colinas do outro lado da bacia, pintando tudo de rosado. Estava frio debaixo da rocha, um frio seco e penetrante deixado pela noite. Houvera um vento morno bem antes da aurora mas agora estava frio, e Hawat podia ouvir dentes batendo atrás dele, entre os poucos soldados ainda restantes em sua força.
O homem agachado diante de Hawat era um Fremen. Ele viera através da depressão em forma de pia com a primeira luz da falsa aurora, deslizando sobre a areia, ocultando-se nas dunas, seus movimentos quase imperceptíveis.
O Fremen estendeu um dedo para a areia e desenhou uma figura. Parecia um arco lançando uma flecha.
— Existem muitas patrulhas Harkonnen — disse, erguendo o dedo e apontando para as colinas de onde Hawat e seus homens haviam descido.
Hawat assentiu com a cabeça.
“Muitas patrulhas. Sim.”
Ainda assim ele não sabia o que esse Fremen desejava, e isso o irritava. Supõe-se que o treinamento de um Mentat dê a um homem poderes para perceber motivos.
Essa fora a pior noite da vida de Hawat. Ele estivera em Tsimpo, uma cidade onde ficava situada uma guarnição, um posto avançado para a antiga capital Carthag, quando os relatórios de ataque começaram a chegar. No princípio ele pensara: “É uma simples incursão, os Harkonnen estão nos testando.”
Mas relatório seguira-se a relatório, cada vez mais rapidamente.
Duas legiões desembarcaram em Carthag. Cinco legiões — cinqüenta brigadas! — atacando a base principal do Duque em Arrakeen.
Uma legião em Arsut.
Dois grupos de combate em Rocha Partida.
Depois os relatórios se tornaram mais detalhados. Havia Sardaukar imperiais entre os atacantes — possivelmente duas legiões. E tornou-se claro que os invasores conheciam precisamente a quantidade de efetivos que deviam utilizar e para onde deviam ser enviados. Exatamente! Um serviço de espionagem perfeito.
O choque e a fúria de Hawat haviam aumentado até ameaçar o perfeito desempenho de suas habilidades como Mentat, a dimensão do ataque golpeava sua mente como algo físico.
Agora, escondendo-se debaixo de um pedaço de rocha no deserto, ele assentia com a cabeça para si mesmo, tentando se embrulhar em sua túnica rasgada como que para se proteger das frias sombras.
“O tamanho do ataque.”
Ele sempre esperara que o inimigo pudesse alugar alguma nave pequena, da Corporação, para incursões de sondagem. Esse era um movimento típico nessa modalidade de guerra entre Casas. Naves ligeiras pousavam e decolavam regularmente em Arrakis para transportar a especiaria da Casa dos Atreides, e Hawat tornara precauções contra ataques ocasionais de falsas naves de especiaria. No caso de um ataque total aguardavam não mais do que dez brigadas.
No entanto, havia mais de duas mil naves pousadas em Arrakis na última contagem. E não apenas naves ligeiras, mas fragatas, naves de reconhecimento, monitoras, transportes de tropas, esmagadoras, caixas de lançamento...
Com elas, mais de cem brigadas. Dez legiões!
Seria necessária toda a produção de especiaria de Arrakis durante cinqüenta anos para custear tamanho empreendimento.
Realmente seria.
“Nós subestimamos o que o Barão estaria disposto a gastar num ataque contra nós”, pensou Hawat. “Eu falhei diante de meu Duque.”
Mas havia a questão do traidor.
“Viverei o suficiente para vê-la estrangulada! Devia ter morto aquela bruxa Bene Gesserit quando tive uma chance.” Não havia dúvida em sua mente quanto a quem os atraiçoara: Lady Jessica.
Ela se encaixava em todos os fatos disponíveis.
— Seu tenente, Gurney Halleck, e parte de suas forças, estão seguros com os nossos amigos contrabandistas — disse o Fremen.
— Bom.
“Assim, Gurney conseguirá escapar deste planeta infernal. Não estamos completamente acabados ainda”, pensou.
Hawat olhou para seus homens reunidos. Começara a noite com trezentos dos melhores. Destes, aproximadamente vinte ainda existiam, metade deles feridos. Alguns dormiam agora, recostados contra a rocha ou espalhados na areia embaixo. Seu último “tóptero”, aquele que estavam usando como máquina de efeito de solo [1], para transportar os feridos, enguiçara um pouco antes do alvorecer.
Eles o haviam cortado em pedaços com os lasers, esconderam as peças e então caminharam até esse esconderijo na borda de uma depressão.
Hawat tinha apenas uma idéia vaga de sua localização: uns duzentos quilômetros a sudeste de Arrakeen. Os principais caminhos entre as comunidades sietch da Muralha Escudo ficavam em algum lugar ao sul.
O Fremen diante de Hawat puxou para trás seu capuz e o gorro do traje-destilador, revelando o cabelo e a barba dourados. O cabelo era penteado para trás da testa alta. Ele possuía aqueles inescrutáveis olhos de azul total, provocados pela dieta de especiaria.
A barba e o bigode estavam manchados num dos lados da boca, seus pêlos emaranhados pela pressão do tubo de recolhimento que se desenrolava dos tampões no nariz.
O homem removeu esses tampões, reajustou-os, e coçou uma cicatriz junto do nariz.
— Se cruzarem a pia esta noite — disse ele —, não devem usar seus escudos. Existe uma passagem na muralha... — E o Fremen girou nos calcanhares apontando para o sul — ... Lá, depois é areia até o erg. Escudos atrairão um... — ele hesitou —— ...verme. Eles não vêm freqüentemente aqui, mas um escudo atrairá um com certeza.
“Ele disse verme”, pensou Hawat. “Mas ia dizer alguma outra coisa. O quê? E o que deseja de nós?”
Hawat suspirou.
Não conseguia se lembrar de outra ocasião em que houvesse se sentido tão cansado. Era um esgotamento muscular que nem as pílulas de energia conseguiam aliviar.
Aqueles malditos Sardaukar!
Pensou com amargura nos fanáticos soldados, e na traição imperial que eles representavam. Sua própria avaliação Mentat sobre todos os dados revelava-lhe quão remota era a chance de apresentar a evidência dessa traição ante o Alto Conselho do Landsraad, onde a justiça poderia ser feita.
— Você deseja ir ao encontro dos contrabandistas? — indagou o Fremen.
— Isso é possível?
— O caminho é longo.
“Os Fremen não gostam de dizer não”, dissera-lhe Idaho.
Hawat disse:
— Não me disse, ainda, se seu povo pode ajudar os meus feridos.
— Eles estão feridos.
“A mesma maldita resposta todo o tempo!”, pensou.
— Nós sabemos que estão feridos! — retrucou Hawat. — Isso não é o...
— Paz, amigo — advertiu o Fremen. — O que seus feridos dizem? Existe entre eles quem saiba quanto de água é necessário para o grupo?
— Nós não falamos a respeito de água. Nós...
— Posso entender sua relutância — disse o Fremen. — Eles são seus amigos, seus companheiros de tribo. Você tem água?
— Não o suficiente.
O Fremen gesticulou, apontando para a túnica de Hawat com a pele exposta debaixo dela.
— Vocês foram apanhados em sietch sem seus trajes. Deve tomar uma decisão quanto à água, amigo.
— Podemos contratar sua ajuda?
O Fremen deu de ombros.
— Vocês não possuem água. Ele olhou para o grupo atrás de Hawat. — De quantos de seus feridos pode dispor?
Hawat ficou em silêncio, olhando para o homem. Como Mentat, podia perceber que sua comunicação estava fora de fase. Palavrassons não se ligavam aqui da maneira normal.
— Eu sou Thufir Hawat — disse. — E posso falar em nome de meu Duque. Ofereço um compromisso em troca de sua ajuda. Desejo uma ajuda limitada que consistirá em preservar minha força apenas o suficiente para matar uma traidora, que se julga fora do alcance de uma vingança.
— Deseja que fiquemos ao seu lado numa vendetta?
— Eu cuidarei da vendetta, pessoalmente. Apenas desejo me libertar da responsabilidade pelos meus feridos.
O Fremen franziu a testa.
— Como pode ser responsável por seus feridos? Eles são responsáveis por si mesmos. A água é a questão principal, Thufir Hawat. Gostaria que eu tomasse essa decisão em seu lugar?
O homem levou a mão à arma, oculta sob o manto. Hawat ficou tenso, se perguntando: “Haverá traição aqui também?”
— O que teme? — perguntou o Fremen.
“Esta gente e sua desconcertante franqueza!” Hawat falou cautelosamente:
— Existe um preço por minha cabeça.
— Ahh — e o Fremen retirou a mão da arma. — Você pensa que nós temos a corrupção bizantina. Não nos conhece. Os Harkonnen não possuem água suficiente para comprar a menor de nossas crianças.
“Mas possuíam o preço de uma passagem na Corporação para mais de duas mil naves de combate”, pensou Hawat. E o tamanho desse preço ainda o desconcertava.
— Nós combatemos os Harkonnen. Não devíamos compartilhar os problemas e os modos de enfrentar essa batalha?
— Estamos compartilhando — respondeu o Fremen. — Já o vi lutar contra os Harkonnen. Você é bom. Houve ocasiões em que eu teria apreciado tê-lo ao meu lado.
— Diga-me onde posso ajudá-lo — disse Hawat.
— Quem sabe? — disse o Fremen. — Existem forças Harkonnen por toda parte. Mas você ainda não tomou a decisão quanto à água, nem a colocou nas mãos de seus feridos.
“Devo ser cauteloso”, pensou Hawat. “Há algo aqui que não entendo.”
— Você me mostraria o seu modo, a maneira de Arrakis?
— Um jeito estranho de pensar — disse o Fremen, e havia um tom sarcástico em sua voz. Ele apontou para o noroeste, acima do topo das colinas. — Nós observamos quando vocês vieram através da areia na noite passada. — Abaixou o braço. — Vocês mantiveram sua força na face escorregadia das dunas. Isto é mau. Não têm trajes-destiladores, nem água. Não vão durar muito.
— As maneiras de Arrakis não são fáceis de aprender — respondeu Hawat.
— É verdade. Mas matamos os Harkonnen.
— O que fazem com seus feridos?
— Será que um homem não percebe quando vale a pena ser salvo? Seus feridos sabem que você não tem água — ele inclinou a cabeça, olhando de soslaio para Hawat. — Esta é, claramente, a ocasião para uma decisão quanto à água. Ambos, feridos e não feridos, devem pensar no futuro da tribo.
“O futuro da tribo. A tribo dos Atreides. Há sentido nisso.”
Forçou-se a formular a pergunta que estivera evitando.
— Tem notícias do meu Duque, ou de seu filho?
Os olhos azuis impenetráveis fitaram-no diretamente.
— Notícias?
— O destino deles! — retrucou Hawat impaciente.
— O destino é o mesmo para todos. Seu Duque, dizem, encontrou o seu. Quanto ao Lisan al-Gaib, seu filho, isso encontra-se nas mãos de Liet. E Liet ainda não disse.
“Sei a resposta sem perguntar”, pensou Hawat.
Olhou para seus homens, eles estavam todos despertos agora.
Tinham ouvido e olhavam para a areia, com suas expressões revelando sua conscientização: para eles não haveria retorno a Caladan, e agora Arrakis estava perdido.
Hawat voltou-se para o Fremen.
— Teve notícias de Duncan Idaho?
— Ele estava na Grande Casa quando o escudo foi desligado. Foi só isso que ouvi, nada mais.
“Ela baixou o escudo e deixou os Harkonnen entrarem. Era eu que estava sentado com as costas para a porta”, pensou ele. “Como é que ela pôde fazer isso quando significava voltar-se igualmente contra o próprio filho? Mas... quem sabe como uma bruxa Bene Gesserit pensa... se é que se pode chamar aquilo de pensar?”
Ele tentou engolir com a garganta seca.
— Quando saberão a respeito do rapaz?
— Sabemos pouco do que acontece em Arrakeen. — O Fremen deu de ombros. — Quem sabe?
— Você tem meios de descobrir?
— Talvez. — O Fremen coçou a cicatriz junto do nariz. — Diga-me, Thufir Hawat, sabe a respeito das grandes armas que os Harkonnen usaram?
“A artilharia”, pensou Hawat amargamente. “Quem iria supor que usariam artilharia neste tempo de escudos?”
— Refere-se à artilharia que usaram para prender nossa gente nas cavernas. Eu tive... um... conhecimento teórico sobre tais armas explosivas.
— Qualquer homem que se refugia numa caverna com apenas uma saída merece morrer — comentou o Fremen.
— Por que me pergunta a respeito dessas armas?
— Liet assim o deseja.
“É isso o que ele quer de nós?”, pensou Hawat. Depois disse:
— Vocês vieram aqui em busca de informação sobre os canhões?
— Liet deseja ver uma dessas armas pessoalmente.
— Então vocês devem ir lá e pegar uma — zombou Hawat.
— Sim — respondeu o Fremen. — Nós pegamos uma. Nós a ocultamos onde Stilgar pode estudá-la para Liet, e onde Liet poderá vê-la, por si mesmo, se assim o desejar. Mas duvido que ele deseje. A arma não é muito boa. Péssimo projeto para Arrakis.
— Vocês... pegaram uma!?
— Foi uma boa luta — continuou o Fremen. — Perdemos apenas dois homens e derramamos a água de mais de cem deles.
“Havia Sardaukar guarnecendo cada canhão”, pensou Hawat. “Este louco do deserto fala tranqüilamente em perder apenas dois homens contra os Sardaukar!”
— Não teríamos perdido os dois se não fosse por aqueles outros, lutando ao lado dos Harkonnen — disse Fremen. — Alguns deles são excelentes lutadores.
Um dos soldados de Hawat aproximou-se mancando e olhou para o Fremen agachado.
— Está falando a respeito dos Sardaukar?
— Ele fala dos Sardaukar — disse Hawat.
— Sardaukar! — havia alegria na voz do Fremen. — Ah, então era isso que eles eram! Esta foi de fato uma boa noite. Sardaukar. Que legião? Você sabe?
— Não.
— Sardaukar — matutou o Fremen. — Mas no entanto eles usam roupas dos Harkonnen. Isso não é estranho?
— O Imperador não quer que saibam que ele lutou contra uma Grande Casa.
— Mas você sabe que eles eram Sardaukar.
— E quem sou eu? — perguntou Hawat amargamente.
— Você é Thufir Hawat. Bem, teríamos descoberto em tempo. Enviamos três deles aprisionados para serem interrogados pelos homens de Liet.
O auxiliar de Hawat falou lentamente, com descrença em sua voz:
— Vocês... capturaram Sardaukar?
— Apenas três deles — disse Fremen. — Eles lutam muito bem.
Havia um lamento amargurado na mente de Hawat. “Se tivéssemos tido tempo para nos unir a esses Fremen... Se pudéssemos treiná-los e armá-los. Grande Mãe, que força de combate não teríamos possuído!”
— Talvez você esteja perdendo tempo em se preocupar com o Lisan al-Gaib — disse o Fremen. — Se ele for realmente o Lisan al-Gaib, então nenhum mal poderá atingi-lo. Não se preocupe com algo que ainda não foi provado.
— Eu sirvo o... Lisan al-Gaib — disse Hawat. — Seu bem-estar é minha única preocupação. Eu me consagrei pessoalmente a isso.
— Comprometeu-se também quanto à água dele?
Hawat olhou para o seu auxiliar, que ainda fitava o Fremen, depois voltou sua atenção para a figura agachada.
— Quanto à sua água, sim.
— E deseja retornar a Arrakeen, ao lugar de sua água?
— Ao... Sim, ao lugar de sua água.
— Por que não disse logo que era uma questão de água? — O Fremen levantou-se, ajustando os tampões do nariz com firmeza.
Hawat gesticulou com a cabeça para que seu auxiliar voltasse para junto dos outros. O homem encolheu os ombros cansados e obedeceu. Hawat ouviu uma conversa em voz baixa surgir entre seus homens.
O Fremem disse.
— Sempre existe um caminho para a água.
Atrás de Hawat um homem praguejou. O auxiliar de Hawat chamou:
— Thufir, Arkie acaba de morrer.
O Fremen colocou o punho junto da orelha.
— O compromisso da água! Isso é um sinal. — Olhou para Hawat. — Temos um lugar aqui perto para aceitar a água. Devo chamar meus homens?
O auxiliar retornou para junto de Hawat, dizendo:
— Thufir, um par de homens deixou suas esposas em Arrakeen. Eles... bem, você sabe como são as coisas numa ocasião dessas.
O Fremen ainda mantinha o punho junto da orelha.
— Será o compromisso da água, Thufir Hawat?
A mente de Hawat acelerava-se. Ele sentia agora o significado das palavras do Fremen, mas temia a reação dos homens cansados, quando compreendessem.
— O compromisso da água — confirmou ele.
— Que nossas tribos se unam — disse o Fremen, abaixando o punho.
Como se isso fosse um sinal, quatro homens deslizaram e pularam das rochas acima deles. Eles correram para debaixo da saliência de pedra, embrulharam o homem morto num manto, ergueram-no, e começaram a correr com ele ao longo da encosta da colina para a direita. Jatos de poeira erguiam-se em torno dos seus pés.
Estava terminado antes que os homens de Hawat pudessem compreender. O grupo com o corpo, pendendo como num saco dentro do manto dobrado, desaparecera atrás da colina.
Um dos homens de Hawat gritou:
— Aonde é que eles vão com o Arkie? Ele era...
— Eles o estão levando para ser enterrado — respondeu Hawat.
— Os Fremen não enterram seus mortos! — retrucou o homem.
— Não tente nenhum truque conosco, Thufir. Sabemos o que eles fazem. Arkie era um dos...
— O Paraíso é uma certeza para o homem que morre a serviço do Lisan al-Gaib — disse o Fremen. — Se é ao Lisan al-Gaib que vocês servem, como disseram, por que erguer vozes de lamentação? A memória de alguém que morreu desse modo permanecerá enquanto durar a memória do homem.
Todavia os homens de Hawat avançavam, olhares de ódio no rosto. Um deles capturara uma arma laser e começou a retirá-la do cinto.
— Parem onde estão! — gritou Hawat. Lutava contra a fadiga doentia que se apoderava de seus músculos. — Essas pessoas respeitam nossos mortos. Os costumes diferem, mas o significado é o mesmo.
— Eles vão despedaçar o Arkie para obter sua água — disse ríspido o homem com o laser.
— Isso significa que seus homens desejam assistir à cerimônia? — indagou o Fremen.
“Ele nem mesmo percebe o problema”, pensou Hawat. A ingenuidade dos Fremen era assustadora.
— Eles estão preocupados com o respeito devido ao seu camarada — disse ele.
— Nós o trataremos com a mesma reverência com que tratamos um dos nossos — disse o Fremen. — Este é um compromisso de água e conhecemos os ritos. A carne de um homem lhe pertence, sua água pertence à tribo.
Hawat falou rapidamente enquanto o homem com a arma laser avançava outro passo.
— Vocês ajudarão agora os nossos feridos?
— Não se questiona um compromisso — disse Fremen. — Faremos por vocês o que uma tribo faz por si própria. Mas, primeiro, devemos conseguir trajes para todos e cuidar do que precisam.
O homem com o laser hesitou.
O ajudante de Hawat disse:
— Está comprando ajuda para nós com a água de Arkie?
— Comprando, não — respondeu Hawat. — Estamos nos unindo a essa gente.
— Os costumes diferem — murmurou um dos homens.
Hawat começou a se descontrair.
— E eles irão nos ajudar a retornar a Arrakeen?
— Nós mataremos Harkonnen — disse o Fremen. Sorriu: — E Sardaukar. — Ele retrocedeu alguns passos, colocou as mãos em concha sobre os ouvidos e inclinou a cabeça para trás, escutando. Daí a pouco baixou as mãos e disse: — Uma aeronave se aproxima. Escondam-se debaixo da rocha e permaneçam imóveis.
A um gesto de Hawat, os homens obedeceram.
O Fremen pegou em Hawat e colocou-o junto dos outros, dizendo:
— Lutaremos quando for a hora. — Levou a mão debaixo do manto, tirando uma pequena caixa, de onde retirou um animal.
Hawat reconheceu um pequenino morcego. O morcego virou a cabeça e ele viu que os olhos eram de azul-dentro-de-azul.
O Fremen acariciou o morcego, confortando-o, sussurrando para ele. Depois inclinou-se sobre a cabeça do animal, permitindo que uma pequena gota de saliva caísse de sua língua para a boca erguida do morcego. O animal estendeu suas asas mas permaneceu pousado na mão do Fremen. O homem então pegou um pequenino tubo, colocou-o junto da cabeça do morcego e emitiu uma série de sons dentro do tubo. Depois ergueu o animal e lançou-o para o alto.
O morcego voou na direção da colina e logo desapareceu.
O Fremen dobrou a caixa, e guardou-a debaixo do manto. Novamente ele inclinou a cabeça, ouvindo.
— Eles buscam nas terras altas. É de se perguntar o que eles procuram por lá.
— Sabem que nós viemos nesta direção — explicou Hawat.
— Não se deve presumir nunca que somos o único objetivo de uma caçada — disse o Fremen. — Observe do outro lado da bacia e verá uma coisa.
O tempo passou.
Alguns dos homens de Hawat se remexiam inquietos, cochichando.
— Permaneçam silenciosos como animais assustados — sussurrou o Fremen.
Hawat percebeu movimentos junto da elevação oposta. Manchas passageiras de bronze sobre bronze.
— Meu pequeno amigo transportou sua mensagem. Ele é um ótimo mensageiro, de dia ou de noite. Eu ficaria muito infeliz se o perdesse.
O movimento do outro lado da depressão terminou. Por toda a extensão de quatro ou cinco quilômetros de areia nada aconteceu, exceto a pressão crescente do calor do dia e colunas irregulares de ar em ascensão.
— Fiquem bem silenciosos agora — sussurrou o Fremen.
Uma fila de indivíduos, caminhando com dificuldade, surgiu de uma fenda na encosta do outro lado, atravessando a “pia” na direção deles. Para Hawat eles pareciam Fremen, mas um grupo curiosamente inepto. Ele contou seis homens avançando vagarosamente sobre as dunas.
Um “tuok-tuok” de asas de ornitóptero soou alto, à direita, por trás do grupo de Hawat. A aeronave surgiu sobre a muralha da elevação acima deles, um “tóptero” dos Atreides com as cores de guerra dos Harkonnen apressadamente pintadas por cima. Mergulhou na direção dos homens que cruzavam a depressão.
Eles pararam na crista de uma duna e acenaram.
O “tóptero” circulou uma vez acima deles, numa curva apertada, depois desceu para pousar envolto numa nuvem de pó, diante dos Fremen. Cinco homens saltaram da aeronave e Hawat percebeu o luzir de escudos repelindo a poeira e a dura competência dos Sardaukar, perceptível em seus movimentos.
— Aiihhh! Eles usam aqueles estúpidos escudos — exultou o Fremen ao lado de Hawat, olhando para a abertura na muralha sul da “pia”.
— Eles são Sardaukar — sussurrou Hawat.
— Ótimo.
Os Sardaukar se aproximaram do grupo de Fremen, num meio círculo envolvente. O sol brilhava nas lâminas desembainhadas. Os Fremen permaneciam num grupo compacto, indiferentes.
Subitamente, jorraram Fremen da areia ao redor dos dois grupos. Num instante eles alcançaram o ornitóptero, depois entraram nele. Onde os dois grupos se haviam encontrado, na crista da duna, uma nuvem de pó obscurecia parcialmente os movimentos violentos.
Dentro em pouco, a poeira abaixou, para revelar apenas Fremen ainda de pé...
— Eles deixaram apenas três homens dentro do “tóptero” explicou o Fremen do lado de Hawat. — Não creio que tenhamos danificado a aeronave ao tomá-la.
Atrás de Hawat um dos homens murmurou:
— Aqueles eram Sardaukar!
— Percebeu como lutavam bem? — indagou o Fremen.
Hawat respirou fundo. Sentia o pó queimado ao seu redor, sentia o calor e a aridez. Numa voz que correspondia à secura ambiente ele respondeu:
— Sim, eles lutam bem, de fato.
O ornitóptero capturado decolou com um brusco bater de asas e virou para o sul numa ascensão íngreme.
“Então esses Fremen podem pilotar ornitópteros”, pensou Hawat.
Na duna distante um Fremen acenou com um quadrado de tecido verde. Uma, duas vezes.
— Estão vindo mais! — disse bruscamente o Fremen ao lado de Hawat. — Estejam preparados. Eu esperava tirá-los daqui sem mais incômodos.
“Incômodos?” — admirou-se Hawat.
Ele viu mais dois “tópteros” mergulharem de grande altura, vindas do oeste em direção ao trecho de areia subitamente livre de qualquer Fremen visível. Somente oito manchas azuis, os corpos dos Sardaukar em uniformes Harkonnen, permaneciam no palco da violência.
Outro “tóptero” deslizou por sobre a muralha rochosa, acima de Hawat. Ele respirou fundo ao vê-la. Era um grande transporte de tropas. Voava com as asas estendidas e em movimento lento, característico de carga completa, qual gigantesco pássaro chegando ao ninho.
Na distância, o feixe de uma arma laser, como um dedo purpúreo incandescente, saltou de um dos “tópteros” em mergulho, lancetando a areia e erguendo uma trilha de pó.
— Covardes! — murmurou o Fremen.
O transporte de tropas desceu sobre o trecho com os cadáveres de uniformes azuis. Suas asas abriam-se completamente para atuar como conchas sobre o ar, freando a aeronave em uma parada rápida.
Súbito a atenção de Hawat foi atraída por um luzir de sol sobre metal, ao sul, e ele viu um “tóptero” mergulhando a plena força, suas asas dobradas colando-se aos lados, as chamas douradas dos jatos riscando o céu cinzento. Mergulhou como uma flecha caindo sobre o transporte de tropas que estava sem escudo devido à atividade com lasers ao seu redor. O “tóptero” atingiu o alvo em cheio.
Uma explosão flamejante sacudiu a depressão, rochas caíram das elevações ao redor. Um jorro de fogo vermelho-alaranjado projetou-se verticalmente no céu, marcando o ponto onde o transporte e seus “tópteros” de escolta haviam estado. Tudo lá estava pegando fogo.
“Foi um Fremen que decolou naquele 'tóptero', capturado”, pensou Hawat. “Ele se sacrificou deliberadamente para pegar aquele transporte. Grande Mãe! Quem são esses Fremen?”
— Uma troca razoável — explicou o Fremen ao seu lado. — Devia haver trezentos homens naquele transporte. Agora devemos buscar sua água, e fazer planos para conseguir outra aeronave. — Começou a caminhar para fora do abrigo na rocha.
Uma chuva de uniformes azuis caiu da parede rochosa à sua frente, descendo com a lentidão provocada por suspensores gravitacionais. Naquele breve instante Hawat pôde ver que eram Sardaukar, os rostos duros exibindo o frenesi da batalha. Estavam sem escudos e cada um carregava uma faca em uma das mãos e um atordoador na outra.
Uma faca atirada alcançou o Fremen companheiro de Hawat na garganta, lançando-o para trás, o rosto torcido para baixo.
Hawat apenas teve tempo de puxar de sua própria faca, antes que a escuridão provocada pelo impacto de um projétil atordoador o derrubasse.
O Muad'Dib podia de fato ver o futuro, mas você deve compreender os limites de seu poder. Pense na visão. Você tem olhos mas não pode ver sem luz. Se estiver no fundo de um vale, não poderá enxergar além. Do mesmo modo o Muad'Dib nem sempre poderia escolher seu ponto de observação sobre o terreno misterioso. Ele nos conta que apenas uma decisão obscura a respeito de uma profecia, como por exemplo a escolha de uma palavra em detrimento de outra, poderia mudar inteiramente o aspecto do futuro. E nos adverte: “A virão de uma época é extensa, mas quando se passa através dela, o tempo se torna uma porta estreita” Ele sempre lutou contra a tentação de escolher o caminho mais claro e seguro, advertindo: “Esta trilha conduz sempre à estagnação.”
— do Despertar de Arrakis, escrito pela Princesa Irulan
Quando os ornitópteros deslizaram através do céu noturno acima deles, Paul segurou sua mãe pelo braço e advertiu:
— Não e mova!
Então notou a aeronave-líder iluminada pela luz do luar, percebendo o modo como suas asas se ajustavam para a frenagem, o indício do movimento de mãos descuidadas sobre os contrates.
— É Idaho — suspirou aliviado.
A aeronave e suas escoltas assentaram sobre uma depressão rochosa como um bando de pássaros chegando ao ninho. Antes que a poeira assentasse, Idaho já estava fora do “tóptero”, correndo ao encontro deles. Duas figuras em trajes Fremen o seguiram e Paul reconheceu uma delas: o alto de barba dourada era Kynes.
— Por aqui! — gritou Kynes, e caminhou para a esquerda.
Atrás dele os outros Fremen lançavam coberturas de pano sobre seus ornitópteros, até que as aeronaves se tornassem uma fileira de dunas baixas.
Idaho parou diante de Paul fazendo uma saudação.
— Meu senhor, os Fremen possuem um esconderijo temporário aqui perto, onde nós...
— O que é aquilo, lá atrás?
Paul apontou para o incêndio acima dos penhascos distantes.
— Os escapamentos dos jatos e os fachos purpúreos das armas laser atingindo o deserto.
Um raro sorriso tocou o rosto redondo e plácido de Idaho.
— Meu senhor, nós lhes deixamos uma pequena sur...
Uma luz branca e cegante derramou-se sobre o deserto. Brilhante como o sol, recortando sombras negras diante de cada rocha. Num movimento rápido, Idaho pegou no braço de Paul com uma das mãos, no ombro de Jessica com a outra, derrubando-os de cima da saliência de rocha para o fundo da “bacia”. Eles deitaram juntos na areia enquanto o rugido da explosão ribombava no céu acima. A onda de choque arrancou lascas de rocha da saliência onde haviam estado.
Idaho sentou-se, limpando a areia da roupa.
— Os atômicos da família! — exclamou Jessica. — Pensei...
— Você plantou um escudo por lá — disse Paul.
— Um bem grande — explicou Idaho. — Ligado a plena força. Um feixe laser o atingiu e... — encolheu os ombros.
— Fusão sub-atômica — disse Jessica. — Isso é uma arma perigosa.
— Arma não, minha senhora, defesa. Aquela ralé pensará duas vezes antes de usar armas laser da próxima vez.
Os Fremen dos ornitópteros surgiram acima deles. Um chamou em voz baixa:
— Nós devemos buscar abrigo, amigos.
Paul levantou-se, enquanto Idaho dava a mão a Jessica.
— Aquela explosão vai atrair uma atenção considerável, senhor — disse Idaho.
“Senhor”, pensou Paul.
A palavra possuía uma conotação estranha ao lhe ser dirigida.
Senhor havia sido um tratamento reservado, geralmente, a seu pai.
Sentiu-se tocado momentaneamente pelos poderes de presciência que adquirira, achando-se contaminado por aquela selvagem consciência racial que conduzia o universo humano em direção ao caos.
A visão o deixou abalado e permitiu que Idaho o conduzisse ao longo da borda da bacia até uma projeção rochosa. Os Fremen estavam abrindo um caminho para baixo, areia adentro, com suas ferramentas de compactação.
— Posso levar o seu embrulho, senhor? — indagou Idaho.
— Não é pesado, Duncan — respondeu Paul.
— Está sem o seu escudo corporal. Quer usar o meu? — e olhou para a escarpa distante. — Não é provável que haja mais atividade de lasers por aqui.
— Fique com seu escudo, Duncan. Seu braço direito já é escudo suficiente para mim.
Jessica viu como o elogio surtia efeito, como Idaho se movia para mais perto de Paul. “Meu filho sabe como tratar sua gente”, pensou.
Os Fremen removeram um tampão de rocha que abria uma passagem para baixo, através de um complexo subterrâneo natural, no fundo do deserto. Uma cobertura camuflada abriu-se para eles.
— Por aqui — disse um dos Fremen, e tomou a frente, descendo para a escuridão pelos degraus esculpidos na rocha.
Atrás deles a tampa bloqueou a luz do luar. Um fraco brilho esverdeado acendeu-se adiante, revelando degraus e paredes rochosas. Havia uma curva para a esquerda e Fremen envoltos em mantos os rodeavam por toda parte. Dobraram a curva do túnel e encontraram outra passagem descendente que se abria para uma rústica câmara de caverna.
Kynes estava diante deles agora, seu capuz lançado para trás, o pescoço coberto pelo traje-destilador brilhando na luz verde. A barba e o longo cabelo encontravam-se despenteados. Os olhos azuis sem branco pareciam escuros sob as espessas sobrancelhas.
No instante daquele encontro Kynes pensou: “Por que estou ajudando essa gente? É a coisa mais perigosa que já fiz. Posso me condenar junto com eles.”
E então olhou diretamente para Paul, vendo o menino que se tornara homem ocultando a mágoa, suprimindo tudo, exceto a posição que agora devia assumir: o ducado. E Kynes percebeu naquele momento que o ducado ainda existia unicamente por causa desse jovem e isso não era algo para ser considerado levianamente.
Jessica olhou uma vez ao redor da câmara, registrando-a com seus sentidos Bene Gesserit: um laboratório civil, um lugar cheio de ângulos e quadrados, à maneira antiga.
— Esta era uma das Estações de Testes Ecológicos Imperiais que meu pai queria como bases avançadas — disse Paul.
“Seu pai queria!”, notou Kynes, e novamente perguntou a si próprio: “Serei tão tolo a ponto de ajudar essa gente? Por que faço isso? Seria tão mais fácil apanhá-los agora e comprar a confiança dos Harkonnen com eles.”
Paul seguia o exemplo de sua mãe, registrando a sala, vendo o balcão de trabalho estendendo-se num lado, as paredes de rocha lisa. Instrumentos alinhando-se ao longo do balcão: mostradores brilhando, planos de tela metálica de onde se erguiam vidros acanelados, um cheiro de ozônio por toda parte.
Alguns dos Fremen moveram-se para um canto oculto da câmara e novos sons começaram lá. O “tossir” da maquinaria, o zumbido de correias girando e multi-impulsores.
Paul olhou para a extremidade da sala vendo gaiolas com pequenos animais empilhadas contra a parede.
— Reconheceu este lugar corretamente — disse Kynes. Para que o utilizaria, Paul Atreides?
— Para transformar este planeta num lugar adequado aos seres humanos.
“Talvez seja por isso que eu os ajudo”, pensou Kynes.
Os sons da máquina cessaram subitamente. Preenchendo o silêncio ouviu-se um agudo guinchar de animal vindo de uma das gaiolas. Foi interrompido subitamente.
Paul voltou sua atenção para as gaiolas, percebendo que os animais eram morcegos de asas marrons. Um alimentador automático estendia-se diante das gaiolas.
Um Fremen saiu da área oculta da câmara e falou com Kynes: Liet, o equipamento gerador de campo não está funcionando. Sinto-me incapaz de ocultar-nos aos detetores de proximidade.
— Pode consertá-lo?
— Não rapidamente. As peças... — O homem encolheu os ombros.
— Sim — concordou Kynes. — Então nos arranjaremos sem as máquinas. Consiga uma bomba manual para trazer-nos ar da superfície.
— Imediatamente!
O homem saiu apressado.
Kynes voltou-se para Paul.
— Você deu uma boa resposta.
Jessica percebeu o som tranqüilo da voz do homem. Era uma voz real, acostumada a comandar. E ela não deixara de notar a referência feita a ele como Liet. Liet era seu alterego Fremen, a outra face do pacífico planetólogo.
— Estamos muito gratos por sua ajuda, Dr. Kynes — disse ela.
— Hum, veremos — respondeu ele, e acenou para um de seus homens: — Café com especiaria em meus alojamentos, Shamir.
— Imediatamente, Liet.
Kynes indicou uma passagem abobadada na parede lateral.
— Por aqui, por favor.
Jessica se permitiu um aceno altivo antes de aceitar. Viu Paul fazer um gesto para Idaho, avisando-o para montar guarda na porta.
A passagem, com dois passos de largura, abria-se numa pesada porta para dentro de um escritório quadrangular, iluminado por globos luminosos dourados. Jessica passou a mão pela porta ao entrar e surpreendeu-se ao identificar o material: plasteel.
Paul caminhou três passos para dentro da sala e colocou seu embrulho no chão. Ouviu a porta fechar-se às suas costas e estudou o lugar: aproximadamente oito metros de lado, paredes de rocha natural avermelhadas, interrompidas apenas por arquivos de metal à direita. Uma mesa baixa com um tampo de vidro leitoso cheio de bolhas amarelas ocupava o centro da sala. Quatro cadeiras suspensoras envolviam a mesa.
Kynes passou por Paul e puxou uma cadeira para Jessica. Ela se sentou notando o modo como seu filho examinava a sala.
Paul permaneceu de pé por um instante. Uma fraca anormalidade nas correntes de ar mostrou-lhe que havia uma saída secreta à direita, por trás dos arquivos.
— Sente-se, Paul Atreides — pediu Kynes.
“Quão cuidadosamente ele evita o meu título”, pensou Paul.
Mas aceitou a cadeira, permanecendo silencioso enquanto Kynes se sentava.
— Você percebe que Arrakis poderia ser um paraíso, mas no entanto, como bem pode ver, o Império manda para cá apenas seus capangas treinados, seus caçadores de especiaria!
Paul ergueu o polegar com o anel ducal.
— Vê este anel?
— Sim.
— Conhece o seu significado?
Jessica voltou-se, abruptamente, para fitar seu filho.
— Seu pai está morto nas ruínas de Arrakeen — disse Kynes. — Tecnicamente, você é o Duque.
— Sou um soldado do Império. Tecnicamente, um capanga treinado.
O rosto de Kynes tornou-se grave.
— Mesmo com os Sardaukar do Imperador de pé sobre o cadáver de seu pai?
— Os Sardaukar são uma coisa, a fonte legal de minha autoridade é outra.
— Arrakis tem a sua própria maneira de determinar quem usa o manto da autoridade — disse Kynes.
Jessica olhou para Kynes, pensando: “Existe uma rigidez de aço neste homem, da qual ninguém tirou ainda a têmpera... E nós precisamos dele. Paul está fazendo algo muito arriscado.”
— Os Sardaukar em Arrakis são uma medida do quanto nosso amado Imperador temia meu pai — disse Paul. — Agora darei ao Imperador Padishah razões para temer o...
— Garoto. Há coisas que você não...
— Deve se dirigir a mim como “Sir”, ou “Meu Senhor”.
“Calina”, pensou Jessica.
Kynes olhava para Paul, e ela percebia o brilho de admiração nos olhos do planetólogo, o toque do humor em seu rosto.
— Sir — disse ele.
— Eu sou um embaraço para o Imperador — continuou Paul. — Sou um embaraço para todos aqueles que desejam dividir Arrakis como seu espólio. Enquanto eu viver, continuarei a ser tamanho embaraço que permanecerei preso em suas gargantas, sufocando-os até a morte!
— Palavras — disse Kynes.
Paul olhou fixamente para Kynes, deixou passar um momento e disse:
— Vocês possuem uma lenda do Lisan al-Gaib aqui, a Voz do Mundo Exterior, aquele que conduzirá os Fremen ao paraíso. Seus homens possuem...
— Superstição! — respondeu Kynes.
— Talvez, e no entanto talvez não. Superstições, algumas vezes, possuem raízes estranhas e ramificações curiosas.
— Você tem um plano. Isso é bem óbvio... Sir!
— Poderiam os seus Fremen me fornecer uma prova positiva de que os Sardaukar se encontram neste planeta, usando uniformes Harkonnen?
— É bem provável.
— O Imperador colocará um Harkonnen novamente no poder por aqui — disse Paul. — Talvez até mesmo Rabban, a Besta. Deixe-o. Uma vez que ele esteja envolvido além da possibilidade de fugir à sua culpa, faremos com que o Imperador enfrente a possibilidade de uma denúncia ante o Landsraad. Deixe que ele responda lá...
— Paul! — exclamou Jessica.
— Isso se o Alto Conselho de Landsraad aceitar seu caso observou Kynes. — E isso teria apenas uma conseqüência: guerra generalizada entre o Império e as Grandes Casas.
— Caos — disse Jessica.
— Mas apresentarei o meu caso ao Imperador, e lhe darei uma alternativa para o caos.
Jessica falou num tom duro:
— Chantagem?
— Um dos instrumentos da política, como você mesma disse uma vez.
Jessica notou a amargura em sua voz, ele continuou:
— E o Imperador não tem filhos, apenas filhas.
— Está cobiçando o trono? — indagou ela.
— O Imperador não se arriscará a ter o Império destroçado por uma guerra total. Planetas destruídos, desordem por toda parte. Ele não se arriscará.
— É uma jogada desesperada o que propõe — disse Kynes.
— O que as Grandes Casas mais temem? — perguntou Paul.
— Elas temem o que está acontecendo aqui, agora mesmo. Os Sardaukar apanhando-as uma por uma. É por isso que existe uma Landsraad. Ela é o fixador da Grande Convenção. Apenas unidas elas podem igualar-se às forças imperiais.
— Mas elas são...
— Isso é o que temem — insistiu Paul. — Arrakis se tornaria um grito de reunião. Cada um deles se veria no lugar do meu pai: separado do rebanho e assassinado.
Kynes perguntou a Jessica.
— Este plano funcionaria?
— Eu não sou Mentat — respondeu ela.
— Mas é uma Bene Gesserit.
Jessica lançou-lhe um olhar indagador e disse:
— O plano dele tem pontos bons e maus... como qualquer plano teria, nesse estágio. Todo plano depende tanto de sua execução quanto de seus conceitos.
— “A Lei é a ciência final” — citou Paul. — Assim está escrito, acima da porta do gabinete do Imperador. Pretendo mostrar-lhe a lei.
— Não tenho certeza se poderei confiar na pessoa que concebe esse plano — disse Kynes. — Arrakis tem o seu próprio plano, que nós...
— Do trono, eu poderia transformar Arrakis num paraíso, apenas com um aceno de mão — respondeu Paul. — Este é o pagamento que ofereço em troca de seu apoio.
Kynes empertigou-se:
— Minha lealdade não se encontra à venda, senhor.
Paul olhou para ele por sobre a mesa, encontrando o brilho frio daquele azul-dentro-de-azul, estudando o rosto barbado, a aparência dominadora. Um duro sorriso tocou seus lábios e Paul disse:
— Bem falado, peço desculpas.
Kynes respondeu ao seu olhar e daí a pouco disse:
— Nenhum Harkonnen jamais admitiu um erro. Talvez os Atreides não sejam como eles.
— Pode ser uma falha na educação deles — disse Paul. — Você diz que não está à venda, mas acredito que tenho uma moeda que irá aceitar. Por sua lealdade, ofereço-lhe a minha lealdade... total.
“Meu filho tem a sinceridade dos Atreides”, pensou Jessica.
“Ele possui aquela honra tremenda, quase ingênua, e que poderosa força ela é realmente.”
Percebeu que as palavras de Paul haviam abalado Kynes.
— Isso é tolice — disse Kynes. — Você é apenas um menino e...
— Eu sou o Duque — respondeu Paul. — E sou um Atreides. Nenhum Atreides jamais faltou a esse compromisso.
Kynes engoliu em seco.
— Quando digo totalmente — continuou Paul —, quero dizer sem reservas. Eu daria minha vida por você.
— Senhor! — exclamou Kynes, e Jessica percebeu que a palavra lhe escapara inconscientemente. Ele não estava mais falando a um rapazinho de quinze anos, e sim a um homem, a um superior. Agora Kynes usava o tratamento com sinceridade.
“Neste momento ele daria a vida por Paul”, pensou ela. “Como os Atreides conseguem isso tão facilmente, tão rápido?”
— Sei que fala sinceramente — disse Kynes. — Entretanto os Harkon...
A porta atrás de Paul abriu-se subitamente. Ele girou e viu uma cena violenta: gritos, o choque de aço contra aço, imagens de rostos, como reproduções de cera, em expressões de fúria.
Com sua mãe ao lado, Paul saltou para a porta, vendo Idaho bloqueando a passagem, seus olhos injetados de sangue, visíveis através do luzir do escudo, mãos em garras atrás dele, arcos de aço golpeando inutilmente. Uma labareda alaranjada brilhou no instante em que um atordoador foi repelido pelo escudo. As lâminas de Idaho passavam por tudo aquilo, relampejando, sangue gotejando delas.
Kynes estava ao lado de Paul, e juntos eles lançaram todo o peso contra a porta.
Paul ainda teve uma última visão de Idaho: de pé, contra um enxame de uniformes Harkonnen, seus movimentos controlados, o cabelo negro com o vermelho da morte espalhando-se, e então a porta foi fechada ruidosamente quando Kynes acionou os ferrolhos.
— Parece que me decidi — disse ele.
— Alguém detectou suas máquinas antes que fossem desligadas — observou Paul. Ele puxou sua mãe para longe da porta, notando o desespero nos olhos dela.
— Eu devia ter esperado problemas quando o café não chegou disse Kynes.
— Há uma saída de emergência para fora daqui. Devemos usá-la? — perguntou Paul.
Kynes respirou fundo antes de responder.
— Esta porta deve agüentar durante vinte minutos, no mínimo, a menos que usem uma arma laser.
— Eles não vão usar lasers, temendo que tenhamos escudos deste lado.
— Aqueles eram Sardaukar em uniformes Harkonnen sussurrou Jessica.
Podiam ouvir pancadas na porta, agora. Golpes repetidos.
Kynes apontou para os arquivos contra a parede, do lado direito, e disse:
— Venham por aqui.
Abriu uma gaveta no primeiro arquivo, manipulando uma alavanca dentro dela. Todo o conjunto de arquivos girou, revelando a boca negra de um túnel.
— Esta porta também é de plasteel — explicou ele.
— Vocês estavam bem preparados — notou Jessica.
— Vivemos sob o domínio dos Harkonnen durante oitenta anos — foi a resposta de Kynes. Ele os conduziu escuridão adentro e fechou a porta.
No súbito negrume Jessica viu uma seta luminosa no piso à sua frente.
A voz de Kynes soou atrás deles:
— Aqui nós nos separamos. Esta parede é resistente. Agüentará uma hora no mínimo. Sigam as setas como esta no piso, elas se apagarão ao passarem. Conduzem através de um labirinto a uma outra saída onde escondi um “tóptero”. Há uma tempestade sobre o deserto esta noite. Sua única esperança é fugir para essa tempestade, mergulhar nela e correr com ela. Minha gente já fez isso ao roubar “tópteros”. Se mantiver uma altitude elevada dentro da tempestade você sobreviverá.
— E você? — indagou Paul.
— Tentarei escapar de outro modo. Se for capturado... bem, ainda sou o Planetólogo Imperial. Sempre posso dizer que era seu prisioneiro.
“Correndo como covardes”, pensou Paul. “Mas de que outro modo posso viver para vingar meu pai?”
Voltou-se para olhar a porta, Jessica percebeu o movimento e disse:
— Duncan está morto, Paul. Você viu o ferimento. Não pode fazer nada por ele.
— Cobrarei caro por todos eles, um dia.
— Não, a menos que corra agora — disse Kynes.
Paul sentiu a mão do homem sobre seu ombro.
— Onde nos encontraremos, Kynes?
— Enviarei Fremen em busca de vocês. A trilha da tempestade é conhecida. Depressa agora, e que a Grande Mãe lhes dê velocidade e sorte.
Eles o ouviram partir, correndo na escuridão.
Jessica encontrou a mão de Paul e o puxou gentilmente.
— Não devemos nos separar.
— Sim — concordou ele.
E seguiu-a por cima da primeira seta, vendo-a enegrecer assim que a tocaram. Outra flecha apontava adiante. Passaram por ela vendo-a extinguir-se igualmente, vendo outra mais à frente.
Estavam correndo agora.
“Planos, dentro de planos, dentro de planos”, pensava Jessica.
“Teremos nos tornado parte do plano de alguém, agora?”
As flechas indicaram o caminho ao longo de curvas, passando por aberturas fracamente percebidas na débil luminescência. O caminho inclinou-se para baixo uma vez, depois para cima, sempre para cima. Chegaram finalmente a um lance de degraus, viraram outra curva e pararam diante de uma parede brilhante, com uma maçaneta visível em seu centro. Paul pressionou a maçaneta e a parede girou, afastando-se dele.
Luzes se acenderam para revelar uma caverna talhada na rocha com um ornitóptero agachado em seu centro. Uma parede lisa e cinzenta, com um sinal de porta, erguia-se além da aeronave.
— Para onde foi Kynes? — indagou Jessica.
— Ele fez o que qualquer bom líder de guerrilhas teria feito: separou-nos em dois grupos e providenciou para que não pudesse revelar onde estamos, se for capturado. Ele não saberá, realmente.
Paul puxou sua mãe para dentro da câmara, notando como seus pés levantavam a poeira sobre o solo.
— Ninguém esteve aqui durante um bom tempo — disse.
— Ele parecia confiante de que os Fremen nos encontrarão observou Jessica.
— Participo dessa confiança.
Paul soltou a mão dela, caminhou para a porta esquerda do ornitóptero, abriu-a e colocou seu embrulho na parte traseira.
— Esta aeronave tem refletores de proximidade. O painel de instrumentos tem controle remoto para a porta, controle de luz. Oitenta anos sob o jugo dos Harkonnen ensinaram-lhes a ser meticulosos.
Jessica apoiou-se de encontro ao lado oposto da aeronave, recuperando o fôlego.
— Os Harkonnen terão uma força cobrindo esta área — disse ela. — Eles não são estúpidos. — Parou, considerando seu sentido direcional, depois apontou para a direita. — A tempestade que vimos ficava naquela direção.
Paul acenou, lutando contra uma abrupta relutância em pôr-se em movimento. Conhecia sua causa mas não encontrava apoio nesse conhecimento. Em algum momento dessa noite ele havia ultrapassado um ponto de decisão, penetrando num profundo desconhecido. Conhecia a área temporal a circundá-lo, mas o aqui e agora existia como um lugar misterioso. Era como se houvesse presenciado sua própria pessoa, vista de uma grande distância, desaparecer num vale. Das incontáveis trilhas que saíam do vale algumas poderiam trazer Paul Atreides de volta ao campo visual, mas muitas não.
— Quanto mais esperarmos, melhor preparados eles estarão disse Jessica.
— Entre e prenda seus cintos — disse ele.
Juntou-se a ela no ornitóptero, ainda lutando com a idéia de que esse era um terreno cego, fora do alcance de sua visão presciente. E percebeu num súbito choque que estivera confiando cada vez mais em sua memória presciente e isso o enfraquecera para enfrentar essa emergência em particular.
“Se confiar apenas em seus olhos, seus outros sentidos se enfraquecerão”, dizia uma máxima Bene Gesserit. Lembrou-se dela naquele momento, prometendo a si mesmo nunca mais cair nessa armadilha... se escapasse vivo dessa situação.
Prendeu seus cintos de segurança, verificou que sua mãe estava bem segura e checou a condição da aeronave. As asas estavam estendidas na posição de repouso, com suas delicadas folhas de metal intercaladas. Ele tocou a barra retratora e observou as asas se encurtarem na posição adequada para uma decolagem impulsionada a jato, do modo como Gurney Halleck lhe ensinara. O interruptor de partida moveu-se com facilidade. Mostradores no painel de instrumentos ganharam vida enquanto os casulos dos jatos eram armados. As turbinas começaram a assoviar.
— Pronta? — indagou ele.
— Sim.
Tocou o controle remoto para as luzes e a escuridão os encobriu.
Sua mão era uma sombra contra os mostradores luminosos enquanto acionava o controle remoto da porta. Sons de rangidos ecoaram adiante. Ouviu-se ao longe um cascatear de areia que não tardou a desaparecer. Uma brisa poeirenta tocou as faces de Paul fazendo-o fechar a porta, sentindo a súbita pressão.
Uma larga extensão de estrelas toldadas pelo pó e emolduradas por uma escuridão recortada em ângulos surgiu, então, onde antes existira a parede-porta. A luz estelar definia uma saliência adiante, com um indício de ondulações de areia.
Paul pressionou o interruptor do seqüênciador de ações em seu painel. As asas bateram para cima e para baixo, lançando o “tóptero” para fora de seu ninho. A força aumentou subitamente nos casulos dos jatos enquanto as asas se imobilizavam em atitude ascensional.
Jessica colocou suas mãos de leve sobre os controles duplos, sentindo a segurança dos movimentos do filho. Sentia-se assustada e ao mesmo tempo excitada. “Agora o treinamento de Paul é a nossa única esperança. Sua juventude e sua ligeireza.”
Paul liberou mais força para os jatos, o “tóptero” inclinou-se, a aceleração mergulhando-os nos assentos enquanto uma muralha negra erguia-se sobre as estrelas adiante. Ele deu mais asa e mais força à aeronave. Outra seqüência de batidas de asa e eles passaram acima das rochas, vendo suas arestas congeladas de prata, seus afloramentos sob a luz das estrelas. Uma segunda lua, avermelhada pelo pó, mostrava-se acima do horizonte à direita, definindo a trilha da tempestade.
As mãos de Paul moviam-se rapidamente sobre os controles.
As asas reduziram-se aos tocos de um besouro, forças “G” puxaram-lhes a carne enquanto a aeronave virava numa curva fechada.
— Chamas de jatos atrás de nós! — disse Jessica.
— Posso vê-los.
Empurrou a alavanca de força para a frente. O “tóptero” saltou como um animal assustado, lançando-se para o sul em direção à tormenta e à grande curva do deserto. Mais próximo, Paul via sombras dispersas indicando-lhe onde a linha de rochas terminava e o leito de pedra afundava-se debaixo das dunas. Para além, estendiam-se as sombras em forma de foice, à luz do luar, dunas estendendo-se uma após outra. E acima do horizonte erguia-se a imensidão plana da tempestade, como uma muralha de encontro às estrelas.
Alguma coisa fez o “tóptero” balançar.
— Explosão de obus! — exclamou Jessica. — Estão usando algum tipo de arma lançadora de projéteis.
Viu um súbito sorriso animal no rosto de Paul. — Eles estão evitando usar armas laser.
— Mas não temos escudos!
— Será que eles sabem disso?
Novamente o “tóptero” estremeceu.
Paul inclinou-se para olhar para trás.
— Apenas um deles parece ser suficientemente rápido para nos acompanhar.
Voltou sua atenção ao curso, observando como a muralha da tempestade elevava-se diante deles. Parecia sólida.
— Lançadores de projéteis, foguetes, todo o armamento antigo. Eis uma coisa que forneceremos aos Fremen — sussurrou Paul.
— A tempestade. Não é melhor voltarmos? — indagou Jessica.
— E quanto àquela nave atrás de nós?
— Está ganhando vantagem.
— Agora!
Encurtou as asas novamente e fez uma curva abrupta para a esquerda, em direção à muralha da tormenta que parecia borbulhar de um modo enganosamente lento. Sentiu as maçãs do rosto sendo puxadas pela força “G”.
Pareciam deslizar para dentro de um lento obscurecer de pó que se tornou cada vez mais escuro até bloquear totalmente a visão do deserto e da lua. A aeronave tornou-se um penacho horizontal na escuridão, iluminada apenas pela luminosidade verde do painel de instrumentos.
Através da mente de Jessica passavam todas as advertências a respeito dessas tempestades: que elas cortavam metal como manteiga, arrancavam a carne dos ossos e dissolviam os ossos. Sentia o golpear dos ventos cobertos de pó, que sacudiam a aeronave enquanto Paul lutava nos controles. Viu quando ele reduziu a força e sentiu o “tóptero” pular. O metal à sua volta assoviava e estremecia.
— Areia! — gritou ela.
Viu a cabeça de Paul sacudir uma negativa, à luz do painel.
— Não há muita areia nesta altitude.
E no entanto ela podia sentir que mergulhavam cada vez mais profundamente no redemoinho.
Paul ajustou as asas em sua máxima envergadura para ascensão, ouviu-as estalar com a tensão. Mantinha os olhos fixos no painel de instrumentos, planando por instinto, lutando por ganhar altura.
O som de sua passagem diminuiu. O “tóptero” começou a girar para a esquerda. Paul focalizou sua atenção no globo brilhante dentro da curva de atitude de vôo, esforçando-se para nivelar a aeronave.
Jessica tinha a estranha impressão de que eles estavam imóveis e de que todo o movimento era externo. Um vago fluir de bronze contra as janelas, um rumor que a lembrava das forças à sua volta.
“Ventos de setecentos e oitocentos quilômetros horários”, pensou ela. Uma vertigem de adrenalina minava sua resistência. “Não devo ter medo”, disse para si mesma, pronunciando as palavras da ladainha Bene Gesserit: “O medo é o assassino da mente.”
Lentamente seus longos anos de treinamento prevaleceram, fazendo a calma retornar.
— Nós temos o tigre pela cauda — sussurrou Paul. Não podemos descer, nem pousar... e não creio que possamos nos elevar acima disto. Teremos que voar com ela até passar.
A calma se esvaiu completamente e Jessica sentiu seus dentes baterem. Mordeu com força para pressioná-los. Então ouviu a própria voz de Paul, baixa e controlada, recitando a mesma ladainha.
“— O medo é o assassino da mente. O medo é a morte pequena que traz a obliteração. Enfrentarei meu medo. Não permitirei que ele passe sobre mim ou através de mim. E quando ele se for voltarei minha visão interior para fitar sua trilha. Por onde o medo passou nada restou. Apenas eu permaneço.”
O que você despreza? Através disso será verdadeiramente conhecido.
— do Manual do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
— Eles estão mortos, Barão — dizia Iakin Nefud, o capitão da guarda. — Ambos, a mulher e o menino, estão mortos com certeza.
O Barão Vladimir Harkonnen encontrava-se apoiado nos suspensores de dormir em seus alojamentos particulares. Além desses alojamentos, envolvendo-o como um ovo de múltiplas cascas, estendia-se a fragata espacial que ele pousara em Arrakis. Aqui, todavia, em seus alojamentos, o metal frio da nave era oculto pelas cortinas, almofadas de tecido e raros objetos de arte.
— É uma certeza — insistiu o capitão da guarda. — Eles estão mortos.
O Barão ajustou seu corpo volumoso nos suspensores e focalizou sua atenção na estátua de um menino saltando, colocada num nicho do outro lado da sala. O sono se afastou deixando-o desperto. Endireitou a almofada suspensora debaixo das dobras de gordura em seu pescoço e olhou sob o único globo luminoso, de sua câmara dormitório, para o portal onde o capitão Nefud se encontrava, bloqueado por um penta-escudo.
— Eles estão certamente mortos, Barão — repetiu o homem.
O Barão notou os traços do embotamento por semuta nos olhos do homem. Era óbvio que ele estivera num profundo êxtase da droga quando recebera o relatório, e parara apenas para tomar o antídoto, antes de correr até ali.
— Tenho um relatório completo — disse Nefud.
“Deixe-o suar um pouco”, pensou o Barão. “E preciso manter as ferramentas de nosso governo sempre afiadas e prontas. Poder e medo, afiados e prontos.”
— Viu seus corpos? — rugiu o Barão.
Nefud hesitou.
— Então?
— Meu senhor... eles foram vistos mergulhando em uma tempestade de areia .. ventos de mais de oitocentos quilômetros horários. Nada sobrevive a uma tempestade assim, meu senhor. Nada! Uma de nossas próprias aeronaves foi destruída na perseguição.
O Barão observou Nefud, vendo o tique nervoso nos músculos do queixo, o modo como o maxilar se movia enquanto Nefud engolia em seco.
— Você viu os corpos? — indagou o Barão.
— Meu senhor...
— Com que propósito vem aqui chocalhando sua armadura? Para me dizer que uma coisa é certa quando não é? Pensa que vou elogiá-lo por sua estupidez, dar-lhe outra promoção?
O rosto de Nefud ficou branco como um osso.
“Olhe para esse frango”, pensou o Barão. “Estou cercado por esses idiotas inúteis. Se eu espalhasse areia diante dessa criatura e lhe dissesse que era milho ela começaria a bicar.”
— O homem, Idaho, nos levou até eles, então?
— Sim, meu senhor.
“Olhe como ele responde sem pensar”, notou o Barão. E disse:
— Eles estavam tentando fugir para junto dos Fremen, hein?
— Sim, meu senhor.
— Existe mais alguma coisa nesse... relatório?
— O Planetólogo Imperial, Kynes, está envolvido, meu senhor. Idaho juntou-se a esse Kynes em circunstâncias misteriosas... eu poderia mesmo dizer circunstâncias suspeitas.
— Ah, sim...?
— Eles... ah, fugiram juntos para um lugar no deserto onde aparentemente o rapaz e sua mãe estavam se ocultando. Na excitação da caçada vários de nossos grupos foram apanhados em uma explosão de escudo-arma laser.
— Quantos nós perdemos?
— Eu... ah, não tenho certeza ainda, meu senhor.
“Ele está mentindo”, pensou o Barão. “Deve ter sido muito ruim.”
— O lacaio imperial, esse Kynes, estava fazendo jogo duplo, então, não é mesmo?
— Eu apostaria minha reputação nisso, meu senhor.
“Sua reputação!”
— Faça com que o homem seja morto — disse o Barão.
— Meu senhor! Kynes é o planetólogo imperial. Um servo de Sua Majestade...
— Faça parecer um acidente, então!
— Meu senhor, havia Sardaukar com nossas forças durante a tomada desse ninho Fremen. Eles têm Kynes sob custódia agora.
— Tire-o de perto deles. Diga que eu quero interrogá-lo.
— E se eles se recusarem?
— Não o farão, se agir adequadamente.
Nefud engoliu em seco:
— Sim, meu senhor.
— O homem deve morrer — roncou o Barão. — Ele tentou ajudar os meus inimigos.
Nefud mudou o apoio do corpo de um pé para o outro.
— Então?
— Meu senhor, os Sardaukar têm... duas pessoas em custódia que podem ser de interesse para o senhor. Eles apanharam também o Mestre dos Assassinos do Duque.
— Hawat? Thufir Hawat?
— Eu vi o prisioneiro com meus próprios olhos. Esse Hawat...
— Eu não acreditava que fosse possível!
— Eles dizem que foi derrubado por um atordoador, meu senhor. No deserto, onde não podia usar seu escudo. Ele está praticamente ileso. Se pudermos colocar nossas mãos sobre ele, nos fornecerá um bom divertimento.
— Você está falando de um Mentat — grunhiu o Barão. — Não se desperdiça um Mentat. Ele já falou? O que disse de sua derrota? Poderia ele conhecer a extensão da... mas não.
— Ele disse apenas o suficiente para revelar sua crença de que Lady Jessica era a traidora.
— Ahhh!
O Barão recostou-se, pensando.
— Tem certeza? É a Lady Jessica que atrai seu ódio?
— Ele disse isso em minha presença, meu senhor.
— Deixe que ele pense que ela está viva, então.
— Mas, meu senhor...
— Fique quieto. Desejo que Hawat seja tratado com gentileza.
Ele não deve ouvir nada a respeito do falecido Dr. Yueh, o verdadeiro traidor. Digamos que o doutor morreu defendendo o seu Duque. De certo modo isso pode ser verdadeiro. Em vez disso, nós iremos alimentar suas suspeitas contra Lady Jessica.
— Meu senhor, eu não...
— A maneira de se controlar um Mentat, Nefud, é através da informação. Informação falsa, resultados falsos.
— Sim, meu senhor, mas...
— Hawat está faminto? Com sede?
— Meu senhor, Hawat ainda está nas mãos dos Sardaukar.
— Sim, de fato. Mas os Sardaukar estarão tão ansiosos por obter informações de Hawat quanto eu. Reparei uma coisa a respeito de nossos aliados, Nefud. Eles não são muito astutos... politicamente. Acredito que isso seja deliberado, o imperador deve desejá-los desse modo. Sim, eu realmente acredito nisso. E você irá lembrar ao comandante dos Sardaukar de minha fama quanto a obter informação de fontes relutantes.
Nefud pareceu infeliz.
— Sim, meu senhor.
— Você dirá ao comandante dos Sardaukar que desejo questionar a ambos, Hawat e Kynes ao mesmo tempo, para jogar um contra o outro. Ele é capaz de entender isso, não é verdade?
— Sim, meu senhor.
— E uma vez que os tenhamos em nossas mãos...
— Meu senhor, os Sardaukar desejarão ter um observador conosco durante qualquer interrogatório.
— Tenho certeza de que poderemos produzir uma emergência capaz de afastar qualquer observador indesejável, hein, Nefud?
— Compreendo, meu senhor. É quando Kynes poderá ter o seu acidente.
— Ambos, Kynes e Hawat, terão seus acidentes então, Nefud.
Mas apenas Kynes sofrerá um acidente real. É Hawat que eu quero. Sim, isso mesmo.
Nefud pestanejou, engolindo em seco. Pareceu a ponto de fazer uma pergunta mas continuou calado.
— Hawat receberá comida e bebida, será tratado com bondade e simpatia — disse o Barão. — Em sua água administraremos o veneno desenvolvido pelo falecido Piter de Vries. E você providenciará para que o antídoto se torne um complemento regular da dieta de Hawat a partir deste momento... a não ser que eu dê instruções em contrário.
— O antídoto, sim. — Nefud sacudiu a cabeça. — Mas...
— Não seja estúpido, Nefud. O Duque quase me matou com aquela cápsula de veneno no dente. O gás que ele exalou em minha presença privou-me de Piter, meu mais valioso Mentat. Eu preciso de um substituto.
— Hawat?
— Hawat.
— Mas...
— Você vai dizer que Hawat é completamente leal aos Atreides. Verdade, mas os Atreides estão mortos. Nós iremos persuadi-lo, convencê-lo de que não é culpado pela morte do Duque. Foi tudo obra da bruxa Bene Gesserit. Ele tinha um mestre inferior, alguém cuja razão estava toldada pela emoção. Mentats admiram a habilidade de calcular sem emoções, Nefud. Nós iremos lisonjear o formidável Thufir Hawat até conquistá-lo.
— Lisonjeá-lo. Sim, meu senhor.
— Hawat infelizmente tinha um mestre cujos recursos eram escassos, alguém que não poderia elevar um Mentat aos sublimes píncaros do raciocínio a que um Mentat tem direito. Hawat verá um certo elemento de verdade nisso. O Duque não podia custear os espiões mais eficazes para fornecer ao seu Mentat as informações desejadas. — E o Barão olhou diretamente para Nefud. — Não nos enganemos, Nefud. A verdade é uma arma poderosa. Sabemos como sobrepujamos os Atreides e Hawat também sabe. Nós o fizemos com nossa riqueza.
— Com riqueza. Sim, meu senhor.
— Iremos seduzir Hawat. Nós o esconderemos dos Sardaukar e deixaremos como segurança... a retirada do antídoto para o veneno. Não há meios de remover o veneno residual. E, Nefud, Hawat não precisa nem suspeitar. O antídoto não se revelará a um farejador de venenos. Hawat pode testar sua comida como quiser, sem detectar nenhum traço de veneno.
Os olhos de Nefud se arregalaram com a compreensão.
— A ausência de alguma coisa — continuou o Barão — pode ser tão mortífera quanto a presença. A ausência de ar, hein? A ausência de água? A ausência de alguma outra coisa com que nos viciamos. — E o Barão acenou: — Você me compreende, Nefud?
Nefud engoliu em seco.
— Sim, meu senhor.
— Então vá trabalhar. Encontre o comandante dos Sardaukar e coloque as coisas em movimento.
— Imediatamente, meu senhor.
Curvou-se, virou e saiu apressado.
“Hawat ao meu lado!”, pensou o Barão. “Os Sardaukar o entregarão a mim. Se suspeitarem de alguma coisa será de que desejo destruir o Mentat. E essa suspeita eu confirmarei! Os tolos. Um dos mais formidáveis Mentats de toda a história, um Mentat treinado para matar e eles o atiram a mim como algum brinquedo tolo para ser quebrado. Mostrarei a eles que uso posso fazer desse brinquedo.”
Estendeu a mão por baixo da cortina, ao lado de sua cama suspensora, pressionando um botão para chamar seu sobrinho mais velho, Rabban. Sentou-se novamente, sorrindo.
“E todos os Atreides mortos!”
O estúpido capitão da guarda estivera certo, é claro. Certamente que nada poderia sobreviver no caminho do sopro de areia de uma tempestade em Arrakis. Não um ornitóptero... nem seus ocupantes. A mulher e o garoto estavam mortos. As propinas nos lugares certos, a impensável despesa para transportar uma força militar esmagadora até a superfície desse planeta... todos os relatórios matreiros preparados para os ouvidos do Imperador e ninguém mais, todo o cuidadoso planejamento produzindo resultados plenos, afinal.
“Poder e medo, medo e poder!”
O Barão podia ver o caminho à sua frente. Um dia um Harkonnen seria Imperador. Não ele mesmo, nem um fruto do seu sêmen. Mas um Harkonnen. Não seria esse Rabban que acabava de convocar, é claro, mas o irmão mais novo de Rabban, o jovem Feyd-Rautha. Havia uma perspicácia no rapaz que o Barão apreciava... uma ferocidade.
“Um menino adorável”, pensou o Barão. “Mais um ano ou dois, digamos quando ele tiver dezessete, e saberei se ele é o instrumento de que a Casa Harkonnen necessita para conquistar o trono.”
— Meu Barão.
O homem que esperava fora do campo protetor, na porta do quarto do Barão, era baixo, bruto de rosto e corpo e com os sinais paternos da linhagem Harkonnen: olhos pouco separados e ombros volumosos. Havia alguma rigidez em sua gordura, mas era óbvio ao olhar que ele chegaria um dia a necessitar dos suspensores portáteis para carregar seu excesso de peso.
“Um cérebro com a mente nos músculos”, pensou o Barão.
“Nenhum Mentat, o meu sobrinho... nenhum Piter de Vries, mas talvez alguma coisa mais adequada para a tarefa em vista. Se eu lhe der a liberdade para fazê-lo, ele triturará tudo em seu caminho. Oh, como ele será odiado aqui em Arrakis!”
— Meu querido Rabban — disse o Barão, desligando o campo da porta mas mantendo seu escudo corporal a plena força, ciente de que seu tremeluzir seria visível acima do globo luminoso ao lado da cama.
— Chamou-me? — disse Rabban, entrando na sala e olhando de relance para a perturbação no ar causada pelo escudo corpóreo. Buscou uma cadeira suspensora e não encontrou nenhuma.
— Fique mais perto, onde possa vê-lo- facilmente — pediu o Barão.
Rabban avançou outro passo, pensando que o maldito velho removera deliberadamente todas as cadeiras para forçar os visitantes a ficarem de pé.
— Os Atreides estão mortos — disse o Barão. — O último deles. Foi por isso que o convoquei aqui em Arrakis. O planeta é novamente nosso.
Rabban piscou os olhos.
— Mas eu pensei que ia colocar Piter de Vries no...
— Piter também está morto.
— Piter?
— Piter.
O Barão reativou o campo da porta, ajustando-o para bloquear qualquer penetração energética.
— Finalmente se cansou dele, hein? — indagou Rabban.
Sua voz parecia monótona e sem vida na sala bloqueada pelos escudos.
— Vou lhe dizer algo, e apenas uma única vez. Você insinua que eu eliminei Piter como alguém se livra de algo insignificante. — Estalou os dedos. — Assim, não é? Mas eu não sou estúpido, sobrinho, e receberei como uma grosseria se sugerir outra vez, por palavras ou por ações, que eu possa sê-lo.
O medo revelou-se no semicerrar dos olhos de Rabban. Ele sabia dentro de que limites o velho Barão seria capaz de se mover contra a própria família. Raramente chegaria ao ponto de mandar matar, a menos que houvesse um lucro fabuloso em jogo, ou uma provocação. Mas as punições contra um membro da família poderiam ser dolorosas.
— Perdoe-me, senhor Barão — disse Rabban, abaixando os olhos para ocultar sua própria raiva, assim como para mostrar subserviência.
— Você não me engana, Rabban — disse o Barão.
Rabban mantinha os olhos voltados para um ponto no chão à sua frente. Engoliu em seco.
— Tenho um ponto de vista — continuou o Barão. Nunca eliminar um homem irrefletidamente, do modo como um feudo pode fazê-lo, através de um processo, de acordo com a lei. Sempre devemos agir em benefício de um propósito maior, e conhecer qual é esse propósito!
Rabban deixou-se levar pela raiva:
— Mas o senhor eliminou o traidor Yueh! Vi seu corpo sendo carregado para fora quando cheguei na noite passada.
Olhou para o tio, subitamente assustado pelo som de suas próprias palavras.
Mas o Barão sorriu.
— Tenho muito cuidado com as armas perigosas. O Dr. Yueh era um traidor. Ele me entregou o Duque. — A energia fluía na voz do Barão: — Subornei um médico da Escola Suk! Da Escola Interna! Está ouvindo, garoto? Mas isso é um tipo muito perigoso de arma para se deixar por aí. Eu não o eliminei casualmente.
— O Imperador tem conhecimento de que subornou um médico Suk?
“Esta é uma pergunta perspicaz”, pensou o Barão. “Será que julguei mal meu sobrinho?”
— O Imperador não sabe ainda, mas seus Sardaukar certamente lhe farão um relatório. Mas, antes que isso aconteça, terei meu próprio relatório em suas mãos, através dos canais da Companhia CHOAM. Eu lhe explicarei que tive a sorte de descobrir um médico que fingia ser condicionado. Um falso médico, entende? E como todos sabem que não se pode anular um condicionamento da Escola Suk, isso será aceito.
— Ah, percebo — murmurou Rabban.
E o Barão pensou: “De fato eu espero que perceba. Que veja como é vital que isso permaneça em segredo.” E o Barão subitamente se perguntou: “Por que fiz isso? Por que me gabei diante deste sobrinho idiota? Um sobrinho que deverei usar e descartar?”
Sentiu raiva de si próprio, sentiu-se traído.
— Deve ser mantido em segredo — comentou Rabban. Eu compreendo.
O Barão suspirou.
— Eu lhe darei instruções diferentes a respeito de Arrakis desta vez sobrinho. Da última vez que governou este lugar eu o mantive sob rédea curta. Desta vez só tenho uma exigência.
— E posso saber qual é?
— Lucro.
— Lucro?
— Tem alguma idéia, Rabban, de quanto nos custou trazer tamanha força militar para atingir os Atreides? Faz a mais leve suposição de quanto a Corporação cobra por transporte militar?
— Caro, hein?
— Caro!
O Barão apontou um braço gordo na direção de Rabban.
— Se você espremer Arrakis por cada centavo que ele nos possa dar, durante sessenta anos, você conseguirá apenas repor o que gastamos.
Rabban abriu a boca, e a fechou sem falar.
— Caro? — zombou o Barão. — O maldito monopólio da Corporação sobre o espaço nos teria arruinado se eu não tivesse planejado tudo isso há muito tempo, preparando-me para a despesa. Deve saber, Rabban, que nós custeamos tudo. Até pagamos pelo transporte dos Sardaukar.
Não era a primeira vez que o Barão perguntava a si próprio se ainda haveria um dia em que a Corporação pudesse ser lograda.
Eles eram insidiosos, cedendo apenas o suficiente para evitar que o freguês desistisse, até que pudessem tê-lo em suas mãos e forçá-lo a pagar, pagar e pagar.
E como sempre, as taxas mais exorbitantes recaíam sobre aventuras militares. — Taxas de risco — explicavam os escorregadios agentes da Corporação. E para cada agente que você pudesse inserir como cão de guarda no Banco da Corporação eles colocariam dois agentes em seu sistema.
“Insuportável!”
— Lucros, então — disse Rabban.
O Barão abaixou o braço, comprimindo a mão num punho.
— Você deve espremer!
— E posso fazer qualquer coisa que desejar, desde que esprema?
— Qualquer coisa.
— Aqueles canhões que trouxe. Poderia...
— Eu os estou removendo — respondeu o Barão.
— Mas...
— Você não precisará de tais brinquedos. Eles eram uma inovação especial e são agora inúteis. Precisamos de metal e eles não podem penetrar num escudo, Rabban. Eram apenas uma surpresa. Era previsível que os homens do Duque iriam se retirar para dentro das cavernas, nas colinas deste planeta abominável.
Nossos canhões apenas os selaram lá dentro.
— Mas os Fremen não usam escudos.
— Você poderá ficar com algumas armas laser, se o desejar.
— Sim, meu senhor, e ter as mãos livres para agir.
— Desde que esprema.
O sorriso de Rabban era maligno.
— Eu compreendo perfeitamente, meu senhor.
— Você não entende nada perfeitamente — rosnou o Barão. — Vamos deixar isto claro desde o início. O que entende é como cumprir minhas ordens. Já lhe ocorreu, sobrinho, que existem pelo menos cinco milhões de pessoas neste planeta?
— Será que o meu senhor se esquece de que eu fui o regente-siridar daqui por muito tempo? E se o meu senhor me perdoar, eu lhe direi que sua estimativa é muito baixa. É difícil contar uma população dispersa entre “pias” e “panelas”, no modo como se distribuem por aqui. E quando se pensa nos Fremen do...
— Os Fremen não devem ser considerados, não vale a pena!
— Perdoe-me, meu senhor, mas os Sardaukar não pensam desse modo.
O Barão hesitou, olhando para o sobrinho.
— Você sabe de alguma coisa?
— Meu senhor já tinha saído quando eu cheguei na noite passada. Eu... ah, tomei a liberdade de contactar alguns dos meus tenentes do... período anterior. Eles estiveram agindo como guias para os Sardaukar. E me relataram que um bando de Fremen embaseou uma força de Sardaukar, em algum lugar a sudeste daqui, e exterminou-a completamente.
— Exterminaram uma força de Sardaukar?
— Sim, meu senhor.
— Impossível!
Rabban encolheu os ombros.
— Fremen derrotando Sardaukar — zombou o Barão.
— Eu repito apenas o que me foi relatado. Dizem que essa força de Fremen já havia capturado o temível Thufir Hawat.
— Ahhh. — O Barão acenou sorrindo.
— Eu acredito no relatório — continuou Rabban. — Não tem idéia do problema que eram esses Fremen.
— Talvez. Só que não eram realmente Fremen o que os seus tenentes viram. Eles deviam ser soldados dos Atreides, treinados por Hawat e disfarçados como Fremen. É a única resposta possível.
Novamente Rabban encolheu os ombros.
— Bem, os Sardaukar acreditam que eles eram Fremen e já iniciaram um programa para exterminar completamente os Fremen.
— Ótimo!
— Mas...
— Isso manterá os Sardaukar ocupados. E nós logo teremos Hawat, eu sei! Eu posso senti-lo! Ah este foi verdadeiramente um grande dia! Os Sardaukar fora, caçando alguns inúteis bandos do deserto, enquanto nós recebemos o verdadeiro prêmio!
— Meu senhor... — Rabban hesitou, franzindo a testa. — Eu sempre senti que nós subestimamos os Fremen, em números e em...
— Ignore-os, rapaz! Eles são a ralé. São as cidades populosas, as vilas, que devem nos preocupar. Existem muitas pessoas por lá, não?
— Muitas, meu senhor.
— Elas me preocupam, Rabban.
— Preocupam?
— Oh... noventa por cento não darão problemas. Mas existem uns poucos... Casas Menores por exemplo, pessoas ambiciosas que podem tentar algo perigoso. Se uma delas saísse de Arrakis contando histórias desagradáveis sobre o que aconteceu por aqui eu ficaria muito aborrecido. Tem idéia de quão aborrecido eu ficaria?
Rabban engoliu em seco.
— Deve tomar medidas imediatas para manter um refém de cada uma das Casas Menores — disse o Barão. — Até onde qualquer um fora de Arrakis deve saber, esta foi uma batalha direta de Casa contra Casa. Os Sardaukar não participaram dela, você compreende? Ao Duque foi oferecido o refúgio normal e o exílio, mas ele morreu num infeliz acidente, antes que pudesse aceitar. E ele estava a ponto de aceitar. Esta é a história. E qualquer rumor de que havia Sardaukar aqui deve ser ridicularizado.
— Como o Imperador deseja — disse Rabban.
— Como o Imperador deseja.
— E quanto aos contrabandistas?
— Ninguém acredita em contrabandistas, Rabban. Eles são tolerados mas não possuem credibilidade. E, de qualquer modo, você estará gastando algumas propinas aqui e ali... e tomando outras precauções que tenho certeza poderá imaginar...
— Sim, meu senhor.
— Duas coisas de Arrakis, então, Rabban: lucro e uma mão implacável. Você não deve mostrar misericórdia aqui. Pense nesses tolos como eles são: escravos invejosos de seus senhores, esperando apenas uma oportunidade para se rebelarem. Não deve demonstrar o menor vestígio de piedade ou clemência para com eles.
— Pode alguém exterminar um planeta inteiro? — indagou Rabban.
— Exterminar? — A surpresa mostrou-se no movimento rápido com que o Barão virou a cabeça. — Quem falou em exterminar?
— Bem, eu presumo que vá trazer uma nova população de colonos e...
— Eu disse “espremer”, sobrinho, não exterminar. Não desperdice a população, apenas leve-a até um estado de total submissão. Você deve ser um carnívoro, meu garoto. — O Barão sorriu, uma expressão de bebê no rosto gordo. — Um carnívoro nunca pára, jamais mostra clemência. Clemência é uma quimera. Pode ser superada pelo estômago roncando sua fome, pela garganta gritando sua sede. Deve estar sempre faminto e sedento. — E o Barão acariciou as protuberâncias debaixo dos suspensores. — Como eu.
— Eu vejo, meu senhor.
Rabban olhou para a esquerda e para a direita.
— Está tudo claro, então, sobrinho?
— Exceto por uma coisa, tio: Kynes, o planetólogo.
— Ah sim, Kynes.
— Ele é o homem do Imperador, meu senhor. Ele pode ir e vir como desejar. E ele é muito chegado aos Fremen... casou-se com uma.
— Kynes estará morto amanhã, ao cair da noite.
— Isso é muito perigoso, tio. Matar um servo imperial.
— Como acha que cheguei aonde estou tão rapidamente? — A voz do Barão era baixa, carregada de adjetivos impronunciáveis. — Além disso, não precisaria temer que Kynes deixasse Arrakis. Esquece-se de que ele é viciado na especiaria?
— É claro!
— Aqueles que o sabem não farão nada para colocar em perigo seu próprio suprimento — acrescentou o Barão. — E Kynes deve saber, com certeza.
— Eu havia me esquecido.
Eles fitaram-se em silêncio, depois o Barão disse:
— Inicialmente, você deve fazer de meu próprio suprimento sua primeira preocupação. Tenho um estoque para uso pessoal, mas aquele ataque suicida dos homens do Duque pegou a maior parte do que possuíamos para venda.
— Sim, meu senhor.
O Barão pareceu animado.
— Amanhã de manhã, você reunirá o que restou de organização aqui e lhes dirá: — Nosso Sublime Imperador Padishah me encarregou de tomar posse deste planeta e terminar com todas as disputas.
— Eu compreendo, meu senhor.
— Desta vez tenho certeza que sim. Discutiremos isso com mais detalhes amanhã. Agora deixe-me terminar meu sono.
Desativou o campo da porta e observou o sobrinho sair.
“Um cérebro com a mente nos músculos”, pensou o Barão. “Eles estarão reduzidos a massa sangrenta quando ele terminar com eles. Então eu mandarei Feyd-Rautha para retirar-lhe essa carga e eles darão vivas ao seu salvador: “Amado Feyd-Rautha, Benigno Feyd-Rautha!, o Clemente Feyd-Rautha que nos salva da besta. Feyd-Rautha, um homem para seguir até a morte.” E o rapaz saberá então como oprimir com impunidade. Tenho certeza de que será a pessoa de que necessitamos. Vai aprender, e com um corpo tão adorável. Realmente um garoto adorável.”
Aos quinze anos de idade, ele já aprendera a silenciar.
— de História Infantil do Muad'Dib escrito pela Princesa Irulan
Enquanto lutava com os controles do ornitóptero Paul tornou-se consciente de uma capacidade para perceber as forças da tempestade. Sua percepção mais sensível que a de um Mentat computava com base em frações de minúcias. Sentia as frentes de poeira, os rolos e entremeados de turbulência, o vórtex ocasional.
O interior da cabine era uma caixa iluminada pelo brilho verde dos painéis de instrumentos. O fluxo cor de bronze da poeira do lado de fora parecia uniforme, mas o sentido interior de Paul começava a ver através dessa cortina.
“Devo encontrar o vórtex certo”, pensou.
Por algum tempo sentira a força da tempestade diminuindo, e no entanto ela ainda os sacudia. Esperou por outra turbulência.
O vórtex começou com uma abrupta onda de ar que sacudiu toda a aeronave. Paul desafiou o medo que sentia, a tentação para desviar o “tóptero” para a esquerda.
Jessica percebeu a manobra no globo indicador da posição de vôo.
— Paul! — gritou ela.
O vórtex os fez girar, inclinando e torcendo a aeronave. Levantou-a como uma lasca num gêiser, lançando-os para cima e para fora. Uma partícula alada dentro de um núcleo de poeira em espiral iluminado pela segunda lua.
Paul olhou para baixo, vendo o pilar de vento quente definido pela poeira que acabara de expeli-los, vendo a tempestade que enfraquecia estender-se como um rio seco sobre o deserto. Um movimento cinza ao luar tornando-se cada vez menor, embaixo, enquanto subiam na corrente ascendente.
— Estamos livres — sussurrou Jessica.
Paul virou a aeronave para longe da poeira, como uma ave de rapina preparando-se para mergulhar, e observou o céu noturno.
— Escapamos deles — respondeu ele.
Jessica sentia o coração bater e procurou acalmar-se olhando para a tempestade que diminuía. Seu sentido de tempo lhe dizia que havia viajado dentro daquela mistura de forças da natureza durante quase quatro horas, mas outra parte de sua mente computava a passagem como uma vida inteira. Sentia-se renascer.
“Foi como a ladainha. Nós a aceitamos e não resistimos. A tempestade passou em torno e através de nós. Ela se foi, mas nós permanecemos.”
— Não gosto do som do movimento de nossas asas — disse Paul. — Sofremos alguns danos nesta área.
Sentia o vôo irregular através de suas mãos nos controles. Estavam fora da tempestade mas ainda dentro de sua visão presciente. E no entanto haviam escapado, e ele se sentia tremendo, na beira de uma revelação. Estremeceu.
A sensação era magnética e aterrorizante, e Paul se encontrou preso à indagação do que causara esse sua consciência trêmula.
Parte dela, ele sentia, era devida à dieta saturada de especiaria de Arrakis. Mas outra parte podia ter vindo da ladainha, como se as palavras possuíssem um poder em si mesmas.
“Eu não temerei...”
Causa e efeito: estava vivo a despeito das forças malignas, e se sentia à beira de uma auto-consciência que não poderia ter existido sem a mágica da ladainha.
Palavras da Bíblia Católica Laranja passaram em sua memória: “Que sentidos nos faltam que não podemos ver e ouvir o outro mundo que nos envolve?”
— Existe rocha à nossa volta — avisou Jessica.
Paul voltou sua atenção para o movimento do ornitóptero e sacudiu a cabeça para clarear a mente. Olhou para onde sua mãe apontara e viu formas rochosas erguendo-se negras sobre a areia, à frente e à direita. Sentia o vento em seus tornozelos e poeira na cabine. Um orificio em algum lugar, outro resultado da tempestade.
— Melhor pousar na areia — aconselhou Jessica. — As asas podem não agüentar uma frenagem total.
Ele indicou um lugar à frente, onde cumes erodidos pela areia se erguiam acima das dunas, iluminados pelo luar. — Vou descer perto daquelas rochas. Verifique seu cinturão.
Ela obedeceu, pensando: “Temos água e trajes-destiladores. Se pudéssemos encontrar alimento poderíamos sobreviver por um longo tempo neste deserto. Os Fremen vivem aqui, e o que eles podem fazer nós também podemos.”
— Corra para aquelas rochas no instante em que pararmos avisou Paul. — Eu levarei o embrulho.
— Correr para... — ela começou a repetir, depois ficou em silêncio e assentiu. — Os vermes.
— Nossos amigos, os vermes — corrigiu ele. — Eles pegarão este “tóptero” e não restará indícios de onde pousamos.
“Como é direto o pensamento dele”, admirou-se Jessica.
Planaram cada vez mais baixo... mais baixo...
E então veio uma rápida sensação de movimento: sombras borradas de dunas, rochas elevando-se como ilhas. O “tóptero” atingiu o topo de uma duna com um leve solavanco, saltou sobre um vale de areia e tocou outra duna.
“Ele está reduzindo nossa velocidade de encontro à areia”, pensou Jessica, e admirou-se com a competência de Paul.
— Segure-se! — avisou ele.
Puxou os freios das asas, suavemente a princípio, depois cada vez com mais força. Sentiu-os apanhando o ar como conchas, sua altura caindo cada vez mais rápida. O vento uivava através das capas ligadas nas folhas das asas.
E de repente, com apenas uma leve sacudidela de aviso, a asa esquerda, enfraquecida pela tempestade, dobrou-se para cima, batendo de encontro ao lado do “tóptero”. A aeronave escorregou no topo de um duna e, virando para a esquerda, tombou na face oposta do monte de areia para enterrar o nariz na duna seguinte, em meio a uma cachoeira de areia. Afinal imobilizou-se, tombada sobre o lado da asa quebrada, a asa direita apontando para o céu estrelado.
Paul arrancou o cinto de segurança e lançou-se para cima, por sobre sua mãe, abrindo a porta da cabine. Areia escorreu para dentro, trazendo um odor de atrito em esmeril. Pegou o embrulho na traseira e viu que Jessica já se encontrava livre do cinturão. Subindo no lado do assento da direita ela saiu, pisando na pele metálica do “tóptero”. Ele a seguiu, arrastando a mochila do embrulho por suas correias.
— Corra! — ordenou.
Apontou para a face da duna mais além, onde podia ser visto um torreão de rocha cortada pela erosão. Jessica pulou de cima do ornitóptero e correu, tropeçando e se arrastando duna acima.
Ouviu o avanço ofegante de Paul atrás dela e afinal chegou no alto de uma crista de areia que curvava-se em direção às rochas.
— Siga ao longo da crista — ordenou ele. — Será mais rápido.
Avançaram com dificuldade, os pés afundando na areia.
Um novo som começou a chegar-lhes aos ouvidos: um sussurro baixo, um assovio característico de escorregar abrasivo.
— Verme! — disse Paul.
Ficava cada vez mais nítido.
— Rápido! — exclamou ofegante.
A primeira plataforma de pedra, como uma praia erguendo-se da areia, encontrava-se a menos de dez metros quando ouviram o esmagar e espatifar de metal atrás deles.
Paul colocou a mochila no braço direito, segurando-a pelas correias. Ela golpeava no lado do corpo enquanto ele corria. Segurou o braço de Jessica com a outra mão e os dois subiram na encosta rochosa, através de uma superfície coberta de cascalhos até um canal tortuoso, escavado pelo vento. Respiravam ofegantes, sentindo o ar seco na garganta.
— Não aguento mais correr — arquejou Jessica.
Paul parou, colocando-a em uma estreita passagem da rocha, depois voltou-se para olhar o deserto. Um monte de areia em movimento corria paralelo à sua ilha de rocha. Haviam ondulações à luz do luar, ondas de areia e uma cova, cercada por uma crista de areia quase no mesmo nível dos olhos de Paul, embora a uma distância aproximada de um quilômetro. As dunas achatadas em seu rastro curvavam-se uma vez, um laço curto fechando o trecho de deserto onde haviam abandonado o ornitóptero destroçado.
E onde estivera o verme, não havia sinal da aeronave. O monte escavado moveu-se para o deserto, depois voltou-se sobre seu próprio rastro como se procurasse alguma coisa.
— É maior que uma nave da Corporação — sussurrou Paul. Disseram-me que os vermes cresciam muito no deserto profundo, mas eu não percebia como poderiam ser grandes.
— Nem eu.
Novamente a coisa afastou-se das rochas, acelerando agora numa trilha curva em direção ao horizonte. Eles ouviram até que o som de sua passagem se perdeu no suave sussurrar da areia ao redor.
Paul respirou fundo e olhou para a escarpa que a luz do luar fazia parecer coberta de geada. Uma citação do Kitab al-Ibar escapou de seus lábios: “Viajar à noite e repousar nas sombras durante o dia.” — Olhou para sua mãe.
— Ainda temos algumas horas de noite. Pode continuar?
— Num momento.
Caminhou por cima da plataforma natural de pedra, colocando a mochila sobre o ombro e ajustando suas correias. Parou um instante com a parabússola em suas mãos.
— Quando estiver pronta.
Ela se afastou da fenda na rocha, sentindo sua força retornar.
— Que direção?
— Para onde esta crista rochosa levar — apontou ele.
— Para o interior do deserto — disse ela.
— O deserto dos Fremen — murmurou Paul.
Parou, chocado pela lembrança da imagem em alto-relevo, que vira com sua visão presciente quando ainda em Caladan. Havia visto esse deserto mas o aspecto da visão fora então sutilmente diferente, como uma imagem ética que desaparecera em sua consciência, absorvida pela memória, e agora falhava em apresentar um registro perfeito ao ser projetada sobre o cenário real. A visão parecia ter mudado, apresentando-se de um ângulo diferente enquanto ele permanecia imóvel.
“Idaho estava conosco na visão”, lembrou-se ele. “Mas agora Idaho está morto.”
— Pode ver um caminho para seguirmos? — indagou Jessica, confundindo sua hesitação.
— Não — respondeu Paul. — Mas vamos assim mesmo.
Ajustou a mochila mais firmemente nos ombros e subiu um canal escavado na rocha pela areia e o vento. O canal se abria para um piso rochoso, iluminado pelo luar, que se elevava numa série de degraus sucessivos em direção ao sul.
Paul dirigiu-se para o primeiro desses degraus e subiu nele. Jessica o seguia logo atrás.
Dentro em pouco ela percebia como sua vida se centrava agora em questões imediatas, específicas: os bolsões de areia entre as rochas, onde seus passos se tornavam mais lentos, as arestas de rocha esculpidas pelos ventos que cortavam suas mãos, as obstruções que forçavam a uma escolha, passar por cima ou dar a volta?
O terreno impunha-lhes os seus próprios ritmos e eles falavam apenas quando necessário, as vozes roucas de exaustão.
— Cuidado agora. Esta saliência tem areia escorregadia.
— Tenha cuidado para não bater com a cabeça nesta projeção.
— Fique abaixo desta crista, a lua está atrás de nós e revelaria nossos movimentos a qualquer um lá em cima.
Paul parou em uma dobra da rocha e colocou a mochila sobre uma estreita plataforma.
Jessica recostou-se ao seu lado, grata pelo momento de repouso.
Ouviu-o sugando o tubo do traje-destilador e imitou-o, bebendo sua própria água reciclada. O gosto era salobro e ela se lembrou das águas de Caladan. Uma fonte alta envolvendo uma curva de céu, numa riqueza de umidade que não se fazia notar por si mesma... somente por sua forma, seus reflexos ou seu som, quando ela parou ao seu lado.
“Parar”, pensou. “Para repousar... para repousar verdadeiramente.”
Ocorreu-lhe então que a compaixão residia na capacidade para parar, ainda que por apenas um momento. Não haveria compaixão onde não houvesse pausas...
Paul ergueu-se sobre a saliência rochosa, virou-se uma vez, depois subiu por uma superfície inclinada. Jessica seguiu-o com um suspiro.
Escorregaram para uma ampla prateleira natural que se inclinava ao redor de um penhasco íngreme. Novamente entravam no ritmo irregular, forçado pelo movimento em terreno acidentado.
Jessica sentia a passagem da noite dominada pelo tipo de substância abaixo de seus pés e mãos. Rochas, pedras arredondadas, ou então pedras irregulares, areia granulosa, areia fina, poeira ou pó.
O pó entupia os filtros nasais e tinha de ser soprado para fora.
A areia granulada e as pedras redondas rolavam sobre a superfície dura, podendo facilmente derrubar o descuidado. As pedras irregulares cortavam.
Por fim, havia os onipresentes bolsões de areia, afundando sob seus pés.
Paul parou subitamente numa saliência de rocha, apoiando sua mãe quando esta cambaleou ao seu lado.
Apontou para a esquerda e ela olhou ao longo de seu braço, para ver que se encontravam no topo de uma colina, com o deserto se estendendo embaixo como um oceano estático, duzentos metros sob a encosta. Lá estavam as ondas prateadas pelo luar, sombras de ângulos que se convertiam em curvas e ao longe, na distância, elevava-se a mancha cinzenta e enevoada de outra escarpa.
— Deserto aberto — disse ela.
— Um trecho muito amplo para atravessar — respondeu ele, com a voz abafada pelo filtro sobre o rosto.
Jessica olhou para a esquerda e para a direita. Nada senão areia lá embaixo.
Paul observava diretamente à frente através das dunas, olhando o movimento das sombras na passagem da lua.
— Uns três ou quatro quilômetros de extensão.
— Vermes? — indagou Jessica.
— Certamente que existirão — respondeu ele.
Ela voltou sua atenção para o próprio cansaço, para a dor muscular que lhe entorpecia os sentidos.
— Não deveríamos repousar e comer?
Paul retirou a mochila dos ombros e sentou-se, inclinando-se sobre o pacote. Jessica apoiou-se com a mão sobre os ombros dele, enquanto deitava na rocha ao seu lado. Sentiu Paul se virar enquanto ela se acomodava, ouviu-o remexer no embrulho.
— Aqui está — disse.
Sua mão parecia seca contra as dela, enquanto ele colocava duas cápsulas energéticas em sua palma.
Jessica as engoliu com um relutante gole de água do tubo do traje-destilador.
— Beba toda a sua água — aconselhou Paul. — Axioma: “O melhor lugar para conservar sua água é em seu próprio corpo. Ela mantém sua energia e você se sentirá forte. Confie em seu traje-destilador.”
Ela obedeceu, esvaziando todas as bolsas de recolhimento através do tubo e sentindo as forças retornarem. Pensou então quão pacífico era o lugar nesse momento de cansaço, e lembrou-se de ter ouvido uma vez Gurney Halleck, o menestrel-guerreiro, dizer: “Melhor uma refeição seca e a quietude do que uma casa cheia de lutas e sacrifícios.”
Repetiu as palavras para Paul.
— Este era o Gurney — respondeu ele.
Jessica captou o tom de voz, o modo como ele falava de alguém já morto e pensou: “O pobre Gurney pode muito bem estar morto.” As forças dos Atreides resumem-se agora aos mortos, aos cativos e aos perdidos, como eles, nesse vazio seco.
— Gurney sempre tinha a citação certa — comentou Paul. Posso ouvi-lo agora: “E eu farei os rios secarem, e venderei a Terra aos perversos. Farei da terra um deserto e tudo que nela houver estará nas mãos dos estrangeiros.”
Jessica fechou os olhos e sentiu-se à beira das lágrimas, comovida pela ternura na voz de seu filho.
Algum tempo depois Paul indagou:
— Como... se sente?
Ela percebeu que a pergunta era dirigida em consideração ao seu estado de gravidez.
— Sua irmã só nascerá daqui a muitos meses. Eu me sinto... fisicamente adequada.
E pensou admirando-se: “Como eu falo com uma formalidade tão rígida ao meu próprio filho!” E já que era da natureza de uma Bene Gesserit buscar em seu interior a resposta para qualquer dúvida, ela pesquisou encontrando a fonte de sua formalidade: “Tenho medo de meu filho, temo sua estranheza, temo o que ele possa ver adiante de nós, o que ele possa me revelar.”
Paul puxou o capuz sobre os olhos, ouvindo os sons da noite.
Seu nariz coçava e ele o esfregou removendo o filtro. Tomou consciência então do rico odor de canela.
— Existe especiaria melange aqui por perto — disse.
Um vento do norte acariciou-lhe o rosto, ondulando as dobras do albornoz. Esse vento todavia não carregava a ameaça de tormenta, ele podia sentir a diferença.
— A aurora se aproxima — disse.
Jessica acenou com a cabeça, concordando.
— Existe um meio de atravessar em segurança aquele trecho de areia. Os Fremen costumam fazê-la.
— Por causa dos vermes?
— Se colocássemos um batedor do nosso estojo Fremen aqui nas rochas, ele manteria os vermes ocupados por algum tempo.
Jessica olhou para a extensão do deserto banhado pelo luar, separando-os da outra escarpa.
— Tempo para atravessar quatro quilômetros?
— Talvez. Se atravessarmos tendo o cuidado de fazer apenas ruídos naturais, do tipo que não atrairá vermes...
Paul observou a extensão aberta de deserto, questionando sua memória presciente, sondando as misteriosas alusões a batedores e ganchos de produtor, no manual do estojo Fremen que viera com sua mochila de fuga. Achou estranho que tudo que sentisse fosse um terror penetrante ao pensar nos vermes. Sabia, como se tal conhecimento se encontrasse exatamente na extremidade de sua percepção, que os vermes deviam ser respeitados, não temidos... se... se...
Sacudiu a cabeça.
— Terão que ser sons destituídos de ritmo — observou Jessica.
— O quê? Oh, sim. Se amortecermos nossos passos... a areia deve ser remexida, às vezes. Os vermes não podem investigar cada pequeno som. Devemos estar completamente repousados antes de tentar. — Observou a outra muralha de rocha, notando a passagem do tempo nas sombras verticais lançadas pela lua. — O dia nascerá dentro de uma hora.
— Onde passaremos o dia? — indagou ela.
Paul voltou-se para a esquerda e apontou:
— Aquela colina curva-se para o norte, lá embaixo. Pode ver o modo como é escavada pela erosão em sua face voltada para o vento? Devem existir fendas profundas lá.
— Devemos ir agora?
Ele se levantou, ajudando-a a pôr-se de pé.
— Sente-se suficientemente repousada para a descida? Quero chegar o mais próximo que puder do nível do deserto antes que acampemos.
— O suficiente — respondeu ela, indicando-lhe que liderasse a descida.
Paul hesitou, depois levantou o embrulho, colocando-o sobre os ombros e começando a descer a elevação.
“Se ao menos nós tivéssemos suspensores”, pensou Jessica. “Seria uma simples questão de pular até lá embaixo. Mas talvez suspensores sejam outra coisa a ser evitada no deserto. Talvez atraiam os vermes, como fazem os escudos.”
Chegaram a uma série de prateleiras, sobrepostas em degraus descendentes, e além delas viram uma fenda, com a borda delineando-se à luz do luar.
Paul movia-se cautelosamente, apressando-se um pouco por ser óbvio que a luz da lua não duraria muito tempo. Serpentearam para baixo, penetrando num mundo de sombras cada vez mais profundas. Formas rochosas erguiam-se para as estrelas ao redor.
A fenda estreitou-se, até a largura de dez metros, na borda de um declive de areia cinzenta que se inclinava para baixo, sumindo na escuridão.
— Podemos descer? — indagou Jessica.
— Creio que sim.
Testou a superfície com um dos pés.
— Podemos escorregar. Eu irei na frente. Espere até ouvir que parei.
— Cuidado — recomendou ela.
Paul colocou-se sobre o declive e deslizou, escorregando para baixo sobre uma superfície fofa até atingir um chão de areia compactada. O lugar encontrava-se bem no interior das muralhas de rocha. Ouviu um som de areia deslizando às suas costas. Tentou enxergar alguma coisa encosta acima na escuridão e quase foi derrubado pela avalanche. Depois silêncio.
— Mamãe? — chamou.
Não houve resposta.
— Mamãe?
Deixou cair a mochila e lançou-se pelo declive acima, tropeçando, escavando, lançando areia para os lados como um homem enlouquecido.
— Mamãe! — gritou ofegante. — Mãe, onde está você?
Outro deslizamento de areia o atingiu, enterrando-o até os quadris. Conseguiu se arrastar para fora.
“Ela foi apanhada no deslizamento”, pensou. “Enterrada. Devo me acalmar e agir com cuidado. Ela não vai sufocar imediatamente. Vai se colocar num estado de suspensão bindu para reduzir sua necessidade de oxigênio. Ela sabe que vou escavar à sua procura.”
Usando o método Bene Gesserit que Jessica lhe ensinara, Paul reduziu o ritmo acelerado de seu coração, e colocou sua mente vazia como uma lousa em branco, sobre a qual os momentos passados pudessem se inscrever. Cada mudança ou movimento durante o deslizamento repetiu-se então em sua memória, acontecendo com uma lentidão interior que contrastava com a fração de segundo do tempo real necessário a uma lembrança completa.
Daí à pouco ele avançou diagonalmente pela encosta acima, sondando cautelosamente até encontrar a parede da fenda, uma curva de rocha adiante. Começou a escavar, movendo a areia com extremo cuidado para evitar outro deslizamento. Uma dobra de tecido chegou às suas mãos e ele a seguiu encontrando um braço. Suavemente acompanhou o comprimento do braço até descobrir o rosto.
— Pode me ouvir?
Nenhuma resposta.
Escavou mais rapidamente, livrando os ombros. Jessica parecia lânguida sob suas mãos, mas ele detectou uma fraca batida cardíaca.
“Suspensão bindu”, pensou.
Tirou a areia expondo-lhe o corpo até a cintura, colocou os braços sob seus ombros e arrastou-a declive abaixo, lentamente a princípio, depois com rapidez, à medida que sentia a areia deslizar acima. Ofegante com o esforço, lutando para manter o equilíbrio, ele puxou-a cada vez mais rápido, até sentir o piso compactado da fenda sob seus pés. Então, colocou Jessica sobre seu ombro e saiu disparado, enquanto todo o declive arenoso desabava com um assovio alto que ecoou amplificado dentro das paredes rochosas.
Parou na extremidade da fenda, no ponto em que esta se abria para as dunas sucessivas do deserto, uns trinta metros abaixo, e suavemente colocou Jessica sobre a areia, murmurando a palavra-chave para retirá-la do estado cataléptico.
Ela despertou lentamente, inspirando de modo profundo, seguidamente.
— Sabia que me encontraria — sussurrou.
Ele olhou para trás, em direção ao interior da fenda.
— Talvez fosse melhor se eu não tivesse.
— Paul!
— Perdi o embrulho — disse ele. — Está enterrado sob centenas de toneladas de areia, no mínimo.
— Tudo?
— A reserva de água, a tenda destiladora, tudo que é importante. — Tocou o bolso. — Ainda tenho a parabússola. — Remexeu no cinturão: — Faca e binóculos. Poderemos dar uma boa olhada ao redor do lugar em que vamos morrer.
Naquele instante o sol se levantou acima do horizonte, em algum ponto à esquerda, além da extremidade da fenda. Cores cintilaram na areia sobre o deserto, mais além, um coro de pássaros entoou suas canções de dentro de seus ninhos ocultos nas rochas.
Jessica tinha olhos apenas para o desespero estampado no rosto de Paul. Procurou colocar um tom de desprezo na voz:
— Foi desse modo que você foi ensinado?
— Não compreende? Tudo de que precisamos para sobreviver neste lugar está sob a areia.
— Você me encontrou — disse ela, e agora sua voz era suave, compreensiva.
Paul agachou-se, olhando dentro em pouco para o novo declive de areia no alto da fenda, estudando-o, calculando o modo como a areia devia se encontrar solta.
— Se pudéssemos imobilizar uma pequena área daquele declive e a face superior de um buraco escavado na areia, seríamos capazes de abrir caminho até o embrulho. A água poderia fazer isso, mas não temos água suficiente para... — Ele interrompeu a frase, pensando: “Espuma!”
Jessica manteve-se imóvel, tentando não perturbar o hiperfuncionamento da mente de Paul.
Ele olhou para as dunas, buscando com seu olfato e com os olhos, encontrando a direção, e então centrando sua atenção em uma mancha de areia escura abaixo.
— Especiaria — disse. — Sua essência é altamente alcalina. E eu tenho o paracompasso, sua fonte de energia tem base ácida.
Jessica recostou-se ereta de encontro a uma rocha. Paul ignorou-a, ficando de pé e correndo para baixo, ao longo da superfície compactada pelo vento, que se derramava da extremidade da fenda até o solo do deserto.
Ela observou, notando como ele descontinuava seus passos: um passo, pausa, dois passos... escorregando... pausa...
Não havia ritmo que pudesse revelar a um verme que algo alheio ao deserto se movia aqui.
Paul chegou até o trecho de especiaria, colocou um monte dentro de uma dobra do manto e retornou para a fenda. Derramou a especiaria sobre a areia diante de Jessica, agachou-se e começou a desmontar a parabússola com a ponta da faca. A face do instrumento soltou-se, ele removeu o cinturão e espalhou as peças sobre a faixa de pano, depois retirou a unidade de força. O mecanismo do mostrador saiu em seguida, deixando a caixa em forma de pires completamente vazia.
— Vai precisar de água — observou Jessica.
Paul sugou um bocado de água do tubo do traje, preso ao seu pescoço, e a expeliu dentro da caixa da bússola.
“Se ele falhar, esta água está desperdiçada”, pensou Jessica. “Mas isso não importará então, de qualquer modo.”
Usando a faca Paul cortou a unidade de força, abrindo-a para derramar seus cristais dentro da água. Eles espumaram um pouco e assentaram.
Os olhos de Jessica captaram um movimento acima. Ela olhou vendo uma fila de falcões empoleirados na borda da fenda. Eles olhavam para baixo, em direção à água exposta.
“Grande Mãe! Eles podem sentir a água até mesmo a esta distância.”
Paul recolocara a tampa na parabússola deixando um pequeno orifício onde deveria ser ajustado o botão de regulagem. Com o instrumento modificado numa das mãos e um punhado de especiaria na outra, voltou para a fenda, estudando a inclinação do declive. Sua roupa se enfunava ao vento, sem o cinturão para contê-la. Subiu parte do caminho acima do alude de areia erguendo poeira, provocando pequenos deslizamentos.
Daí a pouco parou, pressionando uma pitada de especiaria dentro da parabússola e sacudindo o estojo do instrumento.
A espuma verde borbulhou para fora do orifício deixado pelo botão de regulagem. Paul dirigiu-a para o declive, formando um dique baixo e removendo a areia por baixo dele, enquanto imobilizava as paredes da abertura com mais espuma.
Jessica foi até uma posição abaixo e perguntou:
— Posso ajudar?
— Suba e escave, ainda faltam três metros, vai ser por pouco. — Enquanto ele falava a espuma parou de sair do instrumento. — Rápido — pediu. — Não há modo de saber durante quanto tempo a espuma conterá a areia.
Jessica correu para o seu lado enquanto Paul colocava outra pitada de especiaria dentro do orifício e sacudia o estojo da parabússola. Novamente a espuma saiu fervilhando.
Enquanto ele direcionava a barreira de espuma, Jessica escavava com ambas as mãos, arremessando areia declive abaixo.
— Qual é a profundidade? — perguntou ela ofegante.
— Uns três metros. Só tenho a posição aproximada. Podemos ter que alargar este buraco. — Moveu-se um passo para o lado escorregando na areia solta. — Incline sua escavação para trás. Não vá perpendicularmente.
Jessica obedeceu enquanto lentamente o buraco se aprofundava.
Chegou finalmente ao nível da depressão sem obter nenhum sinal do embrulho.
“Terei calculado mal?”, perguntou ele de si para si. “Fui eu que entrei em pânico primeiro, causando tudo. Terá isso prejudicado minha habilidade?
Olhou para a bússola. Menos de duas onças de infusão ácida permaneciam. Jessica, de pé no fundo do buraco, passou a mão cheia de espuma sobre o rosto e respondeu ao olhar de Paul.
— A face superior — disse. — Com cuidado agora. — Adicionou outra porção de especiaria dentro da caixa e derramou a espuma borbulhante em torno das mãos de Jessica, enquanto ela começava a escavar uma face vertical no declive superior do buraco. Na segunda passada suas mãos encontraram alguma coisa dura. Lentamente, puxou para fora o trecho de uma correia com uma fivela plástica.
— Não mova nem mais um pouco — disse Paul, quase num sussurro.
Jessica segurou a correia com uma das mãos, olhando para ele.
O rapaz jogou a parabússola vazia no fundo da depressão e explicou:
— Dê-me sua outra mão, e ouça cuidadosamente: vou puxá-la para o lado e para baixo. Não solte esta correia. Não receberemos mais nenhum desabamento do alto, este declive já se estabilizou. Tudo que vou fazer é manter sua cabeça fora da areia. Uma vez que o buraco esteja cheio, poderemos escavar para que você saia, e puxar o embrulho.
— Compreendo.
— Pronta?
— Pronta.
Fechou os dedos com força sobre a correia. Com um único puxão Paul a colocou com metade do corpo para fora do buraco, segurando-lhe a cabeça para cima enquanto a barreira de espuma cedia e a areia se derramava enchendo o orifício. Quando o deslizamento parou, Jessica encontrava-se enterrada até a cintura, o braço e o ombro esquerdos ainda sob a areia, o queixo protegido numa dobra do manto de Paul. Sentia o ombro doer com o esforço colocado sobre ele.
— Ainda estou segurando a correia.
Lentamente Paul abriu caminho na areia ao lado dela até encontrar a correia.
— Juntos agora. Pressão firme, não podemos para-la.
Mais areia se derramou do alto, enquanto eles retiravam o embrulho. Quando a correia chegou à superfície Paul parou e ajudou a mãe a libertar-se da areia. Juntos puxaram o pacote declive abaixo, para fora da armadilha.
Minutos depois encontravam-se no solo da fenda, segurando o embrulho entre eles.
Paul observou a mãe. A espuma manchava-lhe o rosto e o manto, a areia prendia-se em flocos onde a espuma secara. Ela parecia ter acabado de servir de alvo para bolas de areia verde e úmida.
— Você está horrível.
— E você também não está muito bonito — respondeu ela.
Ambos começaram a rir mas logo a seriedade voltou.
— Aquilo não devia ter acontecido — disse ele. — Eu fui descuidado.
Jessica encolheu os ombros, sentindo as pelotas de areia caírem de seu manto.
— Eu vou erguer a tenda — disse ele. — É melhor tirar esse manto e sacudi-lo.
Voltou-se, pegando o embrulho. Ela se limitou a acenar, sentindo-se subitamente cansada demais para responder.
— Existem buracos de escoras na pedra. Alguém já ergueu tendas por aqui antes de nós.
“Por que não?”, pensou Jessica enquanto limpava a roupa. Este era um ótimo lugar, protegido entre paredes de rocha e de frente para outra elevação quatro quilômetros adiante. Suficientemente elevado acima do deserto para evitar os vermes, mas suficientemente próximo para permitir fácil acesso antes de uma travessia.
Observou que o filho já tinha a tenda armada, com seu hemisfério camuflado nas paredes de rocha da fenda. Ele passou por ela erguendo o binóculo. Ajustou a pressão interna com uma rápida torção, focalizando as lentes de óleo no outro penhasco, que se erguia dourado à luz da manhã.
Jessica ficou olhando enquanto Paul estudava aquele panorama apocalíptico, seus olhos sondando os rios de areia e os desfiladeiros.
— Existem coisas crescendo por lá — disse ele.
Ela encontrou o binóculo sobressalente no embrulho ao lado da tenda e foi para junto dele.
— Lá — apontou Paul, enquanto segurava o binóculo com a outra mão.
— Saguaro — disse ela. — Planta de região seca.
— Pode haver gente por perto.
— Ou pode ser o remanescente de uma estação botânica de testes — advertiu ela.
— Isso é muito para o sul, deserto adentro — respondeu ele.
Abaixou o binóculo esfregando a mão embaixo do abafador do filtro, sentindo como estavam secos e rachados seus lábios, provando o gosto poeirento da sede na boca.
— Aquilo tem a aparência de um lugar de Fremen — observou.
— Tem certeza de que os Fremen serão amistosos? — indagou Jessica.
— Kynes prometeu ajudar.
“Mas existe desespero entre o povo do deserto”, pensou ela. “Eu mesma o senti hoje. E pessoas desesperadas podem nos matar por causa de nossa água.” Fechou os olhos, e contra essa desolação invocou em espírito uma cena de Caladan. Houvera uma vez uma viagem de férias. Ela e o Duque Leto, antes do nascimento de Paul, voando sobre as selvas do sul, por sobre os ricos leitos de plantas aquáticas e ervas silvestres. Havia visto fileiras de homens como formigas, levando cargas em paus colocados sobre os ombros, dotados de flutuação suspensora. E nas vastidões do mar, as pétalas brancas, em forma de triângulo, dos trimarans.
Tudo perdido.
Abriu os olhos para a imobilidade do deserto, para o calor crescente do dia. Incansáveis redemoinhos de ar aquecido começavam a tremular nas dunas. A face do outro penhasco parecia vista através de uma lente ordinária.
Um derramamento de areia espalhou sua breve cortina sobre a extremidade aberta da fenda. A areia escorreu sussurrante, solta pela brisa da manhã, solta pelos falcões que começavam a alçar vôo do alto da elevação. Quando o deslizamento terminou, permaneceu um assovio que se tornou cada vez mais alto. Um som que uma vez ouvido nunca era esquecido.
— Verme — sussurrou Paul.
Veio da direita, com uma imponência natural, que não poderia ser ignorada. Um monte de areia seguido de um sulco serpenteante, cortando caminho através das dunas para dentro do campo de visão. O monte se ergueu na frente, lançando poeira para os lados, como a onda na proa de um barco e depois se foi, seguindo para a esquerda.
O som diminuiu, morreu.
— Já vi fragatas espaciais que eram menores — disse Paul.
Jessica acenou com a cabeça, continuando a olhar para o deserto. Onde o verme passara permanecia aquele sulco assustador, parecendo seguir interminavelmente diante deles.
— Quando tivermos repousado — disse ela —, continuaremos com suas lições.
Ele conteve uma raiva súbita.
— Mãe, não acha que podíamos dispensar...
— Hoje você entrou em pânico — respondeu. — Conhece sua mente e o sistema nervoso bindu de seu corpo melhor do que eu, mas ainda tem muito que aprender quanto à musculatura prana. O corpo faz coisas em si mesmo, às vezes, Paul, e eu devo lhe ensinar a respeito. Precisa aprender a controlar cada músculo, cada fibra de seu corpo. Vamos começar com as mãos. Primeiro os músculos dos dedos, os tendões da palma e a sensibilidade das pontas. — Levantou-se. — Venha, vamos para a tenda agora.
Ele flexionou os dedos da mão esquerda, observando Jessica se arrastar para dentro da válvula-esfíncter e sabendo que não poderia afastá-la de sua determinação... Devia concordar.
“Não importa o que tenham feito de mim. Eu sou uma parte disto”, pensou.
Começar pelas mãos!
Olhou para sua mão, que lhe pareceu extremamente inadequada, quando comparada a criaturas como os vermes.
Nós viemos de Caladan. Um mundo que era um paraíso para nossa forma de vida. Não havia necessidade, em Caladan, de construir paraísos físicos ou mentais, nós podíamos ver o paraíso à nossa volta. E o preço que pagamos por ele foi o preço que os homens sempre pagam ao conquistar um paraíso em suas vidas: nós nos tornamos indolentes e perdemos a fibra.
— de Conversas com o Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
— Então você é o grande Gurney Halleck — disse o homem.
Halleck, de pé, olhava através da caverna circular do escritório para o homem sentado atrás da mesa metálica. O homem usava mantos Fremen, mas tinha os olhos apenas parcialmente tingidos de azul, revelando uma dieta de alimentos provenientes de fora do planeta. O escritório era uma réplica do centro de controle-mestre de uma fragata espacial — sistemas de comunicação e telas de vídeo ao longo de trinta graus do arco formado pela parede circular, bancos de armamento e disparo remoto laterais e a escrivaninha formada de uma projeção da parede — parte da curva remanescente.
— Eu sou Staban Tuek, filho de Esmar Tuek — disse o contrabandista.
— Então é um daqueles a quem agradeço a ajuda que recebemos — respondeu Halleck.
— Ah, gratidão — murmurou o contrabandista. — Sente-se.
Um assento-concha, do tipo usado em naves espaciais, emergiu da parede ao lado das vídeo-telas, e Halleck deixou-se afundar dentro dele com um suspiro, sentindo o cansaço. Podia ver seu próprio reflexo na superfície negra polida ao lado do contrabandista, e fez uma expressão aborrecida ao perceber as linhas de fadiga no rosto gordo. A cicatriz de inkvine ao longo de sua mandíbula contorceu-se com a expressão carrancuda.
Halleck deixou de lado seu reflexo e olhou para Tuek. Percebia a semelhança familiar agora. As mesmas sobrancelhas espessas do pai, os mesmos planos do rosto e do nariz.
— Seus homens me dizem que seu pai está morto, assassinado pelos Harkonnen — disse Halleck.
— Pelos Harkonnen ou pelo traidor entre sua própria gente?
O ódio dominou parte do cansaço de Halleck. Ele se ergueu parcialmente no assento.
— Pode apontar o traidor?
— Não temos certeza.
— Thufir Hawat suspeitava de Lady Jessica.
— Ah, a bruxa Bene Gesserit... talvez. Mas Hawat é agora um prisioneiro dos Harkonnen.
— Eu ouvi. — Halleck respirou fundo antes de continuar. — Parece que teremos de continuar a matança.
— Não fará nada que atraia a atenção sobre nós — disse Tuek.
— Mas...
— Você e aqueles seus homens que salvamos são bem-vindos ao santuário entre nós. Você fala em gratidão. Muito bem, pague o seu débito para conosco. Sempre podemos usar bons homens. Mas os destruiremos imediatamente se fizerem o mais leve movimento explicito contra os Harkonnen.
— Mas eles mataram o seu pai, homem!
— Talvez. E se assim for eu lhe darei a resposta de meu pai para aqueles que agem sem pensar: “Uma pedra é maciça e a areia é pesada, mas a ira de um tolo pesa mais ainda.”
— Quer dizer que não fará nada, então? — perguntou Halleck sarcástico.
— Não me ouviu dizer isso. Eu apenas disse que vou proteger o nosso contrato com a Corporação. E a Corporação exige que joguemos um jogo cauteloso. Existem outros modos de se destruir um inimigo.
— Ahhhh...
— Ah, de fato. Se tem em mente procurar a bruxa, pode fazê-lo. Mas devo avisá-lo de que é provavelmente muito tarde... e duvidamos de que ela seja a pessoa que procura, em todo caso.
— Hawat cometia muito poucos erros — disse Halleck.
— Ele se deixou cair nas mãos dos Harkonnen — disse Tuek.
— Acredita que ele seja o traidor?
Tuek encolheu os ombros.
— Isso é acadêmico. Achamos que a bruxa está morta. Pelo menos os Harkonnen pensam assim.
— Parece conhecer um bocado a respeito dos Harkonnen.
— Indícios e sugestões... rumores e palpites.
— Temos setenta e quatro homens — disse Halleck. — Se deseja seriamente que nos coloquemos a seu serviço, deve acreditar que o nosso Duque está morto.
— Seu corpo foi visto.
— E o do rapaz também? O jovem mestre Paul? — Halleck tentou engolir, sentindo um aperto na garganta.
— De acordo com as últimas notícias que tivemos ele se perdeu com a mãe em uma tempestade no deserto. É provável que nem mesmo os seus ossos sejam encontrados.
— Ah, sim, a bruxa está morta também... todos mortos.
Tuek acenou.
— E eles dizem que Rabban, a Besta, sentará uma vez mais sobre o trono do poder aqui em Duna.
— O Conde Rabban de Lankiveil?
— Sim.
Halleck precisou de um momento para conter a onda de ódio que ameaçou sufocá-lo. Afinal, falou com a respiração acelerada:
— Eu tenho minha conta pessoal a ajustar com Rabban. Devo a ele a perda de minha família e... — coçou a cicatriz ao longo do queixo — ... e isto.
— Não se arrisca tudo para realizar uma vingança prematura — disse Tuek, e franziu a testa ao ver o tremer dos músculos ao longo do queixo de Halleck, o súbito distanciamento nos olhos entreabertos.
— Eu sei... eu sei... — Halleck respirou fundo.
— Você e seus homens podem pagar sua passagem para fora de Arrakis trabalhando para nós. Existem muitos lugares para...
— Libertarei meus homens de qualquer obrigação para comigo. Eles podem escolher por si mesmos. Com Rabban aqui, eu fico.
— Com esse estado de espírito, não tenho certeza se desejamos que fique.
Halleck encarou o contrabandista.
— Duvida de minha palavra?
— Não...
— Você me salvou dos Harkonnen. Dei minha lealdade ao Duque Leto sem outra razão além dessa. Ficarei em Arrakis... com vocês ou com os Fremen.
— Se um pensamento é enunciado, em palavras ou não, ele constitui algo real e tem sua força. Você pode descobrir que a linha entre a vida e a morte, junto aos Fremen, é nítida e curta.
Halleck fechou os olhos brevemente, sentindo o cansaço dominá-lo.
— “Onde está o Senhor que nos guiou através da terra dos desertos e dos fossos?” — murmurou ele.
— Mova-se com calma e o dia da vingança chegará — aconselhou Tuek. — A pressa é um artifício de Shaitan. Contenha sua mágoa — nós temos remédios para isso, três coisas que acalmam o coração ferido água, grama verde e a beleza de uma mulher.
Halleck abriu os olhos:
— Eu preferiria o sangue de Rabban Harkonnen fluindo aos meus pés. — Olhou para Tuek. — Acredita que esse dia chegará?
— Não tenho nenhuma relação com os modos como encontrará seu futuro, Gurney Halleck. Só posso ajudá-lo a enfrentar o presente.
— Então aceitarei essa ajuda e ficarei até o dia em que me disser que posso vingar seu pai e todos os outros a quem...
— Ouça-me, guerreiro — disse Tuek, inclinando-se para a frente sobre a mesa, os ombros erguidos e os olhos atentos. O rosto do contrabandista era como pedra gasta. — A água de meu pai eu mesmo a comprarei de volta, com a lâmina de minha espada.
Halleck observou Tuek e naquele momento o contrabandista fez com que se lembrasse do Duque Leto: um líder de homens, corajoso, seguro de sua posição e do rumo a seguir. Tuek era como o Duque... antes de Arrakis.
— Deseja a minha espada ao seu serviço? — indagou Halleck.
Tuek recostou-se no assento, relaxando, observando Halleck em silêncio.
— Considera-me um guerreiro? — insistiu Halleck.
— Você foi o único entre os tenentes do Duque a conseguir escapar. Seu inimigo era esmagador e no entanto você se deixou rolar com ele... Você o derrotou do modo como derrotamos Arrakis.
— Ah?
— Nós vivemos com paciência e tolerância aqui, Gurney Halleck — disse Tuek. — Arrakis é o nosso inimigo.
— Um inimigo de cada vez, não é isso?
— Exato.
— É desse modo que os Fremen sobrevivem?
— Talvez.
— Você disse que eu poderia achar a vida entre os Fremen muito dura. Eles vivem no deserto, em campo aberto. É por isso?
— Quem sabe onde os Fremen vivem? Para nós o Planalto Central é uma terra de ninguém. Mas eu gostaria de falar mais a respeito de...
— Disseram-me que a Corporação raramente permite que suas naves de especiaria sobrevoem o deserto. Mas existem rumores de que se podem ver trechos de vegetação aqui e ali, desde que se saiba onde olhar.
— Rumores! — zombou Tuek. — Deseja escolher agora entre nós e os Fremen? Temos uma certa segurança em nosso próprio sietch escavado na rocha, nossas próprias áreas ocultas. Vivemos como homens civilizados. Os Fremen não passam de alguns bandos maltrapilhos que usamos como caçadores de especiaria.
— Mas eles conseguem matar Harkonnen.
— E quer saber o resultado? Agora mesmo eles estão sendo caçados como animais. Com armas laser, já que não possuem escudos. Estão sendo exterminados, e por quê? Porque mataram Harkonnen.
— Foi mesmo Harkonnen que eles mataram?
— Que quer dizer?
— Não ouviu dizer que podem ter vindo Sardaukar com os Harkonnen?
— Mais boatos.
— Mas um massacre, um extermínio organizado, isso não é típico dos Harkonnen. Um pogrom é sempre um desperdício.
— Eu acredito no que vejo com os meus próprios olhos — respondeu Tuek. — Faça sua escolha, guerreiro. Eu ou os Fremen. Eu lhe oferecerei santuário e a promessa de derramar o sangue que ambos desejamos ver derramado. Mas tenha certeza, os Fremen lhe oferecerão apenas a vida dos perseguidos.
Halleck hesitou, sentindo sabedoria e simpatia nas palavras de Tuek, e entretanto perturbado por algo que não sabia explicar.
— Mas confie em sua própria habilidade — continuou Tuek. — De quem foram as decisões que lhe deram força através da batalha? As suas. Portanto decida.
— Assim devo fazer. O Duque e seu filho estão mesmo mortos?
— Assim crêem os Harkonnen. E no que concerne a tais coisas, inclino-me a acreditar nos Harkonnen. — Um sorriso amargo formou-se na boca de Tuek. — Mas esse é o único crédito que dou a eles.
— Então assim deve ser — murmurou Halleck. Ergueu a mão direita, com a palma para cima e o polegar dobrado contra ela no gesto tradicional.
— Eu lhe ofereço a minha espada.
— Aceito.
— Deseja que eu convença meus homens a me seguirem?
— Você os deixaria tomar suas próprias decisões?
— Eles me seguiram até aqui, mas a maioria nasceu em Caladan. Arrakis não é o que eles pensaram que fosse. Aqui eles perderam tudo, exceto suas vidas. Eu preferiria que decidissem por si mesmos, agora.
— Mas agora não é tempo para fraquejar. Eles o seguiram até aqui...
— Precisa deles, não é mesmo?
— Sempre podemos usar combatentes experientes... nos tempos que correm, mais do que nunca.
— Aceitou a minha espada. Quer que eu vá persuadi-los?
— Acredito que eles o seguirão, Gurney Halleck.
— Devemos esperar por isso?
— Exato.
— Posso tomar minha própria decisão nesse assunto?
— Sua própria decisão.
Halleck ergueu-se do assento-concha, sentindo o quanto de sua reserva de forças esse pequeno esforço exigia.
— Por enquanto cuidarei do bem-estar e do alojamento deles.
— Consulte o meu auxiliar. Drisq é o nome dele. Diga-lhe que é meu desejo que vocês recebam toda a atenção. Irei vê-los dentro em pouco. Antes tenho que despachar alguns carregamentos de especiaria.
— “A fortuna passa em toda parte” — citou Halleck.
— Em toda parte — concordou Tuek. — E um tempo de convulsão é uma rara oportunidade para o nosso negócio.
Halleck assentiu com a cabeça, ouvindo um leve sopro e sentindo o movimento do ar enquanto a comporta se abria ao seu lado. Ele virou-se, passando agachado através dela para fora do escritório.
Encontrou-se na sala de reuniões, através da qual ele e seus homens haviam sido conduzidos pelos auxiliares de Tuek. Era uma área comprida e um pouco estreita, escavada na rocha natural, sua superfície lisa revelando o uso de raios-cortadores no trabalho.
O teto se prolongava, alto o suficiente para dar prosseguimento à curva natural de sustentação da rocha, e permitir correntes internas de conversão de ar. Armários e prateleiras de armas enfileiravam-se nas paredes.
Halleck notou, com um toque de orgulho, que aqueles dentre seus homens que ainda eram capazes de ficar de pé estavam nessa posição. Não se permitiam nenhum relaxamento ante o cansaço e a derrota. Médicos dos contrabandistas moviam-se atendendo aos feridos. Padiolas haviam sido dispostas em uma área à esquerda, cada homem ferido com um companheiro Atreides.
O treinamento Atreides — “Nós cuidamos dos nossos!” resistia como um núcleo de rocha entre eles, e Halleck notou-o com orgulho.
Um de seus tenentes aproximou-se, carregando o baliset de nove cordas de Halleck fora de seu estojo. O homem fez uma saudação e disse:
— Senhor, os médicos aqui dizem que não há esperanças para Mattai. Eles não possuem bancos de órgãos e de ossos aqui, somente um posto médico. Mattai não vai durar muito, dizem eles, e ele tem um pedido ao senhor.
— Qual é?
O tenente ergueu o baliset.
— Mattai deseja uma canção para suavizar sua partida, senhor. Ele diz que saberá qual é... ele a pediu ao senhor muitas vezes. — O tenente engoliu em seco. — Chama-se “Minha Mulher”. Se...
— Eu sei. — Halleck pegou o baliset, retirando o multi-estilete de seu prendedor no teclado. Tirou um tom suave do instrumento, descobrindo que alguém já o afinara. Havia uma ardência em seus olhos, mas ele afastou-a do pensamento enquanto caminhava dedilhando os tons, forçando-se a sorrir naturalmente.
Vários de seus homens e o médico contrabandista encontravam-se inclinados sobre uma das padiolas. Um dos homens começou a cantar baixinho quando Halleck se aproximou, respondendo ao tom com a facilidade de uma longa familiaridade:
“Minha mulher está na janela,
Linhas curvas num quadrado de vidro.
Braços erguidos... inclinada.
Sob o vermelho e o dourado do poente
— Venham para mim...
Venham para mim, braços mornos de minha amada.
Para mim...”
O cantor parou, estendendo um braço enfaixado e fechando os olhos do homem na maca.
Halleck fez soar um último tom suave, pensando: “Agora somos setenta e três.”
A vida familiar na Creche Real é algo de difícil compreensão para muitas pessoas, mas tentarei criar-lhes uma visão resumida. Meu pai tinha apenas um amigo verdadeiro: o Conde Hasimir Fenring eunuco-genético e um dos lutadores mais mortíferos de todo o Império. O Conde, um homem feio mas elegante, trouxe uma nova concubina-escrava para meu pai um dia, e eu fui mandada por minha mãe para espionar o que acontecia. Todos espionávamos meu pai, por uma questão de auto-proteção. Uma das concubinas-escravas permitidas a meu pai pelo acordo entre a Corporação e a Bene Gesserit não poderia, é claro, ter um herdeiro-real, mas as intrigas eram constantes e deprimentes no modo como eram iguais. Tornamo-nos peritas — minha mãe, minhas irmãs e eu — em evitar sutis instrumentos de morte. Pode parecer uma coisa terrível para se dizer, mas não estou certa de que meu pai fosse inocente em todos aqueles atentados. Uma família real não é como as outras famílias. E aqui estava uma nova concubina-escrava, ruiva como meu pai, esguia e graciosa. Tinha a musculatura de uma dançarina e seu treinamento, obviamente, incluíra neuro-sedução. Meu pai olhou para ela durante algum tempo, enquanto ela posava nua diante dele, e afinal disse:
— Ela é demasiado bela. Vamos guardá-la como presente para alguém. — Vocês não fazem idéia de quanta consternação esse ato de contenção criou na Creche Real. Afinal, sutileza e auto-controle são as mais mortíferas ameaças a todos nós.
— de A Casa de Meu Pai, escrito pela Princesa Irulan
Paul encontrava-se do lado de fora da tenda destiladora no final da tarde. A fenda onde instalara seu acampamento encontrava-se mergulhada em sombras escuras. Ele olhou para a extensão de areia em direção ao penhasco distante, em dúvida se devia ou não acordar sua mãe, que dormia dentro da tenda.
Dobras sobre dobras de dunas estendiam-se além do abrigo. Do outro lado do sol poente elas provocavam sombras tão negras que pareciam pedaços de noite.
E havia a planura. Sua mente buscava alguma coisa alta naquele panorama, e não encontrava nenhuma verticalidade no horizonte ou no ar trêmulo de calor. Nenhum crescimento, nenhuma forma curvando-se ao vento para marcar a passagem da brisa... Apenas as dunas e aquele penhasco distante sob um céu cinza-azulado.
“E se não houver nenhuma estação de testes abandonada por lá?”, pensou ele. “E se não existirem Fremen e as plantas que vemos forem apenas um produto do acaso?”
Dentro da tenda Jessica despertou, virando-se de lado e olhando para Paul através da extremidade transparente. Ele estava de costas para ela e algo em sua postura fazia com que se lembrasse do pai. Sentiu o peso da mágoa elevando-se em seu interior e olhou em outra direção. Daí a pouco ajustou seu traje-destilador, refrescou-se com um pouco de água da bolsa recolhedora da tenda e saiu para esticar os músculos.
Paul falou, sem se voltar:
— Estava apreciando a quietude daqui.
“Como a mente se ajusta ao seu ambiente”, pensou ela, lembrando-se da doutrina Bene Gesserit: “A mente pode seguir em ambas as direções quando sob tensão — em direção ao positivo ou ao negativo, ligado e desligado. Pense nisso como um espectro cujos extremos são a inconsciência na extremidade negativa, e a hiperconsciência na extremidade positiva. A direção para onde a mente se inclina, sob tensão, é fortemente influenciada pelo treinamento.”
— A vida poderia ser boa aqui — disse ele.
Ela tentou ver o deserto através dos olhos dele, tentando abarcar todos os rigores desse planeta como um lugar comum, imaginando os possíveis futuros que ele vislumbrara. “Alguém pode se achar sozinho lá fora. Sem precisar ter medo de ninguém vindo atrás, sem temer o caçador.”
Passou por Paul erguendo seu binóculo, ajustando as lentes de óleo e observando a escarpa adiante. Sim, havia saguaros nos arroios, e outras plantas ressequidas... manchas de vegetação rasteira, verde-amareladas, nas sombras.
— Vou levantar acampamento — disse Paul.
Jessica assentiu caminhando para a boca da fenda, de onde podia ver uma extensão maior do deserto, girando o binóculo para a esquerda. Uma região salina brilhava, com uma mistura poeirenta em suas bordas. Um trecho de branco, onde branco significava morte, mas a depressão revelava outra coisa: água. Em alguma época a água fluíra através daquele branco brilhante. Ela abaixou o binóculo, ajustou o albornoz, ouvindo por um momento o som dos movimentos de Paul.
O sol mergulhou ainda mais baixo no horizonte e as sombras se estenderam sobre a depressão salgada. Linhas de cores berrantes espalharam-se sobre o horizonte do poente, fluíram sobre um dedo de escuridão que sondava a areia. Depois, sombras negras como carvão se propagaram, e o rápido cair da noite ocultou a face do deserto.
Estrelas!
Olhava para elas sentindo os movimentos de Paul que se aproximava. A noite no deserto voltando-se para o alto com um sentimento de elevação em direção às estrelas. O peso do dia se afastava, e uma leve brisa soprou em seu rosto.
— A primeira lua se erguerá logo — disse Paul. — O embrulho já está pronto e eu plantei um batedor.
“Nós poderíamos nos perder para sempre neste lugar infernal”, pensou Jessica, “e ninguém saberia.”
O vento da noite trazia a areia que lhe irritava o rosto, e produzia um odor de canela.
— Sentiu o cheiro?
— Posso senti-lo até mesmo através do filtro — respondeu ela.
— Riqueza. Mas será que nos conseguiria água? — Apontou através da depressão. — Não há sinal de luzes artificiais por lá.
— Os Fremen estariam ocultos num sietch, por trás daquelas rochas.
Uma borda prateada surgiu acima do horizonte à direita: a primeira lua. Ergueu-se até se tornar plenamente visível, com o padrão em forma de mão nítido em sua face. Jessica observou o branco prateado da areia exposta à sua luz.
— Eu plantei um batedor na parte mais profunda da fenda explicou Paul. — Quando acender o pavio ele nos dará trinta minutos.
— Trinta minutos?
— Antes de começar a atrair um... verme.
— Oh, eu estou pronta para seguir em frente.
Ele se afastou e Jessica ouviu seu avanço pela fenda acima.
“A noite é um túnel”, pensou. “Um túnel para o amanhã... se tivermos um amanhã.” Sacudiu a cabeça. “Por que devo ser tão mórbida? Meu treinamento foi melhor do que isso.”
Paul retornou, pegou o embrulho e liderou a descida até a primeira duna que se espalhava adiante. Parou, ouvindo os passos da mãe às suas costas. Ouvia seu caminhar lento, os sons repetidos e singulares. O código do deserto se revelando.
— Devemos caminhar sem ritmo — disse Paul, e procurou captar a memória de homens caminhando na areia, em ambas... na memória presciente e na memória real.
— Observe como eu faço — disse ele. — É desse modo que os Fremen caminham na areia. — Caminhou sobre a face da duna voltada para a direção do vento, seguindo sua curva, movendo-se com um passo arrastado.
Jessica observou seu progresso durante dez passos e o seguiu imitando-o, percebendo o sentido daquele modo de agir. Deviam fazer sons que reproduzissem o resvalar natural da areia... como o vento. Mas os músculos protestavam contra esse padrão interrompido, antinatural: um passo... arrasta o pé... arrasta... um passo... um passo... espera... arrasta... passo... O tempo parecia se prolongar ao redor deles. O penhasco adiante não se tornava mais próximo. O outro atrás ainda se elevava bem alto.
Lamp! lamp! lamp! lamp!
Era um tamborilar vindo da elevação atrás.
— O batedor — sussurrou Paul.
A batida continuava e parecia difícil não reproduzir seu ritmo no caminhar.
Lamp... Lamp... Lamp... Lamp...
Moviam-se sob uma abóbada iluminada pelo luar, perfurada por aquela batida oca. Para baixo e para cima, através de dunas escorregadias: passo... arrasta o pé... espera... passo... sobre a areia que escorria sob os pés... arrasta... espera... passo.
Todo o tempo seus ouvidos buscando aquele silvo especial.
O som, quando veio, principiou tão baixo que o próprio arrastar dos pés o tornava indistinto. Mas ele aumentou... cada vez mais alto... vindo do oeste.
Lamp... lamp... lamp... lamp... — tamborilava o batedor.
O silvo se aproximou, estendendo-se sobre a noite, atrás deles.
Eles voltaram a cabeça enquanto caminhavam, vendo o monte de areia que o verme punha em movimento.
— Continue andando — sussurrou Paul. — Não olhe para trás.
Um rangido furioso explodiu nas sombras das rochas que haviam acabado de deixar. Depois um ruído de avalanche.
— Não pare — advertiu Paul.
Percebia que haviam chegado ao ponto onde as duas elevações rochosas, a que ficava adiante e a que ficava atrás, pareciam igualmente distantes. E atrás deles prosseguia aquele chicotear, o frenético partir de rochas dominando a noite.
Continuaram avançando, sempre, sem parar... Seus músculos atingindo um doloroso estágio mecânico que parecia estender-se indefinidamente. Paul, no entanto, notava que a escarpa adiante tornara-se um pouco mais elevada.
Jessica movia-se num vazio de concentração, consciente de que apenas a força de sua vontade ainda a fazia caminhar. Sua boca estava seca e doída, mas os ruídos atrás afastavam qualquer esperança de parar para um gole de água, nos bolsões de recolhimento do traje.
Lamp!... lamp!
Um novo furor trovejou no penhasco distante, abafando o ruído do batedor.
Depois silêncio.
— Rápido — pediu Paul.
Ela acenou, sabendo que ele não vira o gesto, mas precisando desse movimento para convencer a si mesma de que era necessário exigir ainda mais dos músculos já levados ao limite... o movimento antinatural...
A face rochosa, representando a segurança à frente, erguia-se até as estrelas e Paul notou um plano de areia lisa estendendo-se na base. Caminhou sobre ele tropeçando em sua fadiga, endireitando-se com o arremessar de um pé involuntariamente para a frente.
Um barulho surdo sacudiu a areia ao redor. Paul saltou para o lado.
Buum! Buum!
— Tambor de areia — avisou Jessica.
Paul recuperou o equilíbrio. Olhou em volta observando a areia ao seu redor, a escarpa rochosa, talvez a duzentos metros de distância.
Para trás ele ouviu um silvo, como o vento assoviando.
— Corra! — gritou Jessica. — Corra, Paul!
Eles correram, o som do tambor ressoando sob seus pés. Então estavam fora da areia, sobre um leito de pedras. Por algum tempo a corrida era um alivio para os músculos doloridos com o uso desordenado. Aqui estava uma ação que podia ser entendida, aqui havia ritmo. Mas a areia e o cascalho resvalavam sob seus pés e o assovio da aproximação do verme tornou-se um som de tempestade que crescia ao redor deles.
Jessica tropeçou e caiu de joelhos. Tudo que conseguia pensar era a fadiga, o som e o terror.
Paul levantou-a e os dois correram de mãos dadas. Um fino poste erguia-se da areia adiante, eles o ultrapassaram e viram outro.
A mente de Jessica só os registrou depois que haviam passado por eles. Ali estava outro, sua superfície corroída pelo vento elevando-se de uma fenda na rocha.
Mais outro.
Rocha!
Sentia, através dos pés, o choque da superfície resistente, a força ganha do apoio mais firme.
Uma fenda profunda estendia sua sombra vertical sobre a colina adiante. Eles saltaram para ela comprimindo-se dentro de um estreito buraco. Lá atrás o som da passagem do verme interrompeu-se. Jessica e Paul voltaram-se olhando para o deserto.
Onde as dunas começavam, talvez a cinqüenta metros de distância, ao pé da praia rochosa, uma curva cinza-prateada emergiu do deserto lançando rios de areia e pó cascateando ao redor. Aquilo elevou-se ainda mais, transformando-se em uma gigantesca boca. Um buraco negro e redondo com bordas que brilhavam na luz do luar.
A boca serpenteou em direção à estreita fenda onde Paul e Jessica se agachavam. Um cheiro forte de canela invadiu as narinas de ambos. O luar cintilava nos dentes de cristal.
A boca se movia para a frente e para trás.
Paul prendeu a respiração.
Jessica se abaixou, olhando.
Era necessária uma intensa concentração em seu treino Bene Gesserit para controlar o terror primitivo, subjugando o medo na memória racial que ameaçava dominar sua mente.
Paul sentia uma espécie de alegria. Em algum instante muito próximo ele cruzara uma barreira de tempo, penetrando em território desconhecido. Podia sentir a escuridão adiante, nada revelando-se à sua visão interior. Era como se algum passo que dera o houvesse mergulhado nalgum poço... ou dentro da depressão entre duas ondas, onde o futuro fosse invisível. A paisagem sofrera uma profunda mudança.
E, em vez de assustá-lo, a sensação de escuridão no tempo forçava uma hiperaceleração de seus outros sentidos. Encontrou-se avaliando cada aspecto observável da coisa que se erguia da areia procurando por ele. Sua boca tinha aproximadamente oitenta metros de diâmetro... dentes de cristal com a forma curva das facas cristalinas brilhavam ao longo da borda... o hálito de canela... ácidos e aldeídos sutis...
O verme obscureceu o luar enquanto roçava nas rochas acima deles. Uma chuva de pequenas pedras e areia cascateou para dentro do abrigo estreito.
Paul puxou sua mãe mais para o fundo.
Canela!
O cheiro chegava quase a sufocá-los.
“O que tem a ver um verme com a especiaria melange?”, perguntou Paul de si para si. E lembrou-se de Liet-Kynes deixando escapar uma velada referência à existência de uma associação entre vermes e especiaria.
Bruummmm!
Era como um trovão seco vindo de longe, à direita.
E novamente: Brruuummm!
O verme retrocedeu de volta para a areia, ficou parado momentaneamente, seus dentes de cristal refletindo clarões de luar.
Lamp! Lamp! Lamp! Lamp!
“Outro batedor!”, pensou Paul.
Novamente ele soou à direita.
Um tremor percorreu o corpo do verme. Ele se afastou ainda mais areia adentro. Somente a curva superior abobadada permaneceu, como a metade da boca de um sino, a curva de um túnel, elevando-se acima das dunas. Som de areia raspando.
A criatura mergulhou ainda mais, recuando, voltando-se. Transformou-se num monte de areia encrespado que se curvou para longe através da depressão entre duas dunas.
Paul saiu da fenda, observando a onda de areia retroceder através da desolada vastidão, em direção ao chamado do novo batedor.
Jessica acompanhou com os ouvidos: Lamp... lamp... lamp...
Então o som parou.
Paul encontrou o tubo de seu traje-destilador e sugou um pouco de água reciclada.
Jessica o observava, mas sua mente parecia vazia com a fadiga, e como conseqüência do terror.
— Tem certeza de que foi embora? — sussurrou.
— Alguém o chamou — disse Paul. — Fremen.
Sentiu-se recuperando as forças.
— Era tão grande!
— Não tão grande quanto aquele que pegou o nosso “tóptero”.
— Tem certeza de que foram os Fremen?
— Eles usaram um batedor.
— Por que nos ajudariam?
— Talvez não estivessem ajudando. Talvez estivessem apenas chamando um verme.
— Por quê?
A resposta encontrava-se no limite de sua consciência, mas se recusava a emergir. Tinha uma visão, em sua mente, de alguma coisa relacionada com aqueles bastões farpados telescópicos no embrulho. Os “ganchos de produtor”.
— Por que eles chamariam um verme? — insistiu Jessica.
Uma insinuação de medo tocou sua mente e ele forçou-se a dar as costas para sua mãe, examinando o penhasco.
— É melhor encontrarmos um caminho até o alto antes que amanheça. — Apontou. — Aqueles mastros por que passamos... Existem mais.
Ela olhou para onde indicava a mão do rapaz e viu os mastros.
Marcos riscados pelo vento, aparecendo na sombra de uma estreita saliência que se torcia para dentro de uma fenda alta acima deles.
— Eles marcam um caminho para o alto do penhasco — comentou Paul. Colocou o embrulho sobre o ombro, caminhou até a extremidade da saliência e começou a subida para o topo.
Jessica aguardou um momento, resistindo, recuperando suas forças, e então seguiu.
Eles avançaram para o alto, seguindo os mastros-guias até que a saliência tornou-se uma estreita borda na boca de uma profunda fenda.
Paul inclinou a cabeça para olhar dentro do lugar escuro. Podia sentir o equilíbrio precário de seus pés naquela delgada borda, mas forçou-se a ser cauteloso. Via apenas escuridão dentro da fenda que se estendia para cima, aberta às estrelas, no topo. Seus ouvidos procuravam, encontrando apenas os sons que deviam ser esperados: um leve escorrer de areia, o brrr de um inseto, a batida de uma pequena criatura correndo. Sondou a escuridão com um dos pés, sentindo rocha abaixo de uma superfície abrasiva. Lentamente ele avançou ao longo da borda, fazendo sinal a sua mãe para que o seguisse. Agarrou uma dobra solta no manto dela e a ajudou a contornar a borda.
Olharam para cima, em direção à luz das estrelas emolduradas por dois lábios de rocha. Paul percebia a mãe ao seu lado como uma sombra cinzenta, indistinta.
— Se pudéssemos ao menos nos arriscar a usar uma luz — sussurrou ele.
— Temos outros sentidos além dos olhos — respondeu ela.
Paul deslizou um dos pés para a frente, mudou o apoio do corpo e sondou com o outro pé, encontrando uma obstrução. Ergueu o pé descobrindo um degrau, e firmou-se sobre ele. Estendeu a mão para trás, sentindo o braço de sua mãe, puxando o manto para chamá-la a prosseguir.
Outro degrau.
— Vai até o topo, eu acho — disse ele baixinho.
“Degraus rasos e uniformes”, pensou Jessica. “Feitos pelo homem, sem dúvida alguma.”
Seguiu a sombra de Paul sentindo com o pé a sucessão de degraus. As paredes de rocha estreitaram-se até que seus ombros quase as roçavam. Os degraus terminavam em uma garganta fendida com aproximadamente vinte metros de comprimento, seu piso nivelado, abrindo-se em uma depressão rasa, iluminada pelo luar.
Paul caminhou na borda, sussurrando:
— Que belo lugar!
Jessica só podia olhar em silenciosa concordância, um passo atrás dele.
A despeito do cansaço, da irritação dos recaths, dos tampões nas narinas e do confinamento do traje-destilador. A despeito do medo e do doloroso desejo de repousar, a beleza da depressão penetrou em seus sentidos, forçando-a a parar para admirá-la.
— Como uma terra de fadas — comentou Paul.
Jessica acenou concordando.
A vegetação de deserto estendia-se à frente dela: arbustos, cactos, pequenas moitas de folhas, tudo tremulando à luz do luar. As paredes circulares apareciam escuras à sua esquerda, congeladas pela lua à direita.
— Esta deve ser uma aldeia dos Fremen — comentou Paul.
— É preciso haver gente para que tantas plantas sobrevivam — concordou ela. Desencapou o tubo dos bolsões em seu traje-destilador e sugou. Um líquido morno e fracamente acre escorregou-lhe garganta abaixo. Sentiu como a refrescava. A capa do tubo rangeu contra flocos de areia ao recolocá-la.
Um movimento chamou a atenção de Paul. À sua direita e ao longo da curva formada pelo piso da depressão. Ele olhou através dos arbustos e ervas em direção ao trecho em forma de cunha, formado por uma superfície arenosa delineada pelo luar, e habitada por uma coisinha saltitante.
— Camundongo! — disse ele.
A coisinha continuava, entrando e saindo das sombras.
Algo caiu silenciosamente em seu campo de visão em direção ao camundongo. Houve um fino guincho, um bater de asas, enquanto um fantasmagórico pássaro cinzento elevava-se com uma pequenina sombra negra pendendo de suas garras.
“Nós precisávamos desta lembrança”, pensou Jessica.
Paul continuou a olhar ao longo da “pia”. Inalou, sentindo um suave mas penetrante odor de folhas secas subindo na noite. A ave de rapina fazia-o pensar nos modos de vida do deserto. Ele trouxera um silêncio tão completo à depressão que o luar azul leitoso quase podia ser ouvido fluindo sobre o saguaro e o arbusto espinhoso. Sentia-se um ruído luminoso aqui, mais básico em sua harmonia que qualquer outra música neste universo.
— É melhor encontrarmos um lugar para armar a tenda — disse ele. — Amanhã poderemos tentar encontrar os Fremen, que...
— A maioria dos intrusos aqui lamenta encontrar os Fremen!
Uma pesada voz masculina destruindo a quietude. Uma voz que vinha de algum ponto à direita e acima deles.
— Por favor, não corram, intrusos — disse a voz quando Paul tentou recuar na garganta. — Se correrem apenas desperdiçarão a água de seus corpos.
“Eles nos querem pela água em nossa carne!”, pensou Jessica.
Seus músculos sobrepujando toda a fadiga colocaram-se em prontidão máxima sem nenhum indício externo. Ela logo determinou a localização da voz. “Que maneiras furtivas! Eu não o ouvi chegar”, pensou.
Percebeu que o dono da voz se permitira apenas produzir pequenos sons, naturais ao deserto.
Outra voz chamou da borda da depressão, à esquerda.
— Acabe logo com isso, Stil. Tire a água deles e vamos prosseguir nosso caminho. Temos pouco tempo antes da aurora.
Paul, menos condicionado a responder a emergências do que sua mãe, sentia desgosto por ter se assustado e tentado recuar.
Deixara suas habilidades serem encobertas por um pânico momentâneo. Forçava-se agora a obedecer aos ensinamentos de Jessica: relaxe, depois simule um relaxamento e prepare os músculos para golpear como um chicote em qualquer direção.
Ainda assim sentia uma ponta de medo em seu interior, conhecendo sua origem. Esse era um tempo cego... sem nenhum futuro à vista... e eles estavam diante de Fremen selvagens, cujo único interesse se encontrava na água contida na carne de dois corpos desprotegidos.
Essa adaptação religiosa dos Fremen, então, é a fonte do que agora reconhecemos como “Os Pilares do Universo”, cujos Qizara Tafavid se encontram entre nós, com sinais, provas e profecias. Eles trazem a mística fusão de Arrakis cuja beleza profunda é exemplificada pela excitante música construída sobre velhas formas, mas estampada com o novo despertar. Quem não ouviu ainda O Hino do Homem Velho e não ficou profundamente comovido?
Arrastei meus pés pelo deserto
Cuja Miragem se agitava como uma multidão.
Sedento de glória, cobiçando o perigo,
Vagueei pelos horizontes de al-Kulab,
Observando o tempo nivelar montanhas
Em sua busca e em sua fome por mim.
E vi os pardais se aproximarem rapidamente,
Mais atrevidos que um lobo no ataque.
Espalham-se sobre a árvore de minha juventude.
E ouvi o bando em meus ramos
Sendo apanhado em seus bicos e garras!
— do Despertar de Arrakis, escrito pela Princesa Irulan
O homem se arrastava sobre o topo da duna. Uma partícula de pó apanhada no brilho do sol do meio-dia. Estava vestido apenas com os trapos remanescentes de um manto jubba, sua pele nua entre os farrapos. O capuz fora arrancado do manto, mas o homem fizera um turbante com uma tira de tecido rasgado. Mechas de cabelo louro projetavam-se sob o turbante, igualando-se com a barba rala e as grossas sobrancelhas. Por baixo dos olhos de azul-dentro-de-azul, restos de uma nódoa negra espalhavam-se até as maçãs do rosto. Uma depressão emaranhada sobre a barba e o bigode revelava onde o tubo do traje-destilador marcara sua trilha, do nariz até as bolsas de recolhimento.
O homem parou sobre a crista da duna, braços estendendo-se para baixo sobre a face oposta. O sangue coagulara em suas costas e sobre seus braços e pernas. Manchas de areia cinza-amarelada agarravam-se aos ferimentos. Lentamente ele colocou as mãos sob o corpo e conseguiu se levantar cambaleando. Até mesmo nesse movimento casual permanecia um traço da precisão que antes existira.
— Eu sou Liet-Kynes — disse, dirigindo-se ao horizonte vazio, e sua voz soou como uma caricatura rouca da força que conhecera.
— Sou o Planetólogo de Sua Majestade Imperial — sussurrou. — O ecologista planetário de Arrakis. Sou o administrador destas terras.
Tropeçou, caindo de lado sobre a superfície dura da face voltada para o vento. Suas mãos agarraram febrilmente a areia.
“Sou o administrador destas terras”, pensou.
Percebia o seu próprio estado semi-delirante, sabia que era preciso enterrar-se na areia, descobrindo uma camada inferior mais fria e se cobrindo com ela. Mas podia sentir o odor suave, rançoso, de um bolsão de pré-especiaria em algum ponto debaixo dessa areia. Mais do que qualquer outro Fremen, ele conhecia o perigo que isso representava. Se podia cheirar a massa de pré-especiaria, isso significava que os gases, presos profundamente sob a areia, estavam se aproximando do estágio de pressão explosiva.
Era preciso sair dali logo.
Suas mãos esboçaram débeis rabiscos na face da duna e um pensamento espalhou-se em sua mente, claro, nítido: “A riqueza verdadeira de um planeta encontra-se em sua paisagem, na maneira como tomamos parte naquela fonte básica de civilização a agricultura.”
Achou estranho que sua mente, há tanto tempo fixa num único curso de pensamentos, fosse incapaz de escapar deles. As tropas Harkonnen o haviam abandonado ali, sem água ou traje-destilador, pensando que um verme poderia pegá-lo se o deserto não o fizesse. Haviam achado divertido deixá-lo vivo, para morrer aos poucos nas mãos impessoais de seu planeta.
“Os Harkonnen sempre acham difícil matar Fremen”, pensou.
“Nós não morremos facilmente. Eu já devia estar morto agora... vou estar morto logo... mas não posso parar de ser um ecologista.”
A função mais elevada da ecologia consiste na compreensão das conseqüências.
A voz o deixou chocado por tê-la reconhecido, sabendo que se tratava da voz de um morto. Era a voz de seu pai, que fora o planetólogo nesse mesmo planeta, antes dele. Seu pai, há muito tempo morto durante um desmoronamento na Bacia de Gesso.
— Meteu-se em uma bruta encrenca, filho — disse-lhe o pai. — Devia saber quais seriam as conseqüências ao tentar ajudar o filho daquele Duque.
“Estou delirando”, pensou Kynes.
A voz parecia vir da sua direita e Kynes roçou com o rosto na areia, virando-se para olhar naquela direção. Não havia nada, nada exceto uma curva extensão de dunas, tremulando com o calor sob o brilho pleno do sol.
— Quanto mais vida houver dentro de um sistema, mais nichos haverá para essa vida — dizia seu pai. E a voz vinha agora de trás, à sua esquerda.
“Por que ele fica se movendo à minha volta?”, perguntou Kynes de si para si: “Será que ele não quer que eu o veja?”
— A vida aumenta a capacidade de um ambiente em sustentar a vida — continuou seu pai. — A vida torna os nutrientes necessários mais facilmente acessíveis. Ela adiciona mais energia ao sistema através da tremenda interação química de um organismo para com outro.
“Por que ele fica sempre repetindo o mesmo assunto? Eu já sabia isso antes de completar dez anos.”
Falcões do deserto, comedores de carniça como a maioria das criaturas selvagens dessa terra, começaram a circular acima dele.
Kynes viu uma sombra passar próximo à sua mão, e forçou a cabeça a se virar olhando para o alto. Os pássaros eram uma mancha indistinta no céu azul prateado — grãos distantes de fuligem flutuando acima.
— Nós generalizamos — disse-lhe o pai. — Não se pode traçar linhas em torno de problemas planetários. A planetologia é uma ciência que exige reduções e encaixes.
“O que é que ele está tentando me dizer? Existirá alguma conseqüência que deixei de perceber?”
Seu rosto tombou de volta na areia quente, e Kynes sentiu o odor de rocha queimada debaixo dos gases pré-especiaria. De algum canto de sua mente lógica um pensamento se formou: “Aquilo lá em cima são pássaros carniceiros. Talvez algum dos meus amigos Fremen os veja e venha investigar.”
— Para o trabalho do planetólogo a ferramenta mais importante são os seres humanos. Você deve cultivar o conhecimento ecológico entre as pessoas. É por isso que criei esta forma inteiramente nova de notação ecológica.
“Ele repete coisas que me disse quando eu era uma criança”, pensou Kynes.
Começou a sentir frio, mas o resto de sua mente lógica lhe disse: “O sol está bem acima. Você não tem traje-destilador e está quente, o sol está evaporando a umidade para fora de seu corpo.”
Seus dedos agarraram-se, fracos, na areia.
“Eles não podiam nem ao menos me deixar um traje-destilador!”, pensou.
— A presença de umidade no ar ajuda a evitar uma evaporação muito rápida da existente nos corpos vivos — disse seu pai.
“Por que ele fica repetindo o óbvio?”, cismou Kynes.
Tentou pensar em umidade no ar, em grama cobrindo essa duna... em água livre em algum ponto abaixo, num longo qanat fluindo com água de irrigação, aberto ao céu, exceto nas ilustrações dos textos... Água livre... água de irrigação... Eram necessários cinco mil metros cúbicos de água para irrigar um hectare de terra durante uma estação, lembrou-se.
— Nosso primeiro objetivo em Arrakis — disse-lhe o pai — serão as regiões de grama. Começaremos com esses tipos de capim mutante. Quando tivermos umidade presa nestas regiões gramadas poderemos começar as florestas nas terras elevadas. Depois, algumas massas de água livre — pequenas no princípio —, situadas ao longo das linhas de ventos dominantes, com precipitadores de umidade, em armadilhas de vento, colocadas em espaços ao longo dessas linhas para recapturar o que o vento leva. Devemos criar um verdadeiro siroco — um vento úmido — mas nunca poderemos dispensar as armadilhas de vento.
“Sempre me dando aula”, pensou Kynes. “Por que ele não cala a boca? Não percebe que estou morrendo?”
— Vai morrer igualmente, se não sair agora mesmo de cima da bolha que está se formando nas profundezas embaixo de você. Ela está lá, você sabe disso, pode cheirar os gases pré-especiaria. Sabe que os pequenos produtores estão começando a perder um pouco de sua água nessa massa.
O pensamento daquela água debaixo dele era enlouquecedor. Podia imaginá-la agora, fechada em camadas de rocha porosa pelos coriáceos pequenos produtores, meio planta meio animal. Uma fina ruptura estava derramando a fria fonte da água líquida mais clara, pura e refrescante dentro de...
“Massa pré-especiaria!”
Inalou sentindo o odor doce e rançoso. Era muito mais forte à sua volta agora do que antes.
Conseguiu erguer-se, pondo-se de joelhos. Ouviu o grito de um pássaro e um apressado bater de asas.
“Isto aqui é um deserto de especiaria. Deve haver Fremen por aqui mesmo à luz do dia. Certamente eles verão os pássaros, e devem vir investigar”, pensou.
— O movimento sobre uma região é uma necessidade para a vida animal — continuou seu pai. — Povos nômades seguem essa mesma necessidade. As linhas de movimento se ajustam às necessidades físicas de água, comida e minerais. Devemos controlar esses movimentos alinhandos para os nossos propósitos.
— Cale a boca, velho — murmurou Kynes.
— Devemos fazer uma coisa em Arrakis que nunca foi tentada antes sobre um planeta inteiro: devemos usar o homem como força ecológica construtiva. Inserindo formas adaptadas de vida terrena: uma planta aqui, um animal ali, um homem naquele lugar, visando transformar o ciclo da água, para construir um novo tipo de paisagem.
— Cale-se — gemeu Kynes.
— Foram as linhas de movimento que nos forneceram os primeiros indícios quanto ao relacionamento entre os vermes e a especiaria.
“Um verme”, pensou Kynes com uma onda de esperança. “Um produtor certamente deve aparecer quando a bolha estourar. Mas não tenho os ganchos. Como poderei montar num grande produtor sem os ganchos?”
Podia sentir a frustração minando o pouco de força que ainda lhe restava. Água, tão próxima, somente uma centena de metros abaixo dele. Um verme viria com certeza, mas não haveria meios de prendê-lo na superfície e usá-lo.
Kynes tombou para a frente, retornando à depressão rasa que seus movimentos haviam criado. Sentiu areia quente de encontro ao lado esquerdo da face, mas a sensação era remota, distante.
— O ambiente de Arrakis formou-se sobre um padrão evolucionário de formas de vida nativas. Como é estranho que tão poucas pessoas chegassem a observar a especiaria o suficiente para se perguntarem quanto ao equilíbrio quase ideal entre Nitrogênio e CO, sendo mantido, aqui, na ausência de grandes áreas com cobertura vegetal. A esfera de energia de um planeta encontra-se visível e passível de ser compreendida. Um processo implacável, mas um processo, não obstante. Existe uma brecha nele? Então, nesse caso, alguma coisa ocupa essa brecha. A ciência é feita de tantas coisas que parecem óbvias, depois que foram explicadas. Eu sabia que o pequeno produtor estava lá, oculto profundamente na areia, antes mesmo que o visse.
— Por favor, pare de me dar aula, papai — sussurrou Kynes.
Um dos falcões pousou na areia junto de sua mão estendida.
Kynes viu-o dobrar as asas e inclinar a cabeça para fitá-lo. Reuniu todas as suas forças para gemer para ele. O pássaro saltou a uma distância de dois passos, mas continuou a fitá-lo.
— O homem e suas obras têm constituído uma doença sobre a superfície de seus planetas muito antes de nossa época. A natureza tende a compensar essas doenças, removendo-as ou isolando-as, para incorporá-las ao sistema do seu próprio modo.
O falcão abaixou a cabeça, estendeu e fechou as asas, depois novamente transferiu a atenção para a mão estendida.
Kynes descobriu que não tinha mais forças para gemer e espantar o animal.
— O sistema histórico de pilhagem mútua e extorsão termina aqui em Arrakis — continuava seu pai. — Você não pode continuar para sempre tomando o que precisa, sem consideração por aqueles que virão depois. As qualidades físicas de um planeta estão gravadas em seu registro político e econômico. Temos o registro à nossa frente, e nosso caminho é óbvio.
“Ele nunca pára de dar aula”, pensou Kynes. “Discursando, discursando, discursando... sempre.”
O falcão saltou à distância de um passo em direção à sua mão, virou a cabeça primeiro em uma direção, depois na outra, estudando a carne exposta.
— Arrakis é um planeta de uma única colheita. Uma colheita. Ela sustenta a classe governante que vive como as classes governantes sempre viveram, enquanto abaixo delas uma massa semi-humana de semi-escravos sobrevive do que sobra, dos restos. São as massas e os restos que ocuparão nossa atenção. Eles são mais valiosos do que jamais se suspeitou.
— Eu o estou ignorando, pai — sussurrou Kynes, quase inaudível. — Vá embora.
Em seguida pensou: “Certamente devem existir alguns de meus Fremen por perto. Eles não podem evitar ver esses pássaros sobre mim. Virão investigar, ainda que para ver se existe umidade disponível.”
— As massas de Arrakis vão saber que nós trabalhamos para fazer a água fluir sobre a terra. A maioria deles, é claro, terão apenas uma compreensão semi-mística de como tencionamos fazê-lo. Muitos, não compreendendo a questão proibitiva da taxa de massa, poderão até mesmo pensar que vamos trazer água de algum outro planeta onde ela é abundante. Deixe-os pensar o que quiserem, contanto que acreditem em nós.
“Dentro de um minuto vou levantar e lhe dizer o que penso dele. Ficando aí, dando aula, quando devia estar me ajudando”, pensou Kynes.
O pássaro deu outro pulo para mais próximo da mão estendida de Kynes. Outros dois falcões pousaram na areia atrás dele.
— Religião e lei, entre nossas massas, deve ser uma coisa única continuou o pai de Kynes. — Um ato de desobediência deve ser um pecado e exigir penalidades religiosas. Isso terá a dupla vantagem de produzir maior obediência e maior bravura. Não devemos depender tanto da coragem individual, como pode ver, e sim da coragem de uma população inteira.
— Onde está minha população, agora que eu mais preciso dela? — perguntou Kynes. Reuniu toda a sua força conseguindo mover a mão na largura de um dedo em direção aos pássaros mais próximos. O falcão saltou para trás, reunindo-se aos seus companheiros, pronto para alçar vôo.
— Nosso cronograma atingirá a estatura de um fenômeno natural. A vida de um planeta é como um tecido imenso, bem entrelaçado. As mudanças na vegetação e nos animais serão determinadas, a princípio, pelas forças físicas que manipulamos. À medida que se estabelecerem, entretanto, nossas mudanças se tornarão influências controladoras, e teremos de lidar com elas igualmente. Não se esqueça, porém, de que necessitamos controlar apenas três por cento da energia superficial — apenas três por cento, inclinando a estrutura inteira em direção ao nosso sistema auto-sustentador.
“Por que não me ajuda? Sempre o mesmo: quando mais preciso de você, você me abandona.” Queria voltar a cabeça na direção da voz do pai, fitar o velho de cima para baixo, mas seus músculos se recusavam a obedecer.
Viu o falcão se mover. Ele aproximava-se de sua mão, um passo cauteloso de cada vez, enquanto seus companheiros esperavam em fingida indiferença. Parou a apenas um pulo de distância da mão.
Uma profunda claridade invadiu a mente de Kynes. Via subitamente um potencial em Arrakis que seu pai nunca percebera.
As possibilidades ao longo desse caminho diferente fluíram através dele.
— Não há desastre mais terrível para o seu povo do que cair nas mãos de um Herói — disse-lhe o pai.
“Lendo minha mente”, pensou Kynes. “Pois muito bem, deixe-o” As mensagens já devem ter sido enviadas às vilas do meu sietch. Nada poderá detê-los. Se o filho do Duque está vivo, eles o encontrarão e o protegerão como ordenei. Podem desfazer-se da mulher, sua mãe, mas salvarão o rapaz”, pensou.
O falcão deu mais um salto que o trouxe até à distância de uma bicada. Inclinou a cabeça para examinar a carne indolente.
Abruptamente ele se endireitou, esticou a cabeça para o alto e com um único grito saltou para o ar, inclinando-se para descrever uma curva acima, com seus companheiros logo atrás.
“Eles vieram”, pensou Kynes. “Meus Fremen me encontraram!”
Então ouviu a areia roncando.
Todo Fremen conhecia esse som, podendo distingui-lo imediatamente do ruído dos vermes, ou de outras formas de vida do deserto. Nalgum ponto debaixo dele a massa de pré-especiaria acumulara o suficiente em água e matéria orgânica, proveniente dos pequenos produtores, e atingira o estágio crítico de crescimento descontrolado. Uma gigantesca bolha de dióxido de carbono formara-se profundamente na areia, erguendo-se em direção à superfície num enorme “sopro”, com um redemoinho de areia em seu centro. Trocando o que houvesse na superfície pelo que se formara nas profundezas da areia.
Os falcões circulavam acima gritando sua frustração. Sabiam o que estava acontecendo. Qualquer criatura do deserto saberia.
“E eu sou uma criatura do deserto”, pensou Kynes. “Está vendo, pai? Eu sou uma criatura do deserto.”
Sentiu a bolha erguê-lo num domo de areia, sentiu que este se partia enquanto o redemoinho de pó o engolfava e arrastava em direção à fria escuridão. Por um momento a sensação de frio e umidade foram um alívio abençoado. Depois, enquanto o planeta o matava, ocorreu a Kynes que seu pai e todos os outros cientistas estavam errados. O mais persistente de todos os princípios universais era o acidente e o erro.
Até mesmo os falcões considerariam esses fatos...
Profecia e presciência — como podem elas ser colocadas em teste diante de questões sem resposta? Considere: o quanto é verdadeira a previsão de “força de onda” (como o Muad'Dib se refere à sua imagem-visão) e o quanto é resultado do trabalho do profeta, moldando o futuro para se adequar à profecia? Qual a harmonia inerente ao ato de profetizar? Será que o profeta vê o futuro ou vê apenas uma linha de fraquezas, uma falha ou rachadura que lhe permita partir com palavras ou decisões, assim como um cortador de diamantes parte sua jóia com um golpe de faca?
— de Reflexões Particulares a Respeito do Muad'Dib,
escrito pela Princesa Irulan
— Tire a água deles — dissera o homem, falando no meio da noite, e Paul lutara contra seu medo, olhando para sua mãe. Seus olhos treinados percebiam como ela se preparara para a luta, os músculos prontos para a ação rápida.
— Seria lamentável se fôssemos obrigados a destruí-los imediatamente — disse a voz acima deles.
“Foi este quem nos falou primeiro”, pensou Jessica. “Há pelo menos dois deles, um à nossa direita e um à nossa esquerda.”
— Cignoro brobosa sukares bin mange Ia pcbagavas doí tece tramavas na beslas lele pal brobas!”
Era o homem à direita chamando através da depressão.
Para Paul as palavras eram incompreensíveis, mas, com o treinamento Bene Gesserit, Jessica reconheceu a linguagem. Tratava-se de Chakobsa, uma das mais antigas linguagens de caçadores, e o homem acima deles dizia que talvez fossem os estranhos que procuravam.
No súbito silêncio que se seguiu ao chamado, a face da segunda lua, brilhando azul-esbranquiçada, surgiu sobre as rochas da depressão, fitando como um rosto redondo e brilhante.
O som de pessoas correndo veio das rochas — em cima e em ambos os lados... movimentos escuros ao luar. Muitas pessoas fluindo através das sombras.
“Uma tropa inteira!”, pensou Paul com um súbito aperto no coração.
Um homem alto, num albornoz mosqueado, surgiu diante de Jessica. Seu filtro bucal fora removido, para permitir que falasse mais claramente, e pendia do lado do queixo, revelando uma barba espessa à luz oblíqua da lua. A face e os olhos continuavam ocultos pelo capuz.
— O que temos aqui? Gênios ou humanos? — indagou ele.
Jessica percebeu a ironia em sua voz, analisou-a, permitindo-se aceitar uma leve esperança. Essa era a voz de comando, a voz que primeiro os assustara com sua súbita intrusão dentro da noite.
— Humanos, eu garanto — disse o homem.
Jessica sentia, mais do que via, a faca escondida em uma das dobras do manto do homem. Sentiu um amargo ressentimento de que nem ela nem Paul possuísse um escudo.
— Vocês também falam? — indagou o homem.
Jessica colocou toda a altivez real ao seu alcance em suas maneiras e na sua voz. Uma resposta era urgente, mas ela ainda não ouvira o suficiente desse homem para ter certeza de ter registrada na memória sua cultura e suas fraquezas.
— Quem vem a nós como criminosos saindo da noite? — indagou.
A cabeça encapuçada demonstrou tensão num movimento súbito e então um lento relaxar, bastante revelador. Esse homem possuía um bom auto-controle.
Paul afastou-se de sua mãe para oferecer dois alvos separados, e permitir a ambos uma área livre para agir.
A cabeça semi-oculta no capuz voltou-se diante do movimento de Paul, abrindo um trecho de rosto para a luz do luar. Jessica viu um nariz fino e um olho brilhante. Um olho escuro, muito escuro, sem qualquer sinal de branco, e um bigode marrom escuro, voltado para cima.
— Provavelmente um menino — disse o homem. — Se vocês forem fugitivos dos Harkonnen é possível que sejam bem-vindos entre nós. O que é isso, garoto?
As possibilidades faiscavam na mente de Paul: um estratagema? Um fato?
Uma decisão imediata tornava-se necessária.
— Por que dariam boas-vindas a fugitivos? — indagou ele.
— Um garoto que pensa e fala como um homem — disse o homem alto. — Bem, agora, para responder à sua pergunta, meu jovem wali, eu sou aquele que não paga o fai, o tributo de água aos Harkonnen. E por isso que posso dar boas-vindas a fugitivos.
“Ele sabe quem somos”, pensou Paul. “Há uma certa dissimulação em sua voz.”
— Eu sou Stilgar, o Fremen — disse o homem alto. — Será que isto solta sua língua, garoto?
“A mesma voz”, pensou Paul, lembrando-se do Conselho e desse mesmo homem buscando o corpo de um amigo assassinado pelos Harkonnen.
— Eu o conheço, Stilgar. Eu estava com meu pai no Conselho quando você veio a nós em busca da água de seu amigo. Você partiu levando consigo um dos homens de meu pai, Duncan Idaho. Uma troca entre amigos.
— E Idaho nos abandonou para voltar ao seu Duque — respondeu Stilgar.
Jessica percebeu os tons de desprezo na voz do homem e se manteve preparada para atacar.
A voz acima nas rochas chamou de novo:
— Nós perdemos tempo aqui, Stil.
— Este é o filho do Duque — retrucou Stilgar. — É, com certeza, aquele a quem Liet nos mandou procurar.
— Mas... é uma criança, Stil.
— O Duque era um homem, e este jovem usou um batedor — disse Stilgar. — Aquela foi uma brava travessia no caminho do shai-hulud.
Jessica percebia que ele a excluíra de seus pensamentos. Teria já lhe passado uma sentença?
— Nós não temos tempo para um teste — protestou a voz acima deles.
— E, no entanto, ele poderia ser o Lisan al-Gaib — insistiu Stilgar.
“Ele está procurando por um presságio!”, pensou Jessica.
— Mas, e a mulher? — indagou a voz acima.
Jessica se preparou novamente. Percebera morte naquela voz.
— Sim, a mulher — disse Stilgar. — E sua água.
— Você conhece a lei. Aqueles que não podem viver no deserto...
— Cale-se — comandou Stilgar. — Os tempos mudam.
— Será que Liet ordenou isso? — indagou a voz nas rochas.
— Você ouviu a voz do cielago, Jamis — disse Stilgar. — Por que me pressiona?
Jessica pensava: “Cielago!” O indício na linguagem abria largos caminhos à compreensão: essa era a linguagem de Ilm e Fiqh, e cielago significava morcego, um pequeno mamífero voador.
“Voz do cielago”: eles haviam recebido uma mensagem distrans para que procurassem por Paul e por ela.
— Eu apenas lhe lembro suas obrigações, amigo Stilgar — disse a voz nas rochas.
— Minha obrigação é para com a força de minha tribo. Este é o meu único dever e não preciso de que ninguém me lembre. Esse menino-homem me interessa. Ele é saudável, foi criado com muita água, cresceu longe do pai sol. Ele não tem os olhos do ibad, e todavia não fala nem age como os fracos das panelas. Nem o seu pai. Como pode ser isso?
— Não podemos passar a noite aqui discutindo. Se uma patrulha...
— Eu não vou lhe dizer novamente para ficar calado, Jamis.
O homem acima ficou em silêncio, mas Jessica o ouviu se mover, saltando sobre o desfiladeiro e descendo até o fundo da depressão pela esquerda.
— A voz do cielago sugeriu que haveria vantagem para nós em salvar vocês dois — disse Stilgar. — Eu vejo possibilidades nesse menino forte. Ele é jovem e pode aprender. Mas, e quanto a você, mulher?
“Eu tenho sua voz e o seu padrão registrados agora”, pensou Jessica. “Posso controlá-lo com uma única palavra, mas ele é um homem forte... vale muito mais para nós com plena liberdade de ação. Vamos ver.”
— Eu sou a mãe deste menino — disse Jessica. — A força dele, que você admira, é em parte produto de meu treinamento.
— A força de uma mulher pode ser infinita — disse Stilgar.
— Certamente é, no caso de uma Reverenda Madre.
— Você é uma Reverenda Madre?
Por um momento, Jessica colocou de lado todas as implicações daquela pergunta e respondeu com sinceridade:
— Não.
— Foi treinada nas maneiras do deserto?
— Não, mas muitos consideram valioso o meu treinamento.
— Nós fazemos nossos próprios julgamentos de valor.
— Cada homem tem o direito ao seu próprio julgamento.
— É bom que veja a razão. Não podemos nos demorar aqui para testá-la, mulher. Você compreende? Não queremos que o seu espírito nos persiga. Vou levar o menino-homem, seu filho, e ele terá minha proteção e o santuário em minha tribo. Mas para você, mulher... compreende que não é nada pessoal? É a lei de Istislah, no interesse de todos. Não é suficiente?
Paul deu um passo adiante.
— De que estão falando?
Stilgar olhou rapidamente para ele, mas manteve a atenção em Jessica.
— A menos que tenha sido treinada profundamente, desde a infância, para sobreviver aqui, você poderia causar a destruição de uma tribo inteira. É a lei, e nós não podemos carregar inúteis...
O movimento de Jessica principiou com uma queda para o solo, simulando um desmaio. Era uma reação óbvia a ser esperada de uma estrangeira fraca, e o óbvio sempre retarda as reações de um oponente. Leva um instante para interpretar algo conhecido quando esse algo é apresentado como desconhecido. Ela saltou ao ver o ombro direito de Stilgar cair para colocar a arma, oculta nas dobras do manto, apontando em sua nova posição. Uma volta súbita, um golpe com o braço, seguido de um rodopiar de mantos e Jessica estava apoiada de encontro a uma rocha, com o homem indefeso à sua frente.
Com os primeiros movimentos de sua mãe, Paul recuou dois passos. Quando ela atacou, ele mergulhou nas sombras. Um homem barbado surgiu em seu caminho, lançando-se para diante, meio agachado, com uma arma na mão. Paul atingiu o homem embaixo do esterno com um soco direto, pulou para o lado e o golpeou na base do pescoço, tomando-lhe a arma enquanto ele caía.
Em seguida estava em meio às sombras, subindo entre as rochas com a arma enfiada no cinturão de pano. Reconhecera o tipo apesar de sua forma pouco familiar. Uma arma lançadora de projéteis e isso revelava muitas coisas a respeito desse lugar. Outro indício de que escudos não eram usados por aqui.
“Eles vão se concentrar em minha mãe, e naquele Stilgar.
Ela pode cuidar dele. Eu devo chegar a um ponto vantajoso de onde possa ameaçá-los e dar a ela o tempo de que precisa para escapar”, pensou Paul.
Houve um coro de nítidos estalidos de molas vindas da depressão, e uma chuva de projéteis zumbiu nas rochas em torno dele. Um deles atingiu seu manto. Paul espremeu-se num canto e encontrou-se dentro de uma estreita fenda vertical. Começou a subir, com as costas apoiadas num dos lados e os pés no outro. Lentamente, e tão silencioso quanto poderia.
O rugido da voz de Stilgar ecoou até ele:
— Voltem, seus piolhos com cabeça de verme! Ela quebra o meu pescoço se chegarem perto!
A voz no fundo da depressão avisou:
— O garoto fugiu, Stil... Que vamos...
— Claro que ele fugiu, seu cérebro de areia... Agghh! Calma, mulher.
— Diga-lhes que parem de perseguir o meu filho.
— Eles já pararam, mulher. Ele fugiu, como você tencionava que fizesse. Grandes deuses! Por que não disse que era uma mulher sobrenatural e uma lutadora?
— Mande seus homens recuarem. Diga-lhes que voltem para dentro da depressão onde eu possa vê-los... e é melhor que acredite nisto: eu sei quantos eles são.
E ela pensou: “Este é um momento delicado, mas se este homem é tão inteligente quanto parece, nós teremos uma chance.”
Paul continuou a subir vagarosamente. Encontrou uma saliência onde poderia repousar e olhou para baixo. Ouviu a voz de Stilgar:
— E se eu recusar? Como pode... agghh! Deixe-me, mulher! Não lhe faremos mal agora. Grandes Deuses! Se pode fazer isto ao mais forte entre nós, você vale dez vezes seu peso em água.
“Agora o teste da razão”, pensou Jessica, e disse:
— Você procura pelo Lisan al-Gaib.
— Vocês poderiam ser as pessoas em nossa lenda — respondeu ele. — Mas eu acreditarei nisso quando for testado. Tudo que sei é que vieram aqui com aquele estúpido Duque... Aii! Mulher! Eu não me importo se me matar! Ele era bravo e honrado, mas foi estúpido por se colocar diante do punho dos Harkonnen.
Silêncio.
Daí a pouco Jessica falou:
— Ele não tinha escolha, mas não vamos discutir a respeito. Agora, diga àquele homem, ali atrás do arbusto, que pare de tentar apontar aquela arma para mim ou deixarei o universo livre de você e irei atrás dele em seguida.
— Você aí — gritou Stilgar. — Faça o que ela diz.
— Mas Stil...
— Faça o que ela manda, seu cara de verme, seu lagarto com cérebro de areia. Do contrário eu a ajudarei a desmembrá-lo! Não pode ver o valor desta mulher?
O homem atrás do arbusto levantou-se para fora de seu esconderijo parcial e abaixou a arma.
— Ele obedeceu — disse Stilgar.
— Agora explique claramente à sua gente o que deseja de mim. Não quero que nenhum jovem cabeça-quente cometa um erro tolo.
— Quando penetramos em vilas e cidades nós precisamos ocultar nossa origem e identidade, misturando-nos com o povo das pias e panelas. Então não carregamos armas, já que a faca cristalina é sagrada. Mas você, mulher, você tem uma habilidade sobrenatural para a luta. Nós apenas ouvimos a respeito disso e muitos duvidavam, mas não se pode duvidar do que se vê com os próprios olhos. Você dominou um Fremen armado. Essa é uma arma que busca alguma poderia revelar.
Houve um murmúrio na depressão, enquanto as palavras de Stilgar eram compreendidas.
— E se eu concordar em ensinar a vocês o... modo sobrenatural?
— Meu apoio para você assim como para o seu filho.
— E como podemos estar certos da sinceridade de sua promessa?
A voz de Stilgar perdeu um pouco do sutil tom de persuasão e assumiu uma tonalidade amarga:
— Aqui fora, mulher, nós não carregamos papéis para contratos. Não fazemos promessas noturnas para quebrá-las com a alvorada. Quando um homem diz uma coisa, isso é seu contrato. Como líder de meu povo eu os faço confiar em minha palavra. Ensine-nos o modo sobrenatural e terá um santuário entre nós por quanto tempo desejar. Sua água se misturará com nossa água.
— Você fala por todos os Fremen?
— Com o tempo é possível que sim. Mas somente o meu irmão Liet fala por todos os Fremen. Hoje, eu prometo apenas o segredo. Minha gente não falará a respeito de vocês em nenhum outro sietch. Os Harkonnen retornaram para Duna com todas as suas forças e o seu Duque está morto. Dizem que vocês morreram numa tempestade. O caçador não procura caça morta.
“Há segurança nisso. Mas esta gente possui um bom sistema de comunicação”, pensou Jessica. “E mensagens podem ser enviadas.”
— Presumo que uma recompensa foi oferecida por nós.
Stilgar permaneceu em silêncio e Jessica quase podia ver os pensamentos girando em sua cabeça, sentindo o movimento dos músculos embaixo de suas mãos.
Daí a pouco ele disse:
— Direi uma vez mais: eu lhe dei a palavra da tribo. Meu povo conhece o seu valor para todos nós agora. O que os Harkonnen poderiam nos oferecer? Nossa liberdade? Ah!, você é o taqwa, que nos comprará mais do que toda a especiaria nos cofres dos Harkonnen.
— Então devo lhe ensinar o meu modo de luta — disse Jessica, sentindo a inconsciente intensidade ritual de suas próprias palavras.
— Agora pode me libertar?
— Assim seja.
Jessica soltou o homem e caminhou para o lado, ficando à plena vista do grupo na depressão. “Esse é o teste da mistura”, pensou.
“Mas Paul deve saber a respeito deles ainda que eu morra em prol de seu conhecimento.”
No silêncio que se seguiu, Paul inclinou-se para a frente tentando obter uma visão melhor do ponto onde sua mãe se encontrava. Ao se mover ouviu uma respiração pesada se interromper subitamente acima dele, na fenda vertical da rocha. Percebeu uma fraca sombra delineada contra as estrelas.
A voz de Stilgar veio lá de baixo.
— Você aí em cima! Pare de caçar o rapaz. Ele vai descer logo.
A voz de um garoto, ou de uma moça, soou na escuridão, acima de Paul:
— Mas, Stil, ele não pode estar longe de...
— Eu disse que o deixasse, Chani! Sua filha de um lagarto!
Uma voz praguejou baixinho acima de Paul, seguida de uma queixa, igualmente em voz baixa.
— Chama-me de filha de lagarto! — Depois a sombra sumiu de vista.
Paul voltou sua atenção para a cratera, percebendo a sombra cinzenta de Stilgar movendo-se ao lado de sua mãe.
— Venham todos vocês — chamou Stilgar, depois voltou-se para Jessica. — E agora eu lhe pergunto: como podemos ter certeza de que cumprirá com sua parte em nosso acordo? É você quem vive com papéis e contratos vazios tais como...
— Nós, de Bene Gesserit, não quebramos nossas promessas mais do que vocês o fazem...
Houve um silêncio prolongado, e depois um súbito sussurrar de vozes:
— Uma bruxa Bene Gesserit!
Paul tirou a arma do cinturão, apontando-a para a silhueta negra de Stilgar, mas o homem e seus companheiros permaneceram imóveis, olhando para Jessica.
— É a lenda — disse alguém.
— Dizem que Shadout Mapes deu esse relatório a seu respeito — disse Stilgar. — Mas uma coisa tão importante deve ser testada. Se você for a Bene Gesserit da lenda, cujo filho nos conduzirá ao paraíso... Encolheu os ombros.
Jessica suspirou pensando: “Então nossa Missionária Protetora plantou até mesmo essas válvulas de segurança religiosa neste buraco infernal. Ah, bem... vai nos ajudar, e isso é o que deve fazer.” E ela disse:
— A vidente que lhes trouxe essa lenda o fez sob o compromisso do karama e ijaz, do milagre e da inimitabilidade da profecia. Isso eu sei. Desejam um sinal?
As narinas dele se dilataram à luz do luar.
— Não podemos nos demorar para realizar ritos — sussurrou ele.
Jessica lembrou-se de um mapa que Kynes lhe mostrara quando preparava rotas de fuga. Como isso parecia remoto. Havia, no mapa, um lugar chamado “Sietch Tabr”, com o nome “Stilgar” anotado ao lado.
— Talvez quando chegarmos ao Sietch Tabr — disse ela.
A revelação o fez estremecer, e Jessica pensou: “Se ao menos ele soubesse os truques que nós usamos! Ela deve ter sido muito boa, aquela Bene Gesserit das Missionárias Protetoras. Esses Fremen estão lindamente preparados para acreditar em nós.”
Stilgar se mexeu desconfortavelmente.
— Devemos partir agora. — Acenou com a cabeça, permitindo que soubesse que estavam partindo com a permissão dela.
Ele olhou para o penhasco, quase diretamente para a saliência rochosa onde Paul se agachava.
— Você aí, garoto. Pode descer agora.
Voltou sua atenção para Jessica, falando num tom de desculpa:
— Seu filho fez uma quantidade incrível de ruídos ao subir. Ele tem muito que aprender para não nos colocar em perigo, mas ele é jovem.
— Não há dúvida de que temos muito que ensinar um ao outro. Enquanto isso, é melhor dar uma olhada em seu companheiro ali. Meu filho barulhento foi um pouco duro ao desarmá-lo.
Stilgar girou, seu capuz batendo.
— Onde?
— Atrás daqueles arbustos — apontou ela.
Stilgar tocou dois de seus homens.
— Verifiquem. Depois olhou para seus companheiros identificando-os. — Jamis está faltando. — Olhou para Jessica. — Até o seu garoto conhece o modo sobrenatural?
— E vai reparar que ele não saiu de lá, como lhe ordenou.
Os dois homens que Stilgar enviara retornaram, suportando um terceiro que cambaleava e ofegava entre eles. Stilgar olhou para eles rapidamente, antes de voltar sua atenção para Jessica.
— O filho só obedecerá às suas ordens, hein? Bom. Ele conhece disciplina.
— Paul! Pode vir aqui agora — disse Jessica.
Paul se levantou saindo para a luz do luar acima de sua fenda esconderijo. Colocou a arma Fremen de volta no cinto, e ao se virar viu outro vulto sair das rochas para encará-lo.
Sob a luz da lua e de seus reflexos na pedra cinzenta, Paul viu uma pequena criatura em mantos Fremen. Um rosto oculto nas sombras olhando por baixo de um capuz, com o cano de uma das armas de projéteis saindo de uma dobra na vestimenta e apontando para ele.
— Eu sou Chani, filha de Liet.
A voz era alegre, com insinuações de riso.
— Eu não permitiria que você ferisse meus companheiros.
Paul engoliu em seco. A criatura diante dele virou-se na direção da lua, permitindo que visse um rosto de fada, com olhos muito escuros. A familiaridade naquele rosto, com suas feições brotando de incontáveis visões em sua presciência inicial, deixou-o chocado.
Lembrou-se do modo desafiante com que descrevera esse mesmo rosto saído de um sonho, dizendo para a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam : “Eu a encontrarei um dia.”
Agora, aqui estava aquele rosto, mas num encontro como ele jamais sonhara.
— Você foi tão barulhento quanto um shai-hulud em fúria — disse ela. — E tomou o caminho mais difícil para chegar aqui em cima. Siga-me. Eu lhe mostrarei um meio mais fácil de descer.
Ele pulou para fora da fenda, seguindo o rodopiar daquele manto através da paisagem acidentada. Ela movia-se como uma gazela, dançando sobre as rochas. Paul sentiu o sangue quente em seu rosto e ficou grato pela escuridão.
“Aquela garota!” Ela era como um toque do destino, e ele se sentia apanhado em uma onda, em sintonia com o movimento que elevava todo o seu espírito.
Dentro em pouco eles se encontravam entre os outros Fremen, no piso da depressão.
Jessica deu um sorriso amarelo para Paul e falou com Stilgar.
— Esta será uma boa troca de conhecimentos. Espero que sua gente perdoe nossa violência. Ela pareceu... necessária. Vocês estavam a ponto de... cometer um erro.
— Salvar alguém de um erro constitui uma dádiva do paraíso — respondeu Stilgar. Tocou os lábios com a mão esquerda e retirou a arma da cintura de Paul com a direita, jogando-a para um companheiro. — Você terá sua própria pistola maula, rapaz, quando fizer jus a uma.
Paul começou a falar mas se conteve, lembrando-se de um ensinamento de sua mãe: “Todo começo é uma ocasião muito delicada.”
— Meu filho terá as armas de que necessitar — disse Jessica.
Olhou para Stilgar forçando-o a pensar no modo como Paul conseguiria a pistola.
Stilgar olhou para o homem que Paul derrubara: Jamis. Ele respirava pesadamente, cabeça baixa, permanecendo afastado.
— Você é uma mulher difícil de entender — disse Stilgar, estalando os dedos da mão esquerda para um dos companheiros: — Kushti bakka te.
“Mais Chakobsa”, pensou Jessica.
O companheiro colocou dois quadrados de gaze na mão de Stilgar. Depois que passou o pano entre os dedos, fixou um deles em torno do pescoço de Jessica, abaixo do capuz, colocando o outro em Paul, do mesmo modo.
— Agora vocês usam o lenço do bakka — disse ele. — Se nos separarmos vocês serão reconhecidos como pertencendo ao sietch de Stilgar. Falaremos de armas em outra ocasião.
Moveu-se através de seu bando, inspecionando-o, entregando o embrulho do estojo Fremen de Paul para um de seus homens carregar.
“Bakka”, pensou Jessica, reconhecendo o termo religioso “bakka — aquele que chora.” Sentia como o simbolismo dos lenços unia esse bando. “Como pode o choro uni-los?”, perguntou ela de si para si.
Stilgar aproximou-se da jovem que embaraçara Paul, dizendo:
— Chani, coloque este menino-homem sob sua proteção. Evite que ele se meta em encrencas.
Chani tocou o braço de Paul
— Venha comigo, menino-homem.
Paul ocultou a raiva em sua voz:
— Meu nome é Paul, e é melhor que você...
— Nós lhe daremos um nome, homenzinho — disse Stilgar. — Por ocasião do mihna, no teste do aql.
— O teste da razão — traduziu Jessica. A súbita necessidade da ascendência de Paul dominou todas as outras considerações e ela retrucou: — Meu filho já foi testado com o gom jabbar!
No silêncio que se seguiu, ela percebeu que tocara no coração deles.
— Há muito que não sabemos um do outro — disse Stilgar. — Mas estamos nos demorando demais. O sol não deve nos encontrar em campo aberto. — Caminhou até o homem que Paul golpeara, e indagou: — Jamis, pode viajar?
Um grunhido foi a resposta.
— Surpreendeu-me, foi o que ele fez. Aquilo foi um acidente. Eu posso prosseguir.
— Nada de acidente — disse Stilgar. — Você, junto com Chani, são os responsáveis pela segurança do rapaz. Estas pessoas têm a minha proteção.
Jessica observou o homem, Jamis. Fora dele a voz que discutira com Stilgar do alto das rochas. Dele era a voz com a nuança da morte. E Stilgar julgava necessário reforçar sua autoridade com esse Jamis.
Stilgar observou rapidamente o grupo e fez sinal a dois homens para que se destacassem.
— Larus e Farrukh, vocês devem ocultar nossos rastros. Cuidem para que não deixemos nenhum traço de nossa passagem. Tenham cuidado extra. Temos duas pessoas conosco que não foram bem treinadas. — Voltou-se com a mão erguida, e apontou através da depressão. — Pelotão em linha, com flanqueadores. Movam-se! Devemos estar na Caverna do Espinhaço antes da aurora.
Jessica ajustou o passo ao lado de Stilgar, contando as cabeças.
Havia quarenta Fremen, mais ela e Paul, somando quarenta e dois.
E pensou: “Eles viajam em formação militar. Até mesmo a garota, Chani.”
Paul tomou lugar na fila atrás de Chani, sufocando o sentimento de mágoa por ter sido apanhado por uma garota. Em sua mente, agora, encontrava-se a lembrança trazida pela resposta de sua mãe: “Meu filho foi testado com o gom jabbar!” Percebeu que sua mão comichava com a lembrança da dor.
— Cuidado com onde pisa — sussurrou Chani. — Não roce nos arbustos, ou deixará fiapos de roupa que revelarão sua passagem.
Paul engoliu em seco, assentindo.
Jessica escutava os sons da tropa, ouvindo seus próprios passos e os de Paul, maravilhando-se com o modo como os Fremen se moviam. Havia quarenta pessoas atravessando a depressão, e apenas os sons naturais do lugar podiam ser ouvidos. Vultos fantasmagóricos, com seus mantos ondulando através das sombras. Seu destino: Sietch Tabr, o sietch de Stilgar.
Examinou a palavra em sua mente: sietch. Tratava-se de um termo Chakobsa que permanecera imutável através de incontáveis séculos, desde a antiga linguagem dos caçadores. Sietch: lugar de encontro em ocasião de perigo. As profundas implicações da palavra e da linguagem só agora começavam a registrar-se, após a tensão do encontro.
— Estamos andando bem — comentou Stilgar. — Com a bênção do Shai-hulud, chegaremos à Caverna do Espinhaço antes da alvorada.
Jessica acenou com a cabeça, conservando sua força, sentindo a terrível fadiga que controlava apenas com sua força de vontade... e finalmente admitiu: “Pela força do júbilo.” Sua mente concentrou-se no valor dessa tropa, percebendo o que lhe revelava a respeito da cultura dos Fremen. “Todos eles, uma cultura inteira, treinada em disciplina militar. Que coisa valiosa para um Duque banido!”
Os Fremen eram supremos naquela qualidade que os antigos denominavam spannungsbogen — que pode ser definida como o retardo auto-imposto entre o desejo por uma determinada coisa e o ato de estender a mão para apanhá-la.
— de A Sabedoria do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
Eles se aproximaram da Caverna do Espinhaço ao raiar do dia, esgueirando-se através de uma fenda, na muralha da depressão, era tão estreita que precisavam mover-se de lado para atravessá-la. Jessica viu Stilgar destacar guardas na fraca luz da aurora, e viu-os de relance quando começaram a subir o penhasco.
Paul voltou a cabeça para o alto enquanto caminhava, observando as camadas geológicas do planeta através desse corte em seção reta que se abria em estreita fenda para o céu azul-acinzentado.
Chani puxou-o pelo manto para apressá-lo, dizendo-lhe:
— Rápido, já é quase dia.
— Os homens que subiram acima de nós, o que estão fazendo? — indagou ele sussurrando.
— A primeira vigília do dia — respondeu ela. — Agora apresse-se!
“Uma guarda no lado de fora”, pensou Paul. “Sábio. Mas teria sido ainda mais sábio se tivéssemos nos aproximado deste lugar em grupos separados. Haveria menos chance, então, de perder uma tropa inteira.” Interrompeu o pensamento, percebendo que isso era tática de guerrilha, e lembrando-se do medo em seu pai de que os Atreides se tornassem uma casa guerrilheira.
— Rápido! — pediu Chani.
Apressou o passo ouvindo o sussurro dos mantos atrás. E lembrou-se das palavras do sirat na minúscula Bíblia C.L. de Yueh.
“O Paraíso à minha direita, o Inferno à esquerda e o Anjo da Morte por trás.” A citação passou por sua mente.
Depois de uma curva, a passagem se alargou. Stilgar pôs-se de lado, sinalizando a entrada para um buraco baixo que se abria em ângulos retos.
— Rápido! — disse. — Ficaremos como coelhos engaiolados se uma patrulha nos surpreender aqui.
Paul curvou-se, seguindo Chani para dentro de uma caverna iluminada por uma luz acinzentada e fraca, vinda de algum ponto acima.
— Pode ficar de pé — disse ela.
Ele se levantou, observando o lugar: uma área larga e profunda com um teto abobadado e pouco mais alto do que um homem com a mão levantada. A tropa espalhou-se nas sombras, e Paul viu sua mãe surgir num dos lados, observando as pessoas. Percebia que ela não conseguia se confundir com os Fremen, mesmo que sua roupa fosse idêntica. O modo como se movia... com um certo senso de graça e poder.
— Encontre um lugar para repousar e fique fora do caminho, menino-homem — disse Chani. — Aqui há comida. — E colocou dois bocados embrulhados em folhas sobre sua mão. Cheiravam a especiaria.
Stilgar surgiu atrás de Jessica, dando ordens a um grupo à sua esquerda.
— Recoloquem o selo da entrada no lugar e cuidem de prender a umidade. — Voltou-se para outro Fremen: — Lemil, traga os globos luminosos. — Pegou Jessica pelo braço, dizendo. — Quero lhe mostrar uma coisa, mulher sobrenatural. — E levou-a por uma curva na rocha, em direção a uma fonte de luz.
Jessica encontrou-se olhando para fora, através de uma larga abertura na caverna. Uma abertura situada num ponto alto da parede do penhasco. Olhava em direção a outra depressão, com aproximadamente doze quilômetros de largura, protegida por altas paredes rochosas. Touceiras esparsas de plantas distribuíam-se à sua volta.
Enquanto olhava para a depressão acinzentada pela aurora, o sol se elevou sobre a escarpa distante, iluminando uma paisagem de rochas e areia cor bege-clara. Notou como o sol de Arrakis parecia saltar sobre o horizonte.
“É porque nós desejamos contê-lo”, pensou ela. “A noite é mais segura que o dia.” Sentiu uma saudade extrema de um arco-íris, nesse lugar que nunca vira chuva. “Devo suprimir este tipo de recordações. Elas são uma fraqueza, e não posso mais me permitir fraquezas.”
Stilgar agarrou-lhe o braço, apontando para a depressão.
— Lá! Pode ver?
Olhou na direção indicada, percebendo um movimento: pessoas no fundo da depressão espalhando-se à luz do dia, dentro das sombras do penhasco oposto. A despeito da distância, seus movimentos eram nítidos no ar claro. Ela ergueu o binóculo que estava sob o manto, focalizando as lentes de óleo no povo distante, lenços ondulavam, como um bando de borboletas coloridas.
— Aquele é o lar — disse Stilgar. — Estaremos lá esta noite. — Olhou para a paisagem adiante, coçando o bigode. — Meu povo está trabalhando muito tarde. Isso significa que não há patrulhas por perto. Mandarei um sinal para eles mais tarde, e ficarão preparados para nos receber.
— Sua gente mostra boa disciplina — comentou Jessica. Abaixou o binóculo vendo que Stilgar ainda olhava para eles.
— Eles obedecem à lei da preservação da tribo. É o mesmo modo pelo qual escolhemos o nosso líder. O líder é aquele que for mais forte, aquele que trouxer água e segurança. — Voltou a atenção para o rosto dela.
Ela correspondeu ao olhar, notando os olhos sem traços de branco, as pálpebras manchadas, a barba e o bigode orlados de poeira, a linha do tubo de recolhimento curvando-se das narinas para dentro do traje-destilador.
— Comprometi sua liderança ao derrotá-lo, Stilgar?
— Você não me desafiou.
— É importante que um líder mantenha o respeito ante sua tropa.
— Não é uma daquelas situações com que eu não possa lidar. Quando me derrotou, você derrotou a todos nós. Agora eles esperam aprender com você... o modo sobrenatural... E alguns estão curiosos para ver se pretende me desafiar.
Ela pesou todas as implicações.
— Vencendo-o em combate formal?
Ele assentiu:
— Aconselho-a a não fazer isso, porque eles não a seguiriam. Você não é da areia. Eles perceberam isso durante nossa caminhada noturna.
— Gente prática — comentou ela.
— É verdade — concordou olhando para a depressão. — Conhecemos nossas necessidades. Mas alguns estão pensando profundamente, agora que estamos perto de casa. Estivemos muito tempo fora, trabalhando para entregar nossa quota de especiaria aos comerciantes livres e à amaldiçoada Corporação... que suas faces sejam negras para sempre.
Jessica interrompeu-se no ato de se voltar, olhando para o rosto dele.
— A Corporação? O que tem a ver a Corporação com sua especiaria?
— É a ordem de Liet. Nós conhecemos a razão, mas mesmo assim o gosto é amargo. Subornamos a Corporação com um monstruoso pagamento em especiaria para manter os nossos céus livres de satélites, de modo que ninguém possa espionar o que estamos fazendo na superfície de Arrakis.
Ela considerou suas palavras, lembrando-se de que Paul lhe dissera ser essa uma das prováveis razões para o céu de Arrakis ser limpo de satélites.
— E o que fazem na superfície de Arrakis que não deve ser visto?
— Nós a modificamos... lentamente, mas com segurança... para torná-la adequada à vida humana. Nossa geração não verá isso, nem nossos filhos, ou os filhos de nossos filhos e seus netos... mas um dia virá. — Olhou com olhos velados para a depressão. — Água a céu aberto, plantas verdes altas, e gente caminhando livremente, sem trajes-destiladores.
“Então este é o sonho de Liet-Kynes”, pensou ela, e comentou .
— Subornos são perigosos. Costumam se tornar cada vez maiores, com o tempo.
— Eles aumentam, mas o modo mais lento é o modo mais seguro.
Jessica voltou-se, olhando para a depressão, tentando vê-la do modo como Stilgar a via em sua imaginação. Mas viu apenas as manchas de mostarda das rochas distantes, e um repentino movimento enevoado no céu, acima dos penhascos.
— Ah! — exclamou Stilgar.
A princípio Jessica pensou que fosse um veículo de patrulha, e então percebeu que se tratava de uma miragem. Outra paisagem, flutuando sobre o deserto: areia e um distante ondular de vegetação. Em segundo plano, um verme enorme viajava na superfície, aparentemente com mantos Fremen ondulando em suas costas.
A miragem dissolveu-se.
— Seria melhor cavalgar — comentou Stilgar. — Mas não podemos permitir um produtor dentro desta depressão. Assim, teremos de caminhar esta noite.
“Produtor, a palavra deles para verme”, pensou Jessica.
Mediu a importância daquelas palavras, a declaração de que eles não poderiam “permitir” um verme dentro da depressão. Sabia o que tinha visto na miragem: Fremen cavalgando nas costas de um gigantesco verme. Era necessário um forte controle emocional para não trair o choque que sentira ao pensar nas implicações disso tudo.
— Devemos voltar para junto dos outros — disse Stilgar. — Senão minha gente pode desconfiar por eu estar demorando muito com você. Alguns já estão com inveja de que minhas mãos tenham experimentado seus encantos durante nossa luta na noite passada, na Bacia de Tuono.
— É o bastante! — retrucou Jessica.
— Sem ofensa — disse Stilgar, e sua voz era suave. — Mulheres entre nós não são tomadas contra sua vontade... e com você... — ele encolheu os ombros —... mesmo esta convenção não é necessária.
— Ponha na cabeça que eu era a mulher do Duque — disse, mas sua voz já estava mais calma.
— Como quiser. É hora de selar esta abertura para permitir um relaxamento na disciplina de trajes-destiladores. Minha gente precisa repousar confortavelmente neste dia. Suas famílias lhe permitirão pouco repouso amanhã.
O silêncio caiu entre eles.
Jessica olhou em direção à luz do sol. Ouvira o que pensara ter ouvido na voz de Stilgar? Uma oferta velada de algo mais do que “proteção”? Será que ele precisava de uma esposa? Percebia poder se colocar nesse lugar ao lado dele. Seria uma maneira de terminar com o conflito a respeito da liderança tribal. A mulher adequadamente alinhada com o homem.
Mas o que seria de Paul, então? Quem poderia dizer quais as regras de paternidade aqui? E quanto à filha ainda não nascida, que carregara durante essas semanas? A filha do Duque morto?
Permitiu-se encarar o pleno significado dessa outra criança crescendo dentro dela, percebendo seus verdadeiros motivos ao permitir sua concepção. Sabia quais eram: havia sucumbido àquele impulso profundo compartilhado por todas as criaturas ameaçadas de morte. Um impulso de buscar imortalidade através da prole. O instinto de fertilidade das espécies a dominara.
Olhou para Stilgar, vendo que ele ainda a observava, aguardando uma resposta. “Uma filha nascida aqui, de uma mulher casada com um homem como este. Qual seria o destino dessa filha?”, indagou a si mesma. “Será que ele tentaria limitar as necessidades que se impõem para o destino que uma Bene Gesserit deve seguir?”
Stilgar pigarreou, revelando ter entendido algumas das questões na mente de Jessica.
— O que é importante, para um líder, é o que o torna líder. As necessidades de seu povo. Mesmo que você me ensine os seus poderes, pode chegar o dia em que um de nós precisará desafiar o outro. Eu preferiria outra alternativa.
— Existem outras alternativas? — indagou ela.
— A Sayyadina — disse ele. — Nossa Reverenda Madre está muito velha.
“Sua Reverenda Madre!”
Antes que ela pudesse sondar essa afirmação, ele continuou:
— Eu não estou me oferecendo, necessariamente, como marido. Isso não é nada difícil, já que você é bela e desejável. Mas, se você se tornar uma de minhas mulheres, isso pode levar alguns dos meus jovens a acreditarem que eu estou por demais preocupado com os prazeres da carne para me preocupar com as necessidades da tribo. Mesmo neste momento, eles nos ouvem e observam...
“Um homem que pondera suas decisões, que pensa nas conseqüências.”
— Existem, entre meus jovens, aqueles que chegaram à idade impetuosa. É preciso auxiliá-los durante esse período. Não devo dar razões para que eles me desafiem porque, do contrário, eu teria de matar e aleijar entre eles. Isso não é o procedimento adequado para um líder, se puder ser evitado com honra. Um líder, como pode ver, é uma das coisas que distinguem um povo de uma turba. Ele mantém os limites dos indivíduos. Muito pouca individualidade, e o povo se torna uma turba.
Suas palavras, a profundidade de sua consciência, o fato de que ele falava tanto para ela quanto para aqueles que os ouviam secretamente, forçou-a a reavaliá-lo.
“Ele tem valor”, pensou. “Onde terá aprendido esse equilíbrio interior?”
— A lei que determina nossa forma de escolher um líder é apenas uma lei — disse Stilgar. — Mas não significa que justiça seja sempre algo de que um povo precisa. Aquilo de que realmente necessitamos, agora, é tempo para crescer e prosperar, para espalhar nossa força sobre a terra.
“Quem serão seus ancestrais?”, perguntava Jessica consigo mesma. “De onde virá tal seleção genética?” Ela disse:
— Stilgar, eu o subestimei.
— Essa era a minha suspeita.
— Cada um de nós aparentemente subestimou o outro.
— Eu gostaria de terminar com isso — disse ele. — Gostaria de ter sua amizade e... sua confiança. Gostaria daquele tipo de respeito de um pelo outro que cresce dentro do peito, sem necessidade dos agarramentos do sexo.
— Compreendo — respondeu ela.
— Confia em mim?
— Eu “ouço” sua sinceridade.
— Entre nós a Sayyadina, quando não é a líder formal, ocupa um lugar especial, de honra. Elas ensinam. Elas mantêm a força de Deus aqui dentro. — Ele tocou o peito.
“Agora devo sondar este mistério da Reverenda Madre”, pensou Jessica.
— Você fala de sua Reverenda Madre... e eu ouvi palavras de lenda e profecia.
— Dizem que uma Bene Gesserit e sua prole guardam a chave para o nosso futuro.
— Acredita que sou eu?
Observou-lhe a face, pensando: “O jovem junco morre tão fácil. Os começos são tempos de grande perigo.”
— Não sabemos — respondeu ele.
Ela assentiu com a cabeça, pensando: “Ele é um homem honrado. Deseja que eu lhe dê um sinal, mas não inclinará a balança do destino dizendo-me qual é o sinal.”
Jessica olhou para a depressão lá embaixo, para as sombras douradas e purpúreas, e as vibrações do ar poeirento através da boca da caverna. Sua mente foi subitamente tomada por uma prudência felina. Conhecia o canto da Missionária Protetora, sabia como se adaptar às técnicas de lenda, medo e esperança, usando-as para suas necessidades prementes, mas sentia estranhas mudanças... como se alguém se houvesse introduzido entre esses Fremen, capitalizando o trabalho da Missionária Protetora.
Stilgar pigarreou novamente.
Ela sentia sua impaciência, sabia que o dia avançava e os homens aguardavam para selar essa abertura. Essa era uma ocasião para audácia de sua parte e percebeu do que necessitava: alguma dar-al-hikman, alguma escola de tradução que lhe daria...
— Adab — sussurrou ela.
Sua mente parecia ter girado dentro de si. Reconheceu a sensação com um acelerar do pulso. Nada, em todo o treinamento Bene Gesserit, carregava semelhante sinal de reconhecimento. Só poderia ser a adab, a memória insistente que vem por si mesma.
Entregou-se, permitindo que as palavras fluíssem de sua boca.
— lbn qirtaiba. Tão distante quanto o ponto onde a areia termina. — Esticou o braço para fora do manto, vendo os olhos de Stilgar se arregalarem, ouvindo o ruído de muitos mantos se movendo às suas costas. — Eu vejo um Fremen... com o livro dos exemplos — entoou. — Ele lê para al-Lat, o sol a quem desafiou e subjugou. Ele lê os Sadus do julgamento, e isto é o que ele lê:
“Meus inimigos são como folhas verdes corroídas
Que se colocaram no caminho da tempestade.
Não viste o que fez o nosso Senhor?
Enviou a pestilência entre eles
Que conspiravam contra nós.
Eles são como pássaros espalhados pelo caçador.
Seus planos são como bolor de veneno
Que cada boca deita.”
Um tremor percorreu-lhe o corpo e ela abaixou o braço. Das sombras do interior da caverna chegava-lhe a resposta sussurrada por muitas vozes.
— Seus trabalhos foram derrubados.
— A chama de Deus eleva-se em teu coração — disse ela.
E pensou: “Agora atingimos o canal adequado.”
— O fogo de Deus ilumina — veio a resposta.
Ela acenou.
— Teus inimigos cairão.
— Bi-lakaifa — responderam eles.
No súbito silêncio, Stilgar curvou-se diante dela.
— Sayyadina — disse. — Se o Shai-hulud permitir, então poderá ainda passar no interior e tornar-se uma Reverenda Madre.
“Passar no interior”, pensou ela. “Um modo curioso de se exprimir. Mas o resto se encaixou muito bem no canto.” Sentia uma amargura cínica pelo que acabara de fazer. “Nossa Missionária Protetora raramente falha. Um lugar foi preparado para nós, nesta terra selvagem. A prece do salat esculpiu nosso esconderijo.
Agora... devo representar o papel de Auliya, a Amiga de Deus...
Sayyadina, para os povos selvagens, tão fortemente impressionados com as profecias Bene Gesserit, que até chamam suas sacerdotisas de Reverendas Madres.”
Paul encontrava-se ao lado de Chani, nas sombras da caverna interior. Ainda podia sentir o gosto da comida que ela lhe dera: carne de ave e sementes, tudo ligado com mel de especiaria e envolto em uma folha. Ao provar, ele percebeu que nunca antes havia comido tamanha concentração de essência de especiaria, e sentira um medo momentâneo. Sabia o que essa essência lhe faria — a “mudança da especiaria” capaz de impulsionar sua mente para um novo estado de consciência presciente.
— Bi-lal kaifa — sussurrou Chani.
Olhou para ela, percebendo o espanto com que os Fremen pareciam aceitar as palavras de sua mãe. Apenas o homem chamado Jamis se afastara da cerimônia, destacando-se, com os braços dobrados sobre o peito.
— Duy yakha hin mange — sussurrou Chani. — Duy punra hin mange. — “Eu tenho dois olhos. Eu tenho dois pés.”
E olhou para Paul com uma expressão de espanto.
Paul respirou fundo, tentando controlar a tempestade em seu interior. As palavras de sua mãe haviam se unido ao efeito da essência, e agora ele sentia a voz dela aumentando e diminuindo em seu interior, como as sombras de uma fogueira. E através de tudo sentia o tom sarcástico na voz — conhecia-a tão bem! — mas nada poderia deter essa coisa que começara com um pouco de comida.
“Terrível propósito!”
Podia senti-la, a consciência racial da qual não poderia escapar.
Lá estava aquela clareza absoluta, o influxo de dados, a fria precisão de sua consciência. Abaixou-se no chão, sentando com as costas de encontro à rocha, entregando-se... Sua consciência fluiu para aquela camada fora do tempo, de onde podia observar o próprio tempo, sentindo os caminhos disponíveis, os ventos do futuro... assim como os ventos do passado. A visão monocular do passado, a visão monocular do presente, a visão monocular do futuro. Todas se combinando em uma visão triocular que lhe permitia ver o tempo se tornando espaço.
Havia o perigo, ele sentia, de ultrapassar a si mesmo, e necessitava apoiar-se em sua consciência do presente, sentindo a indistinta deflexão da experiência, o momento fluido, a contínua solidificação daquilo-que-é, no perpétuo-era.
Ao apreender o presente ele sentia, pela primeira vez, a maciça estabilidade do movimento do tempo, em toda parte complicada por correntes mutáveis, ondas, marés e contramarés, como a arrebentação do mar contra falésias rochosas. Isso fornecia-lhe uma nova compreensão de sua presciência, e ele via a fonte do tempo cego, a fonte do erro, com uma sensação imediata de medo.
A presciência, percebia, era uma iluminação que incorporava os limites daquilo que revelava, ao mesmo tempo, era uma fonte significativa de precisão e erro. A intervenção de uma espécie de incerteza de Heisenberg: o dispêndio de energia para revelar aquilo que ele via, mudava o que era visto.
E o que ele via era uma conexão de tempo dentro dessa caverna, um fervilhar de possibilidades focalizadas nesse ponto, onde a mais diminuta ação — o piscar de um olho, uma palavra descuidada, um grão de areia deslocado — movia uma gigantesca alavanca através do universo conhecido. Ele via violência, com seu resultado sujeito a tantas variáveis, que seu mais leve movimento criava vastas mudanças no padrão.
A visão fez com que desejasse congelar tudo em estado de imobilidade, mas isso também seria uma ação, com suas conseqüências.
As incontáveis conseqüências — linhas que se expandiam saindo dessa caverna, e ao longo da maioria dessas linhas ele via o seu próprio corpo morto, com o sangue fluindo de um largo ferimento de faca.
Meu pai, o Imperador Padishah, tinha 72 anos e no entanto não aparentava mais do que 35, no ano em que registrou a morte do Duque Leto e entregou Arrakis de volta aos Harkonnen. Ele raramente aparecia em público usando outra roupa que não o uniforme de Sardaukar e o capacete preto, com o leão imperial em ouro sobre a testa. O uniforme era uma lembrança clara de onde se assentava o seu poder. No entanto, ele não era sempre tão espalhafatoso. Quando queria, ele podia irradiar charme e sinceridade, mas eu freqüentemente me pergunto, nestes dias de hoje, se alguma coisa dele era o que parecia. Penso, agora, que era um homem lutando constantemente para escapar às barras de uma gaiola invisível. Vocês devem se lembrar de que ele era um imperador, o líder pai de uma dinastia que recuava no passado mais indistinto. Todavia, nós lhe negamos um filho legal. Não seria essa a mais terrível derrota que um governante já sofreu? Minha mãe obedeceu às suar Irmãs Superioras naquilo em que Lady Jessica desobedeceu. Qual delas era a mais forte? A História já respondeu a esta pergunta.
— de Casa de meu Pai, escrito pela Princesa Irulan
Jessica acordou em meio à escuridão da caverna, sentindo o remexer dos Fremen à sua volta, respirando o odor acre do traje-destilador. Sua noção de tempo lhe dizia que logo seria noite lá fora, mas a caverna permanecia na escuridão, isolada do deserto pelas coberturas plásticas que prendiam a umidade de seus corpos dentro desse espaço.
Percebia ter-se entregue ao sono completamente relaxante do grande cansaço, e isso sugeria algo de sua avaliação inconsciente quanto à sua segurança pessoal na tropa de Stilgar. Virou-se sobre a rede feita com seu manto e colocou os pés sobre o piso rochoso, calçando as botas de deserto.
“Eu devo me lembrar de prender essas botas no estilo chinela, para auxiliar a ação bombeadora de meu traje-destilador. Há tantas coisas para serem lembradas.”
Ainda podia sentir o gosto da refeição matinal — o bocado de carne de ave e cereal servido dentro de uma folha com mel de especiaria — e percebia que o uso do tempo era invertido aqui: a noite era o tempo das atividades, e o dia a ocasião para o repouso.
“A noite oculta, a noite é segura.”
Desenganchou seu manto dos grampos para rede, colocados no quarto de rocha, remexeu o tecido na escuridão até encontrar a gola e enfiou-se nele.
“Como poderei enviar uma mensagem para as Bene Gesserit?”, perguntou ela a si mesma. “Elas precisam saber a respeito dos dois que escaparam do santuário Arrakeen.”
Globos luminosos acenderam-se no fundo da caverna. Ela viu pessoas movendo-se lá, e Paul entre elas, já vestido e com o capuz caído para trás, revelando o perfil aquilino dos Atreides.
“Ele agira de um modo tão estranho antes que se retirassem”, pensou ela. “Retraído.” Parecia alguém que houvesse escapado da morte, seus olhos vítreos e semicerrados, com o olhar voltado para o interior. Fizera com que pensasse em seu aviso a respeito da dieta impregnada de especiaria: viciava.
“Existirão efeitos secundários? Ele dissera alguma coisa com relação à sua faculdade presciente, mas permanecera estranhamente silencioso quanto ao que vira.”
Stilgar surgiu das sombras à sua direita, caminhando em direção ao grupo debaixo dos globos luminosos. Ela percebeu como ele cofiava a barba, e sua atitude felina.
Um medo abrupto atingiu Jessica quando seus sentidos captaram as tensões visíveis nas pessoas reunidas em torno de Paul as posições ritualísticas, os movimentos rígidos.
— Eles têm a minha proteção! — rugiu Stilgar.
Jessica reconheceu o homem que Stilgar confrontava: Jamis!
Viu a raiva de Jamis, a posição contraída de seus ombros.
“Jamis, o homem que Paul derrotou.”
— Você conhece a regra, Stilgar — dizia Jamis.
— Quem a conhece melhor? — indagou Stilgar, e ela percebeu o tom conciliador em sua voz, a tentativa de apaziguar alguma coisa.
— Eu escolho o combate — grunhiu Jamis.
Jessica atravessou correndo a caverna e segurou Stilgar pelo braço.
— O que é isso? — indagou.
— E a lei de amtal — respondeu Stilgar. — Jamis está exigindo o direito de testar a sua parte na lenda.
— Ela deve ter um defensor — disse Jamis. — Se o seu defensor vencer, a verdade será provada. Mas dizem... — E ele olhou para as pessoas reunidas... — que ela não necessitará de um defensor entre os Fremen. O que significa que traz consigo o seu próprio defensor.
“Ele está falando em combate individual com Paul!”, pensou Jessica.
Soltou o braço de Stilgar e deu um passo adiante.
— Sou sempre a minha própria defensora. O significado é suficientemente simples para...
— Não nos ensine os nossos costumes! — retrucou Jamis. — Não sem antes apresentar mais provas do que as que já vi. Stilgar poderia ter lhe contado antes tudo que você disse esta manhã. Ele pode ter enchido a sua mente de instruções, e você pode ter repetido para nós, esperando causar uma falsa impressão.
“Posso dominá-lo, mas isso poderia entrar em conflito com a maneira como eles interpretam a lenda.” E novamente ela se admirou com a maneira como o trabalho da Missionária Protetora fora distorcido nesse planeta.
Stilgar olhou para Jessica, falando em voz baixa, mas cuidadosamente controlada para chegar até a extremidade do grupo.
— Jamis é pessoa de guardar rixas, Sayyadina. Seu filho o derrotou e...
— Foi um acidente! — gritou Jamis. — A força da bruxa agiu na Bacia de Tuono, e eu provarei isso agora!
— ... e eu mesmo já o derrotei — continuou Stilgar. — Ele busca, com seu desafio tahaddi, atingir a mim, além de seu filho. Existe demasiada violência em Jamis para torná-lo bom líder, demasiada ghafla, a distração. Ele entrega sua boca às regras, e seu coração à sarfa, o afastamento. Não, ele nunca daria um bom líder. Eu o tenho conservado por todo este tempo porque é útil em uma luta, mas quando se deixa dominar por seu ódio, torna-se perigoso para sua própria sociedade.
— Stilgar-r-r-r-r!” — rugiu Jamis.
Jessica percebia o que Stilgar estava fazendo, ele tentava enfurecer Jamis para afastar o desafio de Paul.
Stilgar encarou Jamis, e novamente Jessica ouviu aquele tom apaziguador em sua voz trovejante.
— Jamis, ele é apenas um garoto. Ele é...
— Você o chamou de homem — retrucou Jamis. — Sua mãe diz que ele passou pelo teste do gom jabbar. Ele é bem desenvolvido e tem excesso de água. Aqueles que carregaram a mochila deles dizem que há dois litrejons de água nela. Litrejons! E nós sugando nossos bolsões de recolhimento, no instante em que mostram uma gota de umidade.
Stilgar olhou para Jessica.
— É verdade? Existe água em sua mochila?
— Sim.
— Litrejons de água?
— Dois litrejons.
— Para que seria usada essa riqueza?
“Riqueza?”, pensou ela. Sacudiu a cabeça sentindo a frieza na voz.
— Onde eu nasci a água caía do céu e corria sobre a terra, em largos rios — explicou ela. — Havia oceanos tão largos que você não poderia ver a outra praia. Eu não fui treinada em sua disciplina de água. Nunca precisei pensar desse modo antes.
Um murmúrio de exclamação elevou-se das pessoas ao redor: Água caindo do céu... e fluindo sobre a terra.
— Sabia que existem aqueles entre nós que perderam o conteúdo de seus bolsões de recolhimento, por acidente, e estarão em sérios apuros antes que alcancemos Tabr esta noite?
— Como eu poderia saber? Se precisam, pode dar a eles água da nossa mochila.
— Era isso que tencionava fazer com aquela riqueza?
— Eu tencionava usá-la para salvar uma vida — respondeu Jessica.
— Então nós aceitamos sua bênção, Sayyadina.
— Ela não vai nos comprar com água — resmungou Jamis. — Nem você conseguirá me enfurecer, Stilgar. Posso ver que está tentando me fazer desafiá-lo, antes que tenha provado minhas palavras.
Stilgar encarou Jamis.
— Está mesmo resolvido a forçar essa luta contra uma criança, Jamis? — Sua voz era baixa, maliciosa.
— Ela deve ser defendida.
— Mesmo se encontrando sob minha proteção?
— Eu invoco a lei de amtal. É o meu direito.
Stilgar assentiu:
— Então, se o garoto não cortá-lo, você responderá ante a minha faca em seguida. E desta vez eu não conterei minha lâmina como fiz antes.
— Não pode permitir isso — disse Jessica. — Paul é apenas...
— Não deve interferir, Sayyadina — respondeu Stilgar. — Oh, eu sei que pode me dominar, e portanto pode dominar qualquer um de nós, mas não pode vencer a todos nós juntos. Assim deve ser, é a lei de amtal.
Jessica ficou em silêncio, olhando para ele na luz esverdeada dos globos luminosos, percebendo a rigidez demoníaca que tomara conta de sua expressão. Voltou sua atenção para Jamis, vendo sua expressão pensativa: “Eu já vi isto antes”, pensou. “Ele medita. É do tipo silencioso, que se prepara interiormente. Eu devia estar preparada.”
— Se ferir o meu filho — disse ela — terá que me enfrentar. Eu o desafio agora! Eu o sangrarei em uma junta...
— Mãe! — Paul adiantou-se, tocando-lhe a manga. — Talvez se eu explicar para Jamis como...
— Explicar! — resmungou Jamis.
Paul ficou em silêncio, olhando para o homem. Não sentia medo dele. Jamis parecia desajeitado em seus movimentos e fora derrubado muito facilmente, durante o encontro noturno na areia.
Mas Paul ainda sentia a fervilhante conexão temporal dessa caverna, ainda recordava suas visões prescientes, visões de si mesmo morto por uma facada. E havia tão poucas trilhas para escapar daquela visão...
Stilgar avisou:
— Sayyadina, você deve recuar agora para onde...
— Pare de chamá-la de Sayyadina! — gritou Jamis. — Isso ainda terá que ser testado. Ela conhece a prece! E daí? Toda criança entre nós a conhece.
“Ele já falou o bastante”, pensou Jessica. “Tenho a chave para ele, e posso imobilizá-lo com uma única palavra.” Hesitou. “Mas não posso deter todos eles.”
— Você responderá a mim, então — disse, afinando a voz num tom envolvente, com um pequeno chiado e uma contenção da respiração no final.
Jamis olhou para ela, o medo estampado em sua face.
— Eu lhe ensinarei o que é agonia — continuou Jessica no mesmo tom. — Lembre-se disso enquanto lutar. Você sofrerá tal agonia que o gom jabbar lhe parecerá uma recordação feliz. Vai contorcer-se em todo o seu...
— Ela tenta lançar-me um feitiço — exclamou Jamis ofegando. Colocou o punho fechado ao lado da orelha. — Eu exijo que seja silenciada!
— Assim seja — concordou Stilgar, lançando um olhar de advertência para Jessica. — Se falar de novo, Sayyadina, saberemos que está usando sua bruxaria, e você será punida. — Fez sinal para que ela recuasse.
Jessica sentiu mãos a puxá-la, ajudando-a a retroceder, e notou que eram gentis. Viu Paul sendo separado da turba, a garota com cara de fada, Chani, cochichando em seu ouvido enquanto apontava na direção de Jamis. Um círculo se formou dentro da tropa. Mais globos luminosos foram trazidos e regulados na faixa do amarelo.
Jamis entrou no círculo, tirou o manto e jogou-o para alguém na multidão. Ficou à espera, usando o traje-destilador lustroso e cinzento que parecia remendado e marcado por costuras e pregas. Por um momento ele inclinou a boca em direção ao ombro, bebendo do tubo da bolsa recolhedora. Depois empertigou-se, retirou o traje-destilador, entregando-o cuidadosamente para alguém no círculo e ficou usando apenas uma tanga, um tipo de tecido apertado envolvendo-lhe os pés, e com uma faca cristalina na mão direita.
Jessica viu a menina Chani ajudando Paul, viu quando ela colocou uma faca cristalina em sua mão. Ele testou o peso e o equilíbrio da arma. Jessica procurou pensar no fato de que Paul fora treinado em prana e bindu, nervo e fibra. Aprendera a lutar em uma escola mortífera, tendo por professores homens como Duncan Idaho e Gurney Halleck, homens que já haviam se transformado em lendas durante suas vidas. O rapaz conhecia os modos tortuosos das Bene Gesserit, e parecia ágil e confiante.
“Mas ele tem apenas quinze anos, e não tem escudo. Devo parar com isso. Deve haver algum modo de...” Olhou para cima e percebeu Stilgar a vigiá-la.
— Você não pode detê-lo — disse ele. — Não fale.
Ela colocou a mão sobre a boca. “Eu plantei o medo na mente de Jamis. Talvez isso o retarde um pouco... Se ao menos eu pudesse rezar, rezar...”
Paul encontrava-se só agora, entrando no círculo, e usando apenas os calções de luta que vestia por baixo do traje-destilador. Segurava a faca cristalina na mão direita, os pés descalços sobre a rocha coberta de areia. Idaho o advertira inúmeras vezes: “Quando em dúvida quanto à superfície, pés descalços são o melhor.” E havia as palavras de Chani, ainda frescas em sua consciência:
— “Jamis golpeia para a direita com sua faca, depois que um golpe é aparado. É um hábito dele, que todos nós já observamos. E ele vai visar os olhos, tentando aproveitar uma piscadela para atingi-lo. Ele também pode lutar com ambas as mãos, cuidado com uma mudança da faca de uma mão para a outra.”
Mas a recordação mais forte na mente de Paul, tão forte que ele a sentia com todo o seu corpo, eram os treinamentos e o mecanismo de reação instintiva forjados dia após dia, hora após hora, na prática de solo.
As palavras de Gurney Halleck estavam lá para serem lembradas: “O bom lutador de faca usa a ponta, a lâmina e o protetor do cabo, simultaneamente. A ponta também pode cortar, a lâmina também pode penetrar, e o protetor pode servir para prender a lâmina de seu adversário.”
Olhou para a faca cristalina. Não havia protetor no encaixe da lâmina com o cabo, apenas um delgado anel circular, com as extremidades proeminentes, para proteger a mão. Além disso, percebia desconhecer a tensão de quebra dessa lâmina. Nem mesmo sabia se ela poderia ser partida.
Jamis começou a deslizar para a direita, ao longo da extremidade do círculo oposta a Paul.
Paul agachou-se, percebendo não ter escudo, mas ainda assim com o treinamento ajustado para lutar com aquele campo sutil ao seu redor. Fora treinado para reagir, na defesa, com a maior velocidade, enquanto seu ataque seria controlado, com a lentidão necessária para penetrar no escudo do inimigo. A despeito dos avisos constantes de seus treinadores para não depender inconscientemente da redução de velocidade, causada pelo escudo, sabia agora que isso era parte de si mesmo.
Jamis pronunciou um desafio ritual.
— Que a tua faca lasque e quebre!
“Então esta faca pode quebrar”, pensou.
Consolou-se com o fato de que Jamis também estava sem escudo. Todavia o homem não fora treinado com seu uso, e não tinha, portanto, as inibições de um lutador acostumado ao escudo.
Paul olhou para Jamis no outro lado do círculo. O corpo do homem parecia um chicote, cheio de nós sobre um esqueleto seco. Sua faca cristalina tinha um brilho amarelo-leitoso sob a luz dos globos luminosos. O medo percorreu-lhe o corpo. Sentia-se subitamente sozinho e nú, colocado sob a luz amarela dentro desse círculo de gente. A presciência alimentara seu conhecimento com incontáveis experiências, sugerindo as correntes mais fortes do futuro e as cadeias de decisões que as guiavam, mas isso aqui era o “agora-real”. Isso era a morte, suspensa de um infinito número de minúsculos contratempos.
Qualquer coisa poderia alterar o rumo do futuro aqui, ele percebia. Alguém tossindo na tropa de assistentes, uma distração. Uma variação no brilho de um globo luminoso, uma sombra enganadora.
“Estou com medo”, disse ele para si mesmo.
Circulou cuidadosamente na direção oposta a Jamis, repetindo silenciosamente a ladainha Bene Gesserit contra o medo: “O medo é o assassino da mente...” Foi como um banho frio, lavando seu corpo. Sentiu os músculos se descontraindo, se ajustando, prontos para a luta.
— Vou embainhar minha faca em seu sangue — rugiu Jamis. E no meio da última palavra atacou.
Jessica viu o movimento, sufocando um grito.
Onde o homem golpeara havia somente ar, e Paul se encontrava agora por trás de Jamis, com uma oportunidade clara de atingi-lo nas costas.
“Agora, Paul! Agora!”, gritava mentalmente Jessica.
O movimento de Paul foi lentamente controlado, lindamente fluido, mas tão vagaroso que deu a Jamis a oportunidade de se esquivar, recuando e virando-se para a direita.
Paul também recuou, agachado.
— Primeiro precisa achar meu sangue — disse ele.
Jessica reconhecia o ritmo do lutador de escudo em seu filho, percebendo como isso podia ser uma faca de dois gumes. As reações do rapaz eram as de um jovem treinado até um máximo de eficiência como essa gente nunca conhecera. Infelizmente, seu ataque fora treinado também, e condicionado pela necessidade de penetrar uma barreira de escudo. Um escudo repeliria um golpe rápido, admitindo apenas um contragolpe enganadoramente lento.
Era necessário controle e astúcia para penetrar um escudo.
“Será que Paul percebe o que está acontecendo?”, pensou ela. “Ele precisa.”
Novamente Jamis atacou, seus olhos negros como tinta cintilando, seu corpo um borrão amarelo sob os globos luminosos.
E novamente Paul escapou, para retornar muito lento, no ataque.
Outra vez...
E mais outra...
E outra...
Em todas as vezes, o contragolpe chegava um instante atrasado.
Jessica percebia algo que ela esperava que escapasse à atenção de Jamis. As reações defensivas de Paul eram muito rápidas, mas ele sempre se movia no ângulo exato que seria necessário se um escudo estivesse ajudando-o a desviar parte do golpe de Jamis.
— Seu filho está brincando com aquele pobre tolo? — indagou Stilgar. Acenou para que ela ficasse em silêncio antes que pudesse responder:
— Desculpe, deve ficar calada.
Agora os dois lutadores circulavam um em torno do outro: Jamis com a faca na extremidade do braço esticado, inclinada levemente para cima. Paul agachado, com a faca abaixada.
Novamente Jamis atacou e desta vez virou-se para a direita, onde Paul estivera se esquivando.
Em vez de recuar, escapando, Paul atingiu a mão que empunhava a faca do adversário com a ponta de sua própria lâmina. Então fugiu, virando-se para a esquerda, grato pela advertência de Chani.
Jamis recuou para o centro do círculo, esfregando a mão ferida.
O sangue gotejou por um instante, depois parou. Os olhos do homem estavam arregalados — dois buracos negro-azulados estudando Paul com prudência, na luz fraca dos globos luminosos.
— Ah, esta doeu — murmurou Stilgar.
Paul agachou-se, pronto para enfrentar outra investida, e como fora treinado a proceder, depois de tirar o primeiro sangue, indagou:
— Você desiste?
— Ah! — gritou Jamis.
Um murmúrio furioso elevou-se da assistência.
— Parem! — gritou Stilgar. — O rapaz não conhece nossas regras. — Falou então para Paul: — Não pode haver desistência no desafio do tahaddi. A morte é o resultado.
Jessica viu seu filho engolir em seco, e pensou: “Ele nunca matou um homem desse modo... no calor de uma briga de faca. Será que pode fazê-lo?”
Paul circulou lentamente para a direita, pressionado pelo movimento de Jamis. O conhecimento presciente das fervilhantes variáveis de tempo existentes nessa caverna vinha atormentá-lo agora.
Sua nova compreensão revelava existirem muitas decisões, excessivamente comprimidas nessa luta, para que qualquer seqüência futura pudesse mostrar-se claramente. Variáveis acumulando-se sobre variáveis — era por esse motivo que essa caverna aparecia como uma junção indistinta em seu caminho. Como uma gigantesca rocha em meio a uma enchente, criando redemoinhos na correnteza em redor.
— Acabe com isso, garoto! — murmurou Stilgar. — Não brinque com ele.
Paul avançou lentamente no anel, confiando em sua própria vantagem quanto à velocidade.
Jamis recuava à medida que a compreensão se fazia em sua mente — este não era nenhum estrangeiro, fraco e tolo, no anel tahaddi, presa fácil para a faca cristalina de um Fremen.
Jessica via a marca do desespero no rosto do homem. “Agora é o momento em que ele se torna mais perigoso. Agora ele está desesperado, e pode fazer qualquer coisa. Percebe que esta não é uma criança de seu próprio povo, mas uma máquina lutadora, treinada desde que nasceu. Agora o medo que plantei em sua mente começará a crescer.”
Encontrou-se sentindo pena de Jamis, uma emoção temperada pela consciência do perigo imediato para seu filho.
“Jamis pode fazer qualquer coisa... qualquer coisa imprevisível.”
Naquele instante ela cogitou se Paul teria vislumbrado esse futuro, se estaria revivendo essa experiência. Viu o modo como Paul se movimentava, as gotas de suor em seu rosto e em seus ombros, a prudência visível no fluir de seus músculos. E pela primeira vez ela sentiu, sem compreender, o fator de incerteza no dom do filho.
Ele pressionava a luta agora, circulando ao redor do adversário, mas sem atacar. Percebera o medo em seu oponente e a memória da voz de Duncan Idaho fluía em sua consciência: “Quando seu adversário o temer, é o momento de dar rédeas a esse medo, dar-lhe tempo para se acumular. Deixe que ele se transforme em terror.
O homem aterrorizado luta contra si mesmo. Finalmente, ele ataca em desespero, e esse é o momento mais perigoso. Todavia, pode-se ter certeza de que o homem aterrorizado geralmente cometerá um erro fatal. Você está sendo treinado aqui para detectar esses erros e usá-los.”
As pessoas na caverna começaram a murmurar.
“Eles pensam que Paul está brincando com o homem”, considerou Jessica. “Acham que Paul está sendo desnecessariamente cruel.”
Mas percebia também a excitação do grupo, a maneira como apreciavam o espetáculo. E também podia ver a pressão acumulando-se sobre Jamis. O momento em que esta se tornou demasiada para que ele a suportasse foi tão óbvio para ela quanto para Jamis... ou para Paul.
Jamis saltou alto, golpeando para baixo com a mão direita, que no entanto estava vazia. A faca cristalina encontrava-se agora em sua mão esquerda.
Jessica se assustou.
Mas Paul fora avisado por Chani: “Jamis luta com ambas as mãos.” Além disso, a meticulosidade de seu treinamento considerara esse truque: “Fique atento para a faca e não para a mão que a segura”, avisara Gurney Halleck diversas vezes. “A faca é muito mais perigosa que a mão, e a faca pode estar em ambas as mãos.”
E Paul percebera o erro de Jamis: fraca movimentação com os pés, fazendo passar o tempo de uma batida de coração antes que o homem se recuperasse do salto. Um salto destinado a confundir Paul e ocultar a mudança da faca.
Exceto com relação à luz amarela baixa dos globos luminosos, e aos olhos tintos dos espectadores, era exatamente como uma sessão de prática de solo. Escudos não contam quando o próprio movimento do corpo pode ser usado contra ele. Paul trocou a faca de mão, num movimento rápido, escorregou de lado e impulsionou a lâmina para cima, no ponto em que o peito de Jamis descia. Então recuou, para ver o homem tombar.
Jamis caiu como um boneco flácido, o rosto no chão. Deu um último suspiro e virou o rosto na direção de Paul, depois ficou imóvel no piso de rocha. Os olhos sem vida olhavam no vazio como contas de vidro negro.
“Matar com a ponta não tem requinte”, dissera Idaho uma vez. “Mas não permita que isso contenha sua mão quando a oportunidade se apresentar.”
A tropa avançou, enchendo o círculo e puxando Paul para o lado. Eles se agacharam ocultando Jamis, em frenética atividade. Daí a pouco, um grupo saiu apressado em direção às profundezas da caverna, carregando uma carga embrulhada num manto.
Onde havia um corpo no piso rochoso não restava nada agora.
Jessica pressionou para a frente, caminhando em direção ao filho. Sentiu-se nadando num mar de corpos fedorentos, cobertos por mantos, uma turba estranhamente silenciosa.
“Agora é o momento terrível”, pensou. “Ele matou um homem, em clara superioridade de mente e músculos. Não deve aprender a apreciar tal vitória.”
Abriu caminho através do restante do grupo, chegando ao pequeno espaço aberto onde dois Fremen barbudos ajudavam Paul a colocar o traje-destilador.
Jessica observou seu filho, notando que os olhos de Paul pareciam brilhantes. Ele respirava pesadamente, permitindo que o ajudassem em vez de ajudá-los.
— Ele contra Jamis, e nenhuma marca nele — murmurou um dos homens.
Chani colocara-se ao lado, os olhos fixos em Paul. Jessica notou a excitação da garota, a admiração no rosto de fada.
“Deve ser feito agora, e com rapidez”, pensou Jessica.
Reuniu o máximo de desdém em sua voz e em suas maneiras, dizendo:
— Bem, como se sente sendo um assassino?
Paul ficou rijo, como se acabasse de receber uma bofetada. Encarou o olhar frio de sua mãe, e seu rosto enrubesceu.
Involuntariamente, olhou para o local onde estivera o corpo de Jamis.
Stilgar abriu caminho até chegar ao lado de Jessica, voltando das profundezas da caverna para onde fora levado o corpo de Jamis. Falou com Paul, num tom amargo e controlado:
— Quando chegar a ocasião para me desafiar, e tentar o meu burda, não pense que vai brincar comigo do modo como brincou com Jamis.
Jessica percebeu o modo como suas próprias palavras, e as de Stilgar, atingiam Paul, fazendo o trabalho duro sobre o rapaz. O engano cometido por essa gente servira agora para um bom propósito. Ela olhou os rostos ao redor, como Paul estava fazendo, vendo o que ele via. Admiração, sim, e medo... até um pouco de aversão. Olhou para Stilgar, notando seu fatalismo, sabendo o que ele pensava da luta.
Paul encarou sua mãe.
— Você sabe como foi.
Ela percebeu o retorno da sanidade, o remorso em sua voz, e olhou para o resto da tropa, dizendo:
— Paul nunca matou um homem com faca.
Stilgar encarou Jessica, seu rosto revelando descrença.
— Eu não estava brincando com ele — disse Paul, colocando-se diante de sua mãe enquanto endireitava o caimento do manto.
Olhou para a mancha escura do sangue de Jamis no piso da caverna.
— Eu não queria matá-lo.
Jessica viu a compreensão chegar lentamente em Stilgar, percebeu seu alivio enquanto ele alisava a barba, com a mão cheia de veias proeminentes. Ouviu os murmúrios de compreensão se espalhando no grupo.
— Foi por isso que lhe pediu para desistir — comentou Stilgar. — Eu percebo agora. Nossos costumes são diferentes, mas você verá que há sentido neles. Pensei que havíamos admitido um escorpião em nosso meio. — Hesitou, e então acrescentou: — E eu não vou chamá-lo de garoto outra vez.
Uma voz gritou do meio da tropa.
— Ele precisa de um nome, Stil.
Stilgar acenou, alisando a barba.
— Vejo força em você... como a força embaixo de uma pilastra... — Fez nova pausa, depois: — Você será conhecido, entre nós, como Usul, a base da pilastra. Este será seu nome secreto, seu nome na tropa. Nós, do Sietch Tabr, poderemos usá-la, mas ninguém de fora deve conhecê-lo... Usul.
Murmúrios percorreram novamente a tropa.
— Uma boa escolha esta... forte... nos trará sorte. — E Jessica sentiu a aceitação, sabendo-se incluída com seu campeão. Ela era, de fato, a Sayyadina.
— Agora, qual o nome de adulto que você escolhe para que o chamemos abertamente? — indagou Stilgar.
Paul olhou para sua mãe, depois de volta para Stilgar. Trechos e pedaços desse momento registravam-se em sua memória presciente, mas ele sentia as diferenças como se fossem algo físico, uma pressão a forçá-lo através de uma porta estreita, representando o presente.
— Como chamam entre vocês o pequeno rato, o rato que salta? — indagou, lembrando-se do movimento que vira na Bacia Tuono. Ele indicou com a mão.
Um riso soou na tropa.
— Nós o chamamos Muad'dib — respondeu Stilgar,
Jessica assustou-se. Era o nome que Paul lhe dissera, ao falar que os Fremen iriam aceitá-lo e chamá-lo assim. Sentia um súbito medo de seu filho, e por seu filho.
Paul engoliu em seco. Sentia como se houvesse desempenhado esse papel por vezes incontáveis em sua mente... e no entanto... havia diferenças. Podia ver a si próprio, equilibrado num vertiginoso cume, tendo experimentado muito e possuindo um enorme estoque de conhecimentos. No entanto, tudo ao seu redor era como um abismo.
E novamente recordou-se da visão das legiões fanáticas, seguindo a bandeira verde e negra dos Atreides, pilhando e queimando através do universo em nome de seu profeta Muad'Dib.
“Isso não pode acontecer”, disse para si mesmo.
— É esse o nome que deseja, Muad'Dib? — indagou Stilgar.
— Eu sou um Atreides — sussurrou Paul, e então falou alto: — Não é justo que eu abdique, inteiramente, do nome que me foi dado por meu pai. Eu poderia ser conhecido entre vocês como Paul Muad'Dib?
— Você é agora Paul Muad'Dib — disse Stilgar.
E Paul pensou: “Isso não estava na visão. Eu fiz algo diferente.”
Entretanto, sentia o abismo permanecer ao seu redor.
Novamente os murmúrios percorreram a tropa, enquanto os homens se voltavam, uns para os outros.
— ... Não podia pedir mais... É a lenda... certeza... Lisan al-Gaib... Lisan al-Gaib...
— Vou dizer-lhe uma coisa a respeito de seu novo nome — explicou Stilgar. — A escolha nos agrada. O Muad'Dib é sábio nas maneiras do deserto. O Muad'Dib cria sua própria água. O Muad'Dib se oculta do sol e viaja no frio da noite. O Muad'Dib é fértil, e se multiplica sobre a terra. O Muad'Dib é chamado “instrutor de meninos”. Essa é uma poderosa base sobre a qual pode construir sua vida, Paul Muad'Dib, que é Usul, entre nós. Nós lhe damos as boas-vindas.
Stilgar tocou a testa de Paul, com a palma de uma das mãos, depois abraçou-o, murmurando:
— Usul.
Quando Stilgar o soltou, outro membro da tropa abraçou Paul, repetindo seu nome, e ele foi passando, de abraço em abraço, através de todo o grupo, ouvindo vozes e diferentes tonalidades: — Usul... Usul... Usul... Usul. — Já podia reconhecer alguns.
E lá estava Chani, que pressionou a face contra a sua, enquanto o abraçava e dizia o seu nome.
Daí a pouco Paul encontrava-se novamente diante de Stilgar, que disse:
— Agora você é dos Ichwan Bedwine, nosso irmão. Seu rosto endureceu e ele acrescentou, com voz de comando: E agora, Paul Muad'Dib, aperte esse traje-destilador. — Olhou para Chani. — Chani! Os tampões de nariz de Paul Muad'Dib possuem o pior encaixe que já vi! Acho que lhe ordenei que cuidasse disso!
— Eu não tinha o material, Stil — respondeu ela. — Há os de Jamis, é claro, mas...
— Basta!
— Então eu dividirei os meus. Posso me arranjar com apenas um, até que...
— Você não fará isso. Sei que há sobressalentes entre nós. Onde estão os sobressalentes? Somos uma tropa unida, ou um bando de selvagens?
Mãos se estenderam oferecendo objetos duros e fibrosos. Stilgar selecionou quatro, e entregou-os a Chani. — Ajuste esses para Usul e Sayyadina.
Uma voz se elevou da retaguarda da tropa.
— E quanto à água, Stil? E quanto aos litrojons no embrulho deles?
— Eu sei de sua necessidade, Faro. — Stilgar olhou para Jessica, e ela acenou, assentindo.
— Divida um daqueles entre os que necessitam — disse Stilgar. — Mestre d'água!... onde está o mestre d'água? Ah, Shimoom, cuide de medir o que for necessário. O necessário, e nada mais. Esta água é propriedade do dote da Sayyadina, e será paga no sietch de acordo com as taxas de campo, menos as cotas de carregamento.
— O que é “pagamento de acordo com as taxas de campo”? indagou Jessica.
— Dez para um — respondeu Stilgar.
— Mas...
— É uma regra sábia, como terá oportunidade de ver.
Um som de mantos em movimento marcou a atividade no final da tropa, enquanto os homens se voltavam para buscar a água.
Stilgar ergueu a mão e fez-se silêncio.
— Quanto a Jamis, ordeno uma cerimônia completa. Jamis era nosso companheiro e irmão de Ichwan Bedwine. Não nos afastaremos sem o devido respeito para com aquele que provou a nossa sorte em seu desafio tahaddi. Eu invoco os ritos... ao pôr-do-sol, quando a escuridão vier para cobri-lo.
Paul ouviu essas palavras e sentiu-se mergulhar no abismo uma vez mais... tempo cego. Não havia passado ocupando o futuro, em sua mente... exceto... exceto... que ele ainda podia sentir a bandeira verde e negra dos Atreides ondulando... em algum lugar adiante... ainda podia ver as espadas ensangüentadas do jihad, e as legiões de fanáticos.
“Não vai ser assim”, disse ele para si mesmo. “Não posso permitir.”
Deus criou Arrakis para ensinar aos fiéis.
— de A Sabedoria do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
Na quietude da caverna, Jessica ouvia o roçar da areia sobre a pedra enquanto as pessoas se moviam, os distantes chamados dos pássaros que Stilgar dissera serem sinais de seus sentinelas.
Os grandes selos plásticos haviam sido removidos das aberturas da caverna. Podia ver a marcha das sombras do entardecer sobre o lábio rochoso à sua frente, e a depressão além. Sentia que a luz do dia os abandonava, sentia o calor seco, assim como as sombras. Sabia que sua percepção treinada logo lhe daria o que esses Fremen obviamente possuíam: a capacidade de sentir até mesmo a mais leve mudança na umidade do ar.
Como eles haviam corrido para ajustar seus trajes-destiladores, quando a caverna fora aberta!
Nas profundezas da caverna alguém começou a cantar.
“Ima trava okolo! I korenja okolo!”
Jessica traduziu em silêncio: “Estas são as cinzas! E estas são as raízes!”
A cerimônia fúnebre para Jamis estava começando.
Olhou para o poente Arrakeen, para as faixas sucessivas de cores no céu. A noite começava a invocar suas sombras, ao longo das rochas e dunas distantes.
E, entretanto, o calor persistia.
Calor que forçava seus pensamentos em direção à água, e ao fato observado de que esse povo inteiro pudera ser treinado a sentir sede a intervalos determinados.
Sede.
Podia relembrar as ondas iluminadas pela lua, em Caladan, lançando mantos brancos sobre as rochas... e o vento pesado de umidade. Aqui, a brisa que tocava sua vestimenta secava os trechos de pele exposta na testa e nas maçãs do rosto. Os novos tampões de nariz irritavam-na e ela tornou-se inteiramente consciente do tubo que descia através de seu rosto, para dentro do traje, recuperando a umidade de sua respiração.
0 próprio traje era uma caixa de suor.
— Seu traje será mais confortável quando seu corpo estiver ajustado a um conteúdo menor de água — dissera Stilgar.
Sabia que ele estava certo, mas isso não tornava esses momentos nem um pouco mais confortáveis. A preocupação inconsciente com a água, nesse lugar, pesava em sua mente. “Não”, ela se corrigiu. “Era preocupação com umidade.”
E isso era uma questão bem mais sutil e profunda.
Ouviu passos que se aproximavam e virou-se para ver Paul sair das profundezas da caverna, seguido por Chani.
“Eis outra questão”, pensou Jessica. “Paul precisa ser advertido em relação a essas mulheres. Uma dessas mulheres do deserto não serviria como esposa para um Duque. Como concubina sim, mas não como esposa.”
Então se admirou com seu próprio modo de pensar. “Terei sido contaminada por seus esquemas?” Como havia sido bem condicionada! “Sou capaz de pensar nas necessidades conjugais da realeza, sem nem uma vez considerar o meu próprio concubinato. Todavia... eu era mais que uma concubina.”
— Mãe.
Paul parou diante dela, Chani ao seu lado.
— Mãe, você sabe o que eles estão fazendo lá atrás?
Jessica fitou a mancha negra dos olhos dele, por baixo do capuz.
— Creio que sim.
— Chani me mostrou... porque se supõe que eu deva ver e dar minha... permissão para a pesagem da água.
Jessica olhou para Chani.
— Eles recuperariam a água de Jamis — explicou ela, a voz saindo anasalada através dos tampões do nariz. — É a regra. A carne pertence à pessoa, mas sua água pertence à tribo... exceto em combate.
— Eles dizem que a água é minha — disse Paul.
Jessica se perguntou por que isso a fazia subitamente alerta e cautelosa.
— A água de combate pertence ao vencedor — continuou Chani. — É porque você tem de lutar em aberto, sem trajes-destiladores. O vencedor tem de recuperar a água que perdeu durante a luta.
— Não quero a água dele — murmurou Paul. Sentia-se parte de muitas imagens movendo-se simultaneamente, de um modo fragmentado, que era desconcertante para sua visão interior. Não tinha certeza quanto ao que iria fazer, mas de uma coisa estava certo: não queria a água destilada da carne de Jamis.
— É... água — disse Chani.
Jessica admirou o modo como ela dissera “água”. Tanto significado num som tão simples. Um ditado Bene Gesserit veio-lhe à mente: “A sobrevivência é a habilidade de nadar em águas estranhas.” E ela pensou: “Paul e eu precisamos encontrar as correntes e os padrões nessas águas estranhas... para podermos sobreviver.”
— Você aceitará a água — disse.
Reconheceu o tom em sua própria voz. Ela o usara uma vez, com Leto, para dizer ao seu Duque perdido que ele deveria aceitar uma grande soma, oferecida por seu apoio em uma aventura duvidosa. Devia aceitar porque era o dinheiro que mantinha o poder para os Atreides.
Em Arrakis água era dinheiro, e ela percebia isso claramente.
Paul permaneceu em silêncio, sabendo que faria o que ela ordenara — não porque ela ordenara, mas porque o tom em sua voz o forçara a reavaliar. Recusar a água seria quebrar um costume Fremen consagrado.
Depois ele lembrou as palavras do Kalima 476 na Bíblia C.L. de Yueh. Elas diziam: “Toda vida tem origem na água.”
Jessica olhou para ele, curiosa: “Onde aprendeu essa citação? Ele não estudou os mistérios.”
— Assim é dito — disse Chani. — Giudichar afirma: “Está escrito no Shah-Nama que a água foi a primeira, dentre todas as coisas, a ser criada.”
Por alguma razão que não era capaz de explicar (e isso a incomodava mais do que a sensação), Jessica subitamente estremeceu.
Voltou-se para esconder sua perplexidade, exatamente a tempo de ver o sol se esconder. Uma violenta mistura de cores derramando-se sobre o céu, enquanto o sol mergulhava abaixo do horizonte.
— É hora!
Era a voz de Stilgar, ressoando na caverna.
— A arma de Jamis foi morta. Jamis foi por Ele chamado, pelo Shai-hulud, que ordenou as fases para as luas, que diariamente minguam, e no final parecem curvas, como varas secas... — A voz de Stilgar baixou de volume. — Assim foi com Jamis.
O silêncio desceu como um cobertor sobre a caverna.
Jessica via a sombra cinzenta de Stilgar, como uma figura fantasmagórica no interior da caverna. Olhou de volta para a paisagem lá embaixo, e sentiu a frieza.
— Que os amigos de Jamis se aproximem — disse Stilgar.
Homens moveram-se atrás de Jessica, descendo uma cortina sobre a abertura. Um único globo luminoso foi aceso no alto, bem no fundo da caverna. Seu brilho amarelo permitia ver um fluir de figuras humanas, Jessica ouviu o roçar dos mantos.
Chani deu um passo à frente, como que atraída pela luz.
Jessica curvou-se junto ao ouvido de Paul falando no código familiar:
— Siga o exemplo deles, faça como eles fizerem. Será uma cerimônia simples, destinada a aplacar a sombra de Jamis.
“Vai ser muito mais do que isso”, pensou Paul. Sentia como que uma torção em sua consciência, como se estivesse tentando agarrar alguma coisa em movimento e imobilizá-la.
Chani veio para junto de Jessica e segurou-a pela mão: Venha, Sayyadina, devemos nos sentar em separado.
Paul observou as duas se moverem para dentro das sombras, deixando-o sozinho. Sentiu-se abandonado.
Os homens que haviam colocado a cortina vieram instalar-se ao seu lado.
— Venha, Usul.
Permitiu que o guiassem até um círculo de pessoas, formado ao redor de Stilgar, que se colocara bem abaixo do globo luminoso e ao lado de um fardo anguloso, coberto por um manto sobre o piso rochoso.
A tropa agachou-se ante um gesto de Stilgar, seus mantos sussurrando com o movimento. Paul sentou-se com eles, observando Stilgar, notando o modo como a luz diretamente acima transformava seus olhos em poços negros, e tornava mais brilhante o tecido verde em seu pescoço. Depois, deslocou sua atenção para o monte coberto pelo manto, reconhecendo o braço de um baliset projetando-se do tecido.
— O espírito abandona a água do corpo, quando a primeira lua se levanta — entoou Stilgar. — Assim se diz. E quando virmos a primeira lua se erguer esta noite, quem ela invocará?
— Jamis — respondeu a tropa.
Stilgar girou no centro do círculo, percorrendo os rostos com o olhar:
— Eu era um amigo de Jamis. Quando a aeronave falcão mergulhou sobre nós, em Buraco-na-Rocha, foi Jamis quem me puxou para a segurança. — Ele inclinou-se sobre o volume ao lado, erguendo o manto. — Eu levo este manto, como amigo de Jamis. Direito do líder. — Colocou o manto sobre o ombro e levantou-se.
Agora Paul podia ver o conteúdo do volume exposto: o pálido cinza-lustroso de um traje-destilador, um litrojon bem arranhado, um lenço com um livro no centro, a empunhadura sem lâmina de uma faca cristalina, uma bainha vazia, uma mochila dobrada, uma parabússola, um distrans, um batedor, uma pilha de ganchos metálicos do tamanho de um punho, um conjunto do que pareciam pequenas rochas dentro de uma dobra de tecido, um punhado de penas emaranhadas... e um baliset exposto ao lado da mochila dobrada.
“Então Jamis tocava baliset”, pensou Paul. O instrumento fazia-o lembrar-se de Gurney Halleck e de tudo que fora perdido. Sabia, através de sua memória, do futuro e do passado, que algumas linhas de acaso poderiam produzir um encontro com Halleck, mas as reuniões seriam poucas e indistintas. Isso o intrigava. O fator de incerteza trazendo-lhe admiração. “Significará alguma coisa que eu farei..., ou que poderei fazer... poderia acarretar a destruição para o Gurney... ou trazê-lo de volta à vida... Ou...
Engoliu em seco, sacudindo a cabeça.
E novamente Stilgar se inclinou sobre a pilha.
— Para a mulher de Jamis, e para os guardas — disse, colocando as pequenas rochas e o livro nas dobras de sua roupa.
— Direito do líder — entoou a tropa.
— O marcador para o jogo de café de Jamis. — Stilgar ergueu um disco chato de metal verde. — Isto eu darei para Usul, em uma cerimônia adequada, quando retornarmos ao sietch.
— Direito do líder — entoou a tropa.
Finalmente, ele apanhou o cabo da faca cristalina e o exibiu.
— Para a planície funerária.
— Para a planície funerária — respondeu a tropa.
Em seu lugar no círculo, oposto à posição de Paul, Jessica acenou com a cabeça reconhecendo a fonte ancestral do rito. Pensava: “O encontro entre ignorância e conhecimento, entre brutalidade e cultura... tudo começa na dignidade com que tratamos nossos mortos.” Olhou para Paul, pensando: “Será que ele percebe? Será que ele saberá o que fazer?”
— Nós somos amigos de Jamis — disse Stilgar. — Não estamos chorando nosso morto como um bando de garvarg.
Um homem de barba cinzenta, à esquerda de Paul, levantou-se.
— Eu era um amigo de Jamis — disse. Caminhou até a pilha e apanhou o distrans. — Quando nossa água caiu abaixo do mínimo, no cerco em Dois Pássaros, Jamis compartilhou a dele. — E o homem retornou para seu lugar no círculo.
“Será que esperam que eu também diga que era amigo de Jamis?”, considerou Paul. “Esperam que eu tire alguma coisa daquela pilha?” Viu rostos se virarem em sua direção, momentaneamente. “Eles esperam isso!”
Outro homem no lado oposto a Paul se levantou, foi até a pilha e removeu o paracompasso. — Eu era um amigo de Jamis — disse. — Quando uma patrulha nos apanhou, em Curva-da-Colina, e eu fui ferido, Jamis os atraiu, de modo que os feridos pudessem ser salvos. Voltou para seu lugar no círculo.
Novamente os rostos se voltaram na direção de Paul, e ele viu a expectativa demonstrada neles. Abaixou os olhos e sentiu um cotovelo cutucá-lo enquanto uma voz sussurrava:
— Você traria a destruição sobre nós?
“Como posso dizer que era seu amigo?”, perguntava ele com os seus botões.
Outro vulto se levantou do círculo, no lado oposto a Paul, e, quando o rosto envolto no capuz entrou na iluminação, ele reconheceu sua mãe. Ela removeu o lenço do monte, dizendo: Eu era uma amiga de Jamis. Quando o espírito dos espíritos, dentro dele, viu as necessidades da verdade, esse espírito recuou, poupando meu filho. — Ela retornou ao seu lugar.
Paul lembrou o desprezo na voz dela quando o confrontara após a luta: “Como se sente sendo um assassino?”
Novamente viu os rostos se voltarem em sua direção, sentindo a raiva e o medo entre a tropa. Uma passagem que sua mãe certa vez livro-filmara para ele, a respeito do “Culto dos Mortos”, relampejou em sua mente. Sabia o que tinha a fazer.
Paul levantou-se lentamente.
Um suspiro de alívio passou pelo círculo.
Paul sentia uma diminuição de seu eu, enquanto avançava para o centro do círculo. Como se houvesse perdido um pequeno fragmento de si mesmo, e o procurasse naquela pilha. Inclinou-se sobre o monte de pertences e ergueu o baliset. Uma corda soou suavemente ao bater em alguma coisa na pilha.
— Eu era um amigo de Jamis — sussurrou.
Sentiu lágrimas queimando seus olhos e forçou mais volume em sua voz. — Jamis me ensinou... que... quando você mata... você paga por isso. Eu desejaria ter conhecido Jamis melhor.
Cego pelas lágrimas, ele caminhou de volta ao seu lugar no círculo, e sentou-se no piso rochoso.
Uma voz falou baixinho:
— Ele derramou lágrimas!
A notícia passou ao redor do círculo:
— Usul dá umidade aos mortos!
Sentiu dedos tocando sua face úmida, ouviu sussurros de espanto.
Jessica, ouvindo as vozes, percebia a profundidade da experiência, compreendendo as terríveis inibições que deviam existir contra o derrame de lágrimas. Focalizou seu raciocínio nas palavras: “Ele dá umidade aos mortos.” Tratava-se de uma dádiva para o mundo das sombras — lágrimas. Elas seriam sagradas, sem dúvida.
Nada, nesse planeta, impressionara mais sua mente do que o valor absoluto da água. Não os vendedores de água, nem as peles secas dos nativos. Não os trajes-destiladores, ou as regras da disciplina da água. Aqui estava uma substância mais preciosa que todas as outras: a própria vida entrelaçada de simbolismo e ritual.
Água.
— Eu toquei seu rosto — disse alguém baixinho. — Senti a dádiva.
A princípio os dedos que lhe tocavam o rosto haviam-no assustado. Ele agarrou a empunhadura fria do baliset, sentindo as cordas penetrarem em sua palma. Então viu os rostos além das mãos estendidas — os olhos arregalados de admiração...
Depois as mãos recuaram. A cerimônia fúnebre recomeçou. Agora, entretanto, havia um sutil espaço vazio ao redor de Paul, um retraimento. A tropa o honrava com um respeitoso isolamento.
E a cerimônia terminou com um canto, entoado em voz baixa:
“A lua cheia te chama...
Shai-hulud verás,
Vermelha é a noite, sombrio o céu
De morte sangrenta tu morreste.
Erguemos nossas preces para a lua: ela é redonda...
E a sorte entre nós será plena,
O que buscamos será encontrado
Na terra de chão firme.”
Um volume permanecia aos pés de Stilgar. Ele agachou-se colocando nele as palmas das mãos. Alguém se abaixou ao seu lado, e Paul reconheceu o rosto de Chani na sombra do capuz.
— Jamis carregava trinta e três litros mais sete, trinta e três dracmas de água da tribo — disse Chani. — Eu a abençôo agora, na presença da Sayyadina. Ekkeri-akairi, esta é a água, fillissinfollasy de Paul Muad'Dib! Kivi a-kavi, nunca mais, nakalas!
Nakalas! será medida e contada ukair-an! pelas batidas de coração jan-jan-jan do nosso amigo... Jamis.
Num súbito e profundo silêncio Chani se voltou, olhando para Paul. Instantes depois ela disse:
— Onde eu sou chama, tu serás carvão. Onde eu sou orvalho, tu serás água.
— Bi-lal kaifa — entoou a tropa.
— Para Paul Muad'Dib vai esta porção — continuou Chani.
— Que ele possa guardá-la para a tribo, preservando-a da perda descuidada. Que ele possa ser generoso com ela, em tempo de necessidade. Que ele possa passá-la adiante, quando for a sua vez, pelo beneficio da tribo.
— Bi-lal kaifa — respondeu o grupo.
“Eu devo aceitar esta água”, pensou Paul. Lentamente ele se levantou, aproximando-se de Chani até ficar ao seu lado. Stilgar recuou para abrir espaço, tomando o baliset gentilmente de sua mão.
— Ajoelhe-se — pediu Chani.
Paul obedeceu.
Ela guiou-lhe as mãos até a bolsa de água, segurando-as de encontro à superfície elástica:
— A tribo confia-lhe esta água — disse ela. — Jamis a deixou. Leve-a em paz. — Levantou-se, puxando Paul consigo.
Stilgar devolveu-lhe o baliset e estendeu-lhe a palma da mão, com uma pequena pilha de anéis de metal. Paul olhou para eles, notando os diferentes tamanhos, o modo como a luz do globo luminoso se refletia neles.
Chani pegou o anel mais largo, erguendo-o na ponta do dedo.
— Trinta litros — explicou ela. Um por um pegou os outros, mostrando-os individualmente para Paul, enquanto os contava:
— Dois litros, um litro, sete fichas de água com uma dracma cada uma, uma ficha de trinta e três centavos de dracma. Ao todo, trinta e três litros, mais sete e trinta três dracmas secundários.
Ergueu-os juntos no dedo, para que Paul os visse.
— Você os aceita? — indagou Stilgar.
Paul engoliu em seco, e assentiu com a cabeça:
— Sim!
— Depois — disse Chani —, eu lhe mostrarei como prendê-los em seu lenço, de modo que não façam barulho e o denunciem, quando precisar de silêncio. — Estendeu a mão.
— Quer... guardá-los para mim? — indagou Paul.
Chani voltou-se, olhando espantada para Stilgar.
Ele sorriu, dizendo:
— Paul Muad'Dib, que é Usul, não conhece ainda os nossos costumes, Chani. Guarde suas fichas de água sem compromisso, até a ocasião em que possa mostrar a ele a maneira de carregá-las.
Ela acenou, tirou uma tira de pano debaixo de seu manto, unindo os anéis com ela, em uma intrincada trança. Hesitou, e depois os colocou no cinto, por baixo do manto.
“Perdi alguma coisa aqui”, pensou Paul. Percebia um sentimento de humor ao seu redor, alguma coisa troçando com ele, e sua mente logo reuniu a memória presciente: “Fichas de água oferecidas a uma mulher — modo, ritual de fazer a corte.”
— Mestres d'água! — chamou Stilgar.
A tropa levantou-se, num sussurrar de mantos. Dois homens avançaram para levantar a bolsa de água. Stilgar pegou o globo luminoso, liderando o caminho em direção às profundezas da caverna.
Paul caminhava espremido, logo atrás de Chani. Notou o brilho lustroso que a luz produzia sobre as paredes rochosas, o modo como as sombras dançavam, e sentiu a elevação no ânimo da tropa, evidente no ar de expectativa silenciosa.
Jessica, puxada para o final da tropa por mãos ávidas, empurrada entre corpos que se acotovelavam, suprimiu um instante de pânico. Reconhecera fragmentos do ritual, identificando os sinais de Chakobsa e Bhotani-jib nas palavras, consciente da violência selvagem que poderia explodir num desses momentos aparentemente calmos.
“Jan-jan-jan”, pensou ela. “Vá-vá-vá.”
Era como um jogo de criança que houvesse perdido toda a inibição nas mãos de adultos.
Stilgar parou diante de uma parede de rocha amarela, pressionou uma saliência, e a parede deslizou silenciosamente, afastando-se dele para abrir-se em uma fenda irregular. Avançaram por uma rede que parecia de favos, dirigindo um sopro de ar frio sobre Paul, quando ele passou.
Paul lançou um olhar indagador para Chani, puxando-lhe o braço.
— Aquele ar parecia úmido.
— Sshhh! — respondeu ela.
Mas um homem atrás comentou:
— Um bocado de umidade na armadilha, esta noite. É o modo de Jamis nos dizer que está satisfeito.
Jessica passou pela porta secreta ouvindo-a fechar-se às suas costas. Notou como os Fremen diminuíam o passo ao atravessar a rede de favos, sentindo a umidade que vinha na direção aposta.
“Armadilhas de vento!”, percebeu ela. “Eles esconderam as armadilhas em algum ponto da superfície para canalizar o ar até as regiões mais frias, aqui embaixo, e precipitar a umidade contida.”
Passaram através de outra porta de rocha, com grades acima. A porta fechou-se em seguida. A corrente de ar em suas costas carregava uma sensação de umidade claramente perceptível para Paul e Jessica.
Na frente da tropa, o globo luminoso nas mãos de Stilgar desceu abaixo do nível das cabeças dos homens, à frente de Paul. Pouco depois ele sentiu degraus sob seus pés, curvando-se para a esquerda. Luz se refletia de baixo para cima, em torno de cabeças cobertas, revelando o movimento circular das pessoas descendo em espiral pelos degraus.
Jessica sentiu um crescendo de tensão ao seu redor, a opressão do silêncio que lhe atingia os nervos, com um sentimento de exigência.
Os degraus terminaram e a tropa passou através de outra porta baixa. A luz do globo luminoso foi engolida por um imenso espaço aberto, sob um alto teto abobadado.
Paul sentiu a mão de Chani segurando seu braço com força, ouviu um fraco som de gotejar no ar frio, notando a completa calma que se apoderava dos Fremen diante dessa catedral da água.
“Eu vi este lugar num sonho”, pensou ele.
A idéia era ao mesmo tempo tranquilizadora e frustrante. Em algum ponto adiante, em seu caminho, as hordas fanáticas abriam sua trilha sangrenta através do universo, chamando seu nome. A bandeira verde e negra dos Atreides se tornaria um símbolo de terror. Legiões selvagens avançariam para a batalha bradando seu grito de guerra: Muad'Dib!
“Não deve ser assim. Não posso permitir que isso aconteça.”
No entanto, podia sentir as exigências da consciência racial em seu interior, seu próprio terrível propósito, e percebia que nenhuma ação menor poderia desviar a aproximação do Jaganath. Estava ganhando peso e momento. Se ele morresse nesse instante, a coisa continuaria através de sua mãe e sua irmã, ainda não nascida.
Nada, a não ser a morte de toda a tropa reunida aqui, e agora ele próprio e sua mãe incluídos — poderia deter a coisa.
Paul olhou em volta, vendo a tropa dispor-se formando uma linha transversal que avançou para uma barreira baixa, esculpida na rocha. Além dessa barreira, sob a luz do globo de Stilgar, Paul viu uma superfície de água negra e lisa. Estendia-se para dentro das sombras, escura e profunda — até a parede mais distante que aparecia fracamente visível, talvez a uma centena de metros adiante.
Jessica sentiu um leve repuxar na pele do rosto e da testa, que se relaxava na presença da umidade. A piscina era profunda, ela podia notar sua profundidade, e resistiu ao desejo de mergulhar nela as mãos.
Ouviu um som de água derramando, à sua esquerda. Olhou ao longo da linha sombreada dos Fremen, vendo Paul e Stilgar juntos dos mestres d'água, que esvaziavam sua carga dentro da piscina através de um medidor de fluxo. O medidor era como um olho redondo e cinzento erguendo-se acima da borda. Viu o ponteiro luminoso mover-se, enquanto a água fluía até parar em trinta e três litros, sete e trinta e três dracmas.
“Soberba precisão na medida da água”, pensou Jessica. Notou que as paredes da tina do medidor não apresentavam nenhum traço de umidade após a passagem da água. A água fluíra daquelas paredes sem qualquer tensão adesiva. Percebia nisso um indício quanto à tecnologia dos Fremen revelando-se num simples fato
“Eles eram perfeccionistas.” Jessica caminhou ao lado da barreira, até chegar junto de Stilgar. O caminho foi aberto para ela com uma cortesia natural. Notou o distanciamento nos olhos de Paul, enquanto o mistério dessa grande piscina dominava seus pensamentos.
Stilgar olhou para ela:
— Existem aqueles entre nós que precisam de água — disse ele. — No entanto, eles seriam capazes de vir aqui sem tocar nesta água. Acredita nisso?
— Acredito — respondeu ela.
Ele olhou para a piscina.
— Temos mais de trinta e oito milhões de decalitros aqui. Protegidos contra os pequenos produtores, ocultos e preservados.
— Um tesouro escondido.
Stilgar ergueu o globo para olhar nos olhos dela.
— É muito mais que um tesouro. Temos milhares de depósitos como este, e somente alguns entre nós conhecem todos. — Ele inclinou a cabeça para um lado, e o globo lançou um brilho amarelo sobre seu rosto e sua barba. — Ouviu isto?
Eles escutaram.
O gotejar da água, precipitada pela armadilha-de-vento, enchia a sala com sua presença. Jessica percebia que toda a tropa fora apanhada em uma espécie de êxtase, ouvindo em arrebatamento, e apenas Paul parecia distanciado.
Para ele o som era como a passagem do tempo, tiquetaqueando.
Podia sentir o fluxo do tempo passando através de seu corpo, os instantes perdidos e nunca mais recapturados. Sentia a necessidade de uma decisão, mas ao mesmo tempo estava sem forças para mover-se.
— Tem sido calculado com precisão — sussurrou Stilgar. — Nós sabemos, em cada milhão de decalitros, de quanto necessitamos. Quando tivermos, mudaremos a face de Arrakis.
O abafado sussurro da resposta elevou-se da tropa:
— Bi-lal kaifa.
— Aprisionaremos as dunas debaixo de extensões de grama — disse Stilgar, a voz se tornando cada vez mais poderosa. — Prenderemos a água ao solo, com árvores e arbustos.
— Bi-lal kaifa — entoou o grupo.
— A cada ano a camada de gelo polar se retrai.
— Bi-lal kaifa — cantaram eles.
— Transformaremos Arrakis num lar: com lentes para derretimento nos pólos, com lagos nas zonas temperadas, e somente o deserto profundo para o produtor e sua especiaria.
— Bi-lal kaifa.
— E nenhum homem jamais precisará procurar por água. Ela será sua para retirar do poço, açude, lago ou canal. Ela correrá através dos qanats para regar nossas plantas. Estará lá para qualquer homem usar. Será sua, bastando estender a mão.
— Bi-lal kaifa.
Jessica percebia o ritual religioso nas palavras, notando sua própria resposta reverente. “Eles estão ligados ao futuro”, pensou.
“Têm sua montanha para galgar. Esse é o sonho de um cientista... e estas pessoas simples, estes camponeses, estão tomados por ele.”
Seus pensamentos voltaram-se para Liet-Kynes, o ecologista planetário do Imperador, o homem que se tornara nativo. Ela o admirava. Esse era um sonho para capturar as almas dos homens, podia sentir nele a mão do ecologista. Era um sonho pelo qual os homens morreriam de boa vontade, outro daqueles ingredientes essenciais que sentia serem necessários a seu filho: pessoas com um objetivo, gente que seria fácil imbuir de fervor e fanatismo. Eles seriam fundidos como uma espada, para reconquistar o lugar de Paul.
— Nós partimos agora — disse Stilgar —, esperando que a primeira lua se levante. Quando Jamis se encontrar, seguramente, em seu caminho, iremos para casa.
Sussurrando sua relutância, a tropa o seguiu, contornando a barreira de água e subindo as escadarias.
Paul, caminhando logo atrás de Chani, sentia que um momento vital havia passado. Ele perdera a oportunidade para uma decisão essencial, e encontrava-se agora enredado em seu próprio mito.
Tinha consciência de ter visto esse lugar antes, experimentando como um fragmento de seu sonho presciente na distante Caladan, mas os detalhes do lugar eram preenchidos agora com elementos que não vira. Ocorria-lhe um sentimento de admiração ante os limites de seu dom. Era como se ele avançasse dentro de uma onda de tempo, algumas vezes na crista, outras na parte de baixo, enquanto ao seu redor outras ondas se erguiam e tombavam, revelando, e em seguida escondendo, o que levavam em suas superfícies.
Através de tudo isso, o selvagem jihad ainda assomava à sua frente, com toda a violência e o massacre. Era como um promontório acima da arrebentação.
A tropa passou pela última porta, entrando na caverna principal.
A porta foi selada, as luzes apagadas, as coberturas removidas das aberturas, revelando que a noite, com suas estrelas, já se estendera sobre a face do deserto.
Jessica caminhou até a entrada ressequida da caverna e olhou para o alto. As estrelas pareciam nítidas e próximas. Ela ouviu o remexer da tropa à sua volta, o som de um baliset sendo afinado em algum lugar lá atrás, e a voz de Paul cantarolando. Notou uma melancolia em sua voz que a deixou preocupada.
A voz de Chani soou na escuridão.
— Fale-me a respeito das águas em seu mundo de origem, Paul Muad'Dib.
— Noutra ocasião, Chani, eu prometo.
“Tamanha tristeza.”
— É um baliset muito bom — comentou Chani.
— Muito bom — respondeu ele. — Acha que Jamis se importa que eu o use?
“Ele fala dos mortos com o verbo no presente”, pensou Jessica, sentindo-se perturbada pelas implicações.
A voz de um homem interferiu:
— Jamis gostava de música na hora de deitar.
— Então cante-me uma de suas canções — pediu Chani.
“Tamanho encanto feminino na voz desta menina”, notou Jessica. “Devo adverti-lo a respeito dessas mulheres... o quanto antes.”
— Esta era uma canção de um amigo meu — disse Paul. — Acredito que ele esteja morto agora, o Gurney. Ele a chamava de sua “canção do entardecer”.
A tropa ficou em silêncio, ouvindo a voz de Paul se elevar num doce tenor juvenil, com o baliset tilintando ao fundo.
“Neste tempo claro de fitar as brasas —
Que um sol dourado perdeu no cair da noite.
Que frenesi de sentidos, que odor de almíscar
Se unem na lembrança.”
Jessica sentia verbalizar-se a música em seu peito — pagã, carregada com sons que a tornavam subitamente consciente de si mesma de uma forma intensa, sentindo seu próprio corpo e suas carências. Ouviu tensa e imóvel.
“Na quietude da noite adornada de pérolas Isso é para nós!
Que prazeres percorrem então —
Brilhantes em seus olhos Que amores floridos Impelem nossos corações...
Que amores floridos Preenchem nossos desejos.”
Jessica notou a quietude que se seguiu, enquanto a última nota ainda ressoava. “Por que meu filho canta uma canção de amor para aquela menina?” Sentiu um medo súbito. A vida fluía ao seu redor e ela era incapaz de segurar-lhe as rédeas. “Por que ele escolheu esta canção? Os instintos são muito francos, às vezes. Por que ele fez isso?”
Paul permanecia sentado na escuridão, um único pensamento dominando-lhe a consciência. “Minha mãe é o meu inimigo. Ela não sabe disso, mas ela é. Ela está trazendo o seu jihad. Ela me deu à luz, ela me treinou. Ela é o meu inimigo.”
O conceito de progresso age como um mecanismo protetor para nos ocultar os horrores do futuro.
— de Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
Em seu décimo sétimo aniversário Feyd-Rautha Harkonnen matou seu centésimo gladiador-escravo nos jogos familiares. Como observadores da Corte Imperial encontravam-se o Conde e Lady Fenring, visitando a Casa dos Harkonnen em Giedi Prime, e convidados a se sentarem junto dos familiares mais próximos, na caixa dourada acima da arena triangular.
Em honra ao aniversário do futuro Barão, e para lembrar a todos os Harkonnen e seus súditos que Feyd-Rautha era o herdeiro designado, fora decretado feriado em Giedi Prime. O velho Barão instituíra uma pausa em todos os trabalhos, de meridiano a meridiano, e um esforço fora empreendido na cidade principal de Harko, no sentido de criar uma ilusão de alegria. Bandeiras ondulavam nos prédios, e uma nova camada de tinta fora espalhada ao longo das paredes na Rua da Corte.
No entanto, fora da rua principal, o Conde Fenring e sua senhora notaram os montes de lixo, as paredes, os muros ásperos, cuja cor marrom se refletia nas poças de água escura sobre as ruas, o movimento furtivo das pessoas.
No castelo de paredes azuis, havia uma terrível perfeição, mas não lhes escapou o preço que se pagava por isso: guardas por toda parte, e armas com aquele polimento especial que um olhar treinado percebia estarem sendo usadas regularmente. Havia barreiras de inspeção até para a passagem rotineira de uma área para outra, dentro do castelo. Os servos revelavam seu treinamento militar no modo como caminhavam, no caimento dos ombros... e no modo como seus olhos vigiavam, vigiavam e vigiavam.
— A pressão continua — o Conde sussurrou para sua senhora, usando a linguagem secreta entre ambos. — O Barão está começando a ver o preço que realmente pagou para se livrar do Duque Leto.
— Algum dia desses eu devo lhe recontar a lenda da Fênix respondeu ela.
Encontravam-se na sala de recepção do castelo, esperando para serem conduzidos até os jogos. Não era uma sala muito grande, talvez quarenta metros de comprimento, e metade disso na largura. Entretanto, os falsos pilares laterais haviam sido moldados com um pronunciado afilamento em direção ao teto, sutilmente arqueado, criando, ambos, uma ilusão de espaço muito maior.
— Ah, aí vem o Barão! — exclamou o Conde.
O Barão atravessou a sala com um gingado peculiar, característico do peso suportado por suspensores. A papada ondulando, os suspensores bamboleando embaixo do manto cor de laranja.
Anéis brilhavam em suas mãos, e opafiras cintilavam no manto.
Ao lado do Barão caminhava Feyd-Rautha. Seu cabelo negro, penteado em madeixas entremeadas, parecia inadequadamente jovial para os olhos sombrios. Ele usava uma túnica negra, justa, e calças apertadas em forma de sino na bainha. Seus pés pequenos calçavam chinelas de sola macia.
Lady Fenring notou a postura do rapaz e os músculos firmes por baixo da túnica, pensando: “Aqui está alguém que não vai se permitir engordar.”
O Barão parou diante deles, segurando o braço de Feyd-Rautha de um modo possessivo.
— Meu sobrinho, o futuro Barão, Feyd-Rautha Harkonnen. — E, voltando seu rosto de bebê em direção a Feyd-Rautha, acrescentou: — O Conde e Lady Fenring, de quem falei.
Feyd-Rautha inclinou a cabeça com a cortesia requerida. Olhou para Lady Fenring. Ela era loura e esbelta, seu corpo perfeito envolto num vestido leve de linho cru — simples adequação de forma, sem ornamentos. Olhos verde-acinzentados o fitaram. Ela tinha aquela dignidade serena das Bene Gesserit que as tornava tão sutilmente perturbadoras para os jovens.
— Aaahhhhmmm! — exclamou o Conde. Observou Feyd-Rautha. — Hummmm, jovem meticuloso, ah, meu... hummm... caro? — O Conde olhou para o Barão. — Meu querido Barão, você diz que falou a nosso respeito com esse jovem meticuloso. O que disse a ele?
— Falei a meu filho da grande estima que o Imperador tem por você, Conde Fenring — respondeu o Barão, enquanto pensava: “Marque-o bem, Feyd. Um assassino com os modos de um coelho. Este é o tipo mais perigoso.”
— É claro! — disse o Conde, e sorriu para sua companheira.
Feyd-Rautha achou as ações do homem e suas palavras quase insultantes. Chegavam muito perto de se tornarem algo manifesto, exigindo reparação. Focalizou sua atenção no Conde: um homem pequeno, de aparência frágil, seu rosto lembrava uma doninha, com os olhos muito grandes e escuros, as têmporas grisalhas. E seus movimentos... Ele movia uma das mãos e girava a cabeça de um modo, e mudava o movimento de repente. Era difícil acompanhar.
— Ammmmmhhh, é tão raro encontrar tamanha... ummm... precisão — disse o Conde, dirigindo-se ao ombro do Barão. Eu... ahh, felicito-o quanto à... hummmm... perfeição de seu... ahhh... herdeiro.
— É muito gentil — respondeu o Barão. Ele se curvou, mas Feyd-Rautha notou que os olhos de seu tio não aprovavam a cortesia.
— Quando é irônico... hummm... isto sugere que você está... aahhh... pensando em algo profundo — disse o Conde.
“Lá vai ele de novo”, pensou Feyd-Rautha. “Soa como se estivesse nos insultando, mas não há nada que justifique um pedido de satisfações.”
Escutar o homem dava a Feyd-Rautha a impressão de que sua cabeça estava sendo empurrada num mingau... ammmmhhhumm!
Voltou sua atenção para Lady Fenring.
— Estamos... aahh... tomando muito tempo deste jovem — disse ela. — Se compreendi, ele deve aparecer na arena hoje.
“Mesmo para os padrões do harém imperial ela é encantadora!”, pensou Feyd-Rautha. E disse:
— Posso lhe dedicar a morte de um gladiador hoje, minha senhora. Consagrando-lhe minha atuação na arena, com sua permissão.
Ela voltou o olhar serenamente, mas sua voz foi como uma bofetada, quando disse:
— Você não tem a minha permissão.
— Feyd! — gritou o Barão. E pensou: “O idiota! Será que ele quer esse Conde mortífero desafiando-o?”
Mas o Conde apenas sorriu, e resmungou:
— Hummmm.
— Você realmente devia estar se aprontando para a arena, Feyd — advertiu o Barão. — Deve repousar, e não assumir nenhum risco tolo.
Feyd-Rautha fez uma mesura, seu rosto sombrio de ressentimento.
— Tenho certeza de que tudo será como desejar, tio. Acenou para o Conde Fenring: — Senhor. — Para Lady Fenring: — Senhora. — Depois voltou-se e caminhou para fora da sala, quase sem olhar para o grupo das Famílias Inferiores, próximo à porta dupla.
— Ele é tão jovem — suspirou o Barão.
— Aaahnmmm, de fato, hmmm — disse o Conde.
E Lady Fenring pensou: “Como pode ser este o jovem a quem a Reverenda Madre se referiu? Será ele a linha genética que devemos preservar?”
— Temos mais de uma hora, antes de nos dirigirmos para a arena — disse o Barão. — Talvez pudéssemos ter nossa breve conversa agora, Conde Fenring. — Inclinou a cabeça maciça. — Existe uma considerável quantidade de assuntos a serem discutidos.
“Vamos ver como o menino de recados do Imperador transmite sua mensagem, sem jamais ser tão grosseiro a ponto de dizê-la explicitamente.”
O Conde falou com sua companheira:
— Ammmm-ahhhumm, você, hummm... pode nos desculpar... aahhh... um instante, querida?
— A cada dia, algum momento, a cada hora, traz a mudança disse ela. — Hummmm. — Sorriu de modo encantador para o Barão, antes de se voltar. Sua saia longa fez um ruído sussurrante, e ela caminhou de modo altivo, com uma postura nobre, em direção às portas duplas na extremidade da sala.
O Barão notou como toda a conversação se interrompia entre as Casas Menores quando ela se aproximou, como todos os olhos a seguiam. “Bene Gesserit!”, pensou o Barão. “O Universo seria melhor se nos livrássemos de todas elas!”
— Existe um cone de silêncio entre dois dos pilares, ali à nossa esquerda — explicou o Barão. — Podemos conversar lá sem medo de sermos ouvidos. — Seguiu na frente com seu passo ondulante, entrando no campo supressor de ruídos, ouvindo os sons do castelo se tornarem distantes e abafados.
O Conde se colocou ao lado do Barão, e ambos se voltaram, ficando de frente para a parede, de modo que seus lábios não pudessem ser lidos.
— Não estamos satisfeitos com o modo como ordenou a retirada dos Sardaukar, em Arrakis — disse o Conde.
“Falando diretamente!”, surpreendeu-se o Barão.
— Os Sardaukar não poderiam ficar mais tempo sem correrem o risco de que outras pessoas soubessem do modo como o Imperador me ajudou — respondeu o Barão.
— Mas, seu sobrinho Rabban não parece estar se esforçando o suficiente para solucionar a questão dos Fremen.
— E o que o Imperador quer? Não pode haver mais que um punhado de Fremen em Arrakis. O deserto ao sul é inabitável. O deserto ao norte é percorrido regularmente por nossas patrulhas.
— Quem diz que o deserto ao sul é inabitável?
— Seu próprio planetólogo disse isso, meu caro Conde.
— Mas o Dr. Kynes está morto.
— Ah sim... infelizmente está.
— Ouvimos falar de um vôo sobre as extensões do sul. Viram indícios de vida vegetal.
— A Corporação concordou então em realizar uma observação do espaço?
— Sabe muito bem, Barão, que o Imperador não pode legalmente colocar Arrakis sob vigilância.
— E eu não posso custear uma — retrucou o Barão. — Quem fez esse vôo?
— Um... contrabandista.
— Alguém mentiu para você, Conde. Contrabandistas não podem navegar sobre regiões do sul melhor do que os homens de Rabban. Tempestades, estática de areia, e tudo o mais. Marcos de navegação são derrubados mais rapidamente do que podem ser instalados.
“Discutiremos os vários tipos de estática em outra ocasião”, pensou o Barão. — Encontrou algum erro na minha contabilidade, então?
— Quando você próprio imagina erros, não pode haver autodefesa.
“Ele está tentando deliberadamente me enfurecer”, concluiu
O Barão respirou fundo duas vezes, para se acalmar. Podia cheirar o seu próprio suor, e o arnês dos suspensores por baixo da roupa parecia-lhe subitamente irritante.
— O Imperador não pode estar infeliz com a morte da concubina e do garoto. Eles fugiram para o deserto, houve uma tempestade.
— De fato ocorreram muitos acidentes convenientes concordou o Conde.
— Não gosto de suas insinuações, Conde.
— Raiva é uma coisa, violência outra — disse o Conde. — Deixe-me adverti-lo: se algum acidente infeliz me acontecer aqui, as Grandes Casas tomarão conhecimento do que fez em Arrakis. Há muito que suspeitam de seus negócios.
— O único negócio recente de que posso me lembrar respondeu o Barão — foi o transporte de várias legiões de Sardaukar para Arrakis.
— E pensa que pode ameaçar o Imperador com isso?
— Eu não pensaria nisso!
O Conde sorriu.
— Podem ser encontrados comandantes, entre os Sardaukar, que confessarão ter agido sem receber ordens, apenas porque desejavam uma luta com a ralé Fremen.
— Muitos suspeitariam de tal confissão — respondeu o Barão, mas a ameaça deixou-o perturbado: “Seriam os Sardaukar tão disciplinados?”
— O Imperador deseja examinar seus livros.
— Quando quiser.
— Você... ahh... não tem objeções?
— Nenhuma. Minha gerência da CHOAM pode ser examinada minuciosamente. — E pensou: “Deixe que eles façam uma falsa acusação contra mim, e tentem prová-la. Eu estarei aqui, como Prometeu, dizendo: olhem para mim, eu fui injuriado. E depois deixe que façam qualquer outra acusação contra mim, até mesmo uma verdadeira. As Grandes Casas não acreditarão num segundo ataque de um acusador que já se mostrou errado.”
— Não duvide que seus livros vão receber o mais minucioso exame — murmurou o Conde.
— Por que o Imperador está tão interessado em exterminar os Fremen?
— Deseja mudar de assunto, hein? — O Conde encolheu os ombros. — São os Sardaukar que o desejam, não o Imperador. Eles precisam praticar matanças... e odeiam deixar uma tarefa por terminar.
“Será que ele tenciona assustar-me, lembrando-me que é apoiado por assassinos tão sedentos de sangue?”, perguntou a si mesmo o Barão.
— Uma certa quantidade de mortes sempre foi uma das exigências do negócio, mas uma linha deve ser traçada em algum lugar. Alguém deve ser deixado para colher a especiaria.
O Conde emitiu uma risada curta.
— Você pensa que pode subjugar os Fremen?
— Nunca foram tão numerosos para justificar isso. Mas a matança deixou o resto de minha população inquieta. Chegou ao ponto de eu ter que considerar outra solução para o problema de Arrakis, meu querido Fenring. E devo confessar que o Imperador merece o crédito por minha inspiração.
— Ahhh?
— Como vê, Conde, tenho o planeta-prisão do Imperador, Salusa Secundus, para me inspirar.
O Conde olhou para ele de modo intenso.
— Que conexão possível pode existir entre Arrakis e Salusa Secundus?
O Barão notou a aparência vigilante nos olhos de Fenring e disse:
— Nenhuma conexão, ainda.
— Ainda?
— Deve admitir que seria um meio de desenvolver uma substancial força de trabalho em Arrakis. Usar o lugar como planeta-prisão.
— Antecipa um aumento de prisioneiros?
— Tem havido agitação — admitiu o Barão. — Eu tenho sido obrigado a espremê-los com alguma severidade, Fenring. Além do mais, você sabe o preço que paguei àquela maldita Corporação para levar nossa força mútua até Arrakis. Esse dinheiro tem que vir de algum lugar.
— Sugiro que não use Arrakis como planeta-prisão sem o consentimento do Imperador, Barão.
— É claro que não — respondeu este, admirando-se com a súbita frieza na voz de Fenring.
— Outra questão — disse o Conde. — Soubemos que o Mentat do Duque Leto, Thufir Hawat, não está morto, e sim a seu serviço.
— Eu não podia desperdiçá-lo.
— Mentiu para o comandante dos Sardaukar quando lhe disse que Hawat estava morto.
— Só uma pequena mentira, meu querido Conde. Eu não tinha estômago para continuar discutindo com aquele homem.
— Hawat era o verdadeiro traidor?
— Oh, pelo amor de Deus, não! Era o falso médico. — O Barão enxugou o suor no pescoço. — Deve compreender, Fenring, que eu estava sem um Mentat. Sabe disso. Nunca fiquei sem um Mentat. Foi muito inquietante.
— Como pôde conseguir que Hawat mudasse sua lealdade?
— Seu Duque estava morto. — O Barão forçou um sorriso.
— Não há nada a temer de Hawat, meu caro Conde. A carne do Mentat foi impregnada com um veneno latente. Nós administramos o antídoto em suas refeições. Sem o antídoto, o veneno é acionado e ele morre em questão de dias.
— Retire o antídoto — ordenou o Conde.
— Mas ele é tão útil!
— E sabe muitas coisas que nenhum homem vivo deveria saber.
— Você disse que o Imperador não teme uma revelação.
— Não brinque comigo, Barão!
— Quando eu receber tal ordem com um selo imperial, obedecerei. Do contrário, não me submeterei aos seus caprichos.
— Acha que é um capricho?
— Que mais pode ser? O Imperador tem obrigações para comigo, Fenring. Eu o livrei do incômodo Duque.
— Com a ajuda de alguns Sardaukar.
— Onde mais o Imperador teria encontrado uma Casa para fornecer os uniformes que esconderam a sua atuação nesse assunto?
— Ele tem feito a si mesmo essa pergunta, Barão, mas com uma ênfase um pouquinho diferente.
O Barão observou Fenring, notando a rigidez dos músculos do maxilar, o auto-controle cuidadoso. — Ahh, então é isso. Espero que o Imperador não pense que pode agir contra mim em total segredo.
— Ele espera que isso não se torne necessário.
— O Imperador não pode achar que o estou ameaçando! O Barão se permitia agora um tom de mágoa na voz, e pensava: “Deixe que me caluniem desse modo! Posso me colocar naquele trono enquanto ainda estiver batendo no peito, e dizendo como fui caluniado.”
A voz do Conde tornou-se seca e distante ao dizer:
— O Imperador acredita no que os seus sentidos lhe dizem.
— O Imperador se atreveria a acusar-me de traição diante do Conselho de Landsraad? — O Barão prendeu a respiração, com o desejo de que tal acontecesse.
— O Imperador não precisa se atrever a nada.
O Barão girou em seus suspensores para ocultar sua expressão.
“Poderia acontecer durante a minha vida!”, pensava. “Imperador! Lance uma falsa acusação contra mim! E então: os subornos, a coerção, o agrupamento de todas as Grandes Casas. Elas se uniriam sob minha bandeira como servos em busca de abrigo. A coisa que mais temem é que o Imperador lance os Sardaukar sobre eles, sobre uma Casa de cada vez.”
— O Imperador tem sinceras esperanças de nunca precisar acusá-lo de traição.
Achou difícil conter a ironia em sua voz, e manter uma expressão de mágoa, mas afinal conseguiu.
— Tenho sido um súdito extremamente leal! Essas palavras me ferem além da minha capacidade de expressão.
— Ammmhhhh — respondeu o Conde.
O Barão continuou de costas, acenando com a cabeça. Depois disse:
— É hora de ir para a arena.
— De fato — concordou o Conde.
Ambos se moveram para fora do cone de silêncio, e lado a lado caminharam em direção aos grupos das Casas Menores, no final do corredor. Um sino começou a tocar em algum ponto do castelo: “Aviso de vinte minutos” para a reunião na arena.
— As Casas Menores aguardam que as lidere — disse o Conde, acenando em direção às pessoas enquanto se aproximavam.
“Duplo sentido... duplo sentido”, pensou o Barão.
Olhou para os novos talismãs que flanqueavam a saída do salão: a cabeça de touro e a pintura a óleo do Velho Duque Atreides, pai do falecido Duque Leto. Eles enchiam o Barão de um estranho pressentimento, e ele tentava imaginar que pensamentos esses talismãs teriam inspirado ao Duque Leto, quando estavam suspensos nos salões de Caladan, e depois em Arrakis. A bravura do pai, e a cabeça do touro que o matara.
— A humanidade tem apenas uma ciência — comentou o Conde, enquanto lideravam a fileira de seguidores, emergindo do salão para dentro da sala de espera. Um lugar estreito com janelas altas e piso com padrões de azulejos brancos e púrpura.
— E que ciência é essa? — indagou o Barão.
— É a... ammmmhh, ciência dos ... ahhh... descontentes.
Atrás deles os membros das Casas Menores, todos com caras submissas, riram no tom exato de apreciação, mas o som carregou uma nota de discórdia ao chocar-se com o súbito acelerar de motores que roncaram quando os escudeiros abriram as portas externas, revelando uma fileira de carros de solo, seus estandartes ondulando na brisa.
O Barão ergueu a voz para superar o súbito ruído, dizendo:
— Espero que não fique descontente com a atuação de meu sobrinho hoje, Conde Fenring.
— Eu... aahhh... sinto-me como... hummm... ahhhhh... pressentimento, sim. Sempre num... aaahhhhmmm... processo verbal, deve-se... aahhhhh... considerar o... uuummmmm... escritório de origem.
O Barão ocultou um súbito enrijecimento de surpresa ao tropeçar no primeiro degrau da saída. “Processo verbal! Isso é o relatório de um crime contra o Império!”
O Conde todavia sorriu, fazendo parecer uma piada, e deu pancadinhas no braço do Barão.
Em todo o caminho para a arena, entretanto, o Barão sentou-se entre as almofadas blindadas do seu carro, lançando olhares dissimulados para o Conde, ao seu lado. Perguntava a si mesmo por que o moleque de recados do Imperador julgara necessário fazer esse tipo específico de piada diante das Casas Menores. Era óbvio que Fenring raramente dizia alguma coisa que julgasse desnecessária, ou usava duas palavras quando apenas uma produzisse efeito.
Raramente também ele empregava uma frase com um único significado.
Encontravam-se sentados em uma caixa dourada sobre a arena triangular. Cornetas soando, as arquibancadas acima e à volta apinhadas, as flâmulas chicoteando ao vento, quando o Barão ouviu a resposta às suas inquietações.
— Meu caro Barão — disse o Conde inclinando-se próximo ao seu ouvido. — Você sabe — não? — que o Imperador ainda não deu sua aprovação oficial quanto à escolha de seu sucessor.
O Barão sentiu-se dentro de um súbito cone de silêncio provocado por seu próprio choque. Olhou para Fenring, quase sem ver a esposa do Conde, que passava pelos guardas para se unir ao grupo na caixa dourada.
— É por isso que estou aqui hoje. O Imperador deseja que eu faça um relatório revelando se escolheu, ou não, um sucessor à altura. Não há nada como a arena para revelar a verdadeira personalidade de uma pessoa... ahh?
— O Imperador prometeu-me livre escolha de sucessor! protestou o Barão.
— Veremos — disse Fenring, e voltou-se para cumprimentar sua dama. Ela sentou-se, sorrindo para o Barão, e então dirigiu sua atenção para o chão arenoso abaixo deles, onde Feyd-Rautha surgia em roupas justas. Uma luva negra e uma longa faca na mão direita, uma luva branca, e uma faca curta na esquerda.
— Branco para o veneno, negro para a pureza — comentou Lady Fenring. — Um costume curioso, não é, meu amor?
— Ahh — respondeu o Conde.
As palmas e aclamações soaram nas galerias familiares, e Feyd-Rautha parou para agradecê-las, olhando e observando os rostos.
Vendo seus primos e primas, os meio-irmãos, as concubinas e amigas. Eles eram como bocas róseas de trombetas gritando em meio a um colorido agitar de roupas e bandeiras.
Ocorreu-lhe que aquelas fileiras apinhadas de faces olhariam tão avidamente para o seu sangue sendo derramado quanto para o do gladiador. Não havia dúvida, porém, quanto ao resultado dessa luta. Aqui havia apenas uma insinuação de perigo, sem substância... e no entanto... Feyd-Rautha ergueu suas facas para o sol, saudando os três cantos da arena, à moda antiga. A faca curta na mão enluvada de branco (branco, o sinal de veneno) foi embainhada primeiro. Depois a longa lâmina na mão com a luva preta... a lâmina pura que se encontrava agora impura, sua arma secreta para transformar esse dia em uma vitória puramente pessoal. Havia veneno na lâmina negra.
O ajuste em seu escudo corpóreo levou apenas um momento, e ele parou para sentir a pele da testa comprimindo-se, indicando que ele se encontrava corretamente protegido.
Esse instante tinha seu próprio suspense, e Feyd-Rautha fez com que ele se prolongasse, com a consciência de um atar, acenando para seus treinadores e auxiliares. Checando-lhes o equipamento, com um olhar minucioso.
Fez sinal para os músicos.
A marcha lenta começou, sonora em sua pompa ancestral, e Feyd-Rautha liderou sua companhia através da arena, até pararem embaixo da caixa de seu tio. Apanhou a chave cerimonial quando foi lançada, e a música parou.
No abrupto silêncio que se seguiu, ele recuou dois passos, erguendo a chave e gritando:
— Dedico este momento de verdade a... Fez uma pausa, sabendo o que o tio iria pensar: “O jovem idiota vai dedicar a Lady Fenring, apesar de tudo, e causar um escândalo!” — ... ao meu tio e patrono, o Barão Vladimir Harkonnen — gritou Feyd-Rautha, adorando ver o tio suspirar de alívio.
A música recomeçou com uma marcha rápida, e Feyd-Rautha liderou seus homens de volta para a arena, correndo em direção à porta que admitia apenas aqueles que usavam a faixa de identificação adequada. Feyd-Rautha orgulhava-se de nunca ter usado a porta, e raramente usara os auxiliares encarregados de distrair o adversário. Mas era bom saber que se encontravam disponíveis nesse dia. Planos especiais algumas vezes envolviam perigos especiais.
Novamente o silêncio desceu sobre a arena.
Feyd-Rautha voltou-se, encarando a grande porta vermelha de onde surgiria o gladiador.
Aquele gladiador especial.
“O plano que Thufir Hawat concebera era admiravelmente simples e direto”, pensou ele. O escravo não estaria drogado, esse era o perigo. Em vez disso, uma palavra-chave condicionando o inconsciente do homem imobilizaria seus músculos num instante crítico. Feyd-Rautha relembrou a palavra, formou-a nos lábios sem contudo pronunciá-la: Escória! Aos olhos da platéia, pareceria que um escravo não drogado fora colocado na arena para matar o futuro Barão, e toda a evidência, cuidadosamente forjada, apontaria para o mestre dos escravos.
A porta emitiu um zumbido baixo quando os servo-motores foram armados para abertura.
Feyd-Rautha focalizou todos os seus sentidos naquela porta. Esse primeiro momento era sempre crítico. A aparição do gladiador, enquanto ele saía, revelava muito ao olho treinado, muito do que era necessário saber. Todos os gladiadores supostamente estariam drogados com elaca, para saírem em posição de luta, prontos para matar, mas era importante notar como cada indivíduo levantava a faca, para que lado se voltava ao se defender, ou se ele tinha consciência dos espectadores na platéia. O modo como um escravo inclinava a cabeça poderia fornecer um indício vital para aparar seus golpes e iludi-lo.
A porta vermelha abriu-se subitamente.
Um homem alto e musculoso investiu para fora. Tinha a cabeça raspada e os olhos negros e fundos. Sua pele era cor de cenoura, como deveria ser, dado o efeito da droga elaca, mas Feyd-Rautha sabia que a cor era efeito de tinta. O escravo usava malha verde e o cinturão vermelho de um semi-escudo, a flecha do cinturão apontando para a esquerda indicava que apenas esse lado se encontrava defendido.
Ele segurou sua faca como se fosse uma espada, inclinou-se ligeiramente para a frente, na posição do lutador treinado. Avançou lentamente para a arena, voltando seu lado protegido pelo escudo na direção de Feyd-Rautha e seus auxiliares, na porta protetora.
— Não gosto desse aí — comentou um dos homens de Feyd.
— Tem certeza de que ele está drogado, meu senhor?
— Ele tem a cor da droga — respondeu Feyd-Rautha.
— No entanto, ele tem a postura de um lutador — disse outro auxiliar.
Feyd-Rautha avançou dois passos na areia, observando o escravo.
— O que foi que ele fez com o braço? — indagou um picador.
A atenção de Feyd-Rautha voltou-se para o arranhão sangrento no antebraço esquerdo do homem, seguiu-o até a mão, que apontava para um desenho feito com sangue na malha verde. Uma forma úmida, delineando o contorno de um falcão.
Falcão!
Feyd-Rautha olhou para aqueles olhos fundos e escuros, notando um brilho vigilante.
“É um dos homens do Duque Leto, que aprisionamos em Arrakis!”, percebeu Feyd-Rautha. “Nenhum gladiador comum!” Um arrepio percorreu-lhe o corpo, e ele se descobriu imaginando se Hawat não teria outros planos para essa luta. Um estratagema, dentro de um estratagema, dentro de outro estratagema. E com apenas o mestre dos escravos preparado para levar a culpa.
O chefe de seus auxiliares falou junto ao seu ouvido: Não gosto da aparência deste aí, meu senhor. Deixe-me espetar um agulhão ou dois em seu braço para testá-lo.
— Eu darei minhas próprias espetadas — respondeu Feyd-Rautha. Pegou um par das longas lanças com gancho, ergueu-as, testando o equilíbrio. As farpas também deviam estar providas de droga, embora não o estivessem, desta vez. O chefe dos auxiliares poderia morrer por isso, mas era tudo parte do plano.
— Você sairá disto como um herói — explicara-lhe Hawat.
— Matando seu gladiador homem a homem, a despeito da traição.
O mestre dos escravos será executado, e um de seus homens colocado no posto.
Feyd-Rautha avançou mais cinco passos na arena, aproveitando o momento, estudando o escravo. Os especialistas nas arquibancadas acima já haviam percebido que alguma coisa não estava certa. O gladiador tinha a cor da pele correta para um homem drogado, mas mantinha-se de pé sem tremer. Os aficcionados estariam sussurrando, um para o outro, agora:
— Olhem como ele espera. Devia estar agitado, atacando e recuando. Veja como ele conserva sua força, como espera. E não devia estar esperando.
Feyd-Rautha sentiu seu entusiasmo crescer. “Que haja traição na mente de Hawat. Eu posso cuidar deste escravo”, pensou. “É a minha faca longa que carrega o veneno desta vez, não a curta. Nem Hawat sabe disso.”
— Ei, Harkonnen! — gritou o escravo. — Está preparado para morrer?
Um silêncio mortal tomou conta da arena. “Escravos não lançam desafios!”
Agora Feyd-Rautha tinha uma visão clara dos olhos do gladiador, notando a fria ferocidade do desespero estampada neles.
Notou o modo como o homem esperava, descontraído e pronto, músculos preparados para a vitória. Os boatos entre escravos haviam levado a mensagem de Hawat até esse homem: “Você terá a verdadeira chance de matar o futuro Barão.” E até aí o esquema permanecia como fora planejado.
Um sorriso maldoso esboçou-se nos lábios de Feyd-Rautha. Ele ergueu a lança, vendo na postura do gladiador o sucesso para seus planos.
— Hei! Hei! — desafiou o escravo e avançou dois passos.
“Ninguém nas galerias terá dúvidas agora.”
Esse escravo deveria se encontrar parcialmente incapacitado pelo terror que a droga induz. Cada movimento seu demonstraria o conhecimento íntimo de que não havia esperanças. Ele não poderia vencer. Teria sido alimentado com histórias a respeito dos venenos que o futuro Barão escolhia para a lâmina em sua mão esquerda. Feyd-Rautha jamais administrava morte rápida. Ele apreciava exibir venenos raros, ficando na arena e apontando, para o público, os efeitos secundários na vítima a se contorcer. Havia medo nos olhos do escravo, sim, mas não terror. Feyd-Rautha levantou alto as farpas na ponta da lança, acenando em uma quase-saudação.
O gladiador atacou.
Seus movimentos e defesa eram tão bons quanto Feyd-Rautha jamais vira. Um golpe lateral, bem aplicado, por pouco não cortou os tendões da perna esquerda do futuro Barão.
Feyd-Rautha saltou para o lado, deixando uma lança farpada no antebraço direito do escravo. Os ganchos, completamente enterrados na carne do homem, não poderiam ser retirados sem rasgar os tendões.
Uma exclamação de espanto escapou da platéia. Um som que encheu Feyd-Rautha de júbilo.
Sabia agora o que seu tio estaria sentindo, sentado lá em cima com os Fenring, os observadores da Corte Imperial a seu lado. Não haveria interferência nessa luta. As formalidades seriam cumpridas diante das testemunhas. E o Barão interpretaria os eventos na arena de um único modo: como uma ameaça a si próprio.
O escravo retrocedeu, segurando a faca entre os dentes e amarrando a lança ao braço, com a flâmula. — Não sinto sua agulha! gritou. Avançou novamente, a faca pronta, o lado esquerdo oferecido, enquanto seu corpo se curvava para trás visando apresentar a maior superfície protetora do meio-escudo.
A ação não passou despercebida nas galerias. Soaram gritos nos camarotes familiares. Os auxiliares de Feyd-Rautha chamavam, perguntando-lhe se precisava deles.
Acenou para que recuassem.
“Eu lhes darei um espetáculo como nunca tiveram antes”, pensou Rautha. “Nenhuma morte simples que pudessem sentir e admirar o estilo. Isso seria alguma coisa para apanhá-los por dentro e torcê-los. Quando eu for Barão, eles se lembrarão deste dia, e nenhum deixará de me temer, por causa deste dia.”
Abriu espaço devagar ante o lento avançar do gladiador. A areia rangeu sob seus pés. Ouvia a respiração ofegante do escravo, o odor de seu próprio suor penetrava-lhe as narinas, assim como o cheiro de sangue no ar.
Confiante, ele se moveu para trás, virando-se para a direita, com uma segunda lança já pronta. O escravo moveu-se de lado, Feyd-Rautha pareceu tropeçar e ouviu o grito da platéia.
Novamente o escravo golpeou.
“Deuses, que lutador!”, pensou Feyd-Rautha, enquanto saltava para o lado. Somente sua agilidade de jovem o salvou, mas ele deixou a segunda lança farpada, firmemente enterrada no músculo do braço direito do escravo.
Choveram aclamações nervosas das galerias.
“Eles me aclamam agora”, pensou. Ouvira o entusiasmo nas vozes, exatamente como Hawat dissera que seria. Nunca eles haviam aclamado um lutador da família desse modo. E pensava em uma coisa que Hawat lhe dissera: — “É mais fácil ser aterrorizado por um inimigo a quem se admira.”
Rapidamente Feyd-Rautha recuou para o centro da arena, onde todos poderiam vê-lo claramente. Desembainhou a lâmina comprida, agachou-se e esperou pelo escravo.
O homem parou apenas o tempo necessário para amarrar o segundo espeto ao braço, depois correu em sua perseguição.
“Que a família me veja fazer esta coisa”, pensou Feyd-Rautha.
“Eu sou o inimigo deles: que pensem em mim como me vêem agora.”
Puxou também da espada curta.
— Eu não tenho medo de você, suíno Harkonnen — disse o gladiador. — Suas torturas não podem magoar um homem morto. E estarei morto, com minhas próprias mãos, antes que alguém ponha um dedo em minha carne. E você estará morto ao meu lado!
Feyd-Rautha sorriu, oferecendo agora a faca comprida. Aquela com o veneno na ponta. — Tente essa! — gritou, enquanto atiçava com a lâmina curta na outra mão.
O escravo trocou a faca de mão e aparou, tentando segurar a lâmina que se encontrava na mão enluvada de branco. Aquela que a tradição dizia conter o veneno.
— Você morrerá, Harkonnen.
Os dois lutaram em diagonal na arena. Onde o escudo de Feyd-Rautha tocava o meio-escudo do escravo, um brilho azul marcava o contato. O ar em torno deles enchia-se de ozônio.
— Morra com seu próprio veneno!
Ele começou a forçar a mão enluvada de branco para dentro do campo protetor, voltando a lâmina que julgava carregar o veneno.
“Deixe que vejam isto!”, pensou Feyd-Rautha. Golpeou com a lâmina comprida e ouviu-a chocar-se inutilmente contra a lança farpada, amarrada ao braço do escravo.
Sentiu um momento de desespero. Não pensara que lanças com farpas pudessem ser uma vantagem para o escravo. Agora elas davam ao homem um segundo escudo. E a força desse gladiador!
A lâmina curta estava sendo forçada, inexoravelmente, em sua direção, e Feyd-Rautha percebeu que um homem também podia morrer com uma lâmina sem veneno.
— Escória! — balbuciou Feyd-Rautha.
Ante a palavra-chave, os músculos do gladiador obedeceram com uma momentânea frouxidão. Foi o bastante para Feyd-Rautha. Ele recuou o espaço suficiente para a faca comprida, sua ponta envenenada relampejou, traçando uma linha vermelha para baixo, no peito do escravo. A ação do veneno foi instantânea, e o homem cambaleou para trás.
“Agora, deixe que a minha querida família observe”, pensou Feyd-Rautha. “Deixe-os pensar nesse escravo que tentou voltar contra mim a faca que julgava envenenada. Deixe-os perguntar a si mesmos como um gladiador pode vir a esta arena pronto para semelhante atentado. E deixe-os sempre conscientes de que não podem conhecer, com certeza, qual de minhas mãos carrega o veneno.”
Ficou em silêncio, observando o movimento cada vez mais lento do escravo. O homem parecia hesitar. Havia algo claro em seu rosto agora, para todos reconhecerem. A morte estava escrita lá.
E o escravo sabia o que lhe tinha sido feito, e como fora feito.
A lâmina errada carregara o veneno.
— Você! — gemeu o homem.
Feyd-Rautha afastou-se para dar espaço à morte. A droga paralisante contida no veneno ainda não fizera todo o efeito, mas a lentidão do homem revelava o seu avanço.
O escravo cambaleou para a frente, como se estivesse sendo puxado por um cordão. Um passo arrastado de cada vez. Cada passo o único, em seu universo. Ainda segurava a faca, mas sua ponta tremia.
— Um dia... um... de nós... pegará... você — balbuciou.
Um gemido triste contorceu sua boca. Sentou-se curvado, depois se enrijeceu, rolando com o rosto para o chão na direção oposta a Feyd-Rautha.
Avançou pela arena silenciosa, colocando o pé sob o gladiador e rolando-o, para dar às galerias uma visão clara do rosto do homem, quando o veneno começasse a agir sobre os músculos, produzindo contrações e espasmos.
Mas, quando o gladiador rolou, sua própria faca apareceu projetando-se de seu peito.
A despeito da frustração, Feyd-Rautha não pôde deixar de se admirar com o esforço que o escravo realizara para vencer a paralisia, e fazer essa coisa consigo mesmo. E, com a admiração, vinha a consciência de que ali se encontrava alguma coisa para ser temida.
“Aquilo que torna um homem super-humano é aterrorizante.”
Enquanto voltava sua mente para esse pensamento, Feyd-Rautha tornou-se consciente de um intenso ruído nas galerias e arquibancadas ao redor. Eles o estavam aplaudindo entusiasmados.
Voltou-se, olhando para a platéia.
Todos aplaudiram, exceto o Barão, que continuava sentado com a mão no queixo, em profunda meditação. E o Conde e sua dama olhavam para ele, com os rostos marcados por sorrisos.
O Conde Fenring voltou-se para a mulher, dizendo:
— Unnhhhh... um jovem... aaahhn... cheio de recursos. Hein, minha querida?
— Suas... han... respostas sinápticas foram muito rápidas — respondeu ela.
O Barão olhou para ela, para o Conde, e voltou sua atenção para a arena, pensando: “Se alguém pode chegar tão perto de um dos meus!” A raiva começou a substituir-lhe o medo. “Farei com que o mestre dos escravos morra sobre fogo lento, esta noite... E se este Conde e sua dama tiveram alguma participação nisso...”
A conversação na caixa do Barão encontrava-se muito distante para que Feyd-Rautha pudesse ouvir alguma coisa além do bater de pés e do coro, que agora vinha das arquibancadas.
— Cabeça! Cabeça! Cabeça! Cabeça!
O Barão, carrancudo, observou o modo como Feyd-Rautha se voltava para ele. Languidamente, controlando sua raiva com dificuldade, ele acenou para o jovem de pé na arena, ao lado do corpo estendido do escravo. “Que o garoto fique com a cabeça. Ele a mereceu por desmascarar o mestre dos escravos.”
Feyd-Rautha viu o sinal de concordância e pensou: “Eles acham que me honram. Deixe que vejam o que eu penso!”
Viu seus auxiliares se aproximarem com uma faca-serra, para fazer-lhe as honras, e acenou para que recuassem, repetindo o gesto quando hesitaram. “Eles pensam que me honram com apenas uma cabeça!” Curvou-se, colocando as mãos do gladiador em torno do cabo da faca, depois removeu a faca, colocando-a nas mãos inertes.
Tudo foi feito num instante. Ele se levantou chamando os auxiliares. — Enterrem este escravo intacto, com a faca nas mãos. O homem merece.
Na caixa dourada, o Conde Fenring inclinou-se junto do Barão, e disse:
— Um grande gesto, este, verdadeira bravura. Seu sobrinho possui estilo, bem como coragem.
— Ele insultou a multidão, ao recusar a cabeça — murmurou o Barão.
— Nem um pouco — disse Lady Fenring, olhando para as arquibancadas ao redor.
O Barão notou a linha de seu pescoço. Um fluir de músculos verdadeiramente adorável. Como num rapazinho.
— Eles apreciam o que o seu sobrinho fez.
Enquanto a importância do gesto de Feyd-Rautha era compreendida nos bancos mais afastados, enquanto todos viam os auxiliares carregarem o gladiador morto intacto, o Barão os observava, percebendo que ela interpretara a reação corretamente. As pessoas estavam delirantes, batendo umas nas outras, gritando e sapateando.
Falou, cansado:
— Devo ordenar um festival. Não podemos mandar as pessoas para suas casas nesse estado. Com suas energias ainda não consumidas. Elas precisam saber que compartilho seu entusiasmo.
Fez um sinal para o guarda, e um dos servos acima baixou a flâmula laranja dos Harkonnen sobre o balcão. Uma, duas, três vezes! Sinal para um festival.
Feyd-Rautha atravessou a arena para se colocar embaixo da caixa dourada, armas embainhadas, braços pendentes do corpo.
Acima do frenesi da multidão, que ainda não diminuíra, ele gritou:
— Um festival, tio?
O ruído começou a diminuir, enquanto as pessoas viam a conversação sendo mantida e esperavam.
— Em sua honra, Feyd — respondeu o Barão. Novamente a flâmula foi abaixada em sinal.
Através da arena, as barreiras foram anuladas e rapazes começaram a saltar para dentro, correndo em direção a Feyd-Rautha.
— Ordenou os escudos protetores abaixados, Barão? — indagou o Conde.
— Ninguém machucará o rapaz. Ele é um herói.
Os primeiros populares alcançaram Feyd-Rautha, erguendo-o nos ombros e começando a dar a volta à arena.
— Ele poderia caminhar desarmado e sem escudo através dos quarteirões mais pobres de Harko, esta noite — explicou o Barão.
— Eles lhe dariam o que tivessem de comida e bebida, apenas para partilhar de sua companhia.
Elevou-se de sua cadeira, acomodando seu peso nos suspensores.
— Vão desculpar-me, por favor. Existem questões que exigem minha atenção imediata. O guarda os levará ao castelo.
O Conde levantou-se e fez uma mesura.
— Certamente, Barão. Estamos interessados no festival. Nunca vimos um festival Harkonnen.
— Sim — respondeu o Barão. — Um festival. — Ele voltou-se, sendo envolvido pelos guardas enquanto caminhava para a saída particular da caixa.
O capitão da guarda curvou-se diante do Conde Fenring.
— Suas ordens, meu senhor?
— Nós iremos, ahhhh... esperar pelo pior do... unnn... tumulto passar.
— Sim, meu senhor. — O homem curvou-se, recuando três passos.
O Conde Fenring olhou para sua dama, falando-lhe de novo no código de murmúrios pessoal:
— Você viu, não?
Na mesma língua de murmúrios, ela respondeu:
— O rapaz sabia que o gladiador não estaria drogado. Houve um momento de medo, sim, mas não de surpresa.
— Foi planejado — disse ele. — Toda a atuação.
— Sem dúvida.
— Isso cheira a Hawat.
— De fato.
— Eu já exigi que o Barão elimine Hawat.
— Isso foi um erro, meu querido.
— Percebo agora.
— Os Harkonnen podem ter um novo Barão aqui, muito breve.
— Se esse é o plano de Hawat...
— Isso será examinado — respondeu ela.
— O jovem será mais suscetível ao controle.
— Por nós... após esta noite.
— Você não espera nenhuma dificuldade em seduzi-lo, não, minha queridinha?
— Não, meu amor. Você viu como ele olhava para mim.
— Sim, e posso ver agora por que devemos possuir essa linha genética.
— De fato, e é óbvio que devemos exercer um controle sobre ele. Eu plantarei em seu mais profundo inconsciente as frases prana-bindu necessárias para dobrá-lo.
— Partiremos assim que for possível. Tão logo esteja certa.
Ela estremeceu.
— Sem dúvida. Eu não desejaria ter uma criança neste lugar terrível.
— As coisas que fazemos em nome da humanidade — disse ele.
— A sua parte é mais fácil.
— Existem alguns preconceitos antigos que eu tive de dominar. E eles são primordiais, você sabe.
— Meu pobre querido — disse, acariciando-lhe o rosto. — Você sabe que este é o único modo seguro de salvar aquela linha de sangue.
Ele falou com uma voz de amargura.
— Entendo perfeitamente o que estamos fazendo.
— E nós não falharemos.
— A culpa começa com o sentimento de fracasso — lembrou ele.
— Não haverá culpa — explicou ela. — Hipnoligação da psique desse Feyd-Rautha com sua criança em meu ventre. Então nós iremos.
— Aquele tio... Já viu tamanha distorção?
— Ele é muito violento — disse Lady Fenring. — Mas o sobrinho pode muito bem se tornar pior, com o tempo.
— Graças ao tio. Quando se pensa no que esse rapaz poderia ter sido, com alguma outra criação. Com o código de honra dos Atreides para guiá-lo, por exemplo.
— É triste.
— Não poderíamos ter salvo ambos, o jovem Atreides e esse aí? O que eu ouvi a respeito daquele rapaz, Paul, me pareceu admirável. Uma boa união entre criação e treinamento. — Sacudiu a cabeça. — Mas não devemos desperdiçar lágrimas sobre a aristocracia dos desafortunados.
— Existe um ditado Bene Gesserit...
— Você tem ditados para tudo — protestou ele.
— Vai gostar desse. Ele diz: “Não conte um homem como morto até que veja seu corpo. E, ainda assim, poderá se enganar.”
Muad'Dib nos diz em Um Tempo para Reflexão, que seus primeiros encontros com as exigências de Arrakis constituíram o verdadeiro princípio de sua educação. Ele aprendeu então a sondar a areia, aprendeu a linguagem das agulhas do vento picando sua pele, aprendeu como o nariz pode ficar com a coceira da areia, e como reunir a preciosa umidade de seu corpo guardando-a e preservando-a. Enquanto seus olhos tomavam a cor azul do Ihad, ele aprendia os modos de Chakobsa.
— Prefácio de Stilgar para Muad'Dib, o Homem,
escrito pela Princesa Irulan
A tropa de Stilgar retornou ao sietch com os dois extraviados do deserto, subindo a depressão na luz minguante da primeira lua. As figuras, envoltas em mantos, apressavam-se com o perfume do lar em suas narinas. A linha acinzentada da aurora atrás deles parecia mais brilhante no desfiladeiro, onde o calendário de horizonte marcava o meio do outono, o mês de Caprock.
Folhas mortas, varridas pelo vento, espalhavam-se na base da colina onde as crianças do sietch haviam estado reunindo-as. No entanto, os sons da passagem da tropa (com exceção de ocasionais tropeços, da parte de Paul e sua mãe) não podiam ser diferenciados dos sons naturais da noite.
Paul limpou a poeira solidificada pelo suor em sua testa, sentiu um puxão no braço e ouviu a voz de Chani, sussurrando:
— Faça como lhe disse: puxe a dobra do capuz sobre sua testa! Deixe apenas os olhos expostos, do contrário você desperdiçará umidade.
Uma ordem, igualmente sussurrada por trás deles, exigiu silêncio.
— O deserto ouve vocês!
Um pássaro cantou nas rochas acima.
A tropa parou e Paul sentiu a repentina tensão.
Então ouviu uma batida fraca nas rochas, um som não mais alto do que um camundongo saltando na areia.
Novamente o pássaro cantou.
Uma comoção percorreu as fileiras da tropa. E novamente a batida do rato percorreu seu caminho, através da areia.
Uma vez mais o pássaro cantou.
A tropa recomeçou sua subida pela fenda das rochas, mas havia agora um silêncio ainda maior entre os Fremen, um silêncio que enchia Paul de cautela. Ele notou os olhares dissimulados para Chani, o modo como parecia, agora, afastada, recolhida dentro de si mesma.
Passavam agora por um trecho de rochas, percebia um fraco sibilar de mantos ao seu redor, enquanto notava o relaxamento na disciplina, embora ainda permanecesse uma quietude anormal em Chani e nos outros. Ele seguiu uma forma sombreada, subindo degraus, virando uma curva, depois mais degraus, passando por um túnel, por duas portas seladas contra perda de umidade, até chegar a uma estreita passagem, iluminada por globos. As paredes e o teto eram de rocha amarela.
Em toda a sua volta, Paul via Fremen lançando para trás os seus capuzes, removendo os tampões de nariz, respirando profundamente. Alguém suspirou. Paul olhou para Chani e descobriu que não se encontrava mais ao seu lado. Foi cercado por um turbilhão de corpos envoltos em mantos. Alguém esbarrou nele, dizendo:
— Desculpe-me, Usul. Que aperto! É sempre assim. — À esquerda, o rosto magro e barbado do homem chamado Farok voltou-se para Paul. As órbitas tingidas e a escuridão azul dos olhos pareciam mais escuras sob os globos amarelos. — Retire seu capuz, Usul. Você está em casa. — Ele ajudou Paul a soltar o prendedor do capuz, abrindo um espaço ao redor para passarem.
Paul arrancou os tampões do nariz, puxou para o lado o pano sobre a boca e o odor do lugar o atingiu: corpos não lavados, ésteres destilados de resíduos recuperados, por toda parte as emanações rançosas da humanidade, e uma mistura de cheiros de especiaria.
— Por quem estamos esperando, Farok?
— Pela Reverenda Madre, creio. Você ouviu a mensagem... pobre Chani.
“Pobre Chani?”, indagou Paul de si para si. Olhou em volta, tentando descobrir onde ela estava, para onde fora sua mãe em meio a todo esse aperto.
Farok respirou fundo.
— Aqui tem cheiro de lar — disse.
Paul notou que o homem estava apreciando o fedor no ar, que não havia ironia em seu tom. Ouviu sua mãe tossir e depois sua voz atravessando o aperto da tropa.
— Como são ricos os odores de seu sietch, Stilgar. Vejo que realizam muitos trabalhos com a especiaria... vocês fazem papel... plásticos... e aquilo não são explosivos químicos?
— Percebe tudo isso apenas no cheiro? — indagou outro homem.
Paul percebeu que ela estava falando para seu beneficio. Queria que ele aceitasse rapidamente esse assalto às suas narinas.
Houve um murmúrio de atividade na parte dianteira da tropa, e uma prolongada inspiração pareceu percorrer todos os Fremen.
Paul ouviu vozes sussurrando, ao longo da fila:
— É verdade então... Liet está morto.
“Liet”, pensou. E então: “Chani, filha de Liet!” As peças se uniam em sua mente. Liet era o nome Fremen do planetólogo. Olhou para Farok e indagou:
— Esse é o Liet conhecido como Kynes?
— Há somente um Liet — respondeu Farok.
Paul voltou-se, olhando para as costas do Fremen à sua frente.
“Então Liet-Kynes está morto”, pensou ele.
— Foi traição dos Harkonnen — cochichou alguém. Eles fizeram parecer um acidente... perdido no deserto... queda do “tóptero”...
Paul sentiu uma explosão de ódio em seu interior. O homem que os ajudara, que os salvara dos caçadores Harkonnen, o homem que enviara seus bandos de Fremen procurando por dois extraviados no deserto... outra vítima dos Harkonnen.
— Usul ainda está faminto por vingança? — indagou Farok.
Antes que Paul pudesse responder, ouviu-se um chamado em voz baixa e a tropa avançou para dentro de uma espaçosa câmara, arrastando Paul junto. Encontrou-se em um amplo espaço aberto, diante de Stilgar e uma mulher usando um traje que parecia um sarongue comprido, de cor verde e laranja, brilhante. Seus braços estavam nús até os ombros, e ele pôde ver que ela não usava traje-destilador. Sua pele era cor de oliva pálida. O cabelo escuro, comprido, escorria para trás a partir da testa alta, ressaltando as maçãs proeminentes do rosto, o nariz aquilino, entre a densa escuridão de seus olhos.
Ela voltou-se para Paul e ele viu anéis dourados, com fichas de água pendendo em suas orelhas.
— Foi este que venceu meu Jamis? — indagou ela.
— Fique quieta, Harad — disse Stilgar. — Foi coisa do Jamis. Ele invocou o tahaddi al-burhan.
— Mas ele não passa de um menino! — Ela sacudiu a cabeça rapidamente, fazendo as fichas de água tilintarem. Minhas crianças tornadas órfãs por outra criança? Certamente foi um acidente!
— Usul, quantos anos você tem? — indagou Stilgar.
— Quinze standard — respondeu Paul.
Stilgar percorreu a tropa com seu olhar.
— Existe alguém, entre vocês, que deseje me desafiar?
Silêncio.
Stilgar olhou para a mulher.
— Até que eu aprenda seus modos sobrenaturais, não o desafio.
Ela devolveu o olhar.
— Mas...
— Você viu a mulher estranha que foi com Chani, para ver a Reverenda Madre? Ela é uma Sayyadina forafreyn, mãe deste rapaz. A mãe e o filho são mestres nos modos estranhos de luta.
— Lisan al-Gaib — sussurrou a mulher. Seus olhos refletiam admiração, ao se voltarem para Paul.
“A lenda novamente”, pensou Paul.
— Talvez — disse Stilgar. — Ele ainda não foi testado. — Voltou sua atenção para Paul. — Usul, é nosso costume que você agora zele pela .mulher de Jamis, e por seus dois filhos. O yali... alojamento dela agora é seu. O jogo de café é seu... assim como sua mulher.
Paul observou a mulher, admirado. “Por que ela não lamenta por seu homem? Por que não demonstra ódio contra mim?”
Abruptamente percebeu que os Fremen o olhavam, esperando.
Alguém sussurrou: — Temos trabalho a fazer. Diga como a aceita.
Stilgar perguntou: — Você aceita Harah como mulher ou como Serva?
Harah ergueu os braços, girando lentamente nos calcanhares.
— Eu ainda sou jovem, Usul. Dizem que ainda pareço tão jovem como eu era com Geoff.. antes que Jamis o vencesse.
“Jamis matou outro homem para tomá-la”, pensou Paul.
— Se eu aceitá-la como serva, ainda posso mudar de opinião, depois? — perguntou ele.
— Você terá um ano para alterar sua decisão — explicou Stilgar. Depois disso, ela é uma mulher livre para escolher quem desejar... ou você pode libertá-la, para escolher por si mesma, quando quiser. Mas ela é sua responsabilidade, não obstante, durante um ano... e sempre compartilhará alguma responsabilidade para com os filhos de Jamis.
— Eu a aceito como serva — disse Paul.
Harah bateu com o pé no chão, sacudindo os ombros com raiva.
— Mas eu sou jovem!
Stilgar olhou para Paul, dizendo:
— Cautela é uma qualidade valiosa, num homem que vai liderar.
— Mas eu sou jovem — repetiu Harah.
— Cale-se — ordenou Stilgar. — Se uma coisa tem mérito, ela será reconhecida. Mostre a Usul os seus alojamentos, e cuide para que ele tenha roupas limpas e um lugar de repouso.
— Ohhh! — lamentou ela.
Paul já registrara o suficiente para conseguir uma primeira avaliação. Sentia a impaciência da tropa, sabendo que muitas coisas estavam sendo retardadas aqui. Pensou em perguntar sobre o paradeiro de sua mãe e de Chani, mas viu na fisionomia nervosa de Stilgar que isso seria um erro.
Olhou para Harah afinando a voz, fazendo um tom cavo, de modo a acentuar nela o medo e o espanto, dizendo:
— Leve-me aos meus alojamentos, Harah! Discutiremos sua juventude em outra ocasião.
Ela recuou dois passos, olhando assustada para Stilgar. Ele tem a voz estranha.
— Stilgar — exclamou Paul. — O pai de Chani fez com que eu lhe devesse um grande favor. Se existe algo...
— Isso Será decidido em Conselho — respondeu Stilgar. Você poderá falar, então. — Ele acenou, dando licença para saírem, e foi embora com o resto da tropa a segui-lo.
Paul pegou Harah pelo braço, notando como era fria sua carne. Sentiu-a tremer.
— Eu não vou machucá-la, Harah. Mostre-me nossos alojamentos — e ele suavizou sua voz com tons relaxantes.
— Não vai me abandonar quando passar o ano? Sei perfeitamente que não sou mais tão jovem como era antes.
— Enquanto eu viver, você terá um lugar ao meu lado respondeu ele, soltando-lhe o braço. — Vamos agora. Onde são os meus alojamentos? — Ela virou-se guiando-o para baixo através de uma passagem, dobrando à direita num amplo túnel transversal, iluminado por globos amarelos igualmente espaçados no teto.
O piso de pedra era liso, sem nenhum sinal de areia.
Paul colocou-se ao lado dela, observando-lhe o perfil aquilino enquanto caminhavam.
— Você me odeia, Harah?
— Por que deveria odiá-lo?
Ela acenou para um grupo de crianças que olhavam para eles de uma saliência elevada, num dos lados da passagem. Paul vislumbrou formas de adultos, atrás das crianças, parcialmente ocultos por cortinas muito finas.
— Eu... venci Jamis.
— Stilgar disse que houve uma cerimônia, e que você é um amigo de Jamis. — Olhou de lado para ele. — Stilgar disse que você deu umidade para os mortos. É verdade?
— Sim.
— Isso é mais do que eu posso fazer... ou farei.
— Não lamenta a perda dele?
— Quando for o tempo para lamentação, eu lamentarei.
Passaram por uma abertura em arco. Paul olhou através dela, vendo homens e mulheres trabalhando com uma maquinaria montada em andaimes, em uma câmara larga e brilhante. Parecia haver um ritmo de urgência.
— Que estão fazendo ali?
Ela olhou para trás, enquanto passavam além do arco, e respondeu:
— Eles se apressam em terminar a quota na oficina de plásticos, antes de fugirmos. Precisamos de muitos coletores de orvalho para a plantação.
— Fugir?
— Até que os açougueiros parem de nos caçar ou sejam expulsos de nossa terra.
Paul se recuperou de um tropeção, sentindo um instante do tempo aprisionado, lembrando-se de um fragmento, uma projeção visual de presciência, todavia, ela estava deslocada como uma montagem em movimento. Essas peças de sua memória presciente não eram exatamente como as lembrava.
— Os Sardaukar nos caçam — concordou ele.
— Não vão encontrar muito, exceto um ou dois sietch vazios. E encontrarão sua parte de mortes na areia.
— Eles encontrarão este lugar? — indagou ele.
— Provavelmente.
— E no entanto nós perdemos tempo para... — gesticulou com a cabeça, em direção ao arco, agora bem atrás — ... fabricar... coletores de orvalho?
— A plantação tem que continuar.
— O que são coletores de orvalho?
O olhar dela era cheio de espanto. — Eles não lhe ensinam nada no... de onde quer que tenha vindo.
— Não sobre coletores de orvalho.
— Hai! — disse, e havia toda uma conversação nessa única palavra.
— Bem, o que são eles?
— Cada arbusto, cada erva que você vê lá fora, no erg, como supõe que elas vivem quando as deixamos? Cada uma é plantada do modo mais gentil em seu pequeno fosso. Os poços são cheios com toldos ovais de cromo-plástico. A luz os torna brancos. Pode vê-los cintilando na alvorada, se olhar de um ponto alto. O branco reflete. Mas quando o Velho Pai Sol se vai, o cromo-plástico reverte sua transparência para o negro. Ele esfria com extrema rapidez, e a superfície condensa a umidade do ar. Essa umidade goteja para manter nossas plantas vivas.
— Coletores de orvalho — murmurou ele, encantado pela beleza simples de tal estratagema.
— Eu lamentarei por Jamis no tempo devido — disse, como se sua mente ainda não houvesse abandonado essa pergunta. — Ele era um bom homem, o Jamis, mas se enfurecia facilmente, e com rapidez. Um bom fornecedor, o Jamis, e uma maravilha com as crianças. Ele não fazia qualquer distinção entre o garoto do Geoff, meu primeiro filho, e o seu próprio. Eles eram iguais, aos seus olhos. — Ela voltou um olhar indagador para Paul. — Será desse modo com você, Usul?
— Nós não temos esse problema.
— Mas se...
— Harah!
Ela estremeceu com a severidade na voz dele.
Passaram por outra sala brilhantemente iluminada, visível através de um arco, à esquerda.
— O que é feito ali?
— Eles reparam a máquina de tecelagem. Mas ela deve ser desmontada esta noite. — Gesticulou para um túnel ramificando-se à esquerda. — Por ali, e além, há processadores de alimentos, e manutenção para trajes-destiladores. — Olhou para Paul. — Seu traje parece novo, mas se precisar de conserto eu sou boa com trajes. Trabalho na fábrica na temporada.
Começaram a encontrar grupos de pessoas agora, e maior número de aberturas, nos lados do túnel. Uma fila de homens e mulheres passou por eles carregando bolsas que borbulhavam ruidosamente. O cheiro de especiaria era forte em torno deles.
— Eles não conseguirão nossa água — disse Harah. — Ou nossa especiaria. Pode ter certeza disso.
Paul olhou para as aberturas nas paredes do túnel, notando um pesado carpete em uma das saliências elevadas, vislumbres de quartos com tecidos brilhantes nas paredes, e almofadas empilhadas.
Pessoas nas aberturas ficavam em silêncio enquanto eles se aproximavam, seguindo Paul com olhares curiosos e de respeito.
— As pessoas acham estranho que você tenha vencido Jamis. É provável que tenha alguns desafios a enfrentar, quando nos acomodarmos num novo sietch.
— Eu não gosto de matar.
— Assim diz Stilgar — respondeu ela, sua voz traindo-lhe a descrença.
Um cantar agudo tornou-se cada vez mais alto, adiante deles.
Eles chegaram a outra abertura lateral, mais larga do que qualquer uma das outras que Paul já vira. Diminuiu o passo, olhando para uma sala repleta de crianças sentadas, com as pernas cruzadas sobre um tapete marrom. Diante de um quadro-negro na parede oposta havia uma mulher de roupa amarela, um estilete projetor em sua mão.
O quadro encontrava-se repleto de desenhos: círculos, cunhas e curvas, quadrados e rastros de cobras, arcos fluidos divididos por linhas paralelas. A mulher aponta para os desenhos um após o outro, tão rápido quanto pode mover o estilete projetor, e as crianças cantam em ritmo, enquanto a mão dela se move.
Paul escutava, ouvindo as vozes se tornarem cada vez mais fracas lá atrás, enquanto avançava para as profundezas do sietch com Harah.
— Árvore! — cantavam as crianças: — Árvore, grama, dunas, vento, montanha, colina, fogo, relâmpago, rochas, rochas, poeira, areia, calor, abrigo, calor, pleno inverno, frio, vazio, erosão, verão, caverna, dia, tensão, lua, noite, caprock, maré de areia, colina, plantação, ligadura...
— Vocês continuam a dar aulas, em uma ocasião como esta? — indagou Paul.
O rosto dela tornou-se sombrio, e uma mágoa perceptível em sua voz:
— O que Liet nos ensinou nós não podemos esquecer um instante. Liet, que está morto, não pode ser esquecido. Ele é o caminho de Chakobsa.
Atravessaram o túnel para a esquerda, subindo em uma saliência. Harah abriu cortinas finas como gaze e ficou ao lado: Seu yali está pronto para você, Usul.
Paul hesitou, antes de unir-se a ela sobre a saliência. Sentia uma súbita relutância em ficar a sós com essa mulher. Ocorreu-lhe estar cercado por um modo de vida que só poderia ser entendido postulando-se uma ecologia de idéias e valores. Sentia que esse mundo Fremen estava tentando fisgá-lo, envolvê-lo em seus caminhos. E sabia o que o esperava na armadilha... O selvagem jihad, a guerra religiosa que ele sentia dever evitar a qualquer custo.
— Este é seu yali — repetiu Harah. — Por que hesita?
Paul acenou, subindo ao encontro dela. Ergueu as cortinas, sentindo as fibras de metal no plástico, seguindo-a através da curta entrada até atingir uma sala maior, quadrada, com aproximadamente seis metros de lado. Espessos carpetes azuis cobriam o piso, tecidos azuis e verdes ocultavam as paredes de rocha, enquanto globos luminosos sintonizados na luz amarela oscilavam contra faixas de tecido amarelo, pendendo como cortinas do teto.
O efeito era semelhante ao interior de uma antiga tenda.
Harah colocou-se diante dele, a mão esquerda sobre o quadril, seus olhos observando-lhe o rosto.
— As crianças estão com uma amiga. Elas se apresentarão depois.
Paul disfarçou seu embaraço vistoriando rapidamente a sala.
Finas cortinas à direita, ele percebeu, ocultavam parcialmente uma sala maior, com almofadas empilhadas em torno das paredes. Sentiu uma brisa suave, vindo de um duto de ar, e viu a abertura habilmente oculta entre os panos pendentes do teto.
— Quer que eu o ajude a retirar seu traje-destilador?
— Não... obrigado.
— Devo buscar comida?
— Sim.
— Existe uma câmara de reciclagem, além da outra sala — apontou ela. — Para seu conforto e conveniência, quando não estiver usando o traje-destilador.
— Você disse que teremos de abandonar este sietch. Não devíamos estar embrulhando as coisas, ou algo parecido?
— Será feito no devido tempo. Os açougueiros ainda não penetraram em nossa região.
Ela ainda hesitava, olhando para ele.
— O que é? — reclamou.
— Você não tem os olhos do Ibad. É estranho, mas não inteiramente sem atrativo.
— Traga a comida. Estou faminto.
Ela sorriu para ele — o sorriso de uma mulher experiente, que Paul achou inquietante.
— Eu sou sua serva — disse e girou para se afastar num movimento flexível, abaixando-se sob um pesado enfeite de parede que revelou outra passagem, antes de cair de novo no lugar.
Sentindo-se furioso consigo mesmo, passou pela fina cortina à direita e entrou na sala maior. Ficou lá por um momento, tomado de incertezas. Queria saber onde estaria Chani... Chani, que acabara de perder o pai.
“Somos iguais nesse ponto”, pensou.
Um grito agudo soou nos corredores externos, seu volume abafado pelas cortinas. Repetiu-se um pouco mais distante. Depois novamente Paul percebeu que alguém estava cantando a hora.
Percebeu, então, não ter visto relógios em parte alguma.
Um fraco cheiro de arbusto creosoto, queimando, atingiu suas narinas, sobrepujando o onipresente fedor do sietch. Paul reconheceu já ter superado o assalto odorífero aos seus sentidos.
Preocupava-se uma vez mais com sua mãe, em como a montagem do futuro iria incorporá-la... e a filha que ela carregava.
Uma mutável consciência temporal ondulou ao seu redor. Sacudiu a cabeça violentamente, concentrando suas atenções nas evidências que apontavam para a grande profundidade e amplidão da cultura dos Fremen, que acabava de tragá-lo. Com suas sutis estranhezas.
Notara uma coisa a respeito dessas cavernas e dessa sala, uma coisa que sugeria maiores diferenças do que tudo que já testemunhara. Não havia sinal de farejadores de venenos aqui, nenhuma indicação de seu uso em qualquer parte da caverna. E, no entanto, ele podia sentir cheiros de venenos em meio ao fedor do sietch. Desde os fortes aos comuns.
Ouviu um rumor de cortinas e, pensando que fosse Harah retornando com a comida, virou-se para observá-la. No lugar dela viu aparecerem dois garotos, saindo debaixo de cortinas deslocadas. Tinham idades entre nove e dez anos e olhavam-no com olhares de avidez. Cada um deles usava uma pequena faca cristalina, tipo kindjal, a mão repousando sobre o cabo.
Lembrou-se das histórias sobre os Fremen. Histórias de que suas crianças lutavam tão ferozmente quanto os adultos.
As mãos se movem,
os lábios se movem
Idéias jorram de suas palavras,
E seus olhos devoram!
Ele é uma ilha de Personalidade.
— descrição contida no Manual do Muad'Dib,
escrito pela Princesa Irulan
Os fosfotubos, nas extensões superiores da caverna, lançavam um brilho fraco sobre o interior cheio de gente, sugerindo o tamanho colossal desse espaço cercado de rocha... Jessica notava que era maior que o Salão de Reuniões da escola Bene Gesserit. Calculou que havia mais de cinco mil pessoas reunidas aqui, debaixo da projeção de rocha onde ela se colocara com Stilgar.
E mais pessoas continuavam chegando. Enchiam o ar com seus murmúrios.
— Seu filho foi chamado em seu repouso, Sayyadina — revelou Stilgar. — Deseja que ele compartilhe sua decisão?
— Ele poderia mudar minha decisão?
— O ar com que fala vem de seus próprios pulmões, certamente, mas...
— A decisão permanece — insistiu ela.
No entanto, sentia receio, imaginando se poderia usar Paul como uma desculpa para recuar desse curso tão perigoso. E havia uma filha, ainda não nascida, com que se preocupar. Aquilo que colocava em perigo a carne da mãe colocaria em perigo a carne da filha.
Chegaram homens com tapetes enrolados, grunhindo em protesto contra seu peso, erguendo a poeira enquanto suas cargas eram jogadas sobre a saliência.
Stilgar segurou-a pelo braço, levando-a de volta até a trompa acústica que formava o limite posterior da projeção de rocha.
— A Reverenda Madre sentará aqui, mas você pode descansar até que ela chegue.
— Eu prefiro ficar de pé.
Observou os homens desenrolarem os tapetes, cobrindo a saliência, depois olhou para a multidão. Devia haver agora pelo menos dez mil pessoas no piso rochoso abaixo.
E, ainda assim, continuava a chegar mais.
Lá fora, no deserto, ela sabia já haver um crepúsculo avermelhado, mas aqui, no salão da caverna, permanecia a perpétua penumbra, uma vastidão cinzenta apinhada de gente. Gente que viera vê-la arriscar sua vida.
Uma passagem foi aberta através da multidão à sua direita e ela viu que Paul se aproximava, ladeado por dois garotos. Havia um ar de presunção e audácia naquelas crianças, que mantinham as mãos sobre as facas e olhavam carrancudas para a muralha de gente em ambos os lados.
— Os filhos de Jamis, que agora são filhos de Usul — explicou Stilgar. — Eles levam muito a sério suas tarefas de escolta. — Ele arriscou um sorriso para Jessica.
Ela reconheceu seu esforço para animá-la e ficou grata, embora não pudesse retirar de sua mente o perigo com que se confrontava.
“Não tenho outra escolha senão fazer isto”, pensou ela. “Devemos agir rapidamente, se vamos garantir nosso lugar entre estes Fremen.”
Paul subiu na projeção de rocha, deixando as crianças embaixo.
Parou diante de sua mãe, olhando para Stilgar, e depois para Jessica.
— O que está acontecendo? Pensei que estavam me chamando para o Conselho.
Stilgar ergueu uma das mãos pedindo silêncio, apontou para a esquerda, onde outra passagem fora aberta em meio à multidão.
Chani se aproximava com seu rosto de fada marcado pela tristeza.
Ela removera seu traje-destilador e usava um gracioso vestido azul que deixava à mostra os braços finos. Próximo ao ombro, no braço esquerdo, fora amarrado um lenço verde.
“Verde para o luto”, pensou Paul.
Era um dos costumes que os dois filhos de Jamis lhe haviam explicado indiretamente, ao dizerem que não usavam verde porque o aceitavam como pai-guardião.
— Você é o Lisan al-Gaib? — eles haviam perguntado. Paul, sentindo o jihad naquelas palavras, evitou uma resposta com outra pergunta. Descobrira então que Kaleff, o mais velho dos dois, tinha dez anos, sendo o filho natural de Geoff Orlop, o mais jovem, tinha oito, e era o filho natural de Jamis.
Fora um dia estranho, com esses dois montando guarda ao seu lado, porque assim pedira, mantendo afastados os curiosos e dando-lhe tempo para alimentar seus pensamentos e memórias prescientes, planejando um modo de evitar o jihad.
E agora, de pé ao lado de sua mãe nessa caverna, olhando para a multidão embaixo, ele cogitava se algum plano poderia evitar a selvagem expansão das legiões de fanáticos.
Chani, aproximando-se da saliência, era seguida a distância por quatro mulheres que carregavam uma quinta sobre uma liteira.
Jessica ignorou a aproximação de Chani, focalizando toda a sua atenção na mulher sobre a liteira: uma velha, uma coisa murcha e enrugada num vestido preto com um capuz jogado para trás, a revelar os cabelos grisalhos e o pescoço fibroso.
As carregadoras de liteira depositaram sua carga gentilmente sobre a saliência, permanecendo embaixo, e Chani ajudou a anciã a se levantar.
“Então esta é a Reverenda Madre”, pensou Jessica.
A velha apoiava-se pesadamente em Chani, enquanto maneava em direção a Jessica, parecendo um conjunto de gravetos presos num roupão preto. Parou na sua frente, olhando para cima por um longo instante, antes de falar num rouco sussurro:
— Então é você — e a velha cabeça acenou precariamente, uma única vez, sobre o pescoço fino. — A Shadout Mapes tinha razão em ter pena de você.
Jessica falou rapidamente e com desdém:
— Eu não preciso da piedade de ninguém.
— Isso ainda falta ser provado — disse a velha, com sua voz rouca. Voltou-se, com surpreendente rapidez, para encarar a multidão: — Diga a eles, Stilgar.
— Devo?
— Nós somos o povo de Misr — explicou ela. — Desde que nossos ancestrais Sunni fugiram do Nilótico al-Ourouba, nós temos conhecido luta e morte. Os jovens devem prosseguir, para que nossa gente não desapareça.
Stilgar respirou fundo e deu dois passos à frente.
Jessica notou o silêncio se estabelecendo dentro da caverna abarrotada com umas vinte mil pessoas agora, esperando, quase imóveis e silenciosas. Fazia com que se sentisse pequena, e enchia-a de cautela.
— Esta noite nós abandonaremos este sietch que nos abrigou por tanto tempo, e rumaremos para o sul, deserto adentro — disse Stilgar, sua voz ribombando por sobre as faces erguidas, reverberando com a força emprestada pela trompa acústica por trás da saliência.
A multidão continuava em silêncio.
— A Reverenda Madre me diz que não pode sobreviver a outra hajra. Nós já vivemos antes sem uma Reverenda Madre, mas isso não é bom para pessoas que buscam um novo lar em tais paragens.
Agora a multidão se mexia, ondulando com sussurros e correntes de inquietação.
— Isso pode não acontecer — explicou Stilgar. — Nossa nova Sayyadina, Jessica, a Estranha, consentiu em entrar no ritual desta vez. Ela tentará passar, para que não percamos a força de nossa Reverenda Madre.
“Jessica, a Estranha”, pensou ela. Via Paul olhando para ela, os olhos cheios de perguntas, enquanto sua boca se mantinha em silêncio ante toda estranheza ao seu redor.
“Se eu morrer na tentativa, o que será dele?” Novamente sentia pressentimentos fluindo em sua mente.
Chani conduziu a Reverenda Madre para um banco de rocha, colocado profundamente no interior da trompa acústica, e retornou para ficar ao lado de Stilgar.
— Que não percamos tudo, se Jessica, a Estranha, falhar — disse Stilgar. — Chani, filha de Liet, será consagrada como Sayyadina, nesta ocasião. — Afastou-se um passo para o lado.
Das profundezas da trompa acústica a voz de anciã chegou até eles, um sussurro amplificado, duro e penetrante:
— Chani retornou de sua hajra. Chani viu as águas.
Uma resposta sussurrante elevou-se da multidão.
— Ela viu as águas!
— Eu consagro a filha de Liet como Sayyadina — disse a velha.
— Ela está aceita — respondeu a multidão.
Paul quase não ouvia a cerimônia, com sua atenção ainda centrada no que fora dito sobre sua mãe.
“Se ela falhar.”
Olhou para trás, em direção à que era chamada de Reverenda Madre, estudando as feições ressequidas da velha, a insondável fixação azul de seus olhos. Parecia que uma brisa ia soprá-la para longe, ao mesmo tempo, algo em sua aparência sugeria que ela poderia ficar, intocada, na trilha de uma tormenta de coriolis. Ela carregava a mesma aura de poder que ele relembrava na Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, que o testara com agonia, à maneira do gom jabbar.
— Eu, a Reverenda Madre Ramallo, cuja voz fala como uma multidão, digo-lhes isto: é adequado que Chani entre para Sayyadina.
— É adequado — respondeu a multidão.
A velha acenou, sussurrando:
— Eu dou a ela os céus prateados, o deserto dourado e as rochas cintilantes, os campos verdes que existirão. Eu os dou a Sayyadina Chani. E para que ela não esqueça que é uma serva de todos nós, a ela são destinadas as tarefas servis nesta Cerimônia da Semente. Seja como Shai-hulud deseja. — Ela ergueu um braço fino e marrom, e o deixou cair. Jessica sentia a cerimônia encerrá-la com uma corrente que a arrastava para além do ponto de retorno. Olhou uma vez para o rosto cheio de perguntas de Paul, e então preparou-se para a prova.
— Que os mestres d'água se aproximem — ordenou Chani, com apenas um leve tremor em sua voz de menina.
Agora Jessica sentia-se no foco do perigo, conhecendo sua presença na vigilância da multidão, no silêncio.
Um grupo de homens percorreu uma trilha ondulada, aberta pela multidão, movendo-se em pares. Cada par carregava um pequeno saco de pele, do tamanho, talvez, do dobro da cabeça de um homem. Os sacos balançavam, pesados.
Os dois lideres depositaram sua carga aos pés de Chani, sobre a saliência, e recuaram.
Jessica olhou para o saco e em seguida para os homens. Eles tinham os capuzes tombados para trás, revelando os cabelos compridos presos num rolo, na base do pescoço. Os poços negros de seus olhos olhavam para ela sem se desviarem.
Um espesso odor de canela elevou-se do saco, chegando até Jessica. “A especiaria?”, perguntou ela de si para si.
— Existe água? — indagou Chani.
O mestre d'água à esquerda, um homem com uma cicatriz violácea atravessando a base do nariz, acenou uma vez.
— Existe água, Sayyadina, mas nós não podemos bebê-la.
— Existem sementes? — indagou Chani.
— Existem sementes — respondeu o homem.
Chani ajoelhou-se, colocando as mãos no saco.
— Abençoada seja a água, e sua semente.
Havia uma familiaridade no ritual, e Jessica observou a Reverenda Madre Ramallo. Os olhos da velha estavam fechados, e ela sentava-se curvada, como se estivesse adormecida.
— Sayyadina Jessica — chamou Chani.
Jessica voltou-se vendo a garota olhar para ela.
— Já provou da água abençoada? — indagou Chani.
E antes que Jessica pudesse responder, ela mesma disse:
— Não é possível que tenha provado da água abençoada. Veio de outro mundo, e não é uma privilegiada.
Um suspiro passou através da multidão, um ruído de mantos movendo-se, que fez os cabelos se arrepiarem na nuca de Jessica.
— A colheita era vasta e o produtor foi destruído — disse Chani. Começou a desamarrar um tubo enrolado no topo do saco.
E agora Jessica sentia uma sensação de perigo fervendo ao seu redor. Olhou para Paul, vendo que ele fora capturado pelo mistério do ritual, e só tinha olhos para Chani.
“Será que ele já viu este momento no tempo?”, perguntou Jessica a si mesma. Repousou a mão no abdômen, pensando na filha lá dentro, e indagando com os seus botões: “Terei o direito de arriscar nossas vidas?”
Chani ergueu o tubo em direção a Jessica.
— Aqui está a Água da Vida, a água que é maior do que a água! Kan, a água que liberta a alma. Se for a Reverenda Madre, ela abrirá o universo para você. Que o Shai-hulud julgue isso agora.
Jessica sentia-se dividida entre a sua obrigação para com Paul e o dever para com sua filha que ainda ia nascer. Pelo bem de Paul, ela sabia que era necessário levar aquele tubo à boca, e beber do conteúdo do saco, mas enquanto se curvava para fazê-la, seus sentidos a advertiam do perigo.
A substância no saco tinha um cheiro penetrante, e de certo modo parecido com o de muitos venenos que conhecia, mas ao mesmo tempo diferente, também.
— Deve beber agora — disse Chani.
“Não há retorno agora”, lembrou-se Jessica. Mas nada, em todo o seu treino Bene Gesserit, ocorria-lhe que pudesse ajudá-la nesse instante.
“O que é isso?”, perguntou de si para si. “Um licor? Uma droga?”
Enquanto aproximava o tubo da boca, cheirava os ésteres de canela, lembrando-se então da bebedeira de Duncan Idaho. “Licor de especiaria?” Colocou na boca o tubo de sifão, e sugou apenas um diminuto gole. Tinha gosto de especiaria, parecendo um pouco picante na língua.
Chani pressionou o saco de pele. Uma grande golfada do liquido projetou-se para dentro de sua boca e, antes que pudesse evitar, já o tinha engolido, lutando para manter a calma e a dignidade.
— Aceitar uma pequena morte é pior do que a morte em si — disse Chani, e olhou para Jessica, esperando.
E Jessica devolveu o olhar, ainda segurando o tubo na boca.
Provara o conteúdo do saco, e agora sentia-o em suas narinas, no céu da boca, nas faces, nos olhos... Uma doçura picante.
“Frio.”
Novamente Chani bombeou o liquido para dentro de sua boca.
“Delicado.”
Jessica observou o rosto de Chani — o rosto de fada vendo traços de Liet-Kynes ainda não fixados pelo tempo.
“Isto é uma droga”, disse ela para si mesma. Mas diferente de qualquer outra droga por ela conhecida, embora o treino Bene Gesserit obrigasse a provar muitas.
As feições de Chani estavam tão claras como se delineadas na luz.
“Uma droga.”
Um silêncio envolvente se estabeleceu ao seu redor. Cada fibra de seu corpo aceitava o fato de que algo profundo lhe acontecera.
Sentia-se uma partícula consciente, menor do que qualquer partícula sub-atômica, mas ainda assim capaz de movimento, e de sentir o mundo ao seu redor. Como uma revelação abrupta — como cortinas sendo arrancadas — ela compreendeu que se tornara consciente de uma extensão psicocinestética de si mesma. Ela era um ponto, e no entanto não era.
A caverna permanecia à sua volta — as pessoas. Podia senti-las: Paul, Chani, Stilgar, a Reverenda Madre Ramallo.
“Reverenda Madre!”
Na escola, ouvira rumores de que algumas não sobreviviam ao teste de Reverenda Madre, que a droga as dominava.
Voltou sua atenção para a Reverenda Madre Ramallo, consciente agora de que tudo isso estava acontecendo num instante de tempo congelado. O tempo parado, apenas para ela.
“Por que o tempo está suspenso?”, perguntou a si mesma. Olhou para as expressões imobilizadas ao seu redor, vendo uma partícula de poeira acima da cabeça de Chani, parada lá.
Esperando.
A resposta a esse instante veio como uma explosão em sua consciência: seu sentido pessoal de tempo fora suspenso para salvar-lhe a vida!
Focalizou sua consciência na extensão psicocinestética de si mesma, olhando para dentro, e sendo confrontada imediatamente por um núcleo celular, um poço de escuridão do qual ela se afastou abruptamente.
“Este é o lugar onde não podemos olhar”, pensou. “Aí está o lugar que as Reverendas Madres tão relutantemente mencionam. O lugar onde apenas um Kwisatz Haderach poderá olhar.”
Essa consciência trouxe-lhe de volta um pouco de sua confiança, e novamente ela se aventurou a focalizar essa extensão psicocinestética, tornando-se um eu-partícula, que buscava dentro de seu corpo por uma fonte de perigo.
Ela encontrou-a na droga que engolira.
O material era constituído de partículas, dançando dentro dela, seus movimentos tão rápidos que nem mesmo o tempo congelado pudera pará-las. Partículas dançantes. Ela começou a reconhecer estruturas familiares, uniões atômicas: um átomo de carbono aqui, oscilando em espiral... uma molécula de glicose. Jessica deparou com toda uma cadeia de moléculas e reconheceu uma proteína... configuração metilprotéica.
“Ahh!”
Uma exclamação mental, silenciosa, em seu interior, enquanto via a natureza do veneno.
Usando sua sondagem psicocinestética, ela se moveu para dentro dele, mudando a posição de um átomo de oxigênio, permitindo que outra partícula de carbono se ligasse, religando a cadeia de oxigênio... hidrogênio.
A mudança espalhou-se... cada vez mais rápida, enquanto a reação catalítica abria sua superfície de contato.
A suspensão de tempo relaxou seu poder sobre ela, e Jessica sentiu movimento. O tubo saindo do saco ainda lhe tocava a boca, recolhendo, vagarosamente, uma gota de umidade.
“Chani está recolhendo o catalisador do meu corpo para alterar o veneno dentro do saco”, pensou ela. “Mas por quê?”
Alguém a colocou sentada. Viu a Reverenda Madre Ramallo sendo trazida para sentar-se ao seu lado, sobre a projeção atapetada. Uma mão fria tocou-lhe o pescoço.
E lá estava outra partícula psicocinestética entrando em sua consciência! Jessica tentou rejeitá-la, mas a partícula deslizou, cada vez mais perto... mais perto.
Elas se tocaram!
Era o máximo em empatia: ser duas pessoas ao mesmo tempo.
Não era telepatia, mas consciência mútua.
“Com a velha Reverenda Madre!”
Mas Jessica via agora que a Reverenda Madre não pensava em si mesma como uma velha. Uma imagem desdobrou-se diante do mútuo olho mental: uma moça muito jovem, com um espírito saltitante e um temperamento afetuoso.
Dentro da consciência mútua, a garota disse:
— Sim, é assim que eu sou.
Jessica apenas podia aceitar as palavras, não podia responder.
— Você terá isto logo, Jessica — disse-lhe a imagem interior.
“Isto é alucinação”, pensou ela.
— Você sabe que não é. Rápido, agora, não lute contra mim. Não há muito tempo. Nós... — Houve uma longa pausa, depois a imagem interna continuou: — Você devia nos ter dito que está grávida.
Jessica encontrou a voz que falava dentro da consciência mútua.
— Por quê?
— Isso modifica vocês duas! Santa Mãe, o que fizemos?
Jessica sentiu uma mudança forçada na consciência mútua, viu outra presença-partícula com seu olhar interior. O outro ponto corria loucamente, para cá e para lá, circulando. E irradiava puro terror.
— Você tem de ser forte — disse a presença-imagem da Reverenda Madre. — Sinta-se grata por ter no ventre uma menina. Isso mataria um feto masculino. Agora... cuidadosamente, suavemente... toque a presença de sua filha. Seja a presença de sua filha. Absorvendo o medo... acalmando... use sua coragem, sua força... suave agora... com calma...
O ponto rodopiante passou perto e Jessica compeliu-se a tocá-lo.
O horror ameaçou sufocá-la.
Ela lutou do único modo que conhecia: “Eu não temerei. O medo é o assassino da mente.”
A ladainha produziu uma calma aparente. O outro ponto permaneceu imóvel, junto dela.
“Palavras não funcionarão”, compreendeu ela. E tentou reduzir-se a reações emotivas básicas. Irradiando amor, conforto, um cálido aconchego.
O terror diminuiu.
Novamente a presença da velha Reverenda Madre se afirmou, mas agora havia uma tripla consciência mútua: duas ativas, e uma que permanecia quieta, absorvendo.
— O tempo me apressa — disse a Reverenda Madre. — Tenho muito para lhe dar, mas não sei se a sua filha pode aceitar tudo isso e manter a sanidade. Mas assim deve ser: as necessidades da tribo têm prioridade.
— O que...
— Fique calada, e aceite!
Experiências começaram a se desenrolar diante de Jessica.
Era como um filme-palestra no projetor de treinamento subliminar, lá na escola Bene Gesserit... mas rápido... atordoantemente rápido. E todavia... nítido.
Conheceu cada experiência, como acontecera: houvera um amante. Viril, barbado, com os olhos de Fremen, e Jessica viu sua força e seu carinho, tudo a respeito dele, num piscar de olhos, através da memória da Reverenda Madre.
Não havia tempo agora para pensar no que isso poderia estar fazendo com o feto de sua filha, somente tempo para aceitar e registrar. As experiências de vida derramavam-se sobre Jessica: nascimento, vida, morte — assuntos importantes, e não importantes, tudo atropelando-se num único tempo de visão.
“Por que uma queda de areia, do alto de um penhasco, deve permanecer na memória?”, indagou ela.
Foi muito tarde que ela percebeu o que estava acontecendo: a velha estava morrendo, e ao morrer passava suas experiências para a consciência de Jessica, como água sendo derramada de uma caneca para outra. O outro ponto apagou-se, recuando na consciência pré-natal, enquanto Jessica o observava. E, morrendo em concepção, a velha Reverenda Madre abandonou sua vida na memória de Jessica, com um último conjunto de palavras.
— Eu estive esperando por você, por um longo tempo — disse ela. — Aqui está minha vida.
E lá estava, reunida e encerrada, toda ela.
Até mesmo o momento da morte.
“Eu sou agora uma Reverenda Madre”, percebeu Jessica.
E sabia, com a consciência generalizada em que se tornara, precisamente o que significava ser uma Reverenda Madre Bene Gesserit. A droga venenosa a transformara.
E isso não era exatamente como elas faziam na escola Bene Gesserit, ela tinha certeza. Ninguém jamais lhe revelara os mistérios envolvendo essa parte, mas tinha certeza de que não era assim.
O resultado final era o mesmo.
Jessica sentiu a partícula-filha ainda tocando sua consciência interior, sondou-a sem obter resposta.
Um terrível sentimento de solidão apoderou-se dela ao perceber o que lhe acontecera. Via sua própria vida aparecer como um padrão que se retardara, enquanto todas as vidas ao seu redor aceleravam-se tanto que as interconexões se tornavam claras.
A sensação de consciência-partícula se apagou levemente, sua intensidade diminuindo, enquanto o corpo se relaxava da ameaça do veneno. Ainda sentia, entretanto, a outra partícula, tocando-a com um sentimento de culpa por ter permitido que isso acontecesse.
“Eu fiz isso, minha pobre querida filha ainda não formada. Eu trouxe você para este universo, e expus sua consciência a tudo, sem qualquer defesa.”
Um minúsculo fluir de amor e conforto, como um reflexo do que ela derramara nele, pareceu sair do outro ponto.
Antes que pudesse responder, Jessica sentiu a presença adab da memória exigente. Havia algo que precisava ser feito. Tentou alcançá-la, percebendo ser impedida pela embriaguez que a droga da mudança imprimira em seus sentidos.
“Posso modificar isto”, pensou ela. “Posso afastar a ação da droga e torná-la inofensiva.” Sentiu, entretanto, que isso seria um erro. “Estou dentro de um ritual de união.”
E então percebeu o que devia ser feito.
Jessica abriu os olhos e apontou para o saco de água, agora sendo erguido acima dela por Chani.
— Isso foi abençoado — disse. — Misturem as águas, deixem que a mudança atinja a todos, que as pessoas possam dividir e compartilhar a bênção.
“Deixe que o catalisador faça seu trabalho”, pensou ela. “Deixe que as pessoas bebam e tenham sua consciência, uma da outra, aumentada por algum tempo. A droga é segura agora... agora que a Reverenda Madre a modificou.”
A memória ainda agia sobre ela, impulsionando-a. Havia outra coisa a fazer, mas a droga tornava difícil a compreensão.
“Ahhh... a velha Reverenda Madre.”
— Encontrei a Reverenda Madre Ramallo — disse Jessica. — Ela se foi, mas permanece. Que sua memória seja honrada no ritual.
“E agora? De onde tirei estas palavras?”
Percebeu que vinham da outra memória, a vida que lhe fora dada, e que agora era parte dela mesma. Alguma coisa a respeito dessa dádiva, entretanto, permanecia incompleta.
“Deixe-os ter sua orgia”, disse dentro dela a outra memória.
— Eles recebem tão poucos prazeres na vida. Sim, e eu e você precisamos desse pouco tempo para nos conhecermos, antes que eu possa recuar e aprender através de suas memórias. Já me sinto presa a pedaços de você. Ahh... você tem a mente tão cheia de coisas interessantes. Tantas coisas que eu nunca imaginei.
E a mente-memória encerrada dentro dela abriu-se, permitindo que Jessica observasse ao longo de um amplo corredor de memórias, através de outras Reverendas Madres que se sucediam, parecendo não ter fim.
Recuou assustada, temendo perder-se num oceano de identidades. Ainda assim, o corredor permanecia, revelando-lhe que a cultura Fremen era muito mais antiga do que suspeitara.
Havia existido Fremen em Poritrin, ela podia vê-los, um povo que crescera fraco, num planeta demasiado generoso. Presa fácil para os caçadores imperiais os capturarem, e plantarem nas colônias humanas de Bela Tegeuse e Salusa Secundus.
Oh! Os lamentos que Jessica sentia naquela partida.
Bem nas profundezas do corredor, uma voz-imagem gritou:
— Eles nos negaram o Hajj!
E Jessica viu os depósitos de escravos em Bela Tegeuse, lá no fundo do corredor, viu a seleção e a poda, que espalhara homens para Rossak e Harmonthep. Cenas de ferocidade brutal abriam-se para ela como pétalas de uma flor terrível. E viu o fio que conduzia ao passado, tecido por Sayyadina atrás de Sayyadina. Primeiro pela tradição oral, oculta nos cânticos da areia, e depois afinado através de suas próprias Reverendas Madres, com a descoberta da droga venenosa em Rossak... desenvolvendo agora uma força sutil, com a descoberta da Água da Vida em Arrakis.
Bem fundo no corredor outra voz gritou:
— Não perdoem nunca! Não se esqueçam nunca!
A atenção de Jessica concentrava-se, porém, na revelação da Água da Vida, observando sua fonte: a emanação líquida de um verme ao morrer, um produtor. Quando ela o viu sendo morto, em sua nova memória, não pôde suprimir o espanto.
A criatura fora afogada!
— Mamãe, você está bem?
A voz de Paul chegou até ela. Jessica lutou para escapar de sua consciência interior e olhar para ele, reconhecendo sua obrigação para com o rapaz e, no entanto, ressentindo-se de sua presença.
“Eu sou como uma pessoa cujas mãos foram mantidas entorpecidas, sem qualquer sensação, desde o seu primeiro instante de consciência. E então um dia a habilidade para sentir é forçada nelas.”
O pensamento prendeu-se em sua mente, envolvendo a consciência.
“E eu digo: — Olhem! Não tenho mãos! — Mas as pessoas à minha volta dizem: — E o que são mãos?”
— Você está bem? — repetiu Paul.
— Sim.
— Posso beber, então? — Apontou para o saco nas mãos de Chani. — Eles querem que eu beba.
Ouviu o significado oculto em suas palavras, percebendo que ele detectara o veneno na substância original, não modificada, e que se preocupava com ela. Ocorreu a Jessica, então, admirar-se com os limites da presciência de Paul. Sua pergunta revelava muito.
— Pode beber — disse ela. — Já foi modificada.
Olhou além dele para ver Stilgar a fitá-la, os olhos escuros estudando-a.
— Agora sabemos que não pode ser falsa — disse ele.
Sentiu um significado oculto aqui também, mas o torpor da droga dominava seus sentidos. Como isso era cálido e... tranqüilizador. Como eram gentis esses Fremen, ao introduzi-la em semelhante companheirismo...
Paul vira a droga apoderar-se de sua mãe.
E ele pesquisara em sua memória. O passado fixo, as linhas de fluxo dos futuros possíveis. Era como vasculhar através de instantes aprisionados do tempo, algo desconcertante para as lentes de seu olho interior. Os fragmentos eram difíceis de compreender, quando arrancados para fora do fluxo.
Essa droga, podia reunir conhecimentos a respeito dela, entender o que ela estava fazendo com sua mãe, mas o conhecimento carecia de um ritmo natural, faltava-lhe um sistema de mútua reflexão.
Percebeu, repentinamente, ser uma coisa olhar o passado, ocupando o presente. O verdadeiro teste de presciência era ver o passado, no futuro.
As coisas continuavam a não ser o que pareciam.
— Beba! — ordenou Chani. Ela sacudiu a biqueira de um dos sacos sob o seu nariz.
Paul empertigou-se, olhando para Chani. Sentia uma excitação carnavalesca permeando o ar. Sabia o que iria acontecer se bebesse essa droga de especiaria, com a quintessência da substância que lhe ocasionara a mudança. Retornaria à visão do tempo puro, do tempo que se tornava espaço. Iria colocá-la naquele vertiginoso pináculo, e desafiá-la a compreender.
Atrás de Chani, Stilgar disse :
— Beba, garoto. Você atrasa o ritual.
Ouviu a multidão, nesse instante. O ardor em suas vazes:
— Lisan al-Gaib! — diziam. — Muad'Dib! — Olhou para sua mãe.
Ela parecia dormir pacificamente, em uma posição sentada, sua respiração regular e profunda. Uma frase saída do futuro, que era seu solitário passado, entrou em sua mente: “Ela dorme nas Águas da...”
Chani puxou sua manga.
Paul levou o bico até a boca, ouvindo as pessoas gritarem. Sentiu o líquido esguichar em sua garganta, quando Chani comprimiu o saco, sentiu vertigem no perfume. Chani removeu o bico e entregou a saco para mãos que se estendiam do fundo da caverna.
Seus olhos observaram-lhe o braço, notando a faixa verde do luto.
Ela se levantou, observando a direção do seu olhar e dizendo:
— Eu posso lamentar por ele, mesmo na alegria das águas. Isso foi uma coisa que ele nos deixou.
Segurou-lhe as mãos, puxando-o ao longo da projeção de rocha.
— Nós somos idênticos em uma coisa, Usul: cada um de nós perdeu seu pai para os Harkonnen.
Paul a seguiu. Sentia que sua cabeça fora separada do corpo e restaurada com estranhas conexões. Suas pernas pareciam distantes e entorpecidas.
Penetraram em uma estreita passagem, suas paredes fracamente iluminadas por globos luminosos muito espaçados. Sentia a droga começar a produzir o seu efeito singular sobre ele, abrindo-lhe o tempo como se fosse uma flor. Encontrou necessidade de se apoiar em Chani enquanto viravam, entrando em outro túnel na penumbra. A mistura de tecido estriado e acolchoado, que sentia por baixo do manto, estimulava sua circulação. Uma sensação que, adicionada ao efeito da droga, dobrando o passado e o futuro sobre o presente, deixava-lhe apenas uma fina margem de foco triocular.
— Eu a conheço, Chani — sussurrou ele. — Nós nos sentamos em uma saliência acima da areia, enquanto eu acalmava os seus temores. Eu a acariciei na escuridão do sietch. Nós... — Descobriu-se perdendo o foco, tentou sacudir a cabeça e tropeçou.
Chani amparou-o, levando-o através de espessas cortinas para dentro do calor amarelado de seu apartamento. Mesas baixas, almofadas, um leito debaixo de uma cobertura laranja.
Paul percebeu que haviam parado, que Chani o olhava com olhos que revelavam temor.
— Precisa me contar.
— Você é a Sihaya — disse ele. — A fonte no deserto.
— Quando a tribo compartilha a água — explicou ela. — Estamos juntos... todos nós. Nós... partilhamos. Posso... sentir os outros comigo, mas tenho medo de partilhar com você.
— Por quê?
Tentou focalizá-la, mas passado e futuro misturavam-se com o presente, toldando a imagem. Viu Chani em posições, locais e modos incontáveis.
— Existe alguma coisa assustando você — disse ela. — Quando o afastei dos outros... eu o fiz porque podia sentir que os outros o desejavam. Você... estimula as pessoas. Faz... com que vejamos coisas!
Paul procurou se esforçar para falar claramente:
— E o que você vê?
Ela olhou para suas próprias mãos.
— Vejo uma criança... em meus braços. É nossa criança, sua e minha. — Colocou a mão na boca. — Como posso conhecer cada detalhe a seu respeito?
“Eles possuem um pouco do talento”, disse-lhe sua mente. “Mas o suprimem, porque ele os aterroriza.”
Num momento de claridade, ele viu como Chani estava tremendo.
— O que você quer dizer? — indagou.
— Usul — sussurrou ela, ainda trêmula.
— Você não pode recuar para o futuro — disse ele.
Uma profunda compaixão por ela percorreu sua mente. Puxou-a para junto de si, acariciando-lhe os cabelos.
— Chani, Chani, não tema...
— Usul, ajude-me — gritou ela.
Enquanto ela falava, ele sentia a droga completar seu trabalho em seu interior, arrancando as cortinas, para permitir que visse o distante torvelinho cinzento que constituía seu futuro.
— Você está tão quieto — disse Chani.
Tomou posição em sua consciência, vendo o tempo estender-se em suas misteriosas dimensões, delicadamente equilibradas e, no entanto, rodopiando, estreitas e, no entanto, estendidas como uma rede a colher incontáveis mundos e forças. Uma corda esticada sobre a qual devia caminhar, e ao mesmo tempo uma gangorra na qual se balançava.
De um lado podia ver o império. Um Harkonnen chamado Feyd-Rautha que relampejava em sua direção como uma lâmina mortal, os Sardaukar, lançando-se de seu planeta para espalhar o massacre em Arrakis, a Corporação, conspirando e tramando, as Bene Gesserit, com seus esquemas de reprodução seletiva. Todos se amontoavam como um cúmulo tempestuoso, erguendo-se em seu horizonte, contidos por não mais do que os Fremen e seu Muad'Dib. Fremen, o gigante adormecido tomando posição para sua cruzada selvagem através do universo.
Paul sentia-se no centro, como o pivô em torno do qual toda a estrutura girava. Caminhando sobre um delicado fio de paz, com uma medida de felicidade constituída por Chani ao seu lado.
Podia ver tudo aquilo estender-se à sua frente, um tempo de calma relativa num sietch oculto, um instante de paz entre períodos de violência.
— Não existe nenhum outro lugar de paz — murmurou.
— Usul, você está chorando. Usul, minha força, você dá umidade aos mortos? Aos que morreram?
— Àqueles que ainda não morreram.
— Então deixe que tenham seu tempo de vida.
Sentiu através da neblina da droga o quão certa ela estava e puxou-a de novo para si, com uma pressão selvagem.
— Sihaya! — disse ele.
Ela colocou uma palma sobre sua face.
— Eu não estou mais com medo, Usul. Olhe para mim. Vejo o mesmo que você vê, quando me segura deste modo.
— E o que você vê?
— Eu nos vejo compartilhando o amor num tempo de calmaria entre as tempestades. É o que devemos fazer.
A droga o dominava novamente, e ele pensou: “Tantas vezes você me deu o conforto e o esquecimento.” Sentiu mais uma vez a hiperiluminação, com suas imagens de tempo em alto-relevo, sentindo seu futuro se tornar um conjunto de memórias... As ternas indignidades do amor físico, o compartilhar e a comunhão de personalidades, a suavidade e a violência.
— Você é a fonte, Chani — murmurou ele. — Fique comigo.
— Sempre — respondeu ela, beijando-lhe o rosto.
[1] Uma máquina de efeito de solo é um veiculo que se move sobre um colchão de ar, soprado para baixo por um sistema de hélices ou rotores. O popular hovercraft inglês tornou-se quase um sinônimo destas máquinas. (N. do T.)
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