Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ECOS DO FUTURO
Volume I
Primeira Parte
Embora tenha certeza de que os colonos da América vão ganhar a Guerra de Independência, o escocês Jamie Fraser, ex-jacobita e rebelde relutante, duvida que a vitória garanta a sobrevivência de todos aqueles a quem ama e teme pelas consequências de suas escolhas. Sua principal preocupação é com William, um jovem tenente do exército britânico - Jamie prefere morrer a ter que enfrentar o filho ilegítimo no campo de batalha. Claire Randall também sabe que os americanos vencerão, mas não tem ideia de qual será o preço a pagar por isso. No que depender dela, fará de tudo para proteger a vida e a felicidade de seu amado Jamie.
A séculos de distância, Brianna acompanha o dramático desenrolar da história de seus pais pelas cartas de Claire. Poupados pelo tempo, os escritos relatam que em sua fuga da Carolina do Norte Jamie Fraser enfrentará muitos obstáculos, de corsários a batalhas oceânicas. Mas as revelações não se atêm apenas ao passado: o casal Brianna e Roger busca pistas não só do destino de Claire, mas dele próprio. Seu futuro nas Highlands está misteriosa, irrevogável e intimamente entrelaçado com vida e morte na América colonial destroçada pela guerra.
Com cuidadosas recriações literárias de personagens históricos como Benedict Arnold e Benjamin Franklin, Ecos do futuro é a sétima parte da obra-prima de Diana Gabaldon, a série Outlander - um épico com fatos históricos, amor e ficção científica que conquistou e ainda vai surpreender milhares de leitores em todo o mundo.
ÁGUAS TURBULENTAS
ÀS VEZES ELES ESTÃO REALMENTE MORTOS
Wilmington, colônia da Carolina do Norte Julho, 1776
Acabeça do pirata havia submergido. William ouviu a conversa de um grupo de vagabundos no cais próximo, especulando se ela seria vista outra vez. - Não, ele se foi para sempre - disse um mestiço maltrapilho, sacudindo a cabeça. - Se os jacarés não o levarem, a água levará.
Um caipira revirou o fumo na boca e cuspiu na água, discordando. - Não, ele dura mais um dia... dois, talvez. Os pedaços de cartilagem que seguram a cabeça, eles secam ao sol. Ficam duros como ferro. Já vi isso muitas vezes em carcaças de veados.
William viu a sra. Mackenzie lançar um olhar rápido ao porto e em seguida desviar os olhos. Parecia pálida, ele pensou, deslocando-se ligeiramente para bloquear a visão dela dos homens e das águas turvas da maré alta, apesar de o corpo amarrado à estaca estar naturalmente escondido pela maré. A estaca, entretanto, era visível - uma dura lembrança do preço do crime. O pirata fora amarrado à estaca há vários dias, para se afogar nos baixios. A persistência de seu corpo em decomposição era tema corrente na conversa do povo.
- Jem! - O sr. Mackenzie chamou rispidamente e passou energicamente por William, em perseguição de seu filho. O menino, ruivo como a mãe, se afastara para ouvir a conversa dos homens e agora se debruçava perigosamente sobre a água, agarrando-se a um poste de amarração na tentativa de ver o pirata morto.
O sr. Mackenzie segurou o garoto pela gola, puxou-o para trás e levantou-o nos braços, apesar de o menino se debater, esticando o pescoço na direção do porto alagadiço.
- Quero ver o jacaré comer o pirata, papai! Os vagabundos riram e até Mackenzie sorriu ligeiramente, embora o sorriso desaparecesse assim que olhou para sua mulher. Num instante, já estava a seu lado, a mão sob seu cotovelo.
- Acho que devemos ir - Mackenzie disse, ajeitando o peso do filho no colo, a fim de melhor apoiar sua mulher, cuja aflição era evidente. - O tenente Ransom, quero dizer, lorde Ellesmere - corrigiu-se com um sorriso de desculpas para William - sem dúvida tem outros compromissos.
Era verdade. William havia prometido jantar com seu pai. Ainda assim, seu pai combinara encontrá-lo na taverna em frente ao cais; não havia como se desencontrarem. William disse isso e insistiu para que ficassem, pois apreciava a companhia deles - particularmente a da sra. Mackenzie - , mas ela sorriu com pesar, embora estivesse com uma aparência melhor, e bateu de leve na cabecinha entoucada do bebê em seus braços.
- Não, nós realmente precisamos ir. - Olhou de relance para seu filho, ainda se debatendo para descer do colo do pai, e William viu seus olhos relancearem rapidamente na direção do porto e da estaca inflexível que se erguia acima da água. Ela desviou os olhos resolutamente, fixando-os em seguida no rosto de William. - O bebê está acordando; estará com fome. Mas foi um prazer encontrá-lo. Gostaria que pudéssemos conversar por mais tempo. - Falou com grande sinceridade e tocou levemente no braço dele, dando-lhe uma agradável sensação na boca do estômago.
Os vagabundos agora faziam apostas sobre o reaparecimento do pirata afogado, apesar de nenhum deles parecer ter sequer duas moedas para esfregar uma na outra.
- Dois a um como ele ainda estará lá quando a maré baixar. - Cinco a um que o corpo ainda estará lá, mas a cabeça se foi. Não quero saber do que você disse sobre cartilagens, Lem, que a cabeça dele estaria pendurada por um fio quando a maré baixasse. A próxima vai arrancá-la, você vai ver.
Esperando abafar essa conversa, William iniciou uma elaborada despedida, indo ao ponto de beijar a mão da sra. Mackenzie com seus modos mais corteses - e, tomado de inspiração, beijou a mãozinha do bebê também, fazendo todos rirem. O sr. Mackenzie, por sua vez, lançou-lhe um olhar de estranheza, mas não pareceu se ofender; apertou a mão de William de uma maneira bastante republicana e levou adiante a brincadeira, colocando seu filho no chão e fazendo o menino apertar sua mão também.
- Você já matou alguém? - o menino perguntou com interesse, olhando para a espada embainhada de William.
- Não, ainda não - William respondeu, sorrindo.
- Meu avô matou duas dúzias de homens! - Jemmy! - Ambos os pais exclamaram simultaneamente e o menino deu de ombros.
- Matou sim! - Tenho certeza de que ele é um homem forte e corajoso, seu avô - William assegurou-lhe com ar de grande seriedade. - O rei sempre precisa de homens assim.
- Meu avô diz que o rei pode ir tomar naquele lugar - o garoto retrucou inocentemente.
- JEMMY! O sr. Mackenzie tapou a boca de seu desbocado filho. - Você sabe que seu avô não disse isso! - disse a sra. Mackenzie. O menino balançou a cabeça em concordância e o pai retirou a mão de sua boca.
- Não. Mas vovó disse.
- Bem, isso é mais provável - murmurou o sr. Mackenzie, obviamente se esforçando para não rir. - Mas ainda assim não se diz isso para soldados, eles trabalham para o rei.
- Oh - Jemmy disse, obviamente perdendo o interesse. - A maré está baixando agora? - perguntou esperançosamente, esticando o pescoço na direção do porto novamente.
- Não - o sr. Mackenzie respondeu com firmeza. - Só daqui a muitas horas. Você já estará na cama.
A sra. Mackenzie sorriu para William, desculpando-se, as faces encantadoramente ruborizadas de constrangimento, e a família partiu apressadamente, deixando William entre o riso e o assombro.
- Ei, Ramson! Virou-se ao ouvir seu nome, deparando-se com Harry Dobson e Colin Osbom, dois subtenentes de seu regimento, evidentemente fora de serviço e ansiosos para experimentar os prazeres de Wilmington, se assim podiam ser chamados.
- Quem são? - Dobson acompanhou com o olhar o grupo que se afastava, interessado.
- Sr. e sra. Mackenzie. Amigos de meu pai. - Oh, ela é casada, então? - Dobson sugou as bochechas para dentro, ainda observando a mulher. - Bem, torna as coisas um pouco mais difíceis, imagino, mas o que é a vida sem um desafio?
- Desafio? - William lançou um olhar zombeteiro ao seu diminuto amigo. - O marido dela tem quase três vezes o seu tamanho, caso não tenha notado.
Osborn riu, ruborizando.
- Ela tem o dobro do tamanho dele! Ela iria esmagá-lo, Dobby. - E o que o faz pensar que eu pretenda ficar por baixo? - Dobson indagou com dignidade. Osborn vaiou o colega.
- Por que essa sua obsessão com mulheres gigantes? - William perguntou. Olhou para a pequena família, agora quase fora do alcance da vista no final da rua. - Aquela mulher é quase tão alta quanto eu!
- Oh, está tripudiando, hein? - Osborn, que era mais alto do que o pouco mais de metro e meio de Dobson, mas ainda uns trinta centímetros menor do que William, fingiu mirar um chute em seu joelho. William esquivou-se e deu um sopapo em Osborn, que se abaixou e empurrou-o contra Dobson.
- Cavalheiros! - O tom de voz ameaçador do sargento Cutter, com seu sotaque de dialeto londrino, os fez parar abruptamente. Podiam ter patente superior ao sargento, mas nenhum deles teria a petulância de ressaltar isso. O batalhão inteiro temia o sargento Cutter, que era bem mais velho e tinha mais ou menos a altura de Dobson, mas continha em seu pequeno físico a fúria de um grande vulcão em erupção.
- Sargento! - O tenente William Ransom, conde de Ellesmere e o mais graduado do grupo, empertigou-se, o queixo pressionado dentro do lenço do pescoço. Osborn e Dobson apressadamente o imitaram, tremendo nas botas.
Cutter andou de um lado para o outro na frente deles, como um leopardo espreitando a presa. Quase se podia ver a cauda açoitando e o animal lambendo os beiços de expectativa, William pensou. Esperar o ataque era quase pior do que levar uma mordida no traseiro.
- E onde estão suas tropas? - Cutter vociferou. - Senhores? Osborn e Dobson imediatamente começaram a gaguejar explicações, mas o tenente Ransom - ao menos desta vez - estava inocente como um anjo.
- Meus homens estão guardando o Palácio do Governador, sob as ordens do tenente Colson. Eu recebi licença para me ausentar, sargento, para jantar com meu pai - disse respeitosamente. - De sir Peter.
Sir Peter Packer era um nome capaz de exercer um poder mágico e Cutter se abrandou no meio do seu ataque. No entanto, um pouco para surpresa de William, não foi o nome de sir Peter que produzira tal reação.
- Seu pai? - Cutter disse, estreitando os olhos. - É lorde John Grey, não é?
- Hã... sim - William respondeu cautelosamente. - O senhor... O conhece? Antes que Cutter pudesse responder, a porta de uma taverna próxima se abriu e o pai de William surgiu. William sorriu, encantado com a oportuna aparição, mas rapidamente apagou o sorriso, quando o olhar perfurante do sargento fixou-se nele.
- Não fique rindo para mim como um macaco abobalhado - o sargento começou em tom ameaçador, mas foi interrompido pelo tapinha que lorde John aplicou em seu ombro com familiaridade. Um gesto que nenhum dos três jovens tenentes teriam ousado, ainda que lhes oferecessem muito dinheiro.
- Cutter! - lorde John exclamou, sorrindo calorosamente. - Ouvi esses sons melodiosos e disse a mim mesmo, ora, vejam, se não é o sargento Aloysius Cutter! Não pode haver outro homem no mundo que pareça tanto com um buldogue que engoliu um gato e viveu para contar.
- Aloysius? - Dobson enunciou silenciosamente para William, mas William apenas grunhiu brevemente em resposta, impossibilitado de dar de ombros, uma vez que agora seu pai voltara sua atenção para ele.
- William - ele disse, com um aceno cordial da cabeça. - Como você é pontual. Desculpe-me por estar tão atrasado; fui retido. - No entanto, antes que William pudesse dizer qualquer coisa ou apresentar os outros, lorde John iniciara uma extensa série de reminiscências com o sargento Cutter, relembrando os velhos tempos nas Planícies de Abraham com o general Wolfe.
Isso permitiu que os três jovens oficiais relaxassem um pouco, o que, no caso de Dobson, significava um retorno à sua linha de pensamento anterior.
- Você disse que aquela boneca de cabelos ruivos era amiga de seu pai? - ele sussurrou para William. - Descubra com ele onde ela está hospedada, hein?
- Idiota - sibilou Osborn. - Ela nem sequer é bonita! Ela tem um nariz reto e comprido como... como... O de Willie!
- Não cheguei a olhar seu rosto - Dobson disse, sorrindo afetadamente. - Mas seus peitos estavam exatamente na altura dos meus olhos, e esses...
- Imbecil! - Shh! - Osborn pisou no pé de Dobson para fazê-lo se calar quando lorde John voltou-se novamente para os rapazes.
- Não vai me apresentar a seus amigos, William? - lorde John perguntou educadamente. Um pouco ruborizado - tinha razões para saber que seu pai possuía uma audição aguçada, apesar de suas experiências na artilharia - William apresentou-os, e Osborn e Dobson se inclinaram, com admiração e reverência. Eles não haviam percebido quem seu pai era e William sentiu-se imediatamente orgulhoso por eles estarem impressionados e ligeiramente consternados por terem descoberto a identidade de lorde John - todo o batalhão já estaria sabendo antes do jantar de amanhã. Não que sir Peter não soubesse, é claro, mas...
William interrompeu suas divagações ao ver que seu pai se despedia por ambos, e retribuiu a continência do sargento, apressadamente, mas de maneira correta, antes de sair apressadamente atrás de seu pai, abandonando Dobby e Osborn à própria sorte.
- Eu o vi conversando com o sr. e a sra. Mackenzie - lorde John disse descontraidamente. - Eles estão bem? - Ele lançou um olhar pelo cais, mas os Mackenzie há muito haviam desaparecido de vista.
- Parece que sim - William disse. Ele não iria perguntar onde os Mackenzie estavam hospedados, mas a impressão que ajovem mulher lhe causara persistia. Não sabia dizer se ela era bonita ou não; seus olhos, entretanto, o haviam impressionado: de um lindo tom azul-escuro, com longas pestanas castanho-avermelhadas, e fixos nele com uma intensidade lisonjeira que enterneceu o fundo de seu coração. Grotescamente alta, é claro, mas... o que ele estava pensando? A mulher era casada, e com filhos! E, ainda por cima, era ruiva. - Você... há... os conhece há muito tempo? - ele perguntou, pensando nos surpreendentes sentimentos políticos avessos que evidentemente prosperavam na família.
- Há bastante tempo. Ela é filha de um dos meus amigos mais antigos, sr. James Fraser. Você se lembra dele?
William franziu a testa, sem conseguir situar o nome - seu pai tinha milhares de amigos, como ele poderia...
- Oh! - exclamou. - Você não se refere a um amigo inglês. Não foi um sr. Fraser que nós visitamos nas montanhas, naquela ocasião em que você adoeceu com... com sarampo? - Sentiu um aperto no fundo do estômago, lembrando-se do absoluto terror daquela época. Ele havia atravessado as montanhas aturdido e infeliz; sua mãe havia morrido apenas um mês antes. Então, lorde John pegara sarampo e William tinha certeza de que seu pai iria morrer também, deixando-o completamente sozinho naquela região inóspita. Não havia nenhum espaço em sua mente para nada além de medo e pesar, e ele guardara apenas um amontoado confuso de impressões da visita. Tinha uma vaga recordação de que o sr. Fraser o levara para pescar e fora muito gentil com ele.
- Sim - seu pai disse, com um sorriso enviesado. - Estou enternecido, Willie. Imaginava que você se recordasse daquela visita mais por causa de suas próprias desventuras do que pelas minhas.
- Des... - A lembrança inundou-o no mesmo instante, seguida por uma onda de calor, mais quente do que o ar úmido de verão. - Muito obrigado! Eu havia conseguido expurgar isso da minha memória, até você mencionar!
Seu pai ria, sem fazer nenhuma tentativa de esconder o fato. Na realidade, ele gargalhava.
- Desculpe-me, William - ele disse, arquejando e enxugando os olhos com a ponta de seu lenço. - Não consigo me conter; foi a mais... A mais... oh, meu Deus, nunca vou me esquecer da sua cara quando o retiramos daquela latrina!
- Você sabe que foi um acidente - William disse, reservadamente. Suas faces ardiam com a mortificante recordação. Ao menos, a filha de Fraser não estava presente para testemunhar sua humilhação na época.
- Sim, claro. Mas... - Seu pai pressionou o lenço contra a boca, os ombros sacudindo-se silenciosamente.
- Fique à vontade para parar de cacarejar a qualquer momento que quiser - William disse friamente. - Aonde estamos indo, aliás? - Haviam alcançado o fim do cais e seu pai os conduzia, ainda resfolegando como uma orca, a uma das ruas tranquilas, arborizadas, longe das tavernas e das hospedarias próximas ao porto.
- Vamos jantar com o capitão Richardson - seu pai disse, controlando-se com visível esforço. Ele tossiu, assoou o nariz e guardou o lenço. - Na casa do sr. Bell.
A casa do sr. Bell era caiada, bonita e próspera, sem ser pomposa. O capitão Richardson dava o mesmo tipo de impressão: de meia-idade, bem-arrumado e com roupas de corte impecável, mas sem nenhum estilo notável e com um rosto que não se poderia distinguir em uma multidão nem dois minutos depois de visto.
As duas senhoritas Bell causavam uma impressão bem maior, particularmente a mais jovem, Miriam, que possuía cachos cor de mel espreitando para fora da touca, e olhos grandes e redondos, que permaneceram fixos em William durante todo o jantar. Ela estava sentada muito distante para ele poder conversar com ela diretamente, mas ele imaginava que a linguagem dos olhos era suficiente para indicar a ela que o fascínio era mútuo e, se uma oportunidade para uma comunicação mais pessoal se apresentasse mais tarde... Um sorriso e um recatado abaixar de pestanas cor de mel, seguidos de um rápido olhar na direção da porta aberta para a varanda lateral, para arejar a sala. Ele retribuiu o sorriso.
- Você acha que sim, William? - seu pai disse, alto o suficiente para indicar que era a segunda vez que perguntava.
- Oh, sem dúvida. Hum... acho o quê? - ele perguntou, já que, afinal, tratava-se de seu pai, e não de um comandante. Seu pai lançou-lhe um olhar que significava que ele teria revirado os olhos, se não estivessem em público, mas respondeu pacientemente.
- O sr. Bell perguntava se sir Peter pretende permanecer bastante tempo em Wilmington. - O sr. Bell, à cabeceira da mesa, inclinou-se educadamente, apesar de William observar certo estreitamento de seus olhos na direção de Miriam. Talvez ele devesse voltar para uma visita amanhã, pensou, quando o sr. Bell estaria em seu local de trabalho.
- Oh. Acredito que permaneceremos aqui por pouco tempo - ele disse respeitosamente ao sr. Bell. - Entendo que os distúrbios principais estão no interior da colônia e, assim, sem dúvida, devemos partir sem demora para reprimi-los.
O sr. Bell pareceu satisfeito, mas William pôde perceber pelo canto do olho o gracioso biquinho de insatisfação que Miriam fez à ideia de sua iminente partida.
- Ótimo, ótimo - Bell disse jovialmente. - Sem dúvida, centenas de legalistas acorrerão para se juntarem à sua marcha.
- Certamente, senhor - William murmurou, tomando mais uma colherada de sopa. Duvidava que o sr. Bell estaria entre eles. Pelo visto, não era do tipo que se une à luta. E não que a ajuda de um bando de provincianos sem treinamento, armados com pás, pudesse ser útil, de qualquer modo. Mas ele certamente não podia dizer isso.
William, tentando ver Miriam sem olhar diretamente para ela, interceptou o relance de um olhar entre seu pai e o capitão Richardson e, pela primeira vez, começou a se indagar. Seu pai dissera claramente que iriam jantar com o capitão Richardson - querendo dizer que um encontro com o capitão era o objetivo da noite. Por quê?
Então, ele captou um olhar da srta. Lillian Bell, sentada à sua frente, ao lado de seu pai, e parou de pensar no capitão Richardson. De olhos escuros, mais alta e mais esbelta do que sua irmã - mas certamente uma jovem muito bonita, ele percebia agora.
Ainda assim, quando a sra. Bell e suas filhas levantaram-se e os homens retiraram-se para a varanda após o jantar, William não ficou surpreso de ver-se em uma das extremidades com o capitão Richardson, enquanto seu pai envolvia o sr. Bell em uma animada discussão sobre os preços do alcatrão na outra ponta. Papai conseguia conversar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto.
- Tenho uma proposta a lhe apresentar, tenente - Richardson disse, depois que as cordialidades de costume foram trocadas.
- Sim, senhor - William disse respeitosamente. Sua curiosidade aumentava. Richardson era um capitão da cavalaria ligeira, mas no momento não estava com seu regimento; isso ele havia revelado durante o jantar, dizendo displicentemente que fora destacado para um serviço à parte. Destacado para o quê?
- Não sei o quanto seu pai lhe falou da minha missão...
- Nada, senhor. - Ah. Estou no serviço de inteligência, encarregado de reunir informações no Departamento do Sul. Não que eu esteja no comando de tais operações, sabe... - o capitão sorriu modestamente - apenas de uma pequena parte.
- Eu... reconheço o grande valor de tais operações, senhor - William disse, tentando ser diplomático - , mas eu, quero dizer, por mim mesmo...
- Não tem nenhum interesse em espionagem. Não, claro que não. - Estava escuro na varanda, mas a frieza do tom de voz do capitão era evidente. - Poucos homens que se consideram soldados têm.
- Sem ofensa, senhor.
- Não se preocupe. Eu não estou, entretanto, recrutando-o como espião. É uma ocupação delicada e que envolve algum perigo. Gostaria de recrutá-lo como mensageiro. Embora, caso surja a oportunidade de atuar como agente de espionagem ao longo do caminho.... bem, isso seria uma contribuição adicional e muito apreciada.
William sentiu o sangue subir em seu rosto com a insinuação de que ele não seria capaz de lidar com missões delicadas e perigosas, mas controlou a raiva, dizendo apenas:
- Oh?
O capitão, ao que parecia, havia reunido informações importantes referentes às condições locais nas Carolinas e agora queria enviá-las ao comandante do Departamento do Norte, general Howe, no momento em Halifax.
- Naturalmente, estarei enviando mais de um mensageiro - Richardson disse. - Sem dúvida, é mais rápido de navio, mas quero ter ao menos um mensageiro viajando por terra, tanto por segurança quanto para coletar observações en route. Seu pai enaltece muito suas qualidades, tenente - teria detectado um tom de zombaria naquela voz seca? - , e eu fui informado de que já viajou extensamente pela Carolina do Norte e Virgínia. É um atributo valioso. Há de concordar que eu não quero ver meu mensageiro desaparecer no Grande Pântano para nunca mais ser visto.
- Ha-ha - William disse, educadamente, entendendo a preocupação de Richardson como uma pilhéria. Obviamente, o capitão Richardson nunca estivera perto do Grande Pântano; William estivera, embora achasse que ninguém em seu juízo perfeito iria naquela direção intencionalmente, a não ser para caçar.
Ele também tinha sérias dúvidas quanto à sugestão de Richardson - embora ao mesmo tempo que dizia a si mesmo que ele não deveria considerar deixar seus homens, seu regimento... já acalentava uma visão romântica de si mesmo, sozinho na imensidão deserta, levando notícias importantes através das tempestades e perigos.
Ainda mais digno de consideração, entretanto, é o que ele poderia esperar do outro lado da jornada.
Richardson adiantou-se à sua pergunta, respondendo-a antes que ele pudesse se pronunciar.
- Uma vez no norte, você poderia, se conviesse, juntar-se ao exército do general Howe.
Ora, ora, ele pensou. Ali estava o prêmio, e bastante atraente. Ele sabia que Richardson queria dizer "se conviesse" ao general Howe, e não a ele, William, mas tinha confiança em sua própria capacidade e achou que talvez pudesse ser útil.
Estivera na Carolina do Norte apenas por alguns dias, mas isso fora o suficiente para ele ter feito uma avaliação bastante precisa das chances relativas de progresso entre o Departamento do Norte e do Sul. Todo o Exército Continental estava com Washington no norte; a rebelião do sul consistia em bolsões problemáticos de habitantes do interior e milícias improvisadas - não chegavam a ser uma ameaça real. E quanto ao status relativo de sir Peter e general Howe como comandantes...
- Gostaria de pensar em sua proposta, se possível, capitão - ele disse, esperando que sua voz não traísse sua ansiedade. - Posso lhe dar minha resposta amanhã?
- Sem dúvida. Imagino que queira discutir as perspectivas com seu pai, pode fazê-lo.
O capitão, então, deliberadamente mudou de assunto e, em poucos instantes, lorde John e o sr. Bell se reuniram a eles, quando a conversa passou a girar sobre assuntos gerais.
William prestava pouca atenção ao que diziam, sua atenção atraída pela visão de duas figuras esbeltas e brancas que pairavam como fantasmas em meio aos arbustos nos limites externos do pátio. Duas cabeças em toucas brancas aproximavam-se uma da outra, depois se afastavam. De vez em quando, uma delas virava-se brevemente para a varanda com o que parecia um ar especulativo.
- "E quanto às suas vestes, eles tiraram a sorte" - seu pai murmurou, sacudindo a cabeça.
- Hein?
- Deixe pra lá. - Seu pai sorriu e virou-se para o capitão Richardson, que acabara de fazer um comentário sobre o tempo.
Vaga-lumes iluminavam o pátio, perambulando como faíscas verdes em meio às plantas úmidas e exuberantes. Era bom ver vaga-lumes outra vez; sentira a falta deles na Inglaterra - e daquela suavidade particular do ar do sul que plasmava as roupas de baixo ao seu corpo e fazia o sangue latejar nas pontas de seus dedos. Grilos cricrilavam ao seu redor e, por um momento, seu canto pareceu abafar tudo o mais, salvo o som de sua pulsação.
- O café está servido, cavalheiros. - Mas a voz suave da escrava dos Bell atravessou a leve agitação de seu sangue e ele entrou com os outros homens, lançando apenas um olhar de relance na direção do pátio. As figuras brancas haviam desaparecido, mas uma sensação de promessa permanecia no ar morno e suave.
Uma hora mais tarde, ele se viu caminhando de volta em direção ao seu alojamento, os pensamentos agradavelmente confusos, seu pai caminhando em silêncio ao seu lado.
A srta. Lillian Bell concedera-lhe um beijo entre os vaga-lumes no final da noite, casto e fugaz, mas nos lábios, e o denso ar do verão lembrava café e morangos maduros, a despeito do cheiro úmido e penetrante do porto.
- O capitão Richardson falou-me da proposta que lhe fez - lorde John disse descontraidamente. - Está interessado?
- Não sei - William respondeu, com igual descontração. - Eu sentiria falta dos meus homens, é claro, mas... - A sra. Bell insistira para que ele fosse tomar chá, mais para o final da semana.
- Há pouca permanência na vida militar - seu pai disse, sacudindo levemente a cabeça. - Eu o avisei.
William concordou com um breve resmungo, sem realmente prestar atenção.
- Uma boa oportunidade para progredir na carreira - seu pai dizia, acrescentando casualmente - embora, é claro, haja algum perigo na proposta.
- O quê? - William zombou, ao ouvir isso. - Cavalgar de Wilmington para pegar um navio em Nova York? Há uma estrada, por quase todo o caminho!
- E muitos residentes locais - lorde John ressaltou. - Todo o exército do general Washington está neste lado da Filadélfia, se as notícias que tive estão corretas.
William deu de ombros.
- Richardson disse que me queria porque eu conhecia a região. Posso me orientar muito bem sem estradas.
- Tem certeza? Há quatro anos você não vai à Virgínia. O tom de dúvida de lorde John aborreceu William.
- Acha que sou incapaz de encontrar meu caminho?
- Não, de modo algum - seu pai disse, ainda com aquele tom de dúvida na voz. - Mas os riscos desta proposta não são poucos; não gostaria de vê-lo assumir essa missão sem as devidas considerações.
- Bem, eu já pensei a respeito - William disse, ofendido. - Vou aceitar. Lorde John caminhou mais alguns passos em silêncio, depois balançou a cabeça, com relutância.
- A decisão é sua, Willie - ele disse brandamente. - Mas eu ficaria muito agradecido se você tomasse cuidado.
O aborrecimento de William desfez-se no mesmo instante.
- Claro que tomarei - disse, com a voz rouca. Continuaram a andar sob o manto escuro de bordos e nogueiras, sem falar, tão próximos que seus ombros se roçavam de vez em quando.
Na estalagem, William desejou boa-noite a lorde John, mas não retornou imediatamente ao seu próprio quarto. Em vez disso, perambulou pelo cais, agitado demais para ir dormir.
A maré virara e estava bem baixa, ele viu; o cheiro de peixes mortos e algas em decomposição era forte, embora um plácido lençol de água ainda cobrisse os baixios, silenciosos à luz da lua minguante.
Levou um instante para localizar a estaca. Por um segundo, pensou que ela houvesse desaparecido, mas não - lá estava, uma linha escura e fina contra o reflexo da água. Vazia.
A estaca já não estava ereta, mas pronunciadamente inclinada, como se estivesse prestes a cair, com um fino laço de corda pendente, flutuando como o laço de forca de um carrasco na maré vazante. William sentiu uma inquietação visceral; somente a maré não teria levado o corpo inteiro. Alguns diziam que havia jacarés ou crocodilos ali, embora ele mesmo nunca tivesse visto um. Olhou para baixo involuntariamente, como se um desses répteis pudesse repentinamente dar um bote da água aos seus pés. O ar ainda estava quente, mas um leve calafrio o percorreu.
Sacudiu-se para se livrar da sensação e virou-se na direção de seu alojamento. Ainda teria um ou dois dias antes de iniciar a viagem, pensou, e imaginou se deveria ir ver a sra. Mackenzie novamente antes de partir.
Lorde John demorou-se um pouco na varanda da estalagem, observando seu filho desaparecer nas sombras sob as árvores. Tinha algumas inquietações; a questão fora acertada com mais açodamento do que ele gostaria - mas ele realmente confiava na capacidade de William. E, embora o acordo tivesse seus riscos, isso fazia parte da natureza da vida de um soldado. Mas algumas situações eram mais arriscadas do que outras.
Hesitou, ouvindo o burburinho do salão do bar no interior da estalagem, mas já tivera companhia suficiente por aquela noite e a ideia de ficar se virando de um lado para o outro sob o teto baixo de seu quarto, sufocante com o calor acumulado do dia, o fez decidir caminhar um pouco, até que o cansaço físico assegurasse um bom sono.
Não se tratava apenas do calor, refletiu, deixando a varanda e partindo na direção oposta à de William. Ele se conhecia muito bem para saber que mesmo o aparente sucesso de seu plano não iria evitar que ele ficasse acordado, preocupando-se como um cachorro com um osso, procurando os pontos fracos, buscando formas de melhorá-lo. Afinal, William não iria partir imediatamente; havia algum tempo para refletir, fazer alterações, se necessário.
General Howe, por exemplo. Teria sido a melhor escolha? Talvez Clinton... mas não. Henry Clinton era uma velha rabugenta, que não mexia um pé sem ordens em três vias.
Os irmãos Howe - um general, o outro almirante - eram reconhecidos pela rispidez, ambos tendo os modos, o aspecto e o aroma geral de javalis no cio. Mas nenhum dos dois era burro - e Deus sabia que não eram tímidos - e Grey considerava William absolutamente capaz de sobreviver a maneiras rudes e palavras ríspidas. E um comandante dado a cuspir no chão - Richard Howe certa vez cuspira no próprio Grey, embora acidentalmente, devido a uma súbita mudança da direção do vento - possivelmente era mais fácil para um jovem subalterno do que as idiossincrasias de alguns outros militares que Grey conhecia.
Embora mesmo os mais peculiares da fraternidade da espada fossem preferíveis aos diplomatas. Perguntou-se distraidamente qual seria o coletivo de diplomatas. Se os escritores formavam a fraternidade da pena e um bando de lobos denominava-se alcatéia.... uma corja de diplomatas, talvez? Irmãos do estilete? Não, decidiu. Óbvio demais. Um narcótico de diplomatas, mais adequado. Fraternidade do tédio. Embora, às vezes, os que não eram maçantes pudessem ser perigosos.
Sir George Germain era um dos raros: maçante e perigoso. Perambulou para cima e para baixo das ruas da cidade por algum tempo, na esperança de se cansar antes de voltar para seu quarto pequeno e abafado. O céu estava baixo e soturno, com relâmpagos cintilando entre as nuvens, e o ar estava úmido como uma esponja de banho. Ela já devia estar em Albany - não menos úmida e infestada de insetos, porém um pouco mais fresca, e próxima às belas e escuras florestas das Mirondacks.
Ainda assim, não se arrependia de sua apressada viagem a Wilmington. Willie fora selecionado; isso era importante. E a irmã de William, Brianna, estancou por um instante, os olhos cerrados, revivendo o momento de transcendência e aflição que experimentara naquela tarde, vendo os dois juntos no que seria o único encontro dos dois, para sempre. Ele mal conseguira respirar, os olhos fixos nas duas figuras altas, aqueles rostos bonitos, ousados, tão parecidos - e ambos tão semelhantes ao homem que se postara ao seu lado, imóvel, mas ao contrário de Grey, sorvendo grandes goles de ar, como se temesse nunca mais conseguir respirar outra vez.
Grey esfregou distraidamente o dedo anular da mão esquerda, ainda não acostumado à ausência do anel. Ele e Jamie Fraser haviam feito o possível para proteger os que amavam e apesar da melancolia sentia-se reconfortado com a ideia de estarem unidos nesse parentesco de responsabilidade.
Será que algum dia ele voltaria a se encontrar com Brianna Fraser Mackenzie outra vez?, perguntou-se. Ela dissera que não - e parecer-a tão triste com o fato quanto ele.
- Que Deus a abençoe, minha filha - ele murmurou, sacudindo a cabeça, enquanto se virava na direção do porto. Iria sentir muito a sua falta, mas, assim como acontecia em relação a Willie, seu alívio de saber que ela logo estaria longe de Wilmington e fora de perigo sobrepujava sua sensação pessoal de perda.
Olhou involuntariamente para a água quando saiu no cais e deu um profundo suspiro de alívio ao ver a estaca vazia, inclinada na água. Ele não compreendera suas razões para fazer o que fizera, mas ele conhecia seu pai - e seu irmão também, aliás - há muito tempo para se enganar com a teimosa convicção que vira naqueles felinos olhos azuis. Assim, ele lhe conseguira o pequeno barco que ela pedira e permanecera no ancoradouro com o coração na boca, pronto a criar uma distração se necessário, enquanto seu marido remava, levando-a na direção do pirata amarrado à estaca.
Ele já vira muitos homens morrerem, em geral a contragosto, às vezes com resignação. Nunca vira alguém partir com tão apaixonada gratidão no olhar. Grey pouco conhecia Roger Mackenzie, mas suspeitava de que se tratava de um homem extraordinário, tendo não só sobrevivido ao casamento com aquela criatura fabulosa e perigosa, como na verdade gerado dois filhos com ela.
Sacudiu a cabeça e virou-se, dirigindo-se de volta à estalagem. Poderia seguramente esperar mais duas semanas, pensou, antes de responder à carta de Germain - que ele habilmente subtraíra do malote diplomático ao ver o nome de William na missiva - , momento em que então poderia verdadeiramente dizer que, infelizmente, quando a carta foi recebida, lorde Ellesmere estava em algum lugar da vastidão deserta entre a Carolina do Norte e Nova York, e assim não ser informado de que ele era chamado de volta à Inglaterra, embora ele (Grey) estivesse certo de que Ellesmere lamentaria profundamente a perda desta oportunidade de fazer parte da equipe de sir George, quando recebesse a notícia - daí a alguns meses. Uma pena.
Começou a assoviar "Lillibulero" e acelerou o passo de volta à estalagem sentindo-se mais animado.
Parou no salão do bar e pediu uma garrafa de vinho para ser levada em seu quarto. Foi informado pela garçonete que "o cavalheiro" já levara uma garrafa para cima com ele.
- E dois copos - acrescentou, sorrindo para ele. - Então, suponho que ele não pretenda beber tudo sozinho.
Grey sentiu algo como uma centopeia correr pela sua espinha.
- Desculpe-me - falou. - Você disse que há um cavalheiro em meu quarto?
- Sim, senhor - ela confirmou. - Disse que é um velho amigo seu.... Na verdade, ele me disse seu nome... - Franziu a testa por um instante, em seguida seu semblante desanuviou. - Bouchau, ele disse, ou algo assim. Parecia um nome francês - ela explicou. - E o cavalheiro também parecia afrancesado. Vai querer alguma coisa para comer, senhor?
- Não, obrigado. - Dispensou-a com um aceno da mão e subiu as escadas, pensando rapidamente se havia deixado alguma coisa em seu quarto que não deveria. Um francês, chamado Bouchau... Beauchamp. O nome fustigou pela sua mente como um relâmpago. Estancou por um instante no meio da escada, em seguida retomou a subida, mais devagar.
Claro que não.... mas quem mais poderia ser? Quando saiu da ativa, há alguns anos, começara a vida diplomática como membro da Black Chamber inglesa, uma obscura organização encarregada de interceptar e decodificar a correspondência diplomática oficial - e mensagens muito menos oficiais que fluíam entre os governos da Europa. Cada um desses governos possuía sua própria Black Chamber, e não era incomum que os membros de uma dessas câmaras conhecessem seus pares - nunca se conheciam pessoalmente, mas os reconheciam pela assinatura, pelas iniciais, pelas observações escritas nas margens e sem assinatura.
Beauchamp fora um dos mais ativos agentes franceses; Grey cruzara sua pista várias vezes ao longo dos anos, muito embora seus próprios dias na Black Chamber já estivessem no passado distante. Se ele conhecia Beauchamp de nome, era bastante razoável supor que o sujeito também o conhecesse - mas sua ligação invisível ocorrera há muitos anos. Nunca haviam se encontrado pessoalmente e para tal encontro ocorrer ali... Tocou o bolso secreto em seu casaco e tranquilizou-se com o estalido abafado de papel.
Hesitou no topo da escada, mas de nada adiantava ser furtivo; obviamente, era esperado. Com passos firmes, desceu o corredor e girou a maçaneta de porcelana branca de sua porta, a louça lisa e fria sob seus dedos.
Uma onda de calor envolveu-o e ele arfou involuntariamente. Ainda bem, pois isso o impediu de proferir a blasfêmia que saltara aos seus lábios.
O cavalheiro que ocupava a única cadeira do aposento era realmente "afrancesado" - seu traje muito bem-cortado, realçado por cascatas de renda branca como neve na garganta e nos punhos, os sapatos com fivelas de prata que combinavam com os cabelos em suas têmporas.
- Sr. Beauchamp - Grey disse, fechando lentamente a porta atrás de si. Suas roupas de baixo úmidas de suor grudavam-se em sua pele e ele podia sentir sua pulsação latejando nas têmporas. - Temo que tenha me surpreendido em desvantagem.
Perseverance Wainwright sorriu, muito levemente. - Prazer em vê-lo, John - ele disse.
Grey mordeu a língua para evitar qualquer coisa insensata - cuja descrição cobria praticamente tudo que pudesse dizer, pensou, com a exceção de "Boa-noite".
- Boa-noite - ele disse. Ergueu uma das sobrancelhas com ar de interrogação. - Monsieur Beauchamp?
- Oh, sim. - Percy recolheu os pés para trás, fazendo menção de se levantar, mas Grey abanou a mão para que permanecesse sentado e virou-se para pegar um banquinho, esperando que os segundos ganhos com o movimento lhe permitissem recobrar o autocontrole. Vendo que não adiantaram, procurou ganhar mais um tempo abrindo a janela e ficou ali parado, inspirando o ar úmido e denso, antes de se virar novamente e tomar seu assento.
- Como isso aconteceu? - ele perguntou, fingindo descontração. - Beauchamp, quero dizer. Ou trata-se apenas de um nom de guerre?
- Oh, não. - Percy pegou seu lenço orlado de renda e delicadamente enxugou o suor da linha dos cabelos, que começava a recuar, Grey observou. - Caseime com uma das irmãs do barão Amandine. O nome da família é Beauchamp, eu o adotei. O relacionamento facilitava a entrada em determinados círculos políticos, dos quais... - Deu de ombros graciosamente e fez um gesto delicado que abrangia sua carreira na Black Chamber; e sem dúvida em outros lugares, Grey pensou impiedosamente.
- Parabéns pelo seu casamento - Grey disse, sem se dar ao trabalho de disfarçar a ironia na voz. - Com quem você está dormindo, com o barão ou com a irmã?
Percy pareceu achar graça. - Ambos, de vez em quando. - Juntos? O sorriso se ampliou. Seus dentes ainda eram bons, Grey notou, embora um pouco manchados de vinho.
- De vez em quando. Embora Cecile, minha mulher, realmente prefira as atenções de sua prima Lucianne e eu próprio prefira as atenções do ajudante do jardineiro. Um homem adorável chamado Emile; me faz lembrar de você... em seus anos de juventude. Esbelto, louro, musculoso e brutal.
Para seu espanto, Grey sentiu vontade de rir. Mas, em vez disso, disse secamente:
- Soa extremamente francês. Tenho certeza de que lhe convém. O que deseja?
- É mais uma questão do que você deseja, eu acho. - Percy ainda não havia bebido nada do vinho; pegou a garrafa e serviu a bebida cuidadosamente, o líquido vermelho borbulhando, escuro, contra os copos. - Ou talvez eu deva dizer "o que a Inglaterra deseja". - Estendeu um copo a Grey, sorrindo. - Pois dificilmente se podem separar os interesses próprios daqueles do país, não é? Na realidade, confesso que você sempre me pareceu ser a Inglaterra, John.
Grey gostaria de proibir-lhe que usasse seu primeiro nome, mas isso iria apenas enfatizar a lembrança da intimidade dos dois - que era, é claro, a intenção de Percy. Resolveu ignorar isso e tomou um pequeno gole de seu vinho, que era bom. Perguntou-se se ele estaria pagando por ele - e, se estivesse, como.
- O que a Inglaterra deseja - repetiu, cético. - E qual é sua impressão do que a Inglaterra quer?
Percy tomou um gole do vinho e manteve-o na boca, evidentemente saboreando-o, antes de finalmente engolir.
- Não é propriamente um segredo, não é, meu caro? Grey suspirou e olhou fixamente para ele. - Você viu essa "Declaração de Independência" publicada pelo chamado Congresso Continental? - Percy perguntou. Virou-se e, enfiando a mão em uma sacola de couro que ele pendurara nas costas da cadeira, retirou um maço de papéis dobrados, que entregou a Grey.
Grey não havia, na realidade, visto o documento em questão, embora certamente tivesse ouvido falar dele. Fora impresso há apenas duas semanas, na Filadélfia, mas as cópias haviam se espalhado pelas colônias como ervas daninhas carregadas pelo vento. Erguendo uma das sobrancelhas para Percy, desdobrou as folhas e passou os olhos rapidamente por elas.
- O rei é um tirano? - ele disse, quase rindo do ultraje de alguns dos sentimentos mais extremos do documento. Dobrou as folhas juntas outra vez e atirou o maço sobre a mesa.
- E se eu sou a Inglaterra, imagino que você seja a personificação da França, para fins desta conversa?
- Represento certos interesses lá - Percy respondeu calmamente. - E no Canadá. Isso fez soar o alarme. Grey havia lutado no Canadá com Wolfe e tinha plena consciência de que, apesar de terem perdido grande parte de suas propriedades na América do Norte, os franceses continuavam ferozmente entrincheirados nas regiões ao norte, de Ohio Valley a Quebec. Bastante perto para causar problemas agora? Achava que não - mas não descartaria nada dos franceses, nem de Percy.
- A Inglaterra quer um fim rápido desta bobajada, obviamente. - A mão longa e magra de Percy apontou na direção do documento. - O Exército Continental, como chamam, é uma frágil associação de homens sem experiência e com ideias conflitantes. E se eu estivesse preparado a lhe fornecer informações que poderiam ser usadas para afastar um dos principais oficiais de Washington de sua lealdade?
- E se estivesse? - Grey retrucou, sem fazer nenhum esforço para esconder o ceticismo em sua voz. - De que forma isso beneficiaria a França ou seus próprios interesses, que tomo a liberdade de achar que não são completamente idênticos?
- Vejo que o tempo não abrandou seu cinismo natural, John. Um de seus traços menos atraentes... não sei se já mencionei isso a você.
Grey arregalou ligeiramente os olhos e Percy suspirou.
- Terras, é isso - ele disse. - O Território Noroeste. Nós o queremos de volta. Grey soltou uma risada curta.
- Imagino que sim. - O território em questão, uma grande extensão a noroeste do vale do rio Ohio, fora cedido à Grã-Bretanha pela França no fim da guerra entre franceses e índios. A Inglaterra, entretanto, não ocupara as terras e impedira a expansão colonial naquela direção, devido à resistência armada dos nativos e da presente negociação de tratados com eles. Os colonos não estavam satisfeitos com isso, ele sabia. O próprio Grey havia encontrado alguns desses nativos e estava inclinado a achar a posição do governo britânico tanto razoável quanto honrosa.
- Os comerciantes franceses têm extensas ligações com os aborígines naquela área, vocês não têm nenhuma.
- Os comerciantes de peles de animais sendo alguns dos... interesses... que você representa?
Percy sorriu abertamente.
- Não os principais interesses. Mas alguns. Grey não se deu ao trabalho de perguntar por que Percy o estava abordando - um diplomata notoriamente aposentado, sem nenhuma influência em particular - com essa questão. Percy conhecia o poder da família e das ligações de Grey da época de seu relacionamento pessoal - e "Monsieur Beauchamp" sabia muito mais a respeito de suas atuais conexões pessoais através da rede de informações que alimentava as Black Chambers da Europa. Grey não podia interferir diretamente na questão, é claro. Mas estava bem situado para levar a oferta discretamente à atenção daqueles que podiam.
Sentiu cada pelo de seu corpo se eriçar como a antena de um inseto, alerta ao perigo.
- Seria necessário mais do que a sugestão, é claro - disse, friamente. - O nome do oficial em questão, por exemplo.
- Não cabe a mim informar, no momento. Mas quando uma negociação em boa-fé for aberta...
Grey já estava imaginando a quem ele deveria levar esta proposta. Não a sir George Germain. Ao gabinete de lorde North? Mas isso podia esperar.
- E seus interesses pessoais? - ele perguntou, com rispidez. Ele conhecia bem Percy Wainwright para saber que haveria algum aspecto do caso em benefício pessoal de Percy.
- Ah, sim. - Percy tomou um pequeno gole de seu vinho, abaixou o copo e olhou calmamente para Grey por cima dele. - Muito simples, na verdade. Fui encarregado de encontrar um homem. Conhece um cavalheiro escocês chamado James Fraser?
Grey sentiu o pé de seu copo quebrar. No entanto, continuou segurando-o e cuidadosamente tomou um gole do vinho, agradecendo a Deus, primeiro, por nunca ter mencionado o nome de Jamie Fraser a Percy e, segundo, por Fraser ter ido embora de Wilmington naquela tarde.
- Não - disse, calmamente. - O que você quer com esse sr. Fraser? Percy deu de ombros e sorriu. - Só uma ou duas perguntas. Grey podia sentir o sangue vazando do corte na palma de sua mão. Segurando cuidadosamente os pedaços do copo quebrado, bebeu o resto do vinho. Percy permaneceu em silêncio, bebendo com ele.
- Minhas condolências pelo falecimento de sua esposa - Percy disse brandamente. - Sei que ela...
- Você não sabe nada - Grey retrucou asperamente. Inclinou-se para frente e colocou o copo quebrado sobre a mesa; a taça rolou sem direção, a borra do vinho espalhando-se pelo vidro. - Absolutamente nada. Nem sobre minha mulher, nem sobre mim.
Percy ergueu levemente os ombros. Como quiser, o gesto dizia. No entanto, seus olhos - ainda eram bonitos, desgraçado, escuros e meigos - demoraram-se sobre Grey com o que parecia um sentimento genuíno.
Grey suspirou. Sem dúvida, era genuíno. Percy não era confiável - de modo algum - , mas o que ele andara fazendo fora feito por fraqueza, não por malícia ou mesmo insensibilidade.
- O que você quer? - repetiu.
- Seu filho - Percy começou, e Grey virou subitamente para ele. Agarrou Percy pelo ombro, com tanta força que o sujeito soltou uma pequena arfada e retesou-se. Grey inclinou-se para baixo - olhando tão de perto no rosto de Wainwright - desculpe, Beauchamp - que sentiu o calor do hálito do sujeito em sua face e o cheiro de sua água de colônia. Ele estava sujando o casaco de Wainwright de sangue.
- Na última vez que o vi - Grey disse, muito calmamente - , estive muito perto de colocar uma bala em sua cabeça. Não me dê motivo para lamentar meu autocontrole.
Soltou-o e endireitou-se.
- Fique longe do meu filho, fique longe de mim. E, se quiser um conselho bem-intencionado, volte para a França. Depressa.
Girando nos calcanhares, saiu, fechando a porta com firmeza às suas costas. Já estava no meio da rua quando percebeu que deixara Percy em seu próprio quarto.
- Para o inferno com ele - murmurou, e saiu batendo os pés para pedir ao sargento Cutter uma vaga de alojamento para passar a noite. Pela manhã, iria se certificar de que a família Fraser e William estavam todos a salvo longe de Wilmington.
E ÀS VEZES NÃO ESTÃO
Lallybroch Inverness-shire, Escócia
Setembro 1980
- Estamos vivos - Brianna Mackenzie repetiu, a voz trêmula. Olhou para Roger, o papel pressionado contra o peito com as duas mãos. Seu rosto estava banhado em lágrimas, mas uma luz gloriosa brilhava em seus olhos azuis. - Vivos!
- Deixe-me ver. - Seu coração batia com tanta força no peito que mal conseguia ouvir as próprias palavras. Estendeu a mão e relutantemente ela entregou-lhe o papel, aproximando-se imediatamente para pressionar-se contra ele, agarrando-se ao seu braço enquanto ele lia, incapaz de tirar os olhos do antigo pedaço de papel.
A textura do papel era agradavelmente áspera sob seus dedos, papel feito à mão com sombras de folhas e flores pressionadas em suas fibras. Amarelado do tempo, mas ainda forte e surpreendentemente flexível. A própria Bri o fizera - há mais de duzentos anos.
Roger percebeu que suas mãos estavam trêmulas, o papel sacudindo tanto que a letra espalhada, rabiscada, tornava-se difícil de ser lida, desbotada como estava a tinta.
31 de dezembro de 1776
Querida filha,
Como verá se algum dia receber esta, estamos vivos... Seus próprios olhos se turvaram e ele os limpou com as costas da mão, mesmo enquanto dizia a si mesmo que não importava, pois agora certamente estavam mortos, Jamie Fraser e sua mulher, Claire - mas sentiu tal alegria com aquelas palavras na folha que era como se os dois estivessem diante dele, sorrindo.
E eram, de fato, os dois, como ele descobriu. Embora a carta começasse com a caligrafia de Jamie - e voz - a segunda página continuava na letra inclinada e bem delineada de Claire.
A mão do seu pai não consegue mais continuar. E é uma longa história. Ele andou cortando lenha o dia inteiro e mal pode desdobrar os dedos - mas insistiu em lhes contar ele mesmo que não fomos - ainda - carbonizados. Não que isso não possa acontecer a qualquer momento; há quatorze pessoas comprimidas na velha cabana e estou escrevendo quase sentada dentro da lareira, com a velha Vovó MacLeod respirando ruidosamente em seu catre aos meus pés, para que eu possa, caso ela comece a morrer, entornar mais uísque pela sua goela abaixo.
- Meu Deus, eu posso ouvi-la - ele disse, estupefato.
- Eu também. - As lágrimas ainda rolavam pelo rosto de Bri, mas era um típico caso de sol e chuva; ela enxugou-as, rindo e fungando. - Leia mais. Por que estão em nossa cabana? O que aconteceu com a casa grande?
Roger correu o dedo pela página para continuar de onde havia parado e retomou a leitura.
- Oh, meu Deus! - exclamou.
Lembra-se daquele idiota, Donner?
Seus braços se arrepiaram diante do nome. Um viajante do tempo, Donner. E um dos indivíduos mais ineptos e irresponsáveis que já conhecera ou ouvira falar - mas por isso mesmo perigoso.
Bem, ele se superou reunindo uma quadrilha de vagabundos de Brownsville para vir roubar o tesouro em pedras preciosas que ele os convencera que possuíamos. Só que não tínhamos, é claro.
Não tinham - porque ele, Brianna, Jemmy e Amanda haviam usado o pequeno tesouro de pedras preciosas restantes como proteção para sua viagem através das pedras.
Eles nos mantiveram reféns e reviraram toda a casa, os desgraçados - quebrando, entre outras coisas, o recipiente de éter no meu consultório. Os gases quase intoxicaram todos nós ali mesmo...
Leu rapidamente o restante da carta, Brianna espreitando por cima de seu ombro e soltando gritinhos de susto e espanto. Uma vez terminada, ele largou as folhas e voltou-se para ela, o corpo trêmulo.
- Então, você conseguiu - ele disse, ciente de que não deveria dizer isso, mas incapaz de se conter, incapaz de não resfolegar com uma risada. - Você e seus malditos fósforos. Você incendiou a casa!
Seu rosto era uma caricatura, as feições alternando entre horror, indignação - e, sim, uma vontade histérica de rir que se igualava à dele.
- Oh, não! Foi o éter de mamãe. Qualquer tipo de faísca poderia ter provocado a explosão...
- Mas não foi qualquer tipo de faísca - Roger ressaltou. - Seu primo Ian acendeu um de seus fósforos.
- Bem, então foi culpa de Ian!
- Não, foi sua e de sua mãe. Mulheres cientistas - Roger disse, sacudindo a cabeça. - O século XVIII teve sorte de sobreviver a vocês duas.
Ela bufou de raiva.
- Bem, nada disso teria acontecido se não fosse o palhaço do Donner!
- É verdade - Roger admitiu. - Mas ele era um encrenqueiro do futuro, também, não era? Embora, diga-se a bem da verdade, não fosse nem mulher, nem muito científico.
- Humm. - Ela pegou a carta, segurando-a delicadamente, mas incapaz de evitar esfregar as páginas entre os dedos. - Bem, ele não sobreviveu ao século XVIII, não é? - Estava cabisbaixa, as pálpebras ainda avermelhadas.
- Você não está com pena dele, está? - Roger perguntou, incrédulo. Ela sacudiu a cabeça, mas seus dedos ainda se moviam de leve pela folha grossa e macia.
- Não... exatamente dele. É que... A ideia de alguém morrer assim. Sozinho, quero dizer. Tão longe de casa.
Não, não era em Donner que ela estava pensando. Ele passou o braço ao seu redor e encostou a cabeça na dela. Ela cheirava a xampu Prell e repolhos frescos; ela estivera no canteiro de repolhos. As palavras na carta desbotavam-se e tornavam a ficar fortes conforme a pena que as escrevera era molhada no tinteiro, mas ainda assim eram nítidas e precisas - a letra de um cirurgião.
- Ela não está sozinha - ele sussurrou e, estendendo o dedo, delineou o pós-escrito, novamente na letra esparramada de Jamie. - Nenhum dos dois está. E quer tenham um telhado acima de suas cabeças ou não, ambos estão em casa.
Deixei a carta de lado. Haveria bastante tempo para terminá-la depois, pensei. Estive trabalhando nela conforme o tempo permitia nos últimos dias; não que houvesse nenhuma pressa em pegar o correio de partida, afinal. Sorri ligeiramente diante desse pensamento e dobrei as folhas cuidadosamente, colocando-as em minha nova sacola de costura, por segurança. Limpei a pena e guardei-a, em seguida esfreguei meus dedos doloridos, saboreando por um pouco mais de tempo a doce sensação de conexão que sentia ao escrever cartas. Eu podia escrever com muito mais facilidade do que Jamie, mas carne e osso tinham seus limites, e o dia havia sido muito longo.
Olhei para o catre do outro lado do fogo, como fazia de poucos em poucos minutos, mas ela ainda estava quieta. Podia ouvi-la respirar, um gorgolejar chiado que vinha a intervalos tão longos que eu podia jurar que ela havia morrido entre um e outro. Contudo, não morrera e, pela minha estimativa, não o faria ainda por algum tempo. Eu esperava que ela morresse antes que meu suprimento de láudano acabasse.
Eu não sabia sua idade; parecia ter uns cem anos, mas podia ser mais nova do que eu. Seus dois netos, garotos adolescentes, a haviam trazido há dois dias. Estavam descendo as montanhas, pretendendo levar a avó para a casa de parentes em Cross Creelç, antes de partirem para Wilmington para se unirem à milícia lá, mas a avó passara mal, como explicaram, e alguém lhes dissera que havia uma curandeira ali perto, nas montanhas. Assim, trouxeram-na para mim.
Vovó MacLeod - eu não tinha outro nome para ela; os garotos não pensaram em me dizer antes de partir e ela própria não estava em condições de fazêlo - muito provavelmente estava nos últimos estágios de algum tipo de câncer. Macilenta, o rosto contraído de dor mesmo estando inconsciente, dava para ver pelo aspecto cinzento de sua pele.
O fogo ardia bem baixo; eu devia atiçá-lo e acrescentar mais uma acha de lenha. Mas a cabeça de Jamie descansava em meus joelhos. Eu alcançaria a pilha de lenha sem perturbá-lo? Apoiei a mão de leve em seu ombro para dar equilíbrio e me estiquei, conseguindo apenas tocar os dedos na ponta de uma pequena tora. Delicadamente, soltei-a da pilha, os dentes pressionando o lábio inferior, e consegui, inclinando-me, enfiá-la na lareira, deslocando as brasas acesas e levantando nuvens de fagulhas.
Jamie remexeu-se sob a minha mão e murmurou algo ininteligível, mas quando enfiei a pequena tora no fogo atiçado e recostei-me em minha cadeira, ele suspirou, ajeitou-se e voltou a dormir.
Olhei para a porta, apurando o ouvido, mas não escutei nada além do farfalhar das árvores ao vento. Claro, pensei, eu ouviria alguma coisa, considerando-se que era o Jovem Ian quem eu estava esperando.
Ele e Jamie estavam se revezando em montar guarda, escondendo-se no meio das árvores acima das ruínas carbonizadas da casa grande. Ian estava fora há mais de duas horas; já era hora de ele retornar para comer e se aquecer junto à lareira.
- Alguém tentou matar a porca branca - ele anunciou durante o café da manhã três dias atrás, achando graça.
- O quê? - Passei-lhe uma tigela de mingau, encimado por um bocado de manteiga derretida e um fio de mel - felizmente meus pequenos barris de mel e caixas de favos estavam na casinhola de refrigeração na ocasião do incêndio. - Tem certeza?
Ele balançou a cabeça, pegando a tigela e inalando o vapor, inebriado.
- Sim, ela está com um corte no flanco. Não é fundo e está sarando, tia - ele acrescentou, com um sinal da cabeça em minha direção, evidentemente achando que eu iria considerar o bem-estar médico da porca com o mesmo interesse que teria por qualquer outro morador de Ridge.
- É mesmo? Ótimo - eu disse, embora não houvesse nada que eu pudesse fazer se ela não estivesse sarando. Eu podia - e costumava fazer - tratar de cavalos, vacas, cabras, arminhos e até mesmo de uma ou outra galinha que não punha ovos, mas essa porca em particular estava por conta própria.
Amy Higgins fez o sinal da cruz à menção da porca.
- Provavelmente foi um urso - ela disse. - Nada mais ousaria atacá-la. Aidan, preste atenção no que o sr. Ian está dizendo aqui! Não se afaste muito daqui e tome conta do seu irmão lá fora.
- Os ursos dormem no inverno, mamãe - Aidan disse distraidamente. Sua atenção estava fixa em um novo pião que Bobby, seu novo padrasto, esculpira para ele, e que ele ainda não conseguia fazer girar adequadamente. Lançando-lhe um olhar contrariado, colocou-o cuidadosamente sobre a mesa, segurou o barbante por um instante tenso e deu-lhe um puxão. O pião disparou por cima da mesa, ricocheteou no jarro de mel com um estalido e partiu na direção da jarra de leite a toda velocidade.
Ian estendeu a mão e agarrou o pião na hora H. Mastigando uma torrada, fez sinal para que Aidan lhe passasse o barbante, enrolou-o novamente e, com um experiente trejeito do pulso, lançou o pião zunindo em linha reta pelo meio da mesa. Aidan observou de boca aberta, depois mergulhou embaixo da mesa quando o pião caiu da outra extremidade.
- Não, não foi um animal - Ian disse, conseguindo finalmente engolir. - Era um corte preciso. Alguém a atacou com uma faca ou uma espada.
Jamie ergueu os olhos da torrada queimada que andara examinando.
- E você encontrou o corpo dele?
Ian exibiu um sorriso, mas sacudiu a cabeça.
- Não, se ela o matou, ela o comeu. E eu não achei nenhuma sobra.
- Porcos fazem uma grande sujeira para comer - Jamie observou. Ensaiou uma cautelosa mordida na torrada queimada, fez uma careta, mas comeu mesmo assim.
- Um índio, você acha? - Bobby perguntou. O pequeno Orne se debatia para descer do colo de Bobby; seu novo padrasto obedientemente o colocou no chão, no seu lugar favorito embaixo da mesa.
Jamie e Ian trocaram olhares e eu senti os pelos da minha nuca se arrepiarem.
- Não - Ian respondeu. - Todos os cherokees das proximidades a conhecem muito bem e não tocariam nela nem com uma vara de três metros. Acham que ela é um demônio.
- E índios de passagem vindos do norte teriam flechas e tacapes - Jamie concluiu.
- Tem certeza de que não foi uma pantera? - Amy perguntou, em dúvida. - Elas caçam no inverno, não é?
- É verdade - Jamie confirmou. - Eu vi pegadas lá em cima, perto da Fonte Verde ontem. Estão me ouvindo aí? - ele disse, inclinando-se para falar com os garotos embaixo da mesa. - Fiquem espertos, hein?
- Mas, não - acrescentou, endireitando-se. - Ian conhece a diferença entre marcas de garras de animais e um corte de lâmina, eu acho. - Abriu um sorriso para Ian, que educadamente se absteve de revirar os olhos e meramente balançou a cabeça, os olhos fixos, em dúvida, na cesta de torradas.
Ninguém sugeriu que qualquer residente de Ridge ou de Brownsville estivera caçando a porca branca. Os presbiterianos locais não concordavam com os cherokees em nenhuma outra questão espiritual, mas havia um consenso entre eles sobre o caráter demoníaco da porca.
Pessoalmente, não estava certa se não tinham razão. Aquele monstro havia sobrevivido até mesmo ao incêndio da casa grande sem nenhum arranhão, emergindo de seu esconderijo sob os alicerces entre uma chuva de madeira queimada, seguida de sua última ninhada de porquinhos.
- Moby Dick! - eu disse em voz alta, inspirada. Rollo ergueu a cabeça com um espantado rugido, fixou em mim os olhos amarelos e deitou-a outra vez, suspirando.
- Dick quem? - Jamie disse, sonolento. Sentou-se direito, espreguiçando-se e gemendo, depois passou a mão pelo rosto e pestanejou para mim.
- Estava pensando no que aquela porca me faz lembrar - expliquei. - Uma longa história. Sobre uma baleia. Eu lhe contarei amanhã.
- Se eu viver até lá - ele disse, com um bocejo que quase deslocou seu maxilar. - Onde está o uísque? Ou você precisa dele para a pobre mulher? - Balançou a cabeça, indicando a forma da Vovó MacLeod enrolada em um cobertor.
- Ainda não. Tome. - Inclinei-me e remexi na cesta sob minha cadeira, tirando dali uma garrafa com rolha de cortiça.
Ele retirou a rolha e bebeu, a cor gradualmente retornando ao seu rosto. Entre passar os dias caçando ou rachando lenha e metade das noites espreitando em uma floresta gelada, até mesmo a enorme vitalidade de Jamie começava a dar sinais de enfraquecimento.
- Por quanto tempo você vai manter isso? - perguntei, a voz baixa para não acordar os Higgins - Bobby, Amy, os dois meninos e as duas cunhadas de Amy de seu primeiro casamento, que vieram para o casamento realizado há alguns dias, acompanhadas por um total de cinco crianças com idade abaixo de dez anos - todos dormindo no pequeno quarto. A partida dos rapazes MacLeod amenizara um pouco o congestionamento na cabana, mas com Jamie, eu, Ian, o cachorro de Ian, Rollo, e a velha mulher dormindo no chão do aposento principal, e os poucos bens que havíamos conseguido salvar do incêndio empilhados pelas paredes, eu às vezes sentia uma nítida onda de claustrofobia. Não era de admirar que Jamie e Ian estivessem patrulhando a floresta, tanto para respirar um pouco de ar fresco quanto pela convicção de que havia alguma coisa lá fora.
- Não por muito tempo - assegurou-me, dando de ombros ligeiramente, enquanto engolia um grande gole de uísque. - Se não virmos nada esta noite, nós... - Parou, a cabeça virando-se abruptamente para a porta.
Eu não ouvira nada, mas vi a maçaneta se mexer e, um instante depois, uma rajada de ar gélido inundou o aposento, enfiando os dedos frígidos sob minhas saias e agitando uma chuva de faíscas do fogo.
Prontamente, peguei um trapo e apaguei as fagulhas antes que pudessem atear fogo aos cabelos ou às roupas de cama da Vovó MacLeod. Quando finalmente controlei o fogo, Jamie colocava a pistola, a sacola de munição e o chifre de pólvora no cinto, conversando em voz baixa com Ian junto à porta. O próprio Ian estava com o rosto vermelho do frio e obviamente empolgado com alguma coisa. Rollo também estava acordado, fuçando nas pernas de Ian, balançando o rabo na expectativa de uma aventura glacial.
- É melhor você ficar aqui, a ceas. - Ian disse-lhe, esfregando as orelhas com dedos frios. - Sheas.
Rollo emitiu um ruído de decepção do fundo da garganta e tentou passar por Ian, mas foi habilmente impedido por uma perna. Jamie virou-se, vestindo o casaco, inclinou-se e beijou-me apressadamente.
- Tranque a porta, a nighean - ele sussurrou. - Não abra para ninguém, a não ser eu ou Ian.
- O que... - comecei a dizer, mas haviam desaparecido.
A noite estava fria e límpida. Jamie respirou fundo e estremeceu, deixando o frio penetrar em seu corpo, remover o calor da mulher, a fumaça e o cheiro da lareira. Cristais de gelo cintilaram em seus pulmões, penetrantes em seu sangue. Ele virava a cabeça de um lado para o outro, como um lobo farejando, respirando a noite. Havia pouco vento, mas o ar movia-se a partir do leste, trazendo o cheiro pungente de cinzas das ruínas da casa grande... e um leve odor adstringente que ele achou que fosse de sangue.
Olhou para seu sobrinho, uma pergunta na maneira de inclinar da cabeça, e viu Ian assentir, em silhueta contra a claridade cor de lavanda do céu.
- Há um porco morto, logo depois da horta da tia - disse o rapaz, em voz baixa.
- Oh, é mesmo? Mas não é a porca branca, é? - Seu coração apertou-se por um instante diante do pensamento, e ele se perguntou se iria lamentar a perda do monstro ou dançar em cima de seus ossos. Mas não. Ian sacudiu a cabeça, o movimento mais sentido do que visto.
- Não, não aquela besta velhaca. Um porco novo, talvez da ninhada do ano passado. Alguém o abateu, mas não levou mais do que uma ou duas tiras do quarto traseiro. E uma boa parte do que realmente levaram espalharam em pedaços pela trilha.
Jamie virou-se bruscamente, surpreso.
- O quê? Ian deu de ombros. - Sim. Mais uma coisa, tio. O animal foi abatido e cortado com um machado. Os cristais de gelo em seu sangue se solidificaram com uma rapidez que quase fizeram seu coração parar.
- Santo Deus - exclamou, mas não tanto pelo choque quanto pela admissão a contragosto de algo que ele sabia há muito tempo. - É ele, então.
- Sim. - Ambos já sabiam, mas nenhum dos dois quis admitir. Sem se consultarem, afastaram-se da cabana, penetrando na floresta.
- Sim, bem. - Jamie respirou fundo e suspirou, o vapor de seu hálito branco na escuridão. Esperara que o sujeito tivesse pegado seu ouro e sua mulher e ido embora de Ridge - mas nunca passara de uma esperança. Arch Bug era um Grant pelo sangue e o clã Grant era um bando vingativo.
Os Fraser de Glenhelm haviam flagrado Arch Bug em suas terras uns cinquenta anos antes e haviam lhe dado a escolha: perder um olho ou os dois primeiros dedos da mão direita. O sujeito se acostumara com sua mão mutilada, passando do arco e flecha que já não podia manejar para o uso de um machado, que ele manejava e lançava com uma habilidade equivalente à de qualquer mohawlc, apesar de sua idade.
O que ele não conseguira aceitar foi a perda da causa Stuart e do ouro jacobita, enviado tarde demais da França, resgatado - ou roubado, dependendo do ponto de vista - por Hector Cameron, que trouxera um terço do ouro para a Carolina do Norte, parte por sua vez roubada - ou recuperada - da viúva de Cameron por Arch Bug.
Nem Arch Bug se reconciliara com Jamie Fraser.
- Você acha que é uma ameaça? - Ian perguntou. Eles haviam se afastado da cabana, mas continuaram no meio das árvores, circundando a grande clareira onde antes ficava a casa grande. A chaminé e metade de uma parede ainda estavam de pé, carbonizadas e nuas contra a neve suja.
- Acho que não. Se ele quisesse ameaçar, por que esperar até agora? - Ainda assim, agradeceu silenciosamente que sua filha e seus netos estivessem a salvo. Havia ameaças piores do que um porco morto e ele achava que Arch Bug não hesitaria em fazê-las.
- Talvez ele tenha ido embora - Ian sugeriu. - Para assentar sua mulher, e somente agora tenha voltado.
Era um pensamento sensato - se havia uma coisa que Arch amava neste mundo era sua mulher, Murdina, sua companheira de mais de cinquenta anos.
- Talvez - Jamie disse. No entanto... No entanto, ele sentira olhos em suas costas mais de uma vez durante as semanas desde a partida dos Bug. Sentiu um silêncio na floresta que não era o silêncio das árvores e rochas.
Ele não perguntou se Ian procurara o rastro do dono do machado; se alguém pudesse ser encontrado, Ian o encontraria. Mas não nevava há mais de uma semana e o que sobrara no solo estava remexido e pisoteado pelos pés de inúmeras pessoas. Olhou para o céu; neve outra vez, e dentro de pouco tempo.
Subiu no topo de um pequeno afloramento de rocha, tomando cuidado com o gelo; a neve se derretia durante o dia, mas a água congelava outra vez à noite, pendurando-se dos beirais da cabana e de cada galho em cintilantes pingentes que enchiam a floresta com a luz da aurora azul, depois gotejavam como ouro e diamantes sob o sol. Agora, estavam incolores, tilintando como vidro conforme a manga de seu casaco roçava pelos ramos de um arbusto coberto de gelo. Parou, agachando-se no alto da rocha, olhando por toda a extensão da clareira.
Muito bem. A certeza de que Arch Bug estava ali havia disparado uma cadeia de deduções semiconscientes, cuja conclusão agora flutuava à superfície de sua mente.
- Ele voltaria novamente por uma de duas razões - ele disse a Ian. - Para me causar algum mal ou para pegar o ouro. Todo ele.
Ele dera a Bug um pouco de ouro quando mandou o sujeito e sua mulher embora, ao descobrir a traição de Bug. Metade de um lingote francês. Teria permitido que um casal de idosos vivesse o resto de suas vidas com modesto conforto. Mas Arch Bug não era um homem modesto. Um dia fora arrendatário dos Grant e, embora tivesse escondido seu orgulho por algum tempo, não era da natureza do orgulho se manter enterrado.
Ian olhou para ele, interessado. - Todo ele - repetiu. - Então, você acha que ele o escondeu aqui, mas em algum lugar de onde não podia retirá-lo facilmente quando você o mandou embora.
Jamie ergueu um dos ombros, observando a clareira. Com a casa agora destruída, ele podia ver a trilha íngreme que subia por trás dela, na direção do lugar onde antes ficava a horta de sua mulher, protegida atrás de sua cerca à prova de veados. Partes da cerca ainda estavam de pé, negras contra as manchas brancas de neve no solo. Iria fazer uma nova horta para ela um dia, tinha fé em Deus.
- Se seu propósito fosse apenas causar mal, ele teve chance. - Podia ver o porco abatido dali onde estava, uma forma escura no caminho, sombreada por uma larga poça de sangue.
Afastou da mente um pensamento repentino sobre Malva Christie e forçou-se a raciocinar outra vez.
- Sim, ele o escondeu aqui - repetiu, mais confiante agora. - Se ele já tivesse todo o ouro, teria ido embora há muito tempo. Ele tem esperado, tentando arranjar uma maneira de recuperar o ouro. Mas não consegue fazer isso secretamente, então, agora, está tentando outra maneira.
- Sim, mas o quê? Isso... - Ian fez um sinal com a cabeça indicando a figura amorfa no caminho. - Pensei que pudesse ser uma cilada ou algum tipo de armadilha, mas não é. Eu olhei.
- Um chamariz, talvez? - O cheiro de sangue era evidente até mesmo para ele; seria óbvio para qualquer predador. No instante mesmo em que esse pensamento lhe ocorria, percebeu um movimento perto do porco e colocou a mão no braço de Ian.
Um rápido movimento hesitante, depois uma forma pequena, sinuosa, arremeteu-se para frente, desaparecendo atrás do corpo do porco.
- Raposa - os dois homens disseram simultaneamente, depois riram baixinho.
- Há uma pantera na floresta acima da Fonte Verde - Ian disse, em dúvida. - Vi o rastro ontem. Será que pretende atraí-la com o porco, na esperança de corrermos para lidar com ela e ele poder pegar o ouro enquanto estamos ocupados?
Jamie franziu a testa e olhou na direção da cabana. É verdade, uma pantera atrairia os homens para fora - mas não as mulheres e crianças. E onde ele poderia ter escondido o ouro naquele lugar tão apinhado de gente? Seus olhos recaíram sobre a forma longa e curva do forno de Brianna, a certa distância da cabana, sem uso desde a sua partida, e uma onda de animação o fez aprumar-se. Isso seria... mas, não; Arch roubara o ouro de Jocasta Cameron, uma barra de cada vez, transportando-a secretamente para Ridge, e iniciara este roubo muito antes de Brianna partir. Mas talvez...
Ian empertigou-se repentinamente e Jamie virou a cabeça abruptamente para ver qual era o problema. Não podia ver nada, mas captou o som que Ian ouvira. Um grunhido profundo, rouco, um ruge-ruge, um estalo. Então, houve uma distinta movimentação entre as toras carbonizadas das ruínas da casa, e ele compreendeu.
- Santo Deus! - exclamou, agarrando o braço de Ian com tanta força que seu sobrinho soltou um gemido de dor. - Está embaixo da casa grande!
A porca branca emergiu de seu esconderijo embaixo das ruínas, um vulto claro e gigantesco na noite, e ficou parada, girando a cabeça de um lado ao outro, farejando o ar. Em seguida, começou a se mover, uma pesada ameaça avolumando-se com determinação colina acima.
Jamie teve vontade de rir diante da pura beleza do ardil. Arch Bug astutamente escondera o ouro sob os alicerces da casa grande, escolhendo os momentos em que a porca estava ausente. Ninguém pensaria em invadir os domínios da porca; ela era a guardiã perfeita - e sem dúvida ele pretendera reaver o tesouro da mesma maneira quando estivesse pronto para partir: cuidadosamente, um lingote de cada vez.
Mas a casa pegou fogo, as toras de madeira desabando sobre as fundações, tornando o ouro inacessível sem muito trabalho e dificuldade - o que sem dúvida atrairia atenção. Somente agora, quando os homens haviam limpado a maior parte dos escombros - e espalhado a fuligem e o carvão por toda a clareira no processo - é que alguém poderia ter acesso a alguma coisa escondida sob as ruínas sem chamar atenção.
Mas era inverno e a porca branca, embora não hibernasse como um urso, mantinha-se quase o tempo inteiro em seu aconchegante esconderijo - a não ser quando havia algo para comer.
Ian emitiu uma pequena exclamação de desgosto, ouvindo os ruídos de mastigação e salivação que vinham do caminho.
- Os porcos não têm nenhuma delicadeza de sentimentos - Jamie murmurou. - Se está morto, eles comem.
- Sim, mas provavelmente é um dos seus próprios filhotes!
- Ela às vezes come os próprios rebentos vivos; duvido que se importe em comê-los mortos.
- Cruzes! Ele silenciou imediatamente, os olhos fixos na mancha escura que um dia fora a melhor casa da região. De fato, uma figura emergiu de trás da casinhola de refrigeração, movendo-se cautelosamente no caminho escorregadio. A porca, ocupada com o horrendo banquete, ignorou o sujeito, que parecia vestido com uma capa escura e carregando algo como um saco.
Não tranquei a porta imediatamente, mas saí para respirar um pouco de ar fresco por alguns instantes, fechando a porta atrás de mim para que Rollo não escapasse. Em pouco tempo, Jamie e Ian haviam desaparecido no meio das árvores.
Olhei apreensivamente ao redor da clareira, para o negro da floresta do outro lado, mas não vi nada de errado. Nada se movia, a noite estava em silêncio; perguntei-me o que Ian poderia ter encontrado. Pegadas estranhas, talvez? Isso explicaria sua urgência; obviamente, estava prestes a nevar.
Não havia lua visível, mas o céu tinha um tom cinza rosado e o solo, embora pisoteado e com acúmulos de neve aqui e ali, ainda estava recoberto por neve antiga. O resultado era uma claridade estranha, leitosa, onde os objetos pareciam flutuar como se fossem pintados em vidro, indistintos e adimensionais. As ruínas carbonizadas da casa grande erguiam-se do outro lado da clareira, não mais do que uma mancha àquela distância, como se um polegar gigante, preto de fuligem, tivesse pressionado aquele lugar. Eu podia sentir a opressão da neve iminente no ar, ouvi-la no sussurro abafado dos pinheiros.
Os rapazes MacLeod haviam atravessado a montanha com a avó; disseram que estava muito difícil atravessar as passagens mais altas. Outra grande tempestade iria provavelmente nos isolar até março ou mesmo abril.
Assim relembrando-me de minha paciente, dei uma última olhada ao redor da clareira e coloquei a mão no trinco. Rollo choramingava, arranhando a porta, e eu enfiei o joelho sem nenhuma cerimônia em sua cara enquanto abria a porta.
- Fique onde está, Rollo. Não se preocupe, eles vão voltar logo. - Ele fez um ruído alto, ansioso, no fundo da garganta, e começou a se virar de um lado para o outro, fuçando minhas pernas, procurando sair. - Não - eu disse, empurrando-o a fim de trancar a porta. O trinco encaixou-se no lugar com um baque tranquilizador e eu me virei para o fogo, esfregando as mãos. Rollo ergueu a cabeça e emitiu um uivo baixo e lúgubre, que fez os cabelos da minha nuca se arrepiarem. - O que foi? - acrescentei, alarmada. - Quieto! - O barulho fez uma das crianças no quarto acordar e chorar; ouvi o farfalhar de cobertas e murmúrios maternais sonolentos. Ajoelhei-me depressa e agarrei o focinho de Rollo antes que ele pudesse uivar outra vez. - Shhhhh - eu fiz, e olhei para ver se o barulho perturbara a Vovó MacLeod. Ela jazia imóvel, o rosto cor de cera, os olhos cerrados. Esperei, automaticamente contando os segundos antes que a próxima respiração, apesar de fraca e superficial, levantasse seu peito.
seis ... sete... - Oh, droga! - exclamei, ao perceber. Benzendo-me rapidamente, arrastei-me até ela de joelhos, mas uma inspeção de perto não me disse nada que eu já não tivesse visto. Discreta até o último instante, ela aproveitara o momento de distração para morrer sem atrair atenção.
Rollo continuava andando de um lado para o outro, não mais uivando, mas inquieto. Coloquei a mão delicadamente sobre o peito fundo. Não buscando um diagnóstico ou oferecendo ajuda, não mais. Apenas... um reconhecimento necessário do falecimento de uma mulher cujo primeiro nome eu não sabia.
- Bem... que Deus a tenha, pobrezinha - eu disse baixinho, e sentei-me sobre os calcanhares, tentando pensar o que fazer em seguida.
O protocolo adequado das Highlands determinava que a porta deveria ser aberta imediatamente após uma morte, para permitir que a alma fosse embora. Esfreguei o nó de um dedo sobre os lábios, em dúvida; a alma poderia ter escapado rapidamente quando eu abri a porta para entrar? Provavelmente, não.
Seria de imaginar que, em um clima tão inóspito quanto o da Escócia, deveria haver um pouco de condescendência climatológica em tais questões, mas eu sabia que não era este o caso. Chuva, neve, granizo, vento - os escoceses das Highlands sempre abriam a porta e a deixavam aberta durante horas, tanto ansiosos para liberar a alma que partia quanto receosos de que o espírito, impedido de sair, se virasse e se instalasse ali permanentemente, como um fantasma. A maioria dos terrenos era pequena demais para que essa perspectiva pudesse ser tolerada.
O pequeno Orne estava acordado agora; podia ouvi-lo cantando alegremente para si mesmo, uma canção que consistia no nome do padrasto.
- Baaaaah-by, baaah-by, BAAAH-by... Ouvi uma risadinha baixa, sonolenta, e o murmúrio de Bobby em resposta. - Esse é meu homenzinho. Precisa do urinol, acooshla? - A palavra carinhosa em gaélico - a chuisle, "sangue do meu coração" - me fez sorrir, tanto pela palavra quanto pela estranheza do som no sotaque de Dorset de Bobby. Mas Rollo emitiu um rosnado baixo na garganta, relembrando-me da necessidade de ação.
Se os Higgins e parentes acordassem dentro de poucas horas e descobrissem um cadáver no chão, ficariam muito perturbados, sua noção de justiça afrontada - e agitados com a ideia de uma estranha morta provavelmente agarrada à sua casa. Um presságio muito ruim para o novo casamento e o ano-novo. Ao mesmo tempo, sua presença estava inegavelmente deixando Rollo nervoso e a perspectiva de que ele acordasse todo mundo nos próximos minutos estava me deixando nervosa.
- Certo - eu disse num sussurro. - Vamos, Rollo. - Havia, como sempre, partes de arreios precisando de remendos em um gancho junto à porta. Desvencilhei um bom pedaço de rédea e improvisei uma coleira que passei pelo pescoço de Rollo. Ele ficou mais do que satisfeito em sair, arremetendo-se para frente quando abri a porta, embora menos feliz em ser arrastado para a meiaágua da despensa, onde amarrei a correia apressadamente em uma estaca, antes de retornar à cabana para pegar o corpo de Vovó MacLeod.
Olhei à volta cuidadosamente antes de me aventurar a sair outra vez, as advertências de Jamie em mente, mas a noite estava tão quieta quanto uma igreja; até mesmo as árvores haviam silenciado.
A pobre mulher não podia pesar mais do que trinta e poucos quilos, pensei; suas clavículas projetavam-se através da pele e seus dedos eram frágeis como galhinhos secos. Ainda assim, trinta e dois, trinta e três quilos de peso literalmente morto eram um pouco mais do que eu conseguiria levantar. Fui obrigada a desenrolar o cobertor que a envolvia e usá-lo como um trenó improvisado, no qual a arrastei para fora, murmurando desculpas e preces misturadas à meia-voz.
Apesar do frio, eu arfava e estava molhada de suor quando finalmente consegui colocá-la na despensa.
- Bem, ao menos sua alma teve tempo suficiente para ir embora - murmurei, ajoelhando-me para verificar o corpo, antes de ajeitá-lo em sua falsa mortalha. - E também não creio que ela iria querer ficar pairando por aí, assombrando uma despensa, de qualquer forma.
Suas pálpebras não estavam inteiramente fechadas, uma fenda branca à mostra, como se ela tivesse tentado abri-los para uma última olhadela ao mundo - ou talvez em busca de um rosto familiar.
- Benedicite - murmurei, e delicadamente fechei os olhos, imaginando ao fazê-lo se algum dia um estranho iria fazer o mesmo por mim. As chances eram boas. A menos que...
Jamie manifestara sua intenção de retornar à Escócia, recuperar sua gráfica e depois voltar para lutar. Mas e se, disse uma voz covardemente dentro de mim, não voltássemos? E se fôssemos para Lallybroch e ficássemos lá?
Enquanto pensava nessa possibilidade - com as promissoras visões de ser envolvida na mortalha pela família, capaz de viver em paz, envelhecer lentamente sem o medo constante de contratempos, fome e violência - , sabia que não funcionaria.
Eu não sabia se Thomas Wolfe estava certo sobre não ser possível retornar para casa - bem, eu não ficaria sabendo, pensei, com certa amargura; eu não tinha uma casa para a qual voltar - mas eu conhecia Jamie. Idealismo à parte - e ele realmente tinha algum, embora de uma espécie muito pragmática - , o fato é que ele era um homem correto e, portanto, precisava ter um trabalho adequado. Não apenas um trabalho braçal; não apenas um trabalho para ganhar a vida. Um trabalho de verdade. Eu entendia a diferença.
E, apesar de ter certeza de que a família de Jamie o receberia com alegria - apesar de ter dúvidas sobre a natureza da recepção que eu mesma receberia, eu acreditava que não iriam chamar um padre e mandar me exorcizar - , o fato era que Jamie não era mais o senhor de Lallybroch, e jamais seria.
- "... e sua casa não o conhecerá mais" - murmurei, limpando as partes íntimas da mulher - surpreendentemente não ressequidas; talvez ela fosse mais nova do que eu imaginava - com um pano úmido. Há dias ela não comia nada; nem mesmo o relaxamento da morte tivera muito efeito, mas qualquer um merecia ir limpo para sua cova.
Parei, diante do pensamento. Teríamos condições de enterrá-la? Ou ela apenas iria descansar pacificamente embaixo da geleia de framboesa e das sacas de feijões secos até a primavera?
Ajeitei suas roupas, respirando com a boca aberta, tentando avaliar a temperatura pelo vapor do meu hálito. Esta seria apenas a segunda nevasca importante do inverno e ainda não havíamos tido uma temperatura realmente congelante; isso geralmente acontecia do meio para o fim de janeiro. Se o solo ainda não estivesse congelado, provavelmente conseguiríamos enterrá-la - desde que os homens estivessem dispostos a retirar a neve.
Rollo deitara-se, resignado, enquanto eu fazia meu trabalho, mas nesse momento ergueu a cabeça abruptamente, as orelhas em pé.
- O que foi? - perguntei, assustada, e virei-me sobre os joelhos para olhar para fora pela porta aberta da despensa. - O que está acontecendo?
- Devemos pegá-lo agora? - Ian murmurou. Tinha o arco posicionado no ombro; deixou o braço cair e o arco deslizou silenciosamente para sua mão.
- Não. Deixe-o encontrá-lo primeiro. - Jamie falou devagar, tentando decidir o que seria correto fazer com o sujeito, tão repentinamente reaparecido diante dele.
Não o matar. Era bem verdade que ele e sua mulher haviam causado uma série de transtornos com sua traição, mas não quiseram causar mal à sua família - não no começo, ao menos. Seria Arch Bug realmente um ladrão aos seus próprios olhos? Sem dúvida, a tia Jocasta de Jamie não tinha mais - ou menos - direito ao ouro do que ele próprio.
Suspirou e colocou a mão no cinto, onde estavam sua adaga e a pistola. Ainda assim, não podia permitir que Bug fosse embora com o ouro, nem poderia simplesmente levá-lo dali e deixá-lo livre para causar mais problemas. Quanto ao que fazer com ele, em nome de Deus, quando o capturasse... era como ter uma cobra em um saco. Mas nada havia a fazer agora senão capturá-la e mais tarde se preocupar com o que fazer com o saco. Talvez pudessem chegar a um acordo...
A figura alcançara a mancha negra dos alicerces e escalava desajeitadamente em meio às pedras e às toras carbonizadas dos destroços, a capa preta se agitando e inflando conforme o vento soprava.
A neve começou a cair, repentina e silenciosamente, com flocos grandes e vagarosos, que não pareciam exatamente cair do céu, mas simplesmente aparecer, girando do ar. Roçavam seu rosto e grudavam-se em suas pestanas; limpouos e fez sinal para Ian.
- Vá para trás - sussurrou. - Se ele correr, lance uma flecha pelo seu nariz para fazê-lo parar. E fiquem bem longe, hein?
- Você fique bem longe, tio - Ian retrucou. - Se chegar a uma distância decente para um tiro de pistola, ele racha seu crânio com o machado. E eu não vou explicar isso para tia Claire.
Jamie deu uma risadinha e empurrou Ian com o cotovelo para que ele fosse andando. Ele carregou e preparou sua pistola, depois saiu para a neve que caía, caminhando firmemente na direção das ruínas de sua casa.
Ele já vira Arch abater um peru com seu machado a seis metros de distância. E era verdade que a maioria das pistolas não era precisa a muito mais do que isso. Mas, afinal, ele não pretendia atirar no sujeito. Sacou a pistola, mantendo-a claramente na mão.
- Arch! - chamou. A figura estava de costas para ele, inclinada enquanto cavava nas cinzas. Diante de seu chamado, pareceu se retesar, ainda abaixada. - Arch Bug! - ele gritou. - Saia daí, homem. Quero falar com você!
Em resposta, a figura endireitou-se abruptamente, virou-se e um jato de fogo iluminou a neve que caía. No mesmo instante, a chama queimou sua coxa e ele cambaleou.
Tinha consciência principalmente da surpresa; nunca soube que Arch Bug usasse uma pistola e ficou impressionado que ele pudesse mirar tão bem com a mão esquerda.
Ele caíra na neve sobre um dos joelhos, mas enquanto erguia a própria arma para atirar percebeu duas coisas: a figura negra mirava uma segunda pistola para ele - mas não com a mão esquerda. O que significava...
- Santo Deus! Ian! - Mas Ian o vira cair e também vira a segunda pistola. Jamie não ouviu o voo da flecha, acima do murmúrio do vento e da neve; ela apareceu como por mágica, fincada nas costas da figura. A figura enrijeceu-se, depois desmoronou no chão. Quase antes de a figura atingir o solo, ele já estava correndo, mancando, a perna direita dobrando-se sob ele a cada passo. - Meu Deus, não, meu Deus, não - repetia, e parecia a voz de outra pessoa.
Uma outra voz atravessou a noite e a neve, gritando em desespero. Logo Rollo passava por ele a toda velocidade, apenas uma mancha - quem o deixara sair? - , e um rifle espocou do meio das árvores. Ian berrou, em algum lugar próximo, chamando o cachorro, mas Jamie não tinha tempo para olhar, arrastava-se aos trancos e barrancos pelas pedras enegrecidas, escorregando na fina camada de neve fresca, sua perna fria e quente ao mesmo tempo, mas não importava, oh, Deus, por favor, não...
Alcançou a figura negra e atirou-se de joelhos ao seu lado, agarrando-a. Soube imediatamente; soubera no mesmo instante em que percebera que a pistola estava empunhada pela mão direita. Arch, sem seus dedos, não poderia disparar uma pistola com a mão direita. Mas, oh, Deus, não...
Ele a virou, sentindo o corpo pequeno e pesado agora flácido e difícil de manejar como um cervo recém-abatido. Puxou para trás o capuz da capa e passou a mão, delicadamente, desamparadamente, sob o rosto redondo e liso de Murdina Bug. Ela respirou contra sua mão - talvez... mas ele também sentiu a haste da seta contra sua mão. A flecha atravessara seu pescoço e sua respiração gorgolejava de sangue; sua mão também estava molhada, e quente.
- Arch? - ela disse roucamente. - Quero Arch. - E morreu.
VIDA POR VIDA
Levei Jamie para a despensa. Estava escuro, e frio, particularmente para um homem sem calças, mas eu não queria correr o risco de nenhum dos Higgins acordar. Meu Deus, agora não. Todos eles haviam irrompido de seu santuário como uma revoada de codornas em pânico - e eu me encolhi à ideia de ter que lidar com eles antes do momento inevitável. Já seria bastante horrível ter que lhes contar o que acontecera à luz do dia; eu não poderia encarar a perspectiva agora.
Por falta de alternativa melhor, Jamie e Ian haviam colocado a sra. Bug na despensa, ao lado da Vovó MacLeod, enfiada embaixo da prateleira mais baixa, a capa puxada sobre seu rosto. Eu podia ver seus pés projetando-se para fora, com suas botas gastas e rachadas e meias listradas. Tive uma súbita visão da Bruxa Malvada do Oeste e tapei a boca com a mão antes que alguma coisa realmente histérica pudesse escapar.
Jamie virou a cabeça em minha direção, mas seu olhar estava voltado para dentro, o rosto pálido e cansado, as rugas profundas na claridade da vela que ele segurava.
- Hein? - ele disse vagamente.
- Nada - eu disse, a voz trêmula. - Absolutamente nada. Sen... sente-se. - Assentei o banco e meu estojo médico, peguei a vela e a vasilha de água quente da mão dele, e tentei não pensar em nada, salvo na tarefa à minha frente. Não em pés. Não, pelo amor de Deus, em Arch Bug.
Jamie tinha um cobertor em volta dos ombros, mas suas pernas estavam necessariamente nuas, e eu podia sentir seus pelos se arrepiando conforme minha mão roçava por eles. A barra de sua camisa estava encharcada de sangue semisseco; grudava em sua perna, mas ele não emitiu nenhum som quando eu a soltei e afastei suas pernas. Ele andara se movendo como um homem em um pesadelo, mas a aproximação de uma vela aos seus testículos o excitou.
- Tome cuidado com essa vela, Sassenach, sim? - ele disse, colocando a mão protetoramente sobre sua genitália.
Compreendendo sua preocupação, entreguei-lhe a vela para ele segurar e, com uma breve admoestação para ter cuidado com os pingos de cera quente, retornei à minha inspeção.
O ferimento exsudava sangue, mas não era grave. Mergulhei um pano na água quente na vasilha e comecei a trabalhar. Sua carne estava gelada e o frio abafava até mesmo os odores pungentes da despensa, mas eu ainda podia sentir seu cheiro, seu almíscar seco familiar, misturado a sangue e suor abundante.
Era um sulco de uns dez centímetros de comprimento, no alto de sua coxa. Mas bastante limpo.
- Um especial de John Wayne - eu disse, tentando um tom de voz descontraído, leve. Os olhos de Jamie, que estavam fixos na chama da vela, mudaram de foco e se concentraram em mim.
- O quê? - ele disse com voz rouca.
- Nada sério - eu disse. - A bala passou de raspão. Pode mancar um pouco por um ou dois dias, mas o herói sobrevive para lutar mais um dia. - A bala havia de fato passado entre suas pernas, sulcando a parte interna da coxa, perto dos dois testículos e da artéria femoral. Mais dois centímetros para a direita e ele estaria morto. Dois centímetros para cima...
- Você não está ajudando muito, Sassenach - ele disse, mas o esboço de um sorriso flutuou em seus olhos.
- Não - concordei. - Mas um pouco, não?
- Um pouco - ele disse, e tocou meu rosto de leve. Sua mão estava muito fria e trêmula; cera quente escorria pelos nós dos dedos da outra mão, mas ele não parecia sentir. Tirei a vela delicadamente de sua mão e coloquei-a na prateleira.
Eu podia sentir a tristeza e a autocensura emanando dele em ondas, e lutei para mantê-las a distância. Eu não poderia ajudá-lo se cedesse à enormidade da situação. Não tinha certeza se poderia ajudá-lo, de qualquer forma, mas iria tentar.
- Oh, meu Deus - ele exclamou, tão baixo que eu mal o ouvi. - Por que eu não o deixei levar o ouro? Que diferença fazia? - Bateu o punho cerrado no joelho, silenciosamente. - Meu Deus, por que eu simplesmente não o deixei levá-lo?
- Você não sabia quem era ou o que pretendia fazer - eu disse, no mesmo tom, colocando a mão em seu ombro. - Foi um acidente. - Seus músculos estavam contraídos, enrijecidos de angústia. Eu também sentia o mesmo, um nó de protesto e negação - Não, não pode ser verdade, não pode ter acontecido! - em minha garganta, mas havia trabalho a ser feito. Eu lidaria com o inevitável mais tarde.
Ele colocou a mão sobre o rosto, sacudindo a cabeça devagar de um lado para o outro. E não falou, nem se moveu, enquanto eu terminava a limpeza e o curativo do ferimento.
- Pode fazer alguma coisa por Ian? - ele disse, depois que terminei. Retirou a mão do rosto e ergueu os olhos para mim quando me levantei, o semblante abatido de exaustão e dor, mas novamente calmo. - Ele está... - Engoliu e olhou para a porta. - Ele está mal, Sassenach.
Olhei para o uísque que eu trouxera: um quarto de garrafa. Jamie seguiu a direção do meu olhar e sacudiu a cabeça.
- Não é suficiente. - Beba-o você, então. - Ele sacudiu a cabeça, mas coloquei a garrafa em sua mão e pressionei seus dedos à sua volta. - Ordens - eu disse, suavemente, mas com firmeza. - Choque. - Ele resistiu, fez menção de devolver a garrafa, e eu apertei minha mão sobre a sua. - Eu sei - acrescentei. - Jamie... eu sei. Mas você não pode se entregar. Não agora.
Ergueu os olhos para mim por um instante, mas depois balançou a cabeça, aceitando o que tinha que aceitar porque era necessário, os músculos do braço relaxando. Meus próprios dedos estavam rígidos, frios da água e do ar gélido, mas ainda mais quentes do que os dele. Envolvi sua mão livre com as minhas e apertei-a, com força.
- Há uma razão para o herói nunca morrer, sabe - eu disse, esboçando um sorriso, embora sentisse meu rosto enrijecido e falso. - Quando o pior acontece, alguém ainda tem que decidir o que fazer. Entre em casa agora e se aqueça. - Olhei para a noite lá fora, com seu céu de lavanda e agitada com a neve em torvelinho. - Eu... encontrarei Ian.
Para onde ele teria ido? Não muito longe, não neste tempo. Considerando seu estado de espírito quando ele e Jamie voltaram com o corpo da sra. Bug, ele devia, eu achava, simplesmente ter ido para a floresta, sem se importar para onde ou com o que pudesse lhe acontecer - mas ele tinha o cachorro com ele. Independentemente de como se sentisse, ele não levaria Rollo para dentro de uma violenta nevasca.
E uma forte nevasca era o que estava se formando. Subi devagar a colina na direção dos barracões externos da fazenda, protegendo a lanterna na dobra da minha capa. Ocorreu-me repentinamente se Arch Bug poderia ter se escondido na casinhola de refrigeração ou no barraco de defumação. E... oh, meu Deus? Ele saberia? Parei de repente no caminho por um instante, deixando a neve espessa que caía acumular-se como um véu sobre minha cabeça e ombros.
Eu estava tão chocada com o que acontecera que não me perguntei se Arch Bug saberia que sua mulher estava morta. Jamie disse que ele chamara, chamara Arch para que viesse, assim que compreendeu - mas não houve resposta. Talvez Arch tivesse suspeitado de uma armadilha; talvez tivesse simplesmente fugido, ao ver Jamie e Ian, presumindo que eles certamente não causariam nenhum mal a sua mulher.
- Oh, maldição - eu disse, num sussurro, alarmada. Mas não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Esperava que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer por Ian. Passei o braço pelo rosto, pestanejei para tirar a neve das minhas pestanas e continuei, devagar, a luz da lanterna engolida no vórtice da neve em redemoinho. Se eu me deparasse com Arch... Meus dedos se fecharam na alça da lanterna. Eu teria que lhe contar, levá-lo de volta à cabana, deixá-lo ver... Oh, meu Deus. Se eu voltasse com Arch, Jamie e Ian poderiam ocupá-lo tempo suficiente para eu remover a sra. Bug da despensa e deixá-la mais apresentável? Eu não tivera tempo de retirar a flecha de seu pescoço, nem de estender o corpo mais apropriadamente. Enfiei as unhas na palma da minha mão livre, tentando me controlar. - Cristo, não deixe que eu o encontre - falei baixinho. - Por favor, não permita que eu o encontre.
Mas a casinhola de refrigeração, o barraco de defumação e a tulha de milho estavam todos - graças a Deus - vazios, e ninguém poderia ter se escondido no galinheiro sem que as galinhas fizessem uma grande algazarra; estavam silenciosas, dormindo durante a tempestade de neve. Mas a visão do galinheiro trouxe a sra. Bug repentinamente à mente - ela espalhando milho de seu avental, chamando as tolas galinhas com seu cantarolar monótono. Ela colocara nome em todas elas. Eu não me importava nem um pouco se estávamos comendo Isobeall ou Alasdair no jantar, mas no momento o fato de que ninguém mais agora seria capaz de distingui-las ou de se alegrar com o fato de que Elspeth chocara dez pintinhos parecia-me indescritivelmente desolador.
Finalmente, encontrei Ian no estábulo, uma forma escura encolhida na palha junto às patas da mula Clarence, cujas orelhas levantaram-se com a minha chegada. Ela zurrou extasiada diante da perspectiva de mais companhia e as cabras baliram histericamente, achando que se tratava de um lobo. Os cavalos, surpresos, remexiam a cabeça de um lado para o outro, resfolegando e relinchando. Rollo, aninhado no feno ao lado de seu dono, deu um latido agudo e breve de contrariedade diante da algazarra.
- Isso aqui está parecendo uma maldita Arca de Noé - observei, retirando a neve da minha capa e pendurando a lanterna em um gancho. - Tudo que precisamos é de um casal de elefantes. Pare, Clarence!
Ian voltou o rosto para mim, mas pude ver por seu semblante inexpressivo que ele não prestara atenção ao que eu disse.
Agachei-me ao seu lado e coloquei a mão em seu rosto; estava frio, áspero com a barba por fazer.
- Não foi culpa sua - eu disse brandamente.
- Eu sei - ele disse, engolindo em seco. - Mas não vejo como vou poder continuar vivendo. - Ele não estava sendo dramático; sua voz estava simplesmente perplexa e confusa. Rollo lambeu sua mão e seus dedos mergulharam nos pelos do pescoço do cachorro, como se buscasse apoio. - O que posso fazer, tia? - Olhou para mim, desamparado. - Não há nada, não é? Não posso voltar atrás, desfazer o que fiz. No entanto, continuo procurando uma forma de fazer isso. Algo que eu possa fazer para consertar as coisas. Mas... não há nada.
Sentei-me no feno a seu lado e passei o braço pelos seus ombros, pressionando sua cabeça contra mim. Ele cedeu, com relutância, embora eu sentisse pequenos e constantes estremecimentos de exaustão e dor percorrerem seu corpo como um calafrio. - Eu a amava - ele disse, tão baixo que eu mal podia ouvi-lo. - Era como se fosse minha avó. E eu...
- Ela o amava - sussurrei. - Ela não o culparia. - Eu continha minhas próprias emoções com firmeza, para poder fazer o que tinha que ser feito. Mas agora... Ian tinha razão. Não havia nada e, por absoluto desamparo, as lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto. Eu não estava chorando. Apenas, a dor da perda e o choque transbordavam; eu não conseguia contê-los.
Quer ele tenha sentido as lágrimas em sua pele ou apenas as vibrações da minha dor, eu não saberia dizer, mas repentinamente Ian também sucumbiu e chorou nos meus braços, convulsivamente.
Desejei de todo o coração que ele fosse um menino e que o pranto pudesse lavar sua culpa e deixá-lo limpo, em paz. Mas ele já estava muito além de coisas simples assim; tudo que eu podia fazer era abraçá-lo, afagar suas costas, com murmúrios apaziguadores. Em seguida, Clarence ofereceu seu próprio consolo, respirando pesadamente na cabeça de Ian e mordiscando delicadamente uma mecha de seu cabelo. Ian afastou-se com um safanão, dando um tapa no focinho da mula.
- Ei, fora daí! Engasgou-se, riu de uma forma abalada, chorou um pouco mais e, em seguida, endireitou-se e limpou o nariz na manga. Permaneceu imóvel por algum tempo, reunindo os pedaços de si mesmo, e eu não interferi.
- Quando matei aquele homem em Edimburgo - disse finalmente, a voz espessa, mas controlada - , tio Jamie levou-me ao confessionário e me ensinou a prece que se diz quando se mata alguém. Para encomendar sua alma a Deus. Pode dizê-la comigo, tia?
Eu não pensava - muito menos rezara - na prece das almas há muitos anos e, desajeitadamente, tropecei pelas palavras. No entanto, Ian recitou-a sem hesitação, e eu me perguntei quantas vezes ele a havia usado através dos anos.
As palavras da oração pareciam insignificantes e inúteis, engolidas pelos ruídos do farfalhar do feno e da mastigação dos animais, mas senti uma pequena centelha de consolo. Talvez seja apenas que recorrer a algo maior do que nós mesmos dê a sensação de que realmente há algo maior - e realmente tem que haver, porque obviamente você não é suficiente para a situação. Eu sem dúvida não era.
Ian permaneceu sentado por algum tempo, imóvel, os olhos cerrados. Finalmente, abriu-os e olhou para mim, o olhar escuro de compreensão, o rosto muito pálido sob os pelos curtos da barba.
- E depois, ele disse, você vive com isso - ele disse suavemente. Passou a mão pelo rosto. - Mas acho que não conseguirei. - Era a simples afirmação de um fato, e isso me assustou profundamente. Minhas lágrimas haviam secado, mas parecia que eu olhava para dentro de um buraco negro, infinito - e não conseguia desviar os olhos.
Respirei fundo, tentando encontrar algo a dizer, em seguida retirei um lenço do bolso e entreguei-o a ele.
- Você está respirando, Ian? Sua boca torceu-se um pouco. - Sim, acho que sim. - É tudo que precisa fazer por enquanto. - Levantei-me, limpei o feno das minhas saias e estendi a mão para ele. - Venha. Precisamos voltar à cabana antes de ficarmos presos aqui com a neve.
A neve estava mais intensa agora e uma rajada de vento apagou a vela em minha lanterna. Não importava; eu poderia achar a cabana de olhos vendados. Ian seguiu à minha frente sem comentários, abrindo um caminho pela neve recém-acumulada.
Esperava que a prece o tivesse ajudado, ao menos um pouco, e imaginei se os mohawks tinham algum meio melhor de lidar com a morte injusta do que a Igreja Católica.
Então, percebi que eu sabia exatamente o que os mohawks fariam neste caso. Ian também; ele o fizera. Apertei mais a capa ao meu redor, sentindo como se eu tivesse engolido uma grande bola de gelo.
AINDA NÃO, POR ENQUANTO
Após muita discussão, os dois corpos foram carregados delicadamente para fora e estendidos na beirada do alpendre. Simplesmente não havia espaço suficiente para deixá-los dentro de casa, e dadas as circunstâncias...
- Não podemos deixar o velho Arch continuar em dúvida - Jamie dissera, colocando um fim na discussão. - Se o corpo estiver em plena vista, talvez ele saia do esconderijo e talvez não, mas saberá que sua mulher está morta.
- É verdade - Bobby Higgins disse, com um olhar inquieto na direção das árvores. - E o que acha que ele fará, então?
Jamie ficou parado por um instante, olhando para a floresta, depois sacudiu a cabeça.
- Chorar - ele disse num sussurro. - E pela manhã veremos o que fazer. Não era um tipo normal de velório, mas foi conduzido com todo o ritual que conseguimos observar. Arny doou sua própria mortalha - feita depois de seu primeiro casamento e cuidadosamente guardada - para a sra. Bug, e Vovó MacLeod foi envolvida no que restou de minha camisa sobressalente e mais dois aventais, rapidamente costurados para dar maior respeitabilidade à mortalha improvisada. Foram estendidas cada qual de um lado do alpendre, pés contra pés, com um pequeno pires de sal e uma fatia de pão no peito de cada Corpo, apesar de não haver nenhum comedor de pecados disponível. Eu havia enchido um pequeno fogareiro de barro de carvão e o colocara perto dos corpos; também fora acordado que iríamos nos revezar durante a noite para velar as falecidas, já que o alpendre não comportava mais do que duas ou três pessoas.
- "A lua no peito da neve recém-caída/Dava o brilho do meio-dia aos objetos embaixo. - recitei baixinho. Era verdade; a tempestade de neve cessara e a lua quase cheia lançava uma luz pura e fria que fazia cada árvore coberta de neve destacar-se da paisagem, nítida e delicada como uma pintura japonesa. E nas ruínas distantes da casa grande o jogo de varetas de toras queimadas ocultava tudo que estivesse embaixo.
Jamie e eu fazíamos o primeiro turno da vigília. Ninguém argumentou quando Jamie anunciou que assim seria. Ninguém dizia nada, mas a imagem de Arch Bug, espreitando sozinho na floresta, estava na mente de todos.
- Você acha que ele está lá? - perguntei a Jamie, em voz baixa. Fiz sinal com a cabeça indicando as árvores escuras, tranquilas em suas próprias mortalhas suaves.
- Se fosse você deitada aqui, a nighean - Jamie disse, abaixando os olhos para as figuras brancas e imóveis na beira do alpendre - , eu estaria ao seu lado, morto ou vivo. Venha sentar-se.
Sentei-me ao seu lado, o fogareiro perto dos nossos joelhos envoltos na capa.
- Pobres coitadas - eu disse, após alguns instantes. - Estão muito longe da Escócia.
- Estão, sim - ele disse, e tomou minha mão. Seus dedos não estavam mais aquecidos do que os meus, mas o tamanho e a força deles eram um conforto, mesmo assim. - Mas serão enterradas entre pessoas que as conheciam, se não entre seus próprios parentes.
- É verdade. - Se os netos da Vovó MacLeod voltassem um dia, encontrariam um marco assinalando sua sepultura e saberiam que ela havia sido tratada com bondade. A sra. Bug não tinha nenhum parente, salvo Arch - ninguém para voltar e procurar a sepultura. Mas estaria entre pessoas que a conheceram e amaram. Mas, e quanto a Arch? Se tinha parentes na Escócia, nunca os mencionara. Sua mulher fora tudo para ele, assim como ele para ela.
- Você, hum, não acha que Arch possa... acabar com a própria vida? - perguntei delicadamente. - Quando souber?
Jamie sacudiu a cabeça, decisivamente.
- Não é do feitio dele.
De certo modo, fiquei feliz em ouvir isso. Por outro lado, de um modo menos misericordioso, não pude deixar de me perguntar nervosamente o que um homem com as paixões de Arch poderia fazer, abalado por este golpe mortal, agora privado da mulher que fora sua âncora e porto seguro durante a maior parte de sua vida.
O que um homem desses faria?, eu me perguntava. Navegar a favor do vento até atingir um recife e afundar? Ou amarrar sua vida à âncora improvisada da fúria e tomar a vingança como sua bússola? Eu vira a culpa que Jamie e Ian estavam carregando; quanto mais Arch estava suportando? Um homem poderia aguentar tal culpa? Ou tem que colocá-la para fora, como uma simples questão de sobrevivência?
Jamie nada dissera sobre suas próprias especulações, mas eu notara que ele carregava tanto a pistola quanto a adaga na cintura - e a pistola estava carregada e preparada; eu podia sentir o leve cheiro de pólvora sob o sopro resinoso dos abetos. Claro, podia ser para afugentar um lobo solitário ou raposas...
Permanecemos sentados em silêncio por algum tempo, observando a claridade inconstante das brasas no fogareiro e o bruxulear da luz nas dobras das mortalhas.
- Acha que devemos rezar? - sussurrei.
- Não parei de rezar desde que aconteceu, Sassenach.
- Compreendo o que quer dizer. - Realmente, compreendia. A prece apaixonada para que não fosse verdade e, depois, a prece desesperada em busca de orientação; a necessidade de fazer alguma coisa, quando na verdade nada podia ser feito. E depois, é claro, a prece pelo descanso do falecido. Ao menos, Vovó MacLeod esperara a morte - e lhe dera as boas-vindas, pensei. A sra. Bug, ao contrário, deve ter ficado terrivelmente surpresa em se ver tão repentinamente morta. Tive a desconcertante visão da sra. Bug de pé na neve logo fora do alpendre, olhando espantada para seu corpo, as mãos nos quadris robustos, os lábios franzidos de contrariedade por ter sido tão grosseiramente desencarnada.
- Foi realmente um choque - eu disse para sua sombra, como se me desculpasse.
- Sim, é verdade. Jamie enfiou a mão dentro de sua capa e retirou seu frasco de bebida. Destampando-o, inclinou-se para frente e cuidadosamente despejou algumas gotas de uísque na cabeça de cada uma das mulheres mortas, em seguida ergueu o frasco em um brinde silencioso à Vovó MacLeod, depois à sra. Bug.
- Murdina, mulher de Archibald, você era uma grande cozinheira - ele disse simplesmente. - Jamais esquecerei seus pãezinhos, em toda a minha vida, e pensarei em você quando estiver comendo meu mingau da manhã.
- Amém - eu disse, a voz trêmula entre o riso e as lágrimas. Aceitei o frasco e tomei um gole; o uísque queimou em minha garganta apertada e eu tossi.
- Sei a receita dela para piccalilli. Ela não pode se perder; vou anotá-la. A ideia de escrever me fez lembrar repentinamente da carta inacabada, ainda dobrada em minha sacola de costura. Jamie sentiu a leve rigidez de minha postura e virou a cabeça para mim, com um ar interrogativo.
- Só estava pensando naquela carta - eu disse, limpando a garganta. - Quero dizer, apesar de Roger e Bri saberem que a casa foi destruída por um incêndio, ficarão felizes em saber que ainda estamos vivos, sempre supondo que um dia receberão a carta.
Cientes tanto dos tempos precários que vivíamos quanto da sobrevivência incerta de documentos históricos, Jamie e Roger haviam elaborado vários planos para a passagem de informação, desde a publicação de mensagens codificadas em diversos jornais a algo mais sofisticado, envolvendo a Igreja da Escócia e o Banco da Inglaterra. Tudo isso, é claro, pautado no fato básico de que a família Mackenzie havia feito a passagem pelas pedras com sucesso e chegado mais ou menos na época certa - mas eu era obrigada, para minha própria paz de espírito, a presumir que sim.
- Mas não quero terminá-la tendo que lhes contar... isso. - Balancei a cabeça, indicando as figuras envoltas em mortalha. - Eles amavam a sra. Bug... e Brianna ficaria muito angustiada por Ian.
- Sim, tem razão - Jamie disse pensativamente. - E as chances são que Roger Mac iria refletir e tirar conclusões a respeito de Arch. Sabendo, e não tendo condições de fazer nada a respeito... sim, ficariam preocupados, até encontrarem outra carta contando como tudo se resolveu. E só Deus sabe quanto tempo levará até que tudo se resolva.
- E se não receberem a próxima carta... - Ou se não vivermos o suficiente para escrevê-la, pensei.
- Sim, é melhor não lhes contar. Ainda não, por enquanto. Aproximei-me ainda mais, recostando-me nele, e ele passou o braço ao meu redor. Continuamos sentados, imóveis e calados, por algum tempo, ainda perturbados e tristes, mas reconfortados pelo pensamento em Roger, Bri e as crianças.
Ouvi sons na cabana atrás de mim; todos haviam permanecido quietos até então, chocados, mas a normalidade estava se restabelecendo rapidamente. Não era possível manter as crianças sossegadas por muito tempo e eu podia ouvir perguntas em tom agudo, pedidos exigentes de comida, a tagarelice dos pequenos, agitados com o fato de estarem acordados tão tarde da noite, as vozes filtrando-se pela barulheira de panelas e utensílios na preparação de alimento. Haveria pães e tortas durante toda a próxima etapa da vigília; a sra. Bug ficaria contente. Uma chuva repentina de fagulhas voou pela chaminé e caiu por todo o alpendre como estrelas cadentes, brilhantes contra a noite escura e a neve fresca e branca. O braço de Jamie apertou-se ao meu redor e ele fez um pequeno ruído de prazer diante da cena.
- Isso... que você disse sobre o peito da neve recém-caída... - ele disse, em seu suave sotaque das Highlands - é um poema, não é?
- É, sim. Não muito apropriado para um velório; é um poema divertido de Natal, chamado "A Visita de Papai Noel".
Jamie deu uma pequena risada, o hálito branco. - Não creio que a palavra "apropriado" tenha muito a ver com um velório adequado, Sassenach. Dê bastante bebida aos enlutados e logo estarão cantando "O thoir ana!! am Botul" e as crianças estarão brincando de ciranda-cirandinha no pátio, ao luar.
Eu não ri, propriamente, mas podia visualizar a cena com muita facilidade. De fato, havia bastante bebida; havia um novo tonel de cerveja na despensa e Bobby havia trazido o pequeno barril de uísque para as emergências, de seu esconderijo no celeiro. Ergui a mão de Jamie e beijei os nós dos dedos frios. O choque e a sensação de desarranjo da ordem começavam a se dissipar com a crescente percepção da pulsação de vida atrás de nós. A cabana era uma pequena e vibrante ilha de vida, flutuando na superfície branca e preta da noite.
- Nenhum homem é uma ilha, completamente isolado - Jamie disse suavemente, captando meu pensamento não enunciado.
- Agora, esse é bem apropriado - eu disse, um pouco secamente. - Talvez apropriado demais.
- Como assim? - E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti. Nunca ouço Nenhum homem é uma ilha sem que venha imediatamente seguido do último verso.
- Mmhumm. Sabe o poema inteiro, hein? - Sem esperar pela minha resposta, inclinou-se para frente e revolveu as brasas com uma vareta, levantando um pequeno deslocamento de faíscas silenciosas. - Não é bem um poema, sabe... ou o sujeito não pretendia que fosse.
- Não? - eu disse, surpresa. - O que é, então? Ou foi? - Uma meditação, algo entre um sermão e uma prece. John Donne o escreveu como parte de seu "Devoções para ocasiões emergentes". É bem adequado, não? - acrescentou, com um toque de ironia.
- Não ficam muito mais emergentes do que isso, não. O que estou perdendo, então?
- Humm. - Puxou-me para mais perto de si e inclinou a cabeça para se apoiar na minha. - Deixe-me tentar lembrar o que eu puder. Não vou me lembrar de tudo, mas algumas partes me impressionaram, portanto eu me lembro delas. - Eu podia ouvir sua respiração, lenta e tranquila, concentrando-se.
- Todo o gênero humano tem um único autor - disse devagar - e constitui um único volume. Quando um homem morre, um capítulo não é arrancado do livro, mas traduzido para uma língua melhor; e todo capítulo deve ser assim traduzido. Depois há trechos que não sei de cor, mas gostava deste: O sino realmente toca para aquele que acredita que ele ofaz - e sua mão apertou a minha delicadamente - e embora ele pare novamente, a partir do minuto que aquela ocasião o impressionou, ele está unido com Deus.
- Humm. - Pensei nisso por alguns instantes. - Tem razão; é menos poético, porém dá um pouco mais... de esperança?
Eu o senti sorrir.
- Sim, sempre achei isso.
- Onde você conseguiu ler isso?
- John Grey me deu um livrinho das reflexões de Donne quando eu era prisioneiro em Helwater. Estava ali.
- Um cavalheiro muito letrado - eu disse, um pouco irritada com esse lembrete da parte substancial da vida de Jamie que John Grey compartilhara, e eu não, mas ao mesmo tempo contente por ele ter tido um amigo durante essa época difícil. Com que frequência, perguntei-me repentinamente, Jamie ouvira esse sino tocando?
Sentei-me direito, peguei o frasco e tomei um gole revigorante. O cheiro de pão assando, de cebolas e carne refogada, vazava pela porta e meu estômago roncou de um modo inconveniente. Jamie não notou; estreitava os olhos, pensativamente, na direção oeste, onde o vulto da montanha jazia, oculto por nuvens.
- Os rapazes MacLeod disseram que as trilhas já estavam até os quadris de neve quando eles vieram - ele disse. - Se há uns trinta centímetros de neve fresca aqui, há três vezes mais lá no alto. Nós não vamos a lugar algum até o degelo da primavera, Sassenach. Tempo suficiente para esculpir boas lápides, ao menos - acrescentou, com um rápido olhar para nossas hóspedes silenciosas.
- Então, você ainda pretende ir para a Escócia? - Fora o que ele dissera depois do incêndio da casa grande, porém não tocara mais no assunto desde então. Eu não sabia ao certo se ele falara a sério ou estava apenas reagindo à pressão dos acontecimentos na ocasião.
- Sim, pretendo. Não podemos permanecer aqui, eu acho - ele disse, com certo pesar. - Quando chegar a primavera, o interior da colônia estará fervilhando outra vez. Já chegamos perto demais do fogo. - Ergueu o queixo na direção das ruínas carbonizadas da casa grande. - Não pretendo ser assado da próxima vez.
- Bem... sim. - Ele tinha razão, eu sabia. Podíamos construir outra casa, mas era improvável que nos permitissem viver pacificamente nela. Entre outras coisas, Jamie era - ou ao menos fora - um coronel de milícia. Salvo por incapacidade física ou simplesmente ausência, não podia abdicar desta responsabilidade. E as opiniões nas montanhas não eram de modo algum unanimemente a favor da rebelião. Eu conhecia várias pessoas que haviam sido surradas, queimadas, obrigadas a se refugiar nas florestas ou nos pântanos, ou simplesmente assassinadas em consequência direta de suas preferências políticas expressas de maneira incauta.
As condições do tempo nos impediam de partir, mas também estancavam o movimento das milícias - ou bandos itinerantes de bandidos. Esse pensamento lançou um calafrio pelo meu corpo, e estremeci.
- Quer entrar, a nighean? - Jamie perguntou, percebendo. - Posso vigiar sozinho por algum tempo.
- Certo. E sairemos com os pãezinhos e o mel, e o encontraremos estendido ao lado das velhas senhoras com um machado na cabeça. Estou muito bem aqui, obrigada. - Tomei novo gole do uísque e passei-lhe o frasco.
- Mas não teríamos necessariamente que ir para a Escócia - eu disse, observando-o beber. - Poderíamos ir para New Bern. Você poderia se unir a Fergus na gráfica lá. - Isso fora o que ele dissera que pretendia fazer: ir para a Escócia, recuperar a gráfica que deixara em Edimburgo, depois voltar para se engajar na luta, armado com chumbo na forma de lingotes de tipos, em vez de balas de mosquete. Eu não sabia ao certo qual método era mais perigoso.
- Você não acha que a sua presença impediria Arch de tentar rachar meu crânio, se é isso que quis dizer, não é? - Jamie sorriu ligeiramente, os olhos puxados estreitando-se em dois triângulos. - Não... Fergus tem o direito de se colocar em perigo, e é isso o que ele quer. Mas não tenho o direito de arrastar ele e sua família para os meus próprios perigos.
- O que me diz tudo que preciso saber sobre o tipo de material que você pretende imprimir. E minha presença pode não impedir Arch de atacá-lo, mas eu poderia ao menos gritar "Cuidado!" se o visse aproximando-se sorrateiramente pelas suas costas.
- Eu sempre vou querer você às minhas costas, Sassenach - assegurou-me com ar grave. - Então, já sabe o que pretendo fazer?
- Sim - respondi, com um suspiro. - De vez em quando, tenho a vã esperança de estar errada a seu respeito, mas nunca estou.
Isso o fez rir abertamente. - Não, não está - ele concordou. - Mas continua aqui, hein? - Ergueu o frasco em uma saudação a mim e tomou um gole. - É bom saber que alguém vai sentir minha falta quando eu cair.
- Não deixei de notar esse "quando", em vez de "se"- eu disse friamente.-
Sempre foi "quando", Sassenach - ele disse brandamente. "Todo capítulo deve ser assim traduzido. Certo?
Respirei fundo e observei meu hálito fluir em uma nuvem de vapor.
- Eu sinceramente espero não ter que fazê-lo - eu disse - , mas se a situação surgir você gostaria de ser enterrado aqui? Ou levado de volta para a Escócia?
- Eu estava pensando em um marco de granito no cemitério de St. Kilda, com seu nome gravado, e o meu também. A maldita pedra quase me fez ter um infarto quando a vi e eu não tinha certeza se havia perdoado Frank por isso, muito embora tivesse surtido o efeito que ele desejara.
Jamie fez um pequeno ruído, resfolegando, não propriamente uma risada.
- Vou ter sorte se conseguir ser enterrado, Sassenach. É bem mais provável que eu morra afogado, queimado ou seja deixado para apodrecer em algum campo de batalha. Não se preocupe. Se tiver que se livrar da minha carcaça, deixe-a para os abutres.
- Vou registrar isso - eu disse.
- Você se importa de ir para a Escócia? - ele perguntou, as sobrancelhas erguidas.
Suspirei. Apesar de saber que ele não estaria enterrado embaixo daquela lápide em particular, não conseguia me livrar da ideia de que em algum momento ele iria morrer lá.
- Não. Vou me importar de deixar as montanhas. Vou me importar de vêlo ficar verde e vomitar as entranhas em um navio, e posso me importar com o que acontecer a caminho desse navio, mas... Edimburgo e gráficas à parte, você quer ir para Lallybroch, não é?
Ele balançou a cabeça, os olhos fixos nas brasas. A luz do fogareiro era fraca, mas realçava o arco ruivo de suas sobrancelhas e traçava uma linha dourada pelo cavalete reto e comprido de seu nariz.
- Eu prometi, hein? - ele disse simplesmente. - Eu disse que levaria o Jovem Ian de volta para sua mãe. E depois disto... é melhor que ele vá.
Balancei a cabeça silenciosamente. Três mil milhas de oceano poderiam não ser suficientes para Ian fugir de suas lembranças - mas mal não fariam. E talvez a alegria de ver seus pais, seus irmãos e irmãs, as Highlands... talvez ajudasse a curá-lo.
Jamie tossiu e passou o nó de um dedo sobre os lábios.
- E há uma outra coisa - ele disse, um pouco timidamente. - Outra promessa, se poderia dizer.
- Qual? Virou a cabeça e olhou-me diretamente nos olhos, os seus próprios escuros e sérios.
- Eu jurei a mim mesmo - ele disse - que jamais encararei meu filho por cima do cano de uma arma.
Respirei fundo e balancei a cabeça. Após um instante de silêncio, ergui os olhos da minha contemplação das mulheres cobertas com suas mortalhas.
- Você não perguntou o que eu gostaria que fosse feito com o meu corpo. - Eu falara, ao menos em parte, de brincadeira, para fazê-lo espairecer, mas seus dedos fecharam-se tão abruptamente sobre os meus que eu me assustei.
- Não - ele disse, baixinho. - E nunca o farei. - Não olhava para mim, mas para a extensão branca à nossa frente. - Não posso pensar em você morta, Claire. Qualquer outra coisa, menos isso. Não posso.
Ele se levantou repentinamente. Um estrépito de madeira, um barulho metálico de uma vasilha de estanho e vozes erguidas em chamados insistentes vindos de dentro da cabana salvaram-me de responder. Simplesmente balancei a cabeça e deixei que ele me ajudasse a levantar, quando a porta se abriu, derramando luz no alpendre.
O dia nasceu claro e brilhante, com uns trinta centímetros de neve fresca no solo. Por volta de meio-dia, os pingentes de gelo que se dependuravam dos beirais da cabana começaram a se soltar, caindo aleatoriamente como adagas, com ruídos surdos e intermitentes. Jamie e Ian haviam subido a colina até o pequeno cemitério, com pás, para ver se o terreno poderia ser escavado fundo o suficiente para duas sepulturas decentes.
- Leve Aidan e um ou dois dos outros meninos com vocês - eu dissera no café da manhã. - Eles precisam sair um pouco de casa. - Jamie lançou-me um olhar incisivo, mas assentiu. Ele sabia muito bem o que eu estava pensando. Se Arch Bug ainda não soubesse que sua mulher estava morta, sem dúvida começaria a tirar conclusões se visse que uma sepultura estava sendo preparada.
- Será melhor se ele vier falar comigo - Jamie me dissera em voz baixa, protegido pelo barulho feito pelos meninos aprontando-se para ir, as mães preparando um lanche para ser levado, e as crianças menores brincando de roda no quarto.
- Sim - eu disse - , e os meninos não vão impedi-lo de fazer isso. - Mas se ele resolver não aparecer e falar com você... - Ian havia me dito que ouvira o disparo de um rifle durante o confronto na noite anterior; no entanto, Arch Bug não era um exímio atirador e provavelmente hesitaria em disparar contra um grupo que incluía crianças.
Jamie balançara a cabeça, silencioso, e mandara Aidan chamar seus dois primos mais velhos.
Bobby com Clarence, a mula, também subira com o grupo para preparar as sepulturas. Havia um estoque de tábuas de pinho recém-serradas no local, mais acima na encosta da montanha, onde Jamie dissera que nossa casa nova um dia seria erguida; se as sepulturas pudessem ser cavadas, Bobby traria algumas tábuas para fazer os caixões.
Da minha perspectiva no alpendre da frente, eu podia ver Clarence agora, pesadamente carregada, mas descendo a colina com afetação e uma graça de bailarina, as orelhas apontadas delicadamente uma para cada lado, como para ajudá-la em seu equilíbrio. Avistei Bobby andando do outro lado da mula, segurando a carga de vez em quando para evitar que escorregasse; ele me viu e acenou, sorrindo. A letra M marcada em seu rosto era visível mesmo àquela distância, lívida contra a vermelhidão do frio em sua pele.
Devolvi o aceno e entrei em casa, para dizer às mulheres que iríamos de fato ter um funeral.
Subimos a trilha sinuosa até o pequeno cemitério na manhã seguinte. As duas senhoras, companheiras improváveis na morte, jaziam lado a lado em seus caixões em um trenó, puxado por Clarence e uma das mulas das mulheres McCallum, uma fêmea pequena e preta, chamada Pudim.
Não estávamos bem-vestidos; ninguém tinha roupas boas, com exceção de Amy McCallum Higgins, que usara seu lenço de casamento, orlado de renda, em sinal de respeito. Mas estávamos limpos e arrumados, e os adultos, ao menos, exibiam um aspecto sóbrio e atento. Muito atento.
- Quem será a nova guardiã, mamãe? - Aidan perguntou a sua mãe, fitando os dois caixões, conforme o trenó rangia lentamente colina acima, à nossa frente. - Quem morreu primeiro?
- Ora.... não sei, Aidan - Amy respondeu, parecendo ligeiramente desconcertada. Franziu a testa para os caixões, depois olhou para mim. - Você sabe, sra. Fraser?
A pergunta me atingiu como uma pedrinha que tivessem atirado em mim; pisquei várias vezes. Eu sabia, é claro, mas... com algum esforço, abstive-me de olhar para o meio das árvores que ladeavam a trilha. Eu não fazia a menor ideia de onde Arch Bug estaria, mas estava por perto; eu não tinha a menor dúvida sobre isso. E se estivesse perto o suficiente para ouvir esta conversa...
A superstição das Highlands dizia que a última pessoa a ser enterrada em um cemitério tornava-se a guardiã e devia defender de qualquer mal as almas que ali descansavam, até que outra pessoa morresse e assumisse o lugar de guardiã - quando então o guardião anterior era liberado e podia ir para o céu. Eu não achava que Arch ficaria satisfeito com a ideia de sua mulher ficar presa na Terra para guardar as sepulturas de presbiterianos e pecadores como Malva Christie.
Senti um frio no coração ao pensar em Malva - que era, agora que pensava nisso, provavelmente a atual guardiã do cemitério.
- Provavelmente - porque, apesar de outras pessoas terem morrido em Ridge desde sua morte, ela fora a última a ser enterrada no cemitério propriamente. Seu irmão, Allan, foi enterrado ali perto, um pouco para dentro da floresta, em uma sepultura secreta, sem marco; eu não sabia se era suficientemente próximo para contar. E seu pai...
Tossi em minha mão fechada e, limpando a garganta, disse:
- Oh, a sra. MacLeod. Ela estava morta quando voltamos para a cabana com a sra. Bug. - O que era estritamente verdadeiro; pareceu-me melhor suprimir o fato de ela já estar morta quando deixei a cabana.
Eu olhava para Amy enquanto falava com ela. Virei a cabeça de novo para a trilha, e lá estava ele, bem à minha frente. Arch Bug, em sua capa preta desbotada, a cabeça branca descoberta e abaixada, seguindo o trenó pela neve, lento como um corvo preso à Terra. Um leve estremecimento percorreu o séquito.
Então, ele virou a cabeça e me viu.
- Vai cantar, sra. Fraser? - ele perguntou, a voz tranquila e cortês. - Gostaria que ela fosse levada ao seu lugar de descanso com todas as cerimônias adequadas.
- Eu... sim, é claro. - Extremamente ruborizada, tateei em busca de alguma coisa adequada. Eu simplesmente não estava à altura do desafio de compor um caithris apropriado, um lamento para os mortos, quanto mais oferecer a lamentação formal que um funeral das Highlands realmente de primeira classe teria. Decidi-me apressadamente por um salmo em gaélico que Roger me ensinara, "Is e Dia Pin a's &tacha& dhomb". Era um cântico em versos, cada um devendo ser cantado por um dirigente de coro, em seguida repetido, verso a verso, pela congregação. Mas era simples e, apesar de minha voz parecer fina e débil na encosta da montanha, as pessoas à minha volta podiam compreender e, quando chegamos ao local do enterro, havíamos conseguido um nível respeitável de fervor e volume.
O trenó parou na borda da clareira rodeada de pinheiros. Algumas cruzes de madeira e montículos de pedras eram visíveis através da neve parcialmente derretida, bem como as duas covas recém-abertas no centro, lamacentas e brutais. A visão das sepulturas estancou a cantoria repentinamente, como um balde de água fria.
O sol brilhava com uma luz pálida através das árvores e havia um bando de trepadeiras-azuis chilreando nos galhos na borda da clareira, inconvenientemente alegres. Jamie conduzira as mulas e não olhara para trás à aparição de Arch. Agora, no entanto, ele virou-se para Arch e, com um pequeno gesto para o caixão mais próximo, perguntou em voz baixa:
- Quer olhar para sua esposa mais uma vez? Foi somente quando Arch assentiu e moveu-se para o lado do trenó que eu percebi que, enquanto os homens haviam pregado a tampa do caixão da sra. MacLeod, haviam deixado a da sra. Bug solta. Bobby e Ian a levantaram, os olhos no chão.
Arch soltara os cabelos em sinal de pesar; eu nunca os vira soltos antes. Eram ralos, completamente brancos, e ondularam ao redor de seu rosto como filetes de fumaça quando ele se inclinou e delicadamente levantou a mortalha do rosto de Murdina.
Engoli em seco, cerrando os punhos. Eu havia removido a flecha - uma tarefa nada agradável - e depois enrolara sua garganta cuidadosamente com uma atadura limpa antes de pentear seus cabelos. Ela parecia bem, embora terrivelmente diferente; acho que nunca a vira sem sua touca e a atadura ao redor de seu pescoço dava-lhe um ar severo e formal de um ministro presbiteriano. Vi Arch encolher-se, quase imperceptivelmente, e sua própria garganta se mover. Recobrou o controle de sua expressão quase imediatamente, mas eu vi os sulcos que corriam do nariz ao queixo como valas em barro molhado, e o modo como abria e fechava as mãos, sem parar, buscando segurar alguma coisa que não estava ali.
Fitou dentro do caixão por um longo tempo, em seguida enfiou a mão em seu sporran e retirou dali alguma coisa. Vi, quando ele afastou a capa para trás, que seu cinto estava vazio; ele viera sem armas.
O objeto em sua mão era pequeno e brilhante. Inclinou-se para baixo e tentou prendê-lo na mortalha, mas não conseguiu, com a falta de seus dedos. Tateou desajeitadamente, sussurrou alguma coisa em gaélico, depois ergueu os olhos para mim, quase com pânico nos olhos. Aproximei-me imediatamente dele e peguei o objeto de sua mão.
Era um broche, pequeno e maravilhosamente moldado na forma de uma andorinha em pleno voo. Feito de ouro e parecendo muito novo. Afastando a mortalha para trás, prendi o broche no lenço da sra. Bug. Eu nunca vira o broche antes, nem na sra. Bug, nem entre seus pertences, e ocorreu-me que Arch provavelmente o fizera com o ouro que tomara de Jocasta Cameron - talvez quando ele começou a retirar os lingotes, um a um; talvez, mais tarde. Uma promessa feita à sua mulher: que seus anos de penúria e dependência haviam terminado. Bem.... de fato, haviam. Olhei para Arch e, a um sinal de sua cabeça, recoloquei a mortalha delicadamente sobre o rosto frio de sua mulher.
Estendia a mão impulsivamente para tocá-lo, tomar seu braço, mas ele se afastou e ficou parado, olhando impassivelmente enquanto Bobby pregava a tampa. Em determinado momento, seu olhar se levantou e percorreu Jamie lentamente, em seguida, por sua vez, Ian.
Pressionei os lábios com força, olhando para Jamie enquanto retornava ao seu lado, vendo a angústia tão claramente gravada em seu rosto. Tanta culpa! Não que já não houvesse bastante - Arch obviamente sentia a sua própria. Não ocorreu a nenhum deles que a própria sra. Bug teve alguma coisa a ver com isto? Se ela não tivesse atirado em Jamie... mas as pessoas nem sempre agem inteligentemente e o fato de alguém ter contribuído para seu próprio falecimento diminuiria a tragédia do que acontecera?
Avistei a pedra que assinalava a sepultura de Malva e seu filho, apenas o topo visível através da neve - redondo, úmido e escuro, como o topo da cabeça de um bebê ao nascer.
Descanse em paz, pensei, e senti um pequeno relaxamento da tensão sob a qual estava há dois dias. Você pode ir agora.
Ocorreu-me que, independente do que eu dissera a Amy e Aidan, isso não alterava a verdade de qual mulher realmente havia morrido primeiro. Ainda assim, considerando a personalidade da sra. Bug, eu achava que ela gostaria de estar no comando, cacarejando e perturbando as almas residentes como seu bando de amadas galinhas, banindo os espíritos do mal com palavras duras e brandindo uma salsicha como arma.
Esse pensamento me ajudou a atravessar a breve leitura da Bíblia, as preces, as lágrimas - das mulheres e crianças, a maioria das quais não fazia a menor ideia da razão de estarem chorando - , a remoção dos caixões do trenó e uma recitação um pouco desarticulada do pai-nosso. Senti muita falta de Roger - de sua calma ordem e genuína compaixão ao conduzir um funeral. E ele, talvez, soubesse o que dizer no discurso fúnebre sobre Murdina Bug. Mas agora ninguém falou quando a prece terminou e fez-se um silêncio longo e constrangedor, as pessoas remexendo-se desconfortavelmente, apoiando-se ora num pé, ora no outro - estávamos sobre trinta centímetros de neve e as anáguas das mulheres estavam molhadas até os joelhos.
Vi Jamie remexer os ombros, como se seu casaco estivesse apertado, e olhar para o trenó, onde as pás estavam embaixo de um cobertor. No entanto, antes que ele fizesse sinal para Ian e Bobby, Ian respirou fundo, uma respiração entrecortada, e deu um passo à frente.
Postou-se ao lado do caixão da sra. Bug, do outro lado do marido enlutado, e parou, obviamente querendo falar. Arch ignorou-o por um longo momento, olhando fixamente para dentro da cova, mas finalmente ergueu o rosto, impassível. Esperando.
- Foi pela minha mão que isto - Ian engoliu em seco -, que esta mulher de grande valor morreu. Não tirei sua vida por maldade, nem intencionalmente, e é um sofrimento para mim. Mas ela morreu pela minha mão.
Rollo choramingou baixinho ao lado de Ian, sentindo a aflição de seu dono, mas Ian colocou a mão em sua cabeça e ele ficou quieto. Ian tirou a faca de sua cintura e colocou-a sobre o caixão, em frente a Arch Bug, em seguida empertigou-se e fitou-o diretamente nos olhos.
- Certa vez, você fez um juramento a meu tio, em uma época de grande provação, e ofereceu vida por vida, por esta mulher. Eu juro pela minha arma, e ofereço o mesmo. - Seus lábios pressionaram-se por um instante e sua garganta se moveu, os olhos escuros e calmos. - Acho que talvez não falasse a sério, senhor... mas eu falo.
Percebi que eu estava prendendo a respiração e forcei-me a respirar. Seria este um plano de Jamie?, me perguntei. Ian obviamente falava a sério. Ainda assim, as chances de Arch aceitar a oferta ali mesmo e cortar a garganta de Ian diante de uma dúzia de testemunhas eram escassas, por mais exigentes que fossem seus sentimentos. Mas, se ele publicamente recusasse a oferta, a possibilidade de uma recompensa mais formal e menos sangrenta se apresentava, mas o Jovem Ian seria aliviado, ao menos em parte, de sua culpa. Maldito escocês, pensei, erguendo os olhos para Jamie - não sem certa admiração.
Entretanto, eu podia sentir pequenos solavancos de energia percorrerem seu corpo, a intervalos de segundo, cada qual reprimido. Ele não iria interferir na tentativa de expiação de Ian - mas também não iria deixar que ele fosse ferido, se por acaso Arch realmente optasse por sangue. E evidentemente ele considerava isso uma possibilidade. Olhei para Arch e concordei com Jamie.
Arch olhou para Ian por um instante, as sobrancelhas grossas e despenteadas, com pelos cinza-chumbo e rebeldes da velhice - e os olhos sob elas também cinza-chumbo, e frios como aço.
- Fácil demais, garoto - ele disse finalmente, com uma voz de metal enferrujado. Abaixou os olhos para Rollo, parado junto a Ian, as orelhas levantadas e os olhos de lobo desconfiados.
- Você me daria seu cachorro para matar?
A máscara de Ian rompeu-se no mesmo instante, o choque e o horror tornando-o repentinamente muito jovem. Eu o ouvi engolir em seco e prepararse, mas sua voz saiu embargada ao responder.
- Não - ele disse. - Ele não fez nada. É meu... crime, não dele. Arch sorriu, muito levemente, embora o sorriso não chegasse aos seus olhos.
- Sim. Então, você compreende. E ele não passa de um animal pulguento. Não é uma esposa. - "Esposa" foi dito quase num sussurro. Limpou a garganta. Em seguida, olhou cuidadosamente de Ian para Jamie, depois para mim. - Não uma esposa - disse brandamente. Eu já sentira meu sangue gelar; isso congelou meu coração.
Sem nenhuma pressa, Arch fitou deliberadamente cada um dos homens; Jamie, depois Ian, a quem olhou por um instante que pareceu uma vida inteira.
- Quando você tiver algo que valha a pena, garoto... você me verá outra vez - ele disse tranquilamente, depois girou nos calcanhares e afastou-se para o meio das árvores.
MORALIDADE PARA VIAJANTES DO TEMPO
Havia uma luminária elétrica em sua escrivaninha no gabinete, mas Roger sempre preferia trabalhar à luz de vela à noite. Tirou um fósforo da caixa e acendeu-o com um único movimento. Depois da carta de Claire, achava que jamais acenderia um fósforo novamente sem pensar na sua história do incêndio da casa grande. Meu Deus, quisera estar lá.
A chama do fósforo diminuiu quando ele a encostou no pavio e a cera translúcida da vela adquiriu um tom azul etéreo e sobrenatural por um instante, depois se iluminou com sua claridade normal. Olhou para Mandy, cantando para uma coleção de brinquedos de pelúcia no sofá; ela já tomara banho e devia se manter longe de confusão enquanto Jem tomava o dele. De olho nela, sentou-se à escrivaninha e abriu seu caderno de notas.
Ele o começara em parte por diversão. A outra parte como único recurso que conseguia imaginar para combater um medo paralisante.
- Você pode ensinar às crianças a não atravessarem a rua sozinhas - Bri ressaltara. - Sem dúvida, também pode ensiná-las a ficar bem longe de monumentos de pedra.
Ele concordara, mas com consideráveis reservas mentais. Crianças pequenas, sim; podia-se fazer uma lavagem cerebral para que não enfiassem garfos nas tomadas elétricas. Mas e quando se transformassem em adolescentes, com todo aquele desejo incipiente de descoberta da própria individualidade e do desconhecido? Lembrava-se muito bem de si mesmo quando adolescente. Diga a um adolescente para não enfiar garfos nas tomadas e ele partiria direto para a gaveta de talheres no instante em que você virasse as costas. As meninas podiam ser diferentes, mas ele duvidava.
Olhou novamente para o sofá, onde Amanda estava deitada de costas agora, as pernas para o ar e um enorme urso de pelúcia, com cara de rato, equilibrado sobre os pés, e para o qual ela cantava "Frère Jacques". Mandy era tão pequena que não se lembraria. Jem, sim. Ele se lembrava; Roger podia saber, quando o menino acordava de pesadelos, os olhos arregalados, fixos no vazio, sem poder descrever seu sonho. Graças a Deus, não acontecia com frequência.
Ele próprio começava a suar frio sempre que se lembrava da última passagem através das pedras. Agarrara Jemmy contra o peito e entrara... meu Deus, não havia nome para aquilo, porque o gênero humano, como um todo, não sofrera essa experiência, para sorte dele. Não chegava nem perto de alguma coisa com a qual pudesse ser comparada.
Nenhum dos sentidos funcionava ali - e ao mesmo tempo todos eles funcionavam, em tal estado de hipersensibilidade que você morreria disso, se durasse um pouco mais. Um imenso vazio onde o som parecia surrá-lo, pulsando através de seu corpo, tentando separar cada célula da seguinte. Cegueira absoluta, mas a cegueira de olhar diretamente para o sol. E o impacto de... corpos? Fantasmas? Pessoas invisíveis que roçavam em você como asas de mariposa ou pareciam esbarrar em você e atravessá-lo, como uma colisão de ossos se embaralhando.
Uma permanente sensação de gritaria.
Teria um cheiro? Parou para pensar, franzindo a testa, tentando se lembrar. Sim, claro que tinha. E, por mais estranho que pareça, um odor perfeitamente descritível: o cheiro de ar queimado por um raio - ozônio.
Tem um forte cheiro de ozônio, escreveu, sentindo-se extremamente aliviado em ter ao menos esse pequeno ponto de referência com o mundo normal.
Esse alívio desapareceu no instante seguinte, ao retomar o esforço mental de se lembrar.
Sentira como se nada, salvo sua própria força de vontade, os mantivesse juntos, nada senão absoluta determinação em sobreviver mantinha-o inteiro. Saber o que o esperava não ajudara nem um pouco; foi diferente - e muito pior do que suas experiências anteriores.
Ele sabia que não devia olhar para eles. Os fantasmas, se isso é o que eram. "Olhar" não era a palavra adequada... prestar atenção a eles? Mais uma vez, não havia uma palavra certa, e ele suspirou, exasperado.
- Sonnez les matines, sonnez les matines... - Din dan don - ele cantou baixinho, em coro com ela. - Din dan Don. Ficou tamborilando a caneta no papel por um instante, pensando, depois sacudiu a cabeça e debruçou-se sobre o papel outra vez, tentando explicar sua primeira tentativa, a ocasião em que ficara a... instantes? Centímetros? Um grau ínfimo de distância do encontro com seu pai - e a destruição.
Creio que não se pode atravessar a linha da própria vida, escreveu devagar. Tanto Bri quanto Claire - as mulheres científicas - haviam lhe assegurado que dois objetos não podem ocupar o mesmo espaço, quer sejam partículas subatômicas ou elefantes. Isso sendo verdadeiro, explicaria por que uma pessoa não pode existir duas vezes no mesmo período de tempo, imaginava.
Ele presumia que fora esse fenômeno que quase o matara em sua primeira tentativa. Pensava em seu pai quando entrou nas pedras e - provavelmente - em seu pai como ele era quando ele, Roger, o conhecera. O que era, é claro, durante o período de sua própria vida.
Tamborilou a caneta no papel outra vez, pensando, mas não conseguiu resolver-se a escrever sobre isso agora. Mais tarde. Em vez disso, voltou às páginas para o esboço rudimentar que fizera no começo do caderno de anotações.
Guia prático para viajantes do tempo
Ele havia riscado o último item, mas hesitou, olhando-o. Ele teria a obrigação de contar tudo que sabia, acreditava ou suspeitava? Claire achava que a ideia de um sacrifício de sangue ser necessário ou útil era tolice - uma superstição pagã sem validade real. Ela podia estar certa; afinal. Era ela a cientista. Mas ele tinha a inquietante lembrança da noite em que Geillis Duncan atravessara as pedras.
Longos cabelos louros, esvoaçando no vento crescente de uma fogueira, as mechas agitadas recortadas em silhueta por um instante contra a face de um monólito. O cheiro nauseante de gasolina misturada a carne queimada, e a tora, que não era uma tora de madeira, carbonizada no centro do círculo. E Geillis Duncan fora longe demais.
"São sempre duzentos anos, nos antigos contos de fadas", Claire lhe dissera. Contos de fadas literais; histórias de pessoas raptadas por fadas, "levadas através das pedras" nas colinas das fadas. Era uma vez, há duzentos anos, era como tais histórias sempre começavam. Ou as pessoas eram devolvidas a seu próprio lugar - só que duzentos anos antes. Duzentos anos.
Claire, Bri, ele próprio - cada vez que viajaram, o intervalo de tempo fora o mesmo; duzentos e dois anos, bem próximo dos duzentos anos das histórias antigas. Mas Geillis Duncan fora longe demais.
Com grande relutância, ele lentamente escreveu a palavra Sangue outra vez, acrescentado parênteses (Fogo??), mas nada sob ela. Agora não; depois.
Para se tranquilizar, olhou para o local na prateleira onde estava a carta, com um peso no formato de uma pequena cobra esculpida em cerejeira. Estamos vivos...
Teve a vontade repentina de ir buscar a caixa de madeira, tirar as outras cartas, abri-las e lê-las. Curiosidade, sem dúvida, porém algo mais - a vontade de tocá-los, Claire e Jamie, pressionar a evidência de suas vidas contra o rosto, eliminar o espaço e o tempo entre eles.
No entanto, reprimiu o impulso. Haviam decidido - ou melhor, Bri decidira, e eram os pais dela.
"Não quero ler todas elas de uma vez", ela dissera, revolvendo o conteúdo da caixa com dedos longos e delicados. "É... é como se eu as lesse todas de uma vez, então eles... realmente teriam ido para sempre.
Ele compreendera. Enquanto restasse ao menos uma carta, eles estariam vivos. Apesar de sua curiosidade de historiador, compartilhava os sentimentos de Bri. Além do mais...
Os pais de Brianna não haviam escrito aquelas cartas como anotações em um diário, destinado aos olhos eventuais de uma posteridade vagamente imaginada.
Haviam sido escritas com a intenção clara e específica de comunicação - com Bri, com ele. O que significava que podiam muito bem conter fatos inquietantes; seus sogros tinham um talento especial para tais revelações.
A despeito de si mesmo, levantou-se, pegou a carta, desdobrou-a e leu o pós-escrito outra vez, só para se assegurar que não o imaginara.
Não. Com a palavra "sangue" ressoando vagamente em seu ouvido, sentou-se novamente à escrivaninha. Um cavalheiro italiano. Esse era Carlos Stuart; não podia ser mais ninguém. Santo Deus. Depois de ficar olhando fixamente para o espaço vazio por alguns instantes - Mandy agora começara a cantar "Jingle Bells" - , ele sacudiu-se, folheou algumas páginas e começou a escrever outra vez, obstinadamente.
Olhou para o texto por um instante, murmurou "Filho da mãe pretensioso" e arrancou a folha do caderno, amassando-a.
Ignorando os trinados de Mandy, pegou o caderno de notas e atravessou o corredor a passos largos, até o escritório de Brianna.
- Quem sou eu para estar dizendo asneiras sobre moralidade? - perguntou. Ela ergueu os olhos de uma folha exibindo os componentes desmontados de uma turbina hidrelétrica, com o olhar vazio de quem sabe que alguém está se dirigindo a ela, mas que ainda não conseguiu se desligar o suficiente do assunto no qual está concentrada para saber quem está falando ou o que está dizendo. Familiarizado com esse fenômeno, ele esperou com leve impaciência até que sua mente abandonasse a turbina e se concentrasse nele.
- ...dizendo asneiras...? - ela repetiu, franzindo a testa. Pestanejou para ele e seu olhar entrou em foco. - A quem você está dizendo asneiras?
- Bem... - Levantou o caderno rabiscado, sentindo-se repentinamente acanhado. - Às crianças, eu acho.
- Você deve dizer asneiras para seus filhos sobre moralidade - ela disse, sensatamente. - Você é o pai deles, é sua função.
- Oh - ele disse, meio perdido. - Mas... eu fiz muitas coisas que estou dizendo a eles para não fazer. - Sangue. Sim, talvez fosse proteção de outra pessoa. Talvez, não.
Ela ergueu uma sobrancelha grossa e ruiva para ele.
- Nunca ouviu falar em hipocrisia benigna? Pensei que ensinassem coisas desse tipo na escola para ministros. Já que você mencionou dizer asneiras sobre moralidade. É a função de um ministro também, não é?
Ela o fitou, os olhos azuis, aguardando. Ele respirou fundo. Só mesmo Bri, pensou com ironia, para ir direto ao elefante na sala e agarrá-lo pela tromba. Ela não dissera nem uma palavra desde que voltaram sobre sua quase-ordenação ou o que ele pretendia fazer agora a respeito de sua vocação. Nem uma palavra, durante o ano que passaram nos Estados Unidos, a cirurgia de Mandy, a decisão de se mudarem para a Escócia, os meses de reforma depois de comprarem Lallybroch - não até ele abrir a porta. Uma vez aberta, é claro, ela a havia atravessado sem hesitação, derrubando-o e plantando um pé em seu peito.
- Sim, é - disse serenamente, devolvendo-lhe o olhar.
- Ok. - Ela sorriu, meigamente. - Então, qual é o problema?
- Bri - ele disse, sentindo o coração ficar preso em sua garganta marcada de cicatrizes. - Se eu soubesse, eu lhe diria.
Ela levantou-se e colocou a mão em seu braço, mas antes que qualquer um dos dois pudesse dizer mais alguma coisa o barulho de pés pequenos e descalços veio saltitando pelo corredor, e a voz de Jem veio da porta do escritório de Roger:
- Papai?
- Aqui, amigão - ele respondeu, mas Brianna já se dirigia à porta. Seguindo-a, encontrou Jem - em seu pijama azul de Super-Homem, os cabelos molhados e espetados - em pé ao lado de sua escrivaninha, examinando a carta com interesse.
- O que é isto? - perguntou.
- Qui é? - Mandy repetiu fielmente, correndo para perto e subindo na cadeira para ver.
- É uma carta de seu avô - Brianna respondeu, sem hesitação. Colocou a mão casualmente sobre a carta, ocultando a maior parte do pós-escrito, e com a outra apontou para o último parágrafo. - Ele lhe mandou um beijo. Está vendo aqui?
Um enorme sorriso iluminou o rosto de Jem.
- Ele disse que não iria esquecer - Jem disse, satisfeito.
- Beijinho, vovô - Mandy exclamou e, inclinando-se para frente de modo que sua espessa cabeleira de cachos escuros caísse sobre seu rosto, plantou um sonoro beijo na carta.
Entre o riso e a surpresa, Bri pegou a carta rapidamente e limpou a umidade do beijo - mas o papel, apesar de antigo, era resistente.
- Não estragou nada - ela disse, e entregou a carta naturalmente para Roger. - Venham, que história vamos ler hoje?
- "Históias de aminais!"
- Animais - Jem corrigiu, inclinando-se para falar diretamente junto ao rosto de sua irmã. - Histórias de animais.
- Tá - ela disse, amistosamente. - Eu primeiro! - E saiu correndo loucamente para a porta, dando risadinhas, seguida de perto por seu irmão. Brianna demorou-se três segundos para agarrar Roger pelas orelhas e beijá-lo com firmeza na boca, depois o soltou e partiu atrás de seus rebentos.
Sentindo-se melhor, ele sentou-se, ouvindo a algazarra das crianças na operação de lavar rostos e escovar dentes. Suspirando, guardou o caderno de anotações na gaveta outra vez. Havia muito tempo, pensou. Muitos anos antes de ser necessário. Anos e anos.
Dobrou a carta com cuidado e, na ponta dos pés, colocou-a na prateleira mais alta da estante, com a pequena cobra de madeira em cima. Apagou a vela e foi se juntar à sua família.
Pós-escrito: Estou vendo que devo ter a última palavra - um raro prazer para um homem morando em uma casa que abriga (segundo a última contagem) oito mulheres. Pretendemos deixar Ridge assim que o clima melhorar e a neve derreter, e partir para a Escócia, para reaver a gráfica e retornar com ela. As viagens nestes tempos são incertas e não posso prever quando - ou se - será possível escrever outra vez. (Nem sei se vocês chegarão a receber esta carta, mas tenho fé que sim.)
Gostaria de lhes contar sobre a disposição dos bens que um dia foram guardados em confiança pelos Cameron para um cavalheiro italiano. Acho temerário levá-los conosco e, assim, eu os removi para um lugar seguro. Jem conhece o lugar. Se em algum momento vocês tiverem necessidade desses bens, digam a ele que o espanhol os guarda. Se assim for, não deixem de mandar um padre benzê-los; há sangue neles.
Às vezes, gostaria de ver o futuro; com muito maisfrequência, dou graças a Deus por não poder. Mas sempre verei seus rostos. Deem um beijo nas crianças por mim.
Seu pai amoroso, JF
Uma vez terminado o ritual de colocar as crianças para dormir, seus pais voltaram à biblioteca, uma dose de uísque e a carta.
- Um cavalheiro italiano? - Bri olhou para Roger, uma das sobrancelhas levantadas de tal modo que o fez lembrar tão imediatamente de Jamie Fraser que Roger olhou involuntariamente para a folha de papel. - Ele se refere...
- Carlos Stuart? Não pode ser ninguém mais. Ela pegou a carta e leu o pós-escrito talvez pela duodécima vez. - E se ele realmente se refere a Carlos Stuart, então os bens... - Ele encontrou o ouro. E Jem sabe onde está? - Roger não pôde evitar que esta última frase adquirisse o tom de pergunta, enquanto lançava os olhos para o teto, acima do qual as crianças provavelmente estavam adormecidas, inocentes, em seus pijamas de desenho animado.
Bri franziu a testa.
- Será que sabe? Não foi exatamente isso o que papai disse. E se ele realmente souber... é um segredo terrivelmente grande para um menino de oito anos guardar.
- É verdade. - Com oito anos ou não, Jem era muito bom em guardar segredos, Roger pensou. Mas Bri tinha razão, seu pai jamais colocaria alguém em risco com informações perigosas, muito menos seu amado neto. Certamente, não sem uma boa razão, e seu pós-escrito deixava claro que essa informação só era fornecida como uma contingência em caso de necessidade.
- Tem razão. Jem não sabe nada sobre o ouro, apenas sobre esse espanhol, o que quer que seja. Ele nunca mencionou nada sobre isso com você?
Ela sacudiu a cabeça, depois se virou, quando uma lufada repentina de vento da janela aberta enfunou as cortinas, anunciando chuva iminente. Bri levantou-se e foi correndo fechá-la, em seguida apressou-se a subir para fechar as janelas em cima, acenando a Roger para que fosse ver as janelas no térreo. Lallybroch era uma casa grande e extraordinariamente provida de janelas - as crianças estavam sempre tentando contá-las, mas nunca acabavam duas vezes com o mesmo número.
Roger achava que ele mesmo poderia contá-las um dia e resolver a questão, mas relutava em fazê-lo. A casa, como a maior parte das casas antigas, possuía uma personalidade própria. Lallybroch era acolhedora, sem dúvida; espaçosa e graciosa, uma construção mais confortável do que pomposa, com os ecos de gerações murmurando em suas paredes. Mas era um lugar que tinha seus segredos também, quanto a isso não havia dúvida. E esconder o número de suas janelas estava bem de acordo com a ideia que ele tinha de Lallybroch como uma casa divertida.
As janelas da cozinha - agora equipada com geladeira moderna, fogão água e encanamento adequado, mas ainda com suas antigas bancadas de granito manchadas com o suco de frutas silvestres, sangue de animais domésticos e de caça - estavam todas fechadas, mas ele verificou todas elas, bem como as da copa. A luz na entrada dos fundos estava apagada, mas ele podia ver a grade no chão perto da parede que dava ventilação ao buraco do padre embaixo.
Seu sogro havia se escondido ali por algum tempo, na época do Levante, antes de ser preso em Ardsmuir. Roger havia descido lá uma vez – também rapidamente - quando compraram a casa e saíra do pequeno espaço fétido e úmido com uma compreensão completa do motivo que levou Jamie Fraser a preferir viver em uma região deserta e selvagem, no alto de uma montanha remota, onde não havia nenhuma barreira física em qualquer direção.
Anos de esconderijo, de coação, de prisão... Jamie Fraser não era uma criatura política e sabia melhor do que a maioria das pessoas qual era o verdadeiro custo da guerra, qualquer que fosse seu suposto propósito. Mas Roger vira seu sogro de vez em quando esfregar distraidamente os pulsos, onde as marcas de algemas há muito haviam esmaecido - mas a lembrança de seu peso não. Roger não tinha a menor dúvida de que Jamie Fraser viveria livre ou preferiria morrer. E desejou, por um instante, com uma ânsia que fazia seus ossos doerem, que pudesse estar lá, para lutar ao lado de seu sogro.
A chuva começara; pôde ouvir os pingos tamborilando nas telhas de ardósia dos telhados das construções externas, logo transformados em uma tromba d'água que avançou impetuosamente, envolvendo a casa em névoa e água.
- Por nós... e nossa posteridade - disse em voz alta, mas serenamente. Era um acordo feito entre os homens - não declarado, mas perfeitamente compreendido.
Nada importava senão que a família fosse preservada, as crianças protegidas. E quer o custo disso fosse pago em sangue, suor ou alma - seria pago.
- Oidche rrthath - ele disse, com um breve sinal da cabeça na direção do buraco do padre. Boa-noite, então.
Entretanto, permaneceu mais um instante na velha cozinha, sentindo o abraço da casa, sua proteção sólida contra a tempestade. A cozinha sempre fora o coração da casa, ele pensou, e achou o calor do fogão um conforto tão grande quanto fora um dia o fogo da lareira agora vazia.
Encontrou Brianna ao pé da escada; ela havia se trocado para ir para a cama - não para ir dormir. O ar na casa era sempre fresco e a temperatura caíra alguns graus com o começo da chuva. Entretanto, ela não usava seus pijamas de flanela; em lugar disso, uma camisola fina de algodão branco, enganadoramente inocente, com uma fita vermelha entremeada. O tecido branco colava-se ao formato de seus seios como uma nuvem ao pico de uma montanha.
Ele disse isso, e ela riu - mas não fez nenhuma objeção quando ele envolveu-os com suas mãos, seus mamilos contra as palmas dele redondos como cascalhos na praia através do tecido fino.
- Vamos subir? - ela sussurrou e, inclinando-se para frente, correu a ponta da língua pelo seu lábio inferior.
- Não - ele disse, beijando-a com força, acalmando a cócega do toque. - Na cozinha. Ainda não fizemos isso lá.
Ele a possuiu, inclinado sobre a bancada antiga com suas manchas misteriosas, o som de seus pequenos gemidos uma pontuação para o barulho do vento e da chuva nas velhas persianas. Sentiu-a estremecer e desfazer-se, e abandonou-se também, os joelhos tremendo, de modo que caiu lentamente para frente, agarrou-a pelos ombros, o rosto pressionado nas ondas de seus cabelos perfumados de xampu, o granito antigo liso e frio sob sua face. Seu coração batia devagar e com força, compassado como um tambor surdo.
Ele estava nu e uma lufada de ar frio fez suas costas e pernas se arrepiarem. Brianna sentiu-o estremecer e virou o rosto para ele.
- Frio? - sussurrou. Ela não estava; brilhava como um carvão em brasa, e ele não queria nada além de deitar ao seu lado e sobreviver à tempestade no calor aconchegante de sua cama.
- Estou bem. - Abaixou-se e pegou as roupas que largara no chão da cozinha. - Vamos para a cama.
A chuva era ainda mais barulhenta no andar de cima. - Oh, os animais entravam de dois em dois - Bri cantava suavemente, conforme subiam as escadas - os elefantes e os cangurus...
Roger sorriu. Ele podia imaginar a casa como uma arca de Noé, flutuando em um mundo turbulento de águas - mas todos confortavelmente aconchegados ali dentro. Dois a dois: dois pais, dois filhos... talvez mais, um dia. Afinal, havia muito espaço.
Com o abajur apagado e a chuva batendo nas persianas, Roger hesitava à beira do sono, relutante em abandonar o prazer do momento.
- Nós não vamos perguntar a ele, vamos? - Bri sussurrou. Sua voz estava sonolenta, seu peso macio e quente ao longo de todo o lado de seu corpo. - Jem?
- Hein? Não. Claro que não. Não é necessário. Ele sentiu uma ponta de curiosidade - quem era o espanhol? E a ideia do tesouro enterrado sempre era uma sedução - mas não precisavam dele; tinham dinheiro suficiente para o presente. Sempre presumindo que o ouro ainda estivesse onde Jamie o colocara, o que em si mesmo já era bem pouco provável.
Ele também não havia esquecido a última injunção do pós-escrito de Jamie.
Mandem um padre benzê-los; há sangue neles. As palavras dissolveram-se conforme pensava nelas e o que ele viu por dentro de suas pálpebras não foram lingotes de ouro, mas a velha bancada de granito da cozinha, manchas escuras tão entranhadas na pedra a ponto de terem se tornado parte dela, irremovíveis pela mais vigorosa esfregação, muito menos uma invocação.
Mas não importava. O espanhol, quem quer que fosse, podia ficar com seu ouro. A família estava a salvo.
SANGUE, SUOR E PICLES
Long Island
Em 4 de julho de 1776, a Declaração de Independência foi assinada na Filadélfia.
Em 24 de julho, o general sir William Howe chegou a Staten Island, onde montou um posto de comando na Rose and Crown Tavern, em New Dorp.
Em 13 de agosto, o general George Washington chegou a Nova York para reforçar as fortificações da cidade, dominada pelos americanos.
Em 21 de agosto, William Ransom, tenente lorde de Ellesmere, chegou à Rose and Crown, em New Dorp, apresentando-se - com certo atraso - para servir como membro mais novo e mais jovem do exército do general Howe.
Em 22 de agosto... tenente Edward Markham, marquês de Clarewell, examinou atentamente o rosto de William, oferecendo-lhe uma desagradável visão de perto de uma grande espinha - prestes a estourar - na testa do primeiro.
- Você está bem, Ellesmere?
- Estou. - William conseguiu emitir a palavra entre dentes cerrados.
- É que você parece meio... verde. - Clarewell, parecendo preocupado, enfiou a mão no bolso. - Quer chupar meu picles?
William por pouco não alcançou a amurada a tempo. Houve certa algazarra de brincadeiras e troça atrás dele, com relação ao pepino de Clarewell, quem iria chupá-lo e quanto o seu proprietário seria obrigado a pagar por tal serviço. Tudo isso intercalado pelos protestos de Clarewell de que sua velha avó jurou que um pepino em conserva era ótimo para prevenir enjoo no mar, e obviamente funcionava, bastava olhar para ele, firme como uma rocha...
William piscou os olhos lacrimejantes e fixou a visão na praia que se aproximava. A água não estava particularmente agitada, embora uma tempestade estivesse se formando, sem a menor dúvida. Mas não importava; até os movimentos mais suaves de subida e descida da água, na mais curta viagem, eram o suficiente para fazer seu estômago prontamente tentar se virar do avesso. Toda maldita vez!
Seu estômago ainda tentava, mas, como não restava mais nada dentro para expelir, ele podia fingir que nada estava acontecendo. Limpou a boca, sentindo a pele pegajosa e fria, apesar do calor do dia, e endireitou os ombros.
Lançariam âncora a qualquer minuto; era hora de descer e impor algum tipo de ordem às companhias sob seu comando, antes que descessem para os botes. Arriscou uma breve olhada por cima da amurada e viu o River e o Phoenix logo atrás. O Phoenix era o navio capitânia do almirante Howe, e seu irmão general estava a bordo. Teriam que esperar, sacolejando como rolhas de cortiça sobre as ondas cada vez mais agitadas, até que o general Howe e o capitão Pickering, seu ajudante de ordens, chegassem à terra firme? Santo Deus, esperava que não.
Ao que se viu, os homens tiveram permissão de desembarcar imediatamente.
- O MAIS RÁPIDO POSSÍVEL, senhores! - o sargento Cutter informouos, aos berros. - Vamos pegar os malditos rebeldes de surpresa, é o que vamos fazer! E AI DE QUEM eu pegar vadiando! VOCÊ, aí...! - Saiu a passos largos, vociferando com um segundo-tenente negligente e deixando William sentindo-se um pouco melhor. Sem dúvida, nada realmente terrível poderia acontecer em um mundo onde houvesse o sargento Cutter.
Seguiu seus homens pela escada para dentro dos botes, esquecendo por completo seu estômago na afobação. Sua primeira batalha verdadeira ainda estava para ser travada, em algum lugar de Long Island.
Oitenta e oito fragatas. Era o que ouvira falar que o almirante Howe trouxera, e ele não duvidava. Uma floresta de velas enchia a baía de Gravesend e a água estava apinhada de pequenos barcos, levando as tropas à terra firme. O próprio William estava um pouco sufocado com a expectativa. Podia senti-la avolumando-se entre os homens, conforme os cabos reuniam suas companhias dos botes e saíam marchando em ordem, abrindo espaço para a próxima leva de chegadas.
Os cavalos dos oficiais eram levados a nado até a praia, em vez de barcos a remo, a distância não sendo muito grande. William encolheu-se para o lado quando um grande cavalo baio aflorou na arrebentação perto de seu barco e se sacudiu com uma chuva de água salgada que encharcou todos a três metros de distância. O cavalariço agarrado à sua brida parecia um rato molhado, mas sacudiu-se como o animal e riu para William, o rosto branco de frio, mas empolgado.
William também tinha um cavalo - em algum lugar. O capitão Griswold, veterano do exército de Howe, estava lhe emprestando uma montaria, não tendo havido tempo para organizar nada além disso. Imaginava que o cavalariço que estivesse cuidando do cavalo o encontraria, embora ele não visse como.
Reinava uma confusão organizada. A costa naquele ponto era uma zona de baixios arenosos de marés e multidões de casacos vermelhos pululavam entre restos de naufrágios como bandos de aves pernaltas, os berros dos sargentos formando um contraponto aos gritos das gaivotas no céu.
Com alguma dificuldade, já que havia sido apresentado aos cabos apenas naquela manhã e ainda não gravara seus rostos muito bem, William localizou suas quatro companhias e as conduziu pela praia acima, até as dunas de areia cobertas por uma espécie de capim selvagem. Era um dia quente, fazendo-os sofrer com o pesado uniforme e o equipamento completo, e ele deixou os homens fazerem uma pausa, beberem água ou cerveja de seus cantis, comerem um pouco de queijo ou bolacha. Logo retomariam a marcha.
Para onde? Esta era a pergunta que martelava sua mente no momento. Uma equipe reunida às pressas na noite anterior - sua primeira noite - reiterara as bases do plano de invasão. Da baia de Gravesend, metade do exército marcharia para o interior, virando para o norte na direção de Brooklyn Heights, onde se acreditava que as forças rebeldes estivessem entrincheiradas. O restante das tropas se espalharia ao longo do litoral até Montauk, formando uma linha de defesa que poderia marchar para o interior atravessando Long Island, forçando os rebeldes a recuar para dentro de uma armadilha, se necessário.
William queria, com uma intensidade que dava nós em sua espinha, estar na vanguarda, lutando. Mas sabia que não era provável. Desconhecia inteiramente as tropas e não estava muito bem impressionado com sua aparência. Nenhum comandante sensato colocaria tais companhias na linha de frente - a não ser para servirem de bucha de canhão. Esse pensamento o fez hesitar por um instante, mas apenas por um instante.
Howe não era de desperdiçar homens; era conhecido por ser cauteloso, às vezes até demais. Seu pai lhe dissera isso. Lorde John não mencionara que essa consideração era a principal razão para seu consentimento a que William fizesse parte do exército de Howe, mas William sabia disso, de qualquer modo. Não se importava; já havia calculado que suas chances de entrar em combate ainda eram muito maiores com Howe do que ficar vagando pelos pântanos da Carolina do Norte com sir Peter Packer.
E afinal... virou-se devagar, de um lado para o outro. O mar era uma massa compacta de navios ingleses, a terra à sua frente fervilhante de soldados ingleses. Ele jamais admitiria em voz alta estar impressionado com a visão - mas sentia o lenço apertar ao redor de seu pescoço. Percebeu que estava prendendo a respiração e conscientemente a soltou.
A artilharia estava sendo trazida à terra firme, flutuando perigosamente em barcaças de fundo chato, manejadas por soldados praguejando. As carretas, as caixas de munição e os cavalos e bois de tração necessários para puxá-las subiam a praia chapinhando na água, respingados de areia, relinchando e mugindo, abaixando-se em protesto, tendo desembarcado mais ao sul. Era o maior exército que ele já vira.
- Senhor, senhor! - Olhou e viu um soldado baixo, provavelmente da mesma idade do próprio William, de bochechas rechonchudas e ansioso.
- Sim? - Sua lança, senhor. E seu cavalo já veio - o soldado acrescentou, gesticulando para o cavalo baio castrado, alto e esguio, cujas rédeas ele segurava. - Com os cumprimentos do capitão Griswold, senhor.
William pegou a lança, de dois metros, a ponta de aço lustrada brilhando opacamente mesmo sob o céu nublado, e sentiu o peso da arma eletrizar seu braço.
- Obrigado. E você é...?
- Oh. Perkins, senhor. - O soldado bateu continência apressadamente. - Terceira companhia, senhor; nos chamam de "Escavadores".
- É mesmo? Bem, esperamos lhes dar bastantes oportunidades de justificar seu nome. - Perkins pareceu não entender. - Obrigado, Perkins - William disse, dispensando-o com um gesto da mão.
Pegou a brida do cavalo, a alegria tomando conta de seu coração. Era o maior exército que ele já vira. E ele fazia parte dele.
Ele teve mais sorte do que pensara que teria, ainda que não tanta quanto esperava.
Suas companhias deveriam estar na segunda leva, seguindo a tropa dianteira a pé, guardando a artilharia. Não era garantia de ação, mas ainda assim havia uma boa chance, se os americanos fossem metade dos guerreiros que tinham a reputação de ser.
Já passava de meio-dia quando ele finalmente levantou sua lança no ar e gritou: "À frente, marchem!" O tempo ameaçador havia irrompido em uma chuva esparsa, um grato alívio do calor. Além da costa, uma faixa de floresta dava lugar a uma planície vasta e bela. Uma extensão de capim ondulante estendia-se diante deles, salpicado de flores silvestres, as cores exuberantes na claridade turva da chuva. Ao longe, podia ver bandos de pássaros em pleno voo - pombos? codornas? Longe demais para saber - alçando-se no ar apesar da chuva, conforme os soldados em marcha os afugentavam de seus abrigos.
Suas próprias companhias concentravam-se no centro da linha em marcha, avançando sinuosamente em colunas ordenadas atrás dele, e ele dirigiu um pensamento agradecido ao general Howe. Como oficial novato, por direito era o serviço de mensageiro que deveria ser delegado a ele, saltando de um lado para o outro entre as companhias no campo, transmitindo ordens do quartel-general de Howe, levando e trazendo informações dos outros dois generais, sir Henry Clinton e lorde Cornwallis.
No entanto, considerando sua chegada com atraso, ele não conhecia nenhum dos outros oficiais, nem a disposição do exército; ignorava completamente quem era quem, muito menos onde deveriam estar em dado momento. Seria inútil como mensageiro. O general Howe, de algum modo conseguindo reservar um momento naquela correria da invasão iminente, não só lhe dera as boas-vindas com grande cortesia, mas lhe oferecera a escolha: acompanhar o capitão Griswold, segundo as ordens do capitão - ou assumir o comando de algumas companhias órfãs de seu próprio tenente, que adoecera com malária.
Ele agarrara a chance e agora se empertigava orgulhosamente em sua sela, a lança descansando em sua presilha, conduzindo homens à guerra. Remexeu-se um pouco, apreciando a sensação do novo casaco de lã vermelho em seus ombros, a bem-arrumada trança na nuca, o rígido lenço de couro ao redor do pescoço e o pequeno peso de seu gorjal de oficial, aquele pequeno remanescente de prata da armadura romana. Há quase dois meses que não usava uniforme e, molhado da chuva ou não, considerava sua retomada uma gloriosa apoteose.
Uma companhia de cavalaria ligeira viajava perto deles; ouviu o grito de seu oficial e os viu passar à frente e virar na direção de um bosque distante. Teriam visto alguma coisa?
Não. Uma tremenda nuvem de melros-pretos explodiu do bosque, numa algazarra tão grande que muitos cavalos se assustaram. Os cavaleiros deram uma batida no lugar, embrenhando-se pelo meio das árvores com os sabres em punho, decepando galhos, mas apenas para se exibirem. Se alguém tivesse se escondido lá, já tinha ido embora, e a cavalaria ligeira voltou para se unir à tropa de reconhecimento, zombando uns dos outros.
Relaxou novamente em sua sela, soltando a lança que agarrava. Nenhum americano à vista - mas não haveria mesmo. Ele vira e ouvira o suficiente em seu trabalho de inteligência para saber que somente verdadeiros soldados do Exército Continental eram capazes de lutar de maneira organizada. Ele vira milícias fazendo manobras em praças de vilarejos, compartilhara comida com homens que pertenciam a tais milícias. Nenhum deles era soldado - vistos em grupo, treinando, eram risíveis, mal conseguindo marchar em fila, muito menos em sincronia - , mas quase todos eram hábeis caçadores, e ele vira muitos deles atirarem em perus e gansos selvagens em pleno voo, o suficiente para não compartilhar o sentimento comum de desprezo da maioria dos soldados ingleses.
Não, se houvesse americanos por perto, o primeiro aviso provavelmente seria homens caindo mortos. Fez sinal para Perkins, mandou-o transmitir ordens aos cabos para manterem os homens alertas, as armas preparadas e engatilhadas. Viu os ombros de um dos cabos enrijecerem-se ao receber o recado, que ele obviamente considerava um insulto - mas o sujeito obedeceu mesmo assim e a tensão de William arrefeceu um pouco.
Seus pensamentos retornaram à sua recente jornada, e ele se perguntou quando - e onde - deveria se encontrar com o capitão Richardson, para repassar os resultados de seu serviço de inteligência.
Ele gravara na mente a maior parte de suas observações durante o trajeto, anotando por escrito apenas o indispensável, e assim mesmo codificado em um pequeno exemplar do Novo Testamento que sua avó lhe dera. Ainda estava no bolso de seu casaco civil, em Staten Island. Agora que estava de volta são e salvo ao seio do exército, deveria escrever suas observações em relatórios apropriados? Ele poderia...
Algo o fez se levantar nos estribos, bem a tempo de avistar o clarão e ouvir o estalido de disparo de mosquete no bosque à esquerda.
- Alto! - gritou, vendo seus homens começarem a abaixar suas armas. - Esperem!
O tiro viera de muito longe e havia outra coluna de infantaria mais próxima ao bosque. Eles giraram em posição de fogo e dispararam uma saraivada para dentro da floresta; a primeira fileira se ajoelhou e a segunda disparou por cima de suas cabeças. A resposta veio da floresta; ele viu um ou dois homens caírem, outros cambalearem, mas a linha se refez.
Mais duas saraivadas, as centelhas do fogo de resposta, porém mais esporádicos - pelo canto do olho, ele viu movimento e girou em sua sela, deparando-se com um bando de homens em camisas de caça correndo da outra extremidade do bosque.
A companhia à sua frente os viu também. Um grito de seu sargento e eles fixaram as baionetas e correram, embora fosse evidente para William que jamais pegariam os caçadores em fuga.
Esse tipo de escaramuça aleatória continuou durante toda a tarde, conforme o exército continuava sua marcha. Os feridos eram recolhidos e carregados para a retaguarda, mas eram poucos. Uma das companhias de William foi alvejada em determinado ponto e ele se sentiu um deus quando deu a ordem de atacar e eles se lançaram para dentro da floresta como um fluxo de vespas furiosas, as baionetas fixas, conseguindo matar um dos rebeldes, cujo corpo arrastaram para a planície. O cabo sugeriu pendurá-lo de uma árvore como forma de desencorajar os outros rebeldes, mas William recusou firmemente a sugestão como sendo desonrosa e os fez estender o corpo no limiar da floresta, onde poderia ser encontrado pelos seus amigos.
À noitinha, chegaram ordens do general Clinton, transmitidas ao longo das fileiras. Não iriam parar para acampar. Uma breve pausa para um lanche frio e seguir em frente.
Houve murmúrios de surpresa entre os homens, mas nenhuma reclamação. Afinal, tinham vindo para lutar, e a marcha foi retomada com um senso maior de urgência.
Chovia esporadicamente e o assédio dos rebeldes diminuiu gradativamente com a luz mortiça. Não fazia frio e, apesar do crescente encharcamento de suas roupas, William preferia a friagem e a umidade ao calor abafado e opressivo do dia anterior. Ao menos, a chuva aplacava os ânimos de seu cavalo, o que era bom; era uma criatura nervosa e arisca, e William tinha motivos para duvidar das boas intenções do capitão Griswold ao emprestá-lo a ele. Exausto do longo dia, entretanto, o animal parou de sobressaltar-se com galhos agitados pelo vento e pelos puxões das rédeas, seguindo em frente penosamente, com as orelhas descaídas em cansada resignação.
As primeiras horas da marcha noturna não foram difíceis. No entanto, após a meia-noite, a exaustão do esforço prolongado e a falta de sono começaram a se evidenciar nos homens. Soldados começaram a tropeçar e a ficar para trás, e uma noção da vasta imensidão de escuridão e esforço que os separava da aurora abateu-se sobre eles.
William chamou Perkins ao seu lado. O soldado de rosto rechonchudo apareceu, bocejando e pestanejando, e começou a andar ao seu lado, a mão no couro do estribo de William enquanto este lhe explicava o que queria.
- Cantar? - Perkins disse, em dúvida. - Bem, acho que posso cantar, sim, senhor. Mas apenas hinos.
- Não era bem o que eu tinha em mente - William disse. - Vá perguntar ao sargento... Millilçin, é esse o nome dele? O irlandês? Qualquer coisa que ele queira, desde que seja alta e animada. - Afinal, não estavam tentando ocultar sua presença; os americanos sabiam exatamente onde eles estavam.
- Sim, senhor - Perkins disse em dúvida, soltando o estribo e desaparecendo imediatamente na noite. William continuou cavalgando por mais alguns minutos, em seguida ouviu o vozeirão irlandês de Patrick Millikin elevado numa canção muito desbocada. Houve uma onda de risadas dos homens e, quando ele chegou ao primeiro refrão, alguns já haviam se juntado em coro. Mais dois versos e todos já estavam acompanhando vigorosamente, William inclusive.
Não poderiam manter a cantoria durante horas, enquanto marchavam energicamente com todo o equipamento, é claro, mas quando esgotaram suas canções favoritas e ficaram sem fôlego todos já estavam novamente acordados e otimistas.
Pouco antes do amanhecer, William sentiu cheiro de mar e de lama de um pântano sob chuva. Os homens, já molhados, começaram a chapinhar através de incontáveis e minúsculos braços e ribeiros formados pelas marés.
Alguns minutos depois, o estrondo de um canhão despedaçou a noite. Uma revoada de pássaros dos pântanos, com gritos de alarme, ergueu-se no céu que começava a clarear.
Nos dois dias seguintes, William nunca teve a menor ideia de onde estava. Nomes como "Jamaica Pass", "Flatbush" e "Gowanus Creek" surgiam de vez em quando nos despachos e bilhetes apressados que atravessavam o exército, mas poderiam muito bem dizer "Júpiter" ou "o lado escuro da lua", até onde ele sabia.
Finalmente, ele viu os continentais. Hordas deles, surgindo dos pântanos como um enxame. Os primeiros confrontos foram violentos, mas as companhias de William foram mantidas na retaguarda, dando apoio; somente uma vez estiveram realmente perto da linha de fogo, a fim de repelir a chegada de um grupo de americanos.
Ainda assim, ele estava em permanente estado de agitação, tentando ouvir e ver tudo ao mesmo tempo, intoxicado com o cheiro de fumaça de pólvora, mesmo quando seu corpo estremecia com um tiro de canhão. Quando o tiroteio terminava ao pôr do sol, ele comia um pouco de bolacha e queijo, mas sem sentir o gosto, e dormia apenas por alguns instantes, de pura exaustão.
No final da tarde do segundo dia, viram-se a pouca distância dos fundos de Uma grande casa de fazenda de pedras que os ingleses e algumas tropas de soldados mercenários alemães haviam tomado como uma plataforma de artilharia; os canos de canhões projetavam-se das janelas de cima, brilhando molhados com a chuva constante.
Pólvora úmida era um problema agora; os cartuchos estavam bons, mas, se a pólvora despejada nas caçoletas fosse deixada ali mais do que alguns minutos, começava a endurecer e falhar. A ordem para carregar, portanto, tinha que ser adiada até o último momento possível antes de disparar; William viu-se rangendo os dentes de ansiedade quanto ao momento certo de dar a ordem.
Por outro lado, às vezes não havia absolutamente nenhuma dúvida. Com gritos roucos, diversos americanos arremeteram-se do meio das árvores próximas à frente da casa e correram para as portas e janelas. Os tiros de mosquete das tropas dentro da casa atingiram vários deles, mas alguns conseguiram alcançar a casa, começando a escalar e entrar pelas janelas estilhaçadas. William automaticamente puxou as rédeas e cavalgou para a direita, longe o suficiente para dar uma olhada nos fundos da casa. De fato, um grupo maior já estava lá, vários homens subindo pelas trepadeiras que cobriam as paredes.
- Para lá! - ele berrou, virando o cavalo e brandindo sua lança. - Olson, Jeffries, os fundos! Carreguem e disparem assim que tiverem alcance!
Duas de suas companhias correram, arrancando as pontas de seus cartuchos com os dentes, mas um grupo de soldados alemães de casacos verdes chegou lá primeiro, agarrando os americanos pelas pernas, puxando-os da trepadeira e atacando-os a coronhadas.
Ele deu a volta com o cavalo e partiu para o outro lado, para ver o que estava acontecendo na frente, chegando no exato momento em que um soldado da artilharia voava de uma das janelas abertas do andar de cima. O inglês chocou-se contra o solo, uma das pernas dobrada sob o corpo, e ficou lá gritando. Um dos homens de William, perto do ferido, arremeteu-se para frente e agarrou-o pelos ombros, mas foi atingido por um disparo vindo de dentro da casa. Ele dobrou-se ao meio e caiu, o chapéu caindo e rolando para o meio das moitas.
Passaram o resto daquele dia na casa de pedras da fazenda; os americanos fizeram quatro incursões - em duas, conseguiram dominar os habitantes e por pouco tempo tomaram as armas, mas nas duas vezes foram sobrepujados por novas levas de tropas britânicas e expulsos ou mortos. William em nenhum momento se aproximou a menos de duzentos metros da casa, mas uma vez conseguiu interpor uma de suas companhias entre a casa e uma onda de americanos desesperados vestidos como índios e gritando como banshees. Um deles ergueu um rifle longo e atirou diretamente nele, mas errou o alvo. Ele tirou a espada, pretendendo derrubar o sujeito, mas um tiro de algum lugar atingiu o americano, fazendo-o rolar pelo barranco de uma pequena elevação.
William aproximou seu cavalo, para ver se o americano estava morto ou não - os companheiros do sujeito já haviam fugido, desaparecendo por trás da casa, perseguidos por tropas britânicas. Seu cavalo, entretanto, estava nervoso; treinado para o som de tiros de mosquete, achava a artilharia enervante e, com o estrondo de uma descarga de canhão naquele exato momento, ele abaixou as orelhas e disparou.
William ainda empunhava a espada, as rédeas frouxamente enroladas na outra mão; o súbito solavanco deslocou-o da sela, o cavalo deu uma guinada para a esquerda, arrancando seu pé direito do estribo, e ele foi atirado para fora. Mal teve a presença de espírito de largar a espada ao cair, aterrissando sobre um dos ombros e rolando.
Simultaneamente agradecendo a Deus por seu pé esquerdo não ter ficado preso do estribo e xingando o cavalo, ergueu-se nas mãos e nos joelhos, sujo de lama e capim, o coração na boca.
As armas dentro da casa haviam parado; os americanos deviam estar lá dentro de novo, lutando corpo a corpo com os homens da artilharia. Ele cuspiu lama e começou a recuar cuidadosamente; achava estar no alcance das janelas de cima.
À sua esquerda, entretanto, avistou o americano que tentara acertá-lo, ainda estendido no capim molhado. Com um olhar cauteloso para a casa, arrastouse até o sujeito, que estava caído com o rosto para baixo, imóvel. Ele queria ver o rosto do sujeito, embora não soubesse a razão. Ergueu-se sobre os joelhos e segurou o homem pelos ombros, virando-o.
O sujeito estava obviamente morto, com um tiro na cabeça. A boca e os olhos estavam descaídos, semiabertos, e seu corpo parecia estranho, pesado e frouxo.
Usava um tipo de uniforme de milícia; William viu os botões de madeira, com as letras "PUT" gravadas a fogo. Aquilo significava alguma coisa, mas sua mente aturdida não conseguia decifrar. Delicadamente deitando o homem novamente no chão, levantou-se e foi recuperar sua espada. Tinha uma sensação estranha nos joelhos.
A meio caminho do local onde estava sua espada, ele parou, virou e começou a voltar. Ajoelhando-se, com os dedos frios e um vazio no estômago, ele fechou os olhos sem vida do sujeito sob a chuva.
Acamparam naquela noite, para satisfação dos homens. Foram escavadas fogueiras de acampamento, as carroças de alimentos trazidas e o cheiro de carne assada e pão fresco encheu o ar úmido. William acabara de sentar-se para comer quando Perkins, aquele arauto da desgraça, apareceu se desculpando ao seu lado, com uma mensagem: apresentar-se ao posto de comando do general Howe imediatamente. Pegando um pedaço de pão e um fumegante naco de carne de porco assada para colocar dentro do pão, ele foi, mastigando.
Encontrou os três generais e todos os oficiais de estado-maior reunidos, imersos em uma discussão sobre os resultados do dia. Os generais sentavam-se a uma pequena mesa repleta de despachos e mapas apressadamente desenhados. William encontrou um lugar entre os oficiais de estado-maior, mantendo-se respeitosamente atrás, junto à lona da enorme barraca.
Sir Henry defendia um ataque a Brooklyn Heights, ao amanhecer. - Poderíamos expulsá-los facilmente - Clinton disse, abanando a mão para os despachos. - Eles perderam metade de seus homens, se não mais, e já não eram muitos desde o começo.
- Facilmente, não - disse lorde Cornwallis, franzindo os lábios grossos. - Você os viu lutar. Sim, poderíamos desalojá-los de lá, mas a certo preço. O que acha, sir? - acrescentou, voltando-se respeitosamente para Howe.
Os lábios de Howe desapareceram inteiramente, somente uma linha branca marcando sua existência anterior.
- Não posso me dar ao luxo de outra vitória como a última - retrucou rispidamente. - Ou, se pudesse, não o faria. - Seus olhos abandonaram a mesa e percorreram os oficiais mais jovens de pé junto à parede da barraca. - Perdi todos os meus auxiliares naquela maldita colina em Boston - ele disse, mais rapidamente. - Vinte e oito homens. Todos eles. - Seus olhos demoraram-se em William, o mais novo dos oficiais subalternos, e ele sacudiu a cabeça, como se pensasse consigo mesmo, e virou-se novamente para sir Henry.
- Suspendam a luta - ele disse. Sir Henry não gostou do que ouviu, William pôde notar, mas apenas balançou a cabeça.
- Oferecer-lhes termos de acordo?
- Não - Howe respondeu sucintamente. - Eles perderam quase a metade de seus homens, como você disse. Somente um louco continuaria a lutar. Eles... você, senhor. Tem alguma observação a fazer?
Com um sobressalto, William compreendeu que Howe estava se dirigindo a ele; aqueles olhos redondos penetravam em seu peito como chumbo de caça.
- Eu... - começou, mas parou e empertigou-se. - Sim, senhor. É o general Putnam que está no comando. Lá no riacho. Ele... talvez não seja louco, senhor - acrescentou cuidadosamente - , mas tem a reputação de ser teimoso.
Howe parou, os olhos semicerrados.
- Um homem teimoso - repetiu. - Sim. Eu diria que é.
- Ele era um dos comandantes em Breed's Hill, não era? - objetou lorde Cornwallis. - Os americanos fugiram bem rápido de lá.
- Sim, mas... - William parou de repente, paralisado pelos olhares fixos dos três generais. Howe acenou impacientemente para que ele continuasse.
- Com todo respeito, senhor - ele disse, satisfeito por ver que sua voz não tremia - , eu... ouvi dizer que os americanos só fugiram em Boston depois de esgotar toda a sua munição. Creio... que este não é o caso aqui. E, com relação ao general Putnam, não havia ninguém atrás dele em Breed's Hill.
- E você acha que agora há. - Não era uma pergunta.
- Sim, senhor. - William procurou não olhar explicitamente para a pilha de despachos sobre a mesa de sir William. - Tenho certeza, senhor. Creio que praticamente todos os continentais estão na ilha, senhor. - Tentou não fazer isso parecer uma pergunta; ouvira essa informação de um major de passagem no dia anterior, mas podia não ser verdade. - Se Putnam está no comando aqui...
- Como sabe que é Putnam, tenente? - Clinton interrompeu, lançando-lhe um olhar desconfiado e hostil.
- Cheguei recentemente de uma.... uma expedição de inteligência, senhor, que me levou a atravessar Connecticut. Lá ouvi, de muitas pessoas, que as milícias estavam se reunindo para acompanhar o general Putnam, que deveria se unir às forças do general Washington perto de Nova York. E eu vi um botão em um dos rebeldes mortos perto do riacho esta tarde, senhor, com "PUT" gravado em cima. É como chamam o general Putnam, senhor: "Velho Put".
O general Howe empertigou-se antes que Clinton ou Cornwallis pudessem apartear outra vez.
- Um homem teimoso - ele repetiu. - Bem, talvez ele seja. Contudo... suspender a luta. Ele está numa posição insustentável e deve saber disso. Dar-lhe uma chance de pensar duas vezes, consultar Washington, se quiser. Washington talvez seja um comandante mais sensato. E se pudermos obter a rendição de todo o Exército continental sem mais derramamento de sangue... acho que vale o risco, senhores. Mas não vamos oferecer condições.
O que significava que, se os americanos fossem sensatos, seria uma rendição incondicional. E se não fossem? William ouvira histórias sobre a batalha de Breed's Hill - é bem verdade que eram histórias contadas por americanos e portanto ele as ouvira com reservas. Mas, por esses relatos, os rebeldes lá haviam arrancado os pregos das cercas de suas fortificações - das próprias solas de seus sapatos - e os dispararam contra os ingleses quando a munição acabou. Só recuaram quando ficaram reduzidos a atirar pedras.
- Mas, se Putnam estiver esperando reforços de Washington, ele apenas se sentará e ficará esperando - Clinton disse, franzindo a testa. - E então teremos um caldeirão fervente. Não seria melhor que nós...
- Não foi isso que ele quis dizer - Howe interrompeu. - Foi, Ellesmere? Quando disse que não havia ninguém atrás dele em Breed's Hill?
- Não, senhor - William disse, agradecido. - Eu quis dizer... ele tem algo a proteger. Atrás dele. Não acho que ele esteja esperando que o resto do exército chegue para ajudá-lo. Acho que está dando cobertura à retaguarda dele.
As sobrancelhas curvas de lorde Cornwallis ergueram-se subitamente diante disso. Clinton franziu o cenho para William, que se lembrou tarde demais de que Clinton fora o comandante de campanha na vitória pínica de Breed's Hill e provavelmente era sensível ao assunto Israel Putnam.
- E por que estamos solicitando a opinião de um garoto ainda engatinhando por trás do... O senhor sequer já viu um combate? - ele perguntou a William, que se ruborizou intensamente.
- Eu estaria lutando agora, senhor - ele disse - , se não tivesse sido detido aqui!
Lorde Cornwallis riu e um leve sorriso atravessou o rosto de Howe.
- Vamos nos certificar de que fique adequadamente experiente em guerra, tenente - ele disse, secamente. - Mas não hoje. Capitão Ramsay? - Fez sinal para um dos oficiais, um homem baixo, com ombros muito largos e retos, o qual deu um passo à frente e bateu continência. - Leve Ellesmere e faça com que ele lhe conte os resultados de seu trabalho... de inteligência. Transmita-me qualquer coisa que lhe pareça de interesse. Enquanto isso - voltou-se novamente para seus dois generais - , suspendam as hostilidades até segunda ordem.
William não ouviu mais nenhuma das deliberações do general, sendo conduzido dali pelo capitão Ramsay.
Teria falado demais?, perguntou-se. É bem verdade que o general Howe lhe fez uma pergunta direta; ele teve que responder. Mas apresentar seu trabalho de inteligência de apenas um mês, comparado ao conhecimento combinado de tantos oficiais mais velhos e experientes...
Externou algumas de suas dúvidas ao capitão Ramsay, que parecia um sujeito calado, mas bastante simpático.
- Oh, você não teve escolha senão manifestar-se - Ramsay assegurou-lhe. - Mesmo assim...
William desviou-se rapidamente de uma pilha de excremento de mula a fim de acompanhar o passo de Ramsay.
- Mesmo assim... - repetiu. Ramsay não disse nada por algum tempo, mas liderou o caminho pelo acampamento, através de perfeitos corredores de barracas de lona, acenando de vez em quando para os homens que o chamavam ao redor de uma fogueira.
Finalmente, chegaram à própria barraca de Ramsay e ele segurou a aba da porta para William entrar.
- Já ouviu falar em uma senhora chamada Cassandra? - Ramsay disse finalmente. - Uma espécie de profetisa grega, eu acho. Não muito popular.
O exército dormiu profundamente depois de seus vigorosos esforços, e William também.
- Seu chá, senhor? Ele piscou, desorientado e ainda envolto em sonhos de estar caminhando pelo zoológico particular do duque de Devonshire, de mãos dadas com um orangotango. Mas era o rosto redondo e ansioso do soldado Perkins, e não do orangotango, que o saudava.
- O quê? - disse, tolamente. Perkins parecia flutuar em uma espécie de névoa que não se dissipava por mais que ele piscasse. Quando se sentou para pegar a xícara fumegante, descobriu que a causa disso era que o próprio ar estava permeado de uma pesada neblina.
Todos os sons estavam abafados; apesar de ruídos normais de um acampamento despertando poderem ser ouvidos, soavam distantes, amortecidos. Não foi nenhuma surpresa, portanto, quando ele enfiou a cabeça para fora da tenda alguns minutos mais tarde e viu o chão coberto com uma bruma flutuante proveniente dos pântanos.
Não fazia muita diferença. O exército não ia a lugar algum. Um despacho do quartel-general de Howe tornara oficial a suspensão das hostilidades; não restava nada a fazer, senão esperar que os americanos caíssem em si e se rendessem.
O exército espreguiçava-se, bocejava e procurava distração. William engajara-se em um disputado jogo de dados com os cabos Yarnell e Jeffries quando Perkins surgiu novamente, arfando.
- Cumprimentos do coronel Spencer, senhor, e o senhor deve se apresentar ao general Clinton.
- Ah, é? Para quê? - William perguntou. Perkins pareceu perplexo; não lhe ocorrera perguntar ao mensageiro por quê.
- É que... acho que ele quer vê-lo - disse, no esforço para se mostrar útil.
- Muito obrigado, soldado Perkins - William disse, com um sarcasmo que Perkins não percebeu, radiante de alívio e retirando-se sem ser dispensado.
- Perkins! - ele gritou, e o soldado virou-se, o rosto redondo assustado. - Para que lado?
- O quê? Hã... como, senhor?
- Em que direção fica o quartel-general do general Clinton? - William perguntou com esmerada paciência.
- Oh! O soldado da cavalaria... ele veio... - Perkins girou devagar, como um cata-vento, franzindo a testa em concentração. - De lá! - Apontou. - Pude ver aquele morro atrás dele. - O nevoeiro ainda estava denso junto ao chão, mas os topos das colinas e as árvores altas eram visíveis de vez em quando, e William não teve nenhuma dificuldade em localizar o morro a que Perkins se referia; tinha uma estranha aparência, cheia de protuberâncias.
- Obrigado, Perkins. Dispensado - acrescentou rapidamente, antes que Perkins saísse às pressas outra vez. Observou o soldado desaparecer na massa cambiante de nevoeiro e corpos, depois sacudiu a cabeça e foi passar o comando ao cabo Evans.
Seu cavalo não gostava de nevoeiro. William também não. Dava-lhe uma sensação inquietante, como se alguém estivesse respirando na sua nuca.
Mas aquela era uma cerração do mar: pesada, densa e fria, não sufocante. Ela se rarefazia e se espessava, com uma sensação de movimento. Ele só conseguia ver alguns passos à sua frente e apenas divisava a forma do morro que Perkins indicara, embora o topo aparecesse e desaparecesse como alguma fantástica magia em um conto de fadas.
O que sir Henry podia querer com ele?, perguntava-se. E teria sido somente ele a ser chamado ou seria uma reunião convocada para informar os oficiais de alguma mudança de estratégia?
Talvez os homens de Putnam tivessem se rendido. Deveriam, sem dúvida; não tinham a menor chance de vitória nas atuais circunstâncias, e isso devia ser óbvio para eles.
Mas imaginava que Putnam precisaria, talvez, reunir-se com Washington. Durante a batalha da velha casa de fazenda de pedras, ele vira um pequeno grupo de homens a cavalo no alto de uma colina distante, uma bandeira desconhecida tremulando entre eles; alguém na ocasião apontara e dissera: "Aquele lá é ele, Washington. Pena que a gente não tenha uma boca-de-fogo montada para dar-lhe uma lição!" E riu.
O bom-senso dizia que eles se renderiam. Mas ele sentia uma sensação inquietante que nada tinha a ver com o nevoeiro. Durante o mês que passara na estrada, tivera oportunidade de ouvir muitos americanos. A maioria também se sentia inquieta, não querendo um conflito com a Inglaterra, particularmente não querendo estar perto de nenhum conflito armado - uma conclusão muito sensata. Mas aqueles que haviam optado pela revolta... estavam realmente muito decididos.
Talvez Ramsay tivesse transmitido parte disso aos generais; ele não parecera nem um pouco impressionado com nenhuma das informações de William, muito menos com suas opiniões, mas talvez...
O cavalo tropeçou e ele inclinou-se para o lado em sua sela, acidentalmente puxando as rédeas. O cavalo, irritado, girou a cabeça e mordeu-o, os grandes dentes arranhando sua bota.
- Desgraçado! - Açoitou o focinho do cavalo com as pontas das rédeas e puxou a cabeça do animal com força, até que os olhos revirados e o lábio torcido estivessem quase em seu colo. Em seguida, tendo provado seu ponto de vista, soltou lentamente a pressão. O cavalo bufou e sacudiu a crina violentamente, mas retomou o caminho sem maiores discussões.
Ele parecia estar cavalgando há algum tempo. Mas o tempo, assim como a distância, eram enganadores na névoa. Ergueu os olhos para o morro que era seu objetivo, descobrindo que ele havia desaparecido outra vez. Bem, certamente voltaria a aparecer.
Só que não voltou. O nevoeiro continuava a se mover à sua volta e ele ouvia os pingos de orvalho que caíam das folhas das árvores que pareciam surgir de repente da névoa e igualmente depressa desaparecer outra vez. Mas o morro continuava obstinadamente invisível.
Ocorreu-lhe que fazia algum tempo que não ouvia mais o barulho dos homens.
Deveria ouvir. Se estivesse se aproximando do quartel-general de Clinton, não só estaria ouvindo todos os sons normais do acampamento, como deveria ter encontrado muitos homens, cavalos, fogueiras, carroças, barracas...
Não havia nenhum ruído a seu redor, salvo o barulho de água corrente. Ele havia se afastado do acampamento.
- Maldito Perkins - disse, à meia-voz. Parou um instante e verificou sua pistola, cheirando a pólvora na caçoleta; adquiria um cheiro diferente quando ficava úmida. Ainda está boa, pensou; tinha um cheiro forte e pinicante, não o cheiro de ovo podre de enxofre que a pólvora molhada possuía.
Manteve a pistola na mão, apesar de até o momento não ter visto nada ameaçador. Mas a neblina estava densa demais para se ver mais do que alguns passos à frente; alguém podia surgir repentinamente e ele teria que decidir no mesmo instante se deveria atirar ou não.
Tudo estava silencioso; sua própria artilharia estava silenciosa; não se ouvia nenhum disparo aleatório de mosquete como no dia anterior. O inimigo se retirava; não havia dúvida a respeito. Mas, caso ele se deparasse com um continental extraviado, perdido no nevoeiro como ele próprio, deveria atirar? O pensamento fez suas mãos suarem, mas achou que deveria; o continental provavelmente não hesitaria em atirar nele, assim que visse o uniforme vermelho.
Estava mais preocupado com a humilhação de ser acertado por suas próprias tropas do que com a real perspectiva de morte, mas tampouco estava totalmente indiferente a esse risco.
Na verdade, a maldita neblina havia se tornado ainda mais densa. Procurou em vão pelo sol, para lhe dar alguma noção de direção, mas o céu estava invisível.
Tentou reprimir o pequeno estremecimento de pânico na base de sua espinha. Certo, havia 34.000 tropas britânicas naquela maldita ilha; ele devia estar no alcance de um tiro de pistola de muitos deles no momento. E você só precisa estar no alcance de um único tiro de um americano, lembrou a si mesmo, abrindo caminho com raiva pela vegetação de lanços.
Ouviu o farfalhar de folhas e o estalido de galhos perto de onde estava; havia alguém no bosque, sem dúvida. Mas quem?
As tropas britânicas não estariam se deslocando neste nevoeiro, isso era um fato. Maldito Perkins! Portanto, se ouvisse movimento, como o de um grupo de homens, pararia e se esconderia. De outra forma... tudo que podia esperar fazer era se deparar com um corpo de tropas ou ouvir alguma coisa inconfundivelmente de natureza militar - gritos de ordens, talvez...
Continuou cavalgando devagar por algum tempo e finalmente guardou a pistola, achando seu peso cansativo. Santo Deus, há quanto tempo estava fora? Uma hora? Duas? Deveria dar meia-volta? Mas não tinha como saber qual a direção certa. Podia estar andando em círculos; o terreno inteiro parecia o mesmo, uma mancha cinzenta de árvores, rochas e capim. Ontem, passara cada minuto em alerta máximo, pronto para o ataque. Hoje, seu entusiasmo para lutar havia diminuído significativamente.
Alguém surgiu à sua frente e o cavalo recuou, tão abruptamente que William teve apenas uma vaga impressão do homem. No entanto, foi suficiente para saber que ele não estava usando uniforme inglês. Ele teria sacado sua pistola, se as duas mãos não estivessem ocupadas em controlar o cavalo.
O cavalo, cedendo à histeria, saltava loucamente em círculos, chacoalhando todos os ossos de William a cada aterrissagem. O ambiente à sua volta girava em uma mancha cinza e verde, mas ele tinha uma certa noção de vozes, apupando no que poderia tanto ser zombaria quando encorajamento.
Depois do que lhe pareceu um século, mas que não deveria ter ultrapassado mais do que um minuto, William conseguiu fazer a maldita criatura parar, arfando e bufando, ainda lançando a cabeça para os lados, os brancos dos olhos ressaltados, brilhando de suor.
- Seu desgraçado filho da mãe! - William exclamou, puxando a cabeça do animal para o lado. A respiração do cavalo penetrou, úmida e quente, através da camurça de suas calças e seus flancos erguiam-se sob ele.
- Não é o cavalo de melhor temperamento que já conheci - a voz de alguém concordou e sua mão ergueu-se, segurando a brida. - Mas parece bem saudável.
William avistou de relance um homem com roupas de caça, forte e de tez escura - e então alguém o agarrou pela cintura, por trás, e o arremessou para fora do cavalo.
Ele bateu em cheio de costas no chão, perdendo o fôlego, mas tentou valentemente pegar sua pistola. Um joelho pressionou seu peito e uma enorme mão arrancou-lhe a arma. Um rosto barbado riu acima dele.
- Não muito sociável - o homem disse com ar de reprovação. - Pensei que todos vocês, ingleses, fossem civilizados.
- Se você o deixar levantar-se e pegá-lo, Harry, imagino que ele o tornaria bem civilizado. - Este era outro homem, mais baixo e de compleição esbelta, com uma voz suave e educada, como a de um professor, que espreitou por cima do ombro do homem ajoelhado no peito de William. - Mas você poderia deixá-lo respirar, imagino.
A pressão no peito de William relaxou e ele conseguiu fazer entrar um pouco de ar em seus pulmões. Este logo foi expelido outra vez quando o sujeito que o prendera no chão deu-lhe um soco no estômago. Mãos prontamente começaram a esvaziar seus bolsos e seu gorjal foi rispidamente arrancado pela cabeça, ralando dolorosamente a base de seu nariz. Alguém desafivelou seu cinto, habilmente removendo-o com um assobio de satisfação diante do equipamento preso a ele.
- Muito bom - disse o segundo homem, aprovando. Abaixou os olhos para William, estendido no chão e arfando como um peixe fora d'água. - Muito obrigado, senhor. Ficamos muito agradecidos. Tudo bem, Allan? - gritou, virando-se para o homem que segurava o cavalo.
- Sim, já o peguei - disse uma voz escocesa anasalada. - Vamos cair fora! Os homens se afastaram e, por um instante, William achou que tinham ido embora. Então, a mão pesada de alguém agarrou seu ombro e o virou. Ele conseguiu se erguer sobre os joelhos por pura força de vontade e a mesma mão agarrou seu rabo de cavalo e puxou sua cabeça para trás com um safanão, expondo sua garganta. Ele vislumbrou o brilho de uma faca e o largo sorriso do sujeito, mas não teve fôlego, nem tempo para preces ou imprecações.
A faca desceu com toda a força e ele sentiu um puxão na nuca que fez seus olhos lacrimejarem. O homem resmungou, insatisfeito, e golpeou mais duas vezes, afastando-se triunfante finalmente, o rabo de cavalo de William erguido na mão enorme.
- Suvenir - ele disse a William, rindo, e girando nos calcanhares partiu atrás de seus amigos. O relincho do cavalo chegou até William através do nevoeiro, zombando dele.
Quisera ardentemente ter conseguido matar ao menos um deles. Mas eles o dominaram com a facilidade de uma criança, depenaram-no como se fosse um ganso e largaram-no deitado no chão como um maldito imbecil! Sua raiva era tão avassaladora que precisou parar e esmurrar o tronco de uma árvore. A dor deixou-o arquejante, ainda furioso, mas sem fôlego.
Prendeu a mão ferida entre as coxas, sibilando entre dentes até a dor arrefecer. A sensação de choque misturava-se à raiva; sentia-se mais desorientado do que nunca, a cabeça girando. Com o peito arfando, levou a mão livre à parte de trás da cabeça, apalpando o toco eriçado deixado ali - e tomado de nova onda de raiva, chutou a árvore com toda a força.
Deu voltas em círculo, mancando, praguejando, finalmente desmoronando em uma rocha e colocando a cabeça entre os joelhos, arquejando.
Gradualmente, sua respiração se acalmou e sua capacidade de pensar racionalmente começou a voltar.
Muito bem. Continuava perdido na floresta de Long Island, só que agora sem cavalo, comida nem armas. Nem cabelo. Isso o fez sentar-se direito, os punhos cerrados, e ele tentou dominar a fúria, com alguma dificuldade. Não tinha tempo para ficar com raiva agora. Se algum dia pusesse os olhos novamente em Harry, Allan ou no homenzinho de voz educada... bem, haveria bastante tempo para isso quando acontecesse.
Por ora, o importante era localizar alguma parte do exército. Seu impulso era desertar ali mesmo, pegar um navio para a França e nunca mais voltar, deixando que o exército presumisse que ele fora assassinado. Mas não podia fazer isso por uma série de razões, inclusive seu pai - que provavelmente preferiria que ele tivesse realmente sido morto a ter fugido covardemente.
Não tinha remédio. Levantou-se resignadamente, tentando se sentir grato pelo fato de os bandidos terem deixado seu casaco. O nevoeiro começava a se dispersar um pouco aqui e ali, mas ainda cobria o chão, frio e úmido. Não que isso o incomodasse; seu próprio sangue ainda fervia.
Olhou furiosamente ao redor, para as formas imprecisas de pedras e árvores. Pareciam exatamente iguais às malditas pedras e árvores que encontrara ao longo deste dia funesto.
- Muito bem - disse em voz alta, erguendo um dedo no ar e virando-se aos poucos. - Uni duni tê, salamê minguê... oh, para o inferno com tudo isso.
Mancando ligeiramente, partiu. Não sabia para onde estava indo, mas tinha que se mexer, ou explodiria.
Distraiu-se por algum tempo repassando o recente encontro, com visões gratificantes de si mesmo agarrando o homem gordo chamado Harry e torcendo seu nariz até transformá-lo em uma polpa sangrenta, antes de esfacelar sua cabeça em uma pedra. Tomando-lhe a faca e golpeando aquele miserável arrogante... arrancando seus pulmões... havia um costume entre as tribos bárbaras alemãs chamado "águia de sangue" que consistia em cortar as costas de um homem e puxar seus pulmões para fora, de modo que batessem como asas enquanto ele morria...
Aos poucos, sentiu-se mais calmo, simplesmente porque era impossível manter tal nível de fúria.
Seu pé estava melhor; os nós dos dedos de sua mão estavam esfolados, mas não latejavam muito, e suas fantasias de vingança começaram a lhe parecer ligeiramente absurdas. Seria assim a fúria da batalha? Perguntou-se. Você queria não apenas atirar e apunhalar porque era seu dever matar, mas você realmente gostava de fazer isso? Desejava isso como se deseja uma mulher? E se sentia um idiota depois?
Ele refletira sobre matar em uma batalha. Não o tempo todo, mas de vez em quando. Fizera um grande esforço para visualizar a cena quando decidira servir o exército. E realmente percebera que também poderia haver remorso no ato.
Seu pai lhe contara, abertamente e sem nenhuma tentativa de se justificar, sobre as circunstâncias em que ele fizera sua primeira vítima. Não durante uma batalha, mas depois. A execução à queima-roupa de um escocês, ferido e deixado no campo de Culloden.
- Sob ordens - seu pai dissera. - Nenhuma clemência deveria ser dada; eram nossas ordens escritas, assinadas por Cumberland. - Os olhos de seu pai estavam fixos na sua estante de livros durante o relato, mas nesse ponto ele olhara diretamente para William.
- Ordens - ele repetira. - Você segue ordens, é claro; você tem que seguir. Mas haverá ocasiões em que não terá nenhuma ordem para seguir ou em que se verá em uma situação que mudou repentinamente. E haverá ocasiões, haverá ocasiões, William, em que sua própria honra dita que você não pode seguir uma ordem. Em tais circunstâncias, você tem que seguir seu próprio discernimento e estar preparado para viver com as consequências.
William balançara a cabeça, sério. Acabara de trazer seus papéis de alistamento para seu pai examinar, a assinatura de lorde John sendo necessária por ser seu tutor. Mas ele havia considerado a assinatura uma mera formalidade; não esperava nem uma confissão, nem um sermão - se isso é o que era.
- Eu não deveria ter feito isso - seu pai dissera abruptamente. - Não devia ter atirado nele.
- Mas... suas ordens...
- Não me afetavam, não diretamente. Eu ainda não tinha patente; eu acompanhara meu irmão na campanha, mas ainda não era um soldado; eu não estava sob a autoridade do exército. Eu poderia ter me recusado.
- Se tivesse, outra pessoa não teria atirado nele? - William perguntou de forma prática.
Seu pai sorriu, mas sem humor.
- Sim, teria. Mas o problema não é esse. E é verdade que nunca me ocorreu que eu tivesse escolha na questão, mas este é o problema. A gente sempre tem escolha, William. Lembre-se disso, sim?
Sem esperar resposta, ele inclinara-se para frente, tirara uma pena da jarra azul e branca de porcelana chinesa sobre a sua mesa e abrira o tinteiro de cristal.
- Tem certeza? - perguntara, olhando gravemente para William, e diante do sinal de confirmação de William assinou seu nome com um floreio. Depois, erguera os olhos e sorrira. - Tenho orgulho de você, William - disse, serenamente. - Sempre terei.
William suspirou. Não duvidava que seu pai sempre o amaria, mas quanto a deixá-lo orgulhoso... não era provável que esta expedição em particular o cobrisse de glórias. Teria sorte de voltar às suas próprias tropas antes que alguém notasse quanto tempo ele ficara fora e desse o alarme. Deus, que humilhação, perder-se e ser roubado, como seu primeiro ato de destaque!
Ainda assim, melhor do que ter como seu primeiro ato de destaque ser morto por bandidos.
Continuou a avançar cautelosamente pela floresta imersa em nevoeiro. O terreno não era ruim, embora houvesse poças, onde a chuva se acumulara. Uma vez, ouviu o estrépito de tiros de mosquete e correu em sua direção, mas o barulho parou antes que ele pudesse avistar quem andara atirando.
Continuou se arrastando penosamente, perguntando-se quanto tempo deveria levar para atravessar toda a maldita ilha a pé e se já estava perto de ter feito isso. O terreno inclinara-se acentuadamente; ele estava subindo agora e, de fato, em determinado momento ele emergiu em um pequeno promontório rochoso e teve uma breve visão do terreno embaixo - completamente encoberto por um nevoeiro cinzento, movendo-se em redemoinhos. A visão lhe deu vertigem, obrigando-o a sentar-se em uma pedra por alguns instantes, com os olhos fechados, antes de continuar.
Por duas vezes, ele ouviu o som de homens e cavalos, mas havia algo sutilmente errado naquele som; as vozes não tinham os ritmos do exército, e ele virou-se, afastando-se lenta e cautelosamente na direção contrária.
Notou uma mudança abrupta no terreno, que se tornou uma espécie de cerrado, repleto de árvores raquíticas projetando-se de um solo de cor clara que rangia sob suas botas. Então, ouviu a água - ondas batendo em uma praia. O mar! Bem, graças a Deus, pensou, e apressou o passo na direção do som.
Entretanto, ao avançar na direção das ondas, repentinamente percebeu outros sons.
Barcos. O ranger dos cascos - mais de um - no cascalho, o ruído de forquetas, barulho na água. E vozes. Vozes abafadas, mas agitadas. Maldição! Agachou-se sob o tronco de um pinheiro-anão, esperando por uma fenda na névoa flutuante.
Um movimento repentino lançou-o para o lado, a mão buscando a pistola. Ele mal se lembrou de que não tinha mais a pistola, antes de perceber que seu adversário era uma enorme garça azul, que o fitou com um olhar fixo e amarelo antes de se lançar no ar com um alarido de indignação. Um grito de alarme elevou-se das moitas, a não mais de três metros de distância, juntamente com um estrondo de mosquete, e a garça explodiu em uma chuva de penas, diretamente sobre sua cabeça. Sentiu pingos do sangue da ave, muito mais quente do que o suor frio em seu rosto, e sentou-se abruptamente, pontos negros de tontura diante de seus olhos.
Não ousava se mover, muito menos gritar. Havia um sussurro de vozes no meio dos arbustos, mas não alto o suficiente para que ele pudesse entender alguma palavra. Entretanto, após alguns instantes, ouviu um ruge-ruge furtivo que gradualmente se afastou. Fazendo o menor barulho possível, girou sobre as mãos e os joelhos e engatinhou por certa distância na direção oposta, até achar que já podia ficar de pé outra vez.
Achou que ainda ouvia vozes. Aproximou-se, rastejando devagar, o coração batendo com força. Sentiu cheiro de tabaco e parou.
Entretanto, nada se movia perto dele - ainda podia ouvir as vozes, mas estavam a uma boa distância. Farejou o ar, cautelosamente, mas o cheiro de tabaco desaparecera; talvez estivesse imaginando coisas. Continuou avançando, na direção dos sons.
Podia ouvi-los claramente agora. Vozes baixas, urgentes, o chocalhar de forquetas e o chapinhar de pés na água. A movimentação e o murmúrio de homens confundindo-se - quase - com os sussurros do mar e da vegetação rasteira. Lançou um último olhar desesperado para o céu, mas o sol continuava invisível. Ele tinha que estar no lado oeste da ilha; tinha certeza disso. Quase. E se estivesse...
Se estivesse, os sons que ouvia tinham que ser de tropas americanas, fugindo da ilha em direção a Manhattan.
- Não se mova. - O sussurro atrás dele coincidiu exatamente com a pressão do cano de uma arma, enfiado com tanta força em seu rim que o paralisou onde estava. A pressão cedeu por um instante e retornou, com uma força que turvou seus olhos. Emitiu um som gutural e arqueou as costas, mas antes que pudesse falar alguém com mãos calejadas o agarrara pelos pulsos e puxara-os violentamente para trás.
- Não é preciso - disse a voz grave, rouca e ranzinza. - Afaste-se e eu dou um tiro nele.
- Não - disse outra voz, igualmente grave, porém menos rabugenta. - É só um garoto. E bonito, ainda por cima. - Uma das mãos calejadas acariciou seu rosto e ele enrijeceu-se, mas quem quer que fosse já havia amarrado suas mãos com força.
- E, se pretendesse atirar nele, já o teria feito, irmã - a voz acrescentou. - Vire-se, garoto.
Devagar, ele se virou, verificando que havia sido capturado por uma dupla de mulheres velhas, baixas e atarracadas como ogros. Uma delas, a que empunhava a arma, fumava um cachimbo; fora desse tabaco que ele sentira o cheiro. Vendo o choque e a repulsa em suas feições, ela levantou o canto da boca enrugada enquanto segurava com firmeza a haste do cachimbo com os tocos de dentes manchados de marrom.
- Ser bonito é fazer coisas bonitas - ela citou o provérbio, examinando-o de cima a baixo. - Ainda assim, não precisa desperdiçar munição.
- Madame - ele disse, recompondo-se e tentando mostrar-se sedutor. - Acredito que estão enganadas a meu respeito. Sou um soldado do rei e...
As duas desataram a rir, rangendo como um par de dobradiças enferrujadas.
- Jamais teria imaginado - a dona do cachimbo falou, rindo ao redor da haste de seu cachimbo. - Achei que era um espantalho!
- Cale a boca, menino - sua irmã interrompeu sua nova tentativa de falar. - Nós não vamos machucar você, desde que fique quieto e calado. - Observou-o, avaliando os danos.
- Esteve na guerra, hein? - ela disse, não sem compaixão. Sem esperar por uma resposta, empurrou-o para cima de uma pedra, coberta de crostas de mexilhões e musgos gotejantes, o que o fez deduzir que estava bem perto da praia.
Não disse nada. Não por medo das mulheres, mas porque não havia nada a dizer.
Permaneceu sentado, ouvindo os ruídos do êxodo. Não fazia ideia de quantos homens poderiam estar envolvidos, já que não tinha noção de quanto tempo já durava aquela operação. Nada de útil era dito; havia apenas a conversa entreouvida de homens trabalhando, ofegantes, o murmúrio de homens esperando, aqui e ali o tipo de risada abafada que evidencia nervosismo.
A névoa começava a se dissipar de cima da água. Podia vê-los agora - a menos de cem metros de distância, uma pequena frota de barcos a remo, botes, aqui e ali um barco de pesca, movendo-se devagar de um lado ao outro pela água lisa como um espelho - e um grupo rapidamente minguante de homens na praia, as mãos nas armas, olhando continuamente por cima do ombro, atentos a qualquer indício de perseguição.
Não sabiam de nada, refletiu amargamente. No momento, não tinha nenhuma preocupação com seu futuro; a humilhação de ser testemunha impotente enquanto todo o exército americano fugia sob seu nariz - além da ideia de ser obrigado a retornar e relatar esta ocorrência ao general Howe - era tão exasperante que ele não se importava se as duas velhas pretendessem cozinhá-lo e devorá-lo.
Concentrado como estava na cena na praia, não lhe ocorreu imediatamente que, se ele podia ver os americanos, ele próprio era visível a eles. Na realidade, os continentais e homens das milícias estavam tão preocupados com sua retirada que nenhum deles notou sua presença, até que um dos homens afastou-se do agrupamento em retirada, parecendo esquadrinhar a região mais elevada da praia em busca de alguma coisa.
O sujeito retesou-se subitamente, com um olhar de relance por cima do ombro para os seus companheiros alheios à situação e começou a atravessar com passos decididos a faixa de seixos da praia, os olhos fixos em William.
- O que é isto, mamãe? - ele perguntou. Vestia o uniforme de um oficial do Exército Continental, de constituição robusta e atarracada, muito semelhante à das duas mulheres, porém bem maior, e, embora seu rosto estivesse aparentemente calmo, havia especulações se sucedendo por trás dos olhos injetados.
- Andei pescando - disse a fumante de cachimbo. - Peguei este peixinho vermelho, mas acho que vou devolvê-lo.
- Ah, é? Talvez ainda não. William enrijecera-se com o aparecimento do sujeito e olhou fixamente para ele, mantendo a própria expressão o mais soturna possível.
O sujeito olhou para a névoa esfarrapando-se por trás de William.
- Há outros com você, não é, garoto? William permaneceu em silêncio. O sujeito suspirou, lançou o punho cerrado para trás e desfechou um soco no estômago de William. Ele dobrou-se ao meio, caiu sobre a pedra e ficou estendido, vomitando na areia. O homem agarrou-o pela gola e levantou-o, como se não pesasse nada.
- Responda-me, rapaz. Não tenho muito tempo e você não vai querer que eu me apresse em minhas perguntas. - Falou suavemente, mas tocou a faca em seu cinto.
William limpou a boca no ombro da melhor maneira que pode e virou-se para o homem, os olhos em brasa. Está bem, pensou, e sentiu uma certa calma abater-se sobre ele. Se é aqui que eu vou morrer, ao menos morrerei por alguma coisa. O pensamento era quase um alívio.
A irmã da fumante de cachimbo, entretanto, pôs fim ao drama cutucando seu interrogador nas costelas com o mosquete.
- Se houvesse mais, a mana e eu já os teríamos ouvido há muito tempo - ela disse, com certo desprezo. - Os soldados não são uma gente silenciosa.
- Isso é verdade - a dona do cachimbo concordou, removendo o cachimbo da boca o tempo suficiente para cuspir. - Este aí está só perdido, dá pra ver. Também dá pra ver que ele não vai falar com você. - Ela riu para William com familiaridade, exibindo um único canino amarelo remanescente. - Prefere morrer do que falar, não é, rapaz?
William assentiu com um rígido sinal da cabeça e as mulheres deram risadinhas. Não havia outra palavra para isso: deram risadinhas dele.
- Vá andando - a tia disse ao sujeito, abanando a mão para a praia atrás dele. - Eles vão embora e vão largar você aqui.
O homem não olhou para ela - não tirava os olhos de William. Após um instante, entretanto, balançou ligeiramente a cabeça e girou nos calcanhares.
William sentiu uma das mulheres atrás dele; algo pontudo tocou seu pulso e a corda com que o haviam amarrado soltou-se. Teve vontade de esfregar os pulsos, mas não o fez.
- Vá, garoto - a fumante de cachimbo disse, quase amavelmente. - Antes que alguém mais o veja e comece a ter ideias.
Ele foi embora. No ponto mais alto da praia, ele parou e olhou para trás. As mulheres haviam desaparecido, mas o sujeito estava sentado na popa de um barco a remo que se afastava rapidamente da praia, agora quase vazia. O homem olhava fixamente para ele.
William virou as costas. O sol finalmente era visível, um pálido círculo cor de laranja, ardendo através da névoa. Descia o céu agora, começo de tarde. Ele virou-se para o interior e partiu na direção sudoeste, mas sentiu olhos em suas costas durante muito tempo depois que a praia ficara para trás, fora do alcance da vista.
Seu estômago estava dolorido e o único pensamento em sua cabeça era o que o capitão Ramsay lhe dissera. Já ouviu falar em uma senhora chamada Cassandra?
UM FUTURO INCERTO
Lallybroch Inverness-shire, Escócia Setembro, 1980
Nem todas as cartas estavam datadas, mas algumas sim. Bri manuseou escrupulosamente a meia dúzia de cima e, com a sensação de estar parada no alto de uma montanha-russa, escolheu uma com a data 2 de março de 1777 escrita na borda.
- Acho que esta é a seguinte. - Mal conseguia respirar. - É... fina. Breve. Era, não mais do que uma página e meia, mas a razão de sua brevidade era evidente; seu pai a redigira toda. Sua caligrafia determinada, desengonçada, deu um aperto em seu coração.
- Nunca permitiremos que um professor tente fazer Jemmy escrever com a mão direita - disse furiosamente a Roger. - Nunca!
- Sim - ele disse, surpreso e achando graça em sua explosão. - Ou esquerda, se você quiser.
2 de março, Anno Domini 1777
Fraser's Ridge, colônia da Carolina do Norte
Minha querida filha,
Estamos nos preparando agora para nos mudarmos para a Escócia. Não para sempre, nem mesmo por muito tempo. Minha vida - nossas vidas - está aqui na América. E com toda a honestidade eu preferia serferroado até à morte por marimbondos a colocar o pé a bordo de outro navio; tento não ficar pensando no assunto. Porém, duas preocupações importantes me levam a tomar esta decisão.
Se eu não tivesse a dádiva do conhecimento que você, sua mãe e Roger Mac me deram, eu provavelmente pensaria - como a maioria das pessoas na colônia de fato pensa - que o Congresso Continental não vai durar nem mais seis meses e o exército de Washington menos ainda. Eu mesmo conversei com um homem de Cross Creek, que foi dispensado (honrosamente) do Exército Continental por causa de um ferimento inflamado no braço - sua mãe, é claro, tratou dele; ele gritava muito e eu fui convocado a me sentar em cima dele - e ele me disse que Washington não tem mais do que alguns milhares de soldados regulares, todos muito pobres em equipamentos, roupas e armas, e a todos é devido o pagamento, que é provável que nem recebam.
A maioria de seus homens é de membros de milícias, alistados sob contratos de curta duração de dois ou três meses, e já se dispersando, tendo que voltar para suas casas para o plantio.
Mas ofato é que eu sei. Ao mesmo tempo, não posso ter certeza de como o que eu sei irá acontecer. Deverei, de alguma forma,fazer parte disso? Se eu me retrair, isso de alguma forma prejudicará ou impedirá o sucesso de nossos desejos? Muitas vezes gostaria de poder discutir essas questões com seu marido, embora sendo ele presbiteriano, creio que as acharia ainda mais perturbadoras do que eu. E no final das contas isso não tem importância. Sou aquilo que Deus me fez e devo lidar com a época em que Ele me colocou.
Embora eu ainda não tenha perdido as faculdades da visão e da audição, nem mesmo o controle dos meus intestinos, já não sou jovem. Tenho uma espada e um rifle, e posso usar ambos - mas também tenho uma grâfica, e posso usá-la com um efeito muito maior; percebo muito bem que se pode brandir a espada ou o mosquete somente contra um único inimigo de cada vez, enquanto as palavras podem ser usadas contra muitos.
Sua mãe - sem dúvida, contemplando a perspectiva de eu ficar enjoado por várias semanas em sua vizinhança imediata - sugere que eu deva entrar no negócio com Fergus, usando a gráfica do UOignon, em vez de viajar para a Escócia para recuperar a minha própria maquinaria.
Considerei essa hipótese, MAS não posso em sã consciência expor Fergus e sua família ao perigo, fazendo uso de sua grâfica para os propósitos que tenho em mente. A deles é apenas uma de algumas poucas gráficas em operação entre Charleston e Norfolk; ainda que eu fizesse minhas impressões com o maior segredo, em pouco tempo as suspeitas recairiam sobre eles - New Bern é um reduto de legalistas e as origens da minha panfletagem seriam descobertas quase imediatamente.
Além da consideração por Fergus e sua família, creio haver algum benefício em visitar Edimburgo afim de resgatar minha própria gráfica. Eu tinha muitos e diversificados conhecidos lá; alguns podem ter escapado da prisão ou do laço.
A segunda - e mais importante - consideração que me compele a ir à Escócia, entretanto, é seu primo Ian. Há muitos anos, jurei à sua mãe - pela memória de nossa própria mãe - que eu o levaria de volta para casa, para ela, e é o que pretendo fazer, embora o homem que levo de volta a Lallybroch não seja mais o rapaz que saiu de lá. Só Deus sabe como se entenderão, Ian e Lallybroch - e Deus tem um senso de humor muito peculiar. Mas, se ele tem que voltar, agora é a hora.
A neve está derretendo; as calhas gotejam adia inteiro e pela manhã pingentes de gelo estendem-se do telhado até quase o chão. Em algumas semanas, as estradas estarão transitáveis outra vez. Parece estranho pedir para que rezem pela segurança de uma viagem que já terá sido feita - para o bem ou para o mal - há muito tempo quando ouvirem falar dela, mas eu peço, ainda assim. Diga a Roger Mac que eu acho que Deus não se preocupa com o tempo. E dê um beijo nas crianças por mim.
Seu amoroso pai, JF
Roger reclinou-se um pouco para trás, as sobrancelhas levantadas, e olhou para ela.
- A Conexão Francesa, você acha?
- A o quê? - Ela franziu a testa por cima de seu ombro, viu onde seu dedo marcava o texto. - Onde ele fala de seus amigos em Edimburgo?
- Sim. A maior parte de seus conhecidos de Edimburgo não era contrabandista?
- Foi o que mamãe disse. - Daí a referência ao laço. E de onde contrabandeavam a maior parte das coisas?
Seu estômago deu um pequeno salto. - Oh, você está brincando. Acha que ele está planejando se meter com contrabandistas franceses?
- Bem, não contrabandistas, necessariamente; pelo visto, ele conhecia muitos agitadores, ladrões e prostitutas, também. - Roger sorriu ligeiramente, mas logo ficou sério outra vez.
- Mas eu contei a ele tudo que eu sabia sobre a Revolução. Não com muitos detalhes, pois não era minha especialidade. E certamente lhe contei o quanto a França seria importante para os americanos. Só estou pensando... - parou, um pouco constrangido, depois ergueu os olhos para ela - ele não vai para a Escócia para fugir da luta; ele deixa isso bem claro.
- Então, você acha que ele deve estar procurando aliados políticos? - ela perguntou devagar. - Não apenas retomar sua gráfica, deixar Ian em Lallybroch e voltar depressa para a América?
O pensamento lhe deu um pouco de alívio. A ideia de seus pais armando intrigas em Edimburgo e Paris era muito menos assustadora do que suas visões de ambos no meio de explosões e campos de batalha. E seriam ambos, tinha certeza. Onde seu pai fosse, sua mãe iria também.
Roger deu de ombros. - Essa observação casual sobre ele ser como Deus o fez. Sabe o que ele quis dizer com isso?
- Um maldito homem - ela disse brandamente, aproximando-se de Roger e colocando a mão em seu ombro como se quisesse se certificar de que ele não fosse desaparecer repentinamente.
- Ele me disse que era um maldito homem. Que ele poucas vezes escolhera lutar, mas sabia que nascera para isso. - Sim, isso mesmo - Roger disse, com igual suavidade. - Mas ele não é mais o jovem senhor de terras que pegou sua espada e conduziu trinta colonos para uma batalha fadada à derrota, e os levou de volta para casa outra vez. Agora, ele sabe muito mais sobre o que um único homem pode fazer. E acredito que pretenda fazê-lo.
- Eu também acho. - Sentia um nó na garganta, mas tanto de orgulho quanto de temor.
Roger estendeu o braço e colocou a mão sobre a dela, apertando-a.
- Eu me lembro... - ele disse devagar. - Uma coisa que sua mãe disse, ao nos contar sobre... sobre quando ela voltou e se tornou uma médica. Uma coisa que seu... Frank... lhe disse. Algo sobre ser muito inconveniente para as pessoas ao redor dela, mas uma grande bênção ela saber o que estava destinada a ser. Ele tinha razão nisso, eu acho. E Jamie também sabe.
Ela balançou a cabeça, concordando. Talvez não devesse dizer isso, porém não conseguiu mais reprimir as palavras.
- E você sabe? Ele ficou em silêncio por um longo tempo, olhando para as folhas sobre a mesa, mas finalmente sacudiu a cabeça, o movimento tão leve que ela mais sentiu do que viu.
- Eu costumava saber - ele disse serenamente, soltando a mão dela.
Seu primeiro impulso foi dar-lhe um soco bem na nuca; o segundo foi agarrálo pelos ombros, inclinar-se com os olhos a dois centímetros dos dele e dizer - calma, mas claramente: "O que diabos quer dizer com isso?"
Absteve-se de qualquer das duas reações, apenas porque ambas provavelmente iriam levar a uma longa conversa de um tipo completamente inadequado para crianças, e elas estavam no corredor a alguns passos da porta do escritório; podia ouvi-los conversar.
- Está vendo isso? - Jemmy dizia. - Hu-hum. - Gente má veio aqui, há muito tempo, procurando vovô. Ingleses maus. Foram eles que fizeram isso.
A cabeça de Roger virou-se ao perceber o que Jemmy dizia e seus olhos encontraram os de Brianna, com um ligeiro sorriso.
- "Ingueses" maus! - Mandy repetiu docilmente. - Faz eles limpar tudo! Apesar de sua contrariedade, Brianna não pôde deixar de compartilhar o sorriso de Roger, ainda que sentindo um pequeno tremor na boca do estômago, ao se lembrar de seu tio Ian - tão calmo, tão gentil - mostrando-lhe os vergões de sabre no painel de madeira do corredor e dizendo-lhe "Nós o mantemos assim, para mostrar às crianças e lhes dizer "Esses são os ingleses". Havia aço em sua voz e, ao ouvir um eco fraco, absurdamente infantil, dessas palavras na VOZ de Jemmy, ela teve as primeiras dúvidas quanto à sabedoria de manter esta tradição familiar em particular.
- Foi você quem lhe contou sobre isso? - ela perguntou a Roger, enquanto as vozes das crianças se afastavam na direção da cozinha. - Eu não contei.
- Annie lhe contara uma parte da história; achei melhor contar-lhe o resto. - Ergueu as sobrancelhas. - Eu deveria ter dito a ele para ir lhe perguntar?
- Oh. Não. Não - ela repetiu, em dúvida. - Mas... será que deveríamos estar ensinando Jemmy a odiar os ingleses?
Roger sorriu. - "Odiar" pode ser um pouco de exagero. E ele realmente disse ingleses maus. Quem fez isso de fato eram ingleses maus. Além do mais, se ele vai crescer nas Highlands, certamente vai ouvir algumas farpas com relação a sassenachs; ele vai encontrar o equilíbrio ao comparar as lembranças que tem de sua avó. Afinal, seu pai sempre a chamou de Sassenach.
Ele olhou para a carta sobre a mesa, consultou de relance o relógio de parede e levantou-se abruptamente.
- Cristo, estou atrasado. Passarei no banco enquanto estiver na cidade. Precisa de alguma coisa da Farm and Household?
- Sim - ela respondeu laconicamente - , uma nova bomba para o separador do leite.
- Certo - ele disse e, beijando-a apressadamente, saiu, um braço já enfiado no casaco.
Ela abriu a boca para chamá-lo e dizer que estava brincando, mas pensou melhor e fechou-a. A loja Farm and Household era bem capaz de ter uma bomba para um separador de leite. Um prédio grande, incrivelmente apinhado, na periferia de Inverness, a Farm and Household fornecia praticamente tudo de que uma fazenda pudesse precisar, inclusive forcados, baldes de borracha para apagar incêndios, arame maleável para amarrar fardos de feno e máquinas de lavar roupa, assim como louças, potes para conservas e não poucos implementos misteriosos cuja utilidade ela só podia tentar adivinhar.
Enfiou a cabeça no corredor, mas as crianças estavam na cozinha com Annie MacDonald, a jovem que haviam contratado; o som de risadas e o estalo surdo da antiga torradeira - viera com a casa - flutuaram pela velha porta de feltro verde, juntamente com o cheiro tentador de torradas quentes e amanteigadas. O cheiro e as risadas atraíram-na como um ímã e o calor do lar fluiu sobre ela, dourado como mel.
Parou para dobrar a carta, antes de ir se juntar a eles, e a lembrança da última observação de Roger a fez cerrar os lábios.
"Eu costumava saber.
Resfolegando furiosamente, ela enfiou a carta de volta na caixa e saiu para o corredor, sendo imediatamente atraída pela visão de um envelope grande na mesa perto da porta, onde a correspondência diária e o conteúdo dos bolsos de Roger e Jemmy eram descarregados diariamente. Tirou o envelope da pilha de folhetos, pedrinhas, tocos de lápis, elos de corrente de bicicleta e... aquilo seria um rato morto? Era; achatado e seco, mas adornado com um apertado laço corde-rosa. Pegou-o cuidadosamente e, com o envelope agarrado junto ao peito, rumou na direção do chá com torradas.
Para ser franca, pensou, Roger não era o único a guardar suas intenções. A diferença era que ela planejava contar-lhe o que tinha em mente - assim que estivesse resolvido.
DEGELO DE PRIMAVERA
Fraser's Ridge, colônia da Carolina do Norte
Março, 1777
Uma coisa devia ser dita a respeito de incêndios devastadores, refleti. Realmente tornavam muito mais simples fazer as malas. Atualmente, eu possuía um vestido, uma combinação, três anáguas - uma de lã, duas de musselina - , dois pares de meias (eu estava usando um par quando a casa pegou fogo; o outro havia sido deixado sobre um arbusto para secar algumas semanas antes do incêndio e fora descoberto mais tarde, um pouco surrado pelo tempo, mas ainda usável), um xale e um par de sapatos. Jamie arranjara uma capa horrível para mim em algum lugar - eu não sabia onde e não queria perguntar. De lã grossa da cor de lepra, tinha um cheiro como se alguém tivesse morrido dentro dela e só tivesse sido encontrado alguns dias mais tarde. Eu a fervera com sabão de lixívia, mas o fantasma de seu ocupante anterior não desapareceu.
Ainda assim, eu não iria morrer congelada. Meu estojo médico foi igualmente simples de arrumar. Com um suspiro de pesar pelas cinzas do meu belo baú de boticário, com seus instrumentos elegantes e inúmeros frascos, revirei a pilha dos restos salvos dos escombros do meu consultório. O cano denteado do meu microscópio. Três jarras de cerâmica tostadas, uma sem a tampa, uma rachada. Uma lata grande de gordura de ganso misturada com cânfora - agora quase vazia após um inverno inteiro de catarros e tosses. Um punhado de páginas chamuscadas, arrancadas do livro de registros médicos iniciado por Daniel Rawlings e continuado por mim - embora eu tenha ficado mais animada ao descobrir que as folhas resgatadas incluíam uma com a receita especial do dr. Rawlings para prisão de ventre.
Era a única de suas receitas que eu achara eficaz e, apesar de há muito tempo ter gravado a fórmula na memória, tê-la à mão mantinha a sua lembrança viva para mim. Nunca conheci Daniel Rawlings em vida, mas ele fora meu amigo desde o dia em que Jamie me dera sua caixa e o livro de anotações. Dobrei o papel cuidadosamente e o enfiei no bolso.
A maior parte das minhas ervas e remédios compostos havia desaparecido nas chamas, juntamente com as jarras de cerâmica, os frascos de vidro, as largas tigelas em que eu incubava caldo de penicilina e minhas serras cirúrgicas. Eu ainda tinha um bisturi e a lâmina escurecida de uma pequena serra de amputação; o cabo fora destruído pelo fogo, mas Jamie podia fazer um novo para mim.
Os residentes de Ridge foram generosos - tão generosos quanto pessoas que praticamente não tinham nada podiam ser no final de um inverno. Tínhamos comida para a viagem e muitas das mulheres haviam me trazido pequenos itens domésticos e porções de suas ervas medicinais; eu tinha diminutas jarras de lavanda, alecrim, confrei e semente de mostarda, duas preciosas agulhas de aço, um pequeno novelo de fio de seda para usar em suturas e como fio dental (embora eu não tenha mencionado esta última utilidade para as senhoras, que teriam ficado profundamente ofendidas com a ideia) e um estoque bem pequeno de ataduras e gaze para curativos.
No entanto, uma coisa que eu tinha em abundância era álcool. O armazém de milho fora poupado do incêndio, assim como o alambique. Como havia grãos suficientes para os animais e a família, Jamie economicamente transformara o resto em uma bebida bruta, mas muito potente, que levaríamos conosco para trocar por artigos necessários ao longo do caminho. No entanto, um pequeno barril fora separado para meu uso particular; eu pintara cuidadosamente o rótulo Sauerkraut na lateral, para desencorajar qualquer roubo na estrada.
- E se formos emboscados por bandidos analfabetos? - Jamie perguntara, achando graça.
- Pensei nisso também - informei-o, exibindo uma pequena garrafa com rolha de cortiça, cheia de um líquido turvo. - Eau de sauerkraut. Vou despejá-lo sobre o barril assim que avistar qualquer pessoa suspeita.
- Então, acho que é melhor torcer para que não sejam bandidos alemães.
- Você já conheceu algum bandido alemão? - perguntei. Com a exceção de um ou outro bêbado ou espancador de mulher, quase todos os alemães que conhecíamos eram honestos, trabalhadores e virtuosos. Não era de surpreender, visto que a maioria viera para a colônia como parte de um movimento religioso.
- Não como tal - ele admitiu. - Mas lembre-se dos Mueller, hein? E do que fizeram aos seus amigos. Eles não se considerariam bandidos, mas os tuscaroras provavelmente não fizeram essa distinção.
Era bem verdade, e um polegar frio pressionou a base do meu crânio. Os Mueller, vizinhos alemães, tiveram uma filha muito amada e seu filho recémnascido mortos por sarampo, e eles culparam os índios da vizinhança pelo contágio. Enlouquecido de dor, o velho Herr Mueller liderou um grupo de seus filhos e genros para se vingar - arrancando os escalpos dos índios. Minhas vísceras ainda se lembravam do choque de ver os cabelos grisalhos de minha amiga Nayawenne derramarem-se de um feixe sobre o meu colo.
- Meus cabelos estão ficando brancos, você acha? - perguntei subitamente. Ele ergueu as sobrancelhas, mas inclinou-se para frente e examinou o topo da minha cabeça, correndo os dedos delicadamente pelos meus cabelos.
- Provavelmente há um fio em cinquenta que ficou branco. Um em cada vinte e cinco ficou prateado. Por quê?
- Então, imagino que tenho um pouco de tempo. Nayawenne... - Eu não pronunciava seu nome em voz alta há vários anos e encontrei um estranho conforto ao ouvi-lo, como se tivesse evocado seu espírito. - Ela me disse que eu atingiria meus plenos poderes quando meus cabelos ficassem brancos.
- É um pensamento assustador - ele disse, rindo.
- Sem dúvida. Mas, como ainda não aconteceu, suponho que se tropeçarmos em um bando de ladrões de chucrute na estrada, terei que defender meu barril com meu bisturi - eu disse.
Ele me lançou um olhar estranho, mas depois riu e sacudiu a cabeça.
Seu próprio empacotamento era um pouco mais complicado. Ele e o Jovem Ian haviam retirado o ouro do alicerce da casa na noite seguinte ao funeral da sra. Bug - um processo delicado, precedido pela minha providência de colocar uma grande bacia de pão velho encharcado em aguardente de milho, depois chamando "Pooooooor-ca!" a plenos pulmões do começo do caminho da horta.
Um momento de silêncio e logo a porca branca emergiu de seu esconderijo, uma mancha pálida contra as pedras enegrecidas de fumaça do alicerce. Eu sabia exatamente o que ela era, mas a visão daquela forma branca movendo-se rapidamente ainda fazia os cabelos da minha nuca se arrepiarem. Recomeçara a nevar - uma das razões para Jamie decidir agir imediatamente - e ela veio através do redemoinho de grandes e macios flocos de neve com uma velocidade que a fazia parecer o espírito da própria tempestade, conduzindo o vento.
Por um instante, eu achei que ela viria para cima de mim; vi sua cabeça virar-se para mim e ouvi a sonora fungada quando ela sentiu meu cheiro - mas ela também farejara a comida, e mudou de direção. Instantes depois, os sons medonhos de um porco em êxtase flutuaram pelo silêncio da neve, e Jamie e Ian saíram correndo do meio das árvores para começarem seu trabalho.
Levaram mais de duas semanas para remover o ouro; trabalhavam apenas à noite e somente quando nevava ou estava prestes a nevar, para encobrirem seus rastros. Enquanto isso, revezavam-se vigiando as ruínas da casa grande, atentos a qualquer sinal de Arch Bug.
- Acha que ele ainda se importa com o ouro? - eu perguntara a Jamie no meio dessa empreitada, enquanto ele esfregava as mãos a fim de aquecê-las o suficiente para poder segurar a colher. Ele entrara para o café da manhã, congelado e exausto após uma longa noite dando voltas ao redor da casa incendiada para manter o sangue circulando.
- Não lhe resta muita coisa para se importar, não é? - falou suavemente, para não acordar a família Higgins. - Com exceção de Ian.
Estremeci, tanto por pensar no velho Arch, vivendo como um fantasma na floresta, sobrevivendo do calor de seu ódio, quanto por causa do frio que entrara com Jamie. Ele deixara a barba crescer para aquecer seu rosto - todos os homens faziam isso no inverno, nas montanhas - e o gelo brilhava em seu bigode e cobria suas sobrancelhas de cristais de gelo.
- Você parece o próprio Velho Inverno - sussurrei, trazendo-lhe uma tigela de mingau quente.
- É como eu me sinto - respondeu com voz rouca. Passou a tigela por baixo do nariz, inalando o vapor e fechando os olhos em êxtase. - Me passe o uísque, sim?
- Está pretendendo despejá-lo no seu mingau? Já tem sal e manteiga. - Ainda assim, passei-lhe a garrafa guardada na prateleira acima da lareira.
- Não, vou descongelar minha barriga o suficiente para comê-lo. Estou uma pedra de gelo do pescoço para baixo.
Ninguém vira nem sinal de Arch Bug - nem mesmo uma trilha errante na neve - desde seu comparecimento ao funeral. Devia estar enfurnado em algum refúgio, bem aconchegado para passar o inverno. Podia ter ido embora para as aldeias indígenas. Podia estar morto, e de certa forma eu esperava que estivesse, por menos caridosa que a ideia pudesse ser.
Mencionei isso, e Jamie sacudiu a cabeça. O gelo em seus cabelos derretera e a luz do fogo cintilava como brilhantes nas gotículas de água em sua barba.
- Se ele estiver morto e a gente não ficar sabendo, Ian nunca terá um minuto de paz. Quer que ele fique olhando por cima do ombro em seu casamento, com medo de que uma bala atravesse o coração de sua mulher no exato momento do "sim"? Ou que esteja casado e com família, temendo todos os dias deixar a casa e as crianças, com medo do que possa encontrar na volta?
- Estou impressionada com o alcance e a morbidez de sua imaginação, mas você tem razão. Está bem, não espero que ele esteja morto, não até encontrarmos seu corpo.
Mas ninguém encontrou seu corpo e o ouro foi removido, pouco a pouco, para seu novo esconderijo.
Isso demandou um pouco de reflexão e consideráveis discussões particulares entre Jamie e Ian. Não a caverna do uísque. Pouquíssimas pessoas tinham conhecimento desse esconderijo, mas algumas sabiam. Joseph Wemyss, sua filha, Lizzie, e seus dois maridos - eu me espantava de ter chegado ao ponto em que podia pensar em Lizzie e nos Beardsley sem ficar chocada. Todos conheciam o local, por necessidade, e ele teria que ser mostrado a Bobby e Amy Higgins antes de partirmos, já que eles mesmos estariam fazendo uísque em nossa ausência. Eles não haviam contado a Arch Bug o local do esconderijo, mas provavelmente ele sabia.
Jamie foi categórico que ninguém em Ridge deveria sequer ficar sabendo da existência do ouro, muito menos de sua localização.
- Bastaria um boato sobre isso se espalhar e todos aqui estariam correndo perigo - ele dissera. - Você sabe o que aconteceu quando Donner disse ao pessoal dele que tínhamos pedras preciosas aqui.
Eu sabia muito bem. Eu ainda acordava no meio da noite com pesadelos, ouvindo o ruído abafado dos vapores de éter explodindo, ouvindo os estrondos de vidro estilhaçando e madeiras quebrando conforme os invasores saqueavam a casa.
Em alguns desses sonhos, eu corria inutilmente de um lado para o outro, tentando salvar alguém - quem? - , mas sempre me deparava com portas fechadas, paredes intransponíveis, quartos tomados pelas chamas. Em outros, eu ficava presa ao chão, incapaz de mover um único músculo, enquanto as labaredas escalavam as paredes, alimentavam-se vorazmente das roupas de corpos aos meus pés, brotavam pelos cabelos de um cadáver, lambiam minhas saias e envolviam minhas pernas em uma rede flamejante.
Eu ainda sentia uma imensa tristeza - e uma raiva profunda e purificadora - quando olhava para a mancha de fuligem no meio da clareira que um dia fora a minha casa, mas eu sempre tinha que sair da cabana pela manhã depois de um desses sonhos e olhar para esses escombros: andar ao redor das ruínas geladas e sentir o cheiro infectante de cinzas extintas, a fim de sufocar as chamas que ardiam por trás dos meus olhos.
- Sim - eu disse, apertando mais o xale ao redor dos ombros. Estávamos parados juntos à casinhola de refrigeração na fonte, olhando para as ruínas lá embaixo conforme conversávamos, e o frio penetrava em meus ossos. - Então... onde?
- Na Caverna do Espanhol - ele disse, e eu pisquei sem entender.
- Como é? - - Vou lhe mostrar, a nighean - ele disse, rindo para mim. - Quando a neve derreter.
A primavera chegara e o riacho subia. Engrossado pela neve derretida e alimentado por centenas de minúsculos cursos de água que corriam e saltavam pela encosta da montanha, ele rugia pelos meus pés, exuberante, em uma chuva de borrifos. Podia sentir os salpicos no meu rosto e sabia que em poucos minutos estaria molhada até os joelhos, mas não me importava. O verde novo de plantas aquáticas orlava as margens do riacho, algumas arrancadas do solo pela elevação do nível da água e levadas pela corrente, outras se agarrando às suas raízes, as folhas flutuando na correnteza. Tapetes escuros de agrião giravam sob a água, junto à proteção das margens. E verduras frescas eram o que eu queria.
Minha cesta estava parcialmente cheia de brotos de folhagens comestíveis. Um bom maço de agrião novo e macio, crocante e frio da água, iria acabar de compensar a deficiência de vitamina C do inverno. Tirei meus sapatos e meias, e após alguns segundos de hesitação tirei o vestido e o xale também e pendureios no galho de uma árvore. O ar era frio na sombra dos vidoeiros prateados que se dependuravam sobre o riacho naquele ponto e eu estremeci um pouco, mas ignorei a sensação, prendendo minha combinação para cima antes de vadear para dentro do rio.
Esse frio era difícil de ignorar. Arquejei e quase deixei meu cesto cair, mas consegui encontrar apoio para os pés entre as pedras escorregadias e avancei na direção do tentador tapete verde-escuro mais próximo. Em poucos segundos, minhas pernas já estavam dormentes e eu perdera qualquer sensação de frio no afã de um caçador de comida faminto por salada.
Uma boa parte de nossa comida armazenada fora salva do incêndio, já que era guardada nas construções externas: a casinhola de refrigeração, o armazém de milho e o barracão de defumação. O porão de tubérculos, entretanto, fora destruído, e com ele não só as cenouras, cebolas, alho e batatas, mas a maior parte do meu estoque cuidadosamente escolhido de maçãs secas e batatas doces, bem como os grandes cachos pendurados de uvas-passas, tudo destinado a nos manter livres dos estragos do escorbuto. As ervas, é claro, viraram fumaça, juntamente com o resto do meu consultório. É bem verdade que uma grande quantidade de abóboras escapou, tendo sido empilhadas no celeiro, mas depois de alguns meses fica-se enjoado de torta de abóbora e succotash, uma sopa indígena de abóbora - bem, depois de alguns dias, no meu caso.
Não pela primeira vez, senti falta das habilidades culinárias da sra. Bug, embora, é claro, eu sentisse falta dela por ela mesma. Amy McCallum Higgins fora criada na cabana de um pequeno lavrador nas Highlands da Escócia e era, segundo ela própria, "uma boa cozinheira simples". Essencialmente, isso significava que sabia assar bolachas, cozinhar mingau e fritar peixe simultaneamente, sem queimar nenhum deles. Não era pouca coisa, mas um pouco monótono, em termos de dieta.
Minha própria pièce de résistance era ensopado - o qual, na falta de cebolas, alho, cenouras e batatas, degenerara em uma espécie de sopa de carne de veado ou peru cozida com milho pilado grosso, cevada e possivelmente nacos de pão dormido. Ian, surpreendentemente, se mostrara um cozinheiro razoável; o succotash e a torta de abóbora eram suas contribuições para o cardápio comum. Eu imaginei quem teria lhe ensinado a prepará-los, mas achei melhor não perguntar.
Até agora, ninguém havia passado fome, nem perdido nenhum dente, porém em meados de março eu estava disposta a vadear em uma correnteza de água gelada até o pescoço a fim de obter algo verde comestível.
Ian continuara, graças a Deus, a tocar sua vida. E após uma semana mais ou menos deixara de agir de modo tão traumatizado, recuperando um pouco de seu jeito de sempre. Mas eu notava os olhos de Jamie seguirem-no de vez em quando, e Rollo passara a dormir com a cabeça no peito de Ian, um novo hábito. Eu me perguntava se ele realmente pressentia a dor no coração de Ian ou se era simplesmente uma reação às condições tão confinadas para se dormir na cabana.
Estiquei as costas, ouvindo minhas vértebras estalarem. Agora que o derretimento da neve começara, mal podia esperar por nossa partida. Eu iria sentir falta de Ridge e de todos que moravam ali - bem, de quase todos. Provavelmente não muito de Hiram Crombie. Nem dos Chisholms, nem... encurtei a lista antes que se tornasse pouco caridosa.
- Por outro lado - disse com firmeza a mim mesma - , pense em camas. É bem verdade que passaríamos muitas noites na estrada, dormindo em acampamento - mas por fim chegaríamos à civilização. Hospedarias. Com comida. E camas. Fechei os olhos momentaneamente, visualizando a absoluta felicidade de um colchão. Nem aspirava a um colchão de penas; qualquer coisa que prometesse mais de dois centímetros de acolchoamento entre mim e o chão seria o paraíso. E, é claro, se viesse com um pouco de privacidade - melhor ainda.
Jamie e eu não tínhamos ficado completamente celibatários desde dezembro. Fora o desejo - e não se podia desconsiderá-lo - precisávamos do conforto e do calor do corpo um do outro. Mesmo assim, a prática sexual velada sob as cobertas, com os olhos amarelos de Rollo fixos em nós a dois passos de distância, ficava muito aquém do ideal, mesmo presumindo que o Jovem Ian estivesse invariavelmente dormindo, o que eu achava que não estava, embora ele sempre fosse bastante diplomático para fingir.
Um grito terrível cortou o ar e eu tive um sobressalto, largando o cesto. Lancei-me atrás dele, mal conseguindo agarrar a alça antes que ele girasse na correnteza para fora do meu alcance, e me levantei tremendo e escorrendo água, o coração batendo com força enquanto eu esperava para ver se o grito se repetiria.
Repetiu-se - logo seguido por um guincho igualmente penetrante, porém mais profundo no timbre e passível de ser reconhecido pelos meus ouvidos acostumados com a espécie de ruído feito pelos escoceses das Highlands repentinamente imersos em águas geladas. Gritos mais fracos, porém ainda mais estridentes, e um "Cruzes!" arquejante, emitido com sotaque de Dorset, indicavam que os homens da casa tomavam seu banho de primavera.
Soltei a barra da minha combinação e, agarrando o xale do galho da árvore onde o deixara, calcei os sapatos e caminhei na direção da gritaria.
Há poucas coisas mais agradáveis do que ficar sentada relativamente aquecida e confortável enquanto se observa outras pessoas molhadas em água fria. Se as referidas pessoas proporcionam uma visão completa da forma masculina nua, tanto melhor. Avancei sinuosamente pelo meio de um pequeno bosque de salgueiros florescentes na beira do rio, encontrei uma rocha ao sol, convenientemente protegida pelas árvores, e abri a roda da minha combinação, apreciando o calor do sol nos meus ombros, o cheiro forte dos amentilhos peludos e a cena diante de mim.
Jamie estava de pé no remanso, com água quase até os ombros, o cabelo alisado para trás como um capacete ruivo. Bobby estava parado na margem e, levantando Aidan com um grunhido, atirou-o para Jamie em um cata-vento de pernas e braços descontrolados e gritos estridentes de medo e deslumbramento.
- Eu-eu-eu-eu! - Orne dançava ao redor dos pés de seu padrasto, o traseiro rechonchudo balançando-se para cima e para baixo entre os juncos como um pequeno balão cor-de-rosa.
Bobby riu, abaixou-se e içou-o, mantendo-o por um instante acima da cabeça, enquanto ele guinchava como um porco marcado com ferro; depois, formando um pequeno arco, atirou-o no meio do remanso.
Ele bateu na água com grande estardalhaço e Jamie agarrou-o, rindo, puxando-o para a superfície, de onde ele emergiu com um ar de boquiaberta estupefação que fez todos se sacudirem de rir. Aidan e Rollo patinhavam em círculos agora, gritando e latindo.
Olhei para o lado oposto do remanso e vi Ian correr nu pelo morro abaixo e saltar na água como um salmão, emitindo um dos seus melhores gritos de guerra mohawk. Este foi bruscamente interrompido pela água fria e ele desapareceu quase sem levantar nenhum borrifo.
Esperei - assim como os outros - que ele emergisse de volta, mas não o fez. Jamie olhou desconfiadamente para trás, para o caso de um ataque furtivo, porém segundos depois Ian saltou da água diretamente em frente a Bobby com um grito de gelar o sangue nas veias, agarrou-o pela perna e puxou-o para dentro da água.
A partir daí a situação ficou completamente caótica, com uma profusão promíscua de jorros de água, gritos, apupos e pulos das pedras, o que me deu a oportunidade de refletir como os homens nus são encantadores. Não que eu já não tivesse visto mais do que o suficiente deles, mas fora Frank e Jamie a maioria dos homens que eu vira despidos geralmente estava doente ou ferida, e eram encontrados em circunstâncias tão adversas que impediam uma apreciação sem pressa de seus mais belos atributos.
Do corpinho rechonchudo de Orne aos membros longos, finos, desengonçados e brancos de Aidan, ao tronco pálido e magro de traseiro pequeno e achatado de Bobby, os McCallum-Higgins eram tão divertidos de observar quanto um bando de macacos.
Ian e Jamie eram algo diferente - babuínos, talvez, ou mandris. Na verdade, não se pareciam em nenhum outro atributo além da altura e, no entanto, eram obviamente feitos da mesma cepa. Observando Jamie se agachar em uma rocha acima do remanso, as coxas tensionando-se para um salto, eu podia facilmente vê-lo se preparando para atacar um leopardo, enquanto Ian estendia-se, brilhando, ao sol, aquecendo-se, sem deixar de manter uma vigilância alerta contra intrusos. Só lhes faltavam traseiros roxos para partir direto para uma estepe na África sem serem incomodados.
Eram todos adoráveis, em seus diferentes modos, mas era para Jamie que meu olhar retornava, sempre. Era um corpo machucado e coberto de cicatrizes, os músculos rijos e proeminentes, e a idade havia aprofundado os sulcos entre eles. O grosso vergão da cicatriz de baioneta subia por sua coxa, largo e feio, enquanto a linha branca mais fina da cicatriz deixada pela mordida de uma cascavel estava quase invisível, parcialmente coberta pela espessa penugem do corpo, agora começando a secar e destacar-se da pele em uma nuvem ruiva e dourada. O corte de espada em suas costelas, como a de uma cimitarra, também havia cicatrizado bem, agora não mais do que uma linha branca da espessura de um cabelo.
Ele virou e se abaixou para pegar um pedaço de sabão na pedra - e minhas entranhas se reviraram. Não era roxo, mas fora isso não havia nada a aperfeiçoar, sendo alto, redondo, delicadamente salpicado de ruivo e dourado, e com encantadoras covinhas dos lados. Seus testículos, mal visíveis por trás, estavam realmente roxos do frio e despertaram em mim uma vontade repentina de me aproximar sorrateiramente por trás dele e segurá-los em minhas mãos aquecidas pela rocha.
Imaginei se o salto olímpico iria fazê-lo esvaziar o remanso. Na realidade, eu não o via nu - nem mesmo substancialmente despido - há vários meses.
Mas agora... atirei a cabeça para trás, fechando os olhos contra o brilhante sol da primavera, apreciando a cócega de meus próprios cabelos recém-lavados contra meus ombros. A neve se fora, o tempo estava bom - e toda a vida ao ar livre acenava convidativamente, repleta de lugares onde a privacidade era garantida, salvo por um ou outro gambá.
Deixei os homens gotejando e tomando sol nas pedras e voltei para recuperar minhas roupas. Mas não as vesti. Em vez disso, subi até a casa de refrigeração na fonte, onde submergi meu cesto de verduras na água fria - se eu o levasse para a cabana, Amy ferveria todas elas - , e deixei meu vestido, espartilho e meias enrolados na prateleira onde os queijos estavam empilhados. Em seguida, voltei para o riacho.
As pancadas na água e a gritaria haviam cessado. O que ouvi foi uma cantoria em voz baixa vindo pela trilha. Era Bobby, carregando Orne, profundamente adormecido depois de tanta atividade física. Aidan, zonzo de limpeza e calor, caminhava vagarosamente ao lado de seu padrasto, a cabeça escura balançando-se de um lado para o outro ao ritmo da canção.
Era uma linda canção de ninar em gaélico; Amy deve tê-la ensinado a Bobby. Perguntei-me se ela teria lhe dito o significado da letra.
S'iomadh oidhche fhliuch is thioram Side nan seachd sian Gheibheadh Griogal dhomhsa creagan Ris an gabhainn dion.
(Em muitas noites, com ou sem chuva Mesmo nas piores condições do tempo Gregor encontrava uma pequena rocha para mim Ao lado da qual eu podia me abrigar.)
óbhan, àbhan àbhan iri óbhan iri à! óbhan, àbhan àbhan iriS mar mo mhulad's màr.
(Ai de mim, ai de mim Ai de mim, imensa é realmente a minha tristeza.)
Sorri ao vê-los, apesar de sentir um nó na garganta. Eu me lembrava de Jamie carregando Jem de volta, depois de nadarem no rio, no verão anterior, e Roger cantando para Mandy à noite, sua voz áspera e entrecortada pouco mais de um sussurro - mas, ainda assim, era música.
Cumprimentei Bobby com um sinal da cabeça, ele sorriu e cumprimentou-me também, sem interromper a canção. Ele ergueu as sobrancelhas e sacudiu o polegar por cima do ombro na direção do morro, presumivelmente para indicar onde Jamie estava. Não demonstrou nenhuma surpresa ao me ver de combinação e xale - certamente achou que eu estava indo para o riacho tomar banho também, inspirada pelo calor inusitado do dia.
Eudail mhàir a shluagh an domhain Dhàirt iad d'fhuil an dèS chir iad do cheann air stob daraichTacan beag bhod chrè
(Grande amada de todas as pessoas do mundo Eles derramaram teu sangue ontem E fincaram tua cabeça em uma estaca de carvalho A uma curta distância do teu corpo.)
óbhan, àbhan àbhan iri óbhan iri M óbhan, àbhan àbhan iriS mar mo mhulad's màr.
(Ai de mim, ai de mim Ai de mim, imensa é realmente a minha tristeza.)
Acenei rapidamente e peguei a trilha lateral que levava à clareira no alto. "Casa nova", é como todos a chamavam, embora as únicas indicações de que algum dia pudesse de fato haver uma casa ali fossem uma pilha de toras cortadas e várias estacas enfiadas no chão, com cordas amarradas entre elas. Destinavam-se a marcar o local e as dimensões da casa que Jamie pretendia construir em substituição à casa grande - quando voltássemos.
Percebi que ele andara remanejando as estacas. O aposento da frente agora era mais largo e o cômodo dos fundos, destinado ao meu consultório, ganhara uma espécie de anexo, talvez uma despensa ou destilaria para armazenar e preparar os remédios.
O arquiteto estava sentado em uma tora de madeira, inspecionando seu reino, inteiramente nu.
- Estava me esperando? - perguntei, tirando meu xale e pendurando em um galho próximo.
- Estava. - Sorriu e coçou o peito. - Achei que a visão do meu traseiro nu provavelmente iria inflamá-la. Ou será que foi o de Bobby?
- Bobby não tem traseiro. Sabe que você não tem nenhum cabelo branco abaixo do pescoço? Por que será?
Ele olhou para baixo, inspecionando-se, mas era verdade. Havia apenas alguns fios prateados entremeados em sua espessa cabeleira, embora a barba - a barba crescida durante o inverno fora dolorosa e tediosamente removida há alguns dias - estivesse bastante entremeada de branco. Mas os cabelos do peito ainda eram escuros, castanho-avermelhados, e os mais abaixo um aglomerado felpudo de um vívido tom ruivo.
Ele passou os dedos pensativamente pelo exuberante matagal, olhando para baixo.
- Acho que está escondido - observou, erguendo os olhos para mim, uma das sobrancelhas erguidas. - Por que não vem me ajudar a procurá-lo?
Dei a volta e postei-me obsequiosamente diante dele, ajoelhando-me. O objeto em questão estava na realidade bastante visível, embora reconhecidamente parecendo um pouco traumatizado depois da recente imersão, e de um tom azulado muito interessante.
- Bem - eu disse, após um instante de contemplação. - Os maiores carvalhos crescem de minúsculas bolotas. Ou assim dizem.
Um estremecimento percorreu-o com o calor da minha boca e eu ergui as mãos involuntariamente, segurando suas bolas.
- Santo Deus - ele disse, e suas mãos pousaram de leve em minha cabeça, em estado de graça.
- O que você disse? - ele perguntou um instante depois.
- Eu disse - comecei, erguendo a cabeça momentaneamente para respirar - que acho a pele arrepiada muito erótica.
- Há mais de onde essa veio - assegurou-me. - Tire a combinação, Sassenach. Eu não a vejo nua há quase quatro meses.
- Bem... não, é verdade - concordei, hesitante. - E não tenho certeza se quero que veja.
Uma das sobrancelhas se ergueu.
- E por que não? - Porque passei semanas inteiras dentro de casa, sem sol ou exercícios. Provavelmente, estou parecendo uma dessas larvas que se encontram debaixo das pedras: gorda, branca e molenga.
- Molenga? - ele repetiu, abrindo um sorriso.
- Molenga - eu disse com dignidade, envolvendo os braços ao redor do meu corpo.
Ele franziu os lábios e exalou devagar, examinando-me com a cabeça inclinada para o lado.
- Eu gosto quando você está gorda, mas sei muito bem que não está - ele disse porque eu senti suas costelas quando a abraçava todas as noites desde o janeiro. Quanto a estar branca, você sempre foi branca desde que eu a conheço. Não vai ser um grande choque para mim. Quanto à parte de molenga - estendeu a mão e remexeu os dedos, chamando-me para perto - , acho que VOU gostar.
- Humm - eu disse, ainda hesitante. Ele suspirou. - Sassenach, eu disse que não a vejo nua há quatro meses. Isso significa que, se você tirar sua combinação agora, será a melhor coisa que eu já vi nesses quatro meses. E na minha idade acho que não me lembro de mais nada antes disso.
Ri e, sem mais delongas, levantei-me e desfiz o laço de fita na gola da minha combinação. Contorcendo-me, deixei-a cair ao redor dos meus pés.
Ele fechou os olhos. Em seguida, respirou fundo e abriu-os outra vez. - Estou cego - disse suavemente, estendendo a mão para mim.
- Cego como com o reflexo do sol em um campo de neve? - perguntei, insegura. - Ou como ao se deparar com uma górgona?
- Ver uma górgona nos transforma em pedra, não nos deixa cegos - informou-me. - Embora, pensando melhor - cutucou-se experimentalmente com o dedo indicador - , eu ainda possa me transformar em pedra. Quer fazer o favor de vir até aqui, pelo amor de Deus?
Eu fui.
Adormeci no calor do corpo de Jamie e acordei algum tempo depois, confortavelmente enrolada em seu xale escocês. Espreguicei-me, assustando um esquilo acima de mim, que correu para outro galho a fim de me ver melhor. Evidentemente, ele não gostou do que viu e começou a reclamar e tagarelar.
- Oh, cale a boca - eu disse, bocejando, e sentei-me. O esquilo ressentiu-se com esse gesto e começou a berrar histericamente, mas eu o ignorei. Para minha surpresa, Jamie desaparecera.
Achei que talvez ele apenas tivesse entrado no bosque para se aliviar, mas uma rápida olhada ao redor não o localizou e, quando fiquei em pé, enrolada no xale, não vi nenhum sinal dele.
Eu não ouvira nada; sem dúvida, se alguém tivesse chegado ali, eu teria acordado - ou Jamie teria me acordado. Ouvi com atenção, mas - o esquilo agora cuidando da própria vida - não ouvi nada além dos sons normais de uma floresta acordando para a primavera: o murmúrio do vento pelas folhas novas das árvores, pontuado pelo estalido ocasional de um galho caindo ou o crepitar de cones de pinheiros e cascas de castanhas do ano anterior estalando nas copas das árvores; o grito de uma gralha distante, a conversa de um bando de pequeninas trepadeiras-azuis ciscando no capim alto perto dali, o farfalhar de um arganaz faminto nas folhas mortas do inverno.
A gralha continuava gritando; outra se juntara a ela agora, gritos agudos de alarme. Talvez fosse para lá que Jamie tivesse ido.
Desenrolei-me do xale de Jamie, vesti a combinação e calcei os sapatos. A tarde chegava ao fim; nós - ou eu, pelo menos - dormimos por muito tem.. po. Ainda havia calor ao sol, mas fazia frio nas sombras sob as árvores; coloquei meu xale e enrolei o de Jamie nos braços - provavelmente ele iria querê-lo.
Segui os chamados das gralhas morro acima, afastando-me da clareira. Havia um casal aninhado perto da Fonte Branca; eu os vira construindo o ninho há apenas dois dias.
Não ficava nada longe do local da casa, embora essa fonte em particular sempre tenha tido um ar remoto de tudo. Situava-se no centro de um pequeno bosque de freixo e cicuta, escondida a leste por um rochedo acidentado, coberto de musgo. Toda água possui uma sensação de vida, e uma fonte de montanha carrega uma noção particular de tranquila alegria, brotando, pura, do coração da terra. A Fonte Branca, assim chamada por causa da rocha grande e clara que assomava como um guardião acima do lago da fonte, possuía algo mais - uma sensação de paz inviolada.
Quanto mais eu me aproximava da fonte, mais certeza tinha de que era ali que encontraria Jamie.
- Há alguma coisa lá que ouve - ele dissera a Brianna certa vez, descontraidamente. - Há lagos assim nas Highlands; são chamados de lagos dos santos. As pessoas dizem que o santo vive junto ao lago e ouve suas preces.
- E que santo vive junto à Fonte Branca? - ela perguntara, cinicamente. - Santo Killian?
- Por que ele? - O santo padroeiro de gota, reumatismo e dos caiadores de paredes. Ele riu, sacudindo a cabeça. - O que quer que viva nestas águas é mais antigo do que a ideia de santos - ele assegurou-lhe. - Mas ouve.
Caminhei silenciosamente, aproximando-me da fonte. As gralhas haviam silenciado.
Ele estava lá, sentado em uma pedra junto à água, vestido apenas com sua camisa. Vi porque as gralhas haviam silenciado e passado a cuidar da própria vida - ele estava tão imóvel quanto a própria rocha branca, os olhos fechados, as mãos viradas para cima sobre os joelhos, frouxamente dobradas, em oração.
Parei imediatamente ao vê-lo. Eu já o vira rezar ali uma vez antes - quando ele pedira ajuda a Dougal Mackenzie em uma batalha. Eu não sabia a quem ele se dirigia no momento, mas não era uma conversa que eu quisesse perturbar.
Eu devia ir embora, pensei - mas, fora o temor de atrapalhar com um barulho inadvertido, eu não queria ir embora. A maior parte da fonte estava na sombra, mas raios de luz desciam através das árvores, iluminando-o. O ar estava denso de pólen e a luz repleta de partículas douradas. Ela acendia reflexos cintilantes no topo de sua cabeça, no arco liso e alto de seu pé, na lâmina do seu nariz, nos ossos de sua face. Era como se ele tivesse nascido ali, fizesse parte da pedra, da água, da terra, como se ele próprio fosse o espírito da fonte.
Não me senti uma intrusa. A paz do lugar estendeu-se até mim e me tocou delicadamente, apaziguando meu coração.
Imaginei se seria isso que ele buscava ali. Estaria atraindo a paz da montanha para dentro de si mesmo, para se lembrar, para sustentá-lo durante os meses - os anos, talvez - do exílio próximo?
Eu me lembraria. A luz começou a diminuir, a claridade a desaparecer do ar. Ele se mexeu, finalmente, erguendo um pouco a cabeça.
- Que eu seja suficiente - ele disse, serenamente. Sobressaltei-me com o som de sua voz, mas ele não estava falando comigo.
Ele abriu os olhos e se levantou, tão silenciosamente quanto havia permanecido sentado. Em seguida, passou pelo riacho, os longos pés descalços e silenciosos nas camadas de folhas úmidas. Quando passou pelo afloramento de rochas, me viu e sorriu, estendendo a mão para pegar o xale que eu entregava a ele, muda. Ele não disse nada, mas tomou minha mão fria na sua mão grande e quente, e nos dirigimos para casa, caminhando juntos na paz da montanha.
Alguns dias mais tarde, ele veio ao meu encontro. Eu estava procurando sanguessugas ao longo da margem do riacho; elas haviam começado a emergir da hibernação do inverno, famintas de sangue. Eram fáceis de pegar; eu simplesmente vadeava devagar pela água perto da margem.
No começo, a ideia de servir de isca viva para as sanguessugas foi repulsiva, mas afinal era assim que eu geralmente as obtinha - deixando Jamie, Ian, Bobby ou qualquer um dos rapazes vadearem pelos riachos e apanhá-las. E quando você se acostumava a ver as criaturas lentamente engordando com seu sangue não era tão ruim assim.
- Tenho que deixá-las sugar bastante sangue para se manterem - expliquei, fazendo uma careta enquanto deslizava o polegar sob uma delas para desgrudála - , mas não a ponto de ficarem comatosas e não terem mais nenhuma utilidade para mim.
- Uma questão de bom discernimento - Jamie concordou, enquanto eu soltava a sanguessuga em umajarra cheia de água e plantas aquáticas. - Quando acabar de alimentar seus bichinhos de estimação, venha comigo e eu vou lhe mostrar a Caverna do Espanhol.
Não ficava perto. A mais de seis quilômetros de Ridge, atravessando arroios frios, lamacentos, subindo barrancos íngremes, depois passando por uma fenda em uma encosta de granito que me fez sentir como se estivesse enterrada viva, para somente então emergir em um descampado inóspito de rochas proeminentes, sufocadas em redes de videiras selvagens.
- Nós a encontramos, Jem e eu, um dia, quando estávamos caçando - Jamie explicou, levantando uma cortina de folhas para eu passar por baixo. As vinhas contorciam-se pelas rochas, grossas como o braço de um homem e lenhosas da idade, as folhas verde-claras da primavera ainda não as cobrindo por completo. - Era um segredo nosso. Combinamos de não contá-lo a ninguém, nem mesmo aos pais dele.
- Nem a mim - eu disse, mas não estava ofendida. Senti a dor da perda em sua voz à menção de Jem.
A entrada da caverna era uma fenda no solo, sobre a qual Jamie havia puxado uma pedra grande e chata. Empurrou-a para trás com algum esforço e eu me inclinei cautelosamente, experimentando um breve nó nas entranhas ao leve som de ar se movendo pela fissura. O ar da superfície, entretanto, estava quente; a caverna estava sugando ar, não soprando.
Lembrei-me bem demais da caverna de Abandawe, que parecia respirar à nossa volta, e foi necessária alguma força de vontade para seguir Jamie quando ele desapareceu para dentro da terra. Havia uma escada rústica de madeira - nova, eu vi, mas substituindo outra muito mais velha que havia se despedaçado; alguns pedaços de madeira apodrecida ainda estavam no lugar, pendurados da rocha em cravos de ferro enferrujado.
Não podia haver mais de três a três e meio metros até o fundo, mas a abertura da caverna era estreita e a descida parecia interminável. Finalmente, entretanto, cheguei ao fundo, e vi que a caverna havia se ampliado, como o fundo de um frasco. Jamie estava agachado em um dos lados; eu o vi pegar uma pequena garrafa e senti o cheiro forte de terebintina.
Ele havia trazido uma tocha, um nó de pinho com a ponta mergulhada em alcatrão e enrolada com um pano. Ele embebeu o pano com terebintina, em seguida retirou o acendedor que Bri fizera para ele. Uma chuva de fagulhas iluminou seu rosto, atento e corado. Mais duas tentativas e a tocha se acendeu, a chama explodindo através do tecido inflamável e incendiando o alcatrão.
Ele ergueu a tocha e gesticulou para o chão atrás de mim. Virei-me e quase dei um salto de susto.
O espanhol apoiava-se contra a parede, as pernas ossudas estendidas para fora, o crânio caído para frente como se estivesse cochilando. Tufos de cabelos avermelhados, desbotados, ainda se agarravam aqui e ali, mas a pele desaparecera por completo. Suas mãos e pés também já haviam desaparecido quase inteiramente também, os pequenos ossos levados pelos roedores. Mas nenhum animal grande conseguira chegar até ele e, apesar do torso e dos ossos longos mostrarem sinais de pequenas mordidas, estavam, em sua maior parte, intatos; o arco da cavidade torácica despontava pelo tecido de uma roupa tão desbotada que não havia como dizer de que cor fora um dia.
Ele era, de fato, um espanhol. Um capacete de metal com um penacho, marrom de ferrugem, jazia a seu lado, juntamente com uma armadura peitoral de ferro e uma faca.
- Jesus Cristo - sussurrei. Jamie se benzeu e eu me ajoelhei junto ao esqueleto.
- Não faço a menor ideia de quanto tempo ele está aqui - ele disse, também em voz baixa. - Não encontramos nada com ele, salvo a armadura e isso. - Apontou para os cascalhos bem diante da pélvis. Aproximei-me para olhar um pequeno crucifixo, provavelmente de prata, agora completamente enegrecido, e a alguns centímetros um pequeno triângulo, também empretecido.
- Um rosário? - perguntei, e Jamie balançou a cabeça.
- Imagino que o estivesse usando no pescoço. Devia ser feito de madeira e barbante, e quando apodreceu os pedaços de metal caíram. Isso - seu dedo tocou delicadamente o pequeno triângulo - diz Nr. Sra. Ang. em um dos lados. Nuestra Señora de los Angeles, eu acho que significa, "Nossa Senhora dos Anjos". Há uma pequena imagem de Nossa Senhora do outro lado.
Automaticamente, fiz o sinal da cruz.
- Jemmy ficou com medo? - perguntei, após um instante de silêncio respeitoso.
- Eu fiquei - Jamie disse laconicamente. - Estava escuro quando eu desci pela fenda e eu quase tropecei neste sujeito. Achei que ele estivesse vivo e o choque quase fez meu coração parar.
Ele gritara de susto e Jemmy, deixado lá em cima com instruções rígidas de não sair do lugar, prontamente se arrastou para dentro do buraco, caindo da escada quebrada no meio do caminho e aterrissando em pé em cima de seu avô.
- Eu o ouvi descendo e olhei para cima, bem a tempo de vê-lo mergulhar dos céus e me atingir no peito como uma bala de canhão. - Jamie esfregou o lado esquerdo do peito com um sorriso pesaroso. - Se eu não tivesse olhado para cima, ele teria quebrado meu pescoço, e sozinho ele jamais teria conseguido sair.
E nós nunca ficaríamos sabendo o que acontecera aos dois. Engoli, a boca seca com o pensamento. E no entanto... em qualquer dia, algo igualmente aleatório podia acontecer. A qualquer pessoa.
- É de admirar que nenhum dos dois tenha quebrado nada - eu disse, e abanei a mão indicando o esqueleto. - O que acha que aconteceu com este cavalheiro? - Sua gente nunca soube.
Jamie sacudiu a cabeça.
- Não sei. Ele não estava esperando um inimigo, porque não estava usando sua armadura.
- Acha que ele caiu aqui dentro e não conseguiu sair? - Agachei-me junto ao esqueleto, correndo o dedo pela tíbia da perna esquerda. O osso estava seco e rachado, roído na ponta por dentes pequenos e afiados, mas eu pude ver o que podia ser uma fratura do osso. Ou talvez fosse apenas uma rachadura do tempo.
Jamie deu de ombros, olhando para cima.
- Não creio. Ele era bem mais baixo do que eu, mas acho que a escada original devia estar aqui quando ele morreu, pois, se alguém tivesse construído a escada depois, por que deixaria este homem aqui no fundo da caverna? E mesmo com uma perna quebrada ele teria conseguido subir por ela.
- Humm. Ele deve ter morrido com alguma febre, imagino. Isso explicaria o fato de ter tirado a armadura do peito e o capacete. Embora eu pessoalmente os tivesse tirado na primeira oportunidade; dependendo da estação, ele devia ter sido cozinhado vivo ou sofrido de grave ataque de fungos, parcialmente enclausurado em metal.
- Mmmmhum. Ergui os olhos diante desse som, que indicava uma aceitação dúbia da minha explicação, mas discordância quanto à minha conclusão.
- Acha que ele foi assassinado? - perguntei. - Ele tem uma armadura, mas nenhuma arma, salvo uma pequena faca. E você pode ver que era destro, mas a faca está caída à esquerda.
O esqueleto de fato fora destro; os ossos do braço direito eram perceptivelmente mais grossos, mesmo à luz bruxuleante da tocha.
Possivelmente um espadachim?, perguntei-me.
- Conheci muitos soldados espanhóis nas Antilhas, Sassenach. Todos eles, carregados de espadas, lanças e pistolas. Se este homem tivesse morrido de uma febre, seus companheiros poderiam ter levado suas armas, mas também teriam levado a armadura e a faca. Por que deixá-las?
- Mas, segundo esse raciocínio - retruquei - , por que quem o matou, se é que foi assassinado, deixou a armadura e a faca?
- Quanto à armadura, não a quiseram. Não seria particularmente útil para ninguém, exceto um soldado. Quanto à faca... por que ela estaria espetada nele? - Jamie sugeriu. - E, para começar, nem sequer é uma boa faca.
- Muito lógico - eu disse, engolindo em seco outra vez. - Deixando de lado a questão de como ele morreu... O que em nome de Deus ele estava fazendo nas montanhas da Carolina do Norte para começar?
- Os espanhóis enviaram exploradores até a Virgínia, há cinquenta ou sessenta anos - ele me informou. - Mas os pântanos os desencorajaram.
- Posso entender por quê. Mas por que... isto? - Levantei-me, apontando para a caverna e sua escada. Ele não respondeu, mas segurou meu braço e levantou a tocha, conduzindo-me para o lado da caverna oposto à escada. Bem acima da minha cabeça, vi outra pequena fenda na rocha, negra à luz da tocha, larga apenas o suficiente para um homem espremer-se por ela.
- Há uma caverna menor passando por lá - ele disse, balançando a cabeça para cima. - E quando levantei Jem para ele olhar, ele me disse que havia marcas na terra, marcas quadradas, como se caixas pesadas tivessem sido guardadas ali.
Razão pela qual, quando houve a necessidade de esconder um tesouro, ele se lembrou da Caverna do Espanhol.
- Traremos o resto do ouro esta noite - ele disse - e empilharemos pedras para esconder a abertura lá em cima. Depois, deixaremos o Senhor aqui descansar em paz.
Fui obrigada a admitir que a caverna constituía um lugar de descanso final tão bom quanto qualquer outro. E a presença do soldado espanhol provavelmente desencorajaria qualquer um que se deparasse com a caverna de fazer maiores investigações, tanto índios quanto colonos tendo uma distinta aversão a fantasmas.
- Quanto a isso, também os escoceses das Highlands, e eu me virei para Jamie com curiosidade.
- Você e Jem... não tiveram medo de serem assombrados por ele?
- Não, fizemos a oração adequada pelo repouso de sua alma, quando eu fechei a entrada da caverna, e espalhamos sal por ela.
Aquilo me fez rir.
- Você sabe a oração adequada a todas as situações, não é? Ele sorriu debilmente e esfregou a ponta da tocha no cascalho úmido para extingui-la. Um débil facho de luz vindo de cima iluminou o topo de sua cabeça.
- Sempre há uma prece, a nighean, ainda que seja apenas A Dizia, cuidich mi.
Oh, Deus, ajude-me.
UMA FACA QUE CONHECE MINHA MÃO
Nem todo o ouro ficou com o espanhol. Duas das minhas anáguas tinham uma prega na bainha, com raspas de ouro uniformemente distribuídas em minúsculos bolsos, e meu próprio bolso interno tinha várias onças de ouro cuidadosamente costuradas no fundo. Jamie e Ian carregavam cada qual uma pequena quantidade no sporran. E cada um deles carregaria duas avantajadas bolsas de munição no cinto. Nós havíamos nos retirado, os três, para o local da casa nova, a fim de fazer as balas sozinhos.
- Bem, não vá esquecer de que lado carregar, hein? - Jamie soltou uma nova bala de mosquete do molde, brilhante como um sol nascente em miniatura, dentro do pote de gordura e fuligem.
- Não, desde que você não pegue minha sacola de munição por engano - Ian disse ironicamente. Ele fazia projéteis de chumbo, soltando as balas quentes em um buraco forrado de folhas úmidas, onde elas fumegavam e exalavam vapor na noite fria de primavera.
Rollo, deitado ali perto, espirrou e resfolegou explosivamente quando um filete de fumaça flutuou pelo seu nariz. Ian olhou para ele com um sorriso.
- Você vai gostar de caçar o veado vermelho pelo urzal, a cà? - ele perguntou. - Mas vai ter que ficar longe das ovelhas ou alguém vai atirar em você pensando que é um lobo.
Rollo suspirou e deixou os olhos se transformarem em duas fendas sonolentas.
- Pensando no que vai dizer a sua mãe quando se encontrar com ela? - Jamie perguntou, estreitando os olhos contra a fumaça do fogo, enquanto segurava a concha de raspas de ouro sobre a chama.
- Estou tentando não pensar muito - Ian respondeu com franqueza. - Sinto uma sensação estranha na barriga quando penso em Lallybroch.
- Sensação boa ou ruim? - perguntei, cuidadosamente retirando as balas de ouro resfriadas da gordura com uma colher de madeira e soltando-as nas bolsas de munição.
Ian franziu a testa, os olhos fixos em sua concha conforme o chumbo passava repentinamente de bolhas retorcidas a uma poça trêmula.
- As duas, eu acho. Brianna me falou um dia de um livro que ela leu na escola que dizia que não se pode voltar para casa outra vez. Acho que é verdade... mas eu quero voltar - acrescentou suavemente, os olhos ainda no seu trabalho. O chumbo derretido silvou ao ser despejado no molde.
Desviei os olhos da melancolia em seu rosto e me deparei com Jamie olhando para mim, o olhar inquiridor, ternos de compaixão. Desviei os olhos dele também e me levantei, gemendo ligeiramente quando a junta do meu joelho estalou.
- Sim, bem - eu disse, animadamente. - Acho que depende do que você considera casa, não é? Nem sempre se trata de um lugar, sabe.
- Sim, é verdade. - Ian ficou segurando o molde de balas por um instante, deixando-o esfriar. - Mas mesmo quando é uma pessoa... nem sempre você pode voltar, não é? Ou talvez possa - acrescentou, a boca torcendo-se um pouco enquanto erguia os olhos para Jamie e depois para mim.
- Acho que você vai encontrar seus pais praticamente do mesmo jeito que os deixou - Jamie disse secamente, preferindo ignorar a referência de Ian. - Mas você pode ser um grande choque para eles.
Ian abaixou os olhos para si mesmo e sorriu.
- Fiquei um pouco mais alto - disse. Resfoleguei levemente, achando graça. Ele tinha quinze anos quando deixou a Escócia - um garoto alto, magro e desengonçado. De fato, estava uns cinco centímetros mais alto agora. Também estava magro e rijo como uma tira de couro seco, e normalmente bronzeado da mesma cor, apesar de o inverno ter clareado sua pele, fazendo os pontos tatuados que corriam em semicírculos pelas maçãs do rosto se destacarem ainda mais.
- Lembra-se de outra frase que eu lhe disse? - perguntei a ele. - Quando voltamos para Lallybroch de Edimburgo, depois que eu... encontrei Jamie outra vez. Lar é onde, quando você tem que ir para lá, eles têm que recebê-lo.
Ian ergueu uma das sobrancelhas, olhou de mim para Jamie e sacudiu a cabeça.
- Não é de admirar que você goste tanto dela, tio. Ela deve ser um grande conforto para você.
- Bem - Jamie disse, os olhos fixos no trabalho - , ela sempre me recebe, então suponho que ela seja meu lar.
Uma vez terminado o trabalho, Ian e Rollo levaram as bolsas de munição cheias de volta para a cabana, enquanto Jamie extinguia o fogo e eu guardava a parafernália de fazer balas. Estava ficando tarde e o ar - já tão frio que fazia cócegas nos pulmões - adquiria uma vivacidade extra que acariciava a pele também, o hálito da primavera movendo-se sem descanso pela Terra.
Fiquei parada por um instante, apreciando o ar frio e cortante. Apesar de estarmos ao ar livre, havíamos trabalhado muito juntos, aglomerados ao redor do fogo, e a brisa fria que levantava os cabelos dos meus ombros era deliciosa.
- Você tem uma moeda, a nighean? - Jamie perguntou, ao meu lado.
- Uma o quê?
- Bem, qualquer tipo de dinheiro serve.
- Creio que não, mas... - Revirei o bolso amarrado à minha cintura, que a essa altura dos nossos preparativos abrigava uma coleção de improbabilidades quase tão grande quanto a do sporran de Jamie. Entre meadas de linha, pacotinhos de papel contendo sementes ou ervas secas, agulhas enfiadas em pedacinhos de couro, um frasco repleto de suturas, uma pena de pica-pau salpicada de branco e preto, um pedaço de giz branco, metade de uma bolacha, mostrando que evidentemente eu fora interrompida quando comia, realmente descobri uma moeda de meio-xelim, imunda, coberta de farelos de bolacha e fiapos de algodão. - Esta serve? - perguntei, limpando-a e entregando-a a ele.
- Serve - ele respondeu, entregando-me alguma coisa. Minha mão se fechou automaticamente em algo que descobri ser o cabo de uma faca, e quase a larguei de surpresa.
- Você sempre deve dar dinheiro em troca de uma lâmina nova - ele explicou, sorrindo ligeiramente. - Para que ela saiba que você é seu dono e, assim, não se vire contra você.
- Seu dono? - O sol tocava a borda de Ridge, mas ainda havia bastante luz e eu olhei para minha nova aquisição. Era uma lâmina fina, mas firme, de um só gume e primorosamente afiada; o lado do corte brilhava, prateado, à luz do sol poente. O cabo era feito de chifre de veado - e fora esculpido com duas Pequenas depressões que se ajustavam com perfeição aos meus dedos. Sem dúvida, a faca era minha.
- Obrigada - eu disse, admirando-a. - Mas...
- Vai se sentir mais segura se a carregar sempre com você - ele disse, de modo prático. - Oh, só mais uma coisa. Me dê a faca aqui.
Entreguei-a de volta, intrigada, e fiquei espantada ao vê-lo passar a lâmina de leve pelo polegar. O sangue aflorou do corte superficial, e ele o limpou nas calças e enfiou o dedo na boca, devolvendo-me a faca.
- Você deve sangrar uma lâmina, para que ela saiba sua finalidade - ele explicou, tirando o dedo ferido da boca.
O cabo da faca ainda estava quente em minha mão, mas um leve calafrio me percorreu. Com raras exceções, Jamie não era dado a gestos puramente românticos. Se ele me deu uma faca, achou que eu iria precisar dela. E não para arrancar raízes e cascas de árvores. Saber sua finalidade, ele dissera.
- Encaixa-se perfeitamente em minha mão - eu disse, olhando para baixo e afagando a pequena depressão modelada ao meu polegar. - Como soube moldá-la tão exatamente?
Ele riu.
- Já senti sua mão em volta do meu pau vezes suficientes para saber exatamente a medida, Sassenach - assegurou-me.
Resfoleguei com uma breve risadinha, mas virei a lâmina e furei a ponta do meu próprio polegar. Era extremamente afiada; mal senti a picada, mas uma gota de sangue vermelho-escuro aflorou imediatamente. Prendi a faca no cinto, peguei sua mão e pressionei meu polegar contra o dele.
- Sangue do meu sangue - eu disse. Eu também não era dada a gestos românticos.
BRULOTE
Nova York Agosto, 1776
Na verdade, as notícias de William sobre a fuga dos americanos foram bem melhor recebidas do que ele imaginara. Com a sensação inebriante de que havia encurralado o inimigo, o exército de Howe deslocou-se com notável velocidade. A frota do almirante ainda estava na baía de Gravesend; em um dia, milhares de homens marcharam apressadamente até o litoral e foram embarcados para a rápida travessia de Manhattan; ao pôr do sol do dia seguinte, companhias armadas iniciaram o ataque a Nova York - apenas para descobrir as trincheiras vazias, as fortificações abandonadas.
Embora uma decepção para William, que esperava uma chance de vingança física e direta, esse acontecimento agradou imensamente o general Howe. Ele se mudou, com seu estado-maior, para uma enorme mansão chamada Beekman House e começou a solidificar seu controle sobre a colônia. Houve uma certa provocação entre os oficiais superiores a favor de perseguir os americanos - sem dúvida, William preferia essa ideia - , mas o general Howe era de opinião que derrota e desgaste iriam minar as forças restantes, e o inverno acabaria de vez com elas.
- Enquanto isso - disse o tenente Anthony Fortnum, olhando em volta do abafado sótão para onde os três oficiais mais novos haviam sido enviados - , somos um exército de ocupação. O que significa, eu acho, que temos direito aos prazeres do posto, não é?
- E quais seriam eles? - William perguntou, em vão procurando um lugar onde pudesse colocar a maleta surrada que atualmente continha todos os seus bens terrenos.
- Bem, mulheres - Forthinum disse pensativamente. - Certamente mulheres. Sem dúvida, Nova York tem prostíbulos, não?
- Não vi nenhum no caminho - Ralph Jocelyn disse, em dúvida. - E olha que eu procurei!
- Não o bastante - Fortnum disse com firmeza. - Tenho certeza de que existem prostíbulos aqui.
- Tem cerveja - William sugeriu. - Uma taverna decente chamada Fraunces Tavern, perto da Water Street. Tomei um bom caneco lá quando chegamos.
- Tem que ser algo mais perto - Jocelyn protestou. - Não vou andar quilômetros neste calor! - Beelunan House tinha uma localização agradável, com amplos espaços e ar fresco, mas ficava a uma boa distância da cidade.
- Procurem e encontrarão, irmãos. - Fortnum ajeitou um cacho dos cabelos no lugar e jogou a capa em cima do ombro. - Você vem, Ellesmere?
- Não, agora não. Tenho cartas a escrever. Se encontrar algum prostíbulo, espero um relatório por escrito. Em três vias, veja bem.
Momentaneamente entregue a si mesmo, ele largou seu saco no chão e pegou o pequeno maço de cartas que o capitão Griswold lhe entregara.
Eram cinco; três com o selo sorridente em meia-lua de seu padrasto - lorde John escrevia-lhe religiosamente no dia 15 de cada mês, embora também em outras ocasiões - , uma de seu tio Hal, e ele riu ao ver a carta; as cartas de tio Hal às vezes eram confusas, mas sempre divertidas - e outra em uma caligrafia desconhecida, feminina, com um selo comum.
Curioso, ele rompeu o selo e abriu a carta, descobrindo duas folhas, totalmente preenchidas, de sua prima Dottie. Ergueu as sobrancelhas; Dottie nunca lhe escrevera antes.
Elas continuaram erguidas enquanto ele lia a carta com atenção.
- Santo Cristo - exclamou em voz alta.
- O que foi? - Fortnum, que voltara para pegar o chapéu, perguntou. - Más notícias de casa?
- O quê? Oh. Não. Não - repetiu, retornando à primeira página da carta. - Apenas... interessante.
Dobrando a carta, colocou-a dentro do casaco, a salvo do olhar interessado de Fortnum, e pegou a carta de tio Hal, com seu selo de brasão ducal. Os olhos de Fortnum arregalaram-se ao vê-lo, mas ele não fez nenhum comentário.
William tossiu e rompeu o selo. Como sempre, o bilhete ocupava menos de uma página e não incluía nem saudações, nem despedidas, a opinião de tio Hal, sendo que, já que a carta tinha um endereço, o destinatário era óbvio, o selo indicava claramente quem a escrevera, e ele não perdia tempo escrevendo a imbecis.
Adam está designado para Nova York, sob o comando de sir Henry Clinton. Minnie deu a ele algumas coisas horrivelmente incômodas para serem entregues a você. Dottie envia seu amor, o que ocupa bem menos espaço.
John me disse que você está fazendo alguns serviços para o capitão Richardson. Eu conheço Richardson e acho que você não deveria. Mande lembranças minhas ao coronel Spencer e não jogue cartas com ele.
Tio Hal, William refletiu, era capaz de comprimir mais informações - apesar de cifradas como geralmente eram - em menos palavras do que qualquer outra pessoa de seu conhecimento. Ele realmente se perguntava se o coronel Spencer trapaceava nas cartas ou era simplesmente muito bom ou tinha muita sorte. Tio Hal sem dúvida omitira essa informação de propósito, porque, se fosse uma das duas últimas alternativas, William se sentiria tentado a testar suas habilidades - apesar de saber o perigo que era vencer consistentemente um oficial superior. Mas uma ou duas vezes... Não, tio Hal era, ele próprio, um excelente jogador de cartas e, se ele estava alertando William, a prudência sugeria que ele acatasse o aviso. Talvez o coronel Spencer fosse um jogador tanto honesto quanto medíocre, mas alguém que se ofendia - e se vingava - se derrotado com muita frequência.
Tio Hal era um velhaco astuto, William pensou, não sem admiração. E isso era o que o preocupava a respeito do segundo parágrafo. Eu conheço Richardson... Neste caso, ele compreendia muito bem por que tio Hal omitira os detalhes; a correspondência podia ser lida por qualquer um e uma carta com o brasão do duque de Pardloe poderia chamar atenção. É bem verdade que o selo não parecia ter sido violado, mas ele já vira seu próprio pai remover e recolocar selos com grande destreza e uma faca quente, e não tinha nenhuma ilusão quanto a isso.
O fato não o impediu de se perguntar exatamente o que tio Hal sabia sobre o capitão Richardson e por que ele sugeria que William parasse com seus serviços de inteligência - pois sem dúvida seu pai havia contado a tio Hal a natureza do que ele fazia.
Mais matéria para reflexão - se seu pai dissera ao irmão o que William estava fazendo, então tio Hal teria dito a seu pai o que ele sabia sobre o capitão Richardson, se houvesse alguma coisa que desacreditasse o capitão. E se ele tivesse feito isso...
Deixou de lado o bilhete de tio Hal e abriu a primeira carta de seu pai. Não, nada a respeito de Richardson... A segunda? Também não. Na terceira, uma referência velada à espionagem, mas apenas votos pela sua segurança e uma observação indireta sobre sua postura.
Um homem alto sempre se destaca em um grupo. Mais ainda se seu olharfor direto e estiver bem-vestido.
William sorriu. Westminster, a escola que ele cursara, conduzia as aulas em um único salão, dividido por cortinas em classes superiores e inferiores, mas havia rapazes de todas as idades tendo aulas juntos e William rapidamente aprendeu quando - e como - ser discreto ou se sobressair, dependendo da companhia imediata.
Muito bem, então. O que quer que tio Hal soubesse sobre Richardson, não era algo que preocupasse seu pai. Claro, lembrou a si mesmo, não precisava ser nada desonroso. O duque de Pardloe era destemido quando se tratava de si próprio, mas tendia a ser excessivamente cauteloso com relação à sua família. Talvez ele apenas considerasse Richardson desleixado; se fosse esse o caso, seu pai provavelmente confiaria no próprio bom-senso de William, e assim não mencionaria a questão.
O sótão estava sufocante; o suor escorria pelo rosto de William e murchava sua camisa. Fortnum saíra novamente, deixando a ponta de sua cama de lona virada para cima em um ângulo absurdo sobre seu baú protuberante. Isso deixava espaço de assoalho suficiente apenas para William ficar em pé e caminhar até a porta, e ele fugiu para o ar livre com uma sensação de alívio. O ar do lado de fora estava quente e úmido, mas ao menos circulava. Colocou o chapéu na cabeça e foi descobrir onde seu primo Adam estava alojado. "Coisas horrivelmente incômodas" soava promissor.
No entanto, conforme abria caminho através de uma multidão de mulheres que se dirigia ao mercado central, sentiu o papel da carta estalando no bolso de seu casaco e lembrou-se da irmã de Adam.
Dottie envia seu amor, o que ocupa bem menos espaço. Tio Hal era astuto, William pensou, porém mesmo o mais astuto dos demônios tem um ponto cego.
"Coisas horrivelmente incômodas" cumpriu o que prometia: um livro, uma garrafa de excelente xerez espanhol, um recipiente de um quarto de galão de azeitonas para acompanhar e três pares novos de meias de seda.
- Estou inundado de meias - seu primo Adam declarou, quando William tentou partilhar essa abundância. - Mamãe compra meias às dúzias e as despacha a cada transportador, eu acho. Tem sorte por ela não ter pensado em lhe mandar cuecas novas; recebo um par a cada malote diplomático e se você não acha que isso é uma coisa difícil de explicar a sir Henry... Mas não recusaria um copo do seu xerez.
William não estava inteiramente certo de que seu primo não estivesse brincando com relação às cuecas; Adam tinha um ar sério que lhe servia muito bem nas relações com seus superiores e também possuía o dom da família Grey de dizer os maiores exageros com uma expressão absolutamente impassível. William riu e mandou pedir dois copos.
Um dos amigos de Adam trouxe três, prestativamente permanecendo ali para ajudar a dar fim ao xerez. Outro amigo apareceu aparentemente do nada - era um xerez muito bom - e retirou meia garrafa de cerveja escura de seu baú para contribuir com as festividades. Com a inevitabilidade de tais reuniões, tanto as garrafas quanto os amigos se multiplicaram, até cada espaço livre no quarto de Adam - reconhecidamente pequeno - estar ocupado por um ou por outro.
William generosamente compartilhou suas azeitonas, assim como o xerez, e no final da garrafa ergueu um brinde à sua tia pelos presentes generosos, sem deixar de mencionar as meias de seda.
- Embora eu imagine que sua mãe não tenha sido responsável pelo livro, certo? - ele disse a Adam, abaixando seu copo vazio com uma explosão de ar dos pulmões.
Adam teve um acesso de risadinhas, sua seriedade habitual completamente desfeita em um grande copo de ponche de rum.
- Não - ele disse - , nem papai tampouco. Essa foi minha própria contribuição para o "avancho" da causa "cutlurar, "cultchural", quero dizer, nas colônias.
- Um serviço extraordinário às sensibilidades do homem civilizado - William assegurou-lhe com ar sério, demonstrando sua própria habilidade de segurar sua bebida e controlar a língua, por mais sílabas escorregadias que pudessem se interpor em seu caminho.
Com a gritaria geral de "Que livro? Que livro? Vamos ver o famoso livro!" resultante, ele foi obrigado a mostrar o prêmio de sua coleção de presentes - um exemplar do famoso Lista das Damas de Covent Garden, do sr. Harris, um catálogo profusamente descritivo dos encantos, especialidades, preço e disponibilidade das melhores prostitutas a serem encontradas em Londres.
O livro foi recebido com gritos de entusiasmo e, depois de uma rápida luta pela posse do volume, William o resgatou antes que fosse dilacerado, mas concordou em ler algumas das passagens em voz alta, sua leitura dramática sendo recebida com uivos de êxtase e saraivadas de caroços de azeitona.
Ler é, sem dúvida, um esforço que dá sede e, assim, mais bebidas foram solicitadas e consumidas. Ele não saberia dizer quem primeiro sugeriu que o grupo deveria constituir uma força expedicionária com o propósito de compilar uma lista semelhante para Nova York. Entretanto, quem quer que tenha sido o primeiro a dar a ideia, logo foi apoiado e saudado com copos cheios de ponche de rum - todas as garrafas já tendo sido esvaziadas a essa altura.
E foi assim que ele se viu vagando em uma espécie de torpor alcoólico por vielas estreitas cuja escuridão era pontuada por janelas iluminadas à vela e uma ou outra lanterna pendurada em um cruzamento. Ninguém parecia ter nenhum endereço em mente, mas todo o grupo avançava entorpecidamente como um só corpo, atraído por alguma emanação sutil.
- Como cachorros seguindo uma cadela no cio - ele observou, e ficou surpreso de receber um empurrão e um grito de aprovação de um dos amigos de Adam. Ele não havia percebido que falara em voz alta. No entanto, ele estava certo, pois finalmente chegaram a um beco ao longo do qual havia duas ou três lanternas penduradas, forradas com musselina vermelha, de modo que a luz se difundia em uma claridade cor de sangue pelas entradas das casas - todas abertas de par em par em sinal de boas-vindas. Gritos entusiásticos saudaram a descoberta e o grupo de pretensos investigadores avançou com determinação, parando apenas para uma rápida discussão no meio da rua, concernente à escolha do estabelecimento por onde começar a pesquisa.
O próprio William não tomou parte na discussão; o ar estava abafado, úmido e fétido com o fedor de gado e esgoto, e ele repentinamente sentiu que uma das azeitonas que consumira muito provavelmente caíra mal. Suava profusamente, um suor pegajoso, e suas cuecas úmidas grudavam-se nele com uma insistência que o aterrorizava com a ideia de que talvez não conseguisse tirar as calças a tempo, caso seu desarranjo estomacal resolvesse se mover repentinamente para baixo.
Ele forçou um sorriso e, com um vago movimento do braço, indicou a Adam que ele deveria prosseguir como quisesse - William iria se aventurar um pouco mais longe.
E foi o que fez, deixando o tumulto dos jovens oficiais arruaceiros para trás, e, cambaleando, passou pela última das lanternas vermelhas. Procurava desesperadamente um lugar que oferecesse alguma aparência de privacidade para que pudesse vomitar, mas não encontrando nada que servisse aos seus propósitos finalmente parou e vomitou na entrada de uma casa quando, para seu horror, a porta se escancarou, revelando o dono, altamente indignado, que não esperou explicações, desculpas ou ofertas de recompensa, mas agarrou uma espécie de bastão de trás da porta e, berrando palavrões incompreensíveis no que parecia ser alemão, perseguiu William pelo beco abaixo.
Entre uma coisa e outra, William passou algum tempo vagando sem rumo por chiqueiros, barracões e ancoradouros fétidos antes de encontrar o caminho de volta para o bairro certo, lá encontrando seu primo Adam subindo e descendo a rua, batendo nas portas e gritando por ele a plenos pulmões, à sua procura.
- Não bata nesta daí! - ele disse, assustado, vendo Adam prestes a bater na porta do maldito alemão. Adam girou nos calcanhares com surpresa e alívio.
- Aí está você! Tudo bem, meu velho?
- Oh, sim. Tudo bem. - Sentia-se úmido e pegajoso, apesar do calor intenso da noite de verão, mas o agudo mal-estar se desfizera, com o salutar efeito colateral de deixá-lo sóbrio.
- Achei que tivesse sido assaltado ou morto em um beco desses. Nunca mais iria poder encarar tio John se tivesse que lhe contar que você foi morto por minha causa.
Desciam a viela, as costas voltadas para as lanternas vermelhas. Todos os rapazes haviam desaparecido em um ou outro estabelecimento, embora os sons de farra que vinham do interior sugerissem que sua animação não arrefecera, fora apenas realocada.
- Você se arranjou bem? - Adam perguntou. Apontou o queixo na direção de onde William viera.
- Oh, bem. E você? - Bem, ela não receberia um parágrafo no Harris, mas não era má para um sumidouro como Nova York - Adam disse criteriosamente. Seu lenço estava solto, pendurado no pescoço, e quando passaram pela fraca claridade de uma janela William viu que estava faltando um dos botões de prata do casaco de seu primo. - Mas poderia jurar que vi umas duas prostitutas dessas no acampamento.
- Sir Henry o mandou fazer um censo? Ou você simplesmente passa tanto tempo com os seguidores de acampamento que já conhece todos eles pelo...
Foi interrompido por uma mudança no barulho que vinha de uma das casas da rua. Gritaria, mas não do tipo provocado por bêbados alegres como era evidente até então. Eram gritos assustadores, uma voz masculina furiosa e os berros estridentes de uma mulher.
Os primos trocaram um olhar, depois se arremessaram simultaneamente na direção do tumulto.
A confusão aumentava conforme corriam na direção da origem e, quando alcançaram a casa mais distante, vários soldados semidespidos jorraram para o meio da viela, seguidos por um tenente musculoso - a quem William fora apresentado durante a festa no quarto de Adam, mas de cujo nome ele não se lembrava - arrastando uma prostituta seminua pelo braço.
O tenente havia perdido o casaco e a peruca; seu cabelo escuro era tosado bem curto e a linha do couro cabeludo começava bem baixa no meio da testa, o que, juntamente com a compleição musculosa, de ombros largos, lhe dava o aspecto de um touro pronto a atacar. E de fato ele o fez, virando-se e golpeando com o ombro a mulher que arrastara para fora, atirando-a contra a parede da casa. Ele estava completamente bêbado e berrava blasfêmias incoerentes.
- Brulote. William não viu quem dissera a palavra, mas foi repetida em murmúrios agitados e uma sensação odiosa percorreu os homens na viela.
- Brulote! Ela é uma brulote! Várias mulheres haviam se amontoado na porta. A luz por trás delas era turva demais para mostrar seus rostos, mas estavam claramente assustadas, agarradas umas às outras. Uma delas tentou gritar, estendendo um braço, mas as outras puxaram-na para trás. O tenente de cabelos pretos não deu atenção; ele espancava a prostituta, socando-a repetidamente na barriga e nos seios.
- Ei, companheiro! William arremessou-se para frente, gritando, mas várias mãos agarraram seus braços, impedindo-o.
- Brulote! - Os homens começaram a entoar a palavra a cada golpe dos punhos do tenente.
Brulote, ou balsa de fogo, uma embarcação que leva explosivos aos navios inimigos, é como chamavam uma prostituta com vesículas de sífilis, e quando o tenente parou de surrá-la e arrastou-a para baixo da luz da lanterna vermelha William pôde ver que ela realmente era doente; as pústulas inflamadas pelo seu rosto eram visíveis.
- Rodham! Rodham! - Adam gritava o nome do tenente, tentando abrir caminho pelo aglomerado de homens, mas eles se moveram juntos, empurrando-o para trás, e o coro gritando "Brulote!" ficou mais alto.
As mulheres amontoadas na porta soltavam gritos estridentes e comprimiram-se para trás quando Rodham arremessou a mulher na soleira da porta. William lançou-se para frente e conseguiu abrir passagem na multidão, mas, antes que pudesse alcançar o tenente, Rodham agarrara a lanterna e, arremessando-a contra a fachada da casa, lançou óleo em chamas sobre a prostituta.
Ele caiu para trás então, arfando, os olhos arregalados e fixos como se não pudesse acreditar no que via, quando a mulher levantou-se, os braços girando em pânico enquanto as chamas lambiam seus cabelos e sua combinação fina. Em poucos segundos, ela virara uma tocha humana, gritando com uma voz fina e estridente, que atravessava a algazarra na rua e penetrava diretamente no cérebro de William.
Os homens recuaram quando ela deu alguns passos na direção deles, oscilante, as mãos estendidas - se em uma súplica vã por ajuda ou no desejo de imolar seus algozes também ele não saberia dizer. Ficou parado, fincado no chão, o corpo trincado na ânsia de fazer alguma coisa, na impossibilidade de fazer qualquer coisa, na dominante sensação de tragédia. Uma dor insistente em seu braço o fez virar-se mecanicamente, deparando-se com Adam ao seu lado, os dedos enfiados com força no músculo de seu braço.
- Vamos embora - Adam sussurrou, o rosto branco e suado. - Pelo amor de Deus, vamos!
A porta do prostíbulo foi fechada com um baque. A mulher em chamas caiu junto à porta, as mãos pressionadas contra a madeira. O cheiro de carne assada encheu o beco confinado, estreito e quente, e William sentiu nova ânsia de vômito.
- Que Deus amaldiçoe vocês! Que seus malditos paus apodreçam e caiam! - Os gritos vinham de uma janela no andar superior; a cabeça de William virou-se para cima bruscamente e ele viu uma mulher brandindo o punho cerrado para os homens embaixo. Houve um rumor surdo entre os homens e um deles gritou um palavrão em resposta; um outro abaixou-se, pegou uma pedra do pavimento e, levantando-se, arremessou-a com força. A pedra ricocheteou na fachada da casa embaixo da janela e voltou, atingindo um dos soldados, que praguejou e empurrou o homem que a atirara.
A mulher carbonizada desmoronara junto à porta; as chamas haviam feito uma mancha queimada na madeira. Ela ainda emitia um débil queixume, mas parara de se mexer.
De repente, William perdeu a cabeça e, agarrando o homem que atirara a pedra, segurou-o pelo pescoço e bateu sua cabeça contra o batente da porta da casa. O homem retesou-se e desmoronou, os joelhos cedendo, e sentou-se na rua, gemendo.
- Saiam! - William berrou. - Todos vocês! Vão embora! - Com os punhos cerrados, virou-se para o tenente de cabelos pretos, o qual, toda a raiva desaparecida, estava parado, imóvel, olhando fixamente para a mulher no alpendre. Suas saias haviam sido consumidas pelo fogo; um par de pernas carbonizadas torceu-se debilmente na escuridão.
William alcançou o sujeito com uma única passada e agarrou-o pela frente da camisa, virando-o bruscamente.
- Vá embora - ele disse, com uma voz ameaçadora. - Ande. Agora! Soltou o tenente, que pestanejou, engoliu em seco e, virando-se, caminhou como um autômato para dentro da noite.
Arquejando, William virou-se para o resto dos homens, mas eles haviam perdido a sede de violência com a mesma rapidez que haviam se deixado dominar por ela. Houve alguns olhares para a mulher - agora absolutamente imóvel - , um arrastamento de pés, murmúrios incoerentes. Nenhum deles era capaz de fitar o outro nos olhos.
William tinha uma vaga consciência de Adam ao seu lado, trêmulo de choque, mas estoicamente ao seu lado. Colocou a mão no ombro de seu primo mais novo e segurou-o com firmeza, ele próprio tremendo, enquanto os homens desapareciam. O homem sentado na rua apoiou-se lentamente nas mãos e nos pés, levantou-se parcialmente e deu uma guinada, cambaleando, atrás de seus companheiros, afastando-se da frente das casas conforme avançava na escuridão.
A viela ficou silenciosa. O fogo se extinguira. As outras lanternas vermelhas do beco haviam sido apagadas. Sentiu como se estivesse preso ao chão e fosse ficar para sempre naquele lugar odioso - mas Adam moveu-se um pouco e sua mão caiu do ombro de seu primo, e ele descobriu que seus pés o levariam dali.
Viraram-se e caminharam em silêncio, de volta pelas ruas escuras. Passaram por um posto de vigia, onde sentinelas rodeavam uma fogueira, mantendo uma vigilância descontraída. Eles deviam manter a ordem na cidade ocupada, os vigias. As sentinelas olharam para eles, mas não os pararam.
A luz da fogueira, ele viu os riscos molhados no rosto de Adam e compreendeu que seu primo estava chorando.
Ele também estava.
POSIÇÃO TRANSVERSA
Fraser's Ridge Março, 1777
O mundo estava molhado. Correntes de água do degelo saltavam pela encosta da montanha, a grama e as folhas estavam úmidas de orvalho e as telhas soltavam vapor com o sol da manhã. Nossos preparativos tinham sido feitos e as passagens estavam desimpedidas. Restava apenas mais uma coisa para fazer antes de podermos partir.
- Hoje, você acha? - Jamie perguntou esperançosamente. Ele não era um homem afeito à tranquila contemplação; quando uma linha de ação é decidida, ele quer agir logo. Bebês, infelizmente, são completamente indiferentes tanto à conveniência quanto à impaciência.
- Talvez - eu disse, tentando controlar minha própria impaciência. - Talvez não.
- Eu a vi na semana passada e já naquela ocasião ela parecia que ia explodir a qualquer momento, tia - Ian observou, dando a Rollo o último bocado de seu bolinho. - Conhece aqueles cogumelos? Aqueles grandes e redondos? Você toca em um deles e puni! - Estalou os dedos, espalhando farelos de bolo. - Simples assim.
- Ela vai ter um só, não é? - Jamie perguntou, franzindo o cenho.
- Eu já lhe disse, umas seis vezes: eu acho que sim. Espero que sim - acrescentei, reprimindo a vontade de fazer o sinal da cruz. - Mas nunca se sabe.
- Gêmeos são característica de família - Ian interpôs prestativamente. Jamie se benzeu. - Só ouvi batidas de um coração - eu disse, controlando a irritação - e estou ouvindo há meses.
- Você não pode contar as protuberâncias que se projetam para fora? - Ian perguntou. - Se parece ter seis pernas, quero dizer...
- Mais fácil falar do que fazer. - Eu podia, é claro, discernir o aspecto geral da criança; uma cabeça era razoavelmente fácil de sentir, assim como as nádegas; braços e pernas eram um pouco mais problemáticos. Era isso que perturbava no momento.
Eu examinara Lizzie uma vez por semana no último mês - e fora à sua cabana dia sim, dia não na última semana, apesar de ser uma longa caminhada. A criança - e eu realmente achava que era apenas uma - parecia muito grande; o fundo do útero estava bem mais alto do que eu achava que deveria estar. E, embora os bebês frequentemente mudem de posição nas últimas semanas antes do nascimento, este permanecia em "posição transversa" - atravessado - por um tempo preocupantemente longo.
- O fato é que sem hospital, instalações cirúrgicas ou anestesia, minha capacidade de lidar com um parto fora do normal ficava seriamente limitada. Sem intervenção cirúrgica, com uma posição transversa, uma parteira tinha quatro alternativas: deixar a mulher morrer após dias de agonizante trabalho de parto; deixar a mulher morrer depois de fazer uma cesárea sem o benefício de anestesia ou assepsia - mas possivelmente salvar o bebê; possivelmente salvar a mãe matando a criança no útero e depois a removendo em pedaços (Daniel Rawlings tinha várias páginas em seu livro - ilustradas - descrevendo este procedimento) ou tentar internamente virar o bebê para uma posição em que pudesse nascer.
Apesar de superficialmente parecer a opção mais atraente, esta última podia facilmente ser tão perigosa quanto as outras, resultando na morte da mãe e da criança.
Eu tentara uma versão externa na semana anterior e conseguira - com dificuldade - induzir a criança a virar de cabeça para baixo. Dois dias depois, ela voltara à posição anterior, evidentemente preferindo sua posição de costas. Ela poderia virar novamente por si mesma antes do início do trabalho de parto - e poderia não virar.
Com base na experiência, eu normalmente conseguia distinguir entre planejamento inteligente para contingências e preocupação inútil com situações que poderiam não acontecer, assim permitindo que eu dormisse à noite. Mas eu ficara acordada até altas horas da noite na última semana, visualizando a possibilidade de a criança não se virar a tempo e percorrendo aquela lista curta e sombria de alternativas, em uma busca inútil de alguma outra chance.
Se eu tivesse éter... mas o que eu tinha se perdeu no incêndio da casa. Matar Lizzie para salvar o bebê? Não. Se chegasse a esse ponto, melhor matar a criança in utero e deixar Rodney com uma mãe, Jo e Kezzie com sua mulher. Mas a ideia de esmagar o crânio de uma criança completamente formada, saudável, pronta-para nascer... ou decapitá-la com um laço de arame cortante...
- Não está com fome hoje de manhã, tia?
- Hã... não. Obrigada, Ian.
- Você parece um pouco pálida, Sassenach. Está se sentindo mal?
- Não! - Levantei-me apressadamente antes que pudessem fazer mais perguntas - não havia absolutamente nenhuma razão para mais alguém além de mim ficar aterrorizado com o que eu estava pensando - e saí para buscar um balde de água do poço.
Amy estava do lado de fora; ela havia acendido uma fogueira embaixo do caldeirão de lavagem de roupa e apressava Aidan e Orne, que corriam de um lado para o outro para pegar lenha, parando de vez em quando para atirar lama um no outro.
- Precisa de água, a bhana-mahaighstir? - ela perguntou, vendo o balde em minha mão. - Aidan vai buscar para você.
- Não, pode deixar - assegurei-lhe. - Quero tomar um pouco de ar. Está tão agradável de manhã aqui fora agora. - Era verdade; o ar ainda era frio até o sol estar alto no céu, mas fresco e inebriante com os aromas de grama, brotos carregados de resina e as primeiras florescências.
Levei meu balde até o poço, enchi-o e comecei a descer o caminho de novo, devagar, olhando para tudo como se costuma fazer quando se sabe que talvez não volte àquele lugar outra vez por um longo tempo. Se é que algum dia voltaria.
As coisas já haviam mudado drasticamente em Ridge, com a chegada da violência, os distúrbios da guerra, a destruição da casa grande. Ainda iriam mudar muito, com Jamie e eu ausentes.
Quem seria o líder natural? Hiram Crombie era de facto chefe do povo pescador presbiteriano que viera de Thurso - mas ele era um homem severo, inflexível, mais capaz de causar atritos com o resto da comunidade do que manter a ordem e promover a cooperação.
Bobby? Depois de alguma consideração, Jamie o nomeara administrador, com a responsabilidade de tomar conta de nossa propriedade - ou do que restara dela. Mas à parte suas habilidades naturais ou falta delas, Bobby era jovem. Ele - juntamente com muitos dos outros homens de Ridge - poderia facilmente ser levado de roldão pela tormenta que se avizinhava e obrigado a servir em uma das milícias. Mas não nas forças da Coroa; ele fora um soldado inglês baseado em Boston, há sete anos, onde ele e vários companheiros foram ameaçados por uma multidão enfurecida de centenas de cidadãos de Boston. Temendo por suas vidas, os soldados carregaram seus mosquetes e apontaram para a multidão. Pedras e paus foram atirados, tiros disparados - por quem, ninguém pôde dizer; nunca perguntei a Bobby - e homens morreram.
A vida de Bobby fora poupada no julgamento subsequente, mas ele carregava uma marca de ferro em brasa na face - "M", de "Murderer", assassino. Eu não fazia a menor ideia de suas tendências políticas - ele nunca tocava no assunto - , mas ele jamais lutaria ao lado do exército britânico outra vez.
Abri a porta da cabana, minha estabilidade emocional bastante restaurada. Jamie e Ian agora discutiam se a criança seria irmã do pequeno Rodney ou meio-irmã.
- Bem, não há como saber, não é? - Ian disse. - Ninguém sabe se foi Jo ou Kezzie quem gerou o pequeno Rodney, e é o mesmo com esta criança. Se Jo for o pai de Rodney e Kezzie o pai desta...
- Na verdade, não importa - interrompi, despejando a água do balde em um caldeirão. - Jo e Kezzie são gêmeos idênticos. Isso significa que seu... hã... esperma é idêntico também. - Isso era simplificar demais a questão, mas era muito cedo no dia para tentar explicar meiose reprodutiva e DNA recombinante. - Se a mãe for a mesma, e é, e o pai geneticamente igual, e é, todos os filhos que nascerem serão totalmente irmãos uns dos outros.
- O sêmen deles é igual, então? - Ian perguntou, incrédulo. - Como pode saber? Você olhou? - ele acrescentou, lançando-me um olhar de horrorizada incredulidade.
- Não olhei - respondi com severidade. - Não é preciso. Eu sei essas coisas.
Oh, sim - ele disse, balançando a cabeça com respeito. - Claro que sabe. Às vezes, me esqueço do que você é, tia Claire. Eu não sabia o que ele queria dizer com isso exatamente, mas não me pareceu necessário nem perguntar, nem explicar que meu conhecimento dos processos íntimos dos Beardsley era acadêmico, e não sobrenatural.
- Mas é Kezzie o pai desta criança, não é? - Jamie interpôs, franzindo o cenho. - Eu mandei Jo embora; é com Kezzie que ela viveu este último ano.
Ian lançou-lhe um olhar de compaixão.
- E você acha que ele foi? Jo?
- Eu não o vi - Jamie disse, mas as grossas sobrancelhas ruivas uniram-se.
- Bem, não veria mesmo - Ian admitiu. - Eles devem ter tomado todo cuidado com isso, não querendo enfurecê-lo. Na verdade, você nunca vê mais de um deles... de cada vez - acrescentou, descontraidamente.
Nós dois olhamos fixamente para ele. Ele ergueu os olhos de um pedaço de bacon em sua mão e levantou as sobrancelhas.
- Eu sei essas coisas, hein? - disse afavelmente.
Após o jantar, todos se prepararam e se acomodaram para a noite. Todos os Higgins retiraram-se para o quarto, onde compartilhavam a única cama.
Obsessivamente, abri minha trouxa de parteira e espalhei o equipamento, verificando tudo outra vez. Tesouras, fio branco para o cordão. Panos limpos, lavados muitas vezes para remover qualquer vestígio de sabão de lixívia, escaldados e secos. Um grande quadrado de lona encerada, para impermeabilizar o colchão. Uma pequena garrafa de álcool, diluído a cinquenta por cento com água esterilizada. Uma pequena sacola contendo vários fios torcidos de lã lavada, mas não fervida. Uma folha enrolada de pergaminho, para servir de estetoscópio, uma vez que o meu se perdera no incêndio. Uma faca. E um pedaço de arame fino, afiado em uma das pontas, enroscado como uma cobra.
Eu não comera muito no jantar - nem durante todo o dia - , mas tinha a sensação constante de golfada de bílis no fundo da garganta. Engoli e enrolei meu estojo outra vez, amarrando-o firmemente com barbante.
Senti os olhos de Jamie em mim e levantei a cabeça. Ele não disse nada, mas sorriu levemente, ternura nos olhos, e eu senti um alívio momentâneo - seguido de novo aperto, ao imaginar o que ele pensaria se o pior acontecesse e eu tivesse que... - mas ele vira a expressão de medo em meu rosto. Com os olhos ainda fixos nos meus, ele tirou seu rosário do sporran e começou a rezar silenciosamente, a madeira desgastada das contas deslizando devagar pelos seus dedos.
Duas noites depois, acordei instantaneamente com o som de passos no caminho do lado de fora, e já estava de pé, vestindo minhas roupas, antes que se ouvisse a batida de Jo na porta. Jamie o mandou entrar; eu os ouvi murmurando enquanto eu entrava embaixo do banco comprido para resgatar meu estojo. Jo parecia agitado, um pouco preocupado - mas não em pânico. Isso era bom; se Lizzie estivesse com medo ou em sérias dificuldades, ele teria pressentido isso imediatamente - os gêmeos eram quase tão sensíveis ao seu estado de espírito e bem-estar como eram um com o outro.
- Devo ir? - Jamie sussurrou, assomando perto de mim.
- Não - respondi também num sussurro, tocando-o para dar ênfase. - Volte a dormir. Mandarei avisá-lo, se precisar de você.
Ele estava desgrenhado do sono, as brasas da lareira lançando sombras em seus cabelos, mas seus olhos estavam alertas. Ele assentiu e beijou minha testa, mas em vez de recuar colocou a mão sobre minha cabeça e murmurou em gaélico:
- Ó abençoado Miguel do Reino Vermelho...
Em seguida, tocou meu rosto em despedida.
- Verei você de manhã, então, Sassenach - ele disse, empurrando-me delicadamente em direção à porta.
Para minha surpresa, estava nevando. O céu estava cinzento e claro, e o ar animado com enormes flocos esvoaçantes que roçavam meu rosto, derretendo-se imediatamente em minha pele. Era uma tempestade de primavera; eu podia ver os flocos assentarem-se rapidamente em talos de capim, desaparecendo em seguida. Provavelmente não haveria nenhum vestígio de neve pela manhã, mas a noite estava repleta de seus mistérios. Virei-me para olhar para trás, mas não pude ver a cabana - apenas as formas de árvores parcialmente cobertas, indistintas à luz cinza-perolada. O caminho à nossa frente parecia igualmente irreal, o traçado desaparecendo no meio de árvores estranhas e sombras desconhecidas.
Eu me sentia estranhamente desencarnada, presa entre o passado e o futuro, nada visível a não ser o silêncio branco e em torvelinho que me cercava. No entanto, eu me sentia mais calma do que em muitos dias. Sentia o peso da mão de Jamie em minha cabeça, com sua bênção sussurrante: Ó abençoado Miguel do Reino Vermelho...
Era a bênção dada a um guerreiro antes da batalha. Eu a dera a ele, mais de uma vez. Ele nunca fizera isso antes e eu não sabia o que o levara a fazê-lo agora - mas as palavras cintilavam em meu coração, um pequeno escudo contra os perigos à frente.
A neve agora cobria o solo com um cobertor fino que escondia a terra escura e a vegetação rasteira. Os pés de Jo deixavam nítidas pegadas escuras que eu seguia pela encosta acima, as agulhas dos pinheiros e abetos balsâmicos roçando frios e perfumados contra a minha saia, enquanto eu ouvia um silêncio vibrante que tocava como um sino.
Se houvesse uma noite em que os anjos caminhassem, eu rezaria para que fosse esta.
Era quase uma hora de caminhada até a cabana dos Beardsley, à luz do dia e com tempo bom. Mas o medo apressava meus passos e Jo - achei que era Jo, pela voz - esforçava-se para me acompanhar.
- Há quanto tempo ela está assim? - perguntei. Nunca se podia saber, mas o primeiro parto de Lizzie fora rápido; ela tivera o pequeno Rodney sozinha e sem incidentes. Eu não achava que iríamos ter a mesma sorte esta noite, embora minha mente não pudesse deixar de visualizar esperançosamente minha chegada à cabana encontrando Lizzie já segurando o bebê, que viera ao mundo sem dificuldades.
- Não muito tempo - ele disse, arfando. - A bolsa d'água estourou de repente, quando estávamos todos na cama, e ela disse que era melhor eu vir chamá-la imediatamente.
Tentei não notar aquele "todos na cama" - afinal, ele ou Kezzie poderia estar dormindo no chão - mas o ménage dos Beardsley era a personificação literal do duplo sentido; ninguém que não conhecesse a verdade poderia pensar neles sem pensar em...
Não me dei ao trabalho de perguntar há quanto tempo ele e Kezzie estavam convivendo na cabana; pelo que Ian dissera, era provável que ambos estivessem lá o tempo todo. Considerando as condições normais de habitação no interior, ninguém acharia estranha a ideia de um homem e sua mulher viverem com o irmão dele. E até onde a população geral de Ridge tinha conhecimento, Lizzie estava casada com Kezzie. E estava. Ela também estava casada com Jo, em consequência de uma série de maquinações que ainda me espantava, mas a família Beardsley mantinha esse fato em segredo, por ordem de Jamie.
- O pai dela estará lá - Jo disse, o hálito formando plumas brancas conforme ele se colocou ao meu lado onde o caminho se alargou. - E tia Monika. Kezzie foi buscá-los.
- Você deixou Lizzie sozinha? Arqueou os ombros, na defensiva, sem jeito. - Foi ela quem disse - falou simplesmente. Não me dei ao trabalho de responder, mas me apressei, até que uma pontada no meu flanco me fez diminuir um pouco o passo. Se Lizzie já não tivesse dado à luz e tido uma hemorragia ou alguma outra desgraça enquanto estava sozinha, seria uma boa ajuda ter "tia Monika" - a segunda esposa do sr. Wemyss - por perto. Monika Berrisch Wemyss era uma alemã, com um inglês limitado e excêntrico, mas imensurável coragem e bom-senso.
O sr. Wemyss tinha sua parcela de coragem, também, embora de um jeito mais sossegado. Ele nos aguardava na varanda, com Kezzie, e era óbvio que o sr. Wemyss estava dando apoio ao seu genro, e não o contrário. Kezzie claramente torcia as mãos e saltitava de um pé para o outro, enquanto a figura frágil do sr. Wemyss inclinava-se para ele, reconfortando-o, a mão em seu braço. Ouvi murmúrios e então eles nos viram e voltaram-se para nós, a esperança repentina visível na forma como se empertigaram.
Um uivo longo e surdo veio da cabana e todos os homens enrijeceram-se como se um lobo tivesse saltado da escuridão em cima deles.
- Bem, pelo som, ela está bem - eu disse fracamente, e todos eles soltaram a respiração ao mesmo tempo, de forma audível. Tive vontade de rir, mas achei melhor não o fazer, e empurrei a porta.
- Ugh - Lizzie exclamou, erguendo os olhos da cama. - Oh, é a senhora. Graças a Deus!
- Gott bedanket, sim - concordou tia Monika, tranquilamente. Ela estava de quatro, limpando o chão com um pedaço de pano. - Não falta muito mais agora, espero.
- Eu também espero - Lizzie disse, com uma careta. - GAAAAARRRRRGH! - Seu rosto congestionou-se em um ricto e ficou vermelho, e seu corpo inchado arqueou-se para trás. Ela mais parecia alguém com tétano do que uma mulher grávida, mas felizmente o espasmo durou pouco e ela desabou em um monte mole, arquejando. - Não foi assim, da última vez - ela se queixou, abrindo um dos olhos enquanto eu apalpava seu abdômen.
- Nunca é igual - eu disse distraidamente. Um rápido olhar fez meu coração dar um salto; a criança não estava mais atravessada. Por outro lado.... também não estava na posição inteiramente certa, de cabeça para baixo. Não estava se movendo, os bebês geralmente não se moviam durante o parto, e, enquanto eu achava ter localizado a cabeça embaixo das costelas de Lizzie, não tinha nenhuma certeza quanto à disposição do resto do corpo.
- Deixe-me dar uma olhada aqui... - Ela estava despida, coberta com uma colcha. Sua combinação molhada estava pendurada nas costas de uma cadeira, soltando vapor diante da lareira. A cama, entretanto, não estava encharcada e eu deduzi que ela sentira a ruptura de suas membranas e ficara em pé rapidamente, antes do rompimento da bolsa.
Eu tive medo de olhar e soltei a respiração com sonoro alívio. O principal receio com um parto pélvico - em que as partes do feto a surgir primeiro são os pés ou as nádegas - é que parte do cordão umbilical sofra um prolapso quando as membranas se rompem, o laço então se apertando entre a pélvis e alguma parte do feto. No entanto, não havia nenhum sinal do cordão umbilical e um rápido exame indicou que a cérvice uterina estava quase abolida.
A única coisa a fazer agora era esperar para ver o que surgiria primeiro. Desfiz minha trouxa e - empurrando o rolo de arame afiado apressadamente para baixo de uma pilha de panos - estendi a lona encerada, içando Lizzie para cima dela com a ajuda de tia Monika.
Monika pestanejou e olhou para a caminha onde o pequeno Rodney dormia quando Lizzie soltou outro daqueles uivos sobrenaturais. Ela olhou para mim em busca de confirmação de que não havia nada de errado, em seguida segurou as mãos de Lizzie, murmurando suavemente em alemão, enquanto Lizzie gemia e arquejava.
A porta rangeu delicadamente e eu virei-me, vendo um dos Beardsley espreitando para dentro, o rosto exibindo uma mistura de temor e esperança.
- Já chegou? - sussurrou com voz rouca.
- NÃO! - Lizzie berrou, sentando-se abruptamente na cama. - Tire o focinho da minha vista ou arrancarei suas bolas! Todas as quatro!
A porta fechou-se prontamente e Lizzie acalmou-se, bufando.
- Eu os odeio - disse através de dentes cerrados. - Quero que morram!
Hum-hum - eu disse, solidariamente. - Bem, tenho certeza que ao menos eles estão sofrendo.
- Ótimo. - Ela passou da fúria para a comoção em uma fração de segundo, as lágrimas assomando aos seus olhos. - Eu vou morrer?
- Não - eu disse, com toda confiança que consegui reunir. - AAAAAAAAAARRRRRGGGGG!
- Gruss Gott - tia Monika exclamou, fazendo o sinal da cruz. - Ist gut?
- Ja - respondi, ainda com confiança. - Será que haveria alguma tesoura...?
- Oh, ja - ela respondeu, pegando a bolsa. Apresentou uma pequena tesoura de bordado, muito usada e que um dia já fora dourada. - É isso que procura?
- Danke. - MALDIRRRRRRGGGG! Monika e eu olhamos simultaneamente para Lizzie.
- Não exagere - eu disse. - Eles estão com medo, mas não são idiotas. Além do mais, vai assustar seu pai. E Rodney - acrescentei, com um rápido olhar para o pequeno monte de cobertas no pequeno catre.
Ela se acalmou, ofegante, mas conseguiu fazer um leve sinal de assentimento com a cabeça e esboçar um ligeiro sorriso.
Os acontecimentos se aceleraram rapidamente depois disso; ela era rápida. Verifiquei seu pulso, depois a cérvice, e senti meu próprio coração acelerar quando toquei o que obviamente era um pezinho, na saída. Eu conseguiria pegar o outro?
Olhei para Monika, avaliando tamanho e força. Ela era forte como um cordel de chicote, eu sabia, mas não muito corpulenta. Lizzie, por outro lado, estava do tamanho de... bem, Ian não estava exagerando quando achou que ela teria gêmeos.
A ideia arrepiante de que ainda pudessem ser gêmeos fez os cabelos da minha nuca se arrepiarem, apesar do calor úmido da cabana.
Não, disse com firmeza a mim mesma. Não é, você sabe que não. Um só já vai ser bastante difícil.
- Vamos precisar de um dos homens para ajudar a segurar seus ombros para cima - eu disse a Monika. - Chame um dos gêmeos, sim?
- Os dois - Lizzie disse, arquejante, enquanto Monika se dirigia para a porta. - Um só será... - Os dois! Hmmmmmggggg...
- Os dois - eu disse a Monika, que assentiu de maneira conformada. Os gêmeos entraram com uma lufada de ar frio, os rostos máscaras idênticas, coradas de temor e empolgação. Sem que eu dissesse qualquer coisa a eles, dirigiram-se diretamente para Lizzie, como duas limalhas de ferro para um ímã. Ela conseguira se sentar e um deles ajoelhou-se atrás dela, as mãos delicadamente massageando seus ombros conforme relaxavam da última contração. Seu irmão sentou-se ao lado dela, um braço de apoio ao redor do que costumava ser sua cintura, a outra mão alisando para trás os cabelos suados em sua testa.
Tentei arrumar a colcha ao redor dela, sobre sua barriga protuberante, mas ela a afastou, acalorada e impaciente. A cabana estava repleta de um calor úmido, do caldeirão fumegante e do suor do esforço. Bem, presumivelmente os gêmeos estavam mais familiarizados com a anatomia dela do que eu, refleti, e entreguei a colcha à tia Monika. O recato não tinha lugar em um parto.
Ajoelhei-me diante dela, tesoura na mão, e fiz a episiotomia rapidamente, sentindo um pequeno jato de sangue quente pela minha mão. Eu raramente precisava fazer o corte do períneo em um parto rotineiro, mas neste caso eu iria precisar de espaço para manobra. Pressionei um dos meus panos limpos no corte, mas a quantidade de sangue era insignificante, e a parte de dentro de suas coxas estava marcada de muco ensanguentado, de qualquer forma.
Era, de fato, um pé; eu podia ver os dedos, longos, como os de uma rã, e olhei automaticamente para os pés de Lizzie, plantados firmemente no chão, de cada lado de mim. Não, os dela eram curtos e compactos; devia ser a influência dos gêmeos.
O cheiro úmido, pantanoso, de suor, sangue e líquido amniótico erguia-se como uma névoa do corpo de Lizzie e senti meu próprio suor escorrendo pelos meus flancos. Tateei para cima, enganchei um dedo ao redor do tornozelo e puxei o pé para baixo, sentindo a vida da criança mover-se em sua carne, embora o bebê propriamente não estivesse se movendo, indefeso no processo do nascimento.
O outro, eu precisava do outro. Tateando ansiosamente pela parede do abdômen entre uma contração e a seguinte, deslizei a outra mão pela perna emergente, encontrei a minúscula curva da nádega. Troquei de mão rapidamente e, com os olhos cerrados, encontrei a curva da perna dobrada. Droga, parecia ter o joelho enfiado sob o queixo... senti a firmeza flexível de minúsculos ossos cartilaginosos, sólidos no esguicho de fluidos, a distensão de músculos... segurei um dedo, dois dedos, envolvendo o outro tornozelo, e - repetindo entre dentes "Segurem!", "Firme, não a deixem escorregar!", conforme as costas de Lizzie se arqueavam e suas nádegas deslizavam em minha direção - trouxe o segundo pé para baixo.
Sentei-me para trás, os olhos arregalados e respirando com força, embora não tivesse sido um esforço físico. O pequenino pé de rã torceu-se uma vez, depois arriou, conforme as pernas apareceram com o próximo empurrão.
- Outra vez, querida - murmurei, a mão na coxa retesada de Lizzie. - Mais um empurrão como esse.
Um rosnado das profundezas da terra quando Lizzie atingiu aquele ponto em que uma mulher já não se importa se vive, morre ou se racha ao meio, e a parte inferior do corpo da criança surgiu devagar, o umbigo pulsando como um grosso verme roxo enroscado sobre a barriga. Meus olhos estavam fixos nele, pensando, Obrigada, Senhor, obrigada, Senhor, quando pressenti a presença de tia Monika, espreitando intensamente por cima do meu ombro.
- Ist das bolas? - disse, intrigada, apontando para a genitália do bebê. Eu não tivera tempo de olhar, preocupada como estava com o cordão umbilical, mas olhei para baixo e sorri.
- Não. Ist eine Madchen - eu disse. O sexo do bebê estava edematoso; realmente parecia o equipamento de um menino, o clitóris projetando-se dos lábios vaginais inchados, mas não era.
- O quê? O que foi? - um dos Beardsley perguntava, inclinando-se para olhar.
- Você ganhou uma menininha - tia Monika lhe disse, radiante.
- Uma menina? - o outro Beardsley disse, arquejante. - Lizzie, temos uma filha!
- Querem fazer o favor de calar a boca?!? - Lizzie rosnou. - NNNNNNNGGGGG!
Nesse ponto, Rodney acordou e sentou-se abruptamente na cama, de boca aberta e olhos arregalados. Tia Monika pôs-se de pé imediatamente, retirando-o da cama antes que ele pudesse começar a gritar.
A irmã de Rodney vinha ao mundo relutantemente, centímetro a centímetro, empurrada pelas contrações. Eu contava mentalmente Um hipopótamo, dois hipopótamos... Do aparecimento do umbigo ao bem-sucedido aparecimento da boca e a primeira respiração, não podiam se passar mais do que quatro minutos antes que começassem a ocorrer danos cerebrais por falta de oxigênio. Mas eu não podia puxar e arriscar danos ao pescoço e à cabeça.
- Empurre, querida - eu disse, apoiando as mãos nos dois joelhos de Lizzie, a voz calma. - Com força, agora.
Trinta e quatro hipopótamos, trinta e cinco... Tudo que precisávamos agora era o queixo se engatar no osso pélvico. Quando a contração arrefeceu, deslizei os dedos apressadamente até o rosto da criança e levei dois dedos acima do maxilar superior. Senti a próxima contração a caminho e cerrei os dentes quando a sua força esmagou minha mão entre os ossos da pélvis e o crânio do bebê, mas não a retirei, com medo de perder minha tração.
Sessenta e dois hipopótamos... Relaxamento, e eu lentamente comecei a retirar a mão, puxando a cabeça da criança para frente, facilitando a passagem do queixo pela borda da pélvis...
Oitenta e nove hipopótamos, noventa hipopótamos... A criança estava pendurada do corpo de Lizzie, azulada e brilhante à luz do fogo, oscilando à sombra de suas coxas como o badalo de um sino - ou um corpo de um cadafalso, e eu afastei esse pensamento da mente...
- Não deveríamos tirar...? - tia Monika sussurrou, Rodney agarrado ao seu peito.
Cem. - Não - eu disse. - Não toque nele... nela. Ainda não. - A gravidade lentamente ajudava o parto. Puxar machucaria o pescoço, e se a cabeça surgisse...
Cento e dez hipo... eram muitos hipopótamos, pensei, distraidamente, visualizando rebanhos inteiros descendo em marcha para o banhado, onde iriam se espojar na lama, gloooooooriosa...
- Agora - eu disse, preparada para limpar a boca e o nariz assim que emergissem, mas Lizzie não esperou pelo comando, e com um longo e fundo suspiro e um sonoro pop!, a cabeça surgiu inteira repentinamente e o bebê caiu nas minhas mãos como uma fruta madura.
Despejei um pouco mais da água fervente do caldeirão na bacia e acrescentei água fria do balde. O calor fez arder minhas mãos; a pele entre os nós dos meus dedos estava rachada do longo inverno e do uso constante de álcool diluído para esterilização. Eu acabara de costurar Lizzie e limpá-la, e o sangue flutuou de minhas mãos, redemoinhos escuros pela água.
Atrás de mim, Lizzie estava confortavelmente aconchegada na cama, vestida com uma camisa de um dos gêmeos, sua própria combinação ainda não estando seca. Ela ria com a euforia do parto e da sobrevivência, os gêmeos um de cada lado, cumulando-a de atenções, murmurando palavras de admiração e alívio, um prendendo para trás seus cabelos louros, soltos e suados, o outro beijando delicadamente seu pescoço.
- Está com febre, meu bem? - um deles perguntou, um tom de preocupação na voz. Isso me fez virar para olhar; Lizzie sofria de malária e, apesar de não sofrer uma crise há algum tempo, talvez o estresse do parto...
- Não - ela disse, beijando Jo ou Kezzie na testa. - Só estou corada de felicidade. - Kezzie ou Jo sorriu com veneração, radiante, enquanto seu irmão assumia os serviços de beijar o pescoço do outro lado.
Tia Monika tossiu. Ela havia limpado o bebê com um pano úmido e alguns chumaços de lã que eu havia trazido - macios e oleosos com lanolina - e agora o enrolava em um cobertor. Rodney há muito ficara entediado com os procedimentos e fora dormir no chão, junto ao cesto de lã, o polegar na boca.
- Seu pai, Lizzie - ela disse, um leve tom de reprovação na voz. - Ele vai pegar um resfriado lá fora. Und die Midel ele quer ver, mit você, mas talvez não tanto mit der.. - Conseguiu inclinar a cabeça na direção da cama, enquanto simultaneamente desviava os olhos recatadamente do alegre trio sobre ela. O sr. Wemyss e seus genros tiveram uma cautelosa reconciliação após o nascimento de Rodney, mas era melhor não forçar a situação.
Suas palavras sacudiram os gêmeos, que saltaram prontamente da cama, um abaixando-se para pegar Rodney, que segurou no colo com carinho, o outro correndo para a porta para chamar o sr. Wemyss, esquecido na varanda com a empolgação.
Apesar de ligeiramente azulado nas extremidades, o alívio fez seu rosto fino iluminar-se como se estivesse aceso por dentro. Sorriu com sincera alegria para Monika, reservando um olhar e uma cuidadosa palmadinha para a trouxinha enrolada no cobertor - mas sua atenção era toda para Lizzie, e dela para ele.
- Suas mãos estão geladas, papai - ela disse, com uma risadinha, mas segurando-o com mais força quando ele ameaçou se afastar. - Não, fique aqui; estou bem aquecida. Sente-se aqui ao meu lado e cumprimente sua netinha. - Sua voz traía um tímido orgulho, enquanto estendia a mão para tia Monika.
Monika colocou o bebê delicadamente nos braços de Lizzie e ficou parada, com uma das mãos no ombro do sr. Wemyss, seu próprio rosto maltratado pelo tempo suavizado por algo muito mais profundo do que afeto. Não pela primeira vez, me surpreendi - e fiquei levemente envergonhada por estar surpresa - com a profundidade de seu amor pelo frágil e silencioso homenzinho.
- Oh! - o sr. Wemyss exclamou baixinho. Seu dedo tocou a face do bebê; eu podia ouvi-la fazer pequenos ruídos de sucção. No começo, ela parecia chocada com o trauma do nascimento e sem interesse no seio, mas obviamente começava a mudar de ideia.
- Ela deve estar com fome. - Um farfalhar de cobertas quando Lizzie pegou o bebê e levou-o ao peito com mãos práticas.
- Como vai chamá-la, a leannan? - o sr. Wemyss perguntou.
- Eu não havia pensado realmente em um nome de menina - Lizzie respondeu. - Ela era tão grande, achei que certamente era um... ai! - Ela riu, um som baixo e afetuoso. - Havia me esquecido como um bebê recém-nascido pode ser voraz. Aai! Pronto, a chuisle, sim, assim está melhor...
Levei a mão ao saco de lã para esfregar minhas próprias mãos ásperas com um dos chumaços macios e oleosos, e por acaso avistei os gêmeos, parados a um canto, lado a lado, os olhos fixos em Lizzie e sua filha, ambos com uma expressão igual à de tia Monika. Sem afastar os olhos, o Beardsley que segurava Rodney inclinou a cabeça e beijou o topo da cabecinha redonda do menino.
Tanto amor em um lugar tão pequeno. Virei-me, meus próprios olhos embaçados. Importaria, realmente, o quanto inortodoxo era o casamento no seio daquela família estranha? Bem, importaria para Hiram Crombie, pensei. O líder dos rígidos imigrantes presbiterianos de Thurso iria querer que Lizzie, Jo e Kezzie fossem apedrejados, no mínimo - juntamente com o fruto pecaminoso de sua união.
Nenhuma chance de isso acontecer enquanto Jamie estivesse em Ridge - mas e quando ele fosse embora? Devagar, limpei o sangue de baixo das minhas unhas, esperando que Ian tivesse razão sobre a capacidade de discrição - e de engodo - dos Beardsley.
Distraída por essas considerações, eu não notara tia Monika, que se aproximara silenciosamente de mim.
- Danke - ela disse suavemente, colocando a mão nodosa no meu braço. - Gern geschehen. - Coloquei minha mão sobre a dela e apertei-a delicadamente. - Você foi uma grande ajuda. Obrigada.
Ela sorriu, mas uma ruga de preocupação formou-se em sua fronte.
- Nem tanto. Mas estou com medo, ja? - Ela olhou por cima do ombro na direção da cama, depois novamente para mim. - O que acontecerá da próxima vez, quando você não estiver hier? Eles não param, você sabe - acrescentou, discretamente fazendo um círculo com o polegar e o indicador e enfiando nele o dedo médio da outra mão, em uma ilustração nada discreta do que ela queria dizer exatamente.
Transformei apressadamente uma risada em um acesso de tosse, que felizmente foi ignorada pelas partes relevantes, embora o sr. Wemyss olhasse por cima do ombro, ligeiramente preocupado.
- Você estará aqui - eu disse a ela, recobrando-me. Ela pareceu horrorizada.
- Eu? Nein - disse, sacudindo a cabeça. - Das reicht nicht. Eu... cutucou o próprio peito magro com o dedo indicador, ao ver que eu não compreendia. - Eu... não sou suficiente.
Respirei fundo, sabendo que tia Monika tinha razão. E no entanto...
- Terá que ser - eu disse, brandamente. Ela piscou uma vez, os olhos castanhos, grandes e sensatos, fixos nos meus. Em seguida, balançou a cabeça devagar, aceitando.
- Mein Gott, hilf mir - ela disse.
Jamie não conseguira voltar a dormir. Ele tinha dificuldade em dormir ultimamente e quase sempre ficava deitado, acordado até tarde, observando o clarão das brasas na lareira e remoendo os pensamentos ou buscando respostas nas sombras das vigas acima. Se conseguisse adormecer com facilidade, em geral acordava mais tarde, repentinamente, suando. Mas ele sabia o que causava isso e o que fazer a respeito.
A maior parte de suas estratégias para atingir o sono envolvia Claire - conversar, fazer amor com ela - ou simplesmente ficar olhando para ela enquanto dormia, encontrando consolo na curva longa e sólida de sua clavícula ou na comovente forma de suas pálpebras cerradas, deixando o sono fluir do tranquilo calor de seu corpo e dominá-lo.
Mas Claire, é claro, não estava ali. Meia hora rezando o rosário convenceu-o de que já fizera o suficiente nessa direção quanto era necessário ou desejável pelo bem de Lizzie e sua iminente criança. Rezar o rosário por penitência - sim, fazia sentido, particularmente se tivesse que fazê-lo de joelhos. Ou para acalmar a mente de alguém, fortalecer o espírito ou buscar a sabedoria da meditação sobre assuntos sagrados, sim, isso, também. Mas não como uma súplica. Se ele fosse Deus, ou mesmo a Virgem Maria, que era conhecida pela paciência, acreditava que acharia tedioso ouvir por mais de uma década alguém dizendo por favor sobre alguma coisa repetidamente, sem parar, e certamente não fazia sentido aborrecer uma pessoa cuja ajuda você buscava, não é mesmo?
Ora, as preces gaélicas pareciam muito mais úteis para esse propósito, sendo como eram concentradas em uma bênção ou pedido específico, e mais agradáveis, tanto em ritmo quanto em variedade. Se lhe perguntassem, embora fosse pouco provável que alguém o fizesse.
- Moire gheal És Bhride; Mar a rug Anna Moire, Mar a rug Moire Criosda, Mar a rug Eile Eoin Baistidh Gun mhar-bhith dha dhi, Cuidichnah asaid, Cuidicha Bhtide!
Mar a gheineadh Criosd am Moire Comhliont air gach laimh, Cobhaira mise, mhoime, An gein a thoir bhon chnaimh;S mar a chomhn thu Oigh an t-solais, Gun or, gun odh, gun ni, Comhn i's mor a th'othrais, Comhna Bhride!
Ele murmurava enquanto subia.
Santa Maria e Brígida; Como Anna gerou Maria E Maria gerou Cristo, Como Eile gerou João Batista Na perfeição, Ajude-a em seu parto, Ajude-a, Ó Brígida!
Como Cristo foi concebido de Maria Em toda a perfeição, Ajude-me, minha mãe adotiva, A concepção trazer do osso; E como realmente ajudou a Virgem da alegria, Sem ouro, sem grãos, sem gado, Ajude-a, grande é sua doença, Ajude-a, ó Brígida!
Ele deixara a cabana, não conseguindo suportar o abafado confinamento, e vagou contemplativamente por Ridge sob a neve, repassando listas mentalmente. Mas o fato é que todos os seus preparativos já tinham sido feitos, salvo o carregamento dos cavalos e mulas, e sem realmente pensar nisso viu que estava subindo a trilha na direção da cabana dos Beardsley. A neve parara de cair, mas o céu estendia-se cinzento e suave no alto, e um lençol branco e frio desdobrava-se suavemente sobre as árvores e parava a corrida do vento.
Santuário, ele pensou. Não era, é claro - não havia lugar seguro em tempos de guerra - , mas a sensação da noite na montanha o fazia lembrar o interior de igrejas: uma grande paz, à espera.
Notre Dame de Paris... St. Giles, em Edimburgo. Pequenas igrejas de pedras nas Highlands, onde ele fora algumas vezes nos anos em que estivera escondido, quando achava seguro. Fez o sinal da cruz, ao se lembrar disso; as pedras nuas, em geral nada além de um altar de madeira no interior - no entanto, o alívio de entrar, sentar-se no chão se não houvesse bancos, apenas ficar lá sentado, sabendo que não estava sozinho. Santuário.
Quer tenha sido o pensamento de igrejas ou de Claire, lembrou-se de outra igreja - aquela em que se casaram, e riu consigo mesmo diante da lembrança. Não, não foi uma espera tranquila. Ainda podia sentir o estrondo de seu coração contra as costelas ao entrar, o odor de seu suor - cheirava a um bode no cio e esperava que ela não notasse - , a impossibilidade de respirar normalmente. E a sensação da mão dela na dele, seus dedos pequenos e gelados, agarrando os seus para se firmar.
Santuário. É o que foram um para o outro na ocasião - e ainda eram agora. Sangue do meu sangue. O minúsculo corte cicatrizara, mas ele esfregou a ponta de seu polegar, sorrindo da maneira prosaica como Claire fizera os votos.
Avistou a cabana e viu Joseph Wemyss esperando na varanda, encolhido e batendo os pés para se esquentar. Estava prestes a chamá-lo, quando a porta abriu-se repentinamente e um dos gêmeos Beardsley - Santo Deus, o que eles estavam fazendo lá dentro? - estendeu a mão e segurou o sogro pelo braço, quase o arrancando do chão em seu entusiasmo.
E era entusiasmo, não tristeza ou terror; vira o rosto do rapaz perfeitamente à luz do fogo. Soltou a respiração que não sabia que estava prendendo, o vapor branco na escuridão. A criança nascera, então, e tanto ela quanto Lizzie sobreviveram.
Ele relaxou contra uma árvore, tocando o rosário em seu pescoço. - Moran taing - ele disse suavemente, em um agradecimento breve, mas sincero. Alguém na cabana colocara mais lenha na lareira; uma chuva de faíscas subiu da chaminé, iluminando a neve de vermelho e dourado, e silvando, negra, onde as cinzas caíam.
No entanto, o homem nasce para as dificuldades, tão certamente como as fagulhas voam para cima. Lera esta frase de Jó muitas vezes na prisão, sem conseguir entendê-la inteiramente. Fagulhas voando para cima não causavam nenhum problema, de um modo geral, a menos que você tivesse telhas de madeira muito secas; eram as que se lançavam direto da lareira que podiam atear fogo à sua casa. Ou, se o autor tivesse o intuito de dizer somente que era da natureza do homem estar em dificuldades - como obviamente era, se a sua própria experiência servisse de exemplo - , então, ele estaria fazendo uma comparação de inevitabilidade, dizendo que fagulhas sempre voam para cima - o que qualquer um que observasse uma fogueira por bastante tempo poderia lhe dizer que não o fazem.
Ainda assim, quem era ele para criticar a lógica da Bíblia, quando deveria estar repetindo salmos de louvor e gratidão? Tentou pensar em um, mas estava alegre demais para pensar em muita coisa.
Compreendeu com um pequeno choque que estava completamente feliz. O nascimento bem-sucedido da criança era por si mesmo um grande motivo de alegria, sem dúvida - mas também significava que Claire atravessara sua provação com sucesso e que os dois agora estavam livres. Deixariam Ridge sabendo que haviam feito tudo que podia ser feito pelas pessoas que ficaram.
Sim, sempre havia tristeza em partir de casa - mas, neste caso, pode-se dizer que a casa é que os deixara, quando se incendiou, e de qualquer modo seu crescente senso de expectativa estava pesando mais na balança. Livre e longe dali, Claire ao seu lado, não mais tarefas diárias a fazer, não mais rixas mesquinhas a apaziguar, não mais viúvas e órfãos para manter - bem, esse era um pensamento indigno, sem dúvida, mas...
A guerra era algo terrível, e essa também seria - mas era inegavelmente empolgante, e o sangue acelerou em suas veias, do couro cabeludo às solas dos pés.
- Moran taing - disse outra vez, com sincera gratidão. Pouco tempo depois, a porta da cabana se abriu novamente, derramando luz na varanda, e Claire saiu, levantando o capuz de sua capa, seu cesto no braço. Vozes seguiram-na e as pessoas amontoaram-se na porta. Ela virou-se para acenar em despedida e a ouviu rir; o som de sua risada lançou uma eletrizante sensação de prazer pelo seu corpo.
A porta se fechou e ela começou a descer o caminho na escuridão cinzenta; pôde ver que ela cambaleava um pouco, de exaustão, e ainda assim tinha um ar diferente - achou que devia ser a mesma euforia que o animava.
- Como as fagulhas que voam para cima - murmurou consigo mesmo e, sorrindo, saiu do meio das árvores para encontrá-la.
Ela não se assustou, mas virou-se imediatamente e veio em sua direção, parecendo quase flutuar na neve.
- Deu tudo certo, então - ele disse, e ela suspirou e se aninhou em seus braços, sólida e quente dentro das dobras frias de sua capa. Ele enfiou as mãos por dentro e puxou-a para junto de si, dentro da lã de sua própria capa.
- Preciso de você, por favor - ela sussurrou, a boca contra a dele, e sem responder ele a tomou nos braços. Santo Deus, Claire tinha razão, aquela capa cheirava a carne morta; teria o homem que lhe vendera a capa usado-a para carregar um veado estripado da floresta? Beijou-a profundamente, em seguida colocou-a no chão e conduziu-a pela colina abaixo, a neve fraca parecendo se derreter de seus pés conforme andavam.
Pareceu não levar tempo algum até o estábulo; conversaram um pouco no caminho, mas não saberia dizer sobre o quê. Só o que importava era estarem na companhia um do outro.
Não estava exatamente aconchegante dentro do estábulo, mas também não estava gelado. Acolhedor, ele pensou, com o cheiro agradável e quente dos animais na escuridão. A estranha luz cinzenta do céu filtrava-se para dentro, apenas o suficiente para se ver as formas curvas dos cavalos e mulas cochilando em suas baias. E havia feno seco para se deitarem, apesar de velho e um pouco mofado.
Estava frio demais para se despirem, mas ele estendeu sua capa sobre a palha, deitou Claire sobre ela, e ele sobre Claire, ambos tremendo de frio enquanto se beijavam, de modo que seus dentes batiam, e eles se afastaram, rindo.
- Isso é tolice - ela disse - , posso ver minha respiração e a sua. Está frio suficiente para soprar anéis de vapor. Vamos ficar congelados.
- Não, não vamos. Sabe como os índios fazem fogo? - O que, esfregando um galho seco em... - Sim, fricção. - Ele erguera suas saias; sua coxa estava lisa e fria sob sua mão. - Mas vejo que não vai ser a seco. Santo Deus, Sassenach, o que andou fazendo? - Ele segurou-a com firmeza na palma de sua mão, quente, macia e (unida, e ela deu um gritinho com o frio do toque de sua mão, alto o suficiente para uma das mulas resfolegar, assustada. Claire contorceu-se, apenas o suficiente para ele tirar a mão do meio de suas pernas e inserir outra coisa, depressa.
- Vai acordar o estábulo inteiro - ele observou, ofegante. Deus, o choque envolvente de seu calor deixou-o tonto.
Ela correu as mãos frias por baixo da camisa dele e beliscou seus mamilos, com força, e ele soltou um ganido, depois riu.
- Faça de novo - ele disse e, inclinando-se, enfiou a língua em sua orelha fria pelo prazer de ouvi-la guinchar. Ela contorceu-se e arqueou as costas, mas não - ele notou - desviou a cabeça. Ele prendeu o lóbulo de sua orelha delicadamente entre os dentes e começou a roçar a carne, ao mesmo tempo fazendo amor devagar e rindo consigo mesmo dos ruídos que ela fazia.
Foram longos meses de sexo em silêncio. As mãos de Claire estavam ocupadas em suas costas; ele abrira apenas a braguilha das calças e tirara a barra de sua camisa do caminho, mas ela puxara sua camisa para cima e descobrira suas costas, enfiando as duas mãos por dentro de suas calças e agarrando suas nádegas com força. Ela puxou-o para si ainda mais, cravando as unhas em sua carne, e ele compreendeu. Soltou sua orelha, ergueu-se nas mãos e cavalgou-a com força, a palha farfalhando ao redor deles como estalidos de uma fogueira.
Ele teve vontade de soltar-se imediatamente, liberar-se e cair sobre ela, segurá-la contra seu corpo e sentir o cheiro de seus cabelos em uma sonolência de calor e alegria. Um indistinto senso de obrigação o fez lembrar que ela havia lhe pedido, que ela precisava daquilo. Não podia decepcioná-la.
Ele fechou os olhos e diminuiu o ritmo, abaixou-se sobre ela, de modo que seu corpo retesou-se e ergueu-se ao longo do dele, o tecido de suas roupas embolando-se entre eles. Ele levou a mão por baixo dela, segurou sua nádega nua e deslizou os dedos na fenda quente de seu traseiro. Deslizou-os um pouco mais e ela arquejou. Seus quadris elevaram-se, tentando se liberar, mas ele riu no fundo da garganta e não permitiu. Meneou o dedo.
- Faça isso de novo - ele sussurrou em seu ouvido. - Faça esse barulho para mim outra vez.
Ela fez um melhor ainda, um que ele nunca ouvira, e moveu-se abruptamente sob ele, tremendo e gemendo.
Ele retirou o dedo e acariciou-a, leve e rapidamente, por todas as partes profundas e lubrificadas, sentindo o próprio pênis sob seus dedos, grande e escorregadio, afastando...
Ele próprio emitiu um terrível ruído - como o de uma vaca morrendo - , mas estava feliz demais para sentir vergonha.
- Você não é nem um pouco recatada, Sassenach - ele murmurou um instante depois, inalando o cheiro de almíscar e vida nova. - Mas eu gosto de você assim.
SUFICIENTE
Eu me despedi, começando pela casinhola de refrigeração na fonte. Fiquei lá dentro por um instante, ouvindo o gorgolejar da corrente de água em seu canal de pedra, respirando o cheiro frio, fresco, do lugar, com seus suaves aromas adocicados de leite e manteiga. Ao sair, virei à esquerda, passando pelas paliçadas envelhecidas da minha horta, cobertas com os remanescentes farfalhantes e desmantelados das trepadeiras de abóbora. Parei, hesitando; eu não colocara mais o pé na horta desde o dia em que Malva e seu filho morreram ali. Apoiei as mãos em duas das estacas de madeira da cerca, inclinando-me para frente para olhar para dentro.
Fiquei feliz por não ter olhado antes; eu não teria suportado vê-la em sua desolação de inverno, as hastes assoladas, enegrecidas e rígidas, os restos de folhas mortas, apodrecidas no solo. Ainda era uma visão para dar uma pontada no coração de um jardineiro, porém não mais desolada. Folhas novas, verdes, brotavam por toda parte, salpicadas de pequenas flores; a bondade da primavera espalhando guirlandas sobre os ossos do inverno. É bem verdade que metade do verde que crescia era de capim e ervas daninhas; quando chegasse o verão, a floresta teria reclamado de volta o terreno da horta, sufocando os brotos raquíticos de repolhos e cebolas. Amy fizera um novo canteiro de legumes e verduras perto da velha cabana; nem ela, nem ninguém em Ridge colocariam o pé ali.
Algo se mexeu no capim e eu vi uma pequena cobra-touro passar, caçando. A visão de alguma coisa viva me reconfortou, por menos que eu gostasse de cobras, e sorri quando levantei os olhos e vi que as abelhas zumbiam de um lado para o outro de uma das antigas colmeias em tronco oco que subsistira no fundo da horta.
Olhei por último para o local onde eu plantava verduras; fora ali que ela morrera. Na lembrança, eu sempre via o sangue se espalhando, imaginava-o ainda lá, uma mancha permanente, encharcada e escura, entranhada na terra, entre as ruínas desbaratadas de alfaces arrancadas e folhas murchas. Mas ele desaparecera; nada marcava o lugar, salvo um círculo de cogumelos, minúsculas cabeças brancas bisbilhotando do meio do capim.
- Agora, vou me levantar e vou embora - eu disse baixinho - , vou para Innee, para uma pequena cabana que existe lá, de pau a pique; lá, terei nove fileiras de feijão, uma colmeia para mel de abelhas, e viverei sozinho na clareira da selva, em meio ao zunzum de abelhas. - Parei por um instante e, quando me virei, acrescentei num sussurro: - E deverei ter um pouco de paz lá, pois a paz vem gotejando pouco a pouco.
Em seguida, desci o caminho rapidamente; não havia necessidade de dar destaque às ruínas da casa, nem à porca branca. Eu me lembraria delas sem esforço. Quanto ao armazém de milho e ao galinheiro - se já viu um, já viu todos.
Pude ver o pequeno ajuntamento de cavalos, mulas e pessoas movendo-se no lento caos da partida iminente na frente da cabana. No entanto, eu ainda não estava totalmente pronta para despedidas e entrei na floresta para recuperar o autocontrole.
O capim estava alto ao lado da trilha, macio e leve como plumas contra a bainha de minhas saias pesadas. Algo mais pesado do que capim roçou-as e eu olhei para baixo, e vi Adso. Eu procurara por ele no dia anterior; bem típico dele aparecer no último instante.
- Então, aí está você - eu disse, em tom de censura. Olhou para mim com seus olhos imensos e calmos, verde-claros, e lambeu uma pata. Movida por um impulso, peguei-o no colo e segurei-o contra o peito, sentindo o rumor de seu ronronar e o pelo espesso e macio de sua barriga cinza-prateada.
Ele ficaria bem, eu sabia. A floresta era sua reserva de caça particular e Amy Higgins gostava dele e me prometera lhe dar leite e um lugar quente junto à lareira no mau tempo. Eu sabia.
- Vá, então - eu disse, colocando-o no chão. Ele ficou parado por um instante, a cauda oscilando devagar, a cabeça levantada em busca de comida ou aromas interessantes, depois deu uns passos para dentro do capim e desapareceu.
Abaixei-me muito devagar, os braços cruzados, e estremeci, chorando silenciosa e convulsivamente.
Chorei até minha garganta doer e não conseguir mais respirar, depois sentei na grama, enroscada em mim mesma como uma folha seca, as lágrimas que eu não conseguia estancar pingando nos meus joelhos como as primeiras gotas grandes de uma tempestade iminente. Oh, meu Deus. Isso era apenas o começo.
Esfreguei os olhos com força, espalhando as lágrimas, tentando limpar a tristeza e a dor. Um tecido macio tocou meu rosto e eu ergui os olhos, fungando, e vi Jamie ajoelhado à minha frente, o lenço na mão.
- Sinto muito - ele disse, brandamente.
- Não é... não se preocupe, eu... É apenas um gato - eu disse, e senti um novo aperto de dor, como uma faixa cingindo meu peito.
- Sim, eu sei. - Ele moveu-se para o meu lado e passou o braço ao redor dos meus ombros, puxando minha cabeça para seu peito, enquanto delicadamente enxugava meu rosto. - Mas você não pôde chorar pelas crianças. Nem pela casa. Nem pela sua pequena horta. Nem pela pobre menina e seu filho. Mas, se você chorar por seu gatinho, você sabe que pode parar.
- Como você sabe disso? - Minha voz era rouca, mas a faixa ao redor de meu peito já não parecia tão apertada.
Ele fez um ruído pesaroso.
- Porque eu também não posso chorar por essas coisas, Sassenach. E eu não tenho um gato.
Funguei, limpei o rosto mais uma vez e assoei o nariz antes de lhe devolver o lenço, que ele enfiou no sporran sem fazer careta ou pensar duas vezes.
Deus, ele dissera. Que eu seja suficiente. Essa prece se alojou em meu coração como uma flecha quando a ouvi e achei que ele pedia ajuda para fazer o que tinha que ser feito. Mas não fora isso absolutamente - e a compreensão do que ele de fato quis dizer partiu meu coração.
Tomei seu rosto entre as mãos e desejei que eu tivesse seu próprio dom, a capacidade de dizer o que se passava em meu coração, de tal forma que ele saberia. Mas eu não tinha.
- Jamie - eu disse por fim. - Oh, Jamie. Você é... tudo. Sempre. Uma hora depois, partimos de Ridge.
INQUIETAÇÃO
Ian deitou-se com uma saca de arroz sob a cabeça como travesseiro. Era dura, mas ele gostava do sussurro dos pequenos grãos quando virava a cabeça e do leve cheiro de amido. Rollo fuçou embaixo do xale escocês, resfolegando enquanto disfarçadamente se aproximava do corpo de Ian, terminando com o focinho confortavelmente enterrado debaixo do seu braço. Ian afagou as orelhas do cachorro amorosamente, depois ficou de costas, observando as estrelas.
A lua era apenas uma lâmina fina, como a apara de uma unha, e as estrelas eram grandes e brilhantes no céu roxo-escuro. Traçou as constelações no alto. Ele veria as mesmas estrelas na Escócia?, perguntou-se. Não prestava muita atenção às estrelas quando estava em casa nas Highlands. E não se podia ver nenhuma estrela em Edimburgo, por causa da fumaça das chaminés.
Sua tia e seu tio estavam deitados do outro lado da fogueira abafada, juntos o bastante para parecerem um único tronco de árvore, compartilhando o calor de seus corpos. Ele viu os cobertores se mexerem, sossegarem, mexerem-se outra vez, e em seguida uma imobilidade, à espera. Ouviu um sussurro, baixo demais para ele compreender as palavras, mas a intenção por trás delas era bastante clara.
Ele manteve a respiração regular, um pouco mais alta do que o normal. Um momento, e os movimentos furtivos recomeçaram. Era dificil enganar tio Jamie, mas há ocasiões em que um homem quer ser enganado.
Sua mão pousou de leve na cabeça do cachorro e Rollo suspirou, o enorme corpo afrouxando-se, quente e pesado contra ele. Se não fosse pelo cachorro, ele jamais conseguiria dormir ao ar livre. Não que alguma vez dormisse profundamente, ou por muito tempo - mas ao menos podia se abandonar de vez em quando à necessidade física de sono, confiante de que Rollo ouviria qualquer passo muito antes dele.
- Você está bastante seguro - seu tio Jamie lhe dissera, na primeira noite na estrada. Ele não conseguira dormir na ocasião por nervosismo, mesmo com a cabeça de Rollo em seu peito, e se levantara para se sentar junto à fogueira, atiçando as brasas com um galho fino até as chamas se erguerem na noite, puras e vívidas.
Ele tinha plena consciência de que era perfeitamente visível para qualquer pessoa que estivesse espreitando, mas não havia nada a fazer a respeito disso. E se ele tinha um alvo pintado no peito, iluminá-lo não iria fazer muita diferença.
Rollo, deitado, alerta, ao lado da fogueira cada vez mais forte, levantara a enorme cabeça repentinamente, mas apenas a virou na direção de um leve ruído na escuridão. Isso significava alguém conhecido e Ian não se preocupou, nem ficou surpreso quando seu tio saiu da floresta onde fora se aliviar e sentou-se a seu lado.
- Ele não quer vê-lo morto, sabe - tio Jamie dissera sem preâmbulos. - Você está bastante seguro.
- Não sei se quero estar seguro - ele extravasara, e seu tio olhara para ele, o rosto transtornado, mas não surpreso. Tio Jamie, porém, apenas balançara a cabeça.
Ele sabia o que seu tio queria dizer; Arch Bug não queria que ele morresse, porque isso acabaria com sua culpa, e portanto com seu sofrimento. Ian olhara dentro daqueles olhos de ancião, o branco amarelado e rajado de vermelho, lacrimejando de frio e de dor, e vira algo ali que congelara o âmago de sua alma. Não, Arch Bug não iria matá-lo - ainda.
Seu tio fitava o fogo, a luz quente nos ossos largos de seu rosto, e a visão tanto deu conforto quanto pânico a Ian.
Você não vê?, ele pensara, angustiado, mas não falou nada. Ele disse que tiraria aquilo que eu amo. E aí está você a meu lado, claro como o dia.
A primeira vez em que o pensamento lhe ocorrera, ele o afastara; o velho Arch devia muito a tio Jamie, pelo que ele fizera pelos Bug, e ele era um homem de reconhecer suas dívidas - embora talvez mais disposto a reclamar uma dívida. E ele não tinha a menor dúvida de que Bug também respeitava seu tio como homem. Durante algum tempo, isso parecera resolver a questão.
Mas outros pensamentos começaram a lhe ocorrer, inquietantes, monstros de muitas pernas, que rastejavam em noites insones, desde que ele matara Murdina Bug.
Arch era velho. Rígido como uma lança endurecida no fogo e duas vezes mais perigoso - mas velho. Ele lutara em Sheriffmuir; devia estar perto dos oitenta anos. A vingança poderia mantê-lo vivo por algum tempo, mas todo corpo tinha que chegar ao fim. Ele poderia muito bem pensar que não tinha tempo para esperar que Ian adquirisse "algo que valesse a pena tomar". Se ele pretendia cumprir a ameaça, precisaria agir sem demora.
Ian podia ouvir os tênues movimentos e ruídos do outro lado do fogo, e engoliu, a boca seca. O velho Arch podia tentar matar sua tia, pois sem dúvida Ian a amava, e ela seria muito mais fácil de matar do que tio Jamie. Mas não - Arch Podia estar enlouquecido de dor e raiva, mas não era louco. Ele saberia que tocar em tia Claire - sem matar tio Jamie ao mesmo tempo - seria suicídio.
Talvez ele não se importasse. Esse era outro pensamento que rastejava pela sua barriga com pés pequenos e frios.
Devia deixá-los, sabia disso. Pretendera fazê-lo - ainda pretendia. Esperar até que tivessem adormecido, depois se levantar e ir embora furtivamente. Eles estariam a salvo, então.
Mas sua intenção malograra naquela primeira noite. Tentava reunir coragem, ali junto à fogueira, para partir - mas seu tio o impedira, saindo da floresta e sentando-se a seu lado, em silêncio, mas fazendo-lhe companhia, até Ian se sentir em condições de se deitar outra vez.
Amanhã, ele pensara. Afinal, não havia sinal de Arch Bug; não desde o funeral de sua mulher. E talvez ele esteja morto. Ele era velho, afinal, e estava sozinho.
E ele ainda tinha que considerar que, se fosse embora sem dizer nada, tio Jamie iria atrás dele. Ele deixara bem claro que Ian iria voltar para a Escócia, quer por vontade própria ou amarrado em um saco. Ian riu, apesar de seus pensamentos, e Rollo fez um pequeno resmungo quando o peito sob ele sacudiu-se em uma risada silenciosa.
Ele mal dedicara um único pensamento à Escócia e ao que poderia estar
à sua espera.
Talvez fossem os ruídos do outro lado da fogueira que o fizeram pensar nisso - uma inspiração aguda, repentina, e os dois profundos suspiros que se seguiram, sua familiaridade propiciando-lhe uma vívida lembrança física da ação que causara aqueles suspiros - , mas ele imaginou se encontraria uma esposa na Escócia. Ele não poderia. Poderia? Bug seria capaz de segui-lo tão longe? Talvez ele já esteja morto, pensou novamente, remexendo-se um pouco. Rollo resmungou com um ruído gutural, reconhecendo os sinais, afastou-se dele e encolheu-se a certa distância.
Sua família estaria lá. Cercado pelos Murray, certamente ele - e uma mulher - estariam a salvo. Era simples espreitar e infiltrar-se pelas florestas densas ali nas montanhas - mas não tão simples nas Highlands, onde todo olho era aguçado e nenhum estranho passava despercebido.
Ele não sabia exatamente o que sua mãe faria ao vê-lo, mas depois que se acostumasse talvez conseguisse pensar em alguma jovem que não ficasse muito assustada com ele.
Uma forte inalação de ar e um som que não era bem um gemido de seu tio - ele fazia isso quando ela colocava a boca em seu mamilo; Ian a vira fazer isso uma ou duas vezes, na claridade das brasas da lareira da cabana, os olhos fechados, um rápido brilho molhado de dentes e seus cabelos caindo para trás dos ombros nus em uma nuvem de luz e sombra.
Colocou a mão em seu membro, tentado. Ele possuía uma coleção particular de imagens que guardava cuidadosamente para esse fim - e não poucas de sua prima, embora isso o deixasse um pouco envergonhado. Afinal, ela era mulher de Roger Mac. Mas ele achara em determinado momento que ele próprio teria que se casar com ela e, apesar de aterrorizado com a perspectiva - ele tinha apenas dezessete anos e ela era bem mais velha - , sentira-se estimulado com a ideia de tê-la na cama.
Ele a observara de perto por vários dias, vendo seu traseiro redondo e sólido, a sombra escura de seu sexo ruivo sob a musselina fina de sua combinação quando ia se banhar, imaginando o êxtase de vê-lo claramente na noite em que ela se deitaria e abriria as pernas para ele.
O que estava fazendo? Não podia pensar em Brianna dessa forma, não a doze passos do pai dela!
Fez uma careta e fechou os olhos com força, a mão diminuindo o ritmo, conforme ele evocava outra imagem de sua biblioteca particular. Não a bruxa - não esta noite. Sua lembrança o excitava com grande urgência, em geral dolorosamente, mas era tingida por uma sensação de desamparo. Malva... Não, tinha medo de evocá-la; ele sempre achava que seu espírito nunca estava muito longe.
A pequena Mary. Sim, ela. Sua mão iniciou imediatamente seu ritmo e ele suspirou, fugindo com alívio para os pequenos seios rosados e para o sorriso encorajador da primeira garota com que se deitara.
Pairando, momentos depois, à beira de um sonho com uma jovem loura que era sua mulher, ele pensou sonolentamente: Sim, talvez ele já esteja morto.
Rollo fez um ruído rouco e dissonante em sua garganta e rolou sobre o corpo, ficando com as patas no ar.
QUESTÕES DELICADAS
Londres Novembro de 1776
Havia muitas compensações em envelhecer, lorde John pensou. Sabedoria, perspectiva, posição na vida, o sentimento de realização, de tempo bem aproveitado, uma riqueza de afeto pelos amigos e pela família... e o fato de não precisar manter as costas pressionadas contra a parede quando conversava com lorde George Germain. Embora tanto seu espelho quanto seu criado pessoal lhe assegurassem que ele continuava apresentável, ele era pelo menos vinte anos velho demais para atrair a atenção do secretário de Estado, que gostava de rapazes de pele macia.
O funcionário que o fizera entrar atendia a essa descrição, sendo dotado também de longas pestanas escuras e uma boquinha macia. Grey não lhe destinou mais do que uma rápida olhadela; seus próprios gostos eram mais musculosos.
Não era cedo - conhecendo os hábitos de Germain, ele aguardara até uma hora - , mas o sujeito ainda mostrava os efeitos de uma longa noite. Bolsas e olheiras arroxeadas sublinhavam olhos semelhantes a ovos malcozidos, os quais inspecionaram Grey com nítida falta de entusiasmo. Ainda assim Germain esforçou-se para ser cortês, convidando-o a se sentar e mandando o funcionário de olhos de gazela buscar conhaque e biscoitos.
Grey raramente tomava uma bebida forte antes da hora do chá e queria estar com a mente clara agora. Assim, mal bebericou seu próprio conhaque, apesar de excelente, e Germain enfiou o famoso nariz Sackville - pontiagudo e proeminente, como um abridor de cartas - no próprio copo, inalou profundamente, em seguida esvaziou-o e serviu nova dose. O líquido pareceu ter algum efeito restaurador, pois ele emergiu do seu segundo copo parecendo um pouco mais feliz e perguntou a Grey como ele estava passando.
- Muito bem, obrigado - Grey disse educadamente. - Retornei recentemente da América e lhe trouxe várias cartas de conhecidos em comum de lá.
- Oh, é mesmo? - Germain animou-se um pouco. - Muita gentileza sua, Grey. Fez boa viagem?
- Tolerável. - Na verdade, fora insuportável; haviam atravessado um corredor de tempestades no Atlântico, o navio jogando e dando guinadas sem cessar durante dias a fio, a ponto de Grey ter desejado ardentemente que o navio afundasse, apenas para acabar com o sofrimento. Mas não queria desperdiçar tempo em conversas triviais. - Tive um encontro extraordinário, pouco antes de deixar a colônia da Carolina do Norte - ele disse, julgando que Germain já estava suficientemente desperto para ouvir. - Permita-me que lhe conte.
Germain era tanto vaidoso quanto mesquinho, e levara a arte da ambiguidade política às alturas - mas podia dedicar-se a uma questão quando queria, o que geralmente se dava quando ele percebia algum benefício próprio em determinada situação. A menção do Território Noroeste fez maravilhas para atrair sua atenção.
- Você não falou mais com esse Beauchamp? - Um terceiro copo de conhaque repousava junto ao cotovelo de Germain, pela metade.
- Não. Ele dera seu recado; não havia nada a ganhar com mais conversa, já que obviamente ele não tinha nenhum poder de agir por conta própria. E se tivesse a intenção de revelar a identidade de seus mandantes, já o teria feito.
Germain pegou o copo, mas não bebeu, girando-o nas mãos em vez disso, como um auxiliar do pensamento. Era um copo liso, não facetado, sujo com digitais e manchas da boca de Germain.
- Você conhece o sujeito? Por que ele procurou você particularmente? - Não, não estúpido, Grey pensou.
- Eu o conheci há muitos anos - respondeu, sem se alterar. - Durante o meu trabalho com o coronel Bowles.
Nada no mundo faria Grey revelar a verdadeira identidade de Percy a Germain; Percy fora - bem, ainda era - irmão adotivo dele próprio e de Hal, e somente a sorte e a própria determinação de Grey impediram um enorme escândalo na época da suposta morte de Percy. Alguns escândalos caem no esquecimento com o tempo - esse não.
A delineada sobrancelha de Germain estremeceu à menção de Bowles, que chefiara a Black Chamber da Inglaterra durante muitos anos.
- Um espião? - Uma leve repugnância transpareceu em sua voz; espiões eram uma necessidade vulgar; não algo que um cavalheiro tocasse com as próprias mãos.
- Em certa ocasião, talvez. Aparentemente, ele subiu no mundo. - Pegou seu próprio copo, tomou um bom gole, afinal, era um conhaque excelente, recolocou-o sobre a mesa e levantou-se para se despedir. Sabia muito bem que não devia cutucar Germain com vara curta. O melhor era deixar a questão no colo do secretário e confiar em seu próprio interesse em levar o assunto adiante.
Grey deixou Germain recostado em sua cadeira, fitando contemplativamente seu copo vazio, e pegou sua capa com o funcionário de lábios macios, cuja mão roçou a sua de passagem.
Não, refletiu, apertando a capa ao redor do corpo e enfiando mais o chapéu na cabeça contra o vento cada vez mais forte, que pretendia abandonar a questão ao caprichoso senso de responsabilidade de Germain. É verdade que Germain era o secretário de Estado para a América - mas essa não era uma questão que dissesse respeito apenas à América. Havia outros dois secretários de Estado no gabinete de lorde North - um para o Departamento do Norte, que abrangia toda a Europa, e outro para o Departamento do Sul, constituindo o resto do mundo. Preferia não ter que lidar com lorde Germain em momento algum. No entanto, tanto o protocolo quanto a política o impediam de ir direto a lorde North, que fora seu primeiro impulso. Ele daria um dia de vantagem a Germain, depois visitaria o secretário do Sul, Thomas Thynne, visconde de Weymouth, com a odiosa proposta do sr. Beauchamp. O secretário do Sul era encarregado de lidar com os países católicos da Europa, portanto questões com uma conexão francesa também eram de sua alçada.
Se os dois homens resolvessem assumir a questão, sem dúvida ela chamaria a atenção de lorde North - e North, ou um de seus ministros, procuraria Grey.
Uma tempestade formava-se no Tâmisa; podia ver nuvens negras encapeladas, parecendo querer soltar sua fúria diretamente sobre o Parlamento.
- Um pouco de raios e trovões lhes fariam bem - murmurou funestamente, e chamou uma charrete de aluguel, quando os primeiros pingos grossos começaram a cair.
A chuva caía torrencialmente em lençóis de água quando ele chegou ao Beefsteak, e quase ficou ensopado com as três passadas que deu do meio-fio à porta do clube.
O sr. Bodley, o velho gerente, recebeu-o como se ele tivesse estado ali no dia anterior, em vez de um ano e meio atrás.
- Sopa de tartaruga com xerez esta noite, milorde - ele informou Grey, gesticulando para um criado pegar a capa e o chapéu molhados do recém-chegado. - Muito acolhedora para o estômago. Seguida de uma excelente costeleta de carneiro com batatas frescas?
- Ótimo, sr. Bodley - Grey respondeu sorrindo. Tomou seu lugar na sala de jantar, apaziguado pelo fogo forte da lareira e pelas toalhas e guardanapos brancos e frios. No entanto, ao se inclinar para trás, a fim de permitir que o sr. Bodley enfiasse o guardanapo embaixo de seu queixo, notou um novo acréscimo à decoração do aposento. - Quem é aquele? - perguntou, surpreso. O quadro, exibido em lugar de destaque na parede oposta, retratava um majestoso índio, enfeitado com plumas de avestruz e mantos bordados. Parecia bastante estranho, situado como estava entre os retratos sóbrios de vários membros distintos, e na maioria falecidos.
- Oh, é o sr. Brant, claro - disse o sr. Bodley, com um ligeiro ar de reprovação. - Sr. Joseph Brant. O sr. Pin o trouxe para jantar no ano passado, quando ele estava em Londres.
- Brant?
As sobrancelhas do sr. Bodley ergueram-se. Como a maioria dos londrinos, ele presumia que todos que já tinham estado na América deviam forçosamente conhecer todas as pessoas de lá.
- É um cacique mohawk, eu acho - ele disse, pronunciando cuidadosamente a palavra "mohawk". - Ele veio visitar o rei!
- É mesmo? - Grey murmurou. Imaginou quem teria ficado mais impressionado, o rei ou o índio?
O sr. Bodley se afastou, provavelmente para ir buscar a sopa, mas retornou em poucos minutos para depositar uma carta sobre a toalha diante de Grey.
- Esta lhe foi enviada aos cuidados do secretário, sir.
- Oh? Obrigado, sr. Bodley. - Grey pegou a carta, reconhecendo a caligrafia de seu filho imediatamente, e sofrendo um pequeno aperto no estômago em consequência. Por que William não quis enviar aos cuidados de sua avó ou de Hal?
Algo que ele não queria correr o risco de que qualquer um dos dois lesse. Sua mente forneceu a resposta lógica imediatamente e ele pegou a faca de peixe para abrir a carta com justa apreensão.
Seria Richardson? Hal não gostava do sujeito e desaprovara enfaticamente o fato de William trabalhar para ele, apesar de não ter nada de concreto para alegar contra ele. Talvez ele devesse ter sido mais cauteloso em colocar William nesse caminho em particular. Entretanto, era imprescindível tirar William da Carolina do Norte, antes que ele ficasse cara a cara com Jamie Fraser ou com Percy, o suposto Beauchamp.
E, na verdade, você tinha que deixar um filho partir, encontrar seu próprio caminho no mundo, por mais que isso lhe custasse; Hal lhe dissera isso, mais de uma vez. Três vezes, para ser exato, pensou com um sorriso - toda vez que um dos filhos de Hal entrara para a carreira militar.
Ele desdobrou a carta com cautela, como se ela pudesse explodir. Estava escrita com tanto cuidado que achou instantaneamente sinistro; Willie normalmente era legível, mas não acima de um ou outro borrão.
A lordeJohn Grey The Societyfor Appreciation of the English Beefsteak De tenente William lorde Ellesmere 7 de setembro de 1776 Long Island Colônia Real de Nova York
Querido pai Tenho uma questão um pouco delicada para confidenciar. Bem, eis uma frase capaz de congelar o sangue de qualquer pai, Grey pensou. Willie teria engravidado uma jovem, jogado e perdido uma grande soma, contraído uma doença venérea, sido desafiado ou desafiado alguém para um duelo? Ou ele teria se deparado com algo sinistro no decurso de seu serviço de inteligência, a caminho do general Howe? Estendeu a mão para o vinho e tomou um gole profilático antes de retornar, agora mais bem preparado, à carta. No entanto, nada poderia tê-lo preparado para a frase seguinte.
Estou apaixonado por lady Dorothea.
Grey engasgou-se, cuspindo vinho na mão, mas gesticulou, dispensando o gerente que corria em sua direção com uma toalha, e em vez disso limpando a mão nas calças enquanto apressadamente passava os olhos pelo resto da página.
Há algum tempo, temos consciência de uma crescente atração entre nós dois, mas hesitei em fazer qualquer declaração, sabendo que logo estaria de partida para a América. Entretanto, nos vimos inesperadamente sozinhos no jardim durante o baile de lady Belvedere, na semana anterior à minha partida, e a beleza do cenário, a romântica sensação da noite e a inebriante proximidade da jovem dominaram minha capacidade de julgamento.
- Oh, Deus - lorde John exclamou em voz alta. - Diga-me que você não a deflorou debaixo de uma moita, pelo amor de Deus!
Percebeu o olhar interessado de um comensal vizinho e, com uma breve tosse, retornou à carta.
Coro de vergonha ao admitir que meus sentimentos me subjugaram, a tal ponto que hesito em pôr por escrito. Pedi desculpas, é claro, não que pudesse haver desculpas suficientes para conduta tão desonrosa. Lady Dorothea foi tanto generosa em seu perdão quanto veemente em sua insistência em que eu não fosse - como a princípio era meu desejo - procurar imediatamente seu pai.
- Muito sensato de sua parte, Dottie - Grey murmurou, visualizando muito claramente a reação de seu irmão a tal revelação. Só podia esperar que Willie estivesse corando por alguma indiscrição bem distante de...
Eu pretendia pedir-lhe para falar com tio Hal por mim no ano que vem, quando devo voltar para casa e poderformalmente pedira mão de lady Dorothea em casamento. No entanto, acabo de saber que ela recebeu outra proposta, do visconde Maxwell, e que tio Hal a está considerando seriamente.
Eu não mancharia a honra da dama de maneira alguma, mas nas circunstâncias ela obviamente não pode se casar com Maxwell.
Você quer dizer que Maxwell descobriria que ela não é virgem, Grey pensou soturnamente, e viria correndo no dia seguinte à noite de núpcias para contar a Hal. Passou a mão com força pelo rosto e continuou.
As palavras não podem transmitir meu remorso por meus atos, pai, e não posso pedir um perdão que não mereço, por desapontá-lo de maneira tão mortificante. Não por mim, mas por ela, imploro-lhe que fale com o duque. Espero que ele possa ser persuadido a considerar meu pedido e permitir que fiquemos noivos, sem a necessidade que ele faça tais descobertas explícitas que possam afligir a dama.
Seu muito humilde filho pródigo, William
Ele se deixou afundar na cadeira e fechou os olhos. O choque inicial começava a se dissipar e sua mente a atracar-se com o problema.
Deveria ser possível. Não haveria nenhum impedimento a um casamento entre William e Dottie. Embora nominalmente primos, não havia laços de sangue entre eles; William era seu filho de todas as maneiras que importavam, mas não de sangue. E, embora Maxwell fosse jovem, rico e muito adequado, William era ele próprio um duque, assim como herdeiro do baronato dos Dunsany, e longe de ser pobre.
Não, essa parte estava certa. E Minnie gostava muito de William. Hal e os rapazes... bem, desde que nunca suspeitassem do comportamento de William, deveriam concordar. Por outro lado, se algum deles descobrisse, William teria sorte de escapar apenas sendo chicoteado e tendo todos os ossos do corpo quebrados. Assim como Grey.
Hal ficaria muito surpreso, é claro - os primos sempre se viam durante o tempo em que Willie passou em Londres, mas William nunca se referira a Dottie de uma maneira que indicasse...
Pegou a carta e leu-a outra vez. E outra vez. Largou-a e ficou olhando fixamente para ela por vários minutos com os olhos estreitados, pensando.
- Não acredito nisso - disse finalmente, em voz alta. - Que diabos você está tramando, Willie?
Amassou a carta e, pegando um castiçal de uma mesa próxima com um sinal da cabeça como desculpas, pôs fogo nela. O garçom, observando aquilo, imediatamente apresentou uma pequena vasilha de porcelana, na qual Grey deixou cair a carta em chamas, e juntos observaram a folha se transformar em cinzas.
- Sua sopa, milorde - disse o sr. Bodley e, abanando delicadamente a fumaça da conflagração com um guardanapo, colocou um prato fumegante diante dele.
William estando fora de alcance, o óbvio curso de ação devia ser ir confrontar sua parceira no crime - qualquer que tenha sido o tipo de crime. Quanto mais ele refletia, mais convencido ficava de que qualquer que fosse a cumplicidade que houvesse entre William, nono conde de Ellesmere, e lady Dorothea Jacqueline Benedicta Grey não era a cumplicidade do amor, nem da paixão pecaminosa.
Mas como ele iria falar com Dottie sem despertar a atenção de nenhum de seus pais? Não podia ficar zanzando na rua até que tanto Hal quanto Minnie fossem a algum lugar, de preferência deixando Dottie sozinha. Mesmo que ele de algum modo conseguisse pegá-la sozinha em casa e falar com ela em particular, os criados certamente mencionariam que ele o fizera, e Hal - que possuía um senso de vigilância protetora em relação à filha semelhante ao de um grande mastim com seu osso favorito - prontamente iria procurá-lo para saber o motivo.
Recusou a oferta do porteiro de lhe arranjar uma carruagem e caminhou de volta à casa de sua mãe, ponderando as diferentes possibilidades de lidar com o problema. Poderia convidar Dottie a jantar com ele... mas seria muito estranho o convite não incluir Minnie. Do mesmo modo, se ele a convidasse para uma peça de teatro ou uma ópera; ele frequentemente acompanhava as mulheres, já que Hal não conseguia ficar sentado quieto o tempo suficiente para ouvir uma ópera inteira e considerava a maioria das peças maçante disparate.
Seu caminho atravessava Covent Garden e ele esquivou-se agilmente de um banho de água, jogada de um balde para levar embora as enlameadas folhas de repolho e maçãs podres das pedras do calçamento pelo dono de um quiosque de frutas. No verão, flores murchas espalhavam-se pelo pavimento; antes do amanhecer, as flores frescas chegavam de carroça, vindas do interior, e enchiam a praça com seu perfume efrescor. No outono, o lugar exalava um cheiro apodrecido e decadente de frutas esmagadas, carne estragada e restos de legumes e verduras que era a marca registrada da troca da guarda em Covent Garden.
Durante o dia, vendedores ambulantes anunciavam suas mercadorias aos gritos, barganhavam, discutiam uns com os outros, afugentavam ladrões e batedores de carteira e, ao anoitecer, iam embora, tropegamente, para gastar metade de seus lucros nas tavernas das ruas Tavistock e Brydges. Com as sombras da noite se aproximando, as prostitutas reclamavam o lugar para si.
A visão de duas delas, que chegaram cedo e perambulavam de um lado para o outro, na esperança de clientes entre os vendedores que voltavam para casa, distraiu-o momentaneamente de seu dilema familiar e fez seus pensamentos retornarem aos primeiros acontecimentos do dia.
A entrada para a rua Brydges estava à sua frente; podia entrever a casa requintada situada na outra extremidade da rua, um pouco recuada em discreta elegância. Era uma ideia; as prostitutas sabiam de muita coisa - e podiam descobrir mais, com um incentivo adequado. Ficou tentado a ir até lá visitar Nessie" nem que fosse apenas pelo prazer de sua companhia. Mas não - ainda não.
Ele precisava descobrir o que já se sabia sobre Percy Beauchamp em círculos mais oficiais, antes de começar suas próprias rondas à caça daquele coelho. E antes de se encontrar com Hal.
Já era muito tarde do dia para fazer visitas oficiais. No entanto, enviaria um bilhete, marcando um encontro - e pela manhã visitaria a Black Chamber.
BLACK CHAMBER
Grey se perguntou que alma romântica havia originalmente batizado a Black Chamber - ou se era de fato uma designação romântica. Talvez os espiões de outrora fossem designados a ficarem num buraco sem janelas sob as escadas em Whitehall, e o nome fosse apenas descritivo. Atualmente, Black Chamber designava uma categoria de atividade em vez de uma localização específica.
Todas as capitais da Europa - e não poucas cidades menores - possuíam suas câmaras escuras, sendo elas os centros onde a correspondência interceptada en route por espiões ou simplesmente retirada de malotes diplomáticos era inspecionada, decodificada com variáveis graus de sucesso e em seguida enviada para a pessoa ou agência necessitada da informação daí obtida. A Black Chamber da Inglaterra empregava quatro cavalheiros - sem contar funcionários e auxiliares - quando Grey trabalhou lá. Eram mais agora, distribuídos em cantos e buracos aleatórios em edifícios ao longo de Pall Mall, mas o principal centro de tais operações ainda ficava no Palácio de Buckingham.
Não em nenhuma das magníficas áreas equipadas que serviam à família real ou seus secretários, criadas das senhoras, governantas, mordomos ou outros serviçais superiores - mas ainda assim dentro dos limites do palácio.
Grey passou pelo guarda no portão preto com um cumprimento da cabeça - usava seu uniforme, com a insígnia de tenente-coronel, para facilitar a entrada - e desceu um corredor malconservado e mal-iluminado, cujo cheiro de cera de polimento de assoalho antigo e de resquícios de repolho cozido e bolo queimado deu-lhe um agradável frisson de nostalgia. A terceira porta à esquerda estava aberta de par em par e ele entrou sem bater.
Já era esperado. Arthur Norrington cumprimentou-o sem se levantar e indicou-lhe uma cadeira.
Ele conhecia Norrington há anos, embora não fossem particularmente amigos, e achou reconfortante que o sujeito parecesse não ter mudado absolutamente nada em todos os anos desde que se viram pela última vez. Arthur era um homem grande, indolente, cujos olhos redondos e ligeiramente proeminentes e os lábios grossos davam-lhe uma expressão de peixe no gelo: digno e ligeiramente injurioso.
- Agradeço sua ajuda, Arthur - Grey disse e, enquanto se sentava, depositou no canto da escrivaninha um pequeno pacote embrulhado. - Uma pequena lembrança desse agradecimento - acrescentou, apontando para ela.
Norrington ergueu uma das sobrancelhas finas e pegou o pacote, que desembrulhou com dedos ávidos.
- Oh! - exclamou, com genuíno deleite. Girou a minúscula escultura de marfim delicadamente nas mãos grandes e macias, levando-a perto do rosto para ver os detalhes, fascinado. - Tsuji?
Grey deu de ombros, satisfeito com o efeito de seu presente. Ele próprio não entendia nada de netsuke, mas conhecia um homem que negociava miniaturas de marfim da China e do Japão. Ficara surpreso com a delicadeza e o talento artístico do objeto, que mostrava uma mulher seminua engajada em uma forma muito atlética de relação sexual com um cavalheiro nu e obeso com um coque no alto da cabeça.
- Receio que não tenha a procedência - ele disse em tom de desculpas, mas Norrington descartou a questão com um gesto da mão, os olhos ainda fixos no novo tesouro. Após um instante, suspirou de satisfação, depois guardou o objeto no bolso interno de seu casaco.
- Muito obrigado, milorde - ele disse. - Quanto ao objeto de sua investigação, receio que tenhamos relativamente pouco material disponível referente ao seu misterioso sr. Beauchamp. - Balançou a cabeça indicando a escrivaninha, onde uma pasta de couro surrado repousava. Grey pôde ver que havia algo volumoso dentro da pasta - algo que não era papel; a pasta tinha furos, com um pequeno pedaço de cordão passando por eles, prendendo o objeto no lugar.
- O senhor me surpreende, sr. Norrington - ele disse educadamente, estendendo a mão para a pasta. - Ainda assim, deixe-me ver o que tem aí e talvez...
Norrington pressionou os dedos abertos sobre o arquivo e franziu o cenho por um instante, tentando passar a impressão de que segredos oficiais não podiam ser transmitidos a qualquer um. Grey sorriu para ele.
- Vamos, Arthur - ele disse. - Se quer saber o que eu sei sobre nosso misterioso sr. Beauchamp, e tenho certeza de que quer, tem que me mostrar tudo o que tem sobre ele.
Norrington relaxou um pouco, deixando os dedos deslizarem para trás - embora ainda mostrando relutância. Erguendo uma das sobrancelhas, Grey pegou a pasta e abriu-a. O objeto volumoso revelou-se uma pequena sacola de tecido; fora isso, havia apenas algumas folhas de papel. Grey suspirou.
- Protocolo ruim, Arthur - disse em tom de censura. - Há montanhas de papel envolvendo Beauchamp, e com referência cruzada a esse nome também. É bem verdade que há anos que ele não está na ativa, mas alguém deve ter examinado o caso.
- Examinamos - Norrington disse, com um tom estranho na voz que fez Grey erguer os olhos repentinamente. - O velho Crabbot lembra-se do nome, e nós procuramos. Os arquivos desapareceram.
A pele dos ombros de Grey contraiu-se, como se ele tivesse recebido uma chicotada.
- Isso é estranho - disse calmamente. - Bem, então... - Inclinou a cabeça sobre a pasta, embora tenha precisado de um instante para dominar seus pensamentos vertiginosos o suficiente para ver o que havia ali. Assim que seus olhos se acostumaram sobre a página, o nome "Fraser" destacou-se, quase fazendo seu coração parar.
Mas não era "Jamie Fraser". Respirou devagar, virou a página, leu a seguinte, voltou à primeira. Havia quatro cartas no total, apenas uma completamente decodificada, embora uma outra tivesse sido iniciada; apresentava as anotações experimentais de alguém nas margens. Seus lábios apertaram-se; ele fora um bom decodificador na sua época, mas estava ausente do campo de batalha há tempo demais para ter qualquer ideia das expressões correntes comuns em uso pelos franceses, sem falar nos termos idiossincráticos que um único espião podia usar - e essas cartas eram o trabalho de pelo menos duas pessoas diferentes; quanto a isso, não havia dúvida.
- Eu as examinei - Norrington disse, e Grey levantou a cabeça, deparando-se com os proeminentes olhos castanho-claros de Arthur fixos nele como um sapo observando uma mosca apetitosa. - Eu ainda não as decodifiquei oficialmente, mas tenho uma boa ideia geral do que dizem.
Bem, ele já decidira que isso tinha que ser feito e viera preparado para contar a Arthur, que era o mais discreto de seus antigos contatos na Black Chamber.
- Beauchamp é um tal de Percival Wainwright - disse sem rodeios, perguntando-se enquanto falava por que mantinha em segredo o nome verdadeiro de Percival. - Ele é súdito inglês, foi oficial do exército, preso pelo crime de sodomia, mas nunca julgado. Acreditava-se que ele houvesse morrido em Newgate enquanto aguardava julgamento, mas - alisou as cartas e fechou a pasta sobre elas - evidentemente não.
Os lábios grossos de Arthur formaram um silencioso "Oh". Grey se perguntou por um instante se poderia deixar as coisas por aí - mas não. Arthur era persistente como um cão de caça escavando uma toca de texugo e, se descobrisse o resto da história por conta própria, imediatamente suspeitaria de que Grey estivesse escondendo muito mais.
- Ele também é meu irmão adotivo - Grey disse, da forma mais descontraída possível, e colocou a pasta na mesa de Arthur. - Eu o vi na Carolina do Norte. Arthur ficou boquiaberto por um instante. Fechou-a em seguida, rapidamente, piscando.
- Compreendo - ele disse. - Bem, então... compreendo. - Sim, compreende - Grey disse secamente.
- Compreende exatamente por que eu preciso conhecer o conteúdo dessas cartas - indicou a pasta com um sinal da cabeça - o mais rápido possível.
Arthur assentiu, comprimindo os lábios, e ajeitou-se na cadeira, pegando as cartas nas mãos. Uma vez decidido a agir seriamente, ele não perdia tempo.
- A maior parte do que consegui decodificar parece tratar de questões de marinha mercante - ele disse. - Contatos nas Antilhas, cargas a serem entregues... contrabando simples, mas em uma escala bastante grande. Uma referência a um banqueiro em Edimburgo; não consegui identificar exatamente sua ligação. Mas três das cartas mencionam o mesmo nome en clair. Certamente, você viu isso.
Grey não se deu ao trabalho de negar. - Alguém na França quer muito encontrar um homem chamado Claudel Fraser - Arthur disse, erguendo uma das sobrancelhas. - Alguma ideia de quem seja?
- Não - Grey disse, embora ele sem dúvida tivesse uma leve ideia. - Alguma ideia de quem deseja encontrá-lo, e por quê?
Norrington sacudiu a cabeça.
- Não faço a menor ideia do motivo - disse francamente. - Quanto a quem, entretanto, acho que pode ser um nobre francês. - Abriu a pasta outra vez e, da bolsinha anexa a ela, retirou dois selos de cera, um quebrado quase ao meio, o outro quase intacto. Ambos mostravam um Martim contra um sol nascente. - Ainda não encontrei ninguém que o reconhecesse - Norrington acrescentou, tocando um dos selos delicadamente com um gordo indicador. - Por acaso, você reconhece?
- Não - Grey disse, a garganta repentinamente seca. - Mas deve investigar um certo barão Amandine. Wainwright mencionou esse nome para mim como... uma ligação dele.
- Amandine? - Norrington pareceu intrigado. - Nunca ouvi falar dele.
- Nem ninguém. - Grey suspirou e levantou-se. - Começo a me perguntar se ele existe.
Ele ainda se perguntava, enquanto se dirigia à casa de Hal. O barão Amandine podia existir ou não; se existisse, podia ser apenas uma fachada, disfarçando o interesse de alguém muito mais proeminente. Se não... A questão ficava simultaneamente mais confusa e mais simples de abordar; sem nenhum modo de saber quem estava por trás, Percy Wainwright se tornava o único caminho para descobrir.
Nenhuma das cartas de Norrington mencionava o Território Noroeste nem continha qualquer pista da proposta que Percy colocara diante dele. Mas isso não era de admirar; teria sido extremamente perigoso colocar tal informação no papel, apesar de certamente ter conhecido espiões que faziam isso. Se Amandine realmente existisse, e estivesse diretamente envolvido, aparentemente ele era ao mesmo tempo sensato e cauteloso.
Bem, teria que contar a Hal sobre Percy, de qualquer modo. Talvez ele soubesse de alguma coisa referente a Amandine, ou pudesse descobrir; Hal possuía inúmeros amigos na França.
O pensamento do que deveria dizer a Hal o fez se lembrar subitamente da carta de William, de que quase se esquecera em meio às intrigas da manhã.
Inspirou profundamente diante da lembrança. Não. Ele não iria mencionar isso a seu irmão enquanto não tivesse tido uma oportunidade de conversar com Dottie, sozinho. Talvez pudesse conseguir trocar uma palavra com ela em particular e combinar um encontro posteriormente.
Mas Dottie não estava em casa quando Grey chegou a Argus House.
- Ela está em uma das tardes musicais da srta. Brierley - sua cunhada Minniie lhe lhe informou quando ele perguntou educadamente como sua sobrinha e afilhada estava passando. - Ela está muito sociável ultimamente. Mas vai lamentar não tê-lo encontrado. - Ficou na ponta dos pés e beijou-o, radiante.
- É bom vê-lo de novo, John.
- Você também, Minnie - ele disse, sinceramente. - Hal está em casa?
Ela revirou os olhos expressivamente para o teto.
- Está em casa há uma semana com gota. Mais uma semana e vou colocar veneno em sua sopa.
- Ah. - Isso reforçou sua decisão de não falar com Hal sobre a carta de William. Hal de bom humor já era uma perspectiva que atemorizava soldados calejados e políticos veteranos; Hal com problemas de saúde... Provavelmente fora por isso que Dottie tivera o bom-senso de se ausentar.
Bem, de qualquer modo suas notícias não iriam melhorar o estado de espírito de Hal, pensou. Mas abriu a porta do gabinete de Hal com a devida cautela; seu irmão tinha a fama de atirar objetos quando estava rabugento - e nada o deixava mais irritado do que indisposição física.
No entanto, Hal estava dormindo, desmoronado em sua poltrona em frente à lareira, o pé enfaixado sobre uma banqueta. O cheiro de um remédio forte ácido flutuava no ar, dominando os odores de madeira queimando, vela de cera derretida e pão dormido. Via-se um prato de sopa solidificada em uma bandeja ao lado de Hal, intocada. Talvez Minnie tenha decidido tornar sua ameaça explícita, Grey pensou com um sorriso. Fora ele mesmo e sua mãe, Minnie era provavelmente a única outra pessoa no mundo que nunca tinha medo de Hal.
Sentou-se silenciosamente, perguntando-se se deveria acordar seu irmão. Hal parecia doente e cansado, muito mais magro do que de costume - e Hal era normalmente magro. Ele não poderia parecer menos elegante, mesmo vestindo calças e uma camisa de linho velha, a perna despida e com um xale surrado em volta dos ombros, mas as rugas de uma vida despendida em batalhas eram eloquentes em seu rosto.
O coração de Grey contraiu-se com uma ternura repentina e inesperada, e ele se perguntou se, afinal, deveria perturbar Hal com suas notícias. Mas não podia correr o risco de Hal ser confrontado inesperadamente com as novidades da ressurreição inoportuna de Percy; ele tinha que ser avisado.
Mas antes que ele pudesse decidir se iria embora, voltando mais tarde, os olhos de Hal abriram-se subitamente. Estavam límpidos e alertas, do mesmo azul-claro dos olhos de Grey, sem nenhum sinal de sonolência ou distração.
- Você voltou - Hal disse, e sorriu com grande afeição. - Sirva-me um conhaque.
- Minnie disse que você está com gota - Grey disse, com um rápido olhar para o pé de Hal. - Os charlatões não dizem que não se deve tomar bebidas fortes quando está com gota? - Mesmo assim, Grey levantou-se.
- Dizem - Hal concordou, endireitando-se na poltrona e fazendo uma careta quando o movimento abalou seu pé. - Mas, pela sua cara, você está prestes a me contar alguma coisa que vai me fazer precisar de um drinque. É melhor trazer a garrafa.
Ele somente deixou Argus House horas mais tarde - recusando o convite de Minnie para ficar para o jantar - e o tempo piorara consideravelmente. Havia um frio de outono no ar; uma ventania começava a soprar e ele podia sentir o gosto de sal no vento - vestígios do nevoeiro do mar flutuando para a terra firme. Prometia ser uma boa noite para ficar dentro de casa.
Minnie se desculpara por não poder lhe oferecer sua carruagem, já que Dottie fora ao seu salon vespertino com ela. Ele lhe assegurou que preferia mesmo caminhar, isso o ajudaria a pensar. Era verdade, mas o barulho do vento batendo as abas de seu casaco e ameaçando carregar seu chapéu era uma distração, e ele começava a lamentar a falta da carruagem quando repentinamente avistou o veículo, parado no caminho de entrada de uma das grandes casas perto de Alexandra Gate, os cavalos cobertos com cobertores para se protegerem do vento.
Ele atravessou o portão e, ouvindo um grito de "Tio John!", olhou na direção da casa, a tempo de ver sua sobrinha, Dottie, avançando em sua direção como um navio com todas as velas enfunadas - literalmente. Ela usava um manto de seda cor de ameixa e uma capa cor-de-rosa, os quais, com o vento vindo de trás, inflavam de forma alarmante. Na verdade, ela correu em sua direção com tal velocidade que ele foi obrigado a segurá-la nos braços a fim de impedir que o embalo continuasse a carregá-la.
- Você é virgem? - ele perguntou sem preâmbulos.
Os olhos dela se arregalaram e, sem a menor hesitação, ela desvencilhou um dos braços e deu-lhe uma bofetada.
- O quê? - ela disse.
- Desculpe-me. Isso foi um pouco abrupto, não? - Ele olhou para a carruagem, o cocheiro, olhando rigidamente para a frente, e, gritando para o homem que esperasse, segurou-a pelo braço, girando-a na direção do parque.
- Aonde estamos indo?
- Apenas dar uma volta. Tenho algumas perguntas a lhe fazer e não são do tipo que eu queira que alguém ouça; nem você, garanto-lhe.
Os olhos dela se arregalaram ainda mais, mas não discutiu; meramente agarrou seu pequeno chapéu e o acompanhou, as saias esvoaçando ao vento.
O tempo e os transeuntes impediram-no de fazer as perguntas que tinha em mente até terem entrado bastante no parque e se encontrarem em uma trilha mais ou menos deserta que cortava um pequeno jardim de plantas podadas em formas decorativas.
O vento arrefecera momentaneamente, embora o céu estivesse ficando escuro. Dottie parou ao abrigo de um arbusto em forma de leão e disse:
- Tio John. Que bobagem é essa? Dottie tinha a coloração de folha de outono de sua mãe, com cabelos da cor de trigo maduro e faces perpetuamente coradas como botões de rosa. Mas, enquanto o rosto de Minnie era bonito e delicadamente atraente, o de Dottie era acentuado pelos ossos elegantes de Hal e bordado com pestanas escuras; sua beleza tinha um quê de perigoso.
Esse traço predominava no olhar que ela lançou a seu tio e ele pensou que de fato, se Willie estivesse realmente apaixonado por ela, não era de admirar. ele estivesse.
- Recebi uma carta de William, notificando-me de que ele havia, se realmente forçado sua atenção sobre você, se comportado de uma maneira própria a um cavalheiro. É verdade?
Ficou boquiaberta, em um horror não dissimulado.
- Ele lhe disse o quê?
Bem, isso aliviou sua mente de um fardo. Ela provavelmente ainda era virgem e ele não precisaria despachar William para a China para evitar os irmãos dela.
- Foi, como eu disse, uma notificação. Ele não me forneceu detalhes. Venha, vamos caminhar antes que fiquemos congelados. - Pegou-a pelo braço e conduziu-a por uma das trilhas que levava a um pequeno oratório. Ali, abrigaram-se no vestíbulo, supervisionado apenas por um vitral de santa Bárbara, carregando seus seios decepados em uma bandeja. Grey fingiu examinar essa imagem sublime, propiciando a Dottie um instante para ajeitar as roupas fustigadas pelo vento - e decidir o que iria lhe contar.
- Bem - ela começou, virando-se para ele com o queixo erguido - , é verdade que nós... bem, que eu deixei ele me beijar.
- Oh? Onde? Quero dizer... - acrescentou apressadamente, vendo o choque momentâneo em seus olhos, e isso era interessante, pois uma jovem completamente inexperiente saberia que era possível ser beijada em algum outro lugar além de nos lábios ou na mão? - em que localização geográfica?
Ela ficou ainda mais ruborizada, pois percebeu, assim como ele, o que acabara de revelar, mas fitou-o diretamente nos olhos.
- No jardim de lady Windermere. Nós dois havíamos comparecido ao seu musical e o jantar não estava pronto, assim William convidou-me para caminhar um pouco com ele e... foi isso. Era realmente uma noite maravilhosa - ela acrescentou ingenuamente.
- Sim, ele também notou isso. Eu não havia me dado conta anteriormente das propriedades inebriantes do bom tempo.
Ela lançou-lhe um rápido olhar fulminante.
- Bem, de qualquer modo, estamos apaixonados! Ele disse isso, ao menos?
- Sim, disse - Grey respondeu. - Ele começou com uma declaração como essa, na verdade, antes de prosseguir com as confissões escandalosas referentes à sua virtude.
Os olhos dela se arregalaram.
- Ele... O que, exatamente, ele disse? - indagou.
- O suficiente para me convencer, assim ele esperava, a procurar seu pai imediatamente e apresentar-lhe a premência do pedido de William por sua mão.
- Oh. - Ela inspirou fundo, como se aliviada, e desviou o olhar por um instante. - Bem. Vai fazer isso, então? - ela perguntou, girando os grandes olhos azuis de novo em sua direção. - Ou já fez? - acrescentou, com um ar de esperança.
- Não, eu não disse nada a seu pai com referência à carta de William. Para começar, achei melhor falar com você primeiro e ver se estava de acordo com os sentimentos de William como ele parece acreditar.
Ela pestanejou, em seguida deu-lhe um de seus radiantes sorrisos.
- Isso foi muito atencioso de sua parte, tio John. Muitos homens não se preocupariam com a opinião da mulher sobre a situação, mas você sempre teve muita consideração. Mamãe não se cansa de elogiar sua gentileza.
- Não exagere, Dottie - ele disse, com tolerância. - Então, você me diz que está disposta a se casar com William?
- Disposta? - ela gritou. - Ora, é meu maior desejo! Ele lançou-lhe um olhar demorado e direto, e, apesar de Dottie continuar a encará-lo, o sangue subiu repentinamente pelo seu pescoço e faces.
- Oh, é mesmo? - ele disse, deixando que todo o ceticismo que sentia transparecesse em sua voz. - Por quê?
Ela pestanejou duas vezes, muito depressa.
- Por quê?
- Por quê? - ele repetiu pacientemente. - O que há no caráter de William, ou na aparência, imagino - acrescentou de maneira justa, já que as jovens não tinham grande reputação como avaliadoras de caráter - , que tanto a atrai a ponto de desejar casar-se com ele? E um casamento apressado, devo dizer.
Ele até podia compreender que um ou ambos desenvolvessem uma atração pelo outro - mas por que a pressa? Mesmo que William temesse que Hal decidisse conceder o pedido do visconde Maxwell, a própria Dottie certamente não podia estar pensando que seu pai coruja a forçaria a se casar com alguém que ela não quisesse.
- Bem, estamos apaixonados, é claro! - ela disse, embora com um tom um pouco incerto na voz para uma declaração teoricamente tão fervorosa. - Quanto ao seu... seu caráter... ora, tio, você é o pai dele; certamente não pode ignorar sua... sua... inteligência! - Ela apresentou a palavra triunfalmente. - Sua bondade, seu bom humor... - ela ganhava velocidade agora - ...sua delicadeza...
Foi a vez de lorde John piscar. William era indubitavelmente inteligente, bem-humorado e bastante bondoso, mas "delicado" não era a palavra que vinha imediatamente à mente em relação a ele. Por outro lado, o buraco no painel de madeira da sala de jantar de sua mãe, por onde William havia inadvertidamente atirado um colega durante um evento social, ainda não fora consertado, e essa imagem estava fresca na mente de Grey. Provavelmente, Willie se comportava de maneira mais circunspecta na presença de Dottie, mas mesmo assim...
- Ele é um verdadeiro modelo de cavalheiro! - ela exclamou com entusiasmo, agora já descontrolada. - E a sua aparência... bem, é claro que ele é admirado por toda mulher que conheço! Tão alto, uma figura tão imponente...
Ele notou, com um ar de distanciamento clínico, que, apesar de mencionar diversas características notáveis de William, em nenhum momento ela mencionou seus olhos. Fora sua altura - que dificilmente passaria despercebida - , seus olhos eram provavelmente seu traço mais extraordinário, de um azul escuro e brilhante, e de formato incomum, rasgados como os de um gato. Eram, na realidade, os olhos de Jamie Fraser, e John sentia um leve aperto no coração toda vez que Willie olhava para ele com certa expressão.
Willie sabia muito bem o efeito que seus olhos causavam nas moças - e não hesitava em se aproveitar disso. Se ele tivesse olhado longamente dentro dos próprios olhos de Dottie, ela teria ficado transfixada, quer o amasse ou não. E aquele tocante relato de arrebatamento no jardim... Depois de uma sessão musical, ou durante um baile, e quer na casa de lady Belvedere ou na de lady Windermere... Ficara tão absorvido em seus próprios pensamentos que por um instante não percebeu que ela havia parado de falar.
- Desculpe-me - ele disse, com grande cortesia. - E eu lhe agradeço pelos elogios ao caráter de William, que só poderiam enternecer o coração de um pai. Ainda assim... qual a urgência de marcar o casamento? William será enviado de volta para casa em um ou dois anos.
- Ele pode ser morto! - ela disse, e havia em sua voz uma nota súbita de real temor, tão real que despertou sua atenção. Ela engoliu em seco, levando a mão à garganta. - Eu não suportaria - ela acrescentou, a voz subitamente fraca. - Se ele fosse morto sem que nós nunca... nunca tivéssemos a chance de... - Ergueu os olhos para ele, brilhantes de emoção, e colocou a mão em seu braço, suplicante. - Eu preciso. Realmente, tio John. Eu preciso, e não posso esperar. Quero ir para a América e me casar.
Olhou para ela boquiaberto. Querer se casar era uma coisa, mas isso...!
- Você não pode estar falando a sério - ele disse. - Não pode achar que seus pais... seu pai, em particular... concordaria com tal coisa.
- Ele concordaria - ela contrapôs. - Se você colocasse a questão adequadamente para ele. Ele dá mais valor à sua opinião do que à de qualquer outra pessoa - ela continuou, convincentemente, apertando um pouco seu braço. - E você, mais do que ninguém, deve entender o horror que sinto diante da ideia de que alguma coisa possa... acontecer com William antes de eu o ver de novo.
De fato, ele pensou, a única coisa pesando a favor dela era o sentimento de desolação que a menção da possível morte de William causava em seu próprio coração. Sim, ele podia ser morto. Qualquer homem podia, em tempos de guerra, e particularmente um soldado. Esse era um dos riscos que se corria - e ele não podia em sã consciência ter impedido William de corrê-lo, muito embora a mera ideia de William estilhaçado por um disparo de canhão ou abatido com um tiro na cabeça ou agonizando com diarreia...
Engoliu, a boca seca, e com algum esforço afastou essas imagens pusilânimes com firmeza de volta ao armário mental trancado em que normalmente as mantinha confinadas.
Respirou longa e profundamente.
- Dorothea - ele disse com firmeza. - Eu vou descobrir o que você está aprontando.
Ela olhou para ele por um longo momento, pensativa, como se avaliasse as probabilidades. O canto de sua boca levantou-se inconscientemente enquanto seus olhos se estreitavam e ele viu a resposta em seu rosto, tão claramente como se ela a tivesse dito em voz alta.
Não, não creio. No entanto, a expressão não passou de uma luz fugaz e seu rosto retomou seu ar de indignação misturado a súplica.
- Tio John! Como ousa acusar a mim e William, seu próprio filho! De, de... de que está nos acusando?
- Não sei - ele admitiu.
- Muito bem, então! Vai falar com papai por nós? Por mim? Por favor? Hoje?
Dottie era uma sedutora inata; enquanto falava, inclinou-se em sua direção, de modo que ele pudesse sentir a fragrância de violetas em seus cabelos, e torceu os dedos graciosamente nas lapelas de seu casaco.
- Não posso - ele disse, esforçando-se para se desvencilhar. - Não no momento. Eu já lhe dei um choque ruim hoje; mais outro pode acabar com ele.
- Amanhã, então - ela continuou tentando persuadi-lo.
- Dottie. - Ele segurou suas mãos e ficou um pouco emocionado de encontrá-las frias e trêmulas. Ela realmente desejava aquilo, ou alguma outra coisa, ao menos. - Dottie - ele repetiu, mais delicadamente. - Ainda que seu pai estivesse disposto a enviá-la à América para se casar, e não consigo imaginar nada menos imperativo do que se você estivesse grávida para obrigá-lo a isso, não há nenhuma possibilidade de viajar antes de abril. Não há, portanto, nenhuma necessidade de atormentar Hal e enviá-lo mais rápido para seu túmulo contando-lhe essas coisas, ao menos não até ele ter se recuperado de sua atual indisposição.
Ela não ficou satisfeita, mas foi obrigada a admitir o forçado raciocínio de seu tio.
- Além do mais - ele acrescentou, soltando suas mãos - , a campanha termina no inverno, você sabe disso. A luta logo cessará e William estará relativamente a salvo. Não precisa temer por ele. - Fora acidente, tifo, malária, envenenamento do sangue, diarreia, brigas em tavernas e outras dez ou quinze possibilidades de ameaça à vida, acrescentou para si mesmo.
- Mas - ela começou, depois parou e suspirou. - Sim, creio que tem razão. Mas... vai falar com papai logo, não é, tio John?
Ele suspirou, por sua vez, mas sorriu para ela ainda assim.
- Sim, se é isso que você realmente deseja. - Uma rajada de vento atingiu o oratório e o vitral com a imagem de santa Bárbara estremeceu em sua armação de chumbo. Uma súbita precipitação de chuva crepitou pelas telhas de ardósia e ele enrolou a capa ao redor do corpo. - Fique aqui - aconselhou sua sobrinha. - Vou buscar a carruagem e trazê-la aqui para a rua.
Enquanto caminhava contra o vento, uma das mãos no chapéu para impedir que voasse, lembrou-se com certa inquietação de suas próprias palavras para ela: Não consigo imaginar nada menos imperativo do que se você estivesse grávida para obrigá-lo a isso.
Ela não faria isso. Faria? Não, assegurou a si mesmo. Engravidar de alguém a fim de convencer seu pai a permitir que ela se casasse com outra pessoa? Sem chance; Hal a faria se casar com o culpado antes que ela pudesse piscar os olhos. A menos, é claro, que ela escolhesse alguém impossibilitado de contrair matrimônio: um homem casado, digamos, ou... Mas isso era tolice! O que William diria se ela chegasse à América grávida de outro homem?
Não. Nem mesmo Brianna Fraser Mackenzie - a mulher mais assustadoramente pragmática que ele já conhecera - teria feito algo assim. Sorriu um pouco consigo mesmo à lembrança da formidável sra. Mackenzie, lembrando-se de sua tentativa de chantageá-lo para que se casasse com ela - enquanto grávida de outra pessoa que definitivamente não era ele. Ele sempre se perguntara se a criança seria de fato de seu marido. Talvez ela fosse capaz. Mas não Dottie.
Claro que não.
CONFLITO DESARMADO
Inverness, Escócia Outubro, 1980
A igreja antiga e alta de St. Stephen erguia-se serena nas margens do Ness, as pedras envelhecidas pelo tempo no cemitério da igreja um testemunho de merecida paz. Roger tinha consciência da serenidade - mas não era para ele.
Seu sangue ainda latejava nas têmporas e o colarinho de sua camisa estava suado do esforço, apesar de ser um dia frio. Ele caminhara do estacionamento em High Street em um passo feroz, que pareceu devorar a distância em segundos. Ela o chamara de covarde, pelo amor de Deus. Ela o chamara de inúmeras outras coisas também, mas essa foi a que mais doeu - e ela sabia disso.
A briga começara depois do jantar no dia anterior, quando ela colocou uma panela suja na velha pia de pedra, virou-se para ele, inspirou fundo e informou-o de que tinha uma entrevista para um emprego no Comitê da Hidrelétrica do Norte da Escócia.
- Emprego? - ele dissera estupidamente.
- Emprego - ela repetira, estreitando os olhos para ele. Fora rápido em reprimir a reação automática "Mas você já tem um trabalho" que viera aos seus lábios, substituindo-a por um débil - ele achou - "Por quê?".
Nunca muito chegada à diplomacia, fixou nele um olhar furioso e disse:
- Porque um de nós precisa trabalhar e, se não vai ser você, terá que ser eu.
- O que quer dizer com "precisa trabalhar"? - ele perguntara. Droga, Brianna tinha razão, ele era um covarde, porque ele sabia muito bem o que ela queria dizer com isso. - Temos dinheiro suficiente por algum tempo.
- Por algum tempo - ela concordou. - Um ano ou dois, talvez mais, se tivermos cuidado. E você acha que a gente deve ficar sentado até o dinheiro acabar, e depois o quê? Então, começar a pensar o que vai fazer?
- Eu tenho pensado - ele disse entre dentes. Isso era verdade; há meses praticamente não fazia outra coisa. Havia o livro, é claro; ele estava escrevendo todas as canções do século XVIII que gravara na memória, com comentários - mas isso certamente não era um emprego, nem daria muito dinheiro. Basicamente, era só pensar.
- Ah, é? Eu também. - Deu as costas para ele, abrindo a torneira, para afogar o que poderia dizer em seguida ou apenas a fim de se controlar. A água parou e ela virou-se outra vez. - Olhe - ela disse, tentando parecer sensata.
- Não posso esperar muito mais. Não posso ficar fora do mercado anos a fio e simplesmente voltar a qualquer momento. Já faz um ano desde o último serviço de consultoria que eu fiz. Não posso esperar mais.
- Você nunca disse que pretendia voltar a trabalhar em tempo integral. - Ela fizera alguns pequenos trabalhos em Boston, breves projetos de consultoria, depois que Mandy saiu do hospital e estava bem. Joe Abernathy os arranjara para ela.
"Veja, rapaz", Jo,: dissera confidencialmente a Roger. "Ela está impaciente. Eu conheço esta menina; ela precisa estar sempre em movimento. Sua atenção estava focalizada no bebê dia e noite, provavelmente desde que ela nasceu, envolvida com médicos, hospitais, filhos exigentes há semanas e semanas. Ela tem que desanuviar a cabeça.
E eu não?, Roger pensara - mas não podia dizer isso. Um homem idoso com uma boina limpava o mato ao redor de uma das lápides, um monte murcho de ervas daninhas arrancadas no chão ao seu lado. Ele estivera observando Roger enquanto ele hesitava junto ao muro e cumprimentou-o amistosamente com um sinal da cabeça, mas não falou nada.
Ela era mãe, ele teve vontade de dizer. Quis dizer alguma coisa sobre a proximidade entre ela e as crianças, do quanto precisavam dela, como precisavam de água, comida e ar. De vez em quando, ele tinha inveja de não ser necessário de forma tão primordial; como Brianna podia renegar essa dádiva?
Bem, ele tentara dizer alguma coisa nessa linha. O resultado foi o esperado ao se acender um fósforo em uma mina cheia de gás.
Virou-se abruptamente e saiu do cemitério. Não podia falar com o reitor da igreja neste momento - na verdade, não podia falar nada; teria que esfriar o ânimo primeiro, recuperar sua voz.
Virou à esquerda e começou a descer a Huntly Street, vendo a fachada da igreja de St. Mary do outro lado do rio pelo canto do olho; a única igreja católica em Inverness.
Durante uma das primeiras, e mais racionais, partes da briga, ela se esforçou. Perguntou se era culpa dela.
- Sou eu? - ela perguntou, séria. - Por ser católica, quero dizer. Eu sei... sei que isso torna tudo mais complicado. - Contorceu os lábios. - Jem me contou sobre a sra. Ogilvy.
Ele não tinha nenhuma vontade de rir, mas não pôde deixar de esboçar um sorriso diante da lembrança. Ele estava no estábulo, retirando estrume bem curtido com uma pá e jogando-o em um carrinho de mão para espalhá-lo na horta, Jem ajudando-o com sua própria pazinha.
- Dezesseis toneladas e o que é que você tem? - Roger cantara, se o tipo de som áspero e rouco que ele produzia podia ser assim chamado.
- Um dia mais velho e mais afundado na bosta! - Jem berrara, fazendo o melhor possível para abaixar a voz na mesma extensão de Tennessee Ernie Ford, mas descontrolando-se em um glissando de risadinhas.
Foi nesse desafortunado momento que ele se virou e viu que tinham visitas: sra. Ogilvy e sra. MacNeil, pilares da LadiesAltar and Tea Society da Free North Church em Inverness. Ele as conhecia - e também sabia exatamente o que elas estavam fazendo ali.
- Viemos fazer uma visita à sua esposa, sr. Mackenzie - a sra. MacNeil disse, sorrindo com os lábios cerrados. Ele não sabia se a expressão pretendia indicar reservas interiores ou se era apenas porque ela temia que sua dentadura mal-ajustada pudesse cair se ela abrisse um pouco mais a boca.
- Ah, sinto muito. Ela não está, foi à cidade. - Ele limpara a mão na calça jeans, pensando em estendê-la, mas olhou para ela e pensou melhor, fazendo apenas um cumprimento com a cabeça. - Mas, por favor, entrem. Posso mandar a menina fazer um chá?
Elas sacudiram a cabeça sincronizadamente.
- Ainda não vimos sua esposa na igreja, sr. Mackenzie. - A sra. Ogilvy fixou nele um olhar pouco amistoso.
Bem, ele já esperava por isso. Podia ganhar um pouco de tempo dizendo que o bebê andara adoentado - mas não adiantava; mais cedo, ou mais tarde, o problema teria que ser enfrentado.
- Não - ele disse afavelmente, embora seus ombros tenham se enrijecido em uma reação automática. - Ela é católica. Vai à missa na igreja de St. Mary aos domingos.
O rosto quadrado da sra. Ogilvy desfez-se em um oval momentâneo de perplexidade.
- Sua mulher é papista? - ela disse, dando-lhe uma chance de corrigir a informação obviamente insana que acabara de dar.
- É, sim. De nascença. - Deu de ombros ligeiramente. Houve relativamente pouca conversa após essa revelação. Apenas um olhar para Jem, uma pergunta ríspida se ele frequentava a escola dominical, uma inspiração ruidosa diante da resposta e um olhar fulminante para Roger antes de irem embora.
Quer que eu me converta?, Bri perguntara, no decorrer da discussão. E fora uma pergunta, não uma proposta.
Teve a vontade repentina de lhe pedir para fazer exatamente isso - apenas para ver se ela o faria, por amor a ele. Mas a consciência religiosa jamais permitiria que ele fizesse tal coisa; menos ainda, sua consciência como seu amante. Seu marido.
Huntly Street transformou-se repentinamente em Bank Street e o tráfego de pedestres dos arredores do centro comercial desapareceu. Passou pelo pequeno jardim memorial, erguido para celebrar o serviço das enfermeiras durante a Segunda Guerra Mundial, e pensou - como sempre acontecia - em Claire, embora desta vez com menos da admiração habitual que tinha por ela.
E o que você diria?, ele pensou. Sabia muito bem o que ela diria - ou ao menos de que lado estaria nesta questão. Ela não ficara em casa sendo mãe em tempo integral, ficara? Fora para a Faculdade de Medicina quando Bri tinha sete anos. E o pai de Bri, Frank Randall, aceitara a situação, quisesse ou não. Ele diminuiu um pouco o passo, pensando... Não era de admirar, portanto, que Bri estivesse pensando...
Ele passou pela Free North Church e esboçou um sorriso, pensando na sra. Ogilvy e na sra. MacNeil. Elas voltariam, ele sabia, se ele não fizesse alguma coisa a respeito. Conhecia bem aquele tipo de amabilidade obstinada. Santo Deus, se soubessem que Bri tinha ido trabalhar e - em sua maneira de pensar - abandonado o marido com duas crianças pequenas, fariam uma corrida de revezamento para lhe trazer tortas e ensopados quentes. Isso podia não ser algo ruim, pensou, lambendo os lábios contemplativamente - exceto que elas se demorariam para meter o nariz no funcionamento de sua casa e deixá-las entrar na cozinha de Brianna seria não só brincar com dinamite, mas deliberadamente lançar uma garrafa de nitroglicerina no meio de seu casamento.
- Católicos não acreditam em divórcio - Bri o informara certa vez. - Mas acreditamos em assassinato. Afinal, sempre temos a Confissão.
Na outra margem, estava a única igreja anglicana de Inverness, a de St. Andrew. Uma única igreja católica, uma única igreja anglicana - e nada menos do que seis igrejas presbiterianas, todas plantadas junto ao rio, em um espaço de menos de quatrocentos metros. Isso já dizia tudo que se precisava saber, ele pensou, sobre a natureza básica de Inverness. E ele havia dito a Brianna - sem, no entanto, ele admitia, mencionar sua própria crise de fé.
Ela não perguntara. Tinha que admitir. Ele chegara muito perto da ordenação na Carolina do Norte - e no período traumático que se seguiu a essa interrupção, com o nascimento de Mandy, a desintegração da comunidade de Ridge, a decisão de arriscar a passagem pelas pedras... ninguém tocara no assunto. Igualmente, quando voltaram, as necessidades imediatas de cuidar do coração de Mandy e depois montar alguma espécie de rotina de vida... A questão do ministério fora ignorada.
Ele achava que Brianna não mencionara o assunto porque não tinha certeza de como ele pretendia lidar com a questão e não queria pressioná-lo em nenhuma direção - se o fato de ela ser católica tornava sua condição de ministro presbiteriano em Inverness mais complicada, ele não podia ignorar o fato de que ele ser ministro causaria grandes complicações na vida dela, e ela sabia disso.
O resultado foi que nenhum dos dois falou sobre isso ao planejar os detalhes de sua volta.
Eles haviam tratado as questões práticas da melhor forma possível. Ele não podia voltar a Oxford - não sem uma explicação muito bem arquitetada.
- Não se pode simplesmente ficar entrando e saindo de uma universidade - ele explicara a Bri e a Joe Abernathy, o médico que fora amigo de longa data de Claire antes de sua própria partida para o passado. - Você pode sair em ano sabático, é verdade, ou mesmo em uma longa licença. Mas você tem que ter um propósito definido e algo a mostrar por sua ausência quando voltar, em termos de pesquisa publicada.
- Mas você podia escrever um livro incrível sobre a Regulamentação - Joe Abernathy observou. - Ou sobre o avanço da Revolução no sul da colônia.
- Poderia - ele admitiu. - Mas não um livro academicamente respeitado. - Sorrira amarguradamente, sentindo um leve comichão nas pontas dos dedos. Ele podia escrever um livro, um livro que ninguém mais poderia escrever. Mas não como historiador.
- Nenhuma fonte - ele explicara, indicando com a cabeça as prateleiras no gabinete de Joe, onde realizavam o primeiro de vários conselhos de guerra. - Para escrever um livro como historiador, eu precisaria fornecer as fontes de todas as informações, e para a maioria das situações únicas que eu poderia descrever tenho certeza de que nada jamais foi registrado. "Testemunho ocular do autor" não combinaria bem com uma editora universitária, garanto-lhe. Eu teria que escrevê-lo como um romance. - Essa ideia na realidade tinha algum apelo, mas não iria impressionar as faculdades de Oxford.
Na Escócia, contudo... As pessoas não apareciam em Inverness - ou em nenhum lugar das Highlands - sem serem notadas. Mas Roger não era um "recém-chegado". Ele crescera em uma casa paroquial em Inverness e ainda havia muita gente que o conhecera já adulto. E com uma mulher americana e filhos para explicar sua ausência...
- Veja, as pessoas lá não se importam realmente com o que você andou fazendo quando esteve fora - ele explicou. - Só se importam com o que você faz quando está lá.
Já havia alcançado as Ilhas do Ness. Um parque pequeno, tranquilo, situado nos pequenos braços do rio que se estendiam a apenas alguns metros da margem, tinha caminhos de terra batida, árvores grandes e pouco movimento nesta hora do dia. Perambulou pelas trilhas, tentando esvaziar a cabeça, enchêla apenas com o barulho da água corrente, a quietude do céu nublado.
Chegou ao final da ilha e ficou parado por alguns instantes, entrevendo os desttroços deixados nos galhos dos arbustos que margeavam a água - monturos de folhas mortas, penas de aves, espinhas de peixe, um ou outro maço de cigarros, depositados pela passagem da água em seu nível mais alto.
Ele havia, é claro, pensado em si mesmo. O que ele iria fazer, o que as pessoas pensariam dele. Por que nunca lhe ocorrera se perguntar o que Brianna pretendia fazer se fossem para a Escócia?
Bem, isso era óbvio - e estúpido - em retrospecto. Em Ridge, Brianna fazia... bem, muito mais do que a mulher comum de lá costumava fazer, era verdade - não se podia deixar de registrar que ela caçava búfalos, abatia perus a tiro, seu lado deusa-caçadora, matadora de piratas -, mas também o que a mulher comum fazia. Cuidar da família, alimentar, vestir, confortar todos eles - ou às vezes dar-lhes umas palmadas. E com Mandy doente e Brianna sofrendo a perda de seus pais, a questão de trabalhar em qualquer coisa tornara-se irrelevante. Nada poderia separá-la de sua filha.
Mas Mandy estava bem agora - alarmantemente saudável, como a trilha de destruição que a seguia por toda parte demonstrava. Os detalhes cuidadosos de restabelecer suas identidades no século )0( foram realizados, a compra de Lallybroch feita do banco que era o proprietário, a mudança física para a Escócia realizada, Jem assentado - mais ou menos - na escola do vilarejo próximo e uma boa menina do mesmo vilarejo contratada para vir fazer a limpeza e ajudar a tomar conta de Mandy.
E agora Brianna ia trabalhar. E Roger ia para o inferno. Metaforicamente, ainda que não literalmente.
Brianna não podia dizer que não fora avisada. Era um mundo masculino esse em que ela estava entrando.
Fora um trabalho árduo, um duro empreendimento - o mais difícil, cavar os túneis que carregavam os quilômetros de cabos das turbinas das usinas hidrelétricas. "Tigres dos túneis", era como chamavam os homens que os escavaram, muitos deles imigrantes poloneses e irlandeses que vieram pelo emprego na década de 1950.
Ela havia lido a respeito deles, vira fotos, rostos sujos e olhos brancos como mineiros de carvão, no escritório do diretor da hidrelétrica - as paredes estavam cobertas deles, atestados da mais imponente realização moderna da Escócia. Qual fora a mais antiga realização da Escócia?, ela perguntara. O kilt? Ela reprimira uma risada diante da ideia, mas evidentemente isso a fez parecer agradável, porque o sr. Campbell, o gerente de pessoal, sorriu amavelmente para ela.
- Está com sorte, garota. Temos uma vaga em Pitlochry, para começar daqui a um mês - ele dissera.
- Isso é maravilhoso. - Brianna tinha uma pasta no colo, contendo suas credenciais. Ele não pediu para vê-la, o que a surpreendeu, mas a colocou sobre a mesa diante dele, abrindo-a. - Aqui está meu... hã... - Ele olhava fixamente para o curriculum vitae em cima, suficientemente boquiaberto para ela poder ver suas obturações de platina nos dentes posteriores.
Ele fechou a boca, ergueu os olhos para ela, perplexo, depois olhou novamente para a pasta, levantando devagar o CV, como se receasse que pudesse haver alguma coisa ainda mais chocante embaixo.
- Acho que tenho todas as qualificações - ela disse, reprimindo a ânsia nervosa de cerrar os dedos no tecido de sua saia. - Para ser inspetora de usina, quero dizer. - Ela sabia muito bem que sim. Ela possuía as qualificações para construir uma maldita estação hidrelétrica, quanto mais inspecionar uma.
- Inspetora... - ele disse debilmente. Em seguida, tossiu e ficou um pouco ruborizado. Fumante inveterado; ela podia sentir o cheiro de tabaco que impregnava suas roupas. - Acho que houve algum mal-entendido, minha cara. É de uma secretária que estamos precisando em Pitlochry.
- Talvez estejam - ela disse, cedendo à necessidade de agarrar a saia. - Mas o anúncio ao qual eu respondi foi para inspetor de usina, e é para esse cargo que estou me candidatando.
- Mas... minha cara... - Ele sacudia a cabeça, obviamente perplexo. - Você é uma mulher!
- Sou - ela disse, e qualquer homem que tivesse conhecido seu pai teria percebido o tom metálico em sua voz e cedido na mesma hora. O sr. Campbell, infelizmente, não conhecera Jamie Fraser, mas estava prestes a ser esclarecido. - Poderia me explicar exatamente que aspectos de inspeção de usina requerem um pênis?
Os olhos do homem se arregalaram e ele ficou da cor da barbela de um peru na estação da corte.
- É que... você... é... - Com evidente esforço, conseguiu dominar-se para falar educadamente, embora o choque ainda fosse evidente em suas feições grosseiras. - Sra. Mackenzie. Não desconheço a ideia da liberação feminina, sim? Eu mesmo tenho filhas. - E nenhuma delas teria dito algo desse tipo para mim, sua sobrancelha erguida disse. - Não é que eu ache que seria incompetente. - Olhou para a pasta aberta, ergueu ambas as sobrancelhas rapidamente, depois a fechou com firmeza. - É o... ambiente de trabalho. Não seria adequado para uma mulher.
- Por que não?
Ele agora já recuperava sua autoconfiança.
- As condições em geral são fisicamente duras. E para ser franco, sra. Mackenzie, assim também são os homens com quem a senhora se depararia. A companhia não pode, em sã consciência, e para o bem dos negócios, arriscar a sua segurança.
- O senhor emprega homens que poderiam atacar uma mulher?
- Não! Nós... - Tem usinas que são fisicamente perigosas? Então, realmente precisa de um inspetor, não?
- Os aspectos legais...
- Estou bem informada sobre o regulamento referente às usinas hidrelétricas - ela disse com firmeza, e enfiando a mão na bolsa retirou o folheto impresso de normas, obviamente bem manuseado, fornecido pelas Highlands e pelo Conselho de Desenvolvimento das Ilhas. - Posso apontar problemas e posso lhe dizer como retificá-los prontamente... e tão economicamente quanto possível.
O sr. Campbell parecia extremamente infeliz.
- E soube que o senhor não teve muitos candidatos para este cargo - ela terminou. - Nenhum, para ser mais exata.
- Os homens...
- Homens? - ela disse, permitindo que uma ponta mínima de ironia matizasse a palavra. - Já trabalhei com homens antes. Eu me dou bem com eles.
Olhou para ele, sem dizer mais nada. Sei o que é matar um homem, ela pensou. Sei exatamente o quanto é fácil. E você não. Ela não tinha consciência de que mudara a expressão de seu rosto, mas Campbell perdeu um pouco da cor e desviou os olhos. Perguntou-se por uma fração de segundo se Roger teria desviado os olhos. Mas esta não era hora de pensar em coisas assim.
- Por que não me mostra um dos canteiros de obras? - ela disse delicadamente. - Depois, poderemos conversar mais.
No século XVIII, a igreja de St. Stephen fora usada como prisão temporária para os jacobitas capturados. Dois deles haviam sido executados no cemitério da igreja, segundo o relato de algumas pessoas. Não era o pior lugar para ter como sua última visão da Terra, imaginava: o rio amplo, o vasto céu, ambos fluindo para o mar. Carregavam uma permanente sensação de paz - o vento, as nuvens e a água - apesar de seu constante movimento.
"Se algum dia você se vir no meio de um paradoxo, pode ter certeza de que está à beira da verdade", seu pai adotivo lhe dissera certa vez. "Você pode não saber o que ela é, veja bem", acrescentara com um sorriso. - "Mas está lá.
O reitor da igreja de St. Stephen, dr. Weatherspoon, também tivera alguns aforismos para compartilhar.
"Quando Deus fecha uma porta, abre uma janela. Sim. O problema é que esta janela em particular se abria no décimo andar e ele não tinha certeza se Deus também dava o paraquedas.
- O Senhor dá? - ele perguntou, erguendo os olhos para o céu em movimento acima de Inverness.
- O que disse? - perguntou o espantado sacristão, levantando-se subitamente de trás da lápide atrás da qual estava trabalhando.
- Desculpe-me. - Roger abanou a mão, embaraçado. - Só estava... falando comigo mesmo.
O velhinho balançou a cabeça, compreensivamente.
- Sim, sim. Então, não se preocupe. É quando começa a obter respostas que você deve se preocupar. - Rindo roucamente, abaixou-se, sumindo de vista outra vez.
Roger começou a descer do cemitério no alto para o nível da rua, caminhando de volta devagar para o estacionamento. Bem, ele dera o primeiro passo. Com bastante atraso. Bri tinha razão, até certo ponto; ele fora covarde, mas finalmente começara a agir.
A dificuldade ainda não estava solucionada, mas fora um grande conforto poder expor o problema para alguém que compreendia e era solidário.
"Rezarei por você", o dr. Weatherspoon dissera, apertando sua mão ao se despedir. Isso também foi um consolo.
Começou a subir os úmidos degraus de concreto do estacionamento, remexendo no bolso em busca da chave do carro. Não podia dizer que estava completamente em paz consigo mesmo, ainda não - mas se sentia bem mais tranquilo em relação a Bri. Agora podia voltar para casa e lhe dizer...
Não, droga. Não podia, ainda não. Precisava verificar. Não precisava verificar; tinha certeza de que estava certo. Mas ele precisava ter isso nas mãos, tinha que ser capaz de mostrar a Bri.
Girando abruptamente nos calcanhares, passou a passos largos pelo perplexo funcionário do estacionamento que vinha atrás dele, desceu os degraus de dois em dois e começou a subir a Huntly Street como se pisasse em brasas. Parou rapidamente no Fox, vasculhando os bolsos em busca de moedas, e ligou da cabine telefônica para Lallybroch. Annie atendeu ao telefone com seu modo ríspido usual, dizendo "Siiim?" com tal brusquidão que chegou aos seus ouvidos como pouco mais de um silvo interrogativo.
Ele não perdeu tempo em censurar seus modos ao telefone.
- É Roger. Diga à dona Brianna que estou indo a Oxford para tratar de um assunto. Vou dormir lá.
- Mmmhum - ela disse, e desligou.
Ela teve vontade de golpear Roger na cabeça com um objeto rombudo. Algo como uma garrafa de champanhe, por exemplo.
- Ele foi aonde? - ela perguntou, embora tivesse ouvido Annie MacDonald claramente. Annie ergueu os dois ombros estreitos ao nível das orelhas, indicando que ela compreendia a natureza retórica da pergunta.
- A Oxford - respondeu. - À Inglaterra. - O tom de sua voz sublinhava a absoluta ignomínia do ato de Roger. Ele não fora simplesmente consultar algum livro antigo, o que já teria sido bastante estranho, embora sem dúvida ele fosse um estudioso e eles eram capazes de tudo, mas abandonara a mulher e os filhos sem avisar e se escafedera para um país estrangeiro! - Bem, ele disse que voltaria amanhã - Annie acrescentou, com grande dúvida. Ela pegou a garrafa de champanhe da sacola de compras, com cuidado, como se ela fosse explodir. - Devo colocar isto no gelo?
- No... oh, não, não coloque no congelador. Apenas na geladeira. Obrigada, Annie.
Annie desapareceu na cozinha e Brianna permaneceu na fria corrente de ar do corredor por um instante, tentando controlar seus sentimentos firmemente antes de ir ao encontro de Jem e Mandy. As crianças sendo crianças, tinham radares ultrassensíveis em relação a seus pais. Elas já sabiam que havia algum problema entre ela e Roger; o desaparecimento repentino do pai não iria contribuir para se sentirem seguras e tranquilas. Ele ao menos se despedira delas? Assegurou-lhes que voltaria? Não, claro que não.
- Maldito egoísta, egocêntrico... - murmurou. Incapaz de encontrar um complemento satisfatório para a frase, disse: - Filho da mãe desgraçado! - Em seguida, resfolegou com uma risada relutante. Não somente pela tolice do insulto, mas com um reconhecimento amargo de que ela conseguira o que queria. Dos dois modos.
É bem verdade, ele não pôde impedi-la de procurar seu emprego - e quando ele tivesse superado os transtornos práticos envolvidos ela achava que ele aceitaria bem a situação.
"Os homens detestam mudanças", sua mãe lhe dissera uma vez, descontraidamente. "A menos que seja ideia deles, é claro. Mas às vezes você pode fazê-los pensar que realmente é ideia deles."
Talvez ela devesse ter sido menos direta; ter tentado fazer Roger sentir que ele ao menos teve alguma participação na sua decisão de trabalhar fora, ainda que não fosse ideia dele - isso já seria querer demais. Mas ela não estava COM nenhuma disposição de ser dissimulada. Nem mesmo diplomática.
Quanto ao que ela fizera a ele... bem, ela aturara sua imobilidade o máximo que pôde, e depois empurrara-o da beira do penhasco. De propósito.
- E não me sinto nem um pouco culpada por isso! - disse para o cabideiro. Pendurou seu casaco devagar, despendendo um pouco mais de tempo para verificar os bolsos em busca de lenços de papel usados e recibos amassados.
Bem, ele teria partido por ressentimento - para se vingar dela por voltar a trabalhar? Ou de raiva por ela tê-lo chamado de covarde? Ele não gostara nada disso; seus olhos ficaram escuros e ele quase perdeu a voz - uma emoção forte o sufocou, paralisando sua laringe. Mas ela fizera isso de propósito. Ela sabia quais eram os pontos fracos de Roger - assim como ele sabia os dela.
Seus lábios cerraram-se diante do pensamento, assim como seus dedos se fecharam sobre algo duro no bolso interior de seu casaco. Uma velha concha, lisa e espiralada, desgastada pelo sol e pela água. Roger a pegara entre os seixos junto ao lago Ness e dera a ela.
- Para se abrigar - ele disse, sorrindo, mas traído pela rouquidão em sua voz danificada.
Ela fechou os dedos delicadamente sobre a concha e suspirou. Roger não era mesquinho. Nunca. Ele não iria partir repentinamente para Oxford - uma bolha relutante de riso flutuou para cima à ideia da chocada descrição de Annie: para a Inglaterra! - só para preocupá-la.
Portanto, ele fora por alguma razão específica, sem dúvida algo deflagrado pela briga que tiveram - e isso a preocupava um pouco.
Ele estivera às voltas com vários problemas desde que voltaram. E ela também, é claro: a doença de Mandy, decisões sobre onde morar, todos os detalhes aparentemente triviais de realocar uma família tanto no tempo quanto no espaço - fizeram tudo isso juntos. Mas havia questões que ele enfrentara sozinho.
Ela crescera como filha única, assim como ele; ela sabia como era, como você vive muito dentro de sua própria cabeça. Mas, droga, o que quer que ele tivesse em sua cabeça estava consumindo-o diante de seus olhos e, se ele não lhe dizia do que se tratava, ou era algo considerado particular demais para compartilhar - o que a incomodava, mas podia conviver com isso - , ou que ele achava perturbador demais ou perigoso para compartilhar, isso ela não iria aceitar.
Seus dedos haviam se fechado em volta da concha e ela afrouxou-os, tentando se acalmar.
Podia ouvir as crianças em cima, no quarto de Jem. Ele lia algo para Mandy - The Gingerbread Man, ela pensou. Não conseguia distinguir as palavras, mas conhecia o ritmo, com os gritinhos empolgados de Mandy fazendo contraponto.
Não fazia sentido interrompê-los. Havia tempo bastante mais tarde para lhes contar que papai passaria a noite fora. Talvez eles não se incomodassem, se ela contasse de maneira casual; ele nunca os havia deixado desde que voltaram, mas quando viviam em Ridge ele sempre se ausentava com Jamie ou Ian, caçando. Mandy não se lembraria disso, mas Jem...
Pretendera ir para seu gabinete, mas viu-se vagando pelo corredor e atravessando a porta aberta do gabinete de Roger. Era o antigo aposento onde as pessoas de fora vinham "dar uma palavrinha" com o dono da casa; o aposento onde seu tio Ian conduzira os assuntos da propriedade durante anos - seu pai por pouco tempo antes disso e seu avô antes dele.
E agora era de Roger. Ele perguntara se ela queria o gabinete, mas ela dissera que não. Ela gostava da pequena sala de estar do outro lado do corredor, com suas janelas ensolaradas e a sombra da antiga roseira amarela que enfeitava aquele lado da casa com sua cor e seu perfume. Fora isso, entretanto, ela apenas sentia que este aposento era um lugar de homem, com seu assoalho de madeira austero e desgastado, e estantes confortavelmente envelhecidas.
Roger conseguira encontrar um dos antigos livros de contabilidade da fazenda, de 1776; estava em uma das prateleiras superiores, a gasta encadernação de tecido abrigando as minúcias pacientes, cuidadosas, da vida em uma fazenda das Highlands: um quarto de libra de sementes de abeto-branco, um bode para reprodução, seis coelhos, trinta pesos de batatas-semente... Teria sido seu tio quem escreveu isso? Ela não sabia, nunca vira uma amostra de sua caligrafia.
Ela imaginou, com um estremecimento peculiar em suas entranhas, se seus pais haviam conseguido voltar para a Escócia - para cá. Se tinham visto Ian e Jenny outra vez; se seu pai havia sentado - sentaria? - aqui neste aposento, em casa novamente, discutindo as questões de Lallybroch com Ian. E sua mãe? Do pouco que Claire dissera, ela não se despedira de Jenny nos melhores termos, e Brianna sabia que sua mãe se entristecia com isso; um dia, haviam sido grandes amigas. Talvez as coisas pudessem ser consertadas - talvez tenham sido consertadas.
Olhou para a caixa de madeira, a salvo na prateleira superior, ao lado do livro de contabilidade, a pequena cobra de cerejeira enroscada diante dela. Em um impulso, pegou a cobra, encontrando certo consolo na curva lisa do corpo e na expressão cômica de sua cara, espreitando para trás, por cima de seu ombro inexistente. Sorriu para ela, involuntariamente.
- Obrigada, tio Willie - ela disse suavemente, em voz alta, e sentiu um extraordinário tremor percorrê-la. Não de medo, ou de frio, mas uma espécie de prazer, de um tipo tranquilo. Reconhecimento.
Ela vira aquela cobra tantas vezes - em Ridge, e agora aqui, onde fora feita - que nunca pensou em seu criador, o irmão mais velho de seu pai, morto aos onze anos. Mas ele estava ali, também, no trabalho de suas mãos, nos aposentos que o conheceram. Quando ela visitou Lallybroch anteriormente - no século XVIII - , havia um retrato dele no patamar das escadas em cima, um garoto pequeno, forte, ruivo, parado com a mão no ombro de seu irmão menor, sério, os olhos muito azuis.
Onde estará esse quadro agora? E os outros pintados por sua avó? Havia aquele único autorretrato, que de alguma forma chegara à National Portrait Gallery - ela não podia deixar de levar as crianças a Londres para vê-lo, quando fossem um pouco mais velhos - mas e os outros? Havia um de Jenny Murray ainda muito jovem alimentando um faisão dócil que tinha os meigos olhos castanhos de seu tio Ian, e ela sorriu diante da lembrança.
Era o certo a ser feito. Vir para cá, trazer as crianças... para casa. Não importava que fosse preciso um pouco de esforço dela e de Roger para encontrarem seu lugar. Embora talvez ela não devesse falar por Roger, pensou com uma expressão de desgosto.
Ergueu os olhos para a caixa outra vez. Quisera que seus pais estivessem ali - qualquer um dos dois - para que pudesse conversar com eles sobre Roger, pedir a opinião deles. Não que precisasse tanto de conselho... O que ela queria, para ser sincera, pensou, era uma confirmação de que agira corretamente.
Com o rosto corado, ergueu as duas mãos e pegou a caixa, sentindo-se culpada por não esperar por Roger para compartilhar a carta seguinte. Mas... ela precisava de sua mãe agora mesmo. Pegou a primeira carta na pilha que tinha a caligrafia de sua mãe na parte externa.
Escritórios de L'Oignon, New Bern, Carolina do Norte
Querida Bri (e Roger,Jem e Mandy, é claro)
12 de abril de 1777
Conseguimos chegar a New Bern sem maiores incidentes. Sim, eu a ouço pensando "maiores?". E é verdade que fomos parados por uma dupla de pretensos bandidos na estrada ao sul de Boone. No entanto, considerando que deviam ter respectivamente nove e onze anos, armados apenas com um antigo mosquete que os teria feito em pedacinhos se tivessem conseguido dispará-lo, não corremos grande perigo.
Rollo saltou da carroça e derrubou um deles, estatelando-o no chão, quando então seu irmão largou a arma e fugiu correndo. Seu primo Ian o perseguiu e o arrastou de volta pelo cangote.
Seu pai levou algum tempo para conseguir extrair deles alguma coisa que fizesse sentido, mas um pouco de comida fez milagre. Disseram que seus nomes são Herman e - não, de verdade - Vermin. Seus pais morreram durante o inverno - seu pai foi caçar e não voltou, a mãe morreu ao dar à luz e o bebê morreu um dia depois, já que os dois meninos não tinham como alimentá-lo. Eles não conhecem ninguém do lado do pai, mas disseram que o nome de família da mãe era Kuykendall. Felizmente, seu pai conhece uma família Kuykendall, perto de Bailey Camp, e assim Ian levou os dois vagabundos ao encontro dos Kuykendall para ver se os dois garotos poderiam ficar com eles. Se não, imagino que ele os trará para New Bern e tentaremos colocá-los como aprendizes em algum lugar ou talvez levá-los conosco para Wilmington e encontrar para eles um trabalho como ajudantes de camareiro no navio.
Fergus, Marsali e as crianças parecem estar todos bem, tanto física - salvo uma tendência familiar a adenoides aumentadas e a maior verruga que eu já vi no cotovelo esquerdo de Germain - quanto financeiramente.
Fora o Wilmington Gazette, o Oignon é o único jornal regular na colônia, e Fergus assim consegue fazer muitos negócios. Acrescente-se a isso a impressão e venda de livros e panfletos e pode-se dizer que ele está realmente indo muito bem. A família agora é dona de duas cabras leiteiras, um bando de galinhas, um porco e três mulas, inclusive Clarence, que estamos passando para eles com nossa ida para a Escócia.
Condições e incertezas sendo o que são significando, Brianna pensou, que você não sabe quem pode ler esta carta, ou quando, é melhor que eu não seja específica sobre o que ele anda publicando, além de jornais. O próprio Wignon é cuidadosamente imparcial, publicando denúncias radicais tanto dos legalistas quanto dos menos legalistas, e publicando poemas satíricos de nosso bom amigoAnônimo", ridicularizando ambos os lados de nosso atual conflito político. Acho que nunca vi Fergus tão feliz.
A guerra combina com alguns homens e Fergus, estranhamente, é um deles. Seu primo Ian é outro, embora no caso dele eu acredite que talvez isso o impeça de ficar pensando muito.
Eu realmente me pergunto o que sua mãe vai achar dele. Mas conhecendo-a como conheço, meu palpite é que depois de passado o choque inicial ela vai começar a procurar uma mulher para ele. Jenny é uma mulher muito observadora, no contexto geral - e tão obstinada quanto seu pai. Espero que ele se lembre disso.
Por falar em seu pai, ele sai muito com Fergus, fazendo alguns pequenos "negócios" (não especificados, o que significa que ele provavelmente está fazendo alguma coisa que me deixaria de cabelos brancos - ou mais brancos - se eu viesse a saber) e investigando junto aos mercadores por um possível navio - embora eu ache que nossas chances de encontrar um serão melhores em Wilmington, para onde iremos assim que Ian voltar.
Enquanto isso, eu "abri meu consultório" colocando uma placa na frente da gráfica de Fergus com os dizeres: ARRANCAM-SE DENTES, CURAM-SE ERUPÇÕES DE PELE, CATARRO E MALEITA, sendo a placa obra de Marsali. Ela queria acrescentar a sífilis, mas tanto Fergus quanto eu a dissuadimos - ele por medo de que isso fosse abaixar o nível do estabelecimento, eu mesma por um certo apego à verdade na propaganda, já que de fato não há nada que eu possa fazer no momento sobre qualquer condição da doença. Catarro... bem, sempre há alguma coisa que se pode fazer contra o catarro, nem que seja ao menos uma xícara de chá quente (atualmente, significa água quente sobre raiz de sassafrás, gatária ou erva-cidreira) com uma dose de uísque.
Fiz uma visita ao dr. Fentiman em Cross Creek no caminho e pude comprar vários instrumentos necessários e alguns remédios com ele para renovar meu estojo (ao custo de uma garrafa de uísque e serforçada a admirar a mais recente adição à sua medonha coleção de curiosidades em conserva - não, você não vai querer saber; realmente, não. Ainda bem que ele não pode ver a verruga de Germain ou viria na mesma hora a New Bern, esgueirando-se pela gráfica com uma serra de amputação).
Eu ainda não tenho um par de boas tesouras cirúrgicas, mas Fergus conhece um prateiro chamado Stephen Moray em Wilmington que ele diz que pode fazer um par segundo minhas especificações. Por enquanto, ocupo-me em grande parte com extração de dentes, já que o barbeiro que costumava fazer isso se afogou em novembro último, depois de cair nas águas do porto quando bêbado.
Com todo o amor, Mamãe
DIABINHOS
Não era muito diferente de nenhuma das trilhas de veado que haviam encontrado; na verdade, sem dúvida começara como uma delas. Mas havia alguma coisa sobre aquele traçado em particular que dizia "gente" para Ian, e ele estava tão acostumado a essas conclusões que raramente as registrava conscientemente. Ele não sabia, mas deu uma virada na rédea de condução de Clarence, virando a cabeça de seu próprio cavalo.
- Por que estamos parando? - Herman perguntou, desconfiado. - Não tem nada aqui.
- Tem alguém morando lá em cima. - Ian indicou a subida com um movimento brusco do queixo. - A trilha não é bastante larga para cavalos; vamos amarrá-los aqui e subir a pé.
Herman e Vermin apenas trocaram um olhar de profundo ceticismo, mas desceram da mula e se arrastaram atrás de Ian, subindo a trilha.
Ele começava a ter suas dúvidas; ninguém com quem ele falara na última semana conhecia nenhum Kuykendall na região e ele não podia ficar perdendo muito mais tempo com a questão. Provavelmente teria que levar os pequenos selvagens para New Bern com ele, afinal, e não tinha a menor ideia de como eles receberiam a sugestão.
Aliás, não fazia a menor ideia de como eles receberiam qualquer coisa. Eles não só eram tímidos quanto reticentes e dissimulados, sussurrando entre si às suas costas enquanto cavalgavam, depois se fechando como moluscos no instante em que Ian olhava para eles, fitando-o com expressão cuidadosamente neutra, por trás da qual ele via obviamente os pensamentos correndo acelerados. Que diabos eles estariam planejando?
Se pretendiam fugir dele, ele achava que não faria nenhum esforço monstruosamente grande para recapturá-los. Se, por outro lado, pretendessem roubar Clarence e o cavalo enquanto ele dormia, já era outra questão.
A cabana estava lá, uma espiral de fumaça saindo da chaminé; Herman lançou-lhe um olhar surpreso e ele sorriu para o garoto.
- Eu disse a vocês - ele falou, gritando "Ó de casa" em seguida. A porta se abriu apenas com uma fresta e o cano de um mosquete apontou por ela. Isso não era uma reação incomum a estranhos nas regiões isoladas do interior e Ian não se deixou amedrontar. Ergueu a voz e disse o que fazia, empurrando Herman e Vermin à sua frente como prova de sua boa-fé.
A arma não foi retirada, mas ergueu-se de uma maneira significativa. Obedecendo ao instinto, Ian atirou-se rente ao chão, puxando os garotos para baixo com ele, enquanto o tiro estrondava acima deles. Uma voz de mulher gritou alguma coisa de forma estridente em uma língua desconhecida. Ele não compreendeu as palavras, mas apreendeu claramente o significado e, puxando os dois garotos e colocando-os de pé, empurrou-os apressadamente de volta pela trilha abaixo.
- Eu não vou viver com ela - Vermin informou-o, lançando um olhar de aversão, os olhos estreitados, por cima do ombro. - Isso eu posso garantir.
- Não, não vai - Ian concordou. - Continue andando, hein? - ele disse, pois Vermin parara repentinamente.
- Tenho que cagar.
- Oh, é? Bem, ande rápido. - Deu-lhe as costas, tendo descoberto desde o começo que os garotos tinham uma necessidade exagerada de privacidade nessas questões.
Herman já seguira na frente; a cabeleira emaranhada e suja de cabelos louros era apenas visível, a uns vinte metros abaixo da ladeira. Ian sugerira que os rapazes deveriam cortar, se não pentear, os cabelos, e talvez lavar o rosto, como um gesto de civilidade em deferência de qualquer parente que se visse diante da perspectiva de adotá-los, mas essa sugestão fora rejeitada com veemência. Felizmente, ele não era responsável por forçar os malandrinhos a se lavarem - e, para ser justo, ele achava que pouca diferença iria fazer para o mau cheiro deles, considerando-se o estado de suas roupas, nas quais obviamente já viam há algum tempo. No entanto, ele os fazia dormir do outro lado da fogueira, longe dele e de Rollo, à noite, na esperança de limitar sua exposição aos piolhos COM que eles estavam infestados.
Poderia a notável infestação que ele exibia ser possivelmente onde os pais do garoto mais novo haviam obtido seu nome?, perguntou-se. Ou eles não teriam nenhuma noção de que Vermin significava parasitas, praga, peste e só o escolheram para rimar com o nome do irmão mais velho?
O zurro ensurdecedor de Clarence arrancou-o de seus pensamentos. Aumentou o passo, repreendendo-se por ter deixado a própria arma presa na sela. Ele não queria se aproximar da casa armado, mas...
Um grito lá de baixo o fez saltar para fora do caminho e entrar no meio das árvores. Outro grito foi interrompido repentinamente e ele desceu o barranco aos tropeços, o mais rápido possível sem fazer muito estardalhaço. Pantera? Um urso? Não, Clarence estaria berrando como uma orca, se fosse isso; em vez, a mula gorgolejava e resfolegava como fazia quando avistava...
Alguém que conhecia. Ian parou de repente, atrás de uma cortina de choupos, o coração frio no peito.
Arch Bug virou a cabeça, ao ouvir o barulho, apesar de quase imperceptível.
- Saia daí, rapaz - falou. - Estou vendo você aí. Obviamente, ele via; os olhos antigos fitavam-no diretamente, e Ian saiu devagar do meio das árvores.
Arch pegara a arma do cavalo; estava pendurada em seu ombro. Tinha um braço engatado ao redor do pescoço de Herman e o rosto do menino estava roxo do sufocamento; seus pés chutavam como os de um coelho moribundo, alguns centímetros fora do chão.
- Onde está o ouro? - Arch perguntou, sem preâmbulos. Seus cabelos brancos estavam bem-arrumados e presos para trás, e ele parecia, até onde Ian podia ver, não ter se prejudicado nem um pouco com o inverno. Deve ter encontrado alguma família com quem ficar. Onde?, se perguntou. Brownsville, talvez? Perigoso demais, se tivesse contado aos Brown sobre o ouro - mas ele achava que Arch era astuto demais para confiar naquela gente.
- Onde você nunca o encontrará - Ian disse prontamente. Seus pensamentos corriam acelerados. Tinha uma faca na cintura, mas estava muito longe para atirá-la, e se errasse o alvo...
- O que você quer com o menino? - ele perguntou, aproximando-se um pouco. - Ele não tem nada a ver com isso.
- Não, mas parece ter a ver com você. - Herman dava pequenos guinchos ásperos e seus pés, embora ainda chutando, moviam-se mais devagar agora.
- Não, ele também não significa nada para mim - Ian disse, procurando falar descontraidamente. - Só o estou ajudando a encontrar sua família. Pretende cortar a garganta dele se eu não lhe disser onde o ouro está? Vá em frente, eu não vou lhe contar.
Ele não viu Arch puxar a faca, mas ela estava lá, repentinamente, em sua mão direita, segurada estranhamente por causa dos dedos que lhe faltavam, mas certamente perigosa.
- Está bem - Arch disse calmamente, colocando a ponta da faca sob o queixo de Herman.
Um berro irrompeu de trás de Ian, e Vermin em parte correu, em parte resvalou pelos últimos passos de trilha. Arch Bug ergueu os olhos, espantado, e Ian agachou-se para atacá-lo, mas foi antecipado por Vermin.
O garoto correu para Arch Bug e deu-lhe um tremendo chute na canela, gritando:
- Velho desgraçado! Largue ela agora mesmo! Arch pareceu tão surpreso com o chute quanto com a fala do menino, mas não soltou sua presa.
- Ela?! - exclamou, e olhou para baixo, para a criança que segurava, a qual prontamente virou a cabeça e mordeu-o ferozmente no pulso. Ian, aproveitando o momento, arremeteu-se contra ele, mas foi impedido por Vermin, que agora se agarrava à coxa de Arch com todas as forças, tentando socar o sujeito nos testículos com o pequeno punho cerrado.
Com um grunhido feroz, Arch levantou a menina - se isso é o que ela era - no ar com um safanão e arremessou-a, cambaleando, sobre Ian. Em seguida, desfechou um soco com seu enorme punho na cabeça de Vermin, atordoando-o. Arrancou o garoto de sua perna, chutou-o nas costelas quando ele cambaleou para trás, depois se virou e correu.
- Trudy, Trudy! - Herman correu para seu irmão, estendido na camada de folhas mofadas, a boca fechando e abrindo como uma truta fora da água.
Ian hesitou, querendo sair em perseguição de Arch, preocupado que Vermin estivesse gravemente ferido - mas Arch já desaparecera na floresta. Rangendo os dentes, agachou-se e passou as mãos rapidamente sobre Vermin. Nenhum sangue, e o menino agora já recuperava o fôlego, engolindo o ar e respirando pesadamente, como um fole avariado.
- Trudy? - Ian disse a Herman, agarrado com força ao pescoço de Vermin. Sem esperar por uma resposta, levantou a camisa rasgada de Vermin, arrancou a corda que prendia suas calças muito largas e espreitou lá dentro. Soltou-a apressadamente.
Herman ficou de pé com um salto, os olhos arregalados e as mãos superpostas protetoramente entre as pernas.
- Não! - ela disse. - Não vou deixar você enfiar seu maldito pau em mim!
- Nem que me pagasse - Ian garantiu-lhe. - Se este é Trudy - balançou a cabeça indicando Vermin, que se dobrara sobre as mãos e os joelhos e vomitava no mato - , qual é afinal o seu nome?
- Hermione - a menina disse, amuada. - Ela é Ermintrude. Ian passou a mão pelo rosto, tentando se adaptar à informação. Agora ele parecia... bem, não, elas ainda pareciam dois diabinhos imundos, e não duas meninas, os olhos rasgados flamejando através dos cabelos sujos e emaranhados.
Elas iam ter que raspar a cabeça, pensou, e esperava não estar nas proximidades quando isso acontecesse.
- Sim - ele disse, por falta de alguma coisa sensata. - Muito bem, então. - Você tem ouro? - Ermintrude disse, tendo parado de vomitar. Sentou-se empertigada, passou a mão pequena sobre a boca e cuspiu com habilidade. - Onde?
- Se eu não contaria a ele, por que contaria a vocês? E pode esquecer essa ideia no momento. - garantiu-lhe, vendo seus olhos dirigirem-se para sua faca na cintura.
Droga. O que ele deveria fazer agora? Afastou o choque da aparição súbita de Arch Bug - tempo para pensar nisso mais tarde - e passou a mão devagar pelos cabelos, refletindo. O fato de serem meninas não mudava nada, na verdade, mas o fato de saberem que ele tinha ouro escondido, sim. Não ousava deixá-las com ninguém agora, porque se o fizesse...
- Se deixar a gente, vamos contar sobre o ouro - Hermione disse prontamente. - Não queremos morar numa cabana nojenta. Queremos ir para Londres.
- O quê? - Fitou-as, incrédulo. - O que sabem de Londres, pelo amor de Deus?
- Nossa mãe veio de lá - Herman, não, Hermione, disse, e mordeu o lábio para impedir que tremesse à menção de sua mãe. Era a primeira vez que falava de sua mãe, Ian notou com interesse. Quanto mais exibir qualquer sinal de vulnerabilidade. - Ela nos contou sobre isso.
- Mmmmhum. E por que eu mesmo não mataria vocês? - ele perguntou, exasperado. Para seu espanto, Herman sorriu para ele, a primeira expressão um pouco amável que ele via em seu rosto.
- O cachorro gosta de você - ela disse. - Não gostaria se você matasse gente.
- É o que você pensa - murmurou, levantando-se. Rollo, que andara ausente cuidando da própria vida, escolheu este momento oportuno para saltar do meio do mato, farejando empenhadamente.
- E onde você estava quando eu precisei de você? - Ian perguntou. Rollo cheirou cuidadosamente ao redor do lugar onde Arch Bug estivera, depois ergueu a perna e urinou em um arbusto.
- Aquele velho miserável ia matar Hermie? - a menina perguntou subitamente, quando ele a levantava e sentava na mula, atrás de sua irmã.
- Não - ele disse, com certeza. Mas, ao subir em sua própria sela, ele ficou em dúvida. Tinha a sensação muito desconfortável de que Arch Bug compreendia muito bem a natureza da culpa. O suficiente para matar uma criança inocente, somente porque sua morte faria Ian se sentir culpado? E Ian se sentiria; Arch sabia disso. - Não - respondeu com mais convicção. Arch Bug era vingativo e retaliador, e tinha o direito de ser, admitia, mas Ian não tinha motivo para julgá-lo um monstro.
Mesmo assim, fez as meninas cavalgarem à sua frente, até acamparem naquela noite.
Não houve mais nenhum sinal de Arch Bug, embora Ian tivesse de vez em quando a sensação insinuante de estar sendo observado quando acampavam. O sujeito estaria seguindo-o? Talvez estivesse, Ian pensou - pois certamente não fora por acaso que ele aparecera tão repentinamente.
Muito bem. Ele voltara às ruínas da casa grande, pensando em recuperar o ouro depois que tio Jamie fora embora, e descobriu que o ouro não estava mais lá. Perguntou-se se Arch teria conseguido matar a porca branca, mas descartou a ideia; seu tio dissera que a criatura obviamente viera das regiões infernais e portanto era indestrutível, e ele próprio inclinava-se a concordar.
Olhou para Rollo, que cochilava a seus pés, mas o cachorro não dava nenhum sinal de que houvesse alguém por perto, apesar de suas orelhas estarem parcialmente erguidas. Ian relaxou um pouco, embora mantivesse a faca no corpo, mesmo enquanto dormia.
Não inteiramente por causa de Arch Bug, saqueadores ou animais selvagens. Olhou para o outro lado da fogueira, onde Hermione e Trudy estavam deitadas, enroladas bem junto em um cober... só que não estavam. O cobertor estava habilmente estofado para dar a impressão de conter dois corpos, mas uma rajada de vento levantara uma das pontas e ele pôde ver que não estavam ali.
Ele fechou os olhos, exasperado, depois os abriu e olhou para o cachorro.
- Por que você não disse alguma coisa? - perguntou. - Certamente os viu ir embora?
- Não fomos embora - disse uma vozinha fraca e rouca atrás dele. Ele virou-se e viu as duas agachadas de cada lado do alforje, pilhando laboriosamente a comida.
- Nós tamo com fome - Trudy disse, enfiando os restos de um pão na boca.
- Mas eu dei comida a vocês! - Ele havia abatido algumas codornas e cozido-as no barro. É bem verdade que não era um banquete, mas...
- Nós ainda com fome - Hermione disse, com lógica impecável. Lambeu os dedos e arrotou.
- Vocês beberam toda a cerveja? - ele perguntou, agarrando uma garrafa de pó de pedra vazia que rolava junto a seus pés.
- Mmhum-mhum - ela disse vagamente, sentando-se abruptamente. - Não podem roubar comida - ele disse severamente, tirando o esvaziado alforje de Trudy. - Se comerem tudo agora, vamos passar fome antes que eu consiga levá-las a... seja lá para onde vamos - terminou, frouxamente.
- Se não comermos, vamos passar fome agora - Trudy disse logicamente. - Melhor passar fome depois.
- Para onde estamos indo? - Hermione oscilava lentamente de um lado para o outro, como uma flor pequena e suja ao vento.
- Para Cross Creek - ele disse. - É a primeira cidade de maior porte que encontraremos e eu conheço algumas pessoas lá. - Se conhecia alguém que pudesse ser de alguma ajuda nas atuais circunstâncias... era uma pena o que acontecera à sua tia-avó Jocasta. Se ela ainda estivesse em River Run, ele poderia facilmente deixar as meninas lá, mas do jeito que as coisas estavam, Jocasta e seu marido, Duncan, haviam imigrado para a Nova Escócia. Havia a criada de Jocasta, Phaedre... Achava que ela estava empregada como garçonete em Wilmington. Mas, não. Ela não poderia...
- É tão grande quanto Londres? - Hermione deixou-se cair lentamente de costas, com os braços abertos. Rollo levantou-se e foi cheirá-la; ela deu uma risadinha, o primeiro som inocente que ouvira dela.
- Você tá bem, Hermie? - Trudy arrastou-se até sua irmã e agachou-se ao lado dela, preocupada. Rollo, tendo cheirado Hermione cuidadosamente, voltou sua atenção para Trudy, que meramente empurrou seu focinho curioso. Hermione agora cantarolava desafinadamente consigo mesma.
- Ela está bem - Ian disse, após um rápido olhar. - Só está um pouco bêbada. Vai passar.
- Oh. - Tranquilizada, Trudy sentou-se ao lado da irmã, abraçando os joelhos.
- Papai costumava ficar bêbado. Mas ele gritava e quebrava as coisas.
- É mesmo? - Hum-hum. Quebrou o nariz da minha mãe uma vez.
- Oh. - Ian disse, sem saber como reagir a isso. - Sinto muito. - Acha que ele está morto?
- Espero que sim. - Eu também - ela disse, satisfeita. Bocejou enormemente. Ele podia sentir o cheiro de seus dentes podres de onde estava sentado - e em seguida enroscou-se no chão, aconchegando-se a Hermione.
Suspirando, Ian levantou-se e foi buscar o cobertor. Cobriu-as, ajeitando a coberta delicadamente ao redor dos corpinhos abandonados.
E agora?, perguntou-se. A recente troca de palavras fora a mais próxima de uma conversa que já tivera com as meninas até então e ele não tinha dúvida de que a breve incursão em amabilidades iria durar mesmo depois que amanhecesse. Onde ele iria encontrar alguém disposto e capaz de cuidar delas?
Um leve ronco, como o zumbido das asas de uma abelha, veio do cobertor, e ele sorriu involuntariamente. A pequena Mandy, a filha de Bri, fazia um ruído assim quando dormia.
Ele segurara Mandy nos braços, adormecida, algumas vezes - certa vez, por mais de uma hora, não querendo largar o peso minúsculo e quente, observando o pulso rápido em seu pescoço. Imaginando, com saudade e uma dor amenizada pela distância, sua própria filha. Natimorta, seu rosto um mistério para ele. Yeksa'a, os mohawks a chamaram - "menininha", nova demais para ter um nome. Mas sua filha tinha um nome. Iseabail. Foi assim que ele a chamou.
Enrolou-se no esfiapado xale escocês que seu tio Jamie lhe dera quando ele resolveu ser um mohawk e deitou-se junto à fogueira.
Reze. Era isso que seus pais, seu tio, teriam aconselhado. Na verdade, não sabia ao certo a quem rezar, ou o que dizer. Deveria dirigir-se a Cristo, ou sua Mãe, ou talvez um dos santos? Ao espírito do cedro vermelho que montava guarda para além da fogueira ou à vida que se movia na floresta, sussurrando na brisa noturna?
- A Dizia - murmurou finalmente para o céu aberto - , cuidich mi - e adormeceu.
Quer tenha sido Deus ou a própria noite que o atendeu, ao amanhecer ele acordou com uma ideia.
Ele esperava a criada estrábica, mas a própria sra. Sylvie atendeu à porta. Lembrava-se dele; ele percebeu uma centelha de reconhecimento e - pensou - prazer em seus olhos, embora não chegasse a ser um sorriso, é claro.
- Sr. Murray - ela disse, tranquila e controlada. Em seguida, abaixou os olhos e perdeu um pouco de sua compostura. Ajeitou os óculos de armação metálica no nariz para ver melhor o que o acompanhava, em seguida levantou a cabeça e fitou-o com desconfiança.
- O que é isso? Ele já esperava por essa reação e se preparara. Sem responder, levantou a bolsinha gorda que trouxera e sacudiu-a, para que ela ouvisse o tilintar das moedas.
A expressão da sra. Sylvie mudou diante disso e ela deu um passo atrás para que eles pudessem entrar, embora continuasse a olhá-los com desconfiança.
Não com tanta desconfiança quanto as criaturinhas selvagens - ainda tinha dificuldade em pensar nelas como meninas - que se deixaram ficar para trás até ele agarrar cada uma pelo pescoço fino e empurrá-las com firmeza para dentro da sala de estar da sra. Sylvie. Elas se sentaram - compulsoriamente - , mas pareciam ter alguma coisa em mente, o que o fez cravar os olhos nelas, mesmo enquanto conversava com a proprietária do estabelecimento.
- Criadas? - ela disse, incrédula, olhando para as meninas. Ele dera banho nelas, em suas próprias roupas - à força, e tinha várias dentadas para provar, embora felizmente nenhuma tivesse inflamado ainda - , mas não havia nada a fazer a respeito de seus cabelos, a não ser cortá-los, e ele não estava disposto a se aproximar de nenhuma das duas com uma faca, por medo de feri-las ou a si próprio na luta subsequente. Elas permaneceram sentadas, olhando furiosamente através do emaranhado de seus cabelos como gárgulas, de olhos vermelhos e malignos.
- Bem, elas não querem ser prostitutas - ele disse brandamente. - E eu também não quero que elas sejam. Não que eu pessoalmente tenha alguma objeção à profissão - ele acrescentou em prol da cortesia.
Um músculo torceu-se no canto da boca da sra. Sylvie e ela lançou-lhe um olhar penetrante - e ligeiramente bem-humorado - através de seus óculos.
- Fico feliz em saber - ela disse secamente. E abaixou os olhos até os pés dele, levantando-os lentamente, quase de forma avaliadora, por toda a extensão de seu corpo, de tal maneira que o fez se sentir repentinamente como se tivesse sido mergulhado em água quente. Os olhos descansaram em seu rosto novamente e a expressão divertida havia se intensificado consideravelmente.
Ele tossiu, relembrando - com uma mistura de constrangimento e desejo sexual - uma série de imagens interessantes de seu encontro há mais de dois anos. Externamente. ela era uma mulher comum de mais de trinta anos, o rosto e os modos muito mais semelhantes aos de uma freira aristocrática do que aos de uma prostituta. Por baixo do despretensioso vestido de morim e avental de musselina, entretanto... ela valia cada centavo, a madame Sylvie.
- Não estou pedindo um favor, hein? - ele disse, indicando a bolsinha, que colocara na mesa ao lado de sua poltrona. - Eu tinha em mente ensinar-lhes algum ofício, talvez?
- Meninas aprendizes. Em um bordel. - Ela não falou como uma pergunta, mas sua boca torceu-se outra vez.
- Podia começar treinando-as como criadas, certamente você tem limpeza a fazer, não é? Urinóis a serem esvaziados e coisas assim? Depois, se forem bastante inteligentes - lançou-lhes, ele próprio, um olhar penetrante, e Hermione mostrou-lhe a língua - , poderia treiná-las como cozinheiras. Ou costureiras. Você deve ter que fazer muitos remendos, não? Lençóis rasgados e coisas assim?
- Combinações rasgadas, é mais provável - ela disse, muito secamente. Seus olhos dardejaram para o teto, de onde o som de guinchos rítmicos denunciava a presença de um cliente pagante.
As meninas haviam deslizado de seus banquinhos e rondavam pela sala como gatos selvagens, farejando as coisas e arrepiando-se de cautela. Ele percebeu repentinamente que elas nunca haviam visto uma cidade, muito menos a casa de alguém civilizado.
A sra. Sylvie inclinou-se para frente e pegou a bolsinha, os olhos arregalando-se de surpresa com seu peso. Abriu-a e despejou um punhado de balas gordurosas e enegrecidas em sua mão, levantando a cabeça e lançando um olhar penetrante para Ian à sua frente. Ele não falou, mas sorriu e, estendendo a mão, pegou uma das balas de sua palma, enfiou a unha com força no metal e largou-a novamente em sua mão, o risco brilhando, mostrando o ouro sob o negrume.
Ela franziu os lábios, avaliando o peso da bolsinha outra vez. - Toda ela? - Era, ele estimara, mais de cinquenta libras em ouro: metade do que ele carregava.
Ele esticou-se e pegou um enfeite de porcelana das mãos de Hermione.
- Não vai ser uma tarefa fácil - ele disse. - Você vai merecer esse valor, eu acho.
- Eu também acho - ela disse, observando Trudy, que - sem nenhum constrangimento - abaixara as calças e se aliviava no canto da lareira. Uma vez revelado o segredo de seu sexo, as meninas haviam abandonado suas exigências de privacidade.
A sra. Sylvie tocou seu sino de prata e as duas meninas voltaram-se para o som, surpresas.
- Por que eu? - ela perguntou.
- Não consegui pensar em ninguém mais que pudesse ser capaz de lidar com elas - Ian disse simplesmente.
- Estou muito lisonjeada.
- Devia estar mesmo - ele disse, sorrindo. - Estamos combinados, então? Ela inspirou fundo, analisando as meninas, que tinham as cabeças unidas, cochichando, enquanto olhavam para ela com extrema desconfiança. Soltou a respiração, sacudindo a cabeça.
- Provavelmente é um péssimo negócio. Mas os tempos estão difíceis.
- O que, em seu ramo? Imagino que a demanda seja bem constante. - Falou em tom de pilhéria, mas ela aproximou-se dele, os olhos estreitados.
- Oh, os clientes estão prontos a baterem em minha porta, independente de qualquer coisa - ela disse. - Mas não têm dinheiro ultimamente, ninguém tem. Eu aceito uma galinha ou um pedaço de bacon, mas metade deles nem isso tem. Pagam com "dinheiro da proclamação" ou com "continentais", ou com vales das milícias. Adivinha quanto qualquer uma dessas moedas vale no mercado?
- Sim, eu... - Mas ela fumegava como uma chaleira de água fervente e virou-se para ele, sibilando.
- Ou simplesmente não pagam. No tempo das vacas gordas, os homens são justos, em sua maioria. Mas, se o cinto aperta um pouco, eles param de vir porque têm que nos pagar pelo seu prazer. Afinal, o que custa a mim? E não posso me recusar, ou eles simplesmente conseguem o que querem e depois ateiam fogo à minha casa ou nos ferem por minha temeridade. Você vê isso, não?
A amargura em sua voz ardia como urtiga e ele abruptamente abandonou o impulso que se formava em seu íntimo de lhe propor que selassem seu acordo de uma forma pessoal.
- Compreendo - ele respondeu, da maneira mais impessoal possível. - Mas isso não é sempre um risco de sua profissão? E você prosperou até agora, não?
Ela comprimiu os lábios por um instante.
- Eu tinha um... benfeitor. Um cavalheiro que me dava proteção. - Em troca de...? Um forte rubor tomou conta de suas faces magras. - Não é da sua conta, senhor.
- Não? - Ele balançou a cabeça indicando a bolsinha em sua mão. - Se estou deixando meu... isso... bem, elas.... - abanou a mão indicando as meninas, agora tocando o tecido de uma cortina - com você, certamente tenho o direito de perguntar se as estou colocando em perigo, não é?
- São meninas - ela respondeu sucintamente. - Nasceram no perigo e viverão suas vidas nessa condição, independente das circunstâncias. Mas sua mão apertara-se ao redor da bolsinha, os nós dos dedos brancos. Ele ficou impressionado por ela ser tão honesta, considerando-se que ela obviamente precisava desesperadamente do dinheiro. No entanto, apesar de sua amargura, ele estava, de certo modo, apreciando o debate.
- Acha, então, que a vida não é perigosa para um homem? - ele perguntou, e sem parar acrescentou: - O que aconteceu com seu cafetão?
O sangue desapareceu abruptamente do rosto dela, deixando-o branco como um osso descarnado. Nele, seus olhos lançavam faíscas.
- Ele era meu irmão - ela disse, e sua voz abaixou-se a um sussurro furioso. - Os Filhos da Liberdade cobriram-no de alcatrão e penas, e o deixaram na minha porta para morrer. Agora, senhor... tem mais alguma pergunta concernente a meus negócios ou nosso acordo está fechado?
Antes que ele conseguisse encontrar uma resposta a isso, a porta se abriu e uma jovem entrou. Ele sentiu um choque visceral ao vê-la e as bordas de sua visão ficaram esbranquiçadas. Então, o aposento se estabilizou à sua volta e ele viu que conseguia respirar outra vez.
Não era Emily. A jovem - olhando com curiosidade para as pequenas selvagens enroladas nas cortinas - era parcialmente índia, de constituição pequena e graciosa, com os cabelos longos, cheios, negros como as asas da graúna, balançando-se, soltos, pelas suas costas. Com as maçãs do rosto largas e o queixo redondo e delicado de Emily. Mas não era Emily.
Graças a Deus, ele pensou, mas ao mesmo tempo sentiu um vazio no estômago. Ao vê-la, sentiu como se uma bala de canhão o tivesse atravessado, deixando um enorme buraco em seu rastro.
A sra. Sylvie dava rápidas instruções à jovem índia, apontando para Hermione e Trudy. As sobrancelhas negras da jovem ergueram-se levemente, mas ela assentiu e, sorrindo para as meninas, convidou-as a acompanhá-la até a cozinha para comerem alguma coisa.
As meninas prontamente se desvencilharam das cortinas; já se passara muito tempo desde o café da manhã, e ele não tinha nada para elas senão um pedaço de pão seco e um pouco de carne de urso seca, dura como couro de sapato.
Elas seguiram a índia para a porta da sala, sem lhe dispensar sequer um olhar. À porta, entretanto, Hermione virou-se e, puxando as calças largas para cima, fixou nele um olhar feroz e apontou-lhe um dedo fino e longo de acusação.
- Se virarmos prostitutas no final das contas, seu desgraçado, eu vou caçálo, arrancar suas bolas e enfiá-las no seu cu.
Ele se despediu com toda a dignidade que conseguiu reunir, a risada da sra. Sylvie retinindo em seus ouvidos.
ARRANCANDO DENTES
New Bern, colônia da Carolina do Norte Abril, 1777
Eu detestava arrancar dentes. A figura de linguagem que compara algo de extrema dificuldade à extração de dentes não é uma hipérbole. Mesmo na melhor das situações - uma pessoa corpulenta com uma boca grande e um temperamento dócil, o dente afetado, um dos da frente e no maxilar superior (menos problemático em relação a raízes e de acesso muito mais fácil) - era uma questão confusa, delicada e difícil. E, sublinhando o caráter puramente desagradável da tarefa em si, havia uma inevitável sensação de desânimo com o provável resultado.
Era necessário - além da dor de um dente com abscesso, a inflamação podia liberar bactérias na corrente sanguínea, causando septicemia e até a morte - , só que arrancar um dente, sem nenhuma maneira de substituí-lo, significava comprometer não só a aparência do paciente, como a função e a estrutura da boca. A falta de um dente permitia que os que estavam próximos saíssem do lugar, alterando a mordedura e tornando a mastigação muito menos eficiente. O que, por sua vez, afetava a nutrição do paciente, a saúde como um todo e as perspectivas de uma vida longa e feliz.
Não, refleti com raiva, mudando de posição novamente para obter uma visão melhor do dente que eu procurava, que a remoção de vários dentes fosse danificar muito a dentição da pobre menina em cuja boca eu estava trabalhando.
Ela não podia ter mais do que oito ou nove anos, com uma arcada estreita e pronunciadamente dentuça. Os caninos de leite não caíram no devido tempo e os dentes permanentes eclodiram por trás deles, dando-lhe uma sinistra aparência de presas duplas. Isso era agravado pela inusitada estreiteza da arcada superior, que forçara os dois incisivos frontais emergentes a se entortarem para dentro, voltando-se um para o outro de tal forma que as superfícies frontais de cada dente quase se tocavam.
Toquei o molar superior inflamado e ela sacudiu-se com um safanão contra as tiras que a mantinham presa à cadeira, emitindo um grito agudo que penetrou sob as minhas unhas como uma farpa de bambu.
- Dê-lhe um pouco mais, Ian, por favor. - Empertiguei-me, sentindo como se a parte inferior de minhas costas tivesse sido apertada com um torniquete; eu estava trabalhando há várias horas na sala da frente da gráfica de Fergus e tinha uma pequena tigela cheia de dentes sujos de sangue junto a meu cotovelo para provar à multidão fascinada do lado de fora da janela. Ian fez um ruído escocês de dúvida, mas pegou a garrafa de uísque e estalou a língua para a menina num gesto encorajador. Ela gritou novamente diante de seu rosto tatuado e trancou a boca. A mãe da menina, já sem paciência, deu-lhe um pequeno tapa, arrancou a garrafa da mão de Ian e, inserindo-a na boca da filha, virou-a de cabeça para baixo, prendendo o nariz da menina fechado COM a outra mão.
Os olhos da criança arregalaram-se, redondos como duas moedas, e uma explosão de gotículas de uísque jorrou dos cantos de sua boca - mas ainda assim seu pescoço fino moveu-se para baixo e para cima convulsivamente enquanto ela engolia.
- Acho que já é mais do que suficiente - eu disse, um pouco alarmada com a quantidade de uísque que a criança engolia. Era um uísque muito ruim, comprado no local, e apesar de Jamie e Ian o terem provado e, após alguma discussão, decidido que provavelmente não iria cegar ninguém, eu tinha reservas quanto a usá-lo em grandes quantidades.
- Humm - a mãe disse, examinando a filha de modo crítico, mas sem retirar a garrafa. - Acho que agora vai funcionar.
Os olhos da criança haviam rolado para trás e o corpinho tenso repentinamente relaxou, desfalecendo flacidamente contra a cadeira. A mãe retirou a garrafa de uísque da boca da filha, limpou a boca da garrafa cuidadosamente em seu avental e devolveu-a a Ian com um sinal da cabeça em agradecimento.
Examinei apressadamente seu pulso e respiração, mas ela parecia em boa forma - até agora, ao menos.
- Carpe diem - murmurei, pegando meu alicate. - Ou talvez deva dizer carpe vinorum? Fique atento para ver se ela continua respirando, Ian.
Ian riu e inclinou a garrafa, molhando um pequeno chumaço de tecido limpo com uísque para a limpeza.
- Acho que você vai ter tempo de arrancar mais de um dente, se quiser, tia. Provavelmente poderia tirar todos os dentes da garota e ela não iria nem se mexer.
- É uma ideia - eu disse, virando a cabeça da menina. - Pode trazer o espelho, Ian?
Eu tinha um pequeno espelho quadrado que podia, com sorte, ser usado para direcionar a luz do sol para dentro da boca de um paciente. E havia bastante luz solar jorrando em abundância pela janela, quente e brilhante. Infelizmente, havia inúmeras cabeças pressionadas contra a janela também, que ficavam entrando e saindo do caminho do sol, frustrando as tentativas de Ian de lançar um raio de sol onde eu precisava.
- Marsali! - chamei, um polegar conferindo o pulso da menina, por precaução.
- Sim? - Ela surgiu do aposento dos fundos onde estivera limpando, ou melhor, sujando os tipos, limpando as mãos pretas de tinta em um trapo. - Precisa de Henri-Christian outra vez?
- Se você... ou ele... não se importar.
- Ele, não - ela me garantiu. - Ele adora fazer isso, o exibido. Joanie! Félicité! Venham buscar o pequeno, sim? Precisam dele lá na frente.
Félicité e Joan - vulgo "gatinhas infernais", como Jamie as chamava - vieram prontamente; elas gostavam das performances de Henri-Christian quase tanto quanto ele mesmo.
- Vamos, Bubbles! - Joanie chamou, mantendo aberta a porta para a cozinha. Henri-Christian veio correndo, bamboleando de um lado para o outro em suas pernas curtas e arqueadas, o rosto vermelho radiante.
- Uuu-la-lá! Uuu-la-lá! Uuu-la-lá! - ele gritava, dirigindo-se à porta. - Coloque o chapéu nele! - Marsali gritou. - Vai pegar friagem nos ouvidos!
Era um dia claro, mas ventava e Henri-Christian tinha uma tendência a contrair infecção de ouvido. Mas ele tinha um chapéu de lã que amarrava sob o queixo, tricotado em listras azuis e brancas e decorado com uma fileira de bolotas vermelhas - Brianna o fizera para ele, e ao vê-lo senti um aperto no coração, dor e ternura misturados.
As meninas o pegaram, cada uma por uma das mãos - Félicité esticando-se no último instante para pegar um velho chapéu desabado de seu pai do cabideiro, para estender e receber as moedas - , e saíram, ao encontro de vivas e assobios da multidão. Através da janela, eu podia ver Joanie limpando os livros exibidos em uma mesa do lado de fora e Félicité içando Henri-Christian para sua plataforma. Ele abriu seus braços troncudos e curtos, radiante, e fez uma reverência com grande elegância para um lado e para o outro. Em seguida, curvou-se, colocou as mãos sobre o tampo da mesa e, com um notável grau de graciosidade controlada, ficou de cabeça para baixo, apoiado nas mãos e com as pernas no ar.
Não esperei para ver o resto de seu espetáculo - era basicamente de danças e chutes, intercalados com cambalhotas e pequenas acrobacias, mas que encantava por sua estatura anã e vívida personalidade.
No entanto, ele havia afastado a multidão da janela momentaneamente, que era o que eu queria.
- Agora, Ian - eu disse, voltando ao trabalho. Com a luz trêmula do espelho, era um pouco mais fácil ver o que estava fazendo e me atraquei com o dente quase no mesmo instante. Mas essa era a parte difícil; o dente estava muito quebrado e havia uma grande chance de que pudesse esfacelar-se quando eu o torcesse, ao invés de sair inteiro. E se isso acontecesse...
Mas não aconteceu. Ouviu-se um estalido abafado quando a raiz do dente separou-se do osso do maxilar e logo eu segurava o minúsculo objeto branco, intacto.
A mãe da criança, que observava atentamente, suspirou e relaxou um pouco. A menina suspirou também e ajeitou-se na cadeira. Verifiquei sua pulsação outra vez, mas estava boa, embora a respiração estivesse um pouco fraca. Ela provavelmente iria dormir por...
Um pensamento me ocorreu.
- Sabe - eu disse à mãe, com certa hesitação - , eu poderia extrair um ou mais dentes sem machucá-la. Veja... - Afastei-me para o lado, chamando-a para ver. - Estes - toquei nos caninos de leite atrasados - devem ser arrancados imediatamente, para que os dentes de trás assumam seus lugares. E você vê estes dentes da frente, é claro... Bem, eu extraí o pré-molar superior da esquerda; se eu tirar o mesmo dente da direita, eu acho que talvez seus dentes se deslocassem um pouco, para preencher o espaço vazio. E se puder convencê-la a pressionar com a língua estes dentes da frente, sempre que se lembrar... - Não era de modo algum ortodontia, e certamente carregava um risco aumentado de infecção, mas eu me sentia tentada. A pobre criança parecia um morcego carnívoro.
- Hummm - a mãe disse, olhando dentro da boca da filha com a testa franzida. - Quanto você me dá por eles?
- Quanto... quer que eu pague a você? - São dentes bons, perfeitos - a mãe retrucou prontamente. - O arrancador de dentes perto do porto me daria um xelim por cada dente. E Glory vai precisar do dinheiro para seu dote.
- Seu dote? - repeti, surpresa. A mãe deu de ombros. - Provavelmente ninguém vai querê-la pela beleza, não é?
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Eu era obrigada a admitir que isso era verdade; fora sua deplorável dentição, chamar a pobre criança de feia seria um elogio.
- Marsali - chamei. - Você tem quatro xelins? - O ouro na bainha de meu vestido balançava-se pesadamente ao redor de meus pés, mas eu não podia usálo nesta situação.
Marsali virou-se da janela, de onde vigiava Henri-Christian e as meninas, surpresa.
- Não dinheiro vivo, não. - Tudo bem, tia. Eu economizei um pouco. - Ian largou o espelho e enfiou a mão em seu sporran, emergindo com um punhado de moedas. - Veja bem - ele disse, fitando a mulher severamente - , você não conseguiria mais do que três pennies para cada dente em perfeito estado, e provavelmente não mais do que um penny por um dente de leite.
A mulher, sem se deixar esmorecer, olhou para ele com o queixo erguido.
- Eis como fala um escocês avarento - ela disse. - Por mais que esteja tatuado como um selvagem. Seis pennies cada um, então, seu pão-duro desgraçado!
Ian riu para ela, exibindo seus próprios dentes, os quais, se não inteiramente alinhados, estavam em excelentes condições.
- Vai levar sua menina para o cais e deixar aquele açougueiro estraçalhar sua boca? - ele perguntou afavelmente. - Ela estará acordada até lá, sabe? E berrando. Três.
- Ian! - eu disse.
- Bem, não vou deixar que ela a engane, tia. Já é bastante ruim que ela esteja querendo que você arranque os dentes de graça, quanto mais pagar pela honra!
Fortalecida pela minha intervenção, a mulher empinou o queixo e repetiu:
- Seis pennies! Marsali, atraída pela discussão, aproximou-se para espreitar dentro da boca da menina.
- Você não vai arranjar um marido para esta aqui por menos de dez libras - ela informou à mulher sem rodeios. - Não desse jeito que está. Um homem teria medo de ser mordido ao beijá-la. Ian tem razão. Na realidade, você deveria pagar em dobro pelo serviço.
- Você concordou em pagar quando veio aqui, não foi? - Ian pressionou. - Dois pennies para ter o dente arrancado, e foi uma pechincha, porque minha tia ficou com pena da menina.
- Sanguessugas! - a mulher exclamou. - É verdade o que dizem, vocês escoceses são capazes de tirar moedas dos olhos de um morto!
Obviamente, a questão não seria resolvida depressa; eu podia sentir Ian e Marsali dispostos a travar uma divertida sessão de luta livre. Suspirei e peguei o espelho da mão de Ian. Eu não iria precisar dele para os caninos e talvez quando eu chegasse ao outro pré-molar ele já estivesse prestando atenção outra vez.
Na realidade, os caninos foram simples; dentes de leite, quase sem raiz e prontos para cair - eu provavelmente poderia tê-los arrancado com os dedos. Uma rápida torcida em cada um e eles saíram, as gengivas quase sem sangramento. Satisfeita, limpei o local com uma mecha de algodão embebida em uísque, depois examinei o pré-molar.
Ficava do outro lado da boca, o que significava que, virando um pouco a cabeça da menina, eu poderia obter um pouco de luz sem precisar do espelho. Peguei a mão de Ian - ele estava tão absorto na discussão que mal notou - e coloquei-a na cabeça da menina para segurá-la firmemente na posição, depois cuidadosamente aproximei meu alicate.
Uma sombra interceptou minha luz, desapareceu - em seguida, voltou, bloqueando-a completamente. Virei-me, aborrecida, deparando-me com um cavalheiro de aparência elegante espreitando pela janela, um olhar de interesse no rosto.
Olhei severamente para ele e gesticulei para que se afastasse. Ele pestanejou para mim, mas depois balançou a cabeça desculpando-se e afastou-se para o lado. Sem esperar por mais alguma interrupção, agachei-me, segurei o dente e arranquei-o com uma bem-sucedida torção.
Cantarolando de satisfação, despejei um pouco de uísque no buraco ensanguentado, em seguida virei sua cabeça para o outro lado e pressionei um chumaço de gaze delicadamente sobre a gengiva, para ajudar a drenar o abscesso. Senti uma repentina frouxidão extra no pequeno pescoço vacilante e congelei.
Ian também sentiu; interrompeu-se no meio de uma frase e lançou-me um olhar espantado.
- Desamarre-a - eu disse. - Rápido. Ele a soltou rapidamente e eu a segurei por baixo dos braços, estendendo-a no chão, a cabeça caída como a de uma boneca de pano. Ignorando exclamações espantadas de Marsali e da mãe da menina, virei sua cabeça para trás, tirei o chumaço de gaze de sua boca e, apertando seu nariz entre meus dedos, colei minha boca na sua e comecei a ressuscitação.
Era como inflar um balão pequeno e duro: relutância, resistência, depois, finalmente, o peito enchendo-se de ar. Mas o peito não é maleável como borracha; não ficou mais fácil soprar.
Eu mantinha os dedos da outra mão em seu pescoço, procurando desesperadamente uma pulsação da carótida. Lá estava... seria mesmo?... Sim, era! Seu coração ainda estava batendo, embora fracamente.
Respirar. Pausa. Respirar. Pausa... Senti o minúsculo fluxo da expiração e, em seguida, o peito estreito moveu-se por conta própria. Esperei, o sangue latejando em meus ouvidos, mas não se moveu outra vez. Respirar. Pausa. Respirar...
O peito se moveu novamente e desta vez continuou a subir e descer por seu próprio esforço. Sentei-me sobre os calcanhares, minha própria respiração acelerada e uma película de suor frio cobrindo meu rosto.
A mãe da menina fitava-me, boquiaberta. Notei vagamente que sua própria dentição não era ruim; só Deus sabia como era seu marido.
- Ela está... está...? - a mulher perguntou, pestanejando e olhando de mim para a filha e de novo para mim.
- Ela está bem - respondi, sem maiores comentários. Levantei-me devagar, sentindo-me zonza. - Mas ela não pode ir embora enquanto o efeito do uísque não passar; acho que ela vai ficar bem, mas é possível que pare de respirar outra vez. Alguém precisa ficar observando-a até ela acordar. Marsali...?
- Sim, vou colocá-la na cama de rodinhas - Marsali disse, aproximando-se. - Oh, aí está você, Joanie. Pode vir aqui e ficar vigiando esta menina um pouco? Ela precisa se deitar na sua cama.
As crianças haviam entrado, rindo e afogueadas, com o chapéu cheio de moedas e botões, mas, ao notarem a menina no chão, correram para vê-la também.
- Uuu-la-lá! - Henri-Christian exclamou, impressionado.
- Ela está morta? - Félicité perguntou, de forma mais prática.
- Se estivesse, maman não estaria me pedindo para tomar conta dela - Joanie ressaltou. - Ela não vai vomitar na minha cama, vai?
- Forrarei com uma toalha - Marsali prometeu, agachando-se para pegar a menina no colo. Ian adiantou-se, erguendo a menina delicadamente nos braços.
- Então, nós só lhe cobraremos dois pennies - ele disse à mãe. - Mas lhe daremos todos os dentes de graça, hein?
Perplexa, ela assentiu, depois seguiu os demais para os fundos da casa. Ouvi o barulho de múltiplos pés subindo as escadas, mas não os segui; minhas próprias pernas estavam fracas e eu me sentei de repente.
- A senhora está bem, madame? - Ergui os olhos e vi o estranho elegante dentro da loja, olhando para mim com curiosidade.
Peguei a garrafa de uísque quase vazia e tomei um grande gole. Queimava como enxofre e tinha gosto de ossos carbonizados. Minha respiração assobiou e meus olhos lacrimejaram, mas não cheguei realmente a tossir.
- Muito bem - respondi com voz rouca. - Perfeitamente bem. - Clareei a garganta e enxuguei os olhos na manga do meu vestido. - Posso ajudá-lo?
Uma expressão ligeiramente divertida atravessou suas feições.
- Eu não preciso ter um dente arrancado, o que provavelmente é uma sorte para nós dois. Entretanto... posso? - Tirou um fino frasco de prata do bolso e o estendeu a mim, sentando-se em seguida. - Acredito que seja um pouco mais revigorante do que... isso. - Balançou a cabeça e torceu um pouco o nariz, indicando a garrafa de uísque aberta.
Abri o frasco e o aroma encorpado de um conhaque de excelente qualidade flutuou para fora como o gênio de uma garrafa.
- Obrigada - eu disse rapidamente, e bebi, cerrando os olhos. - Muito obrigada - acrescentei um instante depois, abrindo-os. Realmente, revigorante. Um calor reconfortante se formou no meu estômago e se espalhou como fumaça pelos meus membros.
- É um prazer, madame - ele disse, e sorriu. Ele era inegavelmente um almofadinha, e rico também, com uma grande quantidade de renda pelo corpo, botões dourados na cintura, uma peruca empoada e dois sinais de beleza, de seda preta, no rosto - uma estrelinha ao lado da sobrancelha esquerda e um cavalo empinado na face direita. Não um estilo que se visse com frequência na Carolina do Norte, principalmente não no momento.
Apesar das incrustações, era um homem bonito, pensei, provavelmente de quarenta e poucos anos, com meigos olhos escuros que brilhavam de humor e um rosto delicado e sensível. Seu inglês era muito bom, embora carregasse um sotaque distintamente parisiense.
- Tenho a honra de falar com a sra. Fraser? - ele perguntou. Vi seus olhos passarem pela minha cabeça escandalosamente desprovida de uma touca, mas educadamente não fez nenhum comentário.
- Bem, sim - eu disse, hesitante. - Mas posso não ser quem o senhor procura. Minha nora também é sra. Fraser; ela e o marido são os donos desta gráfica. Assim, se está querendo mandar imprimir alguma coisa...
- Sra. Jamie Fraser? Parei instintivamente, mas não havia alternativa senão responder. - Sim, sou. Está procurando meu marido? - perguntei cautelosamente. As pessoas procuravam Jamie por muitas razões e nem sempre era desejável que O encontrassem.
Ele sorriu, os olhos enrugando-se amavelmente.
- De fato, estou, sra. Fraser. O capitão do meu navio disse que o sr. Fraser foi procurá-lo hoje de manhã, buscando passagens.
Meu coração deu um salto.
- Oh! O senhor tem um navio, senhor...?
- Beauchamp - ele disse e, pegando minha mão, beijou-a elegantemente. - Percival Beauchamp, a seu serviço, madame. Tenho, sim. Chama-se Huntress.
Cheguei a pensar que meu coração tivesse realmente parado por um instante, mas não tinha, e retomou os batimentos com uma forte pancada.
- Beauchamp - eu disse. - Becham? - Ele pronunciara seu nome como os franceses, mas diante da minha pergunta ele balançou a cabeça, o sorriso ampliando-se.
- Sim, os ingleses o pronunciam assim. A senhora disse que sua nora... então, o sr. Fraser que é proprietário desta loja é filho do seu marido?
- Sim - eu disse outra vez, mas automaticamente. Não seja tola, censureime. Não é um nome incomum. É provável que ele nada tenha a ver com sua família! No entanto... uma conexão franco-inglesa. Eu sabia que a família do meu pai migrara da França para a Inglaterra no século XVIII - mas isso era tudo que eu sabia. Fitei-o, fascinada. Haveria algo familiar em seu rosto, algo que eu pudesse comparar com minhas fracas recordações dos meus pais, com as mais fortes do meu tio?
Ele tinha a pele muito clara, como a minha, mas isso era comum na classe alta, que tomava muito cuidado para se proteger do sol. Seus olhos eram muito mais escuros do que os meus, e muito bonitos, mas de formato diferente, mais redondos. As sobrancelhas... as sobrancelhas do meu tio Lamb teriam aquela forma, mais grossas perto do nariz, afinando-se em um arco gracioso...?
Absorta nesse torturante enigma, eu não ouvira o que ele dizia.
- Como disse?
- O menino - ele repetiu, fazendo um sinal com a cabeça, indicando a porta por onde as crianças haviam desaparecido. - Ele gritava "Uuu-la-lá!" Como os artistas de rua fazem em Paris. A família tem alguma origem francesa?
Sinais de alarme tardios começaram a soar e uma inquietação fez os pelos dos meus braços se arrepiarem.
- Não - eu disse, tentando forjar uma expressão de educada curiosidade. - Deve ter ouvido de algum lugar. Houve uma pequena trupe de acrobatas franceses percorrendo as Carolinas no ano passado.
- Ah, certamente é por isso. - Inclinou-se um pouco para a frente, os olhos escuros atentos. - A senhora mesma os viu?
- Não. Meu marido e eu... não moramos aqui - terminei apressadamente. Estive prestes a lhe contar onde nós realmente vivíamos, mas eu não sabia o quanto ele sabia, se é que sabia alguma coisa, sobre as circunstâncias envolvendo Fergus. Ele recostou-se na cadeira, franzindo um pouco os lábios, desapontado.
- Ah, que pena. Achei que talvez o cavalheiro que estou procurando possa ter pertencido a essa trupe. Embora eu imagine que não soubesse seus nomes, ainda que os tivesse visto - acrescentou como uma reflexão posterior.
- Está à procura de alguém? Um francês? - Levantei a tigela de dentes sujos de sangue e comecei a escolhê-los, fingindo indiferença.
- Um homem chamado Claudel. Ele nasceu em Paris, em um bordel - ele acrescentou, com um leve ar de desculpas por usar um termo tão indelicado em minha presença. - Ele teria quarenta e poucos anos agora. Quarenta e um ou quarenta e dois, eu creio.
- Paris - repeti, ouvindo os passos de Marsali na escada. - O que o leva a acreditar que ele esteja na Carolina do Norte?
Ele levantou um dos ombros num gesto gracioso.
- Ele pode muito bem não estar. O que eu sei é que há cerca de trinta anos ele foi levado de um bordel por um escocês e que esse homem foi descrito como tendo uma aparência impressionante, muito alto, com brilhantes cabelos ruivos. Fora isso, encontrei um cipoal de possibilidades... - Sorriu ironicamente. - Fraser foi descrito para mim de variadas formas, como comerciante de vinhos, um jacobita, um legalista, um traidor, um espião, um aristocrata, um fazendeiro, um importador... ou contrabandista; os termos são intercambiáveis, com conexões que vão de um convento à corte real.
O que era, pensei, um retrato extremamente preciso de Jamie. Embora eu pudesse ver por que não fora de muita ajuda para encontrá-lo. Por outro lado... ali estava Beauchamp.
- Eu descobri um comerciante de vinhos chamado Michael Murray, o qual, ao ouvir essa descrição, me disse que se parecia com seu tio, chamado James Fraser, que havia emigrado para a América há mais de dez anos. - Os olhos escuros estavam menos bem-humorados agora, intensamente fixos em mim. - Mas quando perguntei sobre a criança, Claudel, monsieur Murray professou completa ignorância de tal pessoa. Em termos um pouco violentos.
- Oh? - eu disse, e peguei um grande molar com sérias cáries, estreitando os olhos para examiná-lo. Meu Deus. Eu só conhecia Michael de nome; um dos irmãos mais velhos do Jovem Ian, ele nascera após minha partida e já fora para a França quando retornei a Lallybroch, para ser educado e conduzido ao negócio de vinhos por Jared Fraser, um primo de Jamie, mais velho e sem filhos. Michael havia, é claro, crescido com Fergus em Lallybroch e sabia muito bem qual era seu nome original. E aparentemente suspeitara ou detectara algo no comportamento deste estranho que o assustara.
- Está me dizendo que veio até a América sem saber nada a não ser o nome de um homem e que ele tem cabelos ruivos? - perguntei, tentando parecer ligeiramente incrédula. - Santo Deus, o senhor deve ter um interesse considerável em encontrar esse Claudel!
- Oh, tenho, sim, madame. - Ele olhou para mim, sorrindo ligeiramente, a cabeça inclinada para o lado. - Diga-me, sra. Fraser... seu marido tem cabelos ruivos?
- Tem - eu disse. Não fazia sentido negar, já que qualquer pessoa em New Bern lhe diria isso. E provavelmente já o fizera, refleti. - Assim como quase todos os seus parentes e cerca da metade da população das Highlands escocesas. - Isso era um grande exagero, mas eu estava razoavelmente certa de que o sr. Beauchamp não estava muito familiarizado com as Highlands.
Ouvi vozes em cima. Marsali provavelmente desceria a qualquer instante e eu não queria que ela entrasse no meio desta conversa em particular.
- Bem - eu disse, levantando-me decididamente. - Tenho certeza de que vai querer falar com meu marido, e ele com o senhor. Mas ele saiu para resolver algumas coisas e só voltará amanhã. O senhor está hospedado na cidade?
- No King's Inn - ele disse, levantando-se também. - Poderia dizer ao seu marido para ir lá ao meu encontro, madame? Eu lhe agradeço. - Com uma profunda reverência, ele tomou minha mão e beijou-a outra vez, depois sorriu e saiu da loja, deixando um aroma de bergamota e hissopo misturado à leve fragrância de um bom conhaque.
Muitos comerciantes e homens de negócios haviam deixado New Bern devido ao estado caótico da política; sem nenhuma autoridade civil, a vida pública estacionara, salvo as maisimples transações comerciais, e muitas pessoas - tanto simpatizantes dos legalistas quanto dos rebeldes - haviam deixado a colônia por medo da violência. Havia apenas duas boas hospedarias em New Bern atualmente; a King's Inn era uma delas e a Wilsey Arms a outra. Felizmente, Jamie e eu tínhamos um quarto nesta última.
- Você vai falar com ele? - Eu acabara de contar a Jamie a visita de monsieur Beauchamp, um relato que o deixara com uma profunda ruga de preocupação entre as sobrancelhas.
- Santo Deus. Como ele descobriu tudo isso? - Ele deve ter começado com o conhecimento de que Fergus estava naquele bordel e começou sua investigação lá. Imagino que não tenha sido difícil encontrar alguém que o vira lá ou soubera do incidente. Afinal, você não é uma pessoa que passe despercebida. - Apesar da minha própria agitação, sorri à lembrança de Jamie, com vinte e cinco anos, que se refugiara temporariamente no bordel em questão, armado - coincidentemente - com uma enorme linguiça, depois fugira por uma janela, acompanhado por um garoto de dez anos, um batedor de carteiras e às vezes prostituto infantil, chamado Claudel.
Ele deu de ombros, parecendo ligeiramente constrangido.
- Bem, sim, talvez. Mas descobrir tanto... - Coçou a cabeça, pensando. - Quanto a falar com ele, não antes de eu falar com Fergus. Creio que vamos querer saber um pouco mais sobre esse monsieur Beauchamp, antes de nos entregarmos a ele.
- Também gostaria de saber um pouco mais a respeito dele - eu disse. - Eu me perguntei se... Bem, é uma possibilidade remota, o nome não é incomum, mas eu realmente me perguntei se ele podia de alguma forma estar ligado a um ramo da minha família. Eles estavam na França no século XVIII, isso eu sei. Porém pouca coisa mais.
Ele sorriu para mim.
- E o que você faria, Sassenach, se descobrisse que ele na verdade é seu antepassado?
- Eu... - Parei subitamente porque, na realidade, eu não sabia o que faria em tal circunstância. - Bem... talvez nada - admiti. - E de qualquer forma acho que não podemos descobrir isso com certeza, já que não me lembro, se é que algum dia eu soube, qual era o nome desse meu ancestral. Eu apenas... ficaria interessada em saber mais, só isso - terminei, sentindo-me ligeiramente na defensiva.
- Sim, claro que ficaria - ele disse, com simplicidade. - Mas não se isso pudesse colocar Fergus em algum perigo, não é?
- Oh, não! Claro que não. Mas você... Fui interrompida por uma leve batida na porta que me fez emudecer. Ergui as sobrancelhas para Jamie, que hesitou por um instante, depois deu de ombros e foi abrir a porta.
Sendo um quarto pequeno como era, eu podia ver a porta de onde estava sentada; para minha surpresa, estava cheia com o que parecia ser uma comitiva de mulheres - o corredor era um mar de toucas brancas, flutuando na semiobscuridade como uma medusa.
- Sr. Fraser? - Uma das toucas balançou-se rapidamente. - Eu sou... meu nome é Abigail Bell. Minhas filhas - ela virou-se e eu avistei de relance um rosto branco e tenso - Lillian e Miriam. - As outras duas toucas, sim, afinal havia apenas três, por sua vez, também se balançaram. - Posso falar com o senhor?
Jamie inclinou-se e convidou-as a entrar, erguendo as sobrancelhas para mim, enquanto as seguia.
- Minha mulher - ele disse, indicando-me com um sinal da cabeça quando me levantei, murmurando amabilidades. Havia apenas a cama e um banquinho, de modo que todos nós permanecemos de pé, sorrindo sem jeito e balançando a cabeça uns para os outros.
A sra. Bell era baixa e um pouco robusta, e provavelmente um dia fora tão bonita quanto suas filhas. No entanto, suas faces, um dia rechonchudas, agora estavam flácidas, como se ela tivesse perdido peso repentinamente, e sua pele era enrugada de preocupação. Suas filhas também pareciam preocupadas; uma retorcia as mãos no avental e a outra lançava olhares rápidos a Jamie por baixo das pálpebras semicerradas, como se temesse que ele pudesse fazer alguma coisa violenta se ela o fitasse diretamente demais.
- Peço-lhe desculpas, senhor, por vir à sua procura com tanta ousadia. - Os lábios da sra. Bell tremiam; ela teve que parar e comprimi-los rapidamente antes de continuar. - Eu... eu soube que o senhor está procurando um navio com destino à Escócia.
Jamie assentiu, cautelosamente, sem dúvida se perguntando como aquela mulher ficara sabendo disso. Ele havia dito que todos na cidade saberiam em um ou dois dias - evidentemente ele estava certo.
- Conhece alguém com tal viagem em vista? - ele perguntou educadamente.
- Não. Não exatamente. Eu... quer dizer... talvez. É meu marido - ela disse abruptamente, mas a palavra fez sua voz fraquejar e ela cobriu a boca com a mão fechada sobre o avental. Uma das filhas, uma jovem de cabelos escuros, segurou a mãe delicadamente pelo cotovelo e afastou-a para o lado, empertigando-se com bravura para enfrentar o temível sr. Fraser ela mesma.
- Meu pai está na Escócia, sr. Fraser - ela disse. - Minha mãe espera que o senhor possa encontrá-lo, quando chegar lá, ajudando-o a retornar para nós.
- Ah - Jamie disse. - E seu pai é...?
- Oh! Sr. Richard Bell, de Wilmington. - Fez uma mesura apressada, como se mais demonstrações de cortesia fossem facilitar seu caso. - Ele é... era...
- Ele é! - sua irmã sibilou, a voz baixa, mas enfática, e a primeira irmã, a morena, lançou-lhe um olhar furioso.
- Meu pai era negociante em Wilmington, sr. Fraser. Possuía muitos interesses comerciais e, em função dos seus negócios, ele... tinha necessidade de ter contato com vários oficiais britânicos, que compravam suprimentos com ele. Era uma questão puramente de negócios! - ela assegurou-lhe.
- Mas negócios nestes tempos terríveis nunca são apenas negócios. - A sra. Bell recuperara o autocuntrole e veio se postar ao lado da filha. - Eles disseram, os inimigos do meu marido, eles espalharam que ele era um legalista.
- Apenas porque ele era - interpôs a segunda irmã. Esta, de cabelos louros e olhos azuis, não tremia; encarou Jamie com o queixo erguido e os olhos flamejantes. - Meu pai era leal a seu rei! Eu, de minha parte, não acho que se deva pedir desculpas por isso! Nem acho certo fingir o contrário, somente para obter a ajuda de um homem que quebrou todas as promessas...
- Oh, Miriam! - sua irmã disse, exasperada. - Você não pode ficar calada por um segundo? Agora você estragou tudo!
- Não estraguei, não - ela retrucou rispidamente. - Ou, se o fiz, é porque não iria mesmo funcionar! Por que alguém como ele...
- Funcionaria, sim! O sr. Forbes disse... - Oh, o sr. Forbes! O que ele pode saber? A sra. Bell gemeu baixinho em seu avental.
- Por que seu pai foi para a Escócia? - Jamie perguntou, cortando a discussão.
Tomada de surpresa, Miriam Bell respondeu.
- Ele nãofoi para a Escócia. Foi raptado na rua e enfiado em um navio com destino a Southampton.
- Por quem? - perguntei, abrindo caminho pela floresta de saias que bloqueava minha passagem até a porta. - E por quê?
Enfiei a cabeça para o corredor e chamei o garoto que limpava botas no patamar, pedindo-lhe que fosse ao salão do bar embaixo e trouxesse uma jarra de vinho. Considerando-se o estado aparente das Bell, achei que algo que restaurasse as amenidades sociais seria uma boa ideia.
Voltei a tempo de ouvir a srta. Lillian Bell explicar que na verdade não sabiam quem havia sumido com seu pai.
- Não pelo nome, ao menos - ela disse, o rosto vermelho de raiva com a lembrança. - Os desgraçados tinham a cabeça coberta com capuz. Mas eram os Filhos da Liberdade, tenho certeza!
- Sim, sem dúvida - a srta. Miriam afirmou. - Papai já recebera ameaças deles: bilhetes pregados na porta, um peixe morto embrulhado em um pedaço de flanela vermelha e deixado na varanda para causar mau cheiro. Esse tipo de coisa.
A situação foi além das ameaças no final do mês de agosto passado. O sr. Bell estava a caminho do armazém quando um grupo de homens encapuzados saiu repentinamente de um beco, agarraram-no e o arrastaram para o cais, depois atiraram-no a bordo de um navio que acabara de soltar as amarras, as velas inflando enquanto se afastava lentamente.
Eu havia ouvido falar de legalistas problemáticos sendo "deportados" dessa forma, mas não havia me deparado ainda com uma verdadeira ocorrência da prática.
- Se o navio dirigia-se à Inglaterra - perguntei - , como ele foi parar na Escócia?
Houve certa confusão enquanto as três Bell tentavam explicar ao mesmo tempo o que acontecera, mas Miriam ganhou outra vez.
- Ele chegou à Inglaterra sem nenhum centavo, é claro, sem mais do que as roupas do corpo e devendo dinheiro pela comida e pela passagem do navio. Mas o capitão do navio tornou-se seu amigo e o levou de Southampton para Londres, onde meu pai conhecia alguns homens com quem fizera negócios no passado. Um deles adiantou-lhe uma soma de dinheiro para cobrir a dívida com o capitão e lhe prometeu passagem para a Geórgia, se ele fiscalizasse a carga em uma viagem de Edimburgo às Antilhas, e daí para a América. Assim, ele viajou para Edimburgo sob os auspícios de seu patrocinador, descobrindo, então, que a carga a ser embarcada nas Antilhas era de escravos.
- Meu marido é abolicionista, sr. Fraser - a sra. Bell interpôs, com um tímido orgulho. - Ele disse que não podia compactuar com a escravidão, nem ajudar em sua prática, independente do que isso lhe custasse.
- E o sr. Forbes nos contou o que o senhor fez por aquela mulher, a escrava da sra. Cameron - Lillian acrescentou, uma expressão ansiosa no rosto. - Assim, nós pensamos... que ainda que o senhor fosse... - Não terminou a frase, constrangida.
- Um rebelde sem palavra, sim - Jamie disse, secamente. - Compreendo. O sr. Forbes... seria Neil Forbes, o advogado? - Ele pareceu levemente incrédulo, e com boa razão.
Há alguns anos, Forbes fora um pretendente à mão de Brianna - encorajado por Jocasta Cameron, tia de Jamie. Bri o rejeitara, sem muita delicadeza, e ele se vingara algum tempo depois fazendo com que fosse raptada por um notório pirata. Uma situação muito confusa se seguiu, envolvendo o rapto da idosa mãe de Forbes por Jamie - a velha senhora adorara a aventura - e o corte da orelha de Forbes pelo Jovem Ian. O tempo podia ter curado seus ferimentos externos, mas eu não conseguiria imaginar ninguém menos provável de andar fazendo elogios a Jamie.
- Sim - Miriam disse, mas não me passou despercebido o olhar dúbio que a sra. Bell e Lillian trocaram.
- O que, exatamente, o sr. Forbes disse a meu respeito? - Jamie perguntou. As três empalideceram e as sobrancelhas de Jamie ergueram-se. - O que foi? - ele repetiu, em um tom incisivo. Dirigiu-se diretamente à sra. Bell, que ele instantaneamente identificara como o elo mais fraco na cadeia familiar.
- Ele disse que ainda bem que o senhor estava morto - aquela senhora respondeu debilmente. Com isso, seus olhos rolaram para trás e ela desabou no chão como uma saca de grãos de cevada.
Felizmente, eu tinha uma garrafa de amônia do dr. Fentiman. Isso despertou a sra. Bell instantaneamente para um acesso de espirros. Sua filha ajudou-a a ir para a cama, arquejante e engasgada. O vinho felizmente chegou nessa hora, eu servi a bebida liberalmente a todos à vista, reservando uma boa caneca para mim.
- Bem, então - Jamie disse, lançando às mulheres o tipo de olhar vagaroso e penetrante, destinado a fazer malfeitores sentirem os joelhos enfraquecer e confessarem tudo - , diga-me onde você ouviu o sr. Forbes dizer que eu estava morto.
A srta. Lillian, sentada na cama com a mão protetoramente no ombro da mãe, falou.
- Eu o ouvi. Na pensão do Symond. Quando ainda estávamos em Wilmington, antes de virmos para cá, morar com tia Burton. Fui comprar um jarro de sidra quente; era fevereiro, ainda estava muito frio. De qualquer forma, a mulher, Phaedre, ela se chama, trabalha lá, e foi pegar e aquecer a sidra para mim. O sr. Forbes entrou quando eu estava lá e falou comigo. Ele soube o que aconteceu a meu pai e foi solidário, perguntando como estávamos sobrevivendo... então, Phaedre chegou com o jarro e ele a viu.
Forbes, é claro, reconhecera Phaedre, que vira muitas vezes em River Run, a fazenda de Jocasta. Demonstrando grande surpresa com sua presença ali, ele fez perguntas buscando uma explicação e recebeu uma versão adequadamente modificada da verdade - na qual Phaedre aparentemente exaltou a magnanimidade de Jamie em assegurar sua liberdade.
Engasguei um pouco na minha caneca com isso. Phaedre sabia exatamente o que acontecera com a orelha de Neil Forbes. Ela era uma pessoa muito quieta, de fala mansa, mas certamente não deixava de aproveitar para lançar farpas em pessoas de quem não gostava - e eu sabia que ela não gostava de Neil Forbes.
- O sr. Forbes ficou vermelho, talvez por causa do frio - Lillian disse diplomaticamente - e disse que sim, ele compreendia que o sr. Fraser sempre tivera uma grande consideração pelos negros... receio que ele tenha dito de uma forma um pouco crítica - ela acrescentou, com um olhar escusatório para Jamie. - E então ele riu, embora fingisse que estava tossindo, e disse que era uma pena que o senhor e sua família tivessem todos morrido queimados em um incêndio e que sem dúvida haveria muitas lamentações nos alojamentos dos escravos.
Jamie, que estava tomando um gole de vinho, engasgou-se.
- Por que ele achou isso? - perguntei. - Ele disse?
Lillian balançou a cabeça enfaticamente.
- Sim, senhora. Phaedre também lhe perguntou isso. Acho que ela pensou que ele só estivesse dizendo isso para transtorná-la. E ele disse que lera isso nos jornais.
- O Wilmington Gazette - Miriam interpôs, obviamente não querendo que sua irmã monopolizasse os holofotes. - Nós não lemos jornais, é claro, e já que papai... bem, nós raramente recebemos visitas agora. - Ela abaixou os olhos involuntariamente, a mão automaticamente alisando seu primoroso avental, para esconder um grande remendo em sua saia. Os Bell eram asseados e bem-arrumados e suas roupas eram originariamente de boa qualidade, mas estavam ficando perceptivelmente surradas nas bainhas e nas mangas. Imaginei que os negócios do sr. Bell tivessem ficado substancialmente enfraquecidos, tanto por sua ausência quanto pela interferência da guerra.
- Minha filha me contou sobre a reunião. - A sra. Bell recobrara-se a ponto de sentar-se, seu copo de vinho cuidadosamente agarrado com ambas as mãos. - Assim, quando meu vizinho me disse ontem à noite que o havia encontrado nas docas... bem, eu não sabia o que pensar, mas imaginei que tivesse havido algum tipo de erro estúpido. Na verdade, não se pode acreditar em nada que se lê hoje em dia, os jornais enlouqueceram. E meu vizinho mencionou que o senhor buscava passagens para a Escócia. Assim, começamos a pensar... - Sua voz definhou e ela mergulhou o rosto na direção do copo, embaraçada.
Jamie passou um dedo pelo cavalete do nariz, pensando.
- Sim, bem - disse devagar. - É verdade que pretendo ir para a Escócia. E sem dúvida teria prazer em perguntar sobre seu marido e em ajudá-lo se eu puder. Mas não tenho nenhuma perspectiva imediata de conseguir passagens. O bloqueio...
- Mas nós podemos lhe conseguir um navio! - Lillian interrompeu ansiosamente. - Esta é a questão!
- Achamos que podemos colocá-los em um navio - Miriam corrigiu. Lançou um olhar penetrante, avaliador, julgando seu caráter. Ele sorriu debilmente para ela, mostrando que percebera o escrutínio, e após um instante ela retribuiu o sorriso, a contragosto. - Você me faz lembrar alguém - ela disse. Evidentemente, quem quer que fosse, era alguém de quem ela gostava, pois ela balançou a cabeça para sua mãe, dando permissão. A sra. Bell suspirou, os ombros arriando-se um pouco de alívio.
- Eu ainda tenho amigos - ela disse, em tom de desafio. - Apesar... de tudo.
Entre esses amigos estava um homem chamado DeLancey Hall, dono de um barco pesqueiro, que, como metade da cidade, provavelmente, aumentava a renda com uma ou outra carga de contrabando.
Hall dissera à sra. Bell que ele esperava a chegada de um navio da Inglaterra, entrando em Wilmington em algum momento da semana seguinte - sempre presumindo que não tivesse naufragado ou sido sequestrado en route. Como tanto o navio quanto a carga eram propriedades de um dos membros locais da Filhos da Liberdade, não podia se aventurar no porto de Wilmington, onde dois navios de guerra britânicos ainda estavam ancorados. Ele iria portanto ficar à espreita fora do porto, onde várias pequenas embarcações iriam ao seu encontro, desembarcando a carga e transportando-a sorrateiramente para terra firme.
Depois disso, o navio velejaria para o norte, para New Haven, para pegar uma carga.
- E depois irá para Edimburgo! - Lillian interpôs, o rosto brilhante de esperança.
- O parente de meu pai lá chama-se Andrew Bell - Miriam disse, erguendo um pouco o queixo. - Ele é muito conhecido, pelo que eu sei. Ele é tipógrafo e...
- O pequeno ktcly Bell? - O rosto de Jamie iluminou-se. - Aquele que imprimiu a grande enciclopédia?
- Ele mesmo - a sra. Bell disse, surpresa. - Está dizendo que o conhece, sr. Fraser?
Jamie chegou a rir, surpreendendo os Bell.
- Passei muitas noites com Andy Bell em uma taverna - declarou. - Na verdade, ele é o sujeito que pretendo procurar na Escócia, pois ele guarda minhas impressoras em segurança em sua loja. Ou ao menos espero que tenha guardado - acrescentou, embora sua animação continuasse inabalada.
Essa notícia - juntamente com uma nova rodada de vinho - animou as mulheres Bell de uma maneira surpreendente, e quando finalmente nos deixaram estavam afogueadas de entusiasmo e tagarelando entre si como um bando de gralhas. Olhei pela janela e as vi descendo a rua, aglomeradas com entusiástica esperança, cambaleando para o meio da rua às vezes pelos efeitos do vinho e da emoção.
- Nós não apenas cantamos, como dançamos tão bem quanto caminhamos - murmurei, observando-as enquanto se afastavam.
Jamie lançou-me um olhar de espanto.
- Archie Bell and the Drells - expliquei. - Deixa pra lá. Acha que é seguro? Esse navio?
- Santo Deus, não. - Ele estremeceu e beijou o topo de minha cabeça. - Deixando de lado a questão de tempestades, carunchos, má impermeabilização, madeirame entortado e coisas do tipo, há os navios de guerra ingleses no porto, corsários fora do porto...
- Não estava me referindo a isso - interrompi. - Isso é mais ou menos esperado para o trajeto, não? Refiro-me ao proprietário e a esse DeLancey Hall. A sra. Bell acha que sabe qual é a política deles, mas... - A ideia de nos colocarmos, e a nosso ouro, tão completamente nas mãos de pessoas desconhecidas era perturbadora.
- Mas - ele concordou. - Sim, pretendo ir falar com o sr. Hall logo amanhã cedo. E talvez com monsieur Beauchamp também. Por enquanto, no entanto... - Passou a mão de leve pelas minhas costas e segurou meu traseiro. - Ian e o cachorro não vão voltar antes de uma hora, no mínimo. Tem mais um copo de vinho aí?
Ele parecia um francês, Jamie pensou. O que significava completamente deslocado em New Bern. Beauchamp acabava de sair do armazém da Thorogood Northrup e estava parado, conversando descontraidamente com o próprio Northrup, a brisa que vinha do mar fazendo esvoaçar a fita de seda que prendia seus cabelos escuros para trás. Elegante, Claire assim o descrevera, e ele era. Não - ao menos, não inteiramente - um almofadinha, mas vestido com bom gosto e dinheiro. Muito dinheiro, pensou.
- Ele parece um francês - Fergus observou, fazendo eco a seus pensamentos. Estavam sentados ao lado da janela no Whinbush, uma taverna de segunda classe que atendia pescadores e operários dos armazéns, e cuja atmosfera compunha-se em partes iguais de cerveja, suor, tabaco, alcatrão e barrigada de peixe estragada.
- Aquele é o navio dele? - Fergus perguntou, uma ruga na testa enquanto indicava com a cabeça a bem-aprumada chalupa preta e amarela que oscilava suavemente, ancorada a certa distância.
- É o navio em que ele viaja. Não sei se pertence a ele. Mas você reconhece seu rosto?
Fergus inclinou-se mais para a janela, quase achatando o próprio rosto contra os painéis tremulantes, em uma tentativa de ver melhor monsieur Beauchamp.
Jamie, por sua vez, a cerveja na mão, examinou o rosto de Fergus. Apesar de ter vivido na Escócia desde os dez anos e na América pelos últimos dez anos ou mais, o próprio Fergus ainda parecia francês, ele pensou. Era mais do que uma questão de feições; algo nos próprios contornos, talvez.
Os ossos do rosto de Fergus eram pronunciados, com um maxilar afiado o suficiente para cortar papel, um nariz arrogantemente adunco e órbitas fundas sob as arestas de uma testa alta. Os cabelos espessos e escuros penteados para trás estavam intercalados de fios grisalhos, e Jamie sentiu uma sensação estranha ao notar isso; ele carregava dentro de si mesmo uma imagem permanente de Fergus como o órfão batedor de carteira, de dez anos, que ele havia resgatado de um bordel parisiense, e essa imagem ajustava-se estranhamente ao rosto bonito e macilento à sua frente.
- Não - Fergus disse finalmente, sentando-se de novo no banco e sacudindo a cabeça. - Eu nunca o vi.
Os olhos fundos e escuros de Fergus estavam animados de interesse e especulação.
- Ninguém na cidade o conhece, tampouco. Embora eu tenha ouvido dizer que ele andou perguntando por esse Claudel Fraser - suas narinas alargaram-se com um ar divertido, Claudel era seu próprio nome de batismo e o único que possuía, embora Jamie achasse provável que ninguém jamais o tivesse usado fora de Paris ou em nenhum momento nos últimos trinta anos - em Halifax e Edenton também.
Jamie abriu a boca para observar que ele esperava que Fergus tivesse sido cuidadoso em suas investigações, mas achou melhor não dizer nada, e em vez disso bebeu sua cerveja. Fergus não estava sobrevivendo como tipógrafo nestes tempos difíceis por lhe faltar discrição.
- Ele o faz se lembrar de alguém? - perguntou. Fergus lançou-lhe um rápido olhar de surpresa, mas voltou a esticar o pescoço antes de se sentar direito outra vez, sacudindo a cabeça.
- Não. Deveria?
- Creio que não. - Ele achava que não, mas ficou satisfeito com a corroboração de Fergus. Claire contou-lhe o que pensava, que o sujeito pudesse ser um ancestral dela, talvez um antepassado direto. Ela tentara se mostrar indiferente a isso, descartar a ideia enquanto a explicava, mas ele vira a luz ansiosa nos olhos dela e ficara emocionado. O fato de não ter nenhuma família ou parente próximo em sua própria época sempre lhe parecera algo terrível, mesmo compreendendo que isso tinha muito a ver com sua devoção por ele.
Ele olhara com toda atenção possível, tendo isso em mente, mas não viu nada no rosto ou no porte de Beauchamp que lembrasse Claire - muito menos Fergus.
Ele não achava que essa ideia - que Beauchamp pudesse na verdade ter algum parentesco com ele próprio - tivesse atravessado a cabeça de Fergus. Jamie tinha quase certeza de que Fergus considerava os Fraser de Lallybroch como sua única família, além de Marsali e das crianças, a quem ele amava com todo o fervor de sua natureza apaixonada.
Beauchamp despedia-se de Northrup agora, com uma reverência muito parisiense, acompanhada por um gracioso adejar de seu lenço de seda. Fora por acaso que o sujeito saíra do armazém bem em frente a eles, Jamie pensou. Haviam planejado dar uma espiada nele mais tarde, mas sua conveniente aparição poupou-os de ter que ir procurá-lo.
- É um bom navio - Fergus observou, a atenção desviada para a chalupa chamada Huntress. Olhou novamente para Jamie, considerando. - Tem certeza de que não deseja investigar a possibilidade de conseguir passagens com monsieur Beauchamp?
- Sim, tenho - Jamie disse, sucintamente. - Colocar a mim mesmo e à minha mulher sob o poder de alguém que eu não conheço e cuja motivação é suspeita, em um barquinho no mar imenso? Mesmo um homem que não sofra de enjoos no mar ficaria assombrado com essa perspectiva, não é?
O rosto de Fergus abriu-se em um largo sorriso.
- Milady pretende enchê-lo de agulhas outra vez?
- Pretende - Jamie respondeu, contrariado. Detestava ser furado repetidas vezes e não gostava de ser obrigado a aparecer em público, ainda que nos limites confinados de um navio, eriçado como um porco-espinho esquisito. A única coisa que o faria se dispor a isso era a certeza de que, se não o fizesse, ficaria vomitando dias a fio.
Mas Fergus não notou seu descontentamento; estava esticando-se para a janela outra vez.
- Nom d'nom... - disse baixinho, com tal expressão de inquietação que Jamie virou-se imediatamente no banco para olhar.
Beauchamp seguia descendo a rua, mas continuava à vista. No entanto, ele parara e parecia estar executando uma espécie de dança desajeitada. Isso era bastante estranho, mas o que era mais perturbador era que o filho de Fergus, Germain, estava agachado na rua diretamente em frente ao sujeito e parecia saltar de um lado para o outro como um sapo agitado.
Aqueles giros peculiares continuaram por mais alguns segundos e chegaram ao fim, Beauchamp agora parado, mas abanando os braços em protesto, enquanto Germain parecia rastejar em frente ao sujeito. No entanto, o garoto levantou-se, enfiando alguma coisa dentro da camisa, e após alguns instantes de conversa Beauchamp riu e estendeu a mão. Trocaram uma breve reverência e um aperto de mão, em seguida Germain começou a descer a rua em direção ao Whinbush, enquanto Beauchamp continuava seu caminho.
- Quem... - Jamie começou, mas Germain já remexia nas profundezas de sua camisa. Antes que Jamie pudesse terminar a frase, o garoto apresentara dois sapos de bom tamanho, um verde e outro de uma horrível cor amarelada, os quais se juntaram sobre as tábuas nuas da mesa, olhando-os nervosamente com os olhos arregalados.
Fergus deu um sopapo na orelha de Germain.
- Tire essas malditas criaturas da mesa, antes que nos expulsem daqui. Não é de admirar que esteja cheio de verrugas, convivendo com les grenoudles!
- Grandmère me disse para fazer isso - Germain protestou, ainda assim pegando seus bichinhos de estimação e devolvendo-os ao cativeiro.
- Ela disse? - Jamie já não ficava mais espantado com os métodos de cura de sua mulher, mas isto parecia estranho, mesmo para os padrões dela.
- Bem, ela disse que não havia nada a fazer para a verruga em meu cotovelo, exceto esfregá-la com um sapo morto e enterrá-lo em uma encruzilhada à meia-noite.
- Oh. Acho que ela provavelmente estava brincando. O que o francês lhe disse, então?
Germain ergueu a cabeça, os olhos arregalados e interessados.
- Oh, ele não é francês, grandpère. Um rápido abalo de surpresa percorreu seu corpo.
- Não é? Tem certeza?
- Oh, sim. Ele xingou muito quando Simon saltou em seu sapato, mas não como papai faz. - Germain lançou um olhar afável a seu pai, que pareceu disposto a lhe dar outro sopapo, mas desistiu a um gesto de Jamie. - Ele é inglês. Tenho certeza.
- Ele xingou em inglês? - Jamie perguntou. Era verdade; os franceses geralmente invocavam legumes quando blasfemavam, com frequência misturados a referências sacras. Blasfêmias inglesas, em geral, nada tinham a ver com santos, sacramentos ou pepinos, mas com Deus, prostitutas ou excremento.
- Foi. Mas não posso dizer o que ele disse, ou papai vai ficar ofendido. Papai tem ouvidos muito puros - Germain acrescentou, com um sorriso afetado para seu pai.
- Pare de falar mal de seu pai e conte o que mais o sujeito disse.
- Sim, bem - Germain disse obedientemente. - Quando ele viu que eram apenas dois sapinhos, ele riu e me perguntou se eu os estava levando para casa para o jantar. Eu disse que não, que eles eram meus animais de estimação, e perguntei se aquele navio lá fora era dele, porque todo mundo estava dizendo isso e era um navio muito bonito, não? Eu estava fingindo ser um tolo, sabe? - ele explicou, para o caso de seu avô não ter apreendido o estratagema.
Jamie reprimiu um sorriso.
- Muito inteligente - ele disse, sucintamente. - O que mais?
- Ele disse que não, o navio não é dele, mas pertence a um importante nobre na França. E é claro eu perguntei, oh, e quem é? E ele respondeu que era o barão Amandine.
Jamie trocou olhares com Fergus, que pareceu surpreso e deu de ombros.
- Então, perguntei quanto tempo pretendiam ficar, pois eu queria trazer meu irmão para ver o navio. E ele disse que vai partir amanhã com a maré da noite e me perguntou, mas ele estava brincando, eu podia ver, se eu queria ir e ser taifeiro na viagem. Eu disse que não, meus sapos sofrem de enjoo no mar, como meu avô. - Virou o sorriso sarcástico para Jamie, que o olhou com severidade.
- Seu pai não lhe ensinou a "Ne petez pas plus haute que votre cul"? - Mamãe vai lavar sua boca com sabão se disser coisas assim - Germain informou-o virtuosamente. - Quer que eu bata a carteira dele? Eu o vi entrar na estalagem em Cherry Street. Eu poderia...
- Não poderia, não - Fergus disse apressadamente. - E não fale essas coisas onde as pessoas possam ouvir. Sua mãe vai nos matar.
Jamie sentiu uma pontada fria na nuca e olhou apressadamente ao redor para se certificar de que ninguém tinha ouvido.
- Andou ensinando o menino a... Fergus pareceu ligeiramente nervoso. - Achei uma pena que os truques se perdessem. É uma herança familiar, pode-se dizer. Eu não o deixo roubar, é claro. Nós devolvemos.
- Vamos ter uma conversa em particular depois, eu acho - Jamie disse, lançando aos dois um olhar ameaçador. Santo Deus, se Germain fosse flagrado... Era melhor ele colocar o temor a Deus nos dois antes que ambos terminassem no pelourinho, se não diretamente enforcados por roubo.
- E quanto ao homem que você foi realmente incumbido de achar? - Fergus perguntou a seu filho, aproveitando a chance para desviar a ira de Jamie.
- Eu o encontrei - Germain disse, balançando a cabeça na direção da porta. - Lá está ele.
Delancey Hall era um homem pequeno, bem-arrumado, de modos silenciosos, que torcia o nariz como um rato de igreja. A julgar pela aparência, ninguém poderia se parecer menos com um contrabandista - o que, Jamie pensou, era sem dúvida um valioso atributo naquele ramo de negócios.
- Um "expedidor de secos" - foi como Hall discretamente descreveu seu negócio. - Eu facilito a descoberta de navios para cargas específicas. O que não é nada fácil atualmente, cavalheiros, como bem podem imaginar.
- Imagino, sem dúvida. - Jamie sorriu para o sujeito. - Não tenho nenhuma carga para despachar, mas espero que conheça uma situação que me serviria. Eu, minha mulher e meu sobrinho queríamos viajar para Edimburgo. - Sua mão estava sob a mesa, no seu sporran. Ele havia apanhado algumas bolas de ouro e as achatado com um martelo, transformando-as em discos irregulares. Pegou três dessas e, movendo-se muito devagar, colocou-as no colo de Hall. O sujeito não alterou nem um traço em sua expressão, mas Jamie sentiu a mão mover-se como uma flecha e apoderar-se dos discos, pesá-los por um instante, depois os fazendo desaparecer em seu bolso.
- Acho que pode ser feito - ele disse suavemente. - Conheço um capitão partindo de Wilmington dentro de duas semanas, que pode ser convencido a levar passageiros, por um preço.
Algum tempo depois, caminharam de volta para a gráfica, Jamie e Fergus juntos, discutindo as probabilidades de Hall ser capaz de arranjar um navio. Germain vagava sonhadoramente adiante deles, ziguezagueando de um lado para o outro, em resposta ao que quer que estivesse acontecendo dentro de sua mente incrivelmente fértil.
A própria mente de Jamie estava mais do que ocupada. Barão Amandine. Ele conhecia o nome, mas nenhum semblante para acompanhá-lo, nem se lembrava do contexto no qual ele o conhecia. Somente que o encontrara em algum momento, em Paris. Mas quando? Quando frequentara a université lá... ou mais tarde, quando ele e Claire - sim. Era isso; ele ouvira o nome na corte. Mas por mais que espremesse seu cérebro ele não fornecia mais nenhuma informação.
- Quer que eu fale com esse Beauchamp? - Jamie perguntou abruptamente. - Eu poderia talvez descobrir o que ele quer com você.
Fergus abriu um pouco a boca, mas relaxou, enquanto sacudia a cabeça.
- Não - respondeu. - Eu lhe disse que soube que esse homem havia feito perguntas a meu respeito em Edenton?
- Tem certeza que se trata de você? - Não que a Carolina do Norte estivesse apinhada de Claudels, mas ainda assim...
- Sim, acho que sim. - Fergus falou muito brandamente, com os olhos fixos em Germain, que começara a emitir suaves coaxados, evidentemente conversando com os sapos em sua camisa. - A pessoa que me contou isso disse que o sujeito tinha não só um nome, mas uma pequena informação. Que o Claudel Fraser que ele procurava fora levado de Paris por um escocês alto, de cabelos ruivos. Chamado James Fraser. De modo que acho que você não pode falar com ele.
- Não sem despertar sua atenção - Jamie concordou. - Mas... nós não sabemos qual é seu propósito, mas pode ser algo muito favorável a você, hein?
Quais as probabilidades de alguém na França se dar ao trabalho e às despesas de enviar alguém como ele para lhe causar algum mal, quando podiam simplesmente se contentar em deixá-lo vivendo na América? - Hesitou. - Talvez... O barão Amandine seja um parente seu?
A ideia parecia matéria de romances, e provavelmente puro devaneio. Mas, ao mesmo tempo, Jamie não conseguia encontrar alguma razão sensata para um nobre francês estar caçando um bastardo nascido em um bordel em dois continentes.
Fergus balançou a cabeça, mas não respondeu imediatamente. Usava seu gancho hoje, em vez da luva recheada de farelo que usava em ocasiões formais, e delicadamente coçou o nariz com a ponta antes de responder.
- Durante muito tempo - ele disse finalmente - , quando eu era pequeno, eu fingia comigo mesmo que era o filho bastardo de um grande homem. Todos os órfãos fazem isso, eu acho - acrescentou desapaixonadamente. - Torna a vida mais fácil de ser suportada, fingir que nem sempre será como é, que alguém virá e lhe devolverá seu lugar de direito no mundo.
Deu de ombros.
- Então, eu cresci e compreendi que isso não era verdade. Ninguém viria me resgatar. Mas depois... - Virou a cabeça e deu um sorriso de transbordante ternura para Jamie.
- Então, cresci mais ainda e descobri que, afinal de contas, era verdade. Eu sou filho de um grande homem.
O gancho tocou a mão de Jamie, com força e determinação.
- Não desejo nada mais do que isso.
UM BEIJO AFETUOSO
Wilmington, colônia da Carolina do Norte 18 de abril de 1777
As instalações do Wilmington Gazette foram facilmente encontradas. As brasas haviam esfriado, mas o cheiro penetrante e tão familiar de queimado ainda impregnava o ar. Um cavalheiro rusticamente vestido, com um chapéu desabado, vasculhava os restos do incêndio de maneira incerta, mas abandonou o trabalho quando Jamie o chamou. Ele saiu do meio dos escombros, erguendo bem os pés para evitar cuidadosamente os obstáculos.
- O senhor é o proprietário do jornal? - Jamie perguntou, estendendo a mão para ajudá-lo a saltar a pilha de livros chamuscados que se acumulava na soleira da porta. - Minhas condolências, se for.
- Oh, não - o homem respondeu, limpando manchas de fuligem dos dedos em um lenço grande e imundo, que ele então passou a Jamie. - Amos Crupp, ele era o tipógrafo. Mas ele foi embora, fugiu quando incendiaram a gráfica. Sou Herbert Longfield, dono do terreno. Também era o dono da loja - acrescentou, com um olhar pesaroso para trás. - O senhor não seria um sucateiro, seria? Tenho um bom pedaço de ferro lá.
A gráfica de Fergus e Marsali era agora evidentemente a única em operação entre Charleston e Newport. A impressora da Gazette destacava-se, retorcida e enegrecida, em meio aos escombros: ainda reconhecível, mas inutilizada, não servindo para mais nada além de sucata.
- Quando foi que isso aconteceu? - perguntei.
- Anteontem. Logo depois da meia-noite. Passou-se muito tempo até a brigada contra incêndios poder começar.
- Um acidente com a fornalha? - Jamie perguntou. Inclinou-se e pegou um dos folhetos espalhados.
Longfield riu cinicamente.
- O senhor não é daqui, não é? Disse que procurava por Amos? - Olhou cautelosamente de Jamie para mim e de novo para Jamie. Não estava disposto a confidenciar nada a estranhos de afiliações políticas desconhecidas.
- James Fraser - Jamie disse, estendendo a mão para apertar a dele com firmeza. - Minha mulher, Claire. Quem foi? Os Filhos da Liberdade?
As sobrancelhas de Longfield arquearam-se pronunciadamente. - O senhor não é mesmo daqui. - Sorriu, mas sem alegria. - Amos era dos Filhos. Não era verdadeiramente um deles, talvez, mas da mesma linha de pensamento. Eu disse a ele para tomar cuidado com o que escrevia e com o que publicava no jornal, e ele tentava. Mas ultimamente não é preciso muita coisa. Um boato de traição e um homem é surrado quase até a morte na rua, lambuzado de alcatrão e penas, queimado, morto até.
Ele examinou Jamie pensativamente.
- Então, o senhor não conheceu Amos. Posso lhe perguntar o que queria com ele?
- Eu tinha uma pergunta sobre uma notícia que foi publicada na Gazette. Você disse que Crupp se foi. Sabe onde posso encontrá-lo? Se ele não estiver doente - acrescentou.
O sr. Longfield olhou pensativamente para mim, aparentemente avaliando as possibilidades de um homem inclinado à violência política trazer sua mulher com ele. Sorri, tentando parecer tão respeitosamente amável quanto possível, e ele devolveu o sorriso sem muita convicção. Ele possuía o lábio superior longo, o que lhe dava o aspecto de um camelo preocupado, o que era substancialmente enfatizado por sua excêntrica dentição.
- Não, não sei - ele disse, voltando-se novamente para Jamie com o ar de um homem que tomava uma decisão. - Mas ele tinha um sócio e um aprendiz. Será que um deles saberia o que o senhor está procurando?
Foi a vez de Jamie avaliar Longfield. Chegou a uma conclusão em um instante e entregou-me o folheto.
- Pode ser. Uma pequena notícia referente ao incêndio de uma casa nas montanhas foi publicada no ano passado. Queria descobrir quem deu essa informação ao jornal.
Longfield franziu a testa, intrigado, e coçou o longo lábio superior, deixando-o sujo de fuligem.
- Eu mesmo não me lembro disso. Mas... bem, vou lhe dizer o que faremos, senhor. Eu estava mesmo indo ver George Humphries, o sócio de Amos, depois de examinar o local... - Olhou por cima do ombro, fazendo uma careta. - Por que não me acompanha e faz sua pergunta?
- É muita gentileza sua, senhor. - Jamie ergueu uma das sobrancelhas para mim, sinalizando que minha presença já não era necessária para dar uma boa impressão e que, assim, podia cuidar dos meus próprios assuntos. Assim, desejei um bom dia ao sr. Longfield e fui fazer compras no comércio de Wilmington.
Os negócios ali eram melhores do que em New Bern. Wilmington possuía um porto de águas profundas e, apesar de o bloqueio inglês ter necessariamente afetado as importações e exportações, os paquetes costeiros e barcos locais ainda entravam no porto. Wilmington também era substancialmente maior e ainda ostentava um próspero mercado na praça central, onde passei uma hora agradável coletando ervas e ouvindo os boatos locais, antes de comprar um pão com queijo para meu almoço, quando então caminhei ociosamente até o porto para comê-lo.
Fiquei passeando despreocupadamente ao longo do cais, esperando avistar o navio que nos levaria à Escócia, mas não vi nada ancorado que parecesse grande o suficiente para tal viagem. Mas é claro - DeLancey Hall dissera que nós teríamos que embarcar em um pequeno navio, talvez seu próprio brigue de pesca, e afastarmo-nos do porto para encontrar o navio maior no mar.
Sentei-me em um poste de amarração para comer, atraindo um pequeno bando de gaivotas interessadas, que flutuaram para baixo como flocos de neve pesados demais e me cercaram.
- Pense melhor, companheiro - eu disse, apontando um dedo acusador a um espécime particularmente intransigente, que se aproximava sorrateiramente de meus pés, de olho em meu cesto. - É o meu almoço. - Eu ainda tinha o folheto chamuscado que Jamie me dera; sacudi-o vigorosamente para as gaivotas, que se levantaram em uma revoada com gritos estridentes, mas em seguida se acomodaram novamente à minha volta, a uma distância ligeiramente mais respeitosa, todos os olhos de contas focalizados no pão em minha mão. - Ha! - disse a elas, passando o cesto para trás dos meus pés, por precaução. Segurei meu pão com firmeza, mantendo um olho nas gaivotas. O outro estava livre para inspecionar o porto. Um navio de guerra britânico estava ancorado ao largo e a visão da bandeira britânica tremulando de seu mastro me deu uma sensação peculiarmente paradoxal de orgulho e inquietação.
O orgulho era um reflexo. Eu fora inglesa toda a minha vida. Eu servira a Grã-Bretanha em hospitais, em campos de batalha - no dever e com honra - e vira muitos dos meus compatriotas, homens e mulheres, morrerem nesse mesmo serviço. Apesar de o Union Jack que eu via agora ser ligeiramente diferente no desenho daquele com que eu convivera, era inquestionavelmente o mesmo pavilhão, e senti o mesmo alento instintivo ao vê-lo.
Ao mesmo tempo, eu tinha plena consciência da ameaça que aquela bandeira representava agora para mim e os meus. As portinholas superiores das bocas dos canhões estavam abertas; evidentemente, algum exercício militar estava sendo conduzido, pois eu via os canhões rolarem rapidamente para dentro e para fora, um após o outro sucessivamente, focinhos rombudos bisbilhotando pela abertura, em seguida se recolhendo, como cabeças de roedores belicosos. Havia dois navios de guerra no porto no dia anterior; o outro fora para... onde? Em uma missão particular - ou meramente navegando incansavelmente para cima e para baixo, a certa distância do porto, pronto para abordar, capturar, alvejar ou afundar qualquer navio que parecesse suspeito?
Eu não podia pensar em nada que parecesse mais suspeito do que o navio do amigo contrabandista do sr. Hall.
Pensei novamente no misterioso sr. Beauchamp. A França continuava neutra; estaríamos bem mais seguros em um navio com a bandeira da França. Ao menos, a salvo das depredações da Marinha britânica. Quanto às próprias motivações de Beauchamp... com relutância, aceitei o desejo de Fergus de não ter nada a ver com o sujeito, mas ainda me perguntava qual poderia ser o interesse de Beauchamp em Fergus.
Eu também ainda me perguntava se ele teria alguma ligação com minha própria família Beauchamp, mas não havia como saber; tio Lamb fizera uma árvore genealógica rudimentar da família, eu sabia - em grande parte, por mim - , mas eu não dera muita atenção ao fato. Onde estaria agora?, perguntei-me. Ele a dera para mim e Frank quando nos casamos, perfeitamente datilografada e colocada em uma pasta de papelão.
Talvez eu mencionasse o sr. Beauchamp em minha próxima carta a Brianna. Ela teria todos os nossos antigos registros de família - as caixas de velhos formulários do imposto de renda, as coleções de seus próprios trabalhos escolares e projetos de arte... sorri à lembrança do dinossauro de barro que ela fizera aos oito anos, uma criatura cheia de dentes e tropegamente inclinada para o lado, com um pequeno objeto cilíndrico pendurado nas mandíbulas.
- É um mamífero que ele está comendo - ela me informou.
- O que aconteceu com as pernas do mamífero? - eu perguntara.
- Caíram quando o dinossauro pisou nele. A lembrança me distraiu por alguns minutos e uma gaivota mais ousada fez um voo rasante e atacou minha mão, derrubando no chão o que restava do meu pão, o qual foi prontamente engolido por um bando estridente de suas companheiras.
Eu soltei um palavrão - a gaivota deixara um arranhão sangrando nas costas da minha mão - e, pegando o folheto, atirei-o no meio das aves que se atracavam em uma competição renhida pela comida. Atingi uma delas na cabeça e a ave rolou em uma louca confusão de asas e papel, dispersando o bando, que bateu em retirada, gritando palavrões na linguagem das gaivotas, sem deixar um único farelo para trás.
- Ha! - repeti, com uma cruel satisfação. Com alguma obscura inibição do século XX contra sujar as ruas - sem dúvida, tais noções não existiam ali - peguei de volta o folheto, que se despedaçara em várias partes, e as arrumei de volta de forma mais ou menos coerente.
Uma análise da misericórdia - intitulava-se, lendo-se o seguinte subtítulo: Pensamentos sobre a natureza da compaixão divina, sua manifestação no seio do ser humano e a instrução de sua inspiração para o aperfeiçoamento do indivíduo e da raça humana. Não devia ser um dos títulos de maior sucesso do sr. Crupp, pensei, enfiando-o no fundo do meu cesto.
O que me levou a outro pensamento. Eu imaginava se Roger o veria em um arquivo público um dia. Achei que provavelmente sim.
Isso significava que nós - ou eu - deveríamos estar fazendo coisas de propósito para assegurar nosso aparecimento nos ditos registros? Considerando-se que a maior parte das coisas publicadas em qualquer época era sobre guerra, crime, tragédia e outras terríveis desgraças, achei que não. Meus poucos contatos com a notoriedade não haviam sido agradáveis e a última coisa que eu queria que Roger encontrasse era um registro de que eu tivesse sido enforcada por roubo a banco, executada por bruxaria ou ter sido bicada até a morte por gaivotas raivosas.
Não, concluí. Seria melhor eu apenas contar a Bri sobre o sr. Beauchamp e a genealogia da família Beauchamp, e se Roger quisesse esquadrinhar isso, muito bem. É bem verdade que eu nunca viria a saber se ele encontrou o sr. Percival na lista, mas, se tiver encontrado, Jem e Mandy conheceriam um pouco mais da árvore genealógica de sua família.
Agora, onde estava aquela pasta? A última vez que eu a vira estava no escritório de Frank, no arquivo. Eu me lembrava distintamente dela porque tio Lamb esdruxulamente havia desenhado o que eu presumi que fosse o brasão da fa...
- Com licença, madame - uma voz grave disse respeitosamente atrás de mim. - Vejo que está...
Abruptamente arrancada das minhas lembranças, virei-me perplexa para a voz, achando vagamente que eu conhecia...
- Jesus H. Roosevelt Cristo! - exclamei, levantando-me com um salto. - Você!
Dei um passo atrás, tropecei no cesto e quase caí nas águas do porto, tendo sido salva apenas pela reação instintiva de Tom Christie, que me agarrou pelo braço.
Puxou-me da beira do cais e eu caí contra seu peito. Ele recuou como se eu fosse feita de metal fundido, depois me envolveu em seus braços, pressionoume com força contra ele e beijou-me com um abandono apaixonado.
Afastou-se, esquadrinhou meu rosto e exclamou, arfando:
- Você está morta!
- Bem, não - eu disse, atordoada.
- Eu... eu sinto muito - conseguiu dizer, deixando os braços penderem. - Eu... eu... eu... - Estava pálido como um fantasma e eu achei que ele era capaz de cair na água. Eu duvidava que minha aparência fosse muito melhor, mas eu ao menos estava firme sobre meus pés.
- É melhor você se sentar - eu disse.
- Eu... não aqui - ele disse abruptamente. Ele tinha razão. O cais era um lugar muito público e nosso pequeno reencontro atraíra bastante atenção. Dois desocupados nos fitavam abertamente, cutucando um ao outro, e estávamos atraindo olhares ligeiramente menos óbvios do tráfego de mercadores, marinheiros e estivadores cuidando de seus próprios afazeres. Eu começava a me recuperar do choque, o suficiente para pensar.
- Tem um quarto? Oh, não. Isso não vai servir, não é? - Eu podia imaginar muito bem todo tipo de histórias que estariam voando pela cidade em poucos minutos depois de nossa saída das docas; se fôssemos embora e nos encaminhássemos ao quarto do sr. Christie...
- A pensão - eu disse com firmeza. - Vamos.
Era uma caminhada de apenas alguns minutos até a hospedaria de Symonds e passamos esses minutos em completo silêncio. Mas eu lançava-lhe um olhar de vez em quando, tanto para me certificar de que ele não era um fantasma quanto para avaliar sua atual situação.
A última parecia tolerável; estava decentemente vestido em um traje cinzaescuro, com camisa limpa, e se não estava elegante - mordi o lábio à ideia de Tom Christie vestir-se com elegância - , ao menos não estava malvestido.
Fora isso, parecia igual à última vez em que eu o vira - bem, não, eu me corrigi. Na realidade, ele parecia muito melhor. Na última vez em que o vi, ele se encontrava no extremo de um luto extenuante, arrasado pela tragédia da morte de sua filha e das subsequentes complicações. A última visão que tive dele foi a bordo do Cru izer, o navio britânico em que o governador Martin se refugiou quando foi expulso da colônia, há quase dois anos.
Naquela ocasião, o sr. Christie declarara, primeiro, sua intenção de confessar o assassinato de sua filha - do qual eu era acusada - , segundo, seu amor por mim e, terceiro, sua intenção de ser executado em meu lugar. Tudo isso fez sua repentina ressurreição não apenas surpreendente, porém mais do que ligeiramente embaraçosa.
Acrescente-se a isso a dúvida sobre se ele sabia do destino de seu filho, Allan, que de fato fora o responsável pela morte de Malva Christie. As circunstâncias não eram nada que um pai devesse ouvir e o pânico tomou conta de mim à ideia de que talvez eu tivesse que lhe contar.
Olhei para ele outra vez. Seu rosto estava crivado de rugas profundas, mas ele não estava nem macilento, nem claramente transtornado. Não usava nenhuma peruca, embora seus cabelos grisalhos e ásperos estivessem cortados bem curtos, como sempre, combinando com a barba cuidadosamente aparada. Meu rosto formigava e eu mal conseguia deixar de esfregar a mão pela boca para apagar a sensação. Ele estava obviamente perturbado - bem, eu também estava - , mas conseguira recobrar o autocontrole e abriu a porta da pensão para mim com impecável cortesia. Somente a contração de um músculo ao lado de seu olho esquerdo o traía.
Senti como se todo o meu corpo estivesse crispado, mas Phaedre, que servia no salão, olhou para mim com não mais do que um leve interesse e um cumprimento cordial com a cabeça. Claro, ela nunca se encontrara com Thomas Christie e, apesar de sem dúvida ter ouvido sobre o escândalo que se seguiu à minha prisão, ela não associaria o cavalheiro que me acompanhava ao episódio.
Encontramos uma mesa junto à janela na sala de refeições e nos sentamos.
- Achei que estivesse morto - eu disse abruptamente. - Por que você achava que eu estava morta?
Ele abriu a boca para responder, mas foi interrompido por Phaedre, que veio nos servir, sorrindo amavelmente.
- Posso lhes servir alguma coisa, madame, senhor? Querem comer? Temos um ótimo presunto hoje, batatas assadas e o molho especial da sra. Symond de mostarda e passas para acompanhar.
- Não - o sr. Christie disse. - Eu... apenas um copo de sidra, por favor.
- Uísque - eu disse. - Muito uísque. O sr. Christie pareceu escandalizado, mas Phaedre apenas riu e afastou-se, a graça de seus movimentos atraindo a admiração silenciosa da maioria dos clientes masculinos.
- Você não mudou nada - ele observou. Seus olhos me percorreram, intensos, absorvendo cada detalhe de minha aparência. - Eu a teria reconhecido pelos cabelos.
Sua voz tinha um tom de desaprovação, mas também de um humor hesitante; ele sempre fora categórico em sua reprovação da minha recusa em usar uma touca ou de alguma forma prender meus cabelos. "Indisciplinados", ele dizia.
- Sim, teria - eu disse, erguendo a mão para alisar os cabelos em questão, consideravelmente afetados pelos choques recentes. - Mas você só me reconheceu quando eu me virei, não foi? O que o fez falar comigo?
Ele hesitou, mas depois balançou a cabeça indicando meu cesto, que eu colocara no chão, ao lado de minha cadeira.
- Vi que você tinha um de meus panfletos.
- O quê? - eu disse, perplexa, mas olhei para onde ele olhava e vi o folheto chamuscado Misericórdia Divina projetando-se de baixo de um repolho.
Inclinei-me e peguei-o, somente então notando o autor: Sr. T W Christie, MA, Universidade de Edimburgo.
- O que é o "W"? - perguntei, colocando o impresso sobre a mesa. Ele pestanejou.
- Warren - retrucou um pouco rispidamente. - De onde, em nome de Deus, você surgiu?
- Meu pai costumava dizer que me encontrou embaixo de uma folha de repolho na horta - respondi petulantemente. - Ou você está se referindo a hoje? Se assim for, da King's Inn.
Ele começava a parecer um pouco menos chocado, sua irritação normal com a minha falta de decoro feminino restituindo seu rosto às linhas severas de costume.
- Não banque a engraçadinha. Disseram-me que estava morta - ele disse, acusadoramente. - Você e toda a sua família foram consumidos em um incêndio.
Phaedre, servindo as bebidas, olhou para mim, as sobrancelhas erguidas.
- Ela não parece chamuscada nas beiradas, senhor, se me permite observar.
- Muito obrigado pela observação - ele disse, entre dentes. Phaedre trocou um olhar bem-humorado comigo e afastou-se outra vez, sacudindo a cabeça.
- Quem lhe disse isso?
- Um homem chamado McCreary. Minha falta de expressão deve ter revelado que eu não reconhecia o nome, pois ele acrescentou:
- De Brownsville. Eu o conheci aqui, em Wilmington, quero dizer, no final de janeiro. Ele acabara de descer da montanha, segundo disse, e me contou sobre o incêndio. Houve de fato um incêndio?
- Bem, sim, houve - eu disse devagar, me perguntando se devia, e quanto, contar a ele a verdade dos fatos. Muito pouco, em um lugar público, decidi. - Talvez tenha sido o sr. McCreary, então, quem colocou a notícia do incêndio no jornal... mas não é possível. - A notícia original surgira em 1776, Roger dissera; quase um ano antes do incêndio.
- Fui eu que coloquei - Christie disse. Foi a minha vez de pestanejar.
- Você o quê? Quando? - Tomei um grande gole de uísque, sentindo que precisava dele mais do que nunca.
- Assim que soube. Ou... bem, não - corrigiu-se. - Alguns dias depois. Eu... estava muito triste com a notícia - acrescentou, abaixando os olhos e desviando-os de mim pela primeira vez desde que nos sentamos ali.
- Ah. Sinto muito - eu disse, a voz baixa, em tom de desculpa... embora sem saber por que eu deveria me desculpar por não ter morrido no incêndio...
Ele pigarreou.
- Sim. Bem. Pareceu-me que... hã... alguma coisa devia ser feita. Algum registro formal de sua... morte. - Ergueu o olhar então, os olhos cinzentos diretos. - Eu não podia me conformar com o fato de que você... todos vocês - acrescentou, mas evidentemente fora uma correção - pudessem simplesmente desaparecer da face da Terra, sem nenhum registro formal do... do acontecimento.
Ele respirou fundo e tomou um pequeno gole de sidra.
- Ainda que um funeral adequado tivesse sido realizado, não fazia sentido eu retornar a Fraser's Ridge, mesmo que eu... bem. Eu não poderia. Assim, pensei em ao menos fazer um registro do acontecimento aqui. Afinal - ele acrescentou mais brandamente, desviando o olhar outra vez - , eu não podia colocar flores em seu túmulo.
O uísque me acalmara um pouco, mas também irritara minha garganta, tornando difícil falar quando embargada pela emoção. Estendi a mão e toquei a dele de leve, depois clareei a garganta, encontrando momentaneamente um terreno neutro.
- Sua mão - eu disse. - Como está? Ele ergueu os olhos, surpreso, mas as rugas tensas de seu rosto relaxaram um pouco.
- Muito bem, obrigado. Está vendo? - Virou a mão direita, exibindo uma cicatriz na forma de um Z na palma, bem curada, mas ainda rosada.
- Deixe-me ver. Sua mão estava fria. Fingindo descontração, tomei-a na minha, virando-a, dobrando seus dedos para verificar a flexibilidade e o grau de movimento. Ele tinha razão: estava indo muito bem; o movimento era quase normal.
- Eu... fiz os exercícios que você mandou - ele confessou. - Eu os faço todos os dias.
Ergui os olhos e me deparei com ele olhando-me com uma espécie de solenidade angustiada, as faces agora ruborizadas acima da barba, e compreendi que este terreno não era tão neutro quanto eu pensara. Antes que eu pudesse soltar sua mão, ela virou-se na minha, cobrindo meus dedos - não com força, mas o suficiente para eu não conseguir me soltar sem algum esforço.
- Seu marido. - Ele parou de repente, obviamente não tendo pensado nem por um instante em Jamie até esse momento. - Ele também está vivo?
- Sim, está. A bem da verdade, ele não fez uma careta de desgosto diante dessa notícia, mas apenas balançou a cabeça, expirando.
- Fico... feliz em saber. Permaneceu em silêncio por um instante, olhando para sua sidra quase intocada. Ainda segurava minha mão. Sem erguer os olhos, disse em voz baixa: - Ele... sabe? O que eu... como eu... eu não contei a ele a razão da minha confissão. Você contou?
- Quer dizer, sua... - hesitei em busca de uma forma adequada de colocar as palavras - seus... hum... sentimentos muito galanteadores em relação a mim? Bem, sim, ele sabe; ele teve muita compaixão por você. Ele sabendo por experiência própria o que é estar apaixonado por mim, quero dizer - acrescentei, com certo azedume.
Ele quase riu, o que me deu a oportunidade de desvencilhar meus dedos. Ele não me informou, mas pude notar que ele já não estava mais apaixonado por mim. Oh, Deus!
- Bem, seja como for, não estamos mortos - eu disse, limpando a garganta outra vez. - E quanto a você? A última vez que o vi...
- Ah. - Ele pareceu bastante infeliz, mas se recompôs e balançou a cabeça. - Sua partida um tanto apressada do Cru izer deixou o governador Martin sem um amanuense. Descobrindo que eu era até certo ponto letrado - sua boca torceu-se um pouco - e tinha uma boa caligrafia, graças aos seus cuidados, ele me retirou da prisão.
Não fiquei surpresa. Forçado a deixar sua colônia, o governador Martin foi obrigado a conduzir os negócios da minúscula cabine do comandante do navio britânico onde se refugiara. Tais negócios consistiam forçosa e inteiramente em cartas - todas as quais tinham que ser não somente redigidas em rascunho e primorosamente copiadas, mas depois cada uma reproduzida várias vezes. Uma cópia era exigida para os arquivos de correspondência oficial do governador, outra para cada pessoa ou entidade que tivesse algum interesse no assunto da carta e, finalmente, várias cópias adicionais tinham que ser feitas de qualquer carta enviada para a Inglaterra ou Europa, porque seriam enviadas por diferentes navios, na esperança de que ao menos uma cópia conseguisse chegar ao destino, caso as outras afundassem com o navio, caíssem nas mãos de piratas ou de navios particulares, ou se perdessem em trânsito.
Minha mão doía à simples lembrança. As exigências da burocracia em uma época anterior à mágica da Xerox haviam me impedido de apodrecer em uma cela; não era de admirar que também tivessem livrado Tom Christie da detenção.
- Está vendo? - eu disse, satisfeita. - Se eu não tivesse consertado sua mão, ele provavelmente o teria mandado executar ali mesmo ou no mínimo o enviado de volta à terra firme e o aprisionado em alguma masmorra.
- Fico-lhe muito agradecido - ele disse, com extrema frieza. - Não fiquei, na ocasião.
Christie passara vários meses como secretário de facto do governador. No final de novembro, entretanto, um navio chegou da Inglaterra, trazendo ordens para o governador - essencialmente lhe ordenando que dominasse a colônia, mas não lhe oferecendo tropas, armamento ou sugestões úteis de como conseguir esse feito - e um secretário oficial.
- Nesse ponto, o governador se viu diante da perspectiva de se desfazer de mim. Nós tínhamos... nos aproximado, trabalhando em local tão confinado...
- E como você já não era um assassino anônimo, ele não queria arrancar a pena de sua mão e enforcá-lo no cais de verga - terminei para ele. - Sim, ele é na verdade um homem bastante bondoso.
- É, sim - Christie disse, pensativamente. - O pobre coitado também não tem tido uma vida fácil.
Concordei.
- Ele lhe contou sobre seus filhos pequenos?
- Sim, contou. - Seus lábios se comprimiram, não de raiva, mas para controlar a própria emoção. Martin e sua mulher haviam perdido três filhos pequenos, um depois do outro, às pragas e febres da colônia; não era de admirar que ouvir falar do sofrimento do governador tivesse reaberto as próprias feridas de Tom Christie. Mas ele sacudiu levemente a cabeça e retornou ao assunto de sua libertação.
- Eu havia... lhe contado um pouco sobre... sobre minha filha. - Ele pegou a caneca de sidra quase intocada e esvaziou-a até a metade de um só gole, como se estivesse morto de sede. - Admiti particularmente para ele que minha confissão fora falsa, embora tivesse afirmado também que eu estava convicto de sua inocência - assegurou-me. - E se você um dia fosse presa novamente pelo crime, minha confissão continuaria válida.
- Muito obrigada - eu disse, perguntando-me com uma apreensão ainda maior se ele sabia quem realmente havia assassinado Malva. Ele devia ter suspeitado, pensei, mas isso estava longe de saber, muito menos de saber por quê. E ninguém sabia onde Allan estava agora, salvo eu, Jamie e o Jovem Ian.
O governador recebera essa admissão com alívio e decidiu que a única coisa a fazer nas circunstâncias era deixar Christie em terra firme, a cargo das autoridades civis.
- Não há mais nenhuma autoridade civil - eu disse.
- Há? Ele sacudiu a cabeça. - Nenhuma capaz de lidar com tal questão. Ainda há cárceres e xerifes, mas não há tribunais, nem magistrados. Nessas circunstâncias - ele quase sorriu, apesar da expressão melancólica - , achei uma perda de tempo tentar encontrar alguém a quem me entregar.
- Mas você disse que havia enviado uma cópia de sua confissão para o jornal - eu disse. - Você não foi... hã... recebido com frieza pelas pessoas em New Bern?
- Pela graça da Providência divina, o jornal cessara suas operações antes de receber minha confissão, sendo o tipógrafo um legalista. Creio que o sr. Ashe e seus amigos o visitaram e ele sabiamente decidiu encontrar outro ramo de negócios.
- Muito sensato - eu disse secamente. John Ashe era amigo de Jamie, um líder da facção local dos Filhos da Liberdade e o homem que instigara o incêndio de Fort Johnston e efetivamente forçara o governador Martin a se refugiar no mar.
- Houve boatos - ele disse, desviando os olhos outra vez - , mas foram sobrepujados pela precipitação dos acontecimentos públicos. Ninguém sabia ao certo o que acontecera em Fraser's Ridge e depois de algum tempo ficou na mente de todos que simplesmente alguma tragédia pessoal acontecera comigo. As pessoas passaram a me ver com certa... compaixão. - Sua boca torceu-se; ele não era do tipo que recebe compaixão com complacência.
- Você parece estar prosperando - eu disse, balançando a cabeça e indicando seus trajes. - Ao menos, não está dormindo na sarjeta e vivendo de cabeças de peixe descartadas nas docas. Eu não fazia a menor ideia de que o negócio de publicar folhetos fosse lucrativo.
Ele voltara à sua cor normal durante a conversa anterior, mas corou outra vez, agora com um ar aborrecido.
- Não é - ele retrucou. - Eu tenho alunos. E eu... eu prego aos domingos.
- Não posso imaginar ninguém melhor para a tarefa - eu disse, achando graça. - Você sempre teve talento para dizer a todo mundo o que há de errado com elas em termos bíblicos. Tornou-se um pastor, então?
Ele ficou ainda mais ruborizado, mas reprimiu sua cólera e me respondeu serenamente.
- Eu estava quase em situação de indigência quando cheguei aqui. Cabeças de peixe, como você diz, e um ou outro pedaço de pão ou sopa doados pela congregação da Nova Luz. Eu vinha para comer, mas ficava para o culto por cortesia. Assim, ouvi um sermão dado pelo reverendo Peterson. Aquilo... calou fundo em mim. Eu o procurei e nós... conversamos. Uma coisa levou à outra. - Ergueu o rosto para mim, os olhos faiscantes. - O Senhor realmente atende às preces, sabe.
- E pelo que você rezara? - perguntei, intrigada. Isso o desconcertou um pouco, embora tivesse sido uma pergunta inocente, feita por simples curiosidade.
- Eu... eu... - Interrompeu-se e me fitou, a testa franzida. - Você é uma mulher muito desagradável!
- Você não seria a primeira pessoa a dizer isso - assegurei-lhe. E não tenho a intenção de bisbilhotar. Eu só... fiquei pensando.
Pude ver a ânsia de se levantar e ir embora digladiando com a compulsão de dar testemunho do que quer que tivesse lhe acontecido. Mas ele era um homem obstinado e ficou onde estava.
- Eu... perguntei por quê - ele disse finalmente, muito serenamente. - Apenas isso.
- Bem, deu certo para Jó - observei. Ele pareceu surpreso e eu quase ri; ele sempre se surpreendia à revelação de que qualquer outra pessoa que não ele próprio tivesse lido a Bíblia. No entanto, controlou-se e olhou furiosamente para mim de um jeito mais de acordo com sua maneira habitual.
- E agora você está aqui - ele disse, fazendo parecer uma acusação. - Imagino que seu marido tenha formado uma milícia ou se ligado a uma. Eu já estou farto de guerras. Surpreende-me que seu marido também não esteja.
- Não creio que seja exatamente um gosto pela guerra - eu disse. Falei de uma maneira cortante, mas algo nele me fez acrescentar: - É que ele acha que nasceu para isso.
Algo tremulou no fundo dos olhos de Tom Christie... - surpresa? Reconhecimento?
- E nasceu - disse tranquilamente. - Mas sem dúvida. - Não concluiu o Pensamento, mas em vez disso perguntou abruptamente: - Mas o que você está fazendo aqui? Em Wilmington?
- Procurando um navio - eu disse. - Estamos indo para a Escócia. Sempre tive talento para surpreendê-lo, mas desta vez eu me superei. Ele erguera sua caneca para beber, mas, ao ouvir minha declaração, abruptamente derramou sidra sobre a mesa. Logo em seguida engasgou-se, tossiu e chiou, a respiração difícil, o que atraiu muita atenção. Recostei-me na cadeira, tentando ficar invisível.
- Hã... vamos para Edimburgo, recuperar a gráfica do meu marido - eu disse. - Quer que ele procure alguém para você? Entregar um recado, quero dizer? Creio que você disse que tem um irmão lá.
Sua cabeça levantou-se bruscamente e ele fitou-me com raiva, os olhos lacrimejando. Senti um espasmo de horror à súbita lembrança e tive vontade de arrancar minha língua. Seu irmão tivera um caso com a mulher de Tom enquanto Tom estava preso nas Highlands depois do Levante; sua mulher, então, envenenara seu irmão e em consequência fora executada por bruxaria.
- Desculpe-me - eu disse, a voz baixa. - Perdoe-me, por favor. Eu não... Ele segurou minha mão entre as suas, com tanta força e tão abruptamente que eu arfei, e algumas cabeças viraram-se com curiosidade em nossa direção. Ele não deu nenhuma atenção a isso, mas inclinou-se para mim, por cima da mesa.
- Ouça-me - ele disse, sibilando ferozmente. - Eu amei três mulheres. Uma era uma bruxa e uma vagabunda, a segunda apenas uma vagabunda. Você pode muito bem ser uma bruxa também, mas não faz a menor diferença. Meu amor por você me levou à salvação e ao que eu achei que fosse a minha paz, quando acreditei que estava morta.
Olhou-me fixamente e sacudiu a cabeça devagar, a boca cerrando-se por um momento, formando uma linha em sua barba.
- E aqui está você.
- Hã... sim. - Novamente, senti que devia me desculpar por não estar morta, mas não o fiz.
Ele inspirou fundo e soltou o ar com um suspiro.
- Não terei nenhuma paz enquanto você viver, mulher.
Então, ele ergueu minha mão e beijou-a, levantou-se e foi embora.
- Veja bem - ele disse, virando-se à porta para olhar para mim por cima do ombro - , eu não disse que lamento isso.
Peguei o copo de uísque e o esvaziei.
Continuei meus afazeres em uma espécie de atordoamento - não inteiramente induzido pelo uísque. Eu não sabia o que pensar da ressurreição de Tom Christie, mas estava muito transtornada por ela. No entanto, não parecia haver realmente nada a fazer a respeito dele, e assim prossegui na direção da loja de Stephen Moray, um ourives de Fife, para encomendar um par de tesouras cirúrgicas. Felizmente, ele se mostrou um homem inteligente, que parecia compreender tanto minhas especificações quanto o propósito por trás delas, e prometeu ter a tesoura pronta dentro de três dias. Animada com isso, aventurei-me em uma encomenda um pouco mais problemática.
- Agulhas? - Moray franziu as sobrancelhas brancas, intrigado. - Não precisa dos serviços de um ourives para...
- Não são agulhas de costura. São mais longas, muito finas e sem buraco. Têm finalidade médica. E eu gostaria que as fizesse com isto.
Seus olhos se arregalaram quando eu depositei o que parecia ser uma pepita de ouro do tamanho de uma noz sobre o balcão. Era na verdade um pedacinho de um dos lingotes franceses, arrancado e martelado até formar um torrão e coberto de terra como disfarce.
- Meu marido ganhou isto em um jogo de cartas - eu disse, com um misto de orgulho e desculpas que me pareceu apropriado para tal confissão. Eu não queria que ninguém começasse a achar que havia ouro em Fraser's Ridge, em nenhuma forma. Elevar a reputação de Jamie como jogador de cartas provavelmente não faria mal algum; ele já era conhecido - se não famoso - por suas habilidades nesse ramo.
Moray franziu um pouco o cenho diante das especificações escritas para as agulhas de acupuntura, mas concordou em fazê-las. Felizmente, ele parecia nunca ter ouvido falar em bonecas de vodu, ou eu teria tido um pouco mais de dificuldade.
Com a visita ao ourives e uma rápida passagem pelo mercado para comprar cebolinha, queijo, folhas de hortelã-pimenta e qualquer outra coisa disponível em ervas medicinais, já era final de tarde quando voltei à King's Ans.
Jamie jogava cartas no salão do bar, com o Jovem Ian observando por cima do seu ombro, mas ele me viu entrar e, passando suas cartas para Ian, veio pegar meu cesto, seguindo-me pelas escadas para o nosso quarto.
Girei nos calcanhares quando entramos, mas antes que eu pudesse falar ele disse:
- Sei que Tom Christie está vivo. Encontrei-o na rua.
- Ele me beijou - confessei.
- Sim, ouvi dizer - ele disse, esquadrinhando-me com um ar divertido. Por alguma razão, achei aquilo irritante. Ele notou isso, e pareceu achar ainda mais divertido.
- E você gostou?
- Não tem graça nenhuma! O humor não desapareceu, mas se recolheu um pouco.
- Você gostou? - ele repetiu, mas agora havia curiosidade em sua voz, em vez de caçoada.
- Não. - Virei-me bruscamente. - Isso... Não tive tempo para... para pensar nisso.
Sem aviso prévio, ele colocou a mão em minha nuca e me beijou rapidamente. E por simples reflexo eu o esbofeteei. Não com força - tentei retirar a mão no meio mesmo do gesto - e obviamente eu não o havia machucado. Fiquei tão surpresa e desconcertada quanto se o tivesse nocauteado.
- Não é preciso pensar muito, não é? - ele disse, recuando um passo e me analisando com interesse.
- Desculpe - eu disse, sentindo-me ao mesmo tempo mortificada e furiosa, e ainda com mais raiva por não compreender por que eu estava com raiva. - Não tive a intenção... desculpe.
Ele inclinou a cabeça para o lado, examinando-me.
- É melhor eu ir matá-lo?
- Oh, não seja ridículo. - Manuseei nervosamente meus cordões, desatando o bolso interno da minha saia, sem querer fitá-lo nos olhos. Eu estava irritada, desconcertada, inquieta - e ainda mais desconcertada por não saber exatamente por quê.
- Foi uma pergunta honesta, Sassenach - ele disse serenamente. - Não séria, talvez... mas honesta. Acho que você me deve uma resposta honesta.
- É claro que não quero que você o mate! - Quer que eu lhe diga, então, por que você me esbofeteou? - Por que... - Fiquei parada com a boca aberta por um segundo, depois a fechei.
- Sim. Quero.
- Eu toquei em você contra a sua vontade - ele disse, os olhos fixos nos meus. - Não foi?
- Sim - eu disse, e respirei um pouco mais facilmente. - E Tom Christie também. E, não, eu não gostei.
- Mas não por causa de Tom - ele concluiu. - Pobre coitado.
- Ele não iria querer a sua compreensão - eu disse rispidamente, e ele sorriu.
- Não, não iria. Mas ele a tem, mesmo assim. Ainda assim fico contente - ele acrescentou.
- Contente com o quê? Com o fato de ele estar vivo... ou... certamente não porque ele ache que me ame? - eu disse, incrédula.
- Não subestime os sentimentos dele, Sassenach - ele disse, mais serenamente. - Ele ofereceu a vida dele pela sua uma vez. E tenho certeza de que o faria outra vez.
- Eu não quis que ele o fizesse desde a primeira vez!
- Isso a incomoda - ele disse, em um tom de interesse clínico.
- Sim, é claro que me incomoda! - eu disse. - E - o pensamento me ocorreu e eu lancei-lhe um olhar severo - a você também! - Lembrei-me repentinamente que ele dissera que havia encontrado Tom Christie na rua. O que Tom lhe dissera?
Ele inclinou a cabeça para o lado em fraca negação, mas não contestou.
- Não vou dizer que eu goste de Thomas Christie - ele disse, ponderando -, mas eu o respeito. E estou muito satisfeito de encontrá-lo com vida. Você não errou em chorar sua morte, Sassenach - acrescentou, meigamente. - Eu também chorei.
- Eu nem tinha pensado nisso. - Com o choque de vê-lo, eu não me lembrara, mas eu chorara por ele, e por seus filhos. - Mas não me arrependo.
- Ótimo. O problema de Tom Christie - ele continuou - é que ele a deseja. Muito. Mas ele não sabe nada a seu respeito.
- E você sabe. - Deixei a frase entre uma pergunta e um desafio, e ele sorriu. Virou-se e trancou a porta, depois atravessou o quarto e puxou a cortina de chita da única janela pequena, lançando o quarto em uma agradável penumbra azulada.
- Oh, tenho necessidade e vontade em abundância, mas também tenho conhecimento. - Estava parado muito perto de mim, o suficiente para que tivesse que levantar a cabeça para fitá-lo. - Eu nunca a beijei sem saber quem você era, e isso é algo que o pobre Tom jamais saberá. - Santo Deus, o que Tom havia lhe dito?
Meu pulso, que andara saltando para cima e para baixo, estabilizou-se em uma batida leve e rápida, discernível na ponta de meus dedos.
- Você não sabia nada a meu respeito quando se casou comigo. Sua mão fechou-se delicadamente em meu traseiro.
- Não? - Além disso, quero dizer! Ele fez um pequeno ruído escocês na garganta, não exatamente uma risadinha.
- Sim, bem, sábio é o homem que sabe o que ele não sabe. E eu aprendo rápido, a nighean.
Ele me puxou delicadamente e me beijou - com atenção e ternura, com conhecimento - e com meu total consentimento. Isso não apagou minha lembrança do beijo apaixonado, destemperado, de Tom Christie, e achei que essa não era a intenção; a intenção era me mostrar a diferença.
- Você não pode estar com ciúmes - eu disse, pouco depois.
- Posso - ele disse, sem gracejo.
- Você não pode pensar...
- Não estou pensando.
- Muito bem, então...
- Muito bem, então. - Seus olhos estavam escuros como a água do mar na penumbra, mas a expressão neles era inteiramente legível, e meu coração bateu mais rápido. - Eu sei o que você sente por Tom Christie, e ele me disse com todas as letras o que sente por você. Você certamente sabe que o amor nada tem a ver com a lógica, não sabe, Sassenach?
Reconhecendo uma pergunta retórica quando ouvia uma, não me dei ao trabalho de responder, mas em vez disso comecei a desabotoar sua camisa com todo o cuidado. Não havia nada que eu pudesse sensatamente dizer sobre os sentimentos de Tom Christie, mas eu possuía uma outra linguagem pela qual expressar os meus próprios. Seu coração batia acelerado; podia senti-lo como se o segurasse em minha mão. O meu também, mas eu respirei fundo e reconfortei-me na quente familiaridade de seu corpo, nos caracóis macios dos cabelos cor de canela de seu peito e na pele arrepiada sob meus dedos. Enquanto estava assim absorvida, ele deslizou os dedos por dentro de meus cabelos, separando uma mecha que examinou atentamente.
- Ainda não ficou branca. Creio que ainda tenho um pouco de tempo, então, antes que você fique perigosa demais para eu me deitar com você.
- Perigosa uma ova! - exclamei, começando a trabalhar nos botões de suas calças. Gostaria que ele estivesse vestindo seu kilt. - Exatamente o que você acha que eu poderia fazer com você na cama?
Ele coçou o peito, refletindo, e esfregou distraidamente a pequena protuberância de tecido cicatrizado onde ele cortara a marca de Jack Randall de sua carne.
- Bem, até agora, você já me arranhou, me mordeu, me furou, mais de uma vez e...
- Eu não o furei!
- Furou, sim - ele me informou. - Você me furou no traseiro com suas malditas agulhinhas, quinze vezes! Eu contei. E depois uma dúzia de vezes ou mais na perna com a presa de uma cascavel.
- Eu estava salvando a sua vida!
- Eu não disse o contrário, disse? Mas não vai negar que você gostou, vai?
- Bem... não tanto a presa da cascavel. Quanto às hipodérmicas... - Minha boca torceu-se, a despeito de mim mesma. - Você mereceu.
Ele me lançou um olhar de profundo cinismo.
- "Causar nenhum mal", hein?
- Além do mais, você estava contando o que eu fiz a você na cama - eu disse, voltando ao ponto. - Não pode contar as injeções.
- Eu estava na cama!
- Eu não estava!
- Sim, você se aproveitou de mim - ele disse, balançando a cabeça. - Mas eu não guardo rancor por isso.
Ele tirara meu casaco e ocupava-se em desamarrar meus cadarços, a cabeça abaixada em concentração.
- O que você acharia se eu ficasse com ciúmes? - perguntei para o topo de sua cabeça.
- Gostaria bastante - ele respondeu, o hálito quente na minha pele exposta. - E você ficou. De Laoghaire. - Ergueu os olhos, rindo, uma das sobrancelhas levantadas. - Será que ainda está?
Dei-lhe outro tapa e desta vez intencionalmente. Ele poderia ter me impedido, mas não o fez.
- Sim, foi o que pensei - ele disse, limpando um olho lacrimejante. - Quer vir para a cama comigo, então? Só nós dois - acrescentou.
Era tarde quando acordei; o quarto estava escuro, apesar de ainda se ver uma fatia de céu desbotado no alto da cortina. A lareira ainda não fora acesa e o quarto estava frio, mas quente e aconchegante sob as cobertas, aninhada como eu estava contra o corpo de Jamie. Ele virara de lado e eu me enrosquei como uma colher contra as suas costas e passei o braço por cima dele, sentindo o suave subir e descer de sua respiração.
Realmente, fomos só nós dois. Eu me preocupara, no começo, que a lembrança de Tom Christie e sua estranha paixão pudesse se instalar entre nós - mas Jamie, evidentemente pensando da mesma forma e determinado a evitar qualquer reverberação do beijo de Tom que pudesse trazer de volta sua lembrança, começara na outra ponta, beijando meus pés.
Considerando o tamanho do quarto e o fato de que a cama estava encaixada sem folga em uma de suas extremidades, ele fora obrigado a escarranchar-se sobre mim para fazer isso, e a combinação de ter meus pés mordiscados e a visão diretamente por trás e por baixo de um escocês nu foram suficientes para remover qualquer outra coisa da minha cabeça.
Aquecida, segura e calma agora, eu podia pensar sobre o encontro anterior sem me sentir ameaçada. E eu realmente me sentira ameaçada. Jamie percebera isso. Quer que eu lhe diga por que você me esbofeteou?... Eu toquei em você contra a sua vontade.
Ele tinha razão; era um dos pequenos efeitos secundários do que acontecera comigo quando fui raptada. Ajuntamentos de homens me deixavam nervosa sem nenhuma razão e ser agarrada inesperadamente me fez recuar e procurar me libertar com um safanão, em pânico. Por que eu não entendera isso?
Porque eu não queria pensar nisso. Ainda não queria. De que adiantaria? Era melhor deixar que as coisas se curassem por conta própria, se possível.
Mas mesmo feridas que se curam deixam cicatrizes. A prova disso estava literalmente diante de mim - pressionada contra meu rosto, na realidade.
As cicatrizes nas costas de Jamie haviam esmaecido em uma pálida teia de aranha, com apenas uma ou outra leve protuberância aqui e ali, perceptível sob meus dedos quando fazíamos amor, como arame farpado sob sua pele. Lembrei-me de Tom Christie escarnecendo delas certa vez, e meu maxilar enrijeceu-se.
Coloquei a mão delicadamente em suas costas, traçando uma curva pálida com o polegar. Ele remexeu-se em seu sono e eu parei, a mão espalmada.
O que nos aguardava?, me perguntei. A ele. A mim. Ouvi a voz sarcástica de Tom Christie. Eu já estou farto de guerras. Surpreende-me que seu marido também não esteja.
- Bem, você está farto - murmurei baixinho. - Covarde. - Tom Christie fora encarcerado como um jacobita, o que ele era, mas não um soldado. Ele fora um oficial encarregado de suprimentos no exército de Carlos Stuart. Ele arriscara sua posição e fortuna - e perdera ambas - , mas não sua vida ou seu corpo.
Ainda assim, Jamie o respeitava, o que significava alguma coisa, não sendo Jamie um mau julgador de caráter. E eu sabia o suficiente, observando Roger, para compreender que se tornar um pastor não era um caminho fácil como algumas pessoas pensavam. Roger também não era um covarde e eu me perguntava como ele encontraria seu caminho no futuro.
Virei-me, irrequieta. O jantar estava sendo preparado; podia sentir o cheiro intenso de água salgada e ostras fritas que vinha da cozinha embaixo, carregado em uma onda de fumaça de lenha e batatas assadas. Jamie remexeu-se um pouco e virou-se de costas, mas não acordou. Tempo suficiente. Ele estava sonhando; eu podia ver o movimento de seus olhos, revirando-se sob as pálpebras cerradas, e o momentâneo aperto dos lábios.
Seu corpo retesou-se, também, repentinamente rígido a meu lado, e eu saltei para trás com um movimento brusco, surpresa. Ele resmungou com um som grave no fundo da garganta e seu corpo arqueou-se com esforço. Começou a emitir sons estrangulados, se chamando ou gritando em seu sonho eu não sabia, e não esperei para descobrir.
- Jamie, acorde! - eu disse enfaticamente. Não toquei nele, eu sabia que não era uma boa ideia fazer isso enquanto ele estivesse no meio de um sonho violento; ele quase quebrara meu nariz uma ou duas vezes. - Acorde!
Ele arquejou, recuperou o fôlego e abriu os olhos desfocados. Obviamente, ele não sabia onde estava e eu falei com ele mais suavemente, repetindo seu nome, assegurando-lhe que estava tudo bem. Ele piscou, engoliu com força, depois virou a cabeça e me viu.
- Claire - eu disse prestativamente, vendo que ele buscava meu nome.
- Ótimo - ele disse com voz rouca. Fechou os olhos, sacudiu a cabeça e em seguida abriu os olhos outra vez. - Você está bem, Sassenach?
- Sim. E você?
Ele balançou a cabeça, fechando os olhos outra vez por um instante.
- Sim, estou bem. Eu estava sonhando com o incêndio da casa. Lutando. - Fungou, farejando o ar. - Tem alguma coisa queimando?
- O jantar, imagino. - Os aromas deliciosos que vinham do andar térreo haviam na realidade sido interrompidos pelo cheiro acre de fumaça e comida queimada. - Acho que o panelão de ensopado derramou.
- Talvez a gente tenha que comer em algum outro lugar esta noite. - Phaedre disse que a sra. Symonds assara presunto com molho de mostarda e passas no almoço. Ainda deve ter sobrado um pouco. Você está bem? - perguntei outra vez. O quarto estava frio, mas seu rosto e peito brilhavam de suor.
- Oh, sim - respondeu, sentando-se e esfregando as mãos vigorosamente pelos cabelos. - Posso conviver com esse tipo de sonho. - Afastou os cabelos do rosto e sorriu para mim. - Você está parecendo um chumaço de algodãozinho do campo, Sassenach. Você também teve um sono agitado?
- Não - eu lhe disse, levantando-me e vestindo minha combinação antes de tatear à cata de minha escova de cabelos. - Foi a parte agitada de antes de adormecermos. Ou você não se lembra disso?
Ele riu, passou a mão pelo rosto e levantou-se para usar o urinol, depois começou a vestir sua camisa.
- E quanto aos outros sonhos? - perguntei abruptamente.
- O quê? - Ele emergiu da camisa, com ar interrogador.
- Você disse que pode conviver com esse tipo de sonho. E quanto aos outros, com que não pode conviver?
Vi os traços de seu rosto estremecerem como a superfície da água quando atiramos uma pedrinha nela e, num impulso, estendi a mão e agarrei seu pulso.
- Não se esconda - eu disse suavemente. Mantive os olhos fixos nos dele, impedindo-o de erguer sua máscara. - Confie em mim.
Então, ele de fato desviou o olhar, mas apenas para se recompor; não se escondeu. Quando olhou novamente para mim, tudo ainda estava lá em seus olhos - confusão, constrangimento, humilhação e os vestígios de uma dor longamente reprimida.
- Eu sonho... às vezes... - disse, hesitante - com coisas que foram feitas comigo contra a minha vontade. - Respirou pelo nariz, profundamente, exasperado. - E acordo com uma ereção e minhas bolas latejando e tenho vontade de sair e matar alguém, a começar por mim mesmo - terminou apressadamente, com um esgar. - Não acontece sempre - acrescentou, lançando-me um olhar rápido e direto. - E eu nunca... eu jamais a procuraria no rastro de algo assim. Você deve saber disso.
Apertei seu pulso com mais força. Eu queria dizer: "Você poderia, eu não iria me importar", pois seria verdade, e um dia eu teria dito isso sem hesitação. Mas agora eu sabia muito mais e, se fosse comigo, se eu jamais tivesse sonhado com Harley Boble ou com o homem pesado, macio, e acordado do sonho excitada - e graças a Deus isso nunca acontecera - , não, a última coisa que eu teria feito seria tomar esse sentimento e voltar-me para Jamie, ou usar seu corpo para purgá-lo.
- Obrigada - eu disse, ao invés, a voz muito baixa. - Por me contar - acrescentei. - E pela faca.
Ele balançou a cabeça e virou-se para pegar suas calças.
- Eu gosto de presunto - ele disse.
LAMENTO.
Long Island, colônia de Nova York Setembro, 1776
William gostaria de poder falar com seu pai. Não, garantiu a si mesmo, que ele quisesse que lorde John usasse de sua influência; certamente, não. Só desejava um pouco de conselho prático. Mas lorde John retornara para a Inglaterra e William estava por sua própria conta.
Bem, não precisamente sozinho. No momento, estava encarregado de um destacamento de soldados que guardava uma barreira da alfândega em uma das extremidades de Long Island. Deu um tapa violento em um mosquito que pousou em seu pulso e, ao menos desta vez, destruiu-o. Queria poder fazer o mesmo com Clarewell.
Tenente Edward Markham, marquês de Clarewell. Também conhecido - por William e uns dois amigos mais íntimos - como Ned Sem Queixo ou Cafetão. William deu um tapa em uma sensação de rastejamento em seu próprio maxilar proeminente, notou que dois de seus homens haviam desaparecido momentaneamente, caminhou a passos largos em direção à carroça que eles andaram inspecionando, gritando seus nomes.
O soldado Welch apareceu de trás da carroça como o palhaço de uma caixa de surpresa, com um ar espantado e limpando a boca. William inclinou-se para frente, cheirou seu hálito e disse sucintamente:
- Taxas. Onde está Launfal?
- Na carroça, apressadamente concluindo uma barganha com o proprietário do veículo por três garrafas de conhaque de contrabando que o cavalheiro buscava importar ilicitamente. William, soturnamente dando tapas nas hordas de mosquitos devoradores que vinham em enxames dos pântanos próximos, prendeu o dono da carroça, convocou os outros três homens de seu destacamento e mandou-os escoltar o contrabandista Welch e Launfal para o sargento. Em seguida, pegou um mosquete e ficou plantado no meio da estrada, sozinho e com ar feroz, em uma atitude que desafiava qualquer um a tentar passar.
Ironicamente, embora a estrada tivesse estado movimentada durante toda a manhã, durante algum tempo ninguém tentou passar, dando-lhe oportunidade para redirecionar seu mau humor à lembrança de Clarewell.
Herdeiro de uma família muito influente, e que tinha ligações íntimas com lorde North, Ned Sem Queixo chegara a Nova York uma semana antes de William e fora igualmente colocado no exército de Howe, onde se aninhou confortavelmente, esvoaçando, lisonjeiro e obsequioso, ao redor do general Howe - que, a bem da verdade, costumava pestanejar e fitar o Cafetão com um olhar severo, como se tentasse se lembrar quem diabos seria ele - e do capitão Pickering, o ajudante de ordens chefe do general, um homem vaidoso e muito mais susceptível à entusiástica bajulação de Ned.
Em consequência, Sem Queixo rotineiramente ficava com as melhores tarefas, acompanhando o general em curtas expedições exploratórias, comparecendo a reuniões com dignitários indígenas e coisas do tipo, enquanto a William e vários outros jovens oficiais novatos restava embaralhar papéis e ficar esperando. Má sorte, após a liberdade e as emoções do serviço de inteligência militar.
Ele teria suportado as restrições da vida no quartel e da burocracia do exército. Seu pai o instruíra muito bem sobre a necessidade de se conter em circunstâncias difíceis, de aguentar o tédio, de lidar com os tolos e sobre a arte de usar a fria cortesia como uma arma. Alguém sem a força de caráter de William, entretanto, perdera o controle um dia e, incapaz de resistir às possibilidades da caricatura suscitadas pela contemplação do perfil de Ned, desenhara uma charge do capitão Pickering com as calças arriadas nos tornozelos, empenhado em repreender os novatos e aparentemente alheio a Cafetão, cuja cabeça emergia, com um sorriso afetado, do traseiro de Pickering.
William não fora o responsável por essa brincadeira - embora quisesse ter sido - , mas fora descoberto rindo dela pelo próprio Ned, o qual - em uma rara demonstração de masculinidade - dera um soco no nariz de William. A rixa resultante esvaziou os alojamentos dos jovens oficiais, quebrou alguns itens sem importância do mobiliário e resultou em William, o sangue pingando na camisa, em posição de sentido em frente a um frio capitão Pickering, o obsceno desenho à mostra sobre a escrivaninha.
William, naturalmente, negou a autoria do desenho, mas recusou-se a identificar o artista. Usou o truque da cortesia fria, que funcionou a ponto de Pickering não precisar de fato enviar William para a detenção. Apenas para Long Island.
- Desgraçado filho da mãe - murmurou, olhando fixamente para a mulher do leite com tanta ferocidade que ela parou abruptamente, depois avançou pouco a pouco, de lado, para passar por ele, olhando-o com os olhos tão arregalados que parecia achar que William poderia explodir a qualquer instante. Ele arreganhou os dentes para ela, que emitiu um guincho agudo e fugiu precipitadamente, entornando um pouco do leite dos baldes que carregava em uma canga sobre os ombros.
Isso o deixou com remorso; teve vontade de ir atrás dela e pedir desculpas. Mas não podia; uma dupla de tropeiros descia a estrada em sua direção, trazendo um rebanho de porcos. William deu uma olhada na multidão de porcos malhados que se aproximava, roncando e guinchando, enlameados e de orelhas rasgadas, e saltou agilmente para cima do balde invertido que servia como seu posto de comando. Os tropeiros acenaram alegremente para ele, gritando o que podiam ser saudações ou insultos - ele não tinha nem certeza se estavam falando inglês, e não se importava em descobrir.
Os porcos passaram, deixando-o no meio de um mar de lama remexida pelos cascos dos animais e fartamente coberta de fezes frescas. Deu tapas na nuvem de mosquitos que voltara a se reunir inquiridoramente ao redor de sua cabeça, e achou que já aguentara o suficiente. Estava em Long Island há duas semanas - o que significava treze dias e meio. Mas ainda não era tempo suficiente para fazê-lo se desculpar nem ao Sem Queixo, nem ao capitão.
- Puxa-saco - murmurou. Mas ele tinha uma alternativa. E quanto mais tempo ele passava ali com os mosquitos, mais atraente ela lhe parecia.
Era uma cavalgada longa demais de seu posto avançado de alfândega até os alojamentos para fazer a viagem duas vezes por dia. Em consequência, ele ficara temporariamente alojado com um homem chamado Culper e suas duas irmãs. Culper não ficou nada satisfeito; seu olho esquerdo começava a tremer sempre que ele via William, mas as duas irmãs mais velhas o tratavam muito bem e ele retribuía o favor sempre que podia, levando para elas um ou outro presunto ou peça de cambraia confiscados. Quando chegara, na noite anterior, com uma boa manta de toucinho, a srta. Abigail o informara de que ele tinha uma visita.
- Está lá fora, no pátio, fumando - ela disse, inclinando a cabeça coberta pela touca na direção do lado da casa. - Acho que minha irmã não o deixou fumar dentro de casa.
Ele esperara encontrar um de seus amigos, que viera lhe fazer companhia ou talvez com notícias de um perdão oficial que o tiraria do exílio em Long Island. Em vez disso...encontrara o capitão Richardson, cachimbo na mão, pensativamente observando o galo dos Culper galando uma galinha.
- Prazeres da vida bucólica - o capitão observou quando o galo caiu para trás. O galo cambaleou sobre os pés e cantou em desgrenhado triunfo, enquanto a galinha sacudiu-se para arrumar as penas e continuou a ciscar como se nada houvesse acontecido. - Muito tranquilo aqui, hein?
- Oh, sim - William disse. - Às suas ordens, senhor. Na verdade, não era. A srta. Beulah Culper criava meia dúzia de cabras, que baliam dia e noite, apesar de ela assegurar a William que as cabras serviam para manter os gatunos longe do armazém de milho. Uma das criaturas a essa altura deu um balido selvagem de seu cercado, fazendo o capitão Richardson deixar cair sua bolsa de tabaco.
William abaixou-se e pegou a bolsa, mantendo o rosto taticamente impassível, apesar de seu coração estar batendo com força. Richardson não viera até Long Island simplesmente para matar o tempo.
- Nossa! - Richardson murmurou, lançando um olhar para as cabras. Sacudiu a cabeça e indicou a estrada. - Quer caminhar um pouco comigo, tenente?
William queria, com prazer.
- Ouvi falar de sua atual situação. - Richardson sorriu. - Darei uma palavra com o capitão Pickering, se quiser.
- É muita gentileza sua, senhor - William disse. - Mas receio que não possa me desculpar por algo que não fiz.
Richardson abanou o cachimbo, descartando o assunto.
- Pickering se irrita à toa, mas não guarda rancor. Cuidarei disso.
- Obrigado, senhor. - E o que deseja em troca?, William pensou.
- Há um capitão Randall-Isaacs - Richardson disse despretensiosamente - que está viajando este mês para o Canadá, onde tem assuntos militares a tratar. Mas enquanto estiver lá é possível que ele vá se encontrar com... uma certa pessoa que pode fornecer informações valiosas ao exército. No entanto, tenho motivos para acreditar que essa pessoa quase não fala inglês, e o capitão Randall-Isaacs não sabe nada de francês. Um companheiro de viagem fluente nessa língua pode ser... útil.
William assentiu, mas não fez nenhuma pergunta. Haveria tempo suficiente, se resolvesse aceitar a incumbência de Richardson.
Trocaram conversas banais durante o restante da caminhada de volta, quando então Richardson educadamente recusou o convite da srta. Beulah para jantar e partiu com a reiterada promessa de falar com o capitão Pickering.
Deveria fazer o que ele lhe pedia?, William se perguntou mais tarde, ouvindo os roncos de Abel Culper no térreo. Era lua cheia e, apesar de o sótão não ter janelas, podia sentir sua influência. Ele nunca conseguia dormir na lua cheia.
Ele deveria permanecer em Nova York, na esperança tanto de melhorar sua posição quanto ao menos de finalmente ver alguma ação? Ou cortar os prejuízos e aceitar a nova missão de Richardson?
Seu pai certamente aconselharia a primeira opção; a melhor chance de um oficial progredir e ser notado estava em se distinguir em combate, não no reino sombrio - e ligeiramente mal-afamado - da espionagem. Ainda assim... A rotina e as restrições do exército irritavam um pouco, após suas semanas de liberdade. E ele fora útil, sabia disso.
Que diferença um tenente poderia fazer, soterrado sob o peso esmagador das patentes acima dele, talvez tendo o comando de suas próprias companhias, mas ainda obrigado a seguir ordens, sem nunca ter permissão de agir segundo seu próprio discernimento.... Abriu um largo sorriso em direção às vigas do telhado, indistintas a uns trinta centímetros acima de seu rosto, pensando no que seu tio Hal teria a dizer em relação ao discernimento de oficiais jovens.
Mas tio Hal era muito mais do que simplesmente um soldado de carreira; preocupava-se apaixonadamente por seu regimento: seu bem-estar, sua honra, os homens sob seu comando. William, na realidade, não pensara além de seu futuro imediato em termos de sua própria carreira no exército. A campanha americana não demoraria muito; o que viria depois?
Ele era rico - ou seria, quando atingisse a maioridade, e isso não estava longe, embora parecesse um daqueles quadros de que seu pai gostava, com uma perspectiva evanescente que conduzia o olhar a um infinito impossível. Mas quando ele de fato tivesse dinheiro poderia comprar um cargo melhor onde quisesse - talvez um cargo de capitão nos Lanceiros... Não faria diferença se ele tivesse feito ou não alguma coisa para se destacar em Nova York.
Seu pai - William podia ouvi-lo agora, e colocou o travesseiro sobre o rosto para abafar sua voz - lhe diria que a reputação geralmente dependia dos menores atos, das decisões diárias tomadas com honra e responsabilidade, e não do grandioso drama das batalhas heroicas. William não estava interessado em responsabilidade diária.
Uma semana depois, as noites haviam se tornado suficientemente frias para fazer William apreciar a lareira da srta. Beulah e sua sopa de ostras - graças a Deus, fazia frio suficiente para desencorajar os malditos mosquitos. No entanto, os dias ainda eram bastante quentes e William achou quase um prazer quando seu destacamento foi instruído a vasculhar o litoral em busca do esconderijo de víveres de um suposto contrabandista de que o capitão Hanlçs ouvira falar.
- Um esconderijo de quê? - Perkins perguntara, a boca semiaberta como sempre.
- Lagostas - William respondera jocosamente, mas abrandou diante do olhar confuso de Perkins. - Não sei, mas provavelmente você o reconhecerá se o encontrar. Mas não beba, venha me buscar.
Os barcos dos contrabandistas traziam quase tudo para Long Island, mas as chances dos boatos recentes referentes a uma carga escondida de lençóis e cobertas de cama ou caixas de travessas holandesas serem verdade eram pequenas. Devia ser conhaque, talvez cerveja, mas era quase certo que fosse alguma bebida; as bebidas eram, de longe, o contrabando mais lucrativo. William dividiu os homens em duplas e os despachou, observando-os até estarem a uma distância razoável antes de soltar um profundo suspiro e recostar-se em uma árvore.
As árvores que cresciam ali perto da praia eram pinheiros nanicos e retorcidos, mas o vento do mar soprava agradavelmente entre as agulhas, sussurrando em seus ouvidos com um zumbido tranquilizador. Suspirou outra vez, desta vez de prazer, lembrando-se do quanto gostava da solidão; não tivera nenhuma em um mês. Mas se aceitasse a oferta de Richardson... Bem, haveria RandallIsaacs, é claro, mas ainda assim - semanas na estrada, livre das restrições do dever e da rotina do exército. Silêncio para pensar. Nada mais de Perkins! Imaginou se ele poderia se infiltrar nos alojamentos dos oficiais novos e socar Sem Queixo até ele se transformar numa polpa ensanguentada, antes de desaparecer no mato como um pele-vermelha. Ele deveria usar um disfarce? Não se esperasse até escurecer, decidiu. Ned poderia suspeitar, mas não poderia provar nada se não pudesse ver o rosto de William. Mas seria um ato covarde atacar Ned durante o sono? Tudo bem, então; iria encharcar Sem Queixo com o conteúdo de seu urinol para acordá-lo, antes de começar a surrá-lo.
Uma andorinha-do-mar fez um voo rasante a poucos centímetros de sua cabeça, arrancando-o dessas agradáveis cogitações. Seu movimento, por sua vez, assustou o pássaro, que soltou um grito indignado ao descobrir que ele, afinal, não era comestível, e disparou em direção ao mar. Ele pegou um cone de pinho e atirou-o no pássaro, errando completamente, mas sem se importar. Enviara um bilhete a Richardson nesta mesma noite, dizendo sim. A lembrança fez seu coração bater mais rápido e uma sensação de contentamento dominou-o, animada como o voo do pássaro cortando o ar.
Limpou a areia dos dedos nas pernas, em seguida endireitou-se, vendo movimento na água. Uma chalupa virava de um lado para o outro, logo depois da arrebentação. Então, relaxou, ao reconhecê-la - aquele bandido do Rogers.
- E o que você está fazendo aqui, se posso saber? - ele murmurou. Saiu para a faixa de areia do litoral e ficou no meio do feno-das-areias, os punhos sobre os quadris, deixando que seu uniforme fosse visto - para o caso de Rogers ter deixado de ver os homens de William espalhados pela costa arenosa, pontos vermelhos arrastando-se pelas dunas como percevejos. Se Rogers também tivesse ouvido falar do esconderijo do contrabandista, William pretendia se certificar de que Rogers soubesse que os soldados de William tinham direitos sobre a mercadoria.
Robert Rogers era um personagem nebuloso que chegara sorrateiramente a Nova York alguns meses atrás e de algum modo conseguira uma patente de major do general Howe e uma chalupa de seu irmão, o almirante. Dizia ser um guerreiro indígena e ele mesmo gostava de se vestir de índio. No entanto, era eficaz: recrutara homens suficientes para formar dez companhias de batedores garbosamente uniformizados, mas Rogers continuava a andar a esmo pelo litoral em sua chalupa com uma pequena companhia de homens de aspecto tão infame quanto ele, à procura de recrutas, espiões, contrabandistas e - William estava convencido - qualquer oportunidade de negócio. A chalupa se aproximou um pouco mais e ele viu Rogers no convés: um homem moreno, perto dos cinquenta anos, enrugado e acabado, com um olhar maligno. Ele avistou William e acenou alegremente. William ergueu a mão civilizadamente, em resposta; se seus homens achassem alguma coisa, ele poderia precisar de Rogers para carregar o espólio de volta para o lado de Nova York - acompanhado de um guarda para impedir que desaparecesse no caminho.
Havia muitas histórias sobre Rogers - algumas claramente espalhadas pelo próprio Rogers. Mas até onde William sabia, a principal qualificação do sujeito era a de que ele havia, em certo momento, tentado fazer uma visita de cortesia ao general Washington, que não só se recusara a recebê-lo, como mandara que ele fosse retirado sem a menor cerimônia do acampamento dos continentais e proibido de entrar outra vez. William considerou isso uma prova de boa capacidade de discernimento por parte do virginiano.
E agora? A chalupa abaixara as velas e descera um pequeno bote. Era Rogers, remando sozinho. A desconfiança de William aumentou instantaneamente. Ainda assim, vadeou para dentro do mar e agarrou a borda da embarcação, ajudando Rogers a arrastar o bote para a areia.
- Prazer em vê-lo, tenente! - Rogers riu para ele, com falhas nos dentes, mas confiante. William cumprimentou-o rápida e formalmente.
- Major. - Por acaso seus homens estão à procura de uma carga contrabandeada de vinho francês?
Droga, ele já a encontrara!
- Tivemos informação de atividades de contrabando ocorrendo nesta região - William disse, reservadamente. - Estamos investigando.
- Claro - Rogers concordou afavelmente. - Quer poupar tempo? Tente para o outro lado... - Virou-se, levantando o queixo na direção de um aglomerado de dilapidadas cabanas de pesca, a uns quatrocentos metros de distância. - Está...
- Já fizemos isso - William interrompeu-o.
- Está enterrada na areia atrás das cabanas - Rogers terminou, ignorando a interrupção.
- Muito obrigado, major - William disse, com tanta cordialidade quanto conseguiu reunir.
- Vi dois sujeitos enterrando-a ontem à noite - Rogers explicou. Mas não creio que já tenham voltado para pegá-la.
- Vejo que está fiscalizando esta extensão da praia - William observou. - Está procurando algo em particular? Senhor - acrescentou.
Rogers sorriu.
- Já que mencionou isso, senhor, estou. Há um sujeito andando por aí, fazendo perguntas de um tipo muito curioso e eu gostaria muito de falar com ele. Se você ou seus homens detectarem o sujeito...
- Sem dúvida, senhor. Sabe seu nome ou sua aparência?
- Na verdade, ambos - Rogers respondeu prontamente. - Um sujeito alto, com cicatrizes no rosto de uma explosão de pólvora. Você o reconheceria se o visse. Um rebelde, de uma família de rebeldes de Connecticut. Seu nome é Hale. William sentiu um tranco repentino no abdômen. - Oh, então você o viu? - Roger falou afavelmente, mas seus olhos escuros se aguçaram. William sentiu uma ponta de aborrecimento pelo fato de seu rosto poder ser lido tão facilmente, mas balançou a cabeça.
- Ele passou pela alfândega ontem. Um sujeito muito loquaz - acrescentou, tentando se recordar dos detalhes do sujeito. Ele notara as cicatrizes: vergões desbotados que marcavam suas faces e testa. - Nervoso, ele suava e sua voz tremia. O soldado que o parou pensou que ele tivesse tabaco ou alguma outra coisa escondida, e o fez esvaziar os bolsos, mas ele não tinha nenhum contrabando. - William fechou os olhos, franzindo a testa no esforço para se lembrar. - Tinha papéis... eu os vi. - Ele havia realmente visto os papéis, mas não tivera oportunidade de examiná-los, pois estava preocupado com um comerciante que trazia uma carroça de queijos, destinados, segundo dissera, ao comissário britânico. Quando ele terminou com este, o outro homem já havia sido dispensado.
- O homem que falou com ele... - Rogers espreitava ao longo da praia, na direção dos desconexos investigadores ao longe. - Qual deles?
- Um soldado chamado Hudson. Eu o chamarei para você, se quiser - William propôs. - Mas duvido que ele possa lhe dizer muito sobre os papéis; ele não sabe ler.
Rogers pareceu decepcionado, mas fez sinal para que William realmente chamasse Hudson mesmo assim. Tendo sido convocado, Hudson corroborou o relato de William sobre a questão, mas não conseguiu se lembrar de nada a respeito dos papéis, salvo que uma das folhas tinha alguns números.
- E um desenho, eu acho - ele acrescentou. - Mas receio não ter notado o que era, senhor.
- Números, hein? Ótimo, ótimo - Rogers disse, esfregando as mãos. - E ele disse para onde estava indo?
- Visitar um amigo, senhor, que vivia perto de Flushing. - Hudson mostrava-se respeitoso, mas olhava para o batedor com curiosidade; Rogers estava descalço e vestia calças de linho esfarrapadas, com um colete curto, feito de pele de rato almiscarado. - Não perguntei o nome do amigo, senhor. Não sabia que era importante.
- Oh, duvido que seja, soldado. Duvido até que esse amigo exista mesmo. - Rogers deu uma risadinha abafada, parecendo encantado com as notícias. Olhou fixamente para o horizonte enevoado, os olhos apertados como se pudesse distinguir o espião entre as dunas, e balançou a cabeça devagar, satisfeito. - Muito bem - disse suavemente, como se falasse consigo mesmo, e já se virava para ir embora quando William o fez parar.
- Muito obrigado pelas informações sobre o esconderijo do contrabando, senhor. - Perkins supervisionara a escavação enquanto William e Rogers falavam com Hudson, e agora gritava, incentivando um pequeno grupo de soldados, vários barris cobertos de areia rolando pelas dunas à frente deles. Um dos barris bateu em alguma pedra dentro da areia, ricocheteou no ar e caiu com força, rolando em um ângulo torto e perseguido com gritos pelos soldados.
William encolheu-se ligeiramente, ao ver o que acontecia. Se o vinho sobrevivesse ao resgate, não seria bebível por quinze dias. Não que isso fosse impedir alguém de tentar.
- Eu gostaria de solicitar permissão para levar o contrabando apreendido a bordo de sua chalupa para transporte - ele disse formalmente a Rogers. - Eu mesmo o acompanharei e entregarei, é claro.
- Oh, claro. - Rogers pareceu achar graça, mas assentiu. Coçou o nariz, pensativo. - Nós só devemos zarpar de volta amanhã. Quer nos acompanhar esta noite? Você pode ser de muita ajuda, já que de fato viu o sujeito que estamos buscando.
O coração de William deu um salto de empolgação. O ensopado da srta. Beulah perdia o interesse em comparação à perspectiva de ir atrás de um espião perigoso. E estar presente na captura só poderia fazer bem à sua reputação, mesmo que a maior parte dos créditos fosse de Rogers.
- Teria imenso prazer em ajudá-lo, senhor! Roger abriu um largo sorriso, depois o examinou de alto a baixo. - Ótimo. Mas não pode ir atrás de um espião vestido deste modo, tenente. Venha a bordo e nós o vestiremos adequadamente.
Como se verificou, William era quinze centímetros mais alto do que o homem mais alto da tripulação de Rogers e, assim, terminou estranhamente vestido com uma camisa de linho grosso com as abas tremulando - as abas tendo sido deixadas para fora das calças por necessidade, para disfarçar o fato de que os botões superiores de sua braguilha foram deixados desabotoados - e calças de lona que ameaçavam capá-lo a qualquer movimento repentino. Elas não podiam, é claro, ser afiveladas, e William decidiu imitar Rogers e ficar descalço, em vez de sofrer a indignidade de meias de listras que deixavam seus joelhos e dez centímetros de perna cabeluda expostos entre o topo das meias e as calças.
A chalupa velejara para Flushing, onde Rogers, William e mais quatro homens desembarcaram. Rogers mantinha um posto de recrutamento informal ali, na sala dos fundos da loja de um mercador na rua alta do vilarejo. Ele desapareceu dentro desse estabelecimento momentaneamente, retornando com a notícia animadora de que Hale não fora visto em Flushing e provavelmente estava hospedado em uma das duas tavernas existentes em Elmsford, a uns quatro quilômetros da vila.
Assim sendo, os homens caminharam naquela direção, dividindo-se por cautela em grupos menores, de modo que William viu-se caminhando com Rogers, um cachecol esfarrapado em volta dos ombros contra o frio da noite. Ele não havia feito a barba, é claro, e achou que parecia um companheiro adequado para o batedor, que acrescentara ao seu traje um chapéu desabado COM um peixe-voador seco enfiado na aba.
- Fingimos ser pescadores de ostras? Ou fundidores, talvez? - William perguntou. Rogers grunhiu achando graça e sacudiu a cabeça.
- Você não passaria por nenhum dos dois, se alguém o ouvisse falar. Não, garoto, fique de boca fechada, a não ser para colocar alguma coisa dentro dela. Os meninos e eu trataremos do assunto. Tudo que tem a fazer é balançar a cabeça, se avistar Hale.
O vento viera para a terra firme e soprava o cheiro de pântanos frios na direção deles, temperado com uma alusão distante de fumaça de chaminé. Não havia ainda nenhuma moradia à vista e a paisagem evanescente era desolada à sua volta. Mas a terra fria e arenosa da estrada era confortável sob seus pés descalços e ele não achava a desolação do ambiente nem um pouco deprimente; estava ansioso demais pelo que os aguardava.
Rogers permanecia em silêncio a maior parte do tempo, andando com a cabeça abaixada contra a brisa fria. Após algum tempo, entretanto, ele disse descontraidamente:
- Eu transportei o capitão Richard de Nova York. E de volta. William pensou momentaneamente em dizer "Capitão Richardson?" em tom de educada ignorância, mas percebeu a tempo que isso não daria certo.
- É mesmo? - disse, mantendo seu próprio silêncio. Rogers riu. - Um sujeito dissimulado, hein? Talvez ele tenha razão, então, em escolhê-lo.
- Ele lhe disse que havia me escolhido para... alguma coisa?
- Bom rapaz. Nunca revele nada de graça, mas às vezes vale a pena lubrificar um pouco as rodas. Não, Richardson é ladino, ele não disse nem uma palavra a seu respeito. Mas eu sei quem ele é e o que faz. E sei onde eu o deixei. Ele não estava fazendo uma visita aos Culper, posso lhe garantir.
William fez um som indeterminado de interesse na garganta. Obviamente, Rogers pretendia dizer alguma coisa. Que dissesse, então.
- Que idade você tem, rapaz?
- Dezenove - William disse, com certa aspereza. - Por quê? Rogers deu de ombros, seu perfil pouco mais de uma sombra entre muitas na penumbra cada vez mais densa.
- Com idade suficiente para arriscar o pescoço de propósito, então. Mas você pode querer pensar duas vezes antes de dizer sim a qualquer sugestão que Richardson lhe faça.
- Presumindo que ele de fato tenha sugerido alguma coisa... novamente, por quê?
Rogers tocou em suas costas, instando-o a prosseguir.
- Você está prestes a descobrir isso por conta própria, rapaz. Vamos.
A luz quente e enfumaçada da taverna e o cheiro de comida envolveram William. Ele não estivera realmente consciente de frio, escuridão ou fome, sua mente estando concentrada na aventura prestes a acontecer. Agora, entretanto, ele inspirou longa e profundamente o ar pleno do aroma de pão fresco e galinha assada, e sentiu-se como um cadáver insensível, recém-despertado do túmulo e restaurado à vida no dia da Ressurreição.
A respiração seguinte, entretanto, parou em sua garganta, e seu coração apertou-se de tal forma que lançou uma onda de sangue pelo seu corpo. Rogers, ao seu lado, fez um zumbido grave de alerta na garganta e olhou descontraidamente ao redor do salão conforme liderava o caminho para uma mesa.
O homem, o espião, estava sentado junto ao fogo, comendo galinha e conversando com dois fazendeiros. A maioria dos homens na taverna havia olhado para a porta quando os recém-chegados entraram - mais de um deles pestanejou ao ver William - , mas o espião estava tão absorto em sua comida e na conversa que nem sequer ergueu os olhos.
William quase não notara o sujeito quando o vira pela primeira vez, mas o teria reconhecido imediatamente ao vê-lo outra vez. Não era tão alto quanto o próprio William, porém vários centímetros mais alto do que a maioria, e com uma aparência surpreendente, com cabelos louros e testa alta, assim exibindo as cicatrizes do acidente com pólvora que Rogers mencionara. Usava um chapéu redondo, de abas largas, deixado sobre a mesa ao lado de seu prato, e um traje marrom simples e discreto.
Sem uniforme... William engoliu com força, não inteiramente por causa de sua fome ou do cheiro de comida.
Rogers sentou-se à mesa seguinte, indicando um banquinho à sua frente para que William se sentasse, e levantou as sobrancelhas em uma pergunta. William balançou a cabeça silenciosamente, mas não olhou novamente na direção de Hale.
O proprietário da taverna trouxe comida e cerveja, e William dedicou-se a comer, satisfeito por não ter que se juntar à conversa. O próprio Hale estava relaxado e loquaz, contando a seus companheiros que era um professor holandês de Nova York.
- Mas a situação lá está tão tumultuada - ele disse, sacudindo a cabeça - que a maior parte dos meus alunos foi embora, fugiram com suas famílias para a casa de parentes em Connecticut ou Nova Jersey. Imagino que as condições aqui sejam similares, ou até piores, não?
Um dos homens à sua mesa apenas grunhiu, mas o outro soltou um assovio sarcástico.
- Pode-se dizer que sim. Os malditos casacos-vermelhos confiscam tudo que não está enterrado. Tory, whig ou rebelde, não faz nenhuma diferença para esses filhos da mãe gananciosos. Fale uma palavra de protesto e é provável que receba um golpe na cabeça e seja arrastado para a maldita paliçada, para ficar mais fácil para eles. Ora, um brutamontes me parou no posto da alfândega na semana passada e confiscou toda a minha carga de sidra e minha carroça ainda por cima! Ele...
William engasgou-se em uma mordida de pão, mas não ousou tossir. Santo Deus, ele não havia reconhecido o sujeito - ele estava de costas para William - , mas se lembrou muito bem da sidra. Brutamontes?
Pegou sua cerveja e bebeu, tentando deslocar o pedaço de pão; não funcionou e ele tossiu discretamente, sentindo o rosto ficar roxo e vendo Rogers franzir o cenho para ele, consternado. Ele gesticulou debilmente para o fazendeiro da sidra, bateu no próprio peito e, levantando-se, caminhou para fora do salão o mais silenciosamente possível. Seu disfarce, apesar de excelente, não esconderia de modo algum seu tamanho e, se o sujeito o reconhecesse como um soldado britânico, toda a missão iria por água abaixo.
Ele conseguiu não respirar até estar a salvo do lado de fora, onde tossiu até achar que o fundo do seu estômago iria sair pela boca. Finalmente parou e recostou-se na parede lateral da taverna, respirando em longas arfadas. Lamentou não ter tido a presença de espírito de trazer um pouco de cerveja com ele, em vez da perna de frango que segurava.
Os últimos homens de Rogers desceram a rua e, com um olhar desconcertado para William, entraram na taverna. Ele limpou a boca com as costas da mão e, endireitando-se, deu a volta furtivamente pelo lado do prédio até alcançar uma janela.
Os recém-chegados tomavam seu próprio lugar, próximo à mesa de Hale. Cuidadosamente de lado para não ser percebido, ele viu que Rogers agora se insinuara na conversa com Hale e os dois fazendeiros, e parecia estar contando uma piada. O sujeito da sidra apupou e bateu na mesa ao final; Hale esboçou um sorriso forçado, mas pareceu francamente chocado; o gracejo deve ter sido indelicado.
Rogers reclinou-se para trás, descontraidamente incluindo toda a mesa com um amplo gesto da mão, e disse algo que os fez balançar a cabeça e murmurar em concordância. Em seguida, ele se inclinou para frente, decidido, para perguntar alguma coisa a Hale.
William só conseguia captar trechos da conversa, acima do barulho geral da taverna e do zumbido do vento frio pelas suas orelhas. Até onde pôde compreender, Rogers se professava um rebelde, seus próprios homens balançando a cabeça em confirmação de onde estavam em sua mesa, aproximando-se para formar grupo reservado ao redor de Hale. Este parecia atento, empolgado e muito convicto. Ele podia se fazer passar facilmente por um professor, William pensou - apesar de Rogers ter dito que ele era um capitão do Exército Continental. William sacudiu a cabeça, Hale não parecia nada com um soldado.
Ao mesmo tempo, ele também não se parecia nada com um espião. Ele se fazia notar, com sua boa aparência, seu rosto marcado, sua... altura.
William sentiu um nó pequeno e frio na boca do estômago. Santo Deus. Foi isso que Rogers quis dizer, quando ressaltou que havia algo com que William devia ter cuidado, em relação às missões do capitão Richardson, e que ele veria por si mesmo esta noite?
William estava acostumado tanto com sua própria altura quanto com as reações automáticas das pessoas a ela; ele até gostava que tivessem que erguer os olhos para olhar para ele. Mas em seu primeiro trabalho para o capitão Richardson nunca lhe ocorrera que as pessoas poderiam se recordar dele por causa de sua altura - ou que pudessem descrevê-lo com grande facilidade. Brutamontes não era nenhum elogio, mas era inequívoco.
Com uma sensação de incredulidade, ele ouviu Hale não só revelar o próprio nome e o fato de ser simpatizante dos rebeldes, como também confidenciar que estava fazendo observações concernentes à força da presença britânica - isso seguido de uma convicta indagação quanto aos sujeitos com quem falava terem notado algum soldado casaco-vermelho na região.
William ficou tão chocado com essa imprudência que espreitou pela borda da janela, a tempo de ver Rogers olhar ao redor do salão com exagerada cautela antes de inclinar-se para frente confidencialmente, dando um tapinha no braço de Hale e dizendo:
- Ora, bem, senhor, foi o que eu fiz, realmente eu fiz, mas o senhor deve tomar mais cuidado com o que diz em locais públicos. Ora, qualquer um pode ouvi-lo!
- Há! - disse Hale, rindo. - Estou entre amigos aqui. Não acabamos de brindar ao general Washington e à confusão do rei? - Ficando sério, mas ainda entusiasmado, ele empurrou o chapéu para o lado e acenou para o dono pedindo mais cerveja. - Venha, senhor, tome mais uma cerveja e conte-me o que andou vendo.
William teve um impulso repentino e irresistível de gritar "Cale a boca, seu idiota!" ou atirar alguma coisa em Hale através da janela. Mas era tarde demais, mesmo que de fato pudesse ter feito isso. A perna de frango que estivera comendo ainda estava em sua mão; percebendo, jogou-a fora. Seu estômago estava embrulhado e sentia um gosto ruim no fundo da garganta, embora seu sangue ainda fervesse de adrenalina.
Hale fazia confissões ainda mais prejudiciais diante das exclamações de encorajamento e gritos patrióticos dos homens de Rogers, todos os quais representavam seus papéis admiravelmente, ele tinha que admitir. Por quanto tempo ainda Rogers deixaria aquilo continuar? Iria prendê-lo ali, na taverna? Provavelmente não - alguns dos demais presentes eram sem dúvida simpatizantes dos rebeldes, que poderiam se sentir motivados a intervir em favor de Hale, caso Rogers tentasse prendê-lo ali entre eles.
Rogers não parecia ter nenhuma pressa. Quase meia hora de tediosos gracejos se seguiu, Rogers dando o que pareciam ser pequenas confirmações, Hale por sua vez fazendo outras muito maiores, as faces magras e planas brilhando da cerveja e da empolgação com as informações que ele estava obtendo. O rosto, as pernas, pés e mãos de William ficaram dormentes e seus ombros doíam de tensão. Um ruído próximo desviou sua atenta observação da cena que se desenrolava dentro da taverna e ele olhou para baixo, repentinamente consciente de um cheiro penetrante que de alguma forma havia se insinuado sem seu conhecimento.
- Meu Deus! - Deu um salto para trás, quase enfiando o cotovelo pela janela, e bateu na parede da taverna com uma forte pancada. O gambá, perturbado no deleite da perna de frango descartada, instantaneamente ergueu a cauda, a lista branca tornando o movimento claramente visível. William ficou paralisado.
- O que foi isso? - alguém disse lá dentro, e ele ouviu o barulho de um banco sendo empurrado para trás. Prendendo a respiração, deslizou um pé para o lado, apenas para ficar paralisado outra vez pelo som de uma leve batida e o estremecimento da lista branca. Droga, o animal estava batendo os pés. Uma indicação de ataque iminente, haviam lhe dito - e dito por pessoas cujo estado lamentável deixava claro que falavam por experiência própria.
Pés se aproximavam da porta, alguém vindo investigar. Santo Deus, se o encontrassem ouvindo às escondidas do lado de fora... Rangeu os dentes, preparando-se para o que o dever lhe dizia que deveria ser um salto de autossacrifício para longe da vista de qualquer um - mas, se o fizesse, o que aconteceria? Não poderia se reunir a Rogers e os demais fedendo a gambá. Mas se...
A abertura da porta colocou um ponto final em suas especulações. William arremessou-se para a esquina do prédio por simples reflexo. O gambá também agiu por reflexo - mas, espantado com a abertura da porta, aparentemente reajustou sua pontaria. William tropeçou em um galho e estatelou-se em um monte de detritos, ouvindo um berro atrás dele conforme a noite ficava insuportável.
William tossiu, engasgou-se e tentou parar de respirar o tempo suficiente para ficar fora de alcance. Mas foi obrigado a arfar e seus pulmões encheram-se de uma substância tão além do conceito de cheiro que requeria uma descrição sensorial inteiramente nova. Tossindo e cuspindo, os olhos ardendo e lacrimejando do ataque, ele entrou aos tropeções na escuridão do outro lado da rua, de cuja posição vantajosa testemunhou o gambá fugindo ofendido e a vítima desmoronada no degrau da taverna, fazendo ruídos de extrema aflição.
William esperava que não fosse Hale. Além das dificuldades práticas envolvidas na prisão e transporte de um homem que sofrera um ataque de gambá, a simples compaixão humana compelia uma pessoa a pensar que enforcar a vítima seria acrescentar insulto à injúria.
Não era Hale. Ele viu os cabelos louros brilhando à luz da tocha entre as cabeças que se projetaram para fora, curiosas, e apressadamente se recolheram outra vez.
Vozes chegavam até ele, discutindo a melhor providência a tomar. Vinagre, concordaram, era necessário, e em grande quantidade. A vítima agora já havia se recobrado o suficiente para se arrastar para o meio do mato, de onde sons de violentas ânsias de vômito se seguiram. Isso, acrescido ao fedor que ainda pairava no ar, fez com que vários cavalheiros vomitassem também, e o próprio William sentiu uma ânsia de vômito, que reprimiu apertando cruelmente o nariz.
Ele estava enregelado, embora felizmente ventilado, quando os amigos da vítima o acompanharam para longe dali - conduzindo-o como a uma vaca ao longo da estrada, já que ninguém se dispunha a tocá-lo - e a taverna se esvaziou, ninguém tendo mais apetite para comida nem bebida em tal ambiente. Pôde ouvir o proprietário praguejando consigo mesmo quando se inclinou para fora e retirou a tocha que ardia ao lado do letreiro pendurado e a mergulhou, chiando, no barril de coleta de água da chuva.
Hale despediu-se com um boa-noite geral, a voz educada distinta na escuridão, e partiu pela estrada em direção a Flushing, onde sem dúvida pretendia buscar uma cama. Rogers - William reconheceu-o pelo colete de pele, identificável até à luz das estrelas - demorou-se ao lado da estrada, silenciosamente reunindo seus homens ao seu redor, enquanto a multidão se dispersava. Somente quando todos já estavam fora de vista é que William aventurou-se a se unir a eles.
- Sim? - Rogers disse, ao vê-lo. - Todos presentes, então. Vamos. - E partiram, um bando silencioso descendo a estrada, atentos à pista de sua presa desavisada.
Viram as chamas da água. A cidade ardia, particularmente o bairro perto do East River, mas o vento soprava e o fogo se espalhava. Houve muita especulação agitada entre os homens de Rogers; os simpatizantes dos rebeldes teriam incendiado a cidade?
- Mais provável que sejam soldados bêbados - Rogers disse, a voz implacavelmente desapaixonada. William sentiu-se nauseado ao ver o clarão vermelho no céu. O prisioneiro permaneceu em silêncio.
Encontraram o general Howe, por fim, em seu quartel-general em Beekman House, fora da cidade, os olhos vermelhos da fumaça, da falta de sono e de uma raiva enterrada fundo em suas entranhas. Entretanto, ela permaneceu lá, por enquanto. Ele convocou Rogers e o prisioneiro à biblioteca onde tinha seu escritório e - após um rápido e espantado olhar aos trajes de William - mandou-o ir dormir.
Fortnum estava no sótão, vendo a cidade queimar da janela. Não havia nada a fazer. William postou-se a seu lado. Sentia-se estranhamente vazio, de certo modo fora do mundo real. Enregelado, apesar do assoalho aquecido sob seus pés descalços.
De vez em quando, um ou outro jato de fagulhas lançava-se para o alto, quando as chamas atingiam algo particularmente inflamável, mas de tal distância na verdade pouco podia ser visto, fora o maldito clarão contra o céu.
- Vão nos culpar, sabe - Fortnum disse após algum tempo.
O ar ainda estava carregado de fumaça ao meio-dia da manhã seguinte.
Ele não conseguia tirar os olhos das mãos de Hale. Elas haviam se fechado involuntariamente quando um soldado as amarrou, embora ele as tivesse colocado para trás sem nenhum protesto. Agora seus dedos estavam entrelaçados, com tanta força que as juntas ficaram brancas.
Certamente a carne protestava, William pensou, mesmo que a mente se resignasse. Sua própria carne protestava simplesmente por estar ali, a pele crispando-se como a de um cavalo flagelado por moscas, seus intestinos contraindo-se e relaxando em terrível solidariedade - diziam que os intestinos de um enforcado se soltavam; aconteceria com os de Hale? O sangue inundou seu rosto diante do pensamento e ele olhou para o chão.
Vozes o fizeram erguer os olhos outra vez. O capitão Moore acabara de perguntar a Hale se ele queria fazer alguma declaração. Hale balançou a cabeça; evidentemente, estava preparado para isso.
William sentiu que ele próprio já devia estar preparado a essa altura; Hale passara as últimas duas horas na barraca do capitão Moore, escrevendo bilhetes a serem entregues à sua família, enquanto os homens reunidos para a apressada execução mudavam o peso de um pé para o outro, aguardando. Ele não estava nem um pouco preparado.
Por que era diferente? Já vira muitos homens morrerem, alguns de forma terrível. Mas esta cortesia preliminar, esta formalidade, esta... civilidade obscena, tudo conduzido com a certeza da morte iminente e vergonhosa. Deliberação. A terrível deliberação, era isso.
- Finalmente! - Clarewell murmurou em seu ouvido. - É melhor acabarem logo com isso, estou morrendo de fome.
Mandaram um jovem negro chamado Billy Richmond, um soldado que William conhecia superficialmente, subir em uma escada e amarrar a corda na árvore. Ele desceu agora e fez um sinal com a cabeça para o oficial.
Hale começou a subir a escada, o sargento-ajudante amparando-o. O laço estava em volta de seu pescoço, uma corda grossa, nova. Não diziam que cordas novas esticavam? Mas era uma escada alta...
William suava como um porco, apesar da temperatura amena. Ele não devia fechar, nem desviar os olhos. Não com Clarewell observando.
Contraiu os músculos da garganta e se concentrou outra vez nas mãos de Hale. Os dedos contorciam-se, impotentes, embora o rosto do condenado estivesse calmo. Deixavam leves manchas de umidade na aba de seu casaco.
Um grunhido de esforço e um som arranhado; a escada foi retirada e ouviu-se uma exclamação espantada de Hale ao cair. Quer tenha sido a corda muito nova ou alguma outra coisa, o fato é que seu pescoço não se quebrou de forma precisa.
Ele havia recusado o capuz e assim os espectadores foram obrigados a ver seu rosto pelos quinze minutos que ele demorou a morrer. William reprimiu uma terrível necessidade de rir de puro nervoso, vendo os claros olhos azuis se arregalarem a ponto de parecer que iam saltar, a língua para fora. Tão surpreso. Ele parecia tão surpreso.
Havia apenas um pequeno grupo de homens reunido para a execução. Ele viu Richardson a uma pequena distância, observando a cena com uma expressão de remota abstração. Como se tomasse consciência de seu olhar, Richardson olhou incisivamente para ele. William desviou os olhos.
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