Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ECOS DO FUTURO
Volume II
Primeira Parte
RUMO AO PRECIPÍCIO
ENCRUZILHADA
William despediu-se dos Hunter em uma encruzilhada anônima em algum lugar de Nova Jersey. Não era sensato para ele ir além; as perguntas que fizera referentes à posição do Exército Continental estavam sendo recebidas com crescente hostilidade, indicando que estavam chegando perto. Nem simpatizantes rebeldes, nem legalistas que temiam represálias de um exército à sua porta queriam dizer nada aos misteriosos viajantes que poderiam ser espiões ou pior.
Os quakers teriam mais facilidade sem ele. Era tão óbvio o que eles eram e a intenção de Denzell de se alistar como médico ao mesmo tempo tão simples e tão admirável que, se estivessem sozinhos, as pessoas os ajudariam, pensou. Ou ao menos receberiam suas indagações com mais boa vontade. Mas com William...
Dizer que era um amigo dos Hunter tinha sido suficiente, no começo da viagem. As pessoas ficavam curiosas com o pequeno grupo, mas não desconfiadas. No entanto, conforme se aproximavam de Nova Jersey, a agitação do campo aumentava acentuadamente. Fazendas haviam sido saqueadas por grupos em busca de alimentos, tanto pelos mercenários alemães do exército de Howe, tentando atrair Washington para um confronto aberto, tirando-o de seu esconderijo nas Montanhas Watchung, quanto pelo Exército Continental, desesperado por suprimentos.
Fazendas que normalmente teriam recebido estranhos com prazer por causa das notícias que traziam agora os repeliam com mosquetes e palavras ásperas. Estava cada vez mais difícil encontrar comida. A presença de Rachel às vezes os ajudava a se aproximar o suficiente para lhes oferecer dinheiro - e a pequena reserva de ouro e prata de William sem dúvida era um grande auxílio; Denzell depositara a maior parte do dinheiro da venda da casa em um banco na Filadélfia para garantir a segurança futura de Rachel e o papel-moeda emitido pelo Congresso era quase universalmente rejeitado.
Entretanto, não havia como William pudesse se fazer passar por um quaker. Além de sua incapacidade de dominar a linguagem simples e o modo de falar dos quakers, sua altura e porte deixavam as pessoas nervosas - ainda mais quando ele, com as lembranças do capitão Nathan Hale vívidas na mente, não dizia que pretendia se alistar no Exército Continental nem fazia nenhuma pergunta que pudesse mais tarde ser apresentada como prova de espionagem. Seu silêncio - considerado ameaçador - também deixava as pessoas nervosas.
Ele não falara com os Hunter sobre sua partida e tanto Denzell quanto Rachel haviam tomado o cuidado de não lhe perguntar sobre seus próprios planos. No entanto, todos sabiam que havia chegado a hora; ele pôde sentir isso no ar quando acordou naquela manhã. Quando Rachel entregou-lhe um pedaço de pão para o café da manhã, sua mão roçou a dele e ele quase segurou seus dedos. Ela sentiu a força de seu impulso reprimido e ergueu a cabeça, espantada, fitando-o diretamente nos olhos. Mais verdes do que castanhos hoje, e ele teria mandado a discrição para o inferno e a beijado - achou que ela não se oporia - se se u irmão não tivesse emergido do mato exatamente naquele momento, abotoando a braguilha.
Ele escolheu o lugar, repentinamente. Não havia nada a ganhar com a demora e talvez fosse melhor fazer logo isso sem pensar muito. Freou o cavalo no meio da encruzilhada, surpreendendo Denzell, cuja égua empinou a cabeça e se agitou com o puxão em suas rédeas.
- Vou deixá-los aqui - William disse abruptamente e mais asperamente do que pretendera. - Meu caminho é para o norte - balançou a cabeça naquela direção e ainda bem que o sol estava brilhando e ele podia dizer para onde era o norte - enquanto eu achar que se vocês continuarem para leste encontrarão alguns representantes do exército do sr. Washington. Se... - hesitou, mas eles tinham que ser avisados. Pelo que os fazendeiros haviam dito, era evidente que Howe enviara tropas para a região.
- Se encontrarem tropas britânicas ou mercenários hessianos... por acaso vocês falam alemão?
Denzell sacudiu a cabeça, os olhos arregalados por trás dos óculos.
- Só um pouco de francês.
- Isso é bom. A maioria dos oficiais hessianos fala bem o francês. Se encontrarem hessianos que não falem francês e eles quiserem molestá-los, diga-lhes: "Ich verlange, Euren Vorgesetzten zu sehen; ich bin mitseinem Freund bekannt." Significa: "Quero falar com seu oficial; conheço um amigo dele." Diga a mesma coisa se encontrar tropas britânicas. Em inglês, é claro - acrescentou, sem jeito.
Um débil sorriso atravessou o rosto de Denzell.
- Eu lhe agradeço - ele disse. - Mas e se eles realmente nos levarem a um oficial e este quiser saber o nome desse amigo hipotético?
William retribuiu o sorriso.
- Na verdade, não importa. Uma vez diante de um oficial, estarão seguros. Mas quanto a um nome... Harold Grey, duque de Pardloe, coronel da 46ª Infantaria. - Tio Hal não conhecia todo mundo, como seu próprio pai, mas qualquer um no mundo militar o conheceria ou pelo menos já teria ouvido falar dele.
Pôde ver os lábios de Denzel moverem-se silenciosamente, gravando o nome na memória.
- E quem é o amigo Harold para você, William? - Rachel o observava intensamente por baixo da aba caída de seu chapéu e nesse momento o empurrou para trás na cabeça para vê-lo mais diretamente.
Ele hesitou outra vez, mas afinal o que isso importava agora? Jamais veria os Hunter outra vez. E, embora soubesse que os quakers não se deixavam impressionar por demonstrações mundanas de posição social e família, ainda assim empertigou-se em sua sela.
- Um parente meu - disse descontraidamente e, enfiando a mão no bolso, retirou a bolsinha que o escocês Murray lhe dera. - Tomem. Vão precisar disso.
- Nós nos arranjaremos bem - Denzell disse, abanando a mão em recusa.
- Eu também - William disse, e atirou a bolsinha para Rachel, que estendeu as mãos em reflexo e pegou-a, parecendo tão surpresa com o fato de que o fizera quanto pela própria ação de William. Ele também sorriu para ela, o coração enternecido.
- Boa sorte - ele disse com voz rouca, depois deu meia-volta no cavalo e partiu a trote ligeiro, sem olhar para trás.
- Sabe que ele é um soldado inglês? - Denny Hunter disse serenamente a sua irmã, observando William se afastar. - Provavelmente um desertor.
- E se for?
- A violência segue um homem assim. Você sabe disso. Permanecer muito tempo com esse homem é um perigo, e não só para o corpo. Para a alma também.
Rachel permaneceu em silêncio por um instante, observando a estrada vazia. Os insetos zumbiam nas árvores.
- Acho que você é um hipócrita, Denzell Hunter - ela disse sem se alterar, e fez a mula dar meia-volta. - Ele salvou minha vida e a sua. Preferia que ele tivesse se contido e me ver assassinada naquele lugar medonho? - Ela estremeceu ligeiramente apesar do calor do dia.
- Não - seu irmão respondeu racionalmente. - E agradeço a Deus por ele ter estado lá para salvá-la. Sou bastante pecador para preferir sua vida ao bem-estar da alma de um jovem rapaz, mas não bastante hipócrita para negar isso, não.
Ela resfolegou com desdém e, tirando o chapéu, abanou uma nuvem de mosquitos.
- Fico honrada. Mas quanto à sua conversa de homens violentos e o perigo de ficar nas vizinhanças de tais homens... você não está me levando para me juntar a um exército?
Ele riu melancolicamente.
- Estou. Talvez você tenha razão e eu seja um ipócrita. Mas, Rachel... - Ele inclinou-se e segurou a brida da mula, impedindo-a de se virar. - Você sabe que eu não deixaria nada de mal acontecer a você, nem do corpo, nem da alma. Diga e eu encontrarei um lugar para você entre amigos quakers, onde ficará em segurança. Tenho certeza de que Deus falou comigo e tenho que seguir minha consciência. Mas não há nenhuma necessidade de você segui-la também.
Ela lançou-lhe um olhar longo e direto.
- E como você sabe que Deus também não falou comigo?
Os olhos dele piscaram por trás dos óculos.
- Fico feliz por você. O que Ele lhe disse?
- Ele disse: "Impeça seu irmão cabeçudo de cometer suicídio porque vou precisar do sangue dele em sua mão" - ela rebateu, afastando a mão dele da brida de sua mula. - Se nós vamos nos juntar ao exército, Denny, vamos logo encontrá-lo.
Ela cutucou com força as costelas da mula. As orelhas do animal se empinaram e, com uma exclamação de surpresa de sua dona, partiu pela estrada como um tiro de canhão.
William cavalgou por algum tempo, as costas empinadas, demonstrando excelente forma em sua perícia de ginete. Depois que a estrada fez uma curva e a encruzilhada ficou fora de vista, ele diminuiu a marcha e relaxou um pouco. Lamentava deixar os Hunter, mas já começava a voltar seus pensamentos para a frente.
Burgoyne. Conhecera o general Burgoyne certa vez, em uma peça de teatro. Uma peça escrita por ninguém menos que o próprio general. Não se lembrava de nada em relação à peça, já que flertava com uma jovem no camarote ao lado, mas depois descera com seu pai para parabenizar o bem-sucedido dramaturgo, que estava afogueado e empolgado com o triunfo e o champanhe.
"Cavalheiro Johnny", é como o chamavam em Londres. Uma luz no firmamento da sociedade londrina, apesar do fato de que ele e sua mulher tivessem sido obrigados, há alguns anos, a fugir da França para escapar da prisão por dívidas. No entanto, ninguém cobra dívidas de um homem; era demasiado comum.
William estava mais intrigado com o fato de que seu tio Hal parecia gostar de John Burgoyne. Tio Hal não tinha tempo para peças de teatro, nem para aqueles que as escreviam - apesar de que, pensando bem, ele possuía a obra completa de Aphra Behn em suas estantes, e o pai de William lhe dissera certa vez, com grande segredo, que seu irmão Hal tivera uma ligação apaixonada com a sra. Behn depois da morte de sua primeira esposa e antes de seu casamento com tia Minnie.
- A sra. Behn morreu, sabe - seu pai explicara-lhe. - A salvo.
William balançara a cabeça, querendo parecer conhecedor das coisas do mundo, embora na realidade não fizesse nenhuma ideia do que seu pai quis dizer com isso. A salvo? Como assim, a salvo?
Sacudiu a cabeça. Não esperava jamais compreender tio Hal e a probabilidade é de que isso fosse o melhor para ambos. Sua avó Benedicta era provavelmente a única pessoa que o compreendia. A lembrança de seu tio, entretanto, levou-o a pensar em seu primo Henry, e sua boca apertou-se um pouco.
A notícia teria chegado a Adam, é claro, mas ele provavelmente não podia fazer nada pelo irmão. Nem William, cujo dever o mandava para o norte. Mas tanto seu pai quanto tio Hal, sem dúvida...
O cavalo empinou a cabeça, resfolegando, e William olhou para frente, avistando um homem parado junto à estrada, um dos braços erguidos, saudando-o.
Ele avançou devagar, um olhar atento à floresta, para o caso do sujeito ter aliados escondidos para emboscar viajantes desavisados. As margens da estrada, entretanto, eram bem abertas naquele trecho, com um mato denso, mas de galhos altos e finos mais além; ninguém poderia se esconder ali.
- Bom-dia, senhor - ele disse, freando a uma distância segura do velho; pois velho ele era; seu rosto era coberto de rugas como um monte de escória de uma mina de estanho, ele se apoiava num cajado e seus cabelos eram brancos como neve, amarrados para trás em uma trança.
- Prazer - disse o cavalheiro idoso. Cavalheiro porque ele tinha uma postura altiva e suas roupas eram boas, e agora que William notava havia um bom cavalo também, amarrado e pastando a certa distância. William relaxou um pouco.
- Para onde vai, senhor? - perguntou educadamente. O senhor encolheu um pouco os ombros, à vontade.
- Isso pode depender do que você me disser, meu jovem. - O velho era escocês, embora seu inglês fosse muito bom. - Estou à procura de um homem chamado Ian Murray, que acho que o senhor conhece, não é?
William ficou desconcertado; como o velho sabia disso? Mas ele conhecia Murray; talvez Murray tivesse mencionado William para ele. Respondeu cautelosamente:
- Eu o conheço. Mas receio não ter a menor ideia de onde ele esteja.
- Não? - O velho lançou-lhe um olhar penetrante. Como se ele achasse que eu fosse mentir para ele, William pensou. Velho desconfiado!
- Não - repetiu com firmeza. - Eu o encontrei no Great Dismal, há algumas semanas, na companhia de mohawks. Mas não sei para onde ele pode ter ido desde então.
- Mohawk - o velho repetiu pensativamente, e viu os olhos fundos fixarem-se em seu peito, onde a grande pata de urso era vista sobre a camisa. - Você arranjou esse bawbee com os mohawks, então?
- Não - William respondeu rispidamente, sem saber o que era um bawbee, mas achando que de certo modo soava depreciativo. - O sr. Murray o trouxe para mim, de um... amigo.
- Um amigo. - O velho estudava seu rosto ostensivamente, de uma forma que deixava William desconfortável e, portanto, furioso. - Como se chama, rapaz?
- Não é da sua conta, senhor - William disse, da maneira mais educada possível, juntando as rédeas. - Tenha um bom dia!
A expressão do sujeito endureceu e sua mão se apertou sobre o cajado. William virou-se abruptamente, com receio de que o homem pretendesse atacá-lo. Ele não o fez, mas William notou, com um pequeno choque, que lhe faltavam dois dedos da mão que segurava o cajado.
Achou por um instante que o sujeito fosse montar e ir atrás dele, mas quando olhou para trás ele ainda estava de pé à beira da estrada, vendo-o se afastar.
Não fazia realmente nenhuma diferença, mas, motivado por alguma obscura ideia de evitar chamar atenção, William colocou a pata de urso para dentro da camisa, onde ficou escondida, pendurada ao lado de seu rosário.
CONTAGEM REGRESSIVA
Fort Ticonderoga 18 de junho de 1777
Queridos Bri e Roger,
Vinte e três dias até aqui. Eu espero que possamos partir na data planejada. Seu primo Ian deixou o forte há um mês, dizendo que tinha uma pequena questão a resolver, mas que estaria de volta ao término do prazo de alistamento da milícia de Jamie. O próprio Ian não quis se alistar, sendo ao invés disso um explorador voluntário, de modo que tecnicamente ele não é um desertor. Não que o comandante do forte esteja realmente em posição de fazer alguma coisa contra desertores, salvo enforcá-los se forem suficientemente tolos para voltar, e nenhum deles volta. Não sei ao certo o que Ian está fazendo, mas espero que possa ser bom para ele.
Por falar no comandante do forte, temos um novo. Grande agitação! O coronel Waytie partiu há algumas semanas - sem dúvida suando de alívio tanto quanto da umidade -, mas subimos de status no mundo. O novo comandante é nada menos do que um general de divisão: Arthur St. Clair, um escocês alegre e bonitão, cuja atração é consideravelmente aumentada pela faixa cor-de-rosa que ele usa em ocasiõesformais. (A vantagem de pertencer a um exército ad hoc é que aparentemente a pessoa pode desenhar seu próprio uniforme. Nada dessas velhas e conservadoras convenções britânicas sobre uniformes militares.)
O general St. Clair veio com batedores: nada menos do que três generais de posto inferior, um deles francês (seu pai diz que o general Fermoy é um pouco estranho, militarmente falando) e cerca de três mil novos recrutas. Isso animou muito todos aqui (apesar de colocar uma enorme pressão na demanda por latrinas. Formam-se filas de até quinze pessoas pela manhã nas covas e há uma grave escassez de urinóis). St. Clairfez um belo discurso, garantindo-nos que o forte não pode ser tomado agora. Seu pai, que estava ao lado do general na ocasião, disse algo baixinho, em gaélico, nesse momento, mas não muito baixo, e, embora eu compreenda que o general tenha nascido em Thurso, ele convenientemente fingiu não entender.
A construção da ponte entre o forte e o Mount Independence continua a passo rápido... e o Mount Defiance continua lá do outro lado da água. Uma pequena colina inofensiva, quando se olha - porém bem mais alta do que o forte, famie fez o sr. Marsden remar até lá com um alvo - um quadrado de madeira de um metro e vinte de lado, pintado de branco - e colocá-lo perto do topo da colina, onde era perfeitamente visível pelas baterias do forte. Ele convidou o general Fermoy (ele não tem uma faixa cor-de-rosa, apesar de ser francês) para ir experimentar um dos novos rifles (Jamie prevenidamente retirara vários deles da carga do Teal antes de patrioticamente doar o resto para a causa americana). Eles destroçaram o alvo, um ato cujo significado não passou despercebido ao general St. Clair, que os acompanhara para observar. Creio que o general St. Clair ficará quase tão satisfeito quanto eu ficarei quando o alistamento de seu pai acabar.
O novo influxo tornou as coisas mais movimentadas, é claro. A maioria dos novos recrutas é razoavelmente saudável, o que é de admirar, mas há os pequenos acidentes de costume, casos de doenças venéreas e febre malária - o suficiente para o major Thacher, o médico-chefe, fingir que não vê quando eu faço curativo em um ferimento, apesar de colocar um limite: não posso ter acesso aos instrumentos afiados. Felizmente, tenho uma pequena faca com a qual posso lancetarfurúnculos.
Também estou ficando quase sem ervas medicinais, desde a deserção de Ian. Ele costumava me trazer muitas plantas úteis de suas expedições, mas na verdade não é seguro se aventurarfora do forte, a não ser em grandes grupos. Dois homens que saíram para caçar alguns dias atrás foram encontrados mortos e escalpelados.
Apesar de meu estojo médico permanecer um tanto escasso, em compensação arranjei uma ajudante de tendências necrófilas. É a sra. Raven, de New Hampshire, cujo marido é um oficial de milícia. Ela é relativamente jovem, de trinta e poucos anos, mas nunca teve filhos e assim tem muita energia emocional para gastar. Ela se alimenta dos doentes e moribundos, embora eu tenha certeza de que se considera extremamente piedosa e solidária. Ela se delicia com os detalhes mórbidos, o que, embora levemente repulsivo em si mesmo, na verdade a torna uma auxiliar competente, já que se pode contar com ela, sabendo que não vai desmaiar enquanto eu conserto uma fratura múltipla ou tenho que amputar (rapidamente, antes que o major Thacher ou seu fiel escudeiro perceba) um dedo gangrenado, por medo de perder algum detalhe. É bem verdade que ela choraminga e faz um pouco de cena, e costuma agarrar o peito achatado e arregalar os olhos, ao descrever essas aventuras a outras pessoas depois (ela quase desmaiou de hiperventilação quando trouxeram os homens escalpelados), mas em questão de ajuda é preciso aceitar o que vier.
No entanto, na outra ponta da escala em termos de competência médica, o novo influxo de recrutas trouxe um jovem médico quaker chamado Denzell Hunter e sua irmã, Rachel. Eu ainda não falei com ele pessoalmente, mas pelo que vejo o dr. Hunter realmente é médico e até parece ter alguma vaga noção da teoria dos germes, devido ao fato de ter sido orientado por John Hunter, um dos grandes homens da medicina (para o caso de Roger estar lendo esta carta, vou me abster de contar a maneira pela qual John Hunter descobriu como a gonorreia é transmitida - bem, não, na verdade, não vou: ele cortou-se no pênis com uma lanceta coberta do pus de um paciente infectado e ficou extremamente satisfeito com os resultados, segundo Denny Hunter, que contou esse interessante incidente ao seu pai enquanto fazia um curativo em seu polegar, imprensado entre duas toras rolando - não se preocupe, não está quebrado; apenas bastante machucado). Adoraria ver como a sra. Raven reagiria a essa história, mas imagino que a decência impediria o jovem dr. Hunter de lhe contar.
Vocês estão, é claro, cuidando da programação de vacinas das crianças.
Com todo meu amor, Mamãe
Brianna fechara o livro, mas sua mão continuava a retornar involuntariamente para a capa, como se desejasse abri-lo outra vez, para o caso de dizer algo diferente.
- O que é vinte e três dias depois de dezoito de junho? - Ela deveria ser capaz de calcular isso, de cabeça, mas o nervosismo a privara da habilidade de computar.
- Setembro tem trinta dias - Roger disse rapidamente em voz baixa, erguendo os olhos para o teto -, abril, junho... certo, junho tem trinta dias, portanto doze dias do dia dezoito ao dia trinta, e mais dez vai dar em dez de julho.
- Oh, meu Deus.
Ela lera três vezes, olhar outra vez não iria fazer diferença; mesmo assim, abriu o livro novamente, na página com o retrato de John Burgoyne. Um homem bonito - "E ele bem que sabe disso!", ela disse em voz alta, fazendo Roger franzir a testa à sua consternação conforme pintado por sir Joshua Reynolds, de uniforme, a mão pousada no cabo da espada, de pé contra um dramático cenário de fundo de nuvens escuras e tempestuosas. E lá estava na página seguinte, em preto e branco.
No dia seis de julho, o general Burgoyne atacou Fort Ticonderoga com uma tropa de 8.000 soldados alistados, mais vários regimentos alemães comandados pelo barão Von Riedesel, e um grupo de índios.
William encontrou o general Burgoyne e seu exército com um pouco mais de facilidade do que os Hunter haviam descoberto o paradeiro do general Washington. Por outro lado, o general Burgoyne não estava fazendo nenhuma tentativa de se esconder.
Era um acampamento opulento, pelos padrões do exército. Fileiras de barracas de lona branca perfeitamente alinhadas cobriam três campos e penetravam na floresta. Dirigindo-se à barraca do comandante para se apresentar, ele avistou uma pilha de garrafas de vinho vazias perto da tenda do general, chegando quase à altura dos seus joelhos. Como ele não ouvira dizer que o general fosse um notável beberrão, presumiu que essa benesse seria resultado de uma generosa hospitalidade e do gosto por companhia. Um bom sinal em um comandante, ele pensou.
Um criado bocejante catava os restos das tampas de chumbo, jogando o metal em uma lata, provavelmente para ser derretido para balas. Lançou um olhar sonolento e inquiridor a William.
- Vim me apresentar ao general Burgoyne - William disse, empertigando-se. Os olhos do criado viajaram devagar pela extensão do seu corpo, demorando-se com vaga curiosidade em seu rosto e fazendo-o duvidar da perfeição com que fizera a barba de manhã.
- Jantar com o general de brigada e o coronel St. Leger ontem à noite - o criado disse finalmente, com um ligeiro arroto. - Volte à tarde. Enquanto isso - levantou-se devagar, contraindo-se como se o movimento fizesse sua cabeça doer, e apontou -, a barraca da bagunça é aquela lá.
AMIGOS
Forte Ticonderoga 22 de junho de 1777
Para minha grande surpresa, encontrei o capitão Stebbings sentado. Pálido, banhado de suor e oscilando como um pêndulo - mas ereto. O sr. Dick pairava acima dele, cacarejando com a amorosa ansiedade de uma galinha com seu pintinho.
- Vejo que está se sentindo melhor, capitão - eu disse, sorrindo para ele. - Vai estar de pé qualquer dia desses, não é?
- Estive... de pé - disse com a respiração ruidosa. - Achei que ia morrer.
- O quê? Ele estar andando - o sr. Dick me assegurou, dividido entre o orgulho e o assombro. - No meu braço, mas ele andar, verdade!
Eu estava de joelhos, ouvindo os pulmões e o coração através do estetoscópio de madeira que Jamie fizera para mim. Uma pulsação digna de um carro de corrida de oito cilindros e um bocado de gorgolejo e assobio, mas nada terrivelmente alarmante.
- Parabéns, capitão Stebbings! - eu disse, abaixando o estetoscópio e sorrindo para ele. Ele ainda tinha uma aparência horrível, mas sua respiração começava a melhorar. - Provavelmente não vai morrer hoje. O que provocou essa explosão de ambição?
- Meu... contramestre - conseguiu dizer, antes que um acesso de tosse o interrompesse.
- Joe Ormiston - o sr. Dick esclareceu, com um sinal da cabeça em minha direção. - Pé dele fede. Capitão ir ver ele.
- Sr. Ormiston. Seu pé fede? - Isso disparou todo tipo de alarmes. Para um ferimento neste ambiente em particular, ter um cheiro tão acentuado a ponto de chamar a atenção era um indício muito ruim. Levantei-me, mas fui detida por Stebbings, que segurou minha saia com força.
- Você - ele disse, esforçando-se para respirar. - Cuide dele.
Exibiu os dentes manchados para mim em um largo sorriso.
- É uma ordem - disse com um assovio. - Madame.
- Sim, sim, capitão - eu disse irritada e saí apressadamente para o prédio do hospital, onde ficava a maioria dos doentes e feridos.
- Sra. Fraser! O que foi? - O grito ansioso veio da sra. Raven, que saía da loja de provisões quando passei. Ela era alta e magra, com cabelos escuros que perpetuamente se soltavam de baixo da touca, como acontecia agora.
- Ainda não sei - eu disse rapidamente, sem parar. - Mas deve ser grave.
- Oh! - ela disse, mal se contendo para não exclamar "Ótimo!". Enfiando seu cesto embaixo do braço, passou a me acompanhar, firmemente determinada a Fazer o Bem.
Prisioneiros ingleses inválidos estavam alojados ao lado de pacientes americanos em um longo edifício de pedras, iluminado por janelas estreitas e sem vidro, e tanto morrendo de calor quanto de frio, dependendo das condições do tempo. No momento, estava quente e úmido do lado de fora - era meio da tarde - e entrar no prédio foi como ser atingido no rosto com uma toalha úmida e quente. Uma toalha suja.
Não foi difícil achar o sr. Ormiston; havia um grupo de homens de pé em volta de seu catre. O tenente Stactoe estava entre eles - isso era ruim - discutindo com o dr. Hunter - isso era bom -, com dois outros cirurgiões tentando apresentar suas próprias opiniões.
Eu soube sem olhar o motivo da discussão; obviamente, o pé do sr. Ormiston dera uma reviravolta para pior e eles pretendiam amputá-lo. Muito provavelmente tinham razão. A discussão deveria ser onde amputar, ou quem o faria.
A sra. Raven deixou-se ficar para trás, nervosa à vista dos médicos.
- Você realmente acha... - ela começou a dizer, mas eu não prestei atenção. Há momentos em que se deve parar para pensar, mas este não era um deles. Somente a ação, e rápida, aliás uma ação decisiva, serviria. Inspirei fundo o ar denso e dei um passo à frente.
- Boa-tarde, dr. Hunter - eu disse, abrindo caminho pelo meio dos dois cirurgiões de milícia e sorrindo para o jovem médico quaker. - Tenente Stractoe - acrescentei depois, para não ser abertamente rude. Ajoelhei-me ao lado do catre do paciente, limpei a mão suada em minha saia e segurei a dele.
- Como vai, sr. Ormiston? O capitão Stebbings me mandou para cuidar de seu pé.
- Ele o quê? - o tenente Stactoe começou, em uma voz irritada. - Francamente, sra. Fraser, o que você pode...
- Isso é bom, madame - o sr. Ormiston interrompeu. - O capitão disse que ia enviá-la; eu estava dizendo a estes cavalheiros que eles não precisam se preocupar, pois eu tinha certeza de que a senhora saberia o melhor modo de fazer isso.
E tenho certeza de que ficaram muito satisfeitos em ouvir isso, pensei, mas sorri para ele e apertei sua mão. Seu pulso estava acelerado e um pouco fraco, mas regular. Sua mão, no entanto, estava muito quente e eu não fiquei nem um pouco surpresa de ver os veios vermelhos da septicemia subindo pela perna do pé mutilado.
Eles haviam tirado as bandagens do pé e o sr. Dick sem dúvida estava certo: ele fedia.
- Oh, meu Deus - disse a sra. Raven atrás de mim, com absoluta sinceridade.
A gangrena já se estabelecera; se o cheiro e a crepitação do tecido não fossem suficientes, os dedos já começavam a enegrecer. Não perdi tempo em ficar com raiva de Stactoe; considerando-se o estado inicial do pé e o tratamento disponível, talvez eu também não tivesse conseguido salvá-lo. O fato de a gangrena estar tão evidentemente instalada era na realidade uma ajuda; não havia a menor dúvida de que a amputação era necessária. Mas nesse caso me perguntei, por que eles estavam discutindo?
- Entendo que concorda com a amputação, não é, sra. Fraser? - o tenente disse, com sarcástica cortesia. - Como médica do paciente? - Vi que ele já tinha seus instrumentos enfileirados sobre uma toalha. Decentemente conservados; não repugnantemente imundos - mas evidentemente não esterilizados.
- Certamente - respondi amavelmente. - Sinto muito, sr. Ormiston, mas ele tem razão. E vai se sentir muito melhor depois. Sra. Raven, poderia me trazer uma panela de água fervente? - Virei-me para Denzell Hunter, que, eu vi, segurava a outra mão do sr. Ormiston, obviamente contando seus batimentos cardíacos. - Não concorda, dr. Hunter?
- Sim, concordo - ele disse brandamente. - Estamos em desacordo com relação ao grau de amputação necessária, não sua necessidade. Para o que é a água fervente, amiga... Fraser? - perguntou.
- Claire - eu disse sucintamente. - Esterilização dos instrumentos. Para evitar infecção pós-operatória. O máximo possível - acrescentei honestamente. Stactoe fez um ruído muito desrespeitoso, mas eu o ignorei. - O que recomenda, dr. Hunter?
- Denzell - ele disse, com um breve sorriso. - O amigo Stactoe deseja amputar abaixo do joelho...
- Claro que sim! - Stactoe disse, furioso. - Quero preservar o joelho e não há nenhuma necessidade de ir mais alto!
- Por mais estranho que pareça, estou inclinada a concordar com você - eu lhe disse, mas me voltei outra vez para Denzell Hunter. - Mas você não?
Ele sacudiu a cabeça e empurrou os óculos para cima no cavalete do nariz.
- Devemos fazer uma amputação no meio do fêmur. O paciente tem um aneurisma poplíteo. Isso significa...
- Sei o que significa. - Eu sabia e já estava sentindo atrás do joelho do sr. Ormiston. Ele emitiu uma risadinha aguda, parou abruptamente e ficou vermelho, embaraçado. Sorri para ele. - Desculpe-me, sr. Ormiston - eu disse. - Não farei mais cócegas.
Não seria necessário. Eu podia sentir o aneurisma claramente; ele latejava delicadamente contra meus dedos, um inchaço grande, duro, bem na cavidade da junta. Ele já devia ter isso há algum tempo; era de admirar que não tivesse explodido durante a batalha no mar ou no árduo transporte até Ticonderoga. Em uma moderna sala de cirurgia, talvez fosse possível fazer a amputação menor e consertar o aneurisma - mas não ali.
- Tem razão, amigo Denzell - eu disse, endireitando-me. - Assim que a sra. Raven trouxer a água quente, nós... Mas os homens não estavam me ouvindo. Olhavam fixamente para algo atrás de mim e eu me virei e vi Guiné Dick, vestido só com uma tanga por causa do calor e brilhando de suor, todas as suas tatuagens à mostra, avançando em nossa direção com uma garrafa preta levada cerimoniosamente entre as mãos.
- Ele capitão mandar grogue pra você, Joe - ele disse ao sr. Ormiston.
- Bem, que Deus abençoe o capitão por um bom rum! - o sr. Ormiston disse com um sincero agradecimento. Ele pegou a garrafa de rum, tirou a rolha com os dentes e começou a beber com concentrada determinação.
O barulho de água se derramando e espalhando no chão anunciou a volta da sra. Raven. Quase toda lareira tinha uma chaleira no fogo; encontrar água fervente não era nenhuma dificuldade. Ela havia, bendita seja, trazido também um balde de água fria para que eu pudesse lavar minhas mãos sem me queimar.
Peguei uma das facas de amputação de lâmina curta, preparando-me para mergulhá-la na água fervente, apenas para tê-la arrancada da minha mão por um enfurecido tenente Stactoe.
- O que está fazendo, madame? - ele exclamou. - Esta é a minha melhor lâmina!
- Sim, e é por isso que pretendo usá-la - eu disse. - Depois de lavá-la.
Stactoe era um sujeito baixo, de cabelo grisalho e cortado à escovinha; era também seis ou sete centímetros mais baixo do que eu, como descobri ao me levantar e encará-lo, olhos nos olhos. Seu rosto ficou um pouco mais vermelho.
- Vai arruinar a têmpera do metal, submetendo-a à água quente!
- Não - eu disse, mantendo a minha própria têmpera... por enquanto. - Água quente não vai fazer nada senão limpá-la. E eu não vou usar uma lâmina suja neste homem.
- Oh, não? - Algo como satisfação brilhou em seus olhos e ele agarrou a lâmina protetoramente junto ao peito. - Muito bem, então. Suponho que então terá que deixar o trabalho para os que podem realizá-lo, não é?
Guiné Dick, que permanecera na sala para observar depois de entregar a garrafa, acompanhara o progresso da discussão com interesse e, neste ponto, inclinou-se para frente e tirou a faca da mão de Stactoe.
- Ele capitão diz ela fazer para Joe - ele disse calmamente. - Ela fazer.
A boca de Stactoe abriu-se de indignação a esse pavoroso insulto ao seu posto e ele se arremessou sobre Dick, agarrando a lâmina. Dick, com reflexos aguçados por guerras tribais e anos no mar a serviço da marinha britânica, girou a lâmina para Stactoe com a óbvia intenção de decapitá-lo. Provavelmente teria conseguido, se não fosse pelos reflexos igualmente bons de Denzell Hunter, que o fizeram saltar para pegar o braço de Dick. Ele errou o alvo, mas conseguiu derrubar o enorme guineense contra Stactoe. Eles se atracaram - Dick deixando cair a faca - e cambalearam para frente e para trás por um instante, antes que ambos se desequilibrassem e caíssem no catre de Ormiston, enviando paciente, garrafa de rum, água quente, Denzell Hunter e o resto dos instrumentos espalhados pelo chão de lajes de pedra com um estardalhaço que fez parar toda conversa no prédio.
- Ooooh! - disse a sra. Raven, deliciosamente chocada. Aquilo estava ficando ainda melhor do que ela esperava.
- Denny! - gritou uma voz igualmente chocada atrás de mim. - O que acha que está fazendo?
- Estou... ajudando a amiga Claire em sua cirurgia - Denzell disse com certa dignidade, sentando-se e tateando pelo chão em busca de seus óculos.
Rachel Hunt abaixou-se e pegou os óculos extraviados, os quais haviam deslizado pelas pedras, e recolocou-os com firmeza no rosto de seu irmão, enquanto mantinha um olho atento no tenente Stactoe, que se levantava do chão lentamente, como um balão de ar quente, visivelmente inflando de raiva.
- Você - ele disse em voz rouca, apontando um dedo pequeno e trêmulo para Dick. - Vou mandar enforcá-lo por atacar um oficial. E vou fazer você - girando o dedo acusador na direção de Denzell Hunter - ir à corte marcial e ser condenado! Quanto a você, madame - cuspiu a palavra, mas depois estancou, momentaneamente incapaz de pensar em algo suficientemente terrível para me ameaçar. Em seguida, disse: - Vou mandar seu marido lhe dar uma surra!
- Venha me fazer cócegas, querida! - uma voz arrastada disse do chão. Olhei para baixo e vi um vesgo sr. Ormiston. Ele não se separara da garrafa de rum durante a confusão, continuou a beber depois e, com o rosto banhado de rum, agora fazia movimentos aleatórios com a mão nas vizinhanças do meu joelho.
O tenente Stactoe fez um ruído indicando que este era o limite final, se já não tivesse sido há muito ultrapassado, e, reunindo apressadamente seus instrumentos, marchou para fora do aposento, coberto de facas e serras, de vez em quando deixando cair pequenos objetos em seu rastro.
- Está precisando de mim, Sissy? - Denzell Hunter já se levantara a essa altura e ajeitava o catre caído.
- Não tanto quanto a sra. Brown - sua irmã disse, um tom seco na voz. - Ela diz que chegou a hora dela e quer vê-lo. Já. Agora.
Ele resfolegou ligeiramente e olhou de relance para mim.
- A sra. Brown é uma histérica, no sentido literal do termo - ele disse, como se pedisse desculpas. - Acho que ela não deve dar à luz ainda por um mês, mas ela sofre de falsas contrações regularmente.
- Eu a conheço - eu disse, reprimindo um sorriso. - Antes você do que eu, companheiro. - A sra. Brown era histérica. Era também a mulher de um coronel de milícia e portanto, ela achava, muito acima dos serviços de uma mera parteira. Tendo ouvido dizer que o dr. Denzell Hunter trabalhara com o dr. John Hunter, que era accoucheur da Rainha! - obviamente, dispensara meus serviços.
- Ela não está sangrando, nem a bolsa d'água estourou? - Denzell perguntava à sua irmã com voz resignada.
Guiné Dick, nem um pouco perturbado pelo recente conflito, arrumara os lençóis da cama, depois se agachou, levantou o pesado sr. Ormiston como se fosse um colchão de penas e o depositou, com a sua garrafa, delicadamente na cama.
- Achar ele pronto - anunciou, após escrutinar o paciente, que agora estava deitado, os olhos fechados, murmurando alegremente: "Só um pouco mais baixo, querida, sim, isso, isso..."
Denzell olhava desamparadamente do sr. Ormiston para a irmã e para mim.
- Tenho que ir ver a sra. Brown, embora eu ache que não é muito urgente. Pode esperar um pouco e eu faço isso para você?
- Ela fazer isso - Dick falou, com um ar furioso.
- Sim, ela faz - assegurei-lhe, prendendo meus cabelos para trás. - Mas com que ela vai fazer isso é outra questão. Tem alguns instrumentos que possa me emprestar, dr... hã, amigo Denzell?
Ele esfregou a testa, pensando.
- Eu tenho uma boa serra. - Sorriu ligeiramente. - E não me importo se quiser fervê-la. Mas nenhuma lâmina pesada. Quer que eu peça à Rachel para ir perguntar a um dos outros médicos?
O rosto de Rachel fechou-se um pouco diante dessa sugestão e eu achei que talvez o dr. Hunter não fosse muito popular com os outros cirurgiões.
Analisei a perna muito sólida do sr. Ormiston, estimando a grossura de carne a ser cortada e enfiei a mão na fenda da minha saia até o cabo da minha faca.
Era uma faca boa, robusta, e Jamie acabara de amolá-la para mim. Uma lâmina curva seria melhor, mas achei que o comprimento seria suficiente...
- Não, não se preocupe. Acho que isso vai funcionar. Poderia trazer a serra do seu irmão, srta... hã, Rachel? - Sorri para ela. - E, sra. Raven, receio que a água tenha esfriado, poderia...
- Oh, sim! - ela gritou, e agarrando a vasilha, saiu com grande alarido, chutando um dos objetos remanescentes do tenente Stactoe pelo caminho.
Diversas pessoas tinham ficado observando o drama do pé do sr. Ormiston, fascinadas. Agora que o tenente fora embora, começaram a se aproximar, olhando temerosamente para Guiné Dick, que ria alegremente para eles.
- Será que a sra. Brown pode esperar um quarto de hora? - perguntei a Denzell. - Será mais fácil se eu tiver alguém que sabe o que está fazendo para segurar a perna enquanto eu corto.
- Um quarto de hora?
- Bem, a verdadeira amputação vai levar menos de um minuto, se eu não encontrar nenhuma dificuldade. Mas vou precisar de um pouco de tempo para os preparativos e eu gostaria de ter a sua ajuda para ligar os vasos sanguíneos cortados depois. Onde foi parar a garrafa de rum, aliás?
Os olhos escuros de Denzell estavam quase tocando a linha de seus cabelos, mas ele gesticulou para o sr. Ormiston, que adormecera e agora roncava sonoramente, abraçado à garrafa de rum.
- Não pretendo bebê-lo - eu disse secamente, em resposta à sua expressão. Peguei a garrafa e despejei um pouco em um pano limpo, com o qual comecei a limpar a perna cabeluda do sr. Ormiston. Felizmente, o tenente havia deixado seu frasco de suturas e o instrumento que a sra. Raven chutara era um tenáculo. Eu iria precisar dele para segurar as pontas das artérias cortadas, que tinham a irritante tendência a saltar de novo para dentro da carne e se esconder, lançando esguichos de sangue enquanto isso.
- Ah - Denzell disse, ainda desnorteado, mas disposto a colaborar. - Compreendo. Posso... ajudar?
- Posso usar seu cinto para ligadura?
- Oh, claro - ele murmurou, desafivelando-o sem hesitação, parecendo interessado. - Estou vendo que já fez isso antes.
- Muitas vezes, infelizmente. - Inclinei-me para verificar a respiração do sr. Ormiston, que era ruidosa, mas não difícil. Ele havia tomado quase metade da garrafa em cinco minutos. Era uma dose que provavelmente mataria alguém menos acostumado a rum do que um marinheiro britânico, mas seus sinais vitais eram razoavelmente bons, apesar da febre. A embriaguez não era de forma alguma equivalente a anestesia; o paciente estava atordoado, não inconsciente, e certamente despertaria quando eu começasse a cortar. No entanto, o álcool de fato aliviava o medo e poderia amortecer um pouco a dor inicial. Eu me perguntava se - e quando - eu conseguiria fazer éter outra vez.
Havia duas ou três mesas pequenas no longo salão, apinhadas de ataduras, algodão e outros materiais de curativo. Escolhi um bom suprimento de materiais relativamente limpos e voltei com eles para o lado da cama exatamente quando a sra. Raven - arquejante e afogueada, ansiosa com receio de perder alguma coisa - chegou, o balde de água respingando pelo chão. No instante seguinte, Rachel Hunter retornou, igualmente arquejando da pressa, com a serra de seu irmão.
- Poderia mergulhar a serra na água, amigo Denzell? - perguntei, amarrando um saco de aniagem na cintura para servir de avental. O suor escorria pelas minhas costas, fazendo cócegas entre minhas nádegas, e eu amarrei um pedaço de atadura ao redor de minha cabeça como uma bandana, para impedir que o suor escorresse para dentro dos meus olhos enquanto eu trabalhava. - E esfregue essas manchas perto do cabo, sim? Depois, minha faca e aquele tenáculo, por favor.
Parecendo confuso, ele fez, sob os murmúrios interessados dos espectadores, que obviamente nunca haviam presenciado um procedimento tão estranho, apesar da presença selvagem do sr. Dick mantê-los a uma distância segura.
- Acha que o tenente iria realmente mandar enforcar o nosso amigo aqui?
- Denzell sussurrou para mim, com um sinal da cabeça indicando Dick. - Ou poderia, de fato?
- Tenho certeza de que ele adoraria, mas não creio que ele realmente possa, não. O sr. Dick é um prisioneiro inglês. Ele pode mandá-lo para a corte marcial, você acha?
- Acho que ele pode tentar - Denzell disse, não parecendo preocupado com a possibilidade. - Afinal, eu me alistei.
- É mesmo? - Isso parecia estranho, mas ele não era o único quaker que eu conhecera em um campo de batalha, por assim dizer.
- Oh, sim. Mas acho que o exército não tem tantos médicos que possa se dar ao luxo de enforcar um. E duvido que ser rebaixado de posto iria afetar muito minha especialidade. - Sorriu alegremente para mim.
- Afinal, você não tem nenhuma patente, se não estou enganada, e no entanto acho que vai conseguir.
- Deus queira - eu disse, e ele assentiu gravemente.
- Deus queira - repetiu, e me entregou a faca, ainda quente da água fervente.
- Vocês devem recuar um pouco - eu disse aos espectadores. - Vai haver muito sangue.
- Oh, meu Deus, oh, meu Deus - exclamava a sra. Raven, com a respiração entrecortada, trêmula de expectativa. - Que coisa medonha!
TRÊS FLECHAS
Mottville, Pensilvânia 10 de junho de 1777
Grey sentou-se ereto abruptamente, por pouco não batendo a cabeça na viga baixa que passava acima de sua cama. Seu coração martelava, a nuca e as têmporas molhadas de suor, e por um instante não conseguiu ter a menor noção de onde estava.
- A terceira flecha - ele disse em voz alta, e sacudiu a cabeça, tentando combinar as palavras ao sonho extraordinariamente vívido do qual emergira tão bruscamente.
Teria sido um sonho, lembranças ou algo que compartilhasse a natureza de ambos? Ele estava de pé no salão principal de Trois Flèches, olhando para o belíssimo Stubbs pendurado à direita do consolo barroco da lareira. As paredes estavam cobertas de quadros - pendurados em cima e embaixo, amontoados sem nenhuma preocupação com tema ou mérito.
Fora assim mesmo? Lembrava-se vagamente de uma sensação de opressão com o excesso de decoração, mas os quadros teriam realmente se amontoado sobre ele, retratos olhando maliciosamente de cima, de baixo, rostos em todas as direções?
No sonho, o barão Amandine estava postado ao seu lado, o ombro maciço tocando o dele; eram quase da mesma altura. O barão falava de uma das pinturas, mas Grey não se lembrava do que ele dizia - algo sobre a técnica empregada pelo pintor, talvez.
Do outro lado, estava Cecile Beauchamp, a irmã do barão, igualmente perto, um ombro nu roçando o de Grey. Ela usava talco nos cabelos e perfume de jasmim; o barão, uma colônia selvagem de bergamota e almiscareiro. Ele se lembrava - mas certamente os sonhos não tinham cheiro! - da mistura das fortes fragrâncias com o amargo das cinzas de madeira no calor sufocante do aposento, e a leve sensação de náusea que essa mistura causava. A mão de alguém segurara uma de suas nádegas, apertara-a com familiaridade e depois começara a acariciá-la de modo insinuante. Ele não sabia de quem era a mão.
Isso não fora parte do sonho.
Deitou-se devagar nos travesseiros, os olhos fechados, tentando recapturar as imagens da mente sonolenta. O sonho se modificara depois disso para algo erótico, a boca de alguém em sua carne extremamente receptiva; foram as sensações associadas a isso, na realidade, que o acordaram. Ele também não sabia de quem era a boca. O dr. Franklin também estivera em alguma parte de seu sonho; Grey lembrou-se das nádegas brancas, ligeiramente flácidas, mas ainda firmes, conforme o sujeito descia o corredor à sua frente, os longos cabelos grisalhos dispersos pelas costas ossudas, dobras de pele flácida ao redor da cintura, falando sem a menor preocupação sobre os quadros, que cobriam as paredes do corredor também. Era uma vívida recordação, carregada de sentimentos. Certamente ele não... não com Franklin, mesmo era sonho. Mas tinha alguma coisa a ver com os quadros...
Tentou se lembrar de algumas das pinturas, mas já não tinha certeza do que era real e do que emergia dos sonhos. Havia paisagens... algo que pretendia ser um cenário egípcio, embora ele tenha se permitido duvidar de que o pintor houvesse algum dia colocado o pé ao sul da costa bretã. Os tradicionais retratos de famílias...
- Sim! - Sentou-se abruptamente e desta vez realmente bateu o topo da cabeça na viga com tanta força que viu estrelas e emitiu um grunhido de dor.
- Tio John? - a voz de Dottie veio com clareza da outra cama, surpresa, e um ruído de roupas de cama vindo do chão indicou que sua camareira também acordara. - O que aconteceu?
- Nada, nada. Volte a dormir. - Ele atirou as pernas para fora da cama. - Só... vou à latrina.
- Oh. - Resmungos e movimentações do chão, um severo shiiiu! em reprimenda de Dottie. Ele encontrou a porta do quarto pelo tato, pois as persianas haviam sido cerradas e o aposento estava escuro como breu, depois desceu as escadas à luz turva de um fogo abafado no salão principal da hospedaria.
O ar do lado de fora estava límpido e fresco, perfumado com alguma coisa que ele não reconhecia, mas que estava gravada em sua memória. Foi um alívio se livrar da luta com seu sonho obstinado e deixar-se submergir naquela lembrança puramente sensorial. Trazia de volta longas cavalgadas na Virgínia, estradas lamacentas, folhas novas, a sensação de um cavalo sob ele, o recuo de uma arma, a sensação do sangue de um veado jorrando quente em sua mão... claro, caçando com William.
Ele sentiu a proximidade das regiões selvagens dominá-lo, aquela sensação estranha, forte, tão característica da América: a sensação de alguma coisa à espera entre as árvores - não inimiga, mas também não acolhedora. Ele adorara aqueles poucos anos na Virgínia, longe das intrigas da Europa, da permanente sociabilidade de Londres. Mas os valorizava muito, pela intimidade que crescera entre ele e seu filho naqueles anos na floresta.
Ele ainda não vira vaga-lumes nesta viagem. Examinava o capim denso enquanto andava, mas provavelmente era tarde demais; os vaga-lumes saíam principalmente no começo da noite. Ansiava para mostrá-los a Dottie. William ficara encantado ao vê-los pela primeira vez quando vieram morar na Virgínia - pegara-os nas mãos em concha, delicadamente, exclamando extasiado quando iluminavam a cavidade escura de sua palma. Recebera sua volta a cada verão com grande alegria.
Fisicamente aliviado e com a mente ao menos superficialmente aplacada, sentou-se devagar na tora de cortar lenha no pátio da estalagem, ainda sem vontade de retornar para a escuridão sufocante do quarto no andar de cima.
Onde Henry estaria, perguntou-se. Onde ele dormia esta noite? Em alguma masmorra? Não, as Colônias não tinham tal coisa. Mesmo as casas comuns eram extraordinariamente confortáveis e arejadas. Talvez seu sobrinho estivesse detido em uma prisão, um celeiro, um porão - e no entanto ele tinha, até onde eles sabiam, sobrevivido ao inverno, apesar do que deveria ser um ferimento sério. Mas ele devia ter dinheiro; talvez tivesse conseguido pagar por um alojamento melhor, talvez pelos cuidados de um médico.
Se Deus permitisse, logo iriam encontrá-lo. Não estavam a mais de dois dias de viagem da Filadélfia. E ele tinha as cartas de apresentação que Franklin lhe dera - Franklin outra vez! Diabo de homem e seu banho de ar. Apesar de Grey ter se unido a ele no processo uma vez, por curiosidade, e ter achado estranhamente agradável, ainda que um pouco intimidante, estar sentado nu como veio ao mundo em um aposento elegantemente mobiliado, jarros de plantas nos cantos, quadros de...
Não. Não, não havia nenhum quadro no solário de Trois Flèches, claro que não.
Lá estava. O rastro de seu sonho elusivo, contorcendo-se tentadoramente para ele, saindo de baixo de uma pedra. Fechou os olhos, encheu os pulmões com o aroma da noite de verão e deliberadamente forçou sua mente a se esvaziar.
Trois Flèches. Três Flechas. Quem é a terceira? As palavras da carta de Hal surgiram na parte interna de suas pálpebras, de forma tão surpreendente que ele abriu os olhos. Apesar de acostumado como estava aos processos oblíquos de pensamento de Hal, não dera muita importância às palavras na ocasião. Evidentemente, entretanto, elas haviam lançado raízes em seu subconsciente, somente para emergir no meio da noite no meio do nada, das entranhas de um sonho absurdo. Por quê?
Ele esfregou delicadamente o topo da cabeça, que estava dolorida com sua colisão com a viga, mas não quebrada. Seus dedos inconscientemente se moveram para baixo, tateando o local em que a mulher de Jamie Fraser havia coberto o buraco aberto com o perfurador de ossos em seu crânio com uma moeda de prata de seis pennies, achatada a marteladas. Ela costurara a pele sobre ela muito engenhosamente e os cabelos haviam crescido outra vez, mas era fácil sentir a pequena curva rígida por baixo. Ele raramente a notava ou pensava nela, a não ser no tempo frio, quando o metal esfriava acentuadamente e às vezes causava dor de cabeça e fazia seu nariz escorrer.
Fazia frio, muito frio, quando ele visitou Trois Flèches. O pensamento flutuou pela sua mente como uma mariposa.
Havia ruídos atrás da estalagem. Sons de cascos na terra batida, murmúrio de vozes. Permaneceu sentado, imóvel.
A lua já estava na metade da descida pelo céu; era tarde, mas ainda faltavam horas para o amanhecer. Ninguém devia ter assuntos a tratar a essa hora, a não ser negócios escusos. O tipo de negócio que ele não tinha nenhuma vontade de testemunhar - muito menos de ser visto testemunhando.
Mas eles estavam vindo; ele não podia se mover sem ser visto e, então, reduziu até sua respiração a um filete mínimo de ar.
Três homens, silenciosos, decididos, a cavalo, um deles conduzindo uma mula carregada. Passaram a não mais do que dois passos dele, mas ele não se mexeu, e os cavalos, se pressentiram sua presença, não o consideraram uma ameaça. Os homens dirigiram-se à estrada que levava à Filadélfia. Por que todo aquele sigilo?, ele se perguntou - mas não perdeu tempo em especulações. Ele notara assim que retornara à Carolina do Norte no ano anterior: uma animação mórbida, uma inquietação no próprio ar. Era mais pronunciada ali; ele percebera isso assim que aportaram.
As pessoas estavam cautelosas de um jeito que não costumavam ser. Não sabem em quem confiar, pensou. E assim não confiam em ninguém.
A ideia de confiança evocou uma lembrança vívida e imediata de Percy Wainwright. Se houver alguém no mundo em quem eu confie menos...
E de imediato lembrou-se. A imagem de Percy, sorridente, de olhos escuros, o polegar deslizando pela superfície da taça de vinho como se acariciasse o pênis de Grey, dizendo descontraidamente: "Casei-me com uma das irmãs do barão de Amandine..."
- Uma das irmãs - Grey sussurrou em voz alta, e o sonho se cristalizou em sua mente, a sensação do frio das pedras de Trois Flèches tão vívida que ele estremeceu, embora a noite não estivesse nem um pouco fria. Sentiu o calor daqueles dois corpos lascivos, depravados, pressionando-o, um de cada lado. E em uma das paredes, negligenciada entre a profusão desordenada, uma pequena pintura de três crianças, duas meninas, um menino, posando com um cachorro, e o muro externo de Trois Flèches reconhecível atrás dele.
A segunda irmã. A terceira flecha, que Hal, com sua infalível noção de peculiaridade, nunca vira, mas ainda assim notara.
Os Beauchamp eram uma família nobre, antiga - e como a maior parte dessas famílias, frequentemente se referiam, ainda que casualmente, a si próprios. Durante sua visita, ele ouvira sobre os feitos de primos, tios, tias, parentes distantes... mas nunca da segunda irmã.
Ela deve ter morrido na infância, é claro; coisas assim eram comuns. Mas, nesse caso, por que Percy teria dito...?
Agora sua cabeça realmente começava a doer. Com um suspiro, levantou-se e entrou. Não fazia a menor ideia de onde ou quando - mas iria ter que falar com Percy outra vez. Ficou chocado ao ver que a perspectiva não o assustava.
UNHAS LEY
Brianna parou junto à câmara de observação de peixes. Ainda não era a estação do acasalamento, quando - assim haviam lhe contado - cardumes inteiros de salmão migravam pelas cascatas da escada de peixes que permitia que eles galgassem a barragem de Pitlochry, mas de vez em quando um lampejo prateado projetava-se inesperadamente no ar, lutando bravamente contra a corrente por um instante, antes de se lançar dentro do tubo que levava ao próximo estágio da escada. A câmara em si era um pequeno compartimento branco embutido na lateral da escada de peixes, com uma janela embaçada por algas. Ela parara ali para ordenar seus pensamentos - ou melhor, para eliminar alguns deles - antes de entrar na represa.
Era tolice se preocupar com alguma coisa que já havia acontecido. E ela sabia que seus pais estavam bem. Ou ao menos, corrigiu-se, que haviam saído de Fort Ticonderoga; ainda restavam muitas cartas.
E também ela podia ler essas cartas a qualquer momento, e descobrir. Era isso que tornava sua preocupação ridícula. Achava que não estava verdadeiramente preocupada. Apenas... pensativa. As cartas eram maravilhosas. Mas, ao mesmo tempo, ela sabia muito bem o quanto até mesmo a carta mais completa poderia deixar de fora. E, segundo o livro de Roger, o general Burgoyne deixara o Canadá no começo de junho, seu plano sendo marchar para o sul e juntar-se às tropas do general Howe, cortando as Colônias essencialmente ao meio. E, em 6 de julho de 1777, ele parara para atacar Fort Ticonderoga. O que...
- Coimhead airsin! - disse uma voz atrás dela. Brianna virou-se bruscamente, espantada, e viu Rob Cameron ali parado, gesticulando entusiasticamente para a janela de observação dos peixes. Ela virou-se bem a tempo de ver um enorme peixe dourado, com manchas escuras no dorso, dar um grande salto contra a corrente antes de desaparecer no tubo.
- Nach e sin an rud as brèagha a chunnaic thu riamh? - ele disse, a expressão do rosto ainda maravilhada. Não é a coisa mais bonita que você já viu?
- Cha mhór! - ela respondeu, cautelosa, mas incapaz de não retribuir o sorriso. Quase.
O próprio sorriso dele permaneceu, mas torno-se mais pessoal quando voltou sua atenção para ela.
- Ah, você realmente fala gàidhlig! Meu primo me disse, mas não acreditei. Você com seu sotaque de Bah-ston - ele disse, arrastando as sílabas no que obviamente achava que era um sotaque de Boston.
- Sim, "pahk yah cah in Hah-vahd Yahd" - disse Brianna a famosa frase Park your car in Harvard Yard" para exemplificar o verdadeiro, porém exagerado, sotaque bostoniano.
Ele deu uma gargalhada.
- Como você consegue? Você não fala gàidhlig com esse tipo de sotaque. Quero dizer, você tem sotaque, mas é... diferente. Mais como se ouviria nas ilhas Barra, talvez, ou Uist.
- Meu pai era escocês - ela disse. - Aprendi com ele.
Isso o fez olhar para ela com novos olhos, como se ela fosse um tipo novo de peixe que ele acabara de fisgar em seu anzol.
- É mesmo? Daqui de perto? Qual é o nome dele?
- James Fraser - ela respondeu. Era seguro; havia dezenas. - Era. Ele já... se foi.
- Ah, que pena - disse solidariamente, tocando de leve em seu braço. - Perdi meu pai no ano passado. É difícil, hein?
- Sim - ela respondeu laconicamente e fez menção de passar por ele. Cameron virou-se imediatamente e começou a caminhar a seu lado.
- Você também tem filhos pequenos, não é? Roger me contou. - Ele notou sua surpresa e sorriu de viés para ela. - Eu o conheci na loja. Bom sujeito.
- Sim, é - ela disse, na defensiva. Roger não mencionara ter conhecido Rob e ela se perguntou por que não. Obviamente, ele havia conversado com Rob tempo suficiente para ele saber que Roger era seu marido e que tinham filhos. Mas Rob não insistiu no assunto e, em vez disso, espreguiçou-se e atirou a cabeça para trás.
- Aahhh... um dia bonito demais para passar na represa. Gostaria de estar na água. - Sacudiu a cabeça indicando o rio, onde meia dúzia de pretensos pescadores estava entre as ondas, com a atenção predatória de garças. - Você ou Roger gostam de pescar?
- Eu gosto - ela disse, e sentiu a lembrança do arremesso de uma vara de pescar nas mãos, enviando uma pequena sensação eletrizante pelas extremidades de seus nervos. - Você pesca, então?
- Sim, tenho licença para Rothiemurchus. - Pareceu orgulhoso, como se fosse algo especial, de modo que ela fez alguns ruídos de aprovação. Ele olhou para ela de través, os olhos cor de caramelo, sorridentes. - Se um dia quiser ir até lá com sua vara, é só dizer. Chefe. - Riu repentinamente para ela, descontraído e sedutor, passando à sua frente e entrando no escritório da represa, assoviando.
Uma linha ley é um alinhamento hipotético observado entre dois pontos de interesse geográfico, em geral locais antigos ou sagrados como os círculos de pedra e outros monumentos pré-históricos. Existem inúmeras teorias sobre essas linhas e bastante controvérsia quanto ao fato de realmente existirem como fenômeno e não apenas como um artefato.
Com isso quero dizer que, se quisermos escolher dois pontos de interesse para o ser humano, é muito provável que haja um caminho que leve de um ao outro, quaisquer que sejam esses pontos. Existe uma estrada principal entre Londres e Edimburgo, por exemplo, porque as pessoas frequentemente querem ir de uma cidade para a outra, mas isso normalmente não é chamado de linha ley. O que as pessoas geralmente têm em mente ao usar este termo é uma trilha antiga que vai, digamos, de um monumento monolítico a uma abadia antiga, a qual por sua vez provavelmente foi construída em um local de adoração muito mais antigo.
Uma vez que não há muitas evidências objetivas além da existência óbvia de tais linhas, muita bobagem se diz a respeito. Algumas pessoas acreditam que as linhas possuem um significado mágico ou místico. Eu mesmo não vejo nenhum fundamento para isso, nem sua mãe, que é uma cientista. Por outro lado, a ciência muda de opinião de vez em quando e o que parece mágica pode na verdade ter uma explicação científica (N.B. - inserir nota de rodapé sobre Claire e a colheita de plantas).
Entretanto, entre as teorias referentes a linhas ley, há uma que parece ter ao menos uma base física possível. Talvez você já saiba o que são rabdomantes, quando vier a ler esta carta. Eu lhe apresentarei a um assim que houver oportunidade. Mas, em todo caso - um rabdomante é uma pessoa que tem a capacidade de detectar a presença de água ou às vezes de corpos de metal no subsolo, como o minério em minas. Alguns usam um galho com uma forquilha, uma vara de metal ou alguma outra espécie de "varinha mágica", com a qual "revelar" a água; alguns meramente pressentem. O porquê dessa aptidão não se sabe: sua mãe diz que a navalha de Occam diria que tais pessoas apenas reconhecem o tipo de geologia que é mais provável de armazenar água no subsolo. Mas eu já vi rabdomantes em ação e tenho certeza de que é mais do que isso - especialmente em vista das teorias a que me refiro aqui.
Uma das teorias sobre como a rabdoscopia funciona é que a água ou metal possui uma corrente magnética, à qual o rabdomante é sensível. Sua mãe diz que a primeira parte disso é verdade e que, mais ainda, há largas faixas de força geomagnética na crosta terrestre, que correm em direções opostas por todo o globo. E mais, ela me diz que essas faixas são detectáveis por medições objetivas, mas não são necessariamente permanentes; de fato, a Terra sofre reversões ocasionais (a intervalos de alguns milhões de anos, eu acho; ela não sabe a frequência exata) de sua força geomagnética - ninguém sabe por quê, mas em geral suspeita-se das manchas solares - com os polos trocando de lugar.
Outra informação interessante é que pombos-correio (e muito provavelmente outros tipos de pássaros) comprovadamente sentem essas linhas geomagnéticas e as usam para navegar, embora ninguém tenha ainda descoberto exatamente como fazem isso.
O que suspeitamos - sua mãe e eu - e devo ressaltar que podemos facilmente estar enganados nesta suposição - é que as linhas ley de fato existam, que são (ou se correlacionam com) linhas de força geomagnética e que onde elas se cruzam ou convergem temos um ponto onde essa força magnética é... diferente, por falta de uma palavra melhor. Acreditamos que essas confluências - ou algumas delas - possam ser os locais onde épossível para as pessoas sensíveis a tais forças (como pombos, imagino) viajarem de uma época para outra (isso seria sua mãe e eu, e você,Jem e Mandy). Se a pessoa que estiver lendo isto for um filho (ou neto) ainda não nascido, então não sei dizer se você terá esta sensibilidade, dom ou o que seja, mas eu lhe asseguro que é real. Sua avó especulou que se trata de um traço genético, mais ou menos como a capacidade de dobrar a língua; se você não a tiver, o "como"fazer isso é simplesmente incompreensível, apesar de você poder observar alguém que possua esse traço. Se for este o seu caso, não sei se devo pedir desculpas ou parabenizá-lo, embora suponha que não seja pior do que outras coisas que os pais transmitem aos filhos, sem o saber, como dentes tortos ou miopia. De um jeito ou de outro, acredite, não o fizemos de propósito.
Desculpe-me, acho que fugi do assunto. O ponto principal é que a capacidade de viajar no tempo pode ser dependente de uma sensibilidade genética a essas... convergências? Vórtices?... de linhas ley.
Devido à história geológica peculiar das Ilhas Britânicas, encontramos muitas linhas ley aqui e, da mesma forma, um grande número de sítios arqueológicos que parecem ligados por essas linhas. Sua mãe e eu pretendemos registrar, até onde for possível fazê-lo sem perigo - e não se engane; é muito perigoso a ocorrência de tais sítios que possam ser portais. Obviamente, não há como saber com certeza se um determinado local é um portal ou não.
A observação de que sítios parecem estar "abertos" nas datas que correspondem às festas do sol e às festas do fogo dos povos antigos (ou ao menos mais abertos do que em outras épocas) pode - se esta hipótese estiver correta - ter alguma coisa a ver com a atração gravitacional do sol e da lua. Isso parece fazer sentido, considerando-se que tais corpos realmente afetam o comportamento da Terra com relação a marés, tempo etc. - por que não vórtices de tempo, também, afinal de contas?
Nota: Sua mãe diz - bem, ela disse muita coisa, da qual eu pincei as palavras "Teoria do Campo Unificado", que pelo que entendi é algo que ainda não existe, mas que se existisse explicaria muitas coisas, e entre elas poderia estar a resposta para por que uma convergência de linhasgeomagnéticas podem afetar o tempo no local onde a convergência ocorre. Tudo que eu pessoalmente obtive dessa explicação é a ideia de que o espaço e o tempo ocasionalmente são a mesma coisa, e a gravidade está de certa forma envolvida. Isso faz tanto sentido para mim quanto qualquer outra coisa relativa a esse fenômeno.
Nota 2:
- Isso faz sentido? - Roger perguntou. - Até aqui, pelo menos?
- Até onde qualquer coisa sobre isso faz sentido, sim. - Apesar da inquietação que se apoderava dela toda vez que discutiam o assunto, não pôde deixar de sorrir; ele parecia tão ansioso. Havia uma mancha de tinta em sua face e seus cabelos pretos estavam despenteados de um lado. - A vontade de ensinar deve estar no sangue - ela disse, retirando um lenço de papel do bolso, lambendo-o à maneira de uma gata com seu filhote e aplicando-o à face dele. - Sabe, existe essa maravilhosa invenção moderna chamada esferográfica...
- Detesto-as - ele disse, fechando os olhos e deixando-se limpar. - Além do mais, uma caneta-tinteiro é um luxo, comparada a uma pena de escrever.
- Bem, isso é verdade. Papai sempre parecia ter sofrido uma explosão numa fábrica de tinta quando escrevia cartas. - Seus olhos retornaram à página e ela resfolegou ligeiramente diante da primeira nota de rodapé, fazendo Roger sorrir.
- É uma explicação razoável?
- Considerando que se destina às crianças, mais do que adequada - ela lhe assegurou, abaixando a folha. - O que diz na nota 2?
- Ah. - Reclinou-se para trás em sua cadeira, as mãos entrelaçadas, parecendo nervoso. - Aquilo.
- Sim, aquilo - ela disse, instantaneamente alerta. - Existe algo como Prova A que deverá entrar ali?
- Bem, sim - ele disse, com relutância, e fitou-a nos olhos. - Os cadernos de anotações de Geillis Duncan. O caderno da sra. Graham seria a Prova B. As explicações de sua mãe sobre superstições em relação a plantas é a nota 4.
Brianna pôde sentir o sangue se esvaindo de sua cabeça e sentou-se, por precaução.
- Tem certeza de que é uma boa ideia? - ela perguntou, hesitante. Ela própria não sabia onde os cadernos de anotações de Geillis Duncan estavam, e não queria saber. O caderninho que Fiona Graham, a neta da sra. Graham, havia lhes dado estava guardado a salvo em um cofre de segurança no RBS, o Banco Real da Escócia, em Edimburgo.
Roger soltou o ar de um só jato e sacudiu a cabeça.
- Não, não tenho - disse com franqueza. - Mas, veja bem. Não sabemos que idade as crianças terão quando lerem isto. O que me faz lembrar que temos que tomar algumas medidas para garantir isso. Para o caso de alguma coisa nos acontecer antes que tenham idade suficiente para saberem de... tudo.
Ela sentiu como se um cubo de gelo estivesse se derretendo lentamente pelas suas costas. Mas ele tinha razão. Podiam ambos ser mortos em um acidente de carro, como os pais de sua mãe. Ou a casa podia pegar fogo...
- Bem, não - ela disse em voz alta, olhando para a janela atrás de Roger, embutida em uma parede de pedra de uns cinquenta centímetros de espessura. - Acho que esta casa não vai pegar fogo.
Isso o fez sorrir.
- Não, não estou muito preocupado com isso. Mas os cadernos de anotações... sim, sei o que quer dizer. E pensei em talvez examiná-los eu mesmo e fazer uma espécie de filtragem das informações; ela de fato tinha muitas anotações sobre quais círculos de pedras pareciam estar ativos, e isso é útil. Porque ler o restante é... - Abanou a mão em busca da palavra certa.
- Arrepiante - ela interpôs.
- Eu ia dizer que é como observar alguém enlouquecer lentamente diante de você, mas "arrepiante" serve. - Ele pegou as folhas da mão de Brianna e arrumou-as. - Acho que é um hábito acadêmico. Não acho certo suprimir uma fonte original.
Ela resfolegou de um modo diferente, de forma a indicar o que achava de Geillis Duncan como fonte original de qualquer coisa que não fosse problemática. Ainda assim...
- Creio que tem razão - disse com relutância. - Mas talvez você possa fazer um resumo e apenas mencionar onde estão os cadernos originais, para o caso de mais alguém no futuro ficar realmente curioso.
- Não é uma má ideia. - Ele colocou os papéis dentro do seu caderno de anotações e se levantou, fechando-o simultaneamente. - Vou descer e pegá-los, então, talvez depois da escola. Eu poderia levar Jem e mostrar-lhe a cidade; ele já tem idade suficiente para percorrer a Royal Mile e ele iria adorar o castelo.
- Não o leve à Masmorra de Edimburgo - ela disse imediatamente, e ele abriu um largo sorriso.
- Não acha que figuras de ceras de pessoas sendo torturadas sejam educativas? É tudo histórico, hein?
- Seria bem menos terrível se não fosse - ela disse e, virando-se, viu o relógio de parede. - Roger! Você não tem que dar suas aulas de gaélico na escola às duas horas?
Ele olhou para o relógio incrédulo, agarrou a pilha de livros e papéis em cima da mesa e saiu em disparada com uma enxurrada muito eloquente de expressões em gaélico.
Ela saiu para o corredor a tempo de vê-lo beijar rapidamente Mandy e arremeter-se para a porta. Mandy ficou parada no vão da porta aberta, acenando entusiasticamente.
- Té logo, papai! - ela gritou. - Taz sorvete pa mim!
- Se ele esquecer, iremos à cidade depois do jantar para tomar sorvete - Brianna prometeu, abaixando-se para pegar sua filha no colo. Ficou ali parada segurando Mandy, observando o antigo Morris cor de laranja de Roger cuspir, engasgar, estremecer e finalmente pegar com um breve arroto de fumaça azul. Ela franziu ligeiramente a testa diante da cena, pensando que devia comprar um novo par de velas de ignição para ele, mas acenou quando ele se inclinou para fora na curva do caminho, sorrindo para elas.
Mandy aconchegou-se em seu colo, murmurando uma das frases em gaélico mais pitorescas de Roger, que ela obviamente estava tentando gravar, e Bri inclinou a cabeça, inalando o perfume doce de xampu Johnson de bebês e de criança suja. Sem dúvida, foi a menção de Geillis Duncan que a estava fazendo se sentir inquieta. A mulher estava definitivamente morta, mas afinal... ela era avó distante de Roger. E talvez a capacidade de viajar através dos círculos de pedras não fosse o único traço transmitido pelo sangue.
Embora, é claro, algumas coisas se diluíssem com o tempo. Roger, por exemplo, não tinha nada em comum com William Buccleigh Mackenzie, o filho de Geillis com Dougal Mackenzie - e o homem responsável pelo enforcamento de Roger.
- Filho da mãe - ela disse, baixinho. - Espero que apodreça no inferno.
- Essa palavra é feia, mamãe - Mandy disse em tom de reprovação.
Foi melhor do que ele esperava. A sala estava repleta, com muitas crianças, vários pais e até mesmo alguns avós amontoados ao longo das paredes. Ele teve aquele momento de leve tontura - não exatamente pânico ou medo de falar em público, mas a sensação de olhar para dentro de um extenso desfiladeiro do qual ele não conseguia ver o fundo - que já conhecia dos tempos em que se apresentava tocando e cantando. Respirou fundo, colocou sobre a mesa sua pilha de livros e papéis, sorriu para eles e disse:
- Feasgar math!
Sempre bastava apenas isso; ditas as primeiras palavras - ou cantadas -, e era como segurar um fio desencapado. Uma corrente surgiu entre ele e a plateia e as palavras seguintes pareceram vir do nada, fluindo através dele como a água através de uma das turbinas gigantes de Bri.
Após uma ou duas palavras de introdução, ele começou com a noção de xingamentos em gaélico, sabendo o motivo da presença da maioria das crianças ali. As sobrancelhas de alguns dos pais se levantaram, mas sorrisinhos compreensivos apareceram nos rostos dos avós.
- Não temos palavrões em gàidhlig, como temos no inglês - ele disse, e riu para o menino de cabelos cor de palha, com um ar agressivo, na segunda fileira, que só podia ser o pequeno Glasscock que dissera a Jemmy que ele iria para o inferno. - Sinto muito, Jimmy. O que não quer dizer que você não possa dar uma boa e forte opinião sobre alguém - continuou, assim que as risadas se calaram. - Mas xingar em gàidhlig é uma questão de arte, não de grosseria. - Isso provocou uma onda de risadas dos mais velhos também e várias crianças voltaram a cabeça para seus avós, surpresas. - Por exemplo, certa vez ouvi um fazendeiro cuja porca havia entrado no meio do monte de grãos moídos dizer a ela que esperava que seus intestinos explodissem pela sua barriga e fossem devorados pelos abutres.
Um impressionado "Ooh!" das crianças. Ele sorriu e continuou, apresentando versões cuidadosamente editadas de algumas das coisas mais criativas que já ouvira seu sogro dizer uma vez ou outra. Não é necessário acrescentar que, apesar da falta de palavrões, na verdade é possível chamar uma pessoa de "filha de uma cadela" quando alguém está querendo ser realmente maldoso. Se as crianças quisessem saber o que Jem de fato dissera à srta. Glendenning, teriam que perguntar a ele. Se já não o tivessem feito.
Dali, ele passou a uma descrição mais séria - embora rápida - da Gaeltacht, aquela área da Escócia onde o gaélico era tradicionalmente falado, e contou algumas anedotas sobre aprender gaélico em barcos de pesca de arenque no Minch quando era adolescente - inclusive todo o discurso feito por um capitão Taylor quando uma tempestade varreu seu principal buraco de lagostas e levou todas as suas armadilhas (essa peça de eloquência tendo sido dirigida, com o punho cerrado, ao mar, aos céus, à tripulação e às lagostas). Isso fez todos rirem outra vez, e alguns garotos mais velhos no final da sala riam e cochichavam, eles já tendo obviamente se deparado com situações similares.
- Mas O gàidhlig é uma língua - ele disse, depois que as risadas arrefeceram outra vez. - E isso significa que sua função primária é a comunicação, pessoas falando umas com as outras. Quantos de vocês já ouviram cantos corais? E canções de trabalho das mulheres que preparavam a lã?
Murmúrios de interesse; alguns tinham, outros não. Então ele explicou o que eram essas canções de "pisar".
- Todas as mulheres cantando e trabalhando juntas, empurrando, puxando e amassando com os pés o tecido de lã molhado para que ficasse bem grosso e impermeável. Afinal, antigamente as pessoas não tinham capas de chuva e precisavam ficar do lado de fora dia e noite, com sol ou chuva, cuidando dos animais ou da lavoura. - Sua voz já estava bem aquecida agora; achou que poderia exemplificar com uma pequena canção de trabalho e, abrindo sua pasta, cantou o primeiro verso e o refrão, depois fez com que eles fizessem o mesmo. Cantaram quatro versos e então ele sentiu que o esforço começava a dar sinais e encerrou a demonstração.
- Minha avó costumava cantar esta - uma das mães disse impulsivamente, depois ficou vermelha como uma beterraba quando todos olharam para ela.
- Sua avó ainda é viva? - Roger perguntou e, diante de seu envergonhado sinal afirmativo com a cabeça, disse: - Bem, então, peça a ela para ensiná-la a você, e você poderá ensiná-la a seus filhos. Esse tipo de coisa não deve se perder, não é?
Ouviu-se um leve murmúrio de concordância ligeiramente surpreendida. Ele sorriu outra vez e ergueu o surrado livro de hinos que trouxera.
- Muito bem. Eu também mencionei os cantos corais. Vocês ainda podem ouvi-los aos domingos nas igrejas das Ilhas. Se forem a Stornway, por exemplo, poderão ouvir. É uma maneira de cantar os salmos que data da época em que as pessoas não tinham muitos livros, ou talvez não muitos membros da congregação soubessem ler. Assim, havia um precentor, cuja função era cantar o salmo, um verso de cada vez, quando então a congregação repetia o verso para ele. Este livro - e ele ergueu o livro de salmos - pertenceu ao meu próprio pai, o reverendo Wakefield; alguns de vocês devem se lembrar dele. Mas originalmente pertenceu a um outro clérigo, o reverendo Alexander Carmichael. Ele... - e continuou contando sobre o reverendo Chamichael, que percorrera as Highlands e as Ilhas no século XIX, conversando com as pessoas, instando-as a cantar suas canções para ele e a lhe contar seus modos e costumes, colecionando "hinos, feitiços e encantamentos" da tradição oral sempre que os encontrava, e publicara essa grande obra de erudição em vários volumes, chamada Carmina Gadelica.
Ele havia trazido um volume do Gadelica consigo e enquanto passava o velho livro de hinos pela sala, juntamente com o livro de canções de trabalho que ele havia compilado, leu para eles um dos feitiços da lua nova, um encantamento para um animal que fica ruminando, sofrendo de empanzinamento, uma simpatia para indigestão, o poema do besouro e alguns trechos de "A linguagem dos pássaros".
Columba saiu bem cedo Em uma manhã de sol;
Ele viu um cisne branco,
"Guile, guile"
Na margem do lago,
"Guile, guile"
Era um canto fúnebre "Guile, guile"
Um cisne branco ferido,
Um cisne branco machucado,
O cisne branco das duas visões,
"Guile, guile"
O cisne branco dos dois augúrios,
"Guile, guile"
Vida e morte.
"Guile, guile"
"Guile, guile"
Quando será tua jornada,
Cisne do luto?
Disse Columba do amor,
"Guile, guile"
De Erin vim nadando,
"Guile, guile"
Dos Fiann é meu ferimento,
"Guile, guile"
A profunda ferida da minha morte,
"Guile, guile"
"Guile, guile"
Cisne branco de Erin,
Sou amigo dos necessitados;
Que o olhar de Cristo esteja em teu ferimento, "Guile, guile"
O olhar de afeto e de misericórdia,
"Guile, guile"
O olhar da bondade e do amor,
"Guile, guile"
Para curar,
"Guile, guile" "Guile, guile"
Cisne de Erin,
"Guile, guile"
Nenhum mal te atingirá,
"Guile, guile"
Que tuas feridas se curem,
"Guile, guile"
Senhora das ondas,
"Guile, guile"
Senhora dos réquiens,
"Guile, guile"
Senhora das melodias,
"Guile, guile"
A Cristo a glória,
"Guile, guile"
Ao Filho da Virgem,
"Guile, guile"
Ao grandioso Rei dos Reis,
"Guile, guile"
Para Ele seja o teu canto,
"Guile, guile"
Para Ele seja o teu canto.
"Guile, guile"
"Guile, guile"
Sua garganta doía de uma maneira quase insuportável por fazer o canto do cisne, do brando gemido do cisne ferido ao grito triunfante das palavras finais, e no final sua voz já fraquejava, mas foi magnífico e a plateia irrompeu em aplausos.
Entre a dor e a emoção, não conseguiu falar por alguns minutos e, em vez disso, inclinava-se e sorria e inclinava-se outra vez, mudo, entregando a pilha de livros e pastas a Jimmy Glasscock para ser passada adiante, enquanto a plateia se aglomerava à sua volta para felicitá-lo.
- Rapaz, isso foi fantástico. - disse uma voz mais ou menos familiar. Ele ergueu os olhos e viu que se tratava de Rob Cameron sacudindo sua mão, os olhos brilhantes de entusiasmo. A surpresa de Roger deve ter transparecido em seu rosto, pois Rob sacudiu a cabeça indicando o menino ao seu lado: Bobby Hurragh, que Roger conhecia bem do coro. Um admirável soprano puro, e um diabinho se não fosse vigiado de perto. - Eu trouxe o pequeno Bobby - Rob - disse, segurando, como Roger notou, com firmeza a mão do menino. - Minha irmã teve que ir trabalhar hoje e não podia tirar uma folga. Ela é viúva - ele acrescentou, como explicação tanto da ausência da mãe quanto de sua própria presença.
- Obrigado - Roger conseguiu dizer com um grasnido, mas Cameron apenas sacudiu sua mão outra vez e deu lugar ao próximo na fila para parabenizá-lo.
No meio da aglomeração, estava uma mulher de meia-idade que ele não conhecia, mas que o reconheceu.
- Meu marido e eu vimos você cantar uma vez, nos Jogos de Inverness - ela disse, com um sotaque bem-educado embora você usasse o sobrenome de seu falecido pai na ocasião, não é?
- É verdade - ele disse, com o coaxar de um sapo que era até onde sua voz conseguia ir no momento. - Seu... vocês têm... um neto? - Acenou vagamente na direção do enxame alvoroçado de crianças girando ao redor de uma senhora idosa que, afogueada de satisfação, explicava a pronúncia de algumas palavras em gaélico de aparência estranha no livro de contos.
- Sim - a mulher disse, sem desviar os olhos da cicatriz em sua garganta. - O que aconteceu? - ela perguntou, com compaixão. - É permanente?
- Acidente - ele disse. - Receio que sim.
A aflição enrugou os cantos de seus olhos e ela sacudiu a cabeça.
- Oh, mas que pena - ela disse. - Sua voz era maravilhosa.
- Obrigado - ele disse, porque era tudo que podia dizer. Ela o deixou, então, para receber os elogios de pessoas que nunca o tinham ouvido cantar. Antes.
Mais tarde, ele agradeceu a Lionel Menzies, parado junto à porta para se despedir de quem saía, radiante como o diretor de um circo bem-sucedido.
- Foi maravilhoso - Menzies disse, apertando sua mão efusivamente. - Melhor ainda do que eu esperava. Diga-me, consideraria a possibilidade de fazer isso de novo?
- De novo? - Ele riu, mas desatou a tossir. - Eu mal consegui terminar esta.
- Aarh! - Menzies abanou a mão, descartando o argumento. - Um trago vai consertar sua garganta. Vamos tomar alguma coisa no pub?
Roger estava prestes a recusar, mas o rosto de Menzies reluzia de tanta satisfação que ele mudou de ideia. O fato de estar banhado de suor - apresentar-se em público sempre elevava sua temperatura corporal em vários graus - e ter um acesso de sede à altura do deserto de Gobi nada tinha a ver com isso, é claro.
- Apenas um, então - ele disse, e sorriu.
Quando atravessavam o estacionamento, um pequeno e surrado caminhão azul freou e Rob Cameron inclinou-se para fora da janela, chamando-os.
- Gostou, não?, Rob? - Menzies perguntou, ainda radiante.
- Adorei - Cameron disse, com toda a evidência de sinceridade. - Duas coisas, Rog - Eu queria perguntar, talvez, se você me deixaria ver algumas das canções antigas que você tem; Siegfried MacLeod mostrou-me as que você fez para ele.
Roger ficou um pouco desconcertado mas satisfeito.
- Sim, claro - ele disse. - Não sabia que você era um fã - brincou.
- Gosto de tudo que é antigo - Cameron disse, sério desta vez. Realmente, eu ficaria muito agradecido.
- Está bem, então. Vá até lá em casa, talvez, no próximo fim de semana?
Rob abriu um largo sorriso e fez um leve aceno de despedida.
- Espere. Duas coisas, você disse? - Menzies perguntou.
- Oh, sim. - Cameron estendeu o braço e pegou alguma coisa no banco entre ele e Bobby. - Isso estava dentro dos papéis de gaélico que você fez circular entre as pessoas. Mas parecia estar lá por engano, então eu retirei. Está escrevendo um romance?
Ele entregou o caderno de anotações preto, "O Guia do Mochileiro", e a garganta de Roger se fechou como se ele tivesse sido garroteado. Pegou o caderno, balançando a cabeça, sem fala.
- Talvez me deixe ler quando tiver terminado - Cameron disse descontraidamente, engatando o caminhão. - Adoro ficção científica.
O caminhão se afastou, depois parou repentinamente e começou a dar ré. Roger segurou o caderno preto com mais força, mas Rob não olhou para ele.
- Ei - disse. - Me esqueci. Brianna disse que vocês têm um antigo forte de pedra ou algo assim em sua propriedade?
Roger balançou a cabeça, limpando a garganta.
- Tenho um amigo, arqueólogo. Se importaria se, talvez, ele desse uma olhada nele em alguma hora?
- Não - Roger respondeu roucamente, depois clareou a garganta novamente e disse com mais firmeza. - Não, seria ótimo. Obrigado.
Rob riu alegremente para ele e partiu.
- Não há de quê, amigo - ele disse.
SEMPRE NO ALTO
O amigo arqueólogo de Rob, Michael Callahan, um sujeito alegre de uns cinquenta anos, com cabelos louros ralos e tão queimado de sol que seu rosto parecia uma colcha de retalhos, com sardas escuras dispersas entre áreas de pele rosa vívido. Ele esquadrinhou as pedras caídas da velha igreja com grande interesse, pedindo permissão a Roger para cavar uma trincheira ao longo de uma parede externa.
Rob, Brianna e as crianças subiram rapidamente até lá para observar, mas trabalho arqueológico não é um esporte de espectadores, e quando Jem e Mandy se entediaram o grupo desceu para a casa para fazer o almoço, deixando Roger e Mike em suas escavações.
- Eu não preciso de você - Callahan disse, erguendo os olhos para Roger após certo tempo. - Se tiver outras coisas a fazer.
Sempre havia coisas a fazer - era uma fazenda, afinal, ainda que pequena -, mas Roger sacudiu a cabeça.
- Estou interessado - ele disse. - Se eu não estiver atrapalhando...?
- Nem um pouco - Callahan disse alegremente. - Ajude-me a levantar isto, então.
Callahan assobiava entre os dentes enquanto trabalhava, de vez em quando murmurando consigo mesmo, mas na maior parte do tempo não fazia nenhum comentário sobre o que estivesse examinando. Roger era requisitado vez por outra para ajudar a retirar algum entulho ou segurar uma pedra instável enquanto Callahan espreitava sob ela com uma pequena lanterna, porém na maior parte do tempo Roger permaneceu sentado no pedaço de parede que não desmoronara, ouvindo o vento.
Era silencioso ali no alto da colina, da maneira como lugares desertos são silenciosos, com uma sensação constante de movimento não manifesto, e lhe pareceu estranho que devesse ser assim. Normalmente, não se tem essa sensação em locais onde pessoas viveram, e obviamente as pessoas andaram por aquela colina por um longo tempo, a julgar pela profundidade da trincheira de Callahan e pelos pequenos assovios de interesse que ele soltava de vez em quando, como uma marmota.
Brianna trouxe-lhes sanduíches e limonada, depois se sentou ao lado de Roger na parede para comer.
- Rob já se foi, então? - Roger perguntou, vendo que o caminhão não estava mais no pátio da frente da casa.
- Só para resolver umas coisas, segundo ele. Disse que não parecia que Mike fosse terminar tão cedo - ela disse, com um olhar para o traseiro das calças de Callahan, projetando-se de um arbusto, enquanto ele escavava alegremente embaixo.
- Talvez não - Roger disse, sorrindo, e, inclinando-se para frente, beijou-a de leve. Ela fez um ruído baixo de contentamento no fundo da garganta e deu um passo para trás, mas continuou segurando a mão dele por um instante.
- Rob perguntou sobre as canções antigas que você arranjou para Sandy MacLeod - ela disse, com um olhar de viés para baixo da colina, na direção da casa. - Você disse a ele que podia vê-las?
- Oh!, sim, eu me esqueci. Claro. Se eu não tiver descido quando ele voltar, você pode mostrá-las a ele. Os originais estão na última gaveta do meu arquivo, em uma pasta intitulada Cèolas.
Ela assentiu e desceu, os pés longos, calçados de tênis, seguros como as patas de uma corça no caminho pedregoso, e seus cabelos presos na nuca, descendo pelas costas como uma cauda da mesma cor do pelo da corça.
Conforme a tarde definhava, ele se viu mergulhando em um estado não muito distante do transe, a mente movendo-se preguiçosamente e o corpo não muito mais depressa, indolentemente dando uma ajuda onde necessária, mal trocando uma palavra com Callahan, que parecia igualmente perdido em seus pensamentos. A névoa inconstante da manhã havia se espessado e as sombras frescas entre as pedras desapareceram com a luz. O ar estava frio e carregado de umidade em sua pele, mas não havia nenhum indício de chuva. Quase podia sentir as pedras se erguendo ao seu redor, pensou, voltando ao lugar onde estiveram um dia.
Havia idas e vindas na casa lá embaixo: batida de portas, Brianna pendurando as roupas lavadas, as crianças e dois meninos da fazenda ao lado que tinham vindo passar a noite com Jem, todos correndo pela horta e pelas construções externas, com uma brincadeira de pegar que envolvia um grande alarido, os gritos altos e estridentes semelhantes aos gritos de águias-pescadoras. Em certo momento, ele olhou para baixo e viu o caminhão da Farm & Household, provavelmente vindo entregar a bomba para o separador de nata, pois Roger viu Brianna conduzindo o motorista na direção do estábulo, ele impossibilitado de ver pelos lados da enorme caixa de papelão em seus braços.
Por volta das cinco horas, uma nova brisa forte surgiu e a névoa começou a se dissipar. Como se fosse um sinal para acordar Callahan de seu sonho, o arqueólogo endireitou-se, ficou parado por um instante olhando para alguma coisa lá embaixo, depois balançou a cabeça.
- Bem, pode ser um sítio antigo - ele disse, saltando para fora de sua trincheira e gemendo enquanto se inclinava para frente e para trás, esticando as costas. - Mas a estrutura não é. Provavelmente construída nos últimos séculos, embora quem tenha construído sem dúvida usou pedras muito mais antigas na construção. Certamente, as trouxe de outro lugar, embora algumas possam ser de uma estrutura mais antiga construída no mesmo lugar. - Sorriu para Roger. - As pessoas são parcimoniosas nas Highlands; na semana passada, vi um celeiro com uma antiga pedra dos pictos usada no alicerce e um chão feito com tijolos da demolição de um banheiro público em Dornoch.
Callahan olhou para oeste, protegendo os olhos, onde a névoa agora pairava bem baixa sobre a costa distante.
- Sempre no alto - ele disse, de modo casual. - Eles sempre escolhiam lugares altos, os antigos. Fosse um forte ou um local de culto, eles sempre subiam.
- Os antigos? - Roger perguntou, e sentiu um breve arrepio na nuca. - Que antigos?
Callahan riu, sacudindo a cabeça.
- Não sei. Pictos, talvez. Tudo que conhecemos deles são os poucos trabalhos em pedra aqui e ali. Ou o povo que veio antes deles. As vezes, você ve alguma coisa que sabe que foi feita, ou ao menos colocada, pelo homem, mas não consegue encaixá-la em nenhuma cultura conhecida. Os monumentos megalíticos Por exemplo, as pedras verticais. Ninguém sabe quem as colocou em pé ou para quê.
- Pois é - Roger murmurou. - Sabe dizer que tipo de sítio antigo este aqui foi? Para a guerra ou para o culto, quero dizer?
Callahan sacudiu a cabeça.
- Não pelo que está aparente na superfície, não. Talvez se escavássemos o sítio que está por baixo deste... mas, para ser franco, não vejo nada que realmente motivasse alguém a fazer isso. Há centenas de sítios como este em colinas, por todas as Ilhas Britânicas e a Bretanha também. De antigos celtas, muitos deles, Idade do Ferro, muitos bem mais antigos. - Pegou a danificada cabeça de santo, afagando-a com uma espécie de afeição.
- Essa senhora é muito mais recente, talvez século XIII, XIV. Talvez a santa padroeira da família, legada à geração seguinte ao longo dos anos. - Deu um beijo de leve, sem inibição, e entregou-a delicadamente a Roger. - Vale dizer, no entanto, e isso não é científico, apenas o que eu mesmo penso por já ter visto tantos lugares como este, que, se a estrutura moderna era uma capela, então o sítio antigo sob ela provavelmente também era um local de culto. As pessoas das Highlands são conservadoras em seus hábitos. Elas podem construir um novo celeiro a cada duzentos ou trezentos anos, mas provavelmente será no mesmo local onde estava o último.
Roger riu.
- É verdade. Nosso celeiro ainda é o original, construído no começo do século XVIII, juntamente com a casa. Mas eu encontrei as pedras de uma fazenda mais antiga quando escavei o chão do estábulo para colocar um cano novo.
- Século XVIII? Bem, você não vai precisar de um telhado novo pelo menos por mais cem anos, então.
Eram quase seis horas, mas ainda plena luz do dia. A névoa havia se dissipado daquele modo misterioso como às vezes acontecia, e um sol pálido aparecera. Roger traçou uma pequena cruz com o polegar na testa da estátua e depositou a cabeça delicadamente no nicho que parecia feito para isso. Haviam terminado, mas nenhum dos dois fez menção de ir embora. Havia uma sensação de conforto na companhia um do outro, um compartilhamento da magia do lugar.
Lá embaixo, viu o caminhão velho de Rob Cameron estacionado no pátio da frente e o próprio Rob sentado no alpendre dos fundos, Mandy, Jem e os amigos de Jem aglomerados de cada lado, evidentemente absortos nas páginas que ele segurava. O que diabos ele estava fazendo?
- Estou ouvindo alguém cantar? - Callahan, que estivera olhando para o norte, virou-se e, ao fazê-lo, Roger também ouviu. Fraco e suave, não mais do que um fino som, mas suficiente para se captar a melodia de "Crimond".
A força da pontada de inveja que o percorreu tirou seu fôlego, e ele sentiu sua garganta se fechar como se a mão forte de alguém o estrangulasse. inveja e dura como a sepultura: suas brasas são brasas de fogo.
Ele fechou os olhos por um instante, respirando devagar e profundamente, e com um pouco de esforço trouxe à memória a primeira parte dessa citação: O amor é forte como a morte.
Ele sentiu a sensação de estrangulamento diminuir e a razão retornar. É claro que Rob Cameron sabia cantar, ele fazia parte do coro masculino. Fazia sentido que, se ele visse as anotações musicais rudimentares que Roger fizera para algumas canções antigas, ele tentasse cantá-las. E as crianças - especialmente seus filhos - sentiam-se atraídos por música.
- Conhece Rob há muito tempo, então? - ele perguntou, e ficou satisfeito de ouvir sua voz soar normal.
- Oh, Rob? - Callahan refletiu. - Quinze anos, talvez... Não, mentira, uns vinte anos. Ele veio como voluntário em uma escavação que eu tinha em Shapinsay, é uma das Orkneys, e ele era apenas um rapaz na época, dezessete, dezoito anos, talvez. - Lançou um olhar suave e contundente a Roger. - Por quê?
Roger deu de ombros.
- Ele trabalha com minha mulher na hidrelétrica. Eu não o conheço bem. Só o conheci recentemente, na loja.
- Ah. - Callahan observou a cena embaixo por um instante, em silêncio, depois disse, sem olhar para Roger.
- Ele era casado com uma jovem francesa. Ela se divorciou dele há uns dois anos, levou o filho deles de volta para a França. Ele não anda muito feliz.
- Ah. - Isso explicava o apego de Rob à família de sua irmã viúva e o prazer que tinha na companhia de Jem e Mandy. Respirou outra vez, livremente, e a pequena chama de inveja se apagou.
Como se essa breve conversa tivesse colocado um ponto final no dia, pegaram os restos de seus lanches, a mochila de Callahan e desceram a colina em silêncio amistoso.
- O que é isto? - Havia dois copos de vinho sobre a bancada. - Estamos comemorando alguma coisa?
- Estamos - Bri disse com convicção. - Para começar, o fato de as crianças já terem ido dormir.
- Oh, muito levadas, não é? - Sentiu uma pequena pontada de culpa, não muito severa, por ter passado toda a tarde no local alto e fresco das ruínas da capela com Callahan, em vez de perseguir criaturinhas endiabradas para fora da horta.
- Não, apenas excesso de energia. - Ela lançou um olhar desconfiado para a porta que dava para o corredor, através da qual o ronco mudo de uma televisão vinha da grande sala de estar da frente. - Espero que estejam cansados demais para passar a noite pulando nas camas. Comeram pizza suficiente para deixar seis homens em coma por uma semana.
Ele riu - ele próprio havia comido a maior parte de uma grande de pepperoni e começava a se sentir confortavelmente letárgico.
- o que mais?
- O que mais estamos comemorando? - Ela lançou-lhe um olhar de satisfação. - Bem, quanto a mim...
- Sim? - ele disse, obsequioso.
- passei pelo período probatório no trabalho; agora sou efetivada e não podem se livrar de mim, ainda que eu use perfume no trabalho. E você - ela acrescentou, enfiando a mão dentro da gaveta e colocando um envelope à sua frente - foi formalmente convidado pelo conselho de educação a fazer uma reprise de seu triunfogàidlilig em cinco escolas diferentes no mês que vem!
Ele sentiu um choque momentâneo, depois uma inundação quente de algo que não conseguia identificar e percebeu com um choque ainda maior que ele estava ruborizado.
- Verdade?
- Não acha que eu iria fazer uma brincadeira dessas com você, não é? - Sem esperar por uma resposta, ela serviu o vinho, aromático e encorpado, e entregou-lhe um copo. Cerimoniosamente, ele bateu o copo de leve no dela.
- A nós. Quem é como nós?
- Bem poucos - ela respondeu com forte sotaque escocês - e estão todos mortos.
Houve certo rebuliço em cima depois que as crianças foram mandadas para a cama, mas uma rápida aparição de Roger na figura do arquétipo Senex Iratus colocou um ponto final nisso e o grupo sonolento diminuiu a euforia para fogo brando, contando histórias e dando risadinhas abafadas.
- Será que estão contando piadas indecentes? - Bri perguntou, quando ele voltou.
- Provavelmente. Devo fazer Mandy descer, você acha?
Ela sacudiu a cabeça.
- Ela provavelmente já está dormindo. E, se não estiver, as piadas que meninos de nove anos contam não vão prejudicá-la. Ela não tem idade suficiente para entender onde está a graça.
- É verdade. - Roger pegou seu copo reabastecido e tomou um pequeno gole, o vinho macio em sua língua e denso dos aromas de chá preto e groselhas pretas. - Que idade Jem tinha quando realmente aprendeu a contar piadas? Lembra-se de como ele aprendeu a forma das piadas, mas na verdade não entendia realmente a ideia de conteúdo?
- Qual a diferença entre a... a... A vaca e o palhaço? - ela imitou, captando perfeitamente a empolgação ofegante de Jem. - A vaca gosta de palha crua... e o Palhaço de "palha assada"! HAHAHAHAHÁ!
Roger desatou a rir.
- Por que está rindo? - ela quis saber. Seus olhos estavam ficando pesados e os lábios estavam escuros, manchados do vinho.
- Deve ser da forma como você conta - ele disse, erguendo o copo para ela. - Saúde.
- Slàinte.
Ele fechou os olhos, sentindo o aroma do vinho tanto quanto o bebendo. Estava começando a ter a agradável ilusão de que podia sentir o calor do corpo de sua mulher, embora ela estivesse a alguns passos de distância. Ela parecia emanar calor, e em ondas lentas, pulsantes.
- Como é que chamam aquilo, como você encontra estrelas distantes?
- Um telescópio - ela disse. - Você não pode estar bêbado com meia garrafa de vinho, ainda mais sendo um vinho tão bom.
- Não, não foi isso que quis dizer. Há um termo para isso... assinatura de calor? Parece correto?
Ela fechou um olho, refletindo, depois encolheu os ombros.
- Talvez. Por quê?
- Você tem uma.
Ela abaixou os olhos para si mesma, estreitando-os.
- Não. Duas. Definitivamente duas.
Ele não estava totalmente bêbado, nem ela, mas o que quer que fosse estavam se divertindo.
- Uma assinatura de calor - ele disse e, estendendo o braço, tomou sua mão. Estava bem mais quente do que a dele e ele tinha certeza de que podia sentir o calor de seus dedos latejarem devagar, aumentando e diminuindo com sua pulsação. - Eu seria capaz de encontrá-la no meio de uma multidão, com os olhos vendados. Você brilha no escuro.
Ela deixou seu copo e deslizou da poltrona, parando e ajoelhando-se entre os joelhos dele, seu corpo sem tocá-lo realmente. Ela de fato brilhava. Se ele fechasse os olhos, quase podia ver isso através da camisa branca que ela usava.
Ele inclinou seu copo e o esvaziou.
- Excelente vinho. Onde o comprou?
- Não comprei. Rob trouxe, um agradecimento, ele disse, por deixá-lo copiar as músicas.
- Bom sujeito - ele disse generosamente. No momento, ele realmente pensava assim.
Brianna pegou a garrafa de vinho e esvaziou-a no copo de Roger. Em seguida, sentou-se para trás, sobre os calcanhares, e olhou para ele com um olhar de coruja, a garrafa vazia agarrada ao peito.
- Ei. Você está me devendo.
- Em grande escala - ele concordou solenemente, fazendo-a rir.
- Não - ela disse, recuperando-se. - Você disse que, se eu trouxesse meu capacete para casa, você me contaria o que estava fazendo com aquela garrafa de champanhe. Todo aquele assovio, quero dizer.
- Ah. - Ficou pensativo por um instante. Havia a real possibilidade de ela atingi-lo com aquela garrafa de vinho se ele lhe contasse, mas por outro lado trato é trato, afinal, e a visão dela nua, só de capacete, irradiando calor em todas as direções, era suficiente para fazer um homem lançar a cautela aos quatro ventos.
- Eu estava tentando ver se conseguia obter o tom exato dos sons que você faz quando estamos fazendo amor e você está prestes a... hã... a... é algo entre um rosnado e um zumbido grave.
A boca de Brianna abriu-se ligeiramente e seus olhos um pouco mais. A ponta de sua língua era de um vermelho escuro, muito escuro.
- Acho que é fá abaixo de dó - ele concluiu apressadamente. Ela pestanejou.
- Está brincando.
- Não, não estou. - Ele pegou seu copo cheio até a metade e inclinou-o delicadamente, de modo que a borda tocasse nos lábios dela. Ela fechou os olhos e bebeu, devagar. Ele alisou seus cabelos para trás de sua orelha, o dedo deslizando devagar pelo seu pescoço, observando sua garganta se mover enquanto ela bebia o vinho, moveu a ponta do dedo pelo arco forte de sua clavícula.
- Você está ficando mais quente - ela sussurrou, sem abrir os olhos. - A segunda lei da termodinâmica.
- O que é isso? - ele disse, a voz mais baixa, também.
- A entropia de um sistema isolado que não está em equilíbrio tende a aumentar, atingindo o máximo no equilíbrio.
- Oh, é mesmo?
- Hum-hum. É por isso que um corpo aquecido perde calor para outro mais frio, até ficarem na mesma temperatura.
- Eu sabia que tinha que haver uma razão para isso acontecer. - Todos os ruídos do andar de cima haviam cessado e sua voz soou alta, apesar de estar sussurrando.
Os olhos dela abriram-se de repente, a dois centímetros dos dele, e seu hálito de groselhas pretas no rosto dele estava tão quente quanto sua pele. A garrafa caiu no tapete da sala com um baque surdo.
- Quer tentar um mi bemol?
HENRY
14 de junho de 1777
Ele havia proibido Dottie de acompanhá-lo. Não tinha certeza do que poderia encontrar. No final, entretanto, ficou surpreso. O endereço que lhe indicaram ficava em uma rua modesta em Germantown, mas a casa era espaçosa e bem conservada, embora não fosse grande.
Ele bateu na porta e foi recebido por uma jovem africana de expressão amável em roupas de chita asseadas e bem-feitas, e cujos olhos se arregalaram ao vê-lo. Ele achara melhor não usar seu uniforme, embora houvesse homens com uniforme britânico aqui e ali nas ruas - prisioneiros em livramento condicional, talvez, ou soldados levando comunicações oficiais. Em vez disso, vestira um elegante traje verde-garrafa, com seu melhor colete, de seda chinesa dourada, bordado com inúmeras borboletas extravagantes. Sorriu e a mulher retribuiu o sorriso, colocando a mão sobre a boca para escondê-lo.
- Em que posso ajudá-lo, senhor?
- Seu patrão está em casa?
Ela riu suavemente, achando graça.
- Valha-me Deus, senhor, não tenho patrão. A casa é minha.
Ele pestanejou, desconcertado.
- Talvez tenham me dado o endereço errado. Estou procurando um soldado inglês, capitão visconde Asher... Henry Grey é seu nome. Um prisioneiro de guerra britânico?
Ela abaixou a mão e fitou-o com os olhos arregalados. Em seguida, seu sorriso retornou, bastante amplo para mostrar dois dentes obturados a ouro na parte de trás da boca.
- Henry! Bem, por que não disse logo, senhor? Entre, entre!
E antes que ele pudesse arriar sua bengala foi conduzido apressadamente para dentro, por uma escada estreita, até um quarto pequeno e bem-arrumado, onde descobriu seu sobrinho. Henry, estatelado de costas e nu da cintura para cima, com um homem pequeno, de nariz adunco, vestido de preto, cutucando sua barriga - esta entrecruzada com inúmeras cicatrizes de aparência assustadora.
- Com licença. - Ele espreitou por cima do ombro do homem narigudo e acenou cautelosamente. - Como vai, Henry?
Henry, cujos olhos estavam fixos no teto de uma maneira tensa, olhou para ele, desviou o olhar, olhou de novo, em seguida sentou-se ereto repentinamente, o movimento resultando em uma exclamação de protesto do homenzinho narigudo e em um grito de dor de Henry.
- Oh, meu Deus, oh, meu Deus, oh, meu Deus. - Henry dobrou-se sobre si mesmo, os braços abraçando a barriga e o rosto contraído de dor. Grey agarrou-o pelos ombros, tentando ajudá-lo a se recostar para trás outra vez.
- Henry, meu caro. Perdoe-me. Não quis...
- E quem é o senhor? - o narigudo gritou furiosamente, endireitando-se com um salto e encarando Grey com os punhos cerrados.
- Sou tio dele - Grey informou-o sucintamente. - Quem é o senhor? Um médico?
O homenzinho empertigou-se com dignidade.
- Ora, não, senhor. Sou um rabdomante. Joseph Hunnicutt, senhor, rab- domante profissional.
Henry ainda estava dobrado ao meio, ofegante, mas parecia estar conseguindo recuperar um pouco o fôlego. Grey tocou em suas costas nuas delicadamente. A pele estava aquecida, um pouco suada, mas não parecia com febre.
- Desculpe-me, Henry - ele disse. - Acha que vai sobreviver?
Henry, meritoriamente, conseguiu emitir um grunhido ofegante à guisa de risada.
- Já vai passar - esforçou-se para dizer. - Só... um... minuto.
A mulher negra de rosto amável pairava junto à porta, um olhar penetrante em Grey.
- Este homem diz que é seu tio, Henry. É isso mesmo?
Henry balançou a cabeça, ofegante.
- Lorde John... Grey. Posso apre... sentar-lhe a sra. Mercy... Wood...cock?
Grey fez uma mesura meticulosa, sentindo-se ligeiramente ridículo.
- Seu criado, madame. E seu, sr. Hunnicutt - acrescentou educadamente, inclinando-se outra vez.
- Posso perguntar - ele disse, endireitando-se - por que um rabdomante está cutucando seu abdômen, Henry?
- Ora, para encontrar o pedaço de metal que está perturbando o pobre rapaz, é claro - disse o sr. Hunnicutt, empinando o nariz e olhando para cima, pois era muitos centímetros mais baixo do que Grey.
- Eu mandei chamá-lo, senhor, quero dizer, milorde. - A sra. Woodcock entrara no aposento e olhava para ele com um leve ar de desculpas. - É que os médicos não tiveram sorte de encontrar nada e eu tinha medo que o matassem da próxima vez.
Henry havia conseguido se desdobrar. Grey ajudou-o a se recostar para trás devagar, até ele se deitar no travesseiro, pálido e suando.
- Eu não aguentaria outra vez - ele disse, fechando os olhos rapidamente. - Não aguento.
Com o abdômen de Henry à mostra e uma oportunidade de examiná-lo com calma, Grey pôde ver as cicatrizes enrugadas de dois ferimentos de bala e as cicatrizes mais longas, de bordas regulares, feitas por um cirurgião à cata de metal. Três. O próprio Grey tinha cinco cicatrizes dessas, cruzando o lado esquerdo de seu peito, e ele tocou a mão de seu sobrinho com compaixão.
- É realmente necessário remover a bala, ou balas? - ele perguntou, erguendo os olhos para a sra. Woodcock. - Se ele sobreviveu até agora, talvez a bala esteja alocada em um lugar que...
Mas a sra. Woodcock sacudiu a cabeça com determinação.
- Ele não consegue comer - ela disse sem rodeios. - Não consegue engolir nada além de sopa e assim mesmo bem pouco. Ele estava pele e osso quando o trouxeram para mim - ela disse, gesticulando na direção de Henry. - E como pode ver não está muito melhor agora.
Não estava. Henry se parecia mais com sua mãe do que com Hal, normalmente de faces rosadas e compleição robusta. Não havia nenhuma evidência de tais traços no momento; cada costela era visível e sua barriga estava tão afundada que as pontas dos ossos dos quadris apareciam, pontiagudas, pelo lençol de linho, e seu rosto tinha o mesmo tom do lençol, salvo pelos círculos roxos em volta dos olhos.
- Compreendo - Grey disse devagar. Olhou para o sr. Hunnicutt. - Conseguiu localizar alguma coisa?
- Bem, consegui - disse o rabdomante e, inclinando-se sobre o corpo de Henry, colocou um dedo longo e fino delicadamente na barriga do jovem. - Ao menos, uma. A outra, eu ainda não tenho certeza.
- Eu lhe disse, Mercy, não adianta. - Os olhos de Henry ainda estavam fechados, mas sua mão levantou-se um pouco e a sra. Woodcock segurou-a, com uma naturalidade que fez Grey pestanejar. - Ainda que ele tivesse certeza... eu não poderia fazer isso outra vez. Prefiro morrer. - Apesar de fraco como estava, falou com absoluta convicção, e Grey reconheceu a teimosia da família.
O rosto bonito da sra. Woodcock contraiu-se de preocupação. Parecia sentir os olhos de Grey sobre ela, pois os ergueu rapidamente para ele. Grey não mudou de expressão e ela ergueu um pouco o queixo, fitando-o nos olhos com algo perto da ferocidade, ainda segurando a mão de Henry.
Oh, então é assim, hein? Grey pensou. Bem, bem.
Ele tossiu e Henry abriu os olhos.
- Seja como for, Henry - ele disse você vai me fazer o favor de não morrer antes que eu possa trazer sua irmã para se despedir de você.
RESERVAS
10 de julho de 1777
Os índios o preocupavam. O general Burgoyne os achava encantadores. Mas o general Burgoyne escrevia peças teatrais.
Não é que, William escreveu devagar na carta ao seu pai que estava redigindo, lutando para encontrar as palavras certas para as suas reservas, eu o ache fantasioso ou suspeite que ele não aprecie a natureza essencial dos índios com que lida. Ele a aprecia muito. Mas lembro-me de uma conversa com o sr. Garrick certa vez em Londres, e sua referência ao dramaturgo como um pequeno deus que direciona os atos de suas criaturas, exercendo absoluto controle sobre elas. A sra. Cowley argumentou em contrário, dizendo que é ilusório presumir que o criador controla suas criaturas e que uma tentativa de tentar exercer tal controle enquanto ignora a verdadeira natureza dessas criaturas está fadada ao fracasso.
Parou, mordendo a pena, sentindo que chegara perto do âmago da questão, mas talvez não o tivesse alcançado.
Creio que o general Burgoyne não compreende muito bem a independência da mente e de propósitos que... Não, não era bem isso. Riscou a frase e mergulhou a ponta da pena na tinta para uma nova tentativa. Repassou uma frase mentalmente, descartou-a, fez o mesmo com outra e finalmente abandonou a busca da eloquência em prol de um simples desabafo mental. Já era tarde, ele havia caminhado mais de trinta quilômetros durante o dia e estava com sono.
Ele acredita poder usar os índios como instrumento e eu acho que ele está errado. Olhou fixamente para a frase por um instante, sacudiu a cabeça diante de sua franqueza, mas não conseguia pensar em nada melhor e não podia desperdiçar mais tempo com o esforço; o toco de sua vela já estava quase no fim. Confortando-se com a ideia de que, afinal, seu pai conhecia os índios - e provavelmente o general Burgoyne - muito melhor do que ele, assinou energicamente, secou a tinta e selou a carta, depois se deixou cair na cama e adormeceu em um sono sem sonhos.
Mas a sensação de inquietação com relação aos índios permaneceu com ele. Ele não tinha nenhuma aversão aos índios; na realidade, gostava da companhia deles e às vezes caçava com alguns ou compartilhava uma noite de camaradagem bebendo cerveja e contando histórias ao redor de suas fogueiras.
- O problema é - ele dissera a Balcarres certa noite, quando voltavam de um jantar particularmente regado a bebida alcoólica, que o general havia oferecido aos seus oficiais - que eles não leem a Bíblia.
- Quem não lê? Espere aí. - O major Alexander Lindsay, sexto conde de Balcarres, estendeu o braço para evitar uma árvore e, agarrando-a com uma das mãos para manter o equilíbrio, tateou a braguilha com a outra.
- índios.
Estava escuro, mas Sandy virou a cabeça e William vislumbrou um único olho fechar-se lentamente no esforço de fixar o outro nele. Tinha havido muito vinho no jantar e várias damas presentes, o que contribuíra para o clima festivo.
Balcarres concentrou-se na ação de urinar, depois soltou um suspiro de alívio e fechou os dois olhos.
- Não - ele disse. - Na maioria, não. - Pareceu satisfeito em deixar a questão neste ponto, mas ocorrera a William, ele próprio com o pensamento um pouco menos organizado do que o normal, que talvez ele não tivesse conseguido se expressar bem.
- Quero dizer - William continuou, cambaleando um pouco quando uma rajada de vento arremeteu-se pelo meio das árvores -, o centurião. Sabe, ele diz Va e o sujeito vai. Você diz a um índio "vá" e talvez ele vá e o desgraçado não vá, dependendo de como ele recebe a ideia.
Balcarres agora se concentrava no esforço de fechar a braguilha e não respondeu.
- Quero dizer - explicou melhor eles não aceitam ordens.
- Oh, não. Não aceitam.
- Mas você dá ordens aos seus índios? - Ele pretendera fazer uma afirmação, mas não saiu exatamente assim. Balcarres comandava um regimento de infantaria leve, mas também dirigia um grupo grande de batedores, muitos deles índios; em geral ele se vestia como um deles.
- Mas, por outro lado, você é um escocês.
Balcarres finalmente conseguira fechar a braguilha e agora se postava, parado, no meio do caminho, estreitando os olhos para William.
- Você está bêbado, Willie. - Isso não foi dito em nenhum tom de acusação; mais com o ar satisfeito de quem fez uma útil dedução.
- Sim. Mas eu estarei sóbrio pela manhã e você ainda será um escocês.
- Isso lhes pareceu hilário e eles cambalearam juntos por certa distância, repetindo a piada de vez em quando e colidindo um com o outro. Por mero acaso, encontraram a barraca de William primeiro e ele convidou Balcarres para se juntar a ele em um copo de negus antes de ir dormir.
- Acal... ma o estômago - ele disse, por pouco não caindo de cabeça dentro de seu baú de campanha enquanto procurava canecas e garrafas. - Faz você dormir melhor.
Balcarres conseguira acender a vela e sentara-se, segurando-a, piscando com olhos de coruja à sua luz. Tomou um pequeno gole da bebida, os olhos fechados como se quisesse saboreá-la, depois os abriu repentinamente.
- O que ser escocês tem a ver com ler a Bíblia? - perguntou, essa observação tendo obviamente retornado subitamente ao seu conhecimento. - Está me chamando de ateu? Minha avó é escocesa e ela lê a Bíblia o tempo todo. Eu mesmo já li. Partes - acrescentou, tomando o resto da bebida de um só gole.
William franziu o cenho, tentando se lembrar o que diabos...
- Oh - exclamou. - Não a Bíblia. índios. Malditos cabeças-duras. Não vão. Escoceses também não atendem ordens, ao menos nem sempre. Achei que talvez fosse por isso. Porque eles o ouvem - acrescentou como um pensamento tardio. - Seus índios.
Balcarres também achou isso engraçado, mas quando por fim parou de rir, sacudiu a cabeça devagar de um lado para o outro.
- É que... conhece um cavalo?
- Conheço muitos cavalos. Qual deles?
Balcarres cuspiu uma pequena quantidade de negus pelo queixo, mas limpou-o.
- Um cavalo - ele repetiu, enxugando a mão nas calças. - Você não consegue obrigar um cavalo a fazer nada. Você vê o que ele vai fazer e então você diz a ele para fazer aquilo, e ele acha que foi ideia dele, de modo que da próxima vez que você lhe disser alguma coisa é provável que ele faça o que você diz.
- Oh. - William refletiu cuidadosamente sobre isso. - Sim. - Beberam em silêncio por algum tempo, meditando sobre esse pensamento profundo. Finalmente, Balcarres ergueu os olhos de uma longa contemplação de seu copo.
- Quem você acha que tem peitos mais bonitos? - perguntou com seriedade - A sra. Lind ou a baronesa?
O ÊXODO
Fort Ticonderoga 21 de junho de 1777
A sra. Raven começava a me preocupar. Eu a encontrava aguardando do lado de fora do alojamento ao nascer do dia, parecendo ter dormido com aquelas mesmas roupas, os olhos fundos, mas brilhantes e intensos. Agarrava-se a mim, o dia todo nos meus calcanhares, falando sem parar, e sua conversa, geralmente concentrada ao menos nominalmente nos pacientes que estávamos visitando e na inevitável logística da vida diária em um forte, começou a se desviar dos estreitos confinamentos do presente.
No começo, não passava de uma reminiscência ocasional do início de sua vida de casada em Boston; seu primeiro marido fora um pescador e ela criava duas cabras, cujo leite ela vendia nas ruas. Não me incomodava ouvir a respeito das cabras, chamadas Patsy e Petúnia; eu mesma havia conhecido algumas cabras memoráveis, especialmente um bode chamado Hiram, cuja perna quebrada eu havia consertado.
Não que eu estivesse desinteressada em seus aleatórios comentários sobre seu primeiro marido; eram, no mínimo, muito interessantes. O falecido sr. Evans parecia ter sido um bêbado violento quando estava em terra firme - o que estava longe de ser um fato extraordinário - com uma queda para cortar orelhas e narizes das pessoas que o contrariavam, o que era uma característica um pouco mais individualizada.
- Ele pregava as orelhas na verga da porta do barracão das minhas cabras - ela disse, no tom que uma pessoa usaria para descrever seu café da manhã. - No alto, para que as cabras não pudessem pegá-las. Elas murchavam no sol, sabe, como cogumelos secos.
- Ah - eu disse. Pensei em observar que defumar uma orelha cortada evitava esse pequeno problema, mas achei melhor não fazer tal comentário. Eu não sabia se Ian ainda carregava a orelha de um advogado em seu sporran, mas tinha quase certeza de que ele não iria gostar do ávido interesse da sra. Raven nela, se assim fosse. Tanto ele quanto Jamie se afastavam quando a viam se aproximar, como se ela tivesse a peste.
- Dizem que os índios cortam pedaços de seus prisioneiros - ela disse, abaixando a voz, como alguém revelando um segredo. - Os dedos primeiro, uma junta de cada vez.
- Que repugnante - eu disse. - Por favor, vá ao dispensário e traga-me um novo pacote de algodão, sim?
Ela partiu obedientemente - sempre o fazia mas achei tê-la ouvido falando consigo mesma, baixinho, enquanto caminhava. Conforme os dias se arrastavam e a tensão aumentava no forte, fiquei convencida disso.
As oscilações de suas conversas estavam ficando cada vez mais extravagantes - e mais extravagantes. Agora, iam do passado distante de sua infância idealizada em Maryland a um futuro igualmente distante - um futuro um tanto espantoso, no qual tínhamos todos sido assassinados pelo exército britânico ou capturados pelos índios, com consequências que iam do estupro ao esquartejamento, tais procedimentos em geral realizados simultaneamente, apesar de eu lhe dizer que a maioria dos homens não tinha a concentração, nem a coordenação necessárias para isso. Ela ainda era capaz de se concentrar em alguma coisa diretamente à sua frente, mas não por muito tempo.
- Acha que pode falar com o marido dela? - pedi a Jamie, que acabara de chegar, ao pôr do sol, para me dizer que ele a vira andando penosamente em círculos ao redor da grande cisterna perto da praça de armas, contando baixinho.
- Acha que ele não notou que sua mulher está ficando louca? - ele retrucou. - Se não notou, acho que não vai gostar que lhe digam. E, se notou - acrescentou logicamente -, o que espera que ele faça a respeito disso?
Não havia, de fato, muito que alguém pudesse fazer, salvo ficar de olho nela e tentar acalmar suas fantasias mais vívidas - ou ao menos impedi-la de falar sobre elas aos pacientes mais impressionáveis.
No entanto, conforme os dias se passavam, as excentricidades da sra. RAven não pareciam muito mais pronunciadas do que as ansiedades da maioria dos habitantes do forte, em particular as mulheres, que não podiam fazer nada além de cuidar dos filhos, lavar roupa - sob escolta pesada à beira do lago ou em pequenos grupos ao redor de caldeirões fumegantes - e esperar.
Os bosques não eram seguros; alguns dias antes, dois guardas de piquete haviam sido encontrados a não mais de um quilômetro e meio do forte, mortos e escalpelados. Essa horrenda descoberta teve o pior efeito possível sobre a sra. Raven, mas não posso dizer que não tenha contribuído para abalar minha força moral. Eu não conseguia olhar das baterias para a infindável extensão de floresta fechada com a mesma sensação de prazer de antes; o próprio vigor da floresta parecia uma ameaça agora. Eu ainda queria roupas limpas, mas minha pele pinicava sempre que eu saía do forte.
- Treze dias - eu disse, correndo o polegar pelo batente da porta de nosso santuário. Jamie havia, sem nenhum comentário, feito um talhe para cada dia do período de alistamento, dando um corte atravessado sobre cada entalhe quando vinha para a cama à noite. - Você marcava os batentes quando estava na prisão?
- Não em Fort William ou na Bastilha - ele disse, refletindo. - Ardsmuir... sim, fazíamos isso. Não havia nenhuma sentença para não perder de vista, mas... você perde tanto, tão rápido. Parecia importante manter um vínculo com alguma coisa, ainda que fosse apenas o dia da semana.
Ele veio ficar ao meu lado, olhando o batente da porta e sua longa linha de talhes perfeitos.
- Eu teria me sentido tentado a fugir - ele disse, muito serenamente - se não fosse pela ausência de Ian.
Eu não havia pensado nisso - nem percebido que ele havia pensado. Estava ficando mais óbvio a cada segundo que o forte não aguentaria um ataque pelo tamanho da força que estava - indubitavelmente - a caminho. Os patrulheiros vinham cada vez com mais frequência trazendo relatórios sobre o exército de Burgoyne e, embora fossem apressadamente conduzidos ao escritório do comandante e com a mesma pressa levados para fora outra vez, todos ficavam sabendo no prazo de uma hora as notícias que haviam trazido - bem poucas até agora, mas alarmantes mesmo assim. No entanto, Arthur St. Clair recusava-se a ordenar a evacuação do forte.
- Uma mancha em sua folha - Jamie disse, com uma serenidade que revelava sua raiva. - Ele não pode suportar que se diga que ele perdeu Ticonderoga.
- Mas o perderá - eu disse. - Não é mesmo?
- Sim. Mas, se ele luta e perde, é uma coisa. Lutar e perder o forte para forças superiores é honroso. Abandoná-lo para o inimigo sem uma luta? Ele não pode aceitar isso. Apesar de não ser um homem perverso - acrescentou, pensativamente. - Vou falar com ele outra vez. Nós todos vamos.
"Todos" eram os oficiais da milícia, que podiam se dar ao luxo de falar sem rodeios. Muitos oficiais do exército regular compartilhavam os sentimentos da milícia, mas a disciplina impedia a maioria de falar francamente com St. Clair.
Eu também não achava que Arthur St. Clair fosse um homem perverso - nem burro. Ele sabia - tinha que saber - qual seria o custo da batalha. Ou o custo da rendição.
- Ele está à espera de Whitcomb - Jamie disse descontraidamente. - Esperando que ele lhe diga que Burgoyne não tem nenhuma artilharia. - O forte Podia, na verdade, resistir a uma tática de cerco padrão; alimentos e provisões vinham sendo trazidos das regiões adjacentes em abundância e Ticonderoga ainda possuía algumas defesas de artilharia e o pequeno forte de madeira no monte Independence, além de uma guarnição substancial muito bem provida de mosquetes e pólvora. Entretanto, não conseguiria resistir a uma artilharia pesada instalada no monte Defiance. Jamie estivera lá e disse que todo o interior di forte era visível daquele ponto - e portanto completamente sujeito ao ataque do inimigo.
- Não é possível que ele realmente pense assim, é?
- Não, mas enquanto ele não tiver certeza também não vai tomar uma decisão. E nenhum dos batedores lhe trouxe qualquer informação precisa.
Suspirei e pressionei a mão no peito, enxugando um fio de suor.
- Não posso dormir ali dentro - eu disse abruptamente. - É como dormir no inferno.
Isso o pegou de surpresa e o fez rir.
- Tudo bem para você - eu disse, um pouco irritada. - Vai dormir embaixo de lona amanhã. - Metade da guarnição estava sendo removida para barracas fora do forte, sendo melhor estar fora e em condições de manobras, de prontidão para o caso da abordagem de Burgoyne.
Os ingleses estavam chegando; a que distância estavam, quantos homens tinham e o quanto estavam armados não se sabia.
Benjamin Whitcomb fora descobrir. Whitcomb era um homem bexiguento, magricela, de trinta e poucos anos, um dos conhecidos caçadores aventureiros, homens que podiam e de fato passavam semanas nas regiões selvagens, vivendo da terra. Esses homens não eram sociáveis, não tinham nenhuma utilidade para a civilização, mas eram valiosos. Whitcomb era o melhor dos batedores de St. Clair; ele levara cinco homens para ir ao encontro das tropas principais de Burgoyne. Eu esperava que retornassem antes que o período de alistamento terminasse; Jamie queria ir embora - assim como eu, muito -, mas obviamente não podíamos ir sem Ian.
Jamie moveu-se repentinamente, virando-se e voltando para dentro de nosso quarto.
- O que você procura? - Ele vasculhava o pequeno baú de cobertores que continha nossas poucas peças de roupa sobressalentes e outros apetrechos que havíamos adquirido desde a vinda para o forte.
- Meu kilt. Se vou me apresentar diante de St. Clair, é melhor ser bem formal.
Ajudei-o a se vestir e escovei e trancei seus cabelos para ele. Ele não tinha um bom casaco, mas ao menos tinha camisas limpas e sua adaga, e mesmo em mangas de camisa ele era uma figura impressionante.
- Há semanas não o vejo de kilt - eu disse, admirando-o. - Tenho certeza de que vai causar uma forte impressão no general, mesmo sem uma faixa cor-de-rosa.
Ele sorriu e me beijou.
- Não vai adiantar nada - ele disse -, mas não seria direito não tentar.
Eu o acompanhei, atravessando a praça de armas até a casa de St. Clair. Nuvens tempestuosas surgiam ao longe, acima do lago, negras como carvão contra o céu ensolarado, e eu podia sentir o cheiro de ozônio no ar. Pareceu-me um presságio adequado.
Logo. Tudo dizia, Logo. Os boatos e relatórios fragmentados que voavam como pombos pelo forte, o ar opressivo, o estrondo ocasional de um canhão a distância, deflagrado para praticar - esperávamos que fosse apenas exercício - na distante posição avançada chamada de Antigas Linhas Francesas.
Todos estavam inquietos, incapazes de dormir no calor, a menos que estivessem bêbados. Eu não estava bêbada, e estava inquieta. Já fazia mais de duas horas que Jamie se fora e eu o queria. Não porque eu me importasse com o que St. Clair tivesse para dizer à milícia. Mas, entre o calor e a exaustão, não fazíamos amor há mais de uma semana e eu estava começando a suspeitar de que o tempo estava cada vez mais curto. Se fôssemos obrigados a lutar ou a fugir nos próximos dias, só Deus sabia quanto tempo se passaria até termos um momento de privacidade outra vez.
Eu estivera andando pela praça de armas, de olho na casa de St. Clair, e quando finalmente o vi sair comecei a andar em sua direção, caminhando devagar para que ele tivesse tempo de se despedir dos outros oficiais que haviam saído com ele. Ficaram parados juntos por um instante, os ombros arriados e a inclinação contrariada da cabeça dizendo-me que o efeito de seus protestos havia sido exatamente o que Jamie previra.
Ele afastou-se devagar, as mãos às costas, a cabeça inclinada, pensativo. Alinhei-me ao seu lado silenciosamente e enfiei a mão na curva de seu braço, ele olhou para mim, surpreso, mas sorridente.
- Ainda está aqui fora tão tarde, Sassenach. Alguma coisa errada?
- Absolutamente - eu disse. - Apenas me pareceu uma bela noite para um passeio pelo jardim.
- Pelo jardim - ele repetiu lançando-me um olhar de viés.
- O jardim do comandante, para ser exata - eu disse, e toquei o bolso do meu avental. - Eu, hum, tenho a chave. - Havia vários jardins pequenos dentro do forte, a maioria canteiros práticos destinados à produção de legumes e verduras. Entretanto, o jardim formal atrás das instalações do comandante havia sido desenhado pelos franceses há muitos anos e, embora desde então tivesse sido negligenciado e dominado pelas sementes de ervas daninhas trazidas pelo vento, tinha um aspecto bastante interessante - era rodeado por um muro alto, com um portão a chave. Eu havia prevenidamente abstraído a chave pela manhã do cozinheiro do general St. Clair, que me procurara para uma ablução da garganta. Eu a devolveria quando fosse visitá-lo na manhã do dia seguinte Para verificar como estava sua garganta inflamada.
- Ah - Jamie exclamou, virando-se solicitamente de volta para a casa do comandante.
O portão ficava nos fundos, dando-se a volta, fora de vista, e nós deslizamos apressadamente pela viela que passava pelo muro do jardim, enquanto o guarda do lado de fora da casa de St. Clair conversava com um transeunte, fechei o portão silenciosamente atrás de nós, tranquei-o e guardei a chave no bolso, depois caí nos braços de Jamie.
Ele me beijou sem pressa, depois ergueu a cabeça, fitando-me.
- Acho que vou precisar de um pouco de ajuda.
- Isso pode ser arranjado - assegurei-lhe. Coloquei a mão em seu joelho, onde o kilt havia dobrado, expondo a carne. Deslizei o polegar lentamente, apreciando a sensação macia, rija, dos pelos de sua perna. - Hum... você tinha algum tipo de ajuda em mente?
Eu podia sentir seu cheiro apesar de seu banho meticuloso, o suor seco de sua labuta na pele temperado com poeira e cavacos de madeira. Esse seria seu sabor também, adocicado, salgado e almiscarado.
Deslizei a mão por baixo de seu kilt, pela coxa, sentindo-o se remexer e se flexionar, o repentino sulco do músculo liso sob meus dedos. Para minha surpresa, no entanto, ele me parou, agarrando minha mão por cima do tecido.
- Pensei que queria ajuda - eu disse.
- Toque em você mesma, a nighean - ele disse brandamente.
Isso foi um pouco desconcertante, particularmente considerando-se que estávamos em pé em um jardim coberto de ervas daninhas a não mais do que seis metros de uma viela muito procurada por homens da milícia em busca de um lugar sossegado para se embebedarem. Ainda assim... recostei-me no muro e solicitamente levantei minha combinação acima do joelho. Mantive-a ali, delicadamente afagando a pele do interior de minha coxa - que era, na realidade, muito macia. Levei a outra mão para cima, para o decote do meu espartilho, onde meus seios avolumavam-se contra o algodão fino e úmido.
Seus olhos ficaram pesados; ele ainda estava meio tonto de cansaço, mas ficando mais alerta a cada instante. Emitiu um pequeno som interrogativo.
- Já ouviu aquela sobre o que é bom para um é bom para o outro? - eu disse, brincando com o cordão que amarrava o decote de minha combinação.
- O quê? - Isso o tirou de seu estado de torpor; estava inteiramente desperto agora, os olhos injetados completamente arregalados.
- Você me ouviu.
- Você quer que eu... eu...
- Quero.
- Eu não poderia! Na sua frente?
- Se eu posso na sua frente, certamente você pode retribuir o favor. Claro, se prefere que eu pare... - Deixei minha mão cair, bem devagar, do cordão. Parei, o polegar tocando bem de leve, de um lado para o outro, de um lado para o outro, pelo meu seio, como o ponteiro de um metrônomo. Eu podia sentir meu mamilo, redondo e duro como uma bala de mosquete; devia ser visível através do tecido, mesmo àquela luz.
Ele engoliu em seco; eu ouvi.
Sorri e deixei minha mão cair ainda mais, segurando a bainha da minha saia. E parei, uma das sobrancelhas levantada.
Como se hipnotizado, ele abaixou o braço e segurou a barra de seu kilt.
- Este é meu rapaz - murmurei, inclinando-me para trás com uma das mãos. Ergui um dos joelhos e coloquei o pé no muro, deixando a saia cair e desnudando minha coxa. Alcancei embaixo.
Ele disse alguma coisa baixinho, em gaélico. Não consegui saber se era uma observação sobre a iminente perspectiva à sua frente ou se ele estava encomendando a alma a Deus. Em qualquer dos casos, ele ergueu o kilt.
- O que quer dizer com precisar de ajuda? - perguntei, fitando-o.
Ele fez um ruído baixo, urgente, indicando que eu deveria continuar, e assim fiz.
- O que está pensando? - perguntei após um instante, fascinada.
- Não estou pensando.
- Está, sim; posso ver em seu rosto.
- Não vai querer saber. - O suor começava a brilhar em suas faces, e seus olhos transformaram-se em duas fendas.
- Oh, vou, sim - oh, espere. Se está pensando em outra pessoa que não eu, eu não quero saber.
Ele abriu os olhos diante disso e fixou-me com um olhar que correu diretamente para cima, entre minhas pernas trêmulas. Ele não parou.
- Oh - eu disse, um pouco sem ar. - Bem... quando puder falar outra vez, eu realmente quero saber.
Ele continuou olhando para mim, com um olhar fixo e intenso que me pareceu acentuadamente semelhante ao de um lobo vigiando uma gorda ovelha. Remexi-me um pouco junto ao muro e abanei uma nuvem de mosquitinhos. Ele respirava rápido e eu podia sentir o cheiro de seu suor, almiscarado e acre.
- Você - ele disse, e eu vi sua garganta se mover enquanto ele engolia em seco. Ele fez sinal para mim com o dedo indicador dobrado.
- Venha cá.
- Eu...
- Agora.
Fascinada, deslizei do muro e dei dois passos em sua direção. Antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer outra coisa, houve uma agitação de kilt e sua mão grande e quente me agarrou pela nuca. Logo eu estava deitada de costas sobre o capim alto e pés de tabaco selvagem, Jamie solidamente dentro de mim, a mão sobre a minha boca - ainda bem, percebi indistintamente, já que havia vozes vindas em nossa direção pela viela do outro lado do muro do jardim.
- Brinque com fogo e pode se queimar, Sassenach ele sussurrou em meu ouvido. Ele me mantinha pregada ao chão como uma borboleta em um quadro e Prendendo-me com firmeza pelos pulsos, me mantinha imobilizada, apesar de eu me contorcer e contrair sob ele, escorregando e desesperada. Muito devagar, ele arriou todo o seu peso sobre mim.
- Quer saber o que eu estava pensando, hein? - ele murmurou em meu ouvido.
- Mumm!
- Bem, vou lhe contar, a nighean, mas... - Parou, a fim de lamber o lóbulo da minha orelha.
- Mummmmm!
A mão apertou-se ainda mais sobre a minha boca, em advertência. As vozes estavam suficientemente perto para decifrarmos as palavras agora: um pequeno grupo de milicianos, meio bêbados e à procura de prostitutas. Os dentes de Jamie cerraram-se delicadamente em minha orelha e ele começou a mordiscá-la minuciosamente, fazendo cócegas, o hálito quente. Eu me contorcia desvairadamente, mas ele nem se importava.
Deu o mesmo tratamento meticuloso à outra orelha antes de os homens saírem do alcance de nossos ouvidos, em seguida beijou a ponta do meu nariz, finalmente tirando a mão da minha boca.
- Ah. Bem, onde é que eu estava? Oh, sim, você queria saber o que eu estava pensando.
- Mudei de ideia. - Eu ofegava, a respiração curta e superficial, tanto por causa do peso sobre meu peito quanto de desejo. Ambos eram consideráveis.
Ele emitiu um ruído escocês indicando profunda diversão e apertou meus pulsos com mais força.
- Foi você quem começou, Sassenach, mas eu vou terminar. - Com isso, colocou os lábios em minha orelha molhada e me disse em um lento sussurro exatamente o que ele andara pensando. Sem se mover um centímetro enquanto o fazia, a não ser para colocar a mão de novo sobre minha boca quando eu comecei a xingá-lo.
Cada músculo em meu corpo saltava como um elástico esticado quando ele finalmente se moveu. Com um movimento repentino, ele se levantou e deslizou para trás, depois para a frente, com força.
Quando eu pude ver e ouvir outra vez, percebi que ele ria, ainda equilibrando-se acima de mim.
- Eu a tirei do seu sofrimento, não foi, Sassenach?
- Você... - comecei com voz rouca. As palavras me faltavam, mas duas bastariam neste jogo. Ele não se movera, em parte para me torturar - mas igualmente porque não podia; não sem terminar tudo imediatamente. Flexionei meus músculos macios, escorregadios, uma vez em volta dele, devagar, delicadamente - depois fiz isso três vezes, rapidamente. Ele emitiu um ruído de satisfação e se perdeu, gemendo e contraindo-se espasmodicamente, a pulsação de seus movimentos excitando um eco em minha própria carne. Muito devagar, ele abaixou o corpo, suspirando como uma bexiga esvaziada, e ficou estendido ao meu lado, respirando devagar, os olhos fechados. - Agora você pode dormir - eu disse, afagando seus cabelos. Ele sorriu sem abrir os olhos, respirou fundo e seu corpo relaxou, acomodando-se no solo. - E da próxima vez, maldito escocês - sussurrei em seu ouvido -, eu lhe direi o que eu estava pensando.
- Oh, meu Deus - ele disse, e riu sem fazer nenhum som. - Lembra-se da primeira vez em que a beijei, Sassenach?
Fiquei ali deitada por algum tempo, sentindo o suor porejando em minha pele e seu peso reconfortante, enroscado, adormecido, no capim ao meu lado, antes de finalmente me lembrar.
"Eu disse que era virgem, não um monge. Se eu achar que preciso de ajuda... eu pedirei."
Ian Murray acordou de um sono profundo e sem sonhos, ao som de uma corneta. Rollo, deitado ao seu lado, pôs-se de pé num salto, com um UUUF! rouco e surpreso, e olhou fixamente ao redor em busca da ameaça, os pelos do pescoço eriçados.
Ian levantou-se atabalhoadamente também, uma das mãos na faca, a outra no cachorro.
- Quieto - ele disse baixinho, e o cachorro relaxou um pouco, embora mantivesse um rosnado surdo, no fundo da garganta, logo abaixo do alcance do ouvido humano. Ian o sentia, uma vibração constante no corpo enorme sob sua mão.
Agora que estava acordado, ouvia-os com facilidade. Uma movimentação subterrânea através da floresta, tão submersa - mas igualmente tão vibrante - quanto o rosnado de Rollo. Um grande grupo de homens, um acampamento, começando a acordar a uma distância não muito grande dali. Como ele não os percebera na noite anterior? Cheirou o ar, mas o vento estava na direção errada; não sentiu nenhum cheiro de fumaça - apesar de que agora ele via fumaça, filetes finos elevando-se no pálido céu do amanhecer. Muitas fogueiras de acampamento. Um acampamento muito grande.
Ele enrolara seu cobertor enquanto ouvia. Não havia mais nada em seu próprio acampamento e em poucos segundos ele já desaparecera no meio do mato, o cobertor amarrado às costas e o rifle na mão, o cachorro enorme e silencioso em seus calcanhares.
OS INGLESES ESTÃO CHEGANDO
Three Mile Point Colônia de Nova York 3 de julho de 1777
A mancha escura de suor entre os ombros largos do general de brigada Fraser tinha o formato da Ilha de Man no mapa na velha sala de aula da escola em casa. O casaco do tenente Greenleaf estava inteiramente molhado de suor, o Corpo preto e apenas as mangas desbotadas ainda vermelhas.
O próprio casaco de William estava menos desbotado - na verdade, vergonhosamente novo e chamativo -, mas igualmente colado a suas costas e seus ombros, pesado com as exalações úmidas de seu corpo. Sua camisa o atormentava; estava dura de sal quando ele a vestira algumas horas antes, o suor permanente dos esforços dos dias anteriores cristalizados no linho, mas a rigidez se desfizera quando o sol se levantou, em decorrência de uma nova inundação de suor.
Erguendo os olhos para a colina que o general de brigada propôs que escalassem, ele tivera alguma esperança de ar fresco no cume, mas o esforço da subida cancelara qualquer benefício da altitude. Haviam deixado o acampamento logo depois do amanhecer, o ar tão delicioso em seu frescor que ele teve vontade de correr nu pelos bosques como um índio, fisgar peixes no lago e comer uma dúzia deles como café da manhã, fritos em farinha de milho, frescos e quentes.
Ali era Three Mile Point, assim chamado porque ficava três milhas ao sul do forte de Ticonderoga. O general de brigada, liderando a força avançada, havia estacionado suas tropas ali e proposto escalar a certa altura com o tenente Greenleaf, um engenheiro, para inspecionar o terreno antes de prosseguirem.
William fora designado para as tropas do general de brigada na semana anterior, para sua satisfação. O general era um homem amável, sociável, mas não da mesma maneira que o general Burgoyne. Apesar de que William não teria se importado, ainda que o sujeito fosse um bárbaro violento - ele estaria nas linhas de frente; isso era tudo que importava.
Ele carregava uma parte do equipamento do engenheiro, assim como alguns cantis de água e a caixa de documentos oficiais do general. Ajudou a montar o teodolito e solicitamente segurou varetas de medição a intervalos, mas enfim o trabalho foi terminado, tudo foi registrado, e o general, tendo confabulado com Greenleaf durante um longo tempo, enviou o engenheiro de volta ao acampamento.
Uma vez concluída a tarefa imediata, o general pareceu avesso a descer logo em seguida, em vez disso passando a caminhar lentamente pelo local, parecendo apreciar a leve brisa, em seguida sentando-se em uma pedra e destampando seu cantil com um suspiro de prazer.
- Sente-se, William - ele disse, indicando a própria pedra a William. Permaneceram sentados em silêncio por algum tempo, ouvindo os sons da floresta. - Conheço seu pai - o general disse repentinamente, depois sorriu, um sorriso sedutor. - Imagino que todo mundo lhe diga isso.
- Bem, sim, dizem - William admitiu. - Ou, se não ele, meu tio.
O general Fraser riu.
- Um fardo considerável de história familiar a ser carregado - ele se condoeu. - Mas tenho certeza de que você o suporta com nobreza.
William não sabia o que dizer e educadamente fez um ruído indeterminado em resposta. O general riu outra vez e passou-lhe o cantil. A água estava tão morna que ele mal a sentiu descer pela garganta, mas tinha um cheiro de água fresca e ele pôde sentir sua sede saciada.
- Estivemos juntos nas Planícies de Abraão. Seu pai e eu, quero dizer. Ele já lhe falou daquela noite?
- Não muito - William disse, imaginando se estaria fadado a conhecer todo soldado que havia lutado naquele campo com James Wolfe.
- Descemos o rio à noite, sabe. Todos nós petrificados. Especialmente eu. - O general olhou para longe, por cima do lago, sacudindo um pouco a cabeça à lembrança. - Que rio, o St. Lawrence. O general Burgoyne mencionou que você esteve no Canadá. Você o viu?
- Não muito, senhor. Viajei por terra a maior parte do trajeto para Quebec e depois desci o Richelieu. Mas meu pai me falou do St. Lawrence - sentiu-se obrigado a acrescentar. - Disse que era um rio nobre.
- Ele lhe contou que eu quase quebrei a mão dele? Ele estava ao meu lado no barco e quando eu me inclinei para fora para chamar a sentinela francesa, esperando que minha voz não falseasse, ele agarrou minha mão para me firmar. Senti seus ossos rangerem, mas nas circunstâncias não notei realmente até eu soltar sua mão e ouvi-lo dar uma arfada.
William viu os olhos do general desviarem-se para suas próprias mãos e a pequena ruga que atravessou sua fronte larga, não inteiramente um ar intrigado, mas o ar de alguém tentando inconscientemente ajustar a lembrança à presente circunstância. Seu pai possuía mãos elegantes, longas e delgadas, de bela ossatura. Os dedos de William eram longos, mas suas mãos vulgarmente grandes, de palma larga e juntas brutas.
- Ele... lorde John... é meu padrasto - falou subitamente, depois corou aflitivamente, envergonhado tanto pela admissão quanto por qualquer capricho mental que o fizera dizer isso.
- É mesmo? Oh, sim - o general disse vagamente. - Sim, claro.
O general teria pensado que ele falara por orgulho, ressaltando a antiguidade de sua própria linhagem?
O único consolo era que seu rosto - e o rosto do general também - estava tão vermelho do esforço que não se poderia ver que ele estava ruborizado. O general, como se reagindo à ideia do calor, tirou o casaco, depois desabotoou seu colete e ficou agitando as abas, balançando a cabeça para William para que fizesse o mesmo - o que ele fez, com um suspiro de alívio.
A conversa voltou-se descontraidamente para outras campanhas: aquelas em que o general de brigada havia lutado, aquelas de que William tinha (em grande parte) ouvido falar. Gradativamente, compreendeu que o general o estava sondando, analisando sua experiência e seus modos. Ficou desconfortavelmente consciente de que a primeira era inglória; o general Fraser estaria ciente do que acontecera durante a Batalha de Long Island? As notícias viajavam rápido no exército.
Por fim, houve uma pausa na conversa e ficaram sentados por algum tempo amigavelmente em mangas de camisa, ouvindo o murmúrio das árvores acima. William quis dizer alguma coisa em sua própria defesa, mas não conseguia pensar em nenhum modo de abordar a questão elegantemente. Mas, se ele não falasse, explicasse o que acontecera... bem, não havia uma boa explicação. Ele fora um idiota, isso era tudo.
- O general Howe elogia sua inteligência e coragem, William - o general disse, como se continuassem a conversa anterior -, embora tenha dito que achava que você não tinha tido ainda a oportunidade de mostrar seu talento para o comando.
- Ah... não, senhor - William respondeu, suando.
O general sorriu.
- Bem, precisamos remediar essa falta, não? - Ele se levantou, gemendo levemente enquanto se espreguiçava e voltava a se enfiar no casaco. - Venha jantar comigo mais tarde. Vamos discutir isso com sir Francis.
hitcomb estava de volta. Com vários escalpos de ingleses, segundo os boatos populares. Tendo conhecido Benjamin Whitcomb e um ou dois dos outros exploradores, eu estava preparada para acreditar nisso. Eles falavam com bastante civilidade e estavam longe de serem os únicos homens no forte que se vestiam em couro cru e tecidos rústicos e esfarrapados ou cuja pele encarquilhava-se sobre os ossos descarnados. Mas eram os únicos homens com olhos de animais.
No dia seguinte, Jamie foi chamado à casa do comandante e só voltou tarde da noite. Um homem cantava junto a uma das fogueiras do pátio, perto das instalações de St. Clair, e eu estava sentada em um barril de carne de porco salgada vazio, quando vi Jamie passar do outro lado da fogueira, na direção de nossos alojamentos. Levantei-me rapidamente e o alcancei.
- Venha comigo - ele disse em voz baixa, conduzindo-me na direção do jardim do comandante. Não havia nenhuma reverberação de nosso último encontro no jardim, embora eu estivesse extremamente consciente de seu corpo, da tensão que se percebia nele e do batimento de seu coração. Más notícias, portanto.
CONFLAGRAÇÃO
Fort Ticonderoga 1º de julho de 1777
- O que aconteceu? - perguntei também em voz baixa.
- Whitcomb prendeu um soldado inglês e o trouxe para cá. Ele não disse nada, é claro, mas St. Clair foi bastante inteligente para colocar Andy Tracy em uma cela com o sujeito, dizendo que ele era acusado de ser um espião, quero dizer, que Tracy era um espião.
- Foi brilhante - eu disse com aprovação. O tenente Andrew Hodges Tracy era um irlandês, fanfarrão e sedutor, um mentiroso nato, e, se alguém podia arrancar informações de outro sem o uso da força, Tracy seria minha primeira escolha. - Imagino que ele tenha descoberto alguma coisa, não?
- Descobriu. Também recebemos três desertores do exército britânico... alemães. St. Clair quis que eu falasse com eles.
O que ele fez. As informações trazidas pelos desertores podiam ser suspeitas, salvo que se correlacionavam com as informações tiradas do soldado inglês capturado. As informações concretas pelas quais St. Clair estivera esperando nas últimas três semanas.
O general Carleton permanecera no Canadá com uma pequena tropa; era na verdade o general Burgoyne, a cargo de um grande exército invasor, que estava se dirigindo para o forte. Seu exército era reforçado pelas tropas do general von Riedesel, ele próprio no comando de sete regimentos de Brunswick, mais um batalhão de infantaria leve e quatro companhias de dragões. E sua vanguarda estava a menos de quatro dias de marcha.
- Isso não é nada bom - observei, respirando fundo.
- Não, não é - ele concordou. - Pior, Burgoyne tem Simon Fraser como general de brigada sob seu comando. E dele o comando da tropa avançada.
- Um parente seu? - Era uma pergunta retórica; ninguém com esse nome poderia ser outra coisa e eu vi a sombra de um sorriso atravessar o rosto de Jamie.
- Sim - ele disse secamente. - Primo em segundo grau, eu acho. E um excelente soldado.
- Bem, não seria de outra forma, não é mesmo? Essa é a última das notícias ruins?
Ele sacudiu a cabeça.
- Não. Os desertores disseram que o exército de Burgoyne está sem suprimentos. Os dragões estão a pé, porque não conseguem novos cavalos. Embora eu não saiba se eles os comeram ou não.
Era uma noite quente e úmida, mas um calafrio arrepiou os pelos dos meus braços. Toquei o pulso de Jamie e encontrei os pelos ali também arrepiados. Ele vai sonhar com Culloden esta noite, pensei. Mas afastei o pensamento por enquanto.
- Eu imaginaria que esta notícia seria boa. Por que não é?
Seu pulso virou e ele tomou minha mão, entrelaçando nossos dedos com força.
- Porque eles não têm suprimentos suficientes para montar um cerco. Terão que invadir o forte e nos tomar à força. E isso é bem provável que possam fazer.
Três dias depois, os primeiros vigias ingleses surgiram no monte Defiance.
No dia seguinte, qualquer um podia ver - e todos de fato viram - o início da construção de uma plataforma de artilharia no Defiance. Arthur St. Clair, curvando-se finalmente ao inevitável, deu ordem para começarem a evacuação do Ticonderoga.
A maior parte da guarnição deveria se transferir para o monte Independence, levando consigo todos os suprimentos e armas mais valiosos. Parte das ovelhas e do gado deveria ser abatida, o resto conduzido para dentro da floresta. Algumas unidades de milícia deveriam partir pela floresta e encontrar a estrada para Hubbardton, onde aguardariam como reforço. Mulheres, crianças e inválidos seriam despachados pelo lago de barco, com uma guarda ligeira. A evacuação começou de maneira ordenada, com instruções para levarem tudo que flutuasse para a margem do lago após o anoitecer, os homens reunindo e verificando seus equipamentos, e ordens sendo enviadas para a destruição sistemática de tudo que não pudesse ser levado.
Esse era o procedimento padrão, para negar ao inimigo qualquer uso dos suprimentos. No caso, a questão era um pouco mais premente: os desertores haviam dito que o exército de Burgoyne já estava com escassez de suprimentos; negar-lhe os recursos do Ticonderoga podia fazê-los parar - ou ao menos fazê-los reduzir a marcha perceptivelmente, já que seus homens seriam obrigados a sair em busca de alimento e viver da terra enquanto esperavam que provisões do Canadá viessem em sua ajuda.
Tudo isso - o empacotamento, o carregamento, o abate e a condução dos animais, a destruição - tinha que ser realizado clandestinamente, bem embaixo do nariz dos ingleses. Pois, se vissem que havia uma retirada iminente, iriam cair sobre nós como lobos, destruindo a guarnição quando deixassem a segurança do forte.
Assustadoras nuvens tempestuosas agitavam-se acima do lago às tardes, enormes torres negras que se elevavam a quilômetros de altura, carregadas de relâmpagos. Às vezes, a trovoada irrompia depois do cair da noite, a chuva martelando o lago, os montes, as linhas de piquete e o forte com um aguaceiro que parecia entornado de um balde sem fundo. Às vezes, apenas prosseguiam viagem, roncando ameaçadoramente.
Esta noite as nuvens estavam baixas e violentas, cortadas por veios de descargas elétricas e cobrindo todo o céu como um manto. Clarões no horizonte pulsavam através do nosso corpo e estalavam entre eles em explosões de conversa repentina e silenciosa. E de vez em quando um súbito forcado disparava, branco-azulado e brilhante, para o solo com um estrondo de trovão que fazia todos darem um salto.
Havia bem pouco a empacotar. Ainda bem, pois não havia muito tempo para isso. Eu podia ouvir o alvoroço por todo o quartel enquanto trabalhava: pessoas gritando, à cata de objetos perdidos, mães gritando por filhos desaparecidos e o barulho de pés, contínuo como eco da chuva nos vãos das escadas de madeira.
Do lado de fora, eu podia ouvir o balido agitado de carneiros e ovelhas, perturbados por terem sido forçados a sair de seus cercados, e um alvoroço repentino de gritos e mugidos, quando uma vaca em pânico fugia em disparada. Não era de admirar; havia um forte cheiro de sangue fresco no ar, da matança dos animais.
Eu já havia visto a guarnição em desfile, é claro; eu sabia quantos homens havia. Mas ver três ou quatro mil pessoas se empurrando e esbarrando, tentando realizar tarefas a que não estavam acostumadas em uma pressa enlouquecedora, era como observar um formigueiro destruído. Abri caminho pela multidão fervilhante, agarrando um saco de farinha com nossas roupas sobressalentes, meus parcos suprimentos médicos e um grande pedaço de presunto que eu ganhara de um paciente agradecido, enrolado em minha anágua extra.
Eu iria sair com a brigada dos barcos, tomando conta de um grupo de inválidos - mas não pretendia ir sem ver Jamie primeiro.
Meu coração estava na boca há tanto tempo que eu mal conseguia falar. Não pela primeira vez, pensei em como era conveniente ter casado com um homem alto. Era sempre fácil distinguir Jamie no meio de uma multidão e em poucos instantes eu o vi, parado em uma das baterias em meia-lua. Alguns de seus milicianos estavam com ele, todos olhando para baixo. Presumi que a brigada dos barcos devia estar se formando embaixo; isso era encorajador.
A perspectiva, quando alcancei a borda da bateria e pude ver, era consideravelmente menos encorajadora. A margem do lago abaixo do forte parecia o retorno particularmente desastroso de uma frota de pesca. Havia muitos barcos. Todos os tipos de barcos, de canoas a barcos a remo, barcas leves e balsas toscas. Algumas tinham sido arrastadas para a margem, outras evidentemente flutuavam sem rumo, não tripuladas - avistei durante o breve clarão de um relâmpago algumas cabeças oscilando na água enquanto homens e meninos nadavam atrás delas para trazê-las de volta. Havia poucas luzes na margem, por medo de revelar o plano de retirada, mas aqui e ali uma tocha ardia, mostrando discussões e escaramuças, e, além do alcance da luz das tochas, o terreno parecia pulular na escuridão, como uma carcaça fervilhando de vermes.
Jamie apertava a mão do sr. Anderson, um dos marujos originais do Teal, que havia se tornado um cabo de facto.
- Vá com Deus - ele disse. O sr. Anderson balançou a cabeça e virou-se, liderando o pequeno grupo de milicianos. Passaram por mim quando eu subia e um ou dois cumprimentou-me com um sinal da cabeça, os rostos invisíveis na sombra de seus chapéus.
- Onde estão indo? - perguntei a Jamie.
- Na direção de Hubbardton - ele respondeu, os olhos ainda fixos nas margens do lago embaixo. - Eu disse a eles que a escolha era deles, mas achei melhor que fossem logo, ao invés de esperar mais tempo. - Ele ergueu o queixo na direção da corcova escura do Monte Defiance, onde as centelhas de fogueiras de acampamento brilhavam perto do topo. - Se não souberem o que está acontecendo é uma incompetência total. Se eu fosse Simon Fraser, já estaria em marcha antes da primeira luz do dia.
- Não pretende ir com seus homens? - Um lampejo de esperança saltou em meu coração.
Havia pouca luz na bateria, apenas a claridade refletida das tochas nas escadas e das grandes fogueiras dentro do forte. Mas era o suficiente para eu ver seu rosto com clareza, quando ele se virou para olhar para mim. Estava sombrio, mas havia uma ânsia no desenho de seus lábios, e eu reconheci a expressão de um soldado pronto para entrar em ação.
- Não - ele disse. - Pretendo ir com você. - Sorriu repentinamente e eu agarrei sua mão. - Não acha que eu vá deixá-la vagando sozinha por esse ermo com um bando de doentes amalucados, não é? Ainda que isso signifique entrar em um barco - ele acrescentou com aversão.
Ri contra a vontade.
- Não é muito gentil de sua parte - eu disse. - Mas também não é incorreto, se está se referindo à sra. Raven. Você não a viu em algum lugar por aí, viu?
Ele sacudiu a cabeça. O vento soltara a maior parte de seus cabelos da tira de couro que os amarrava e ele a retirou e segurou-a entre os dentes, juntando os cabelos em um grosso rabo de cavalo para prendê-los novamente.
Alguém mais adiante na bateria disse alguma coisa, parecendo surpreso, e tanto Jamie quanto eu viramos abruptamente para olhar. O Independence estava pegando fogo.
- Fogo! Fogo!
Os gritos atraíram pessoas - já agitadas e aflitas - que saíam correndo das casernas como bandos de codornas alvoroçadas. O fogo estava logo abaixo do topo do monte, onde o general Fermoy havia estabelecido um posto avançado com seus homens. Uma língua de fogo rugia morro acima, firme como uma vela tomando alento. Então, uma rajada de vento achatou-a e a chama abaixou por um instante, como se alguém tivesse diminuído a chama do gás em um fogão, para em seguida explodir novamente em uma conflagração muito mais violenta, que iluminou o monte, revelando as minúsculas figuras negras do que pareciam centenas de pessoas em pleno ato de derrubar tendas e carregar bagagens, todos recortados em silhueta contra o fogo.
- E o alojamento de Fermoy pegando fogo - um soldado disse ao meu lado, sem conseguir acreditar. - Não é?
- É - Jamie confirmou do meu outro lado, amargamente. - E se podemos ver a evacuação daqui os observadores de Burgoyne certamente também estão vendo.
E, simplesmente assim, a debandada teve início.
Se algum dia eu tivesse duvidado de algo como telepatia, isso teria sido suficiente para aplacar quaisquer reservas. Os soldados já estavam a ponto de explodir com a demora de St. Clair e com o constante tambor de rumores batendo nos nervos tensos. Conforme o incêndio do Independence se espalhava, a convicção de que os casacos vermelhos e os índios logo estariam nos atacando espalhou-se de uma mente a outra, sem necessidade da fala. O pânico grassava, abarcando o forte com suas enormes asas negras, e a confusão na beira da água se desintegrava em caos bem diante de nossos olhos.
- Vamos - Jamie disse. E, antes que eu percebesse, estava sendo conduzida apressadamente escada abaixo pelos estreitos degraus da bateria. Algumas pequenas cabanas de madeira haviam sido incendiadas - de propósito, para privar os invasores de material ou equipamentos úteis - e a luz das chamas iluminavam uma cena de inferno. Mulheres arrastando crianças seminuas, gritando e puxando cobertas de cama, homens atirando móveis pela janela. Uma caneca espatifou-se nas pedras, lançando estilhaços agudos de cerâmica e cortando as pernas das pessoas próximas.
Uma voz surgiu, ofegante, atrás de mim.
- Um passarinho me diz que o francês idiota ateou fogo à casa ele mesmo.
- Não vou dar palpite sobre isso - Jamie respondeu sucintamente. - Só espero que ele tenha se consumido nas chamas.
Um tremendo clarão de relâmpago iluminou o forte como se fosse dia e gritos elevaram-se de todos os cantos, sendo quase instantaneamente sufocados pela explosão do trovão. Como era esperado, metade das pessoas pensou que a ira de Deus estava prestes a recair sobre nós - apesar do fato de estarmos tendo trovoadas igualmente violentas há dias, pensei com irritação - enquanto aqueles de mente secular estavam ainda mais apavorados porque as unidades de milícia nas linhas externas estavam sendo iluminadas conforme batiam em retirada, em plena vista dos ingleses no monte Defiance. De qualquer modo, a situação era crítica.
- Tenho que ir buscar meus inválidos! - gritei no ouvido de Jamie. - Vai você buscar nossas coisas no alojamento.
Ele sacudiu a cabeça. Seus cabelos soltos e esvoaçantes foram iluminados por outro raio e ele próprio pareceu um dos demônios principais.
- Não vou deixá-la - ele disse, segurando meu braço com força. - Eu posso nunca mais achar você de novo.
- Mas... - Minha objeção se desfez quando olhei. Ele tinha razão. Havia milhares de pessoas correndo, empurrando ou simplesmente paradas, aturdidas demais para pensar no que fazer. Se nos separássemos, talvez ele não conseguisse mais me encontrar e a ideia de ficar sozinha na floresta embaixo do forte - infestada de índios e de casacos vermelhos sanguinários - não era algo que eu conseguisse contemplar por mais de dez segundos.
- Está bem - eu disse. - Venha, então.
A cena dentro do hospital era menos frenética apenas porque a maioria dos pacientes era menos capaz de se movimentar. Mas eles estavam, na verdade, mais agitados do que as pessoas lá fora, já que haviam coletado apenas as informações mais fragmentárias de pessoas que entravam e saíam. Os que tinham família estavam sendo literalmente arrastados do prédio quase sem tempo suficiente para pegar suas roupas; aqueles sem família estavam nos espaços entre os catres, saltando em um pé só para entrar em suas calças ou cambaleando na direção da porta.
O capitão Stebbings, é claro, não estava fazendo nada disso. Permanecia placidamente deitado em seu catre, as mãos cruzadas sobre o peito, observando o caos com interesse, sua vela de sebo e junco queimando serenamente na parede acima de sua cabeceira.
- Sra. Fraser! - saudou-me alegremente. - Creio que logo serei um homem livre outra vez. Espero que o exército me traga um pouco de comida; acho que não há muita chance de ter jantar aqui hoje.
- Creio que não - eu disse, sem conseguir deixar de retribuir o sorriso. - Você tomará conta dos outros prisioneiros ingleses, não é? O general St. Clair os está deixando para trás.
Ele pareceu ligeiramente ofendido.
- Eles são meus homens - disse.
- É verdade. - Na realidade, Guiné Dick, quase invisível contra a parede de pedras na luz turva, estava agachado ao lado da cama do capitão, uma robusta bengala na mão, a fim de afastar possíveis saqueadores, imaginei. O sr. Ormiston estava sentado em seu próprio catre, pálido, mas entusiasmado, remexendo na atadura do seu toco de perna.
- Eles estão mesmo chegando, não estão, madame? O exército?
- Sim, estão. Agora, você tem que cuidar muito bem do seu ferimento, mantendo-o sempre limpo. Está sarando bem, mas você não deve colocar nenhum esforço sobre ele por mais um mês ainda, no mínimo; e espere ao menos dois meses antes de mandar afixar um pino. Não deixe os cirurgiões do exército sangrá-lo, vai precisar de todas as suas forças.
Ele assentiu, embora eu soubesse que, tão logo um cirurgião inglês aparecesse, ele se apresentaria para ser lancetado e sangrado; ele acreditava profundamente nas virtudes da sangria e ficara ligeiramente tranquilizado só com o fato de eu aplicar sanguessugas no toco de sua perna de vez em quando.
Apertei sua mão em despedida e estava me virando para ir embora quando ele segurou minha mão com mais força.
- Um momento, madame? - Ele soltou minha mão, tateando em seu pescoço, e retirou algo em um cordão. Eu mal podia ver o que era na luz turva, mas ele colocou-o em minha mão e eu senti um disco de metal, quente do seu corpo. - Se por acaso a senhora vir esse rapaz Abram de novo, madame, agradecia se lhe desse isso. É meu amuleto, que eu carrego há trinta e dois anos; diga-lhe que isso o manterá a salvo em tempos difíceis.
Jamie assomava no escuro ao meu lado, irradiando impaciência e agitação. Ele rebocava um grupo de inválidos, todos agarrando seus poucos e aleatórios pertences. Eu podia ouvir a voz estridente da sra. Raven a distância, lamuriando-se. Achei que chamava meu nome. Abaixei a cabeça e coloquei o amuleto do sr. Ormiston ao redor do meu pescoço.
- Eu direi a ele, sr. Ormiston. Obrigada.
Alguém ateara fogo à elegante ponte de Jeduthan Baldwin. Uma pilha de entulho ardia lentamente perto de uma das extremidades e eu vi figuras negras diabólicas correndo de um lado para o outro ao longo da extensão da ponte com pés de cabra e alavancas, arrancando as tábuas e atirando-as na água.
Jamie abriu caminho pela multidão, eu atrás dele e nosso pequeno bando de mulheres, crianças e inválidos correndo nos meus calcanhares como filhotes de ganso, grasnando agitadamente.
- Fraser! Coronel Fraser! - Virei-me com o grito e vi Jonah, ou melhor, Bill Marsden correndo pela margem em nossa direção. - Vou com vocês - ele disse, sem fôlego. - Vão precisar de alguém para remar.
Jamie não hesitou mais do que uma fração de segundo. Balançou a cabeça, indicando a beira d'água com um sinal da cabeça.
- Sim, corra. Eu os levarei o mais rápido possível até lá.
O sr. Marsden desapareceu na escuridão.
- E o resto dos seus homens? - perguntei, tossindo com a fumaça.
Ele deu de ombros, uma silhueta portentosa contra o tremeluzir das águas.
- Foram embora.
Gritos histéricos vieram da direção das Antigas Linhas Francesas. Espalhavam-se rapidamente pelas florestas e ao longo das margens, pessoas gritando que os ingleses estavam chegando. O pânico grassava desvairadamente. Era algo tão forte, o pânico, que eu mesma senti um grito erguer-se em minha garganta. Sufoquei-o e senti uma raiva irracional em seu lugar, deslocada de mim mesma para os tolos atrás de mim que gritavam estridentemente e que teriam se dispersado se pudessem. Mas estávamos perto da água agora e as pessoas arremessavam-se para os barcos em tal quantidade que emborcavam algumas das embarcações ao se empilharem dentro delas atabalhoadamente.
Eu não achava que os ingleses estavam perto - mas não tinha certeza. Sabia que tinha havido mais de uma batalha em Fort Ticonderoga... mas quando haviam ocorrido? Uma delas seria esta noite? Eu não sabia, e a sensação de urgência empurrava-me para a beira do lago, ajudando a apoiar o sr. Wellman, que contraíra caxumba de seu filho, pobre homem, e estava passando muito mal.
O sr. Marsden, Deus o abençoe, havia se apropriado de uma grande canoa, que ele levara um pouco para fora da margem, a fim de evitar que fosse invadida e emborcada. Quando viu Jamie se aproximando, ele veio e conseguimos colocar dezoito pessoas - incluindo os Wellman e a sra. Raven, pálida e com um olhar fixo de Ofélia - dentro dela.
Jamie olhou rapidamente para trás, para o forte. Os portões principais estavam escancarados e luz de fogo lançava-se por eles. Então, ele ergueu os olhos para a bateria onde ele e eu estivéramos pouco antes.
- Há quatro homens junto ao canhão, apontado para a ponte - ele disse, os olhos ainda fixos nos rolos de fumaça de barriga vermelha que se erguiam do interior do forte. - Voluntários. Vão ficar para trás. Os ingleses, ou alguns deles, certamente atravessarão a ponte. Eles podem destruir quase todo mundo no disparo e depois fugir... se puderem.
Virou-se, então, e seus ombros contraíram-se e estenderam-se conforme ele mergulhou o remo com força.
MONT INDEPENDENCE
Meio da tarde, 6 de julho
Os homens do general de brigada Fraser avançaram sobre o forte de piquete no alto do monte, aquele que os americanos ironicamente chamavam de "Independence". William comandava um dos grupos dianteiros e fez seus homens fixarem as baionetas quando se aproximaram. Fazia um profundo silêncio, quebrado somente pelo estalo de galhos e pelo arrastar de botas na espessa camada de folhas mortas, o estrépito casual de uma caixa de cartuchos contra a coronha de um mosquete. Seria um silêncio de espera?
Os americanos não podiam ignorar que eles estavam a caminho. Os rebeldes estariam emboscados, prontos a atirar neles da fortificação rústica, mas muito sólida que ele podia ver através das árvores?
Ele fez sinal para seus homens pararem a uns duzentos metros do topo do monte, na esperança de captar alguma indicação dos defensores, se é que assim se podia chamá-los. Sua própria companhia parou obedientemente, mas havia homens atrás e eles começaram a se misturar e atravessá-la sem nenhuma consideração, ávidos para invadir o forte.
- Parem! - gritou, cônscio, ao fazê-lo, de que o som de sua voz proporcionava um alvo quase tão bom para o rifle de um soldado americano quanto a visão de seu casaco vermelho proporcionaria. Alguns dos homens realmente pararam, mas foram imediatamente atropelados por outros homens que vinham atrás deles. Em poucos segundos, toda a encosta era um enxame vermelho. Não podiam continuar parados; seriam pisoteados. E, se os defensores tivessem a intenção de atirar, não poderiam pedir uma oportunidade melhor, mas o forte continuou em silêncio. - Avante! - William rugiu, erguendo o braço, e os homens arremeteram-se do meio das árvores em uma arrancada esplêndida, as baionetas em posição.
Os portões estavam abertos de par em par e os homens arremessaram-se diretamente para dentro do forte, desatentos ao perigo - mas não havia nenhum perigo. William entrou com seus homens e encontrou o lugar deserto. Não apenas abandonado, mas evidentemente abandonado com imensa pressa.
Os pertences pessoais dos defensores espalhavam-se por toda parte, como se tivessem caído durante a fuga: não apenas coisas pesadas como utensílios de cozinha, como roupas, sapatos, livros, cobertores... até mesmo dinheiro, aparentemente esquecidos ou que deixaram cair no pânico. Muito mais revelador, no que dizia respeito a William, era o fato de os defensores não terem feito nenhum esforço para explodir a munição ou a pólvora que não pudesse ser levada; devia haver uns cem quilos, empilhados em barris! Provisões, também, haviam sido deixadas para trás, uma constatação alentadora.
- Por que eles não atearam fogo ao lugar? - o tenente Hammond perguntou-lhe, olhando abismado ao redor, para os alojamentos, ainda completamente mobiliados com camas, urinóis, lençóis - prontos para os conquistadores se instalarem.
- Só Deus sabe - William respondeu laconicamente, em seguida arremetendo-se para frente ao ver um soldado sair de um dos quartos, enfeitado com um xale de rendas e com os braços cheios de sapatos. - Você aí! Não vai haver nenhum saque, nenhum! Você me ouviu?
O soldado atendeu, largando a braçada de sapatos, e afastou-se precipitadamente, os babados de renda do xale esvoaçando. Mas havia muitos outros iniciando a pilhagem e ficou claro para William que ele e Hammond não conseguiriam impedi-los. Ele gritou acima do crescente barulho convocando um mensageiro e, agarrando a caixa de despachos oficiais das mãos do sujeito, rabiscou um bilhete apressadamente.
- Leve isso ao general Fraser - disse, enfiando a caixa de volta nas mãos do mensageiro. - O mais rápido que puder!
Aurora 7 de julho
- Não vou tolerar essas horríveis irregularidades! - O rosto do general Fraser estava profundamente enrugado, tanto de raiva quanto de fadiga. O pequeno relógio de viagem na tenda do general mostrava pouco antes de cinco horas da manhã e William tinha a sensação estranhamente nebulosa de que sua cabeça flutuava em algum lugar sobre seu ombro esquerdo. - Saque, roubo, indisciplina desenfreada: não vou aturar isso, estou dizendo. Fui claro?
O pequeno e exausto grupo de oficiais assentiu com um coro de grunhidos. Haviam passado a noite toda acordados, importunando suas tropas sem trégua para colocar um pouco de ordem, refreando os soldados rasos dos piores excessos do saque, apressadamente supervisionando os postos avançados abandonados nas Antigas Linhas dos Franceses e fazendo um levantamento do inesperado prêmio de provisões e munição deixadas para eles pelos defensores do forte - quatro dos quais haviam sido encontrados quando o forte foi invadido, inconscientes de tão bêbados ao lado de um canhão preparado para ser deflagrado, apontado para a ponte embaixo.
- Esses homens, os que foram aprisionados. Alguém já conseguiu falar com eles?
- Não, senhor - o capitão Hayes disse, reprimindo um bocejo. - Ainda inconscientes, quase mortos, segundo o médico, embora ele ache que sobreviverão.
- Borraram-se de medo - Hammond disse a William em voz baixa. - Esperando todo esse tempo pela nossa chegada.
- É mais provável que tenha sido de tédio - William murmurou em resposta, sem mover os lábios. Mesmo assim, seus olhos encontraram os olhos injetados do general e ele se empertigou inconscientemente.
- Bem, na verdade não precisamos deles para nos dizer muita coisa - o general Fraser abanou a mão para dissipar uma nuvem de fumaça que entrara no aposento e tossiu. William inalou um pouco da fumaça. Havia um aroma suculento impregnado na fumaça e seu estômago roncou de expectativa. Presunto? Salsichas?
- Já enviei mensagem ao general Burgoyne dizendo que o Ticonderoga é nosso... outra vez - o general de brigada acrescentou, abrindo um largo sorriso diante dos roucos gritos de regozijo dos oficiais. - E ao coronel St. Leger. Devemos deixar uma pequena guarnição para fazer um inventário e arrumar um pouco as coisas aqui, mas o resto de nós... Bem, há rebeldes a serem capturados, senhores. Não posso lhes oferecer muito descanso, mas sem dúvida há tempo para um farto café da manhã. Bon appetit!
O RETORNO DOS NATIVOS
Noite - 7 de julho
Ian Murray entrou no forte sem dificuldade. Havia exploradores e índios em abundância, a maioria descansando contra os prédios, muitos bêbados, outros investigando os alojamentos desertos, ocasionalmente expulsos por soldados com ar perturbado, designados para montar guarda à inesperada abastança que o forte proporcionara.
Não havia nenhum sinal de massacre e ele respirou com mais facilidade. Esse fora seu primeiro temor, mas apesar de haver uma grande bagunça - até demais - não havia sinal de sangue e nenhum cheiro de fumaça de pólvora. Nenhum tiro fora disparado ali nas últimas vinte e quatro horas aproximadamente.
Teve uma ideia e dirigiu-se para as instalações do hospital, amplamente ignorado, já que não tinha nada que alguém pudesse querer. Os odores de urina, fezes e sangue seco haviam diminuído; a maioria dos pacientes deve ter batido em retirada com as tropas. Havia algumas pessoas ali, uma delas com um casaco verde que ele achou que devia ser um médico, outros obviamente enfermeiros do hospital. Enquanto observava, uma dupla de carregadores de maca atravessou a porta, as botas raspando o chão conforme tentavam transpor os baixos degraus de pedra. Ele inclinou-se para trás, ocultando-se no vão da porta, pois seguindo a maca estava a figura alta de Guiné Dick, o rosto aberto em um sorriso de canibal.
O próprio Ian sorriu, ao vê-lo; o capitão Stebbings ainda vivia, então - e Guiné Dick era um homem livre. E ali, graças a Jesus, Maria e santa Brígida, vinha o sr. Ormiston atrás dele, mancando, devagar, em um par de muletas, cuidadosamente apoiado de cada lado por uma dupla de enfermeiros, as pequenas criaturas miniaturizadas pelo corpanzil do marujo. Iria poder contar a tia Claire - ela ficaria satisfeita em saber que eles estavam bem.
Se encontrasse tia Claire de novo - mas na verdade não estava muito preocupado. Tio Jamie a manteria a salvo, contra o inferno, incêndios florestais ou o exército britânico inteiro. Quando ou onde ele os veria outra vez era uma outra questão, mas ele e Rollo moviam-se muito mais rápido do que qualquer exército; ele os alcançaria em pouco tempo.
Esperou, curioso para ver se restava mais alguém no hospital, mas ou não havia mais ninguém ou eles deveriam ser deixados lá por enquanto. Os Hunter teriam ido com as tropas de St. Clair? De certa forma, esperava que sim - mesmo sabendo que eles provavelmente ficariam melhor com os ingleses do que fugindo pelo Vale do Hudson com os refugiados do Ticonderoga. Como quakers, achava que eles se sairiam bem; os ingleses provavelmente não os molestariam. Mas ele achou que gostaria de ver Rachel Hunter novamente algum dia e sua chance era muito maior se ela e o irmão estivessem com os rebeldes.
Um pouco mais de investigação pelos arredores convenceu-o de duas coisas: que os Hunter haviam realmente ido com os rebeldes e que a evacuação do Ticonderoga fora conseguida em meio ao pânico e à desordem. Alguém incendiara a ponte embaixo, mas ela só fora parcialmente destruída, tendo o fogo talvez sido extinto por uma pancada de chuva. Havia uma grande quantidade de entulho na margem do lago, sugerindo um embarque maciço - automaticamente, ele olhou na direção do lago, onde dois grandes navios podiam ser claramente vistos, ambos ostentando a bandeira do Reino Unido. De sua atual posição na bateria, podia ver casacos vermelhos como um enxame cobrindo o Defiance e o Independence, e sentiu uma chama pequena e surpreendente de ressentimento contra eles.
- Bem, não vão dominá-los por muito tempo - disse baixinho. Falou em gaélico e ainda bem, pois um soldado que passava olhou casualmente para ele, como se sentisse a tensão em seu olhar. Ele desviou o olhar e deu as costas para o forte.
Não havia nada a fazer ali, ninguém por quem esperar. Iria comer e pegar algumas provisões, depois pegaria Rollo e partiria. Ele poderia...
Um barulho estrondoso bem próximo o fez virar-se subitamente. A sua direita, um dos canhões estava apontado para baixo, na direção da ponte, e logo atrás dele, boquiaberto de choque, estava um huron, cambaleando de bêbado.
Ouviu-se uma gritaria vinda de baixo; as tropas acharam que estavam sendo bombardeadas do forte, apesar de o tiro ter passado bem alto, espatifando-se inofensivamente nas águas do lago.
O huron ria à socapa.
- O que foi que você fez? - Ian perguntou, em uma língua algonquina que achou que o sujeito provavelmente compreenderia. Quer tenha entendido ou não, o homem simplesmente ria ainda mais, desbragadamente, as lágrimas começando a escorrer pelo seu rosto. Indicou uma tina fumegante ali perto; Santo Deus, os defensores haviam partido com tanta pressa que haviam deixado um pavio de queima lenta aceso.
- Buum! - exclamou o huron, e indicou um pedaço do pavio, puxado da tina e deixado solto sobre as lajes de pedra como uma cobra incandescente. - Buum! - ele disse outra vez, balançando a cabeça para o canhão, e riu até ter que se sentar.
Soldados corriam para a bateria e a gritaria do lado de fora foi igualada pelos gritos de dentro do forte. Provavelmente, era uma boa hora para ir embora.
RETIRADA
...estamos perseguindo os rebeldes, um grande número deles desceu o lago em barcos. As duas corvetas no lago estão seguindo-os, mas estou enviando quatro companhias para o ponto onde terão que rebocar as barcos por terra para evitar obstáculos; creio que a chance de capturá-los ali é grande.
De General de brigada Simon Fraser Para GeneralJ. Burgoyne
8 de julho de 1771
William gostaria de não ter aceito o convite do general Fraser para o café da manhã. Se tivesse se contentado com a magra ração de um tenente, ele estaria com fome, mas feliz. Do jeito que era, ele estava no local - felizmente cheio até os olhos de salsichas fritas, torradas com manteiga e bolinhos fritos com mel, muito apreciados pelo general - quando chegou a mensagem do general Burgoyne. Ele nem sabia o que ela dizia; o general a lera enquanto bebericava seu café, franzindo ligeiramente o cenho, depois suspirou e pediu pena de escrever e tinta.
- Quer dar uma cavalgada esta manhã, William? - ele perguntara, sorrindo do outro lado da mesa.
E foi assim que ele acabou no quartel-general de campo do general Burgoyne quando os índios chegaram. Hurons, um dos soldados dissera; ele não os conhecia, embora tivesse ouvido falar que tinham um chefe chamado Lábios de Couro, e ele se perguntara qual seria a razão. Será que o sujeito era um infatigável tagarela?
Eram cinco índios, magros, com uma aparência maligna de lobos. Ele não saberia dizer o que usavam ou como estavam armados; toda a sua atenção se concentrava na estaca que um deles portava - decorada com escalpos. Frescos. De brancos. Um odor almiscarado de sangue pairou no ar desagradavelmente adocicado, e um enxame de moscas acompanhava os índios, zumbindo sonoramente. Os remanescentes do farto café da manhã de William coagularam-se em uma bola dura logo abaixo de suas costelas.
Os índios procuravam o tesoureiro; um deles perguntava, em um inglês surpreendentemente melódico, onde estava o "pagador de salários". Então, era verdade. O general Burgoyne havia soltado as rédeas dos índios, enviado-os pelas florestas como cães de caça para atacarem os rebeldes e espalharem o terror entre eles.
Ele não queria olhar para os escalpos, mas não pôde evitar; seus olhos seguiram-nos conforme a estaca se balançava pela multidão crescente de soldados curiosos - alguns ligeiramente horrorizados, alguns aclamando os recém-chegados. Santo Deus. Aquele seria o escalpo de uma mulher? Tinha que ser; uma cabeleira esvoaçante, cor de mel, bem mais compridos do que um homem usaria seus cabelos, e brilhantes, como se a dona os escovasse todas as noites com cem escovadelas, como sua prima Dottie disse que fazia. Não eram muito diferentes dos cabelos de Dottie, apenas um pouco mais escuros...
Virou-se abruptamente, na esperança de não vomitar, mas tornou a virar-se com a mesma brusquidão quando ouviu o grito. Nunca ouvira um som como aquele antes - um berro estridente de tal horror, de tal desespero, que seu coração paralisou-se no peito.
- Jane! Jane! - Um tenente irlandês que ele conhecia de vista, chamado David Jones, abria caminho na multidão, socando os homens com punhos e cotovelos, arremessando-se para frente, na direção dos surpresos índios, o rosto contorcido de emoção.
- Oh, meu Deus - exclamou, arfando, um soldado ao seu lado. - Sua noiva se chama Jane. Não pode ser...
Jones atirou-se contra a estaca, agarrando a cabeleira cor de mel, gritando "JANE!" a plenos pulmões. Os índios, desconcertados, puxaram a estaca com um safanão. Jones atirou-se sobre um deles, derrubando o surpreso índio no chão e socando-o com a força da insanidade.
Homens tentavam abrir caminho para frente, agarrando Jones - mas sem muito empenho. Olhares horrorizados eram dirigidos aos índios, que se agruparam, os olhos estreitados e as mãos em seus tacapes. Todo o espírito do ajuntamento mudara em um instante da aprovação à indignação, e os índios obviamente perceberam isso.
Um oficial que William não conhecia adiantou-se com determinação, desafiando os índios com um olhar fulminante, e arrancou o escalpo louro da estaca. Depois, ficou segurando-o, desconcertado, a cabeleira parecendo viva em suas mãos, as longas mechas esvoaçando, enrolando-se em seus dedos.
Finalmente haviam conseguido arrancar Jones de cima do índio; seus amigos davam tapinhas em seu ombro, tentando afastá-lo dali, mas ele permaneceu parado, imóvel, as lágrimas rolando pelo rosto e pingando do queixo. "Jane", ele repetia, silenciosamente. Ele estendeu as mãos, suplicantes, e o oficial que segurava o escalpo o colocou delicadamente dentro delas.
ENQUANTO AINDA VIVOS
O tenente Stactoe estava parado junto a um corpo, imobilizado. Muito devagar, ele agachou-se, os olhos fixos em alguma coisa e, como por reflexo, cobriu a boca com uma das mãos.
Eu não queria olhar.
Mas ele ouvira meus passos e retirou a mão da boca. Pude ver o suor escorrendo pelo seu pescoço, a faixa de sua camisa emplastada na pele, escura da transpiração.
- Acha que isso foi feito enquanto ele ainda estava vivo? - ele perguntou, em um tom de voz normal.
Com relutância, olhei por cima de seu ombro.
- Sim - eu disse, a voz tão impassível quanto a dele. - Foi.
- Oh - ele disse. Levantou-se, contemplou o cadáver por um instante, depois se afastou alguns passos e vomitou.
- Não tem importância - eu disse gentilmente, e o segurei pela manga. - Está morto agora. Venha ajudar.
Muitos dos barcos haviam se extraviado, sendo capturados antes que alcançassem a extremidade do lago; muitos mais haviam sido capturados pelas tropas britânicas que os aguardavam no trecho não navegável. Nossa canoa e várias outras haviam escapado e nós avançamos pela floresta durante um dia e uma noite e a maior parte do dia seguinte antes de encontrar o grosso das tropas que fugiam do forte por terra. Eu começava a achar que os que foram capturados é que tiveram sorte.
Eu não sabia quanto tempo se passara desde que o pequeno grupo que acabávamos de descobrir fora atacado por índios. Os corpos não eram recentes.
Foram colocadas sentinelas à noite. Os que não estavam montando guarda dormiam como se tivessem sido nocauteados, exaustos pelo dia de fuga - se algo tão desordenado e difícil pudesse ser assim chamado. Eu acordei logo após o alvorecer, de pesadelos com as árvores da Branca de Neve, as bocas abertas e ávidas, e encontrei Jamie agachado ao meu lado, a mão em meu braço.
- É melhor você vir, a nighean - ele disse suavemente.
A sra. Raven cortara a garganta com um canivete.
Não havia tempo de cavar uma sepultura. Eu endireitei seu corpo e fechei seus olhos, depois empilhamos pedras e galhos sobre ela antes de nos arrastarmos de volta para o sulco que fazia as vezes de estrada pela amplidão selvagem.
Quando a escuridão se infiltrou pelas árvores, começamos a ouvi-los. Uivos estridentes e ululantes. Lobos caçando.
- Continuem andando! Continuem andando! índios! - um dos milicianos gritou.
Como se evocado pelo grito, um berro aterrorizante ressoou pela escuridão próxima e a claudicante retirada tornou-se imediatamente uma precipitação em pânico, homens largando suas trouxas e empurrando-se para fora do caminho em sua pressa de fugir.
Houve gritos dos refugiados também, embora esses tenham sido rapidamente emudecidos.
- Saiam da estrada - Jamie disse, em voz baixa e feroz, e começou a empurrar os mais lentos e confusos para dentro do mato. - Talvez não saibam onde estamos. Ainda.
Ou talvez soubessem.
- Tem a sua canção da morte pronta, tio? - Ian sussurrou. Ele nos alcançara no dia anterior e agora ele e Jamie pressionavam-se contra mim, um de cada lado, onde nos havíamos refugiado atrás de um enorme tronco caído.
- Oh, eu cantarei para eles uma canção da morte, se chegarmos a isso - Jamie murmurou, baixinho, e tirou uma das pistolas do cinto.
- Você não sabe cantar - eu disse. Não pretendi fazer graça; eu estava tão assustada que falei automaticamente a primeira coisa que me veio à mente. E ele não riu.
- É verdade - ele disse. - Muito bem, então.
Ele preparou a pistola e enfiou-a na cintura.
- Não tenha medo, a nighean - Jamie sussurrou, e eu vi sua garganta trabalhar enquanto ele engolia. - Não deixarei que a levem. Não viva. - Tocou a pistola em seu cinto.
Olhei fixamente para ele, depois para a pistola. Não pensei que fosse possível ficar ainda mais amedrontada.
Senti de repente como se minha espinha dorsal tivesse quebrado com um estalo; minhas pernas recusavam-se a se mover e meus intestinos estavam literalmente virando água. Entendi, naquele momento, exatamente o que levara a sra. Raven a cortar a própria garganta.
Ian sussurrou alguma coisa para Jamie e afastou-se sorrateiramente, silencioso como uma sombra.
Ocorreu-me, tardiamente, que, ao gastar tempo atirando em mim se fôssemos alcançados, o próprio Jamie muito provavelmente cairia vivo nas mãos dos índios. E eu estava tão aterrorizada que não conseguia lhe dizer para não fazer isso.
Reuni toda a minha coragem e engoli com força.
- Vá! - eu disse. - Eles não vão... provavelmente não vão ferir as mulheres. - Minha saia de cima estava em farrapos, assim como meu casaco, e todo o traje estava coberto de lama, folhas e de pequenos pontos de sangue provocados pelos mosquitos mais lentos - mas ainda podia ser identificada como uma mulher.
- De jeito nenhum - ele disse sucintamente.
- xio. - A voz de Ian veio num sussurro de dentro da escuridão. - Não são índios.
- O quê? - Não consegui dar sentido às palavras de Ian, mas Jamie endireitou-se abruptamente.
- É um casaco vermelho, correndo paralelamente a nós, berrando como um índio. Nos conduzindo.
Jamie praguejou baixinho. Já estava quase completamente escuro agora; eu podia ver apenas alguns vultos, provavelmente daqueles que estavam conosco. Ouvi uma lamúria, muito baixa, mas quando olhei não vi ninguém.
Os gritos retornaram, agora vindos do outro lado. Se o sujeito estava nos conduzindo - ele sabia que estávamos ali? Se assim fosse, para onde pretendia nos conduzir? Eu podia sentir a indecisão de Jamie: para que lado? Um segundo, talvez dois, e ele me segurou pelo braço, puxando-me mais para dentro da floresta.
Em poucos minutos, nos deparamos com um grande número de refugiados; estavam paralisados, aterrorizados demais para se mover em qualquer direção. Mantinham-se juntos, as mulheres agarrando seus filhos, as mãos tampando com força a boca das crianças, sussurrando "Shhh!" como o vento.
- Deixe-os - Jamie disse em meu ouvido, apertando a mão em meu braço. Virei-me para ir com ele e de repente alguém segurou meu outro braço. Gritei e todos que estavam perto irromperam em gritos por puro reflexo. Repentinamente, a floresta à nossa volta ganhou vida com vultos em movimento e gritos.
O soldado - era um soldado britânico; tão de perto, eu podia ver os botões de seu uniforme e sentir o baque surdo de sua caixa de cartuchos conforme ela balançava, batendo em meu quadril - inclinou-se para baixo para me ver melhor e riu, o hálito fétido de dentes cariados.
- Fique quieta, benzinho - ele disse. - Você não vai a nenhum lugar agora.
Meu coração batia com tanta força nos meus ouvidos que foi necessário um minuto inteiro para eu perceber que já não havia ninguém apertando meu outro braço. Jamie desaparecera.
Fomos conduzidos de volta à estrada em um grupo compacto, movendo-se devagar pela noite. Eles nos deixaram beber água em um riacho quando o dia amanheceu, mas nos mantiveram andando até o começo da tarde, quando até mesmo os mais aptos fisicamente estavam prestes a desmoronar.
Fomos levados como um rebanho, e nada gentilmente, até uma lavoura. Sendo mulher de fazendeiro como eu era, contraí-me ao ver os talos - a apenas algumas semanas da colheita - sendo pisoteados, o frágil ouro do trigo cortado e esmagado em lama preta. Havia uma cabana entre as árvores na outra extremidade da plantação; vi uma menina sair correndo para a varanda, tampar a boca com a mão horrorizada e desaparecer novamente dentro da casa.
Três oficiais britânicos atravessavam a plantação, na direção da cabana, ignorando a fervilhante massa de inválidos, mulheres e crianças, todos os quais andavam de um lado para o outro, sem saber o que fazer em seguida. Limpei o suor dos meus olhos com a ponta do meu lenço, enfiando-a de novo em meu corpete, e olhei ao redor em busca de alguém que pudesse estar nominalmente no comando.
Nenhum dos nossos próprios oficiais ou homens em boas condições físicas parecia ter sido capturado; houve apenas dois médicos supervisionando a remoção dos inválidos e há dois dias eu não via nenhum deles. Nenhum estava ali. Muito bem, então, pensei soturnamente, e me dirigi para o soldado britânico mais próximo, que inspecionava o caos através de olhos estreitados, o mosquete na mão.
- Precisamos de água - eu lhe disse sem preâmbulos. - Há um riacho logo atrás daquelas árvores. Posso levar três ou quatro mulheres para trazer água para os doentes e feridos?
Ele também suava; a lã vermelha desbotada de seu casaco estava escura embaixo dos braços e o pó de arroz derretido de seus cabelos secara nas rugas de sua testa. Ele fez uma careta, indicando que não queria lidar comigo, mas eu simplesmente continuei olhando-o fixamente, o mais perto que consegui chegar. Ele olhou à sua volta, na esperança de encontrar alguém para o qual me mandar, mas os três oficiais haviam desaparecido dentro da cabana. Ergueu um dos ombros em capitulação, desviando o olhar.
- Sim, vá, então - ele murmurou, virando-se de costas, resolutamente guardando a estrada, pela qual novos prisioneiros ainda eram conduzidos.
Uma rápida volta pelo campo produziu três baldes e o mesmo número de mulheres sensatas, preocupadas, mas não histéricas. Eu as mandei para o riacho e comecei a avaliar a área, fazendo um rápido levantamento da situação - tanto para manter minha própria preocupação sob controle quanto porque não havia mais ninguém para fazer isso.
Seríamos mantidos ali por muito tempo?, eu me perguntei. Se fôssemos ficar ali por mais do que algumas horas, trincheiras sanitárias tinham que ser cavadas - mas os soldados teriam a mesma necessidade. Assim sendo, eu iria deixar isso a cargo do exército. A água estava a caminho; iríamos ter que nos revezar até o riacho sem parar durante algum tempo. Abrigo... Olhei para o céu; estava nublado, mas claro. Os que podiam se locomover sozinhos já estavam ajudando a arrastar os desesperadamente doentes ou feridos para a sombra das árvores em um dos lados do campo.
Onde estava Jamie? Teria conseguido escapar?
Acima das chamadas e conversas ansiosas, eu ouvia de vez em quando o murmúrio de trovões distantes. O ar grudava-se em minha pele, carregado de umidade. Iriam ter que nos levar para algum lugar - para o povoado mais próximo, onde quer que pudesse ser - mas isso poderia levar vários dias. Eu não tinha a menor ideia de onde estávamos.
Ele teria sido capturado também? Se assim fosse, iriam levá-lo para o mesmo lugar para onde levariam os inválidos?
A probabilidade era de que libertassem as mulheres, para não ter que alimentá-las. As mulheres, entretanto, permaneceriam ao lado de seus maridos doentes - ou a maioria o faria -, compartilhando qualquer alimento disponível.
Eu atravessava o campo devagar, fazendo uma triagem mental - o homem na maca lá adiante iria morrer, talvez antes do anoitecer; eu podia ouvir os estertores de sua respiração a dois metros de distância - quando avistei um movimento na varanda da cabana.
A família - duas mulheres adultas, dois adolescentes, três crianças e um bebê de colo - partia, levando cestos, cobertores e os poucos utensílios domésticos que conseguiam carregar. Um dos oficiais os acompanhava; conduziu-os através da plantação e falou com um dos guardas, evidentemente instruindo-o para deixar as mulheres passarem. Uma das mulheres parou na beira da estrada e olhou para trás - apenas uma vez. Os demais seguiram diretamente em frente, sem olhar para trás. Onde estavam os homens da família?
Onde estão os meus?
- Olá - eu disse, sorrindo para um homem com uma perna recentemente amputada. Eu não sabia seu nome, mas reconheci seu rosto; era um dos poucos negros do Ticonderoga, um carpinteiro. Ajoelhei-me ao seu lado. Suas ataduras estavam torcidas e o toco de sua perna exsudava intensamente. - Fora a perna, como se sente? - Sua pele estava cinzenta e pegajosa como um lençol molhado, mas ele me deu um leve sorriso em resposta.
- Minha mão esquerda não está doendo muito agora. - Ergueu-a para ilustrar, mas deixou-a cair como um pedaço de chumbo, sem forças para mantê-la erguida.
- Isso é bom - eu disse, deslizando meus dedos por baixo de sua coxa para levantá-la. - Deixe-me ajeitar isso para você. Vamos lhe trazer um pouco de água em um minuto.
- Seria muito bom - murmurou, e fechou os olhos contra a claridade do sol.
A ponta solta da bandagem desfeita estava torcida para cima como a língua de uma cobra, dura de sangue seco, e o curativo fora de lugar. O curativo em Si, uma cataplasma de sementes de linho e terebintina, estava encharcado, cor-de-rosa com o vazamento de sangue e linfa. Mas não havia outra escolha senão utilizá-lo de novo.
- Qual é o seu nome?
- Walter. - Seus olhos ainda estavam fechados, a respiração curta e superficial. A minha também; o ar denso e quente era como uma atadura de pressão em volta do meu peito. - Walter... Woodcock.
- Prazer em conhecê-lo, Walter. Meu nome é Claire Fraser.
- Conheço a senhora - ele murmurou. - É a mulher do Ruivo Grandão. Ele conseguiu deixar o forte?
- Sim - eu disse, e enxuguei o rosto no ombro para manter o suor fora dos meus olhos. - Ele está bem.
Meu Deus, que ele esteja bem.
O oficial inglês estava voltando na direção da cabana e passou a alguns passos de mim. Ergui os olhos e minhas mãos paralisaram.
Ele era alto, esbelto, mas de ombros largos, e eu teria reconhecido aquele modo de andar em largas passadas, aquela graciosidade inconsciente e aquela inclinação arrogante da cabeça em qualquer lugar. Ele parou, franzindo a testa, e virou a cabeça para inspecionar o campo revirado e coberto de lixo. Seu nariz era reto como a lâmina de uma faca, apenas um pouquinho longo demais. Fechei os olhos por um instante, zonza, certa de que estava tendo alucinações - mas os abri outra vez imediatamente, sabendo que não estava.
- William Ransom? - disse num impulso, e ele virou a cabeça abruptamente em minha direção, surpreso. Olhos azuis, azuis-escuros, os olhos de gato dos Fraser, estreitados contra o sol até se tornarem apenas uma fenda.
- Hã... como?
Santo Deus, por que você foi falar com ele? Mas não pude me conter. Meus dedos apertavam-se contra a perna de Walter, segurando a bandagem; eu podia sentir seu pulso femoral contra a ponta dos meus dedos, batendo tão erraticamente quanto o meu próprio.
- Eu a conheço, madame? - William perguntou, com uma leve mesura.
- Bem, sim, conhece - eu disse, quase em tom de desculpas. - Você ficou algum tempo com minha família, há alguns anos. Um lugar chamado Fraser's Ridge.
Seu rosto mudou imediatamente diante do nome e seu olhar se aguçou, focalizando-se em mim com interesse.
- Ora, sim - ele disse, devagar. - Lembro-me. É a sra. Fraser, não? - Eu podia ver seus pensamentos funcionando e fiquei fascinada; ele não possuía a mesma habilidade de Jamie de ocultar o que se passava em sua mente - ou, se tinha, não a estava usando. Eu podia vê-lo se perguntando, sendo como era um rapaz gentil e educado, qual seria a reação social adequada a essa estranha situação e - um rápido olhar por cima do ombro para a cabana - como as exigências de seu dever poderiam estar em conflito com isso.
Seus ombros empertigaram-se com uma decisão, mas antes que ele pudesse dizer alguma coisa eu me adiantei.
- Acha que pode ser possível encontrar alguns baldes para água? E ataduras? - A maioria das mulheres já havia rasgado tiras de suas anáguas para essa função; se a situação se prolongasse por muito mais tempo, todas nós ficaríamos seminuas.
- Sim - ele respondeu devagar e abaixou os olhos para Walter, depois olhou para a estrada. - Baldes, sim. Há um médico com a divisão atrás de nós; quando eu tiver oportunidade, enviarei alguém de volta com um pedido de ataduras.
- E comida? - perguntei esperançosamente. Eu não havia comido mais do que um punhado de frutinhas silvestres ainda um pouco verdes em quase dois dias. Eu não estava sofrendo dores de fome - meu estômago parecia ter dado um nó mas estava com acessos de tontura, pontos negros passando diante dos meus olhos. Ninguém estava em muito melhor estado; iríamos perder vários inválidos por calor e fraqueza, se não nos dessem logo abrigo e comida.
Ele hesitou e vi seus olhos relancearem pelo campo, obviamente calculando números.
- Devem ser... Nossa caravana de suprimentos... - Seus lábios firmaram-se e ele sacudiu a cabeça. - Verei o que pode ser feito. Seu criado, madame. - Ele inclinou-se educadamente e virou-se, afastando-se a passos largos na direção da estrada. Observei-o ir, fascinada, o curativo encharcado pendendo de minha mão.
Ele possuía cabelos escuros, apesar de o sol acender um reflexo ruivo no alto de sua cabeça; não empoava os cabelos. Sua voz se tornara mais grave - bem, é claro que sim; ele não tinha mais do que doze anos da última vez que o vi - e a absoluta estranheza de ouvir Jamie falando um inglês culto me deu vontade de rir, apesar de nossa precária situação e de minha preocupação por Jamie e Ian. Sacudi a cabeça e retornei à tarefa à mão.
Um soldado inglês chegou uma hora depois de minha conversa com o tenente Ransom, carregando quatro baldes, que largou ao meu lado sem a menor cerimônia e sem nenhum comentário antes de se dirigir outra vez para a estrada. Duas horas depois, um enfermeiro de hospital, suando em bicas, veio caminhando arrastadamente pelo trigo pisoteado com duas grandes sacas cheias de bandagens. O mais interessante é que ele veio diretamente a mim, o que me fez imaginar como William havia me descrito para ele.
- Obrigada. - Peguei as sacas de bandagens com gratidão. - Acha... acha que logo teremos alguma coisa para comer?
O enfermeiro olhava por cima do campo, com uma careta. Claro - os inválidos provavelmente estavam prestes a se tornar sua responsabilidade. No entanto, ele voltou-se novamente para mim, educado, mas obviamente muito cansado.
- Duvido, madame. A caravana de suprimentos está dois dias atrás de nós e as tropas estão vivendo do que estão carregando ou do que encontram no caminho. - Balançou a cabeça indicando a estrada; do outro lado, eu podia ver vários soldados ingleses montando um acampamento. - Sinto muito - acrescentou formalmente, e virou-se para ir embora.
- Oh. - Ele parou e, removendo a tira de seu cantil, entregou-o a mim. Estava pesado e borbulhava tentadoramente. - O tenente Ellesmere disse que eu deveria lhe dar isso. - Sorriu brevemente, as rugas de cansaço se abrandando. - Disse que a senhora parecia com sede.
- Tenente Ellesmere. - Devia ser o título de William, percebi. - Obrigada. E Por favor agradeça ao tenente, se o vir. - Ele estava claramente prestes a ir embora, mas não pude deixar de perguntar: - Como você soube quem eu era?
O sorriso do rapaz se aprofundou enquanto ele olhava para a minha cabeça.
- O tenente disse que a senhora seria a de cabeleira encaracolada dando ordens como um sargento. - Ele olhou ao redor do campo mais uma vez, sacudindo a cabeça. - Boa sorte, madame.
Três homens morreram antes do pôr do sol. Walter Woodcock ainda estava vivo, porém muito mal. Havíamos removido o maior número possível de inválidos para a sombra das árvores ao longo da beira da plantação e eu havia dividido os gravemente feridos em pequenos grupos, cada qual com um balde e duas ou três mulheres ou inválidos em condições de andar acompanhando-os. Também designei uma área de latrina e fiz o melhor possível para separar os casos contagiosos daqueles que tinham febre por causa de ferimentos ou malária. Havia três sofrendo do que eu esperava que fosse apenas "febre de verão" e um que eu temia que fosse um caso de difteria. Sentei-me a seu lado - um jovem consertador de rodas de carroça de Nova Jersey-verificando as membranas de sua garganta a intervalos e dando-lhe tanta água quanto ele conseguia tomar. Mas não do meu cantil.
William Ransom, que Deus o abençoe, enchera o cantil com conhaque.
Eu o destampei e tomei um pequeno gole. Eu havia enchido pequenas canecas para cada grupo, acrescentando cada caneca a um balde de água - mas guardara um pouco para meu próprio uso. Não por egoísmo; para o melhor ou para o pior, eu era a encarregada dos prisioneiros por enquanto. Precisava permanecer de pé.
Ou sentada sobre o traseiro, segundo as circunstâncias, pensei, recostando-me no tronco de um carvalho. Meus pés doíam, a dor subindo até os joelhos, minhas costas e minhas costelas davam fisgadas de dor a cada respiração, e eu tinha que fechar os olhos de vez em quando para controlar a tontura. Mas estava sentada tranquilamente, pelo que parecia a primeira vez em vários dias.
Os soldados do outro lado da estrada cozinhavam suas parcas rações; minha boca se encheu de água e meu estômago se contraiu dolorosamente ao cheiro de carne assada e farinha. O menino da sra. Wellman choramingava de fome, a cabeça no colo da mãe. Ela afagava seus cabelos mecanicamente, os olhos fixos no corpo do marido, estendido ali perto. Não tínhamos nenhum lenço ou cobertor para servir de mortalha, mas alguém lhe dera um lenço para cobrir o rosto do morto. Havia muitas moscas.
O ar refrescara, graças a Deus, mas ainda estava pesado, ameaçando chover; os trovões eram um ronco débil e constante no horizonte e provavelmente teríamos um aguaceiro em algum momento durante a noite. Puxei o tecido empapado de suor que grudava em meu peito; eu duvidava que houvesse tempo de secar antes de ficarmos encharcados com a chuva. Olhei com inveja o acampamento do outro lado da estrada, com suas fileiras de pequenas barracas e abrigos de galhos e folhagens. Havia também uma barraca ligeiramente maior, dos oficiais, embora vários deles tivessem se aquartelado temporariamente na cabana confiscada.
Eu devia ir lá, pensei. Ver o oficial mais graduado presente e suplicar por comida, ao menos para as crianças. Quando a sombra daquele pinheiro alto tocasse meu pé, decidi. Então, eu iria. Enquanto isso, destampei o cantil e tomei mais um pequeno gole.
Um movimento atraiu minha atenção e eu ergui os olhos. A figura inconfundível do tenente Ransom saiu do meio das barracas e atravessou a estrada. Senti um pequeno alento em meu coração ao vê-lo, embora renovasse minha preocupação com Jamie - e me fizesse lembrar, com uma pontada no peito, de Brianna. Ao menos ela estava a salvo, pensei. Roger, Jemmy e Amanda também. Repeti seus nomes para mim mesma como um pequeno refrão de consolo, contando-os como moedas. Quatro deles a salvo.
William desfizera o laço de seu pescoço e seus cabelos estavam despenteados, seu casaco manchado de suor e terra. Evidentemente, a perseguição estava esgotando o exército britânico também.
Ele olhou ao redor do campo, avistou-me e virou-se decididamente em minha direção. Puxei meus pés para mim, lutando para me erguer contra a pressão da gravidade como um hipopótamo erguendo-se de um pântano.
Mal havia conseguido me colocar de pé e levantado a mão para alisar os cabelos quando a mão de outra pessoa cutucou minhas costas. Sobressaltei-me violentamente, mas por sorte não gritei.
- Sou eu, tia - o Jovem Ian sussurrou das sombras atrás de mim. - Venha... oh, minha Nossa!
William estava a dez passos de mim e, erguendo a cabeça, enxergou Ian. Ele deu um salto para frente e agarrou-me pelo braço, puxando-me com um safanão do meio das árvores. Dei um pequeno ganido, já que Ian segurava meu outro braço com igual força e me puxava vigorosamente naquela direção.
- Solte-a! - William gritou.
- De jeito nenhum - Ian retrucou furiosamente. - Solte-a você.
O menino da sra. Wellman estava de pé, olhando fixamente, com os olhos esbugalhados e a boca aberta, para dentro da floresta.
- Mamãe, mamãe! índios!
Gritos estridentes ergueram-se das mulheres perto de nós e todos começaram a se afastar atabalhoadamente da floresta, deixando os feridos entregues à própria sorte.
- Ah, moleque! - Ian disse-me, soltando-me contra a vontade. William não me soltou, mas puxou-me com tanta força que eu colidi com ele, quando então ele prontamente passou os braços ao redor de minha cintura e me arrastou um Pouco para dentro do campo.
- Quer fazer o favor de soltar minha tia? - Ian disse enfurecido, emergindo do meio das árvores.
- Você! - William disse. - O que está... bem, não importa. Sua tia, você disse? - Olhou para mim. - Você é? Tia dele? Espere... não, claro que é.
- Sou - confirmei, empurrando seus braços. - Solte-me.
Ele afrouxou um pouco os braços, mas não me soltou.
- Quantos outros há aí? - quis saber, erguendo o queixo na direção da floresta.
- Se houvesse outros, você estaria morto - Ian informou-o. - Sou apenas eu. Entregue-a para mim.
- Não posso fazer isso. - Mas havia um tom de incerteza na voz de William e eu senti sua cabeça se virar, olhando na direção da cabana. Até agora, ninguém saíra, mas eu podia ver algumas das sentinelas próximas à estrada movendo-se de um lado para o outro, se perguntando o que estaria acontecendo. Os outros prisioneiros pararam de correr, mas tremiam com um começo de pânico, os olhos vasculhando freneticamente as sombras entre as árvores.
Bati energicamente no pulso de William com os nós dos dedos e ele me soltou, dando um passo para trás. Minha cabeça girava outra vez - no mínimo pela sensação muito peculiar de estar sendo abraçada por um completo estranho cujo corpo me parecia tão familiar. Ele era mais magro do que Jamie, mas...
- Você me deve uma vida ou não? - Sem esperar por uma resposta, Ian sacudiu o polegar para mim. - Sim, deve. A dela.
- Não se trata da vida dela - William disse, um pouco irritado, com um estranho sinal da cabeça em minha direção, reconhecendo que eu deveria ter um possível interesse na discussão. - Certamente não acha que nós matamos mulheres, não é?
- Não - Ian disse, sem se alterar. - Não, não acho, de modo algum. Eu sei muito bem que o fazem.
- Fazemos? - William replicou. Parecia surpreso, mas um rubor repentino ardeu em suas faces.
- Fazem - assegurei-lhe. - O general Howe enforcou três mulheres diante de seu exército em Nova Jersey, para servir de exemplo.
Ele pareceu inteiramente perplexo com isso.
- Bem... mas, elas eram espiãs!
- Acha que eu não pareço uma espiã? - perguntei. - Agradeço muito a boa opinião que tem a meu respeito, mas não creio que o general Burgoyne iria compartilhar dessa opinião. - Havia, é claro, muitas outras mulheres que haviam morrido nas mãos do exército britânico, ainda que menos oficialmente, mas aquele não parecia o momento de fazer um levantamento dos casos.
- O general Burgoyne é um cavalheiro - William disse rigidamente. - E eu também.
- Ótimo - Ian retrucou sucintamente. - Vire-se de costas por trinta segundos e nós não o importunaremos mais.
Eu não sei se ele teria feito isso ou não, mas exatamente nesse instante gritos de índios rasgaram o ar, vindos da extremidade oposta da estrada. Ouviram-se novos e frenéticos gritos dos prisioneiros e eu mordi a própria língua para não gritar também. Uma labareda ergueu-se do topo da tenda dos oficiais para o alto do céu cor de lavanda. Enquanto eu olhava boquiaberta, mais dois cometas flamejantes atravessaram o céu. Parecia a descida do Espírito Santo, mas antes que eu pudesse mencionar essa interessante observação Ian já agarrara meu braço e me puxara violentamente, quase me arrancando do chão.
Consegui agarrar o cantil ao passar, em uma louca corrida para a floresta. Ian segurou-o para mim, quase me arrastando em sua pressa. Tiros e gritos espocavam às nossas costas e a pele ao longo de minha espinha dorsal se contraiu de medo.
- Por aqui. - Eu o segui alheia a qualquer coisa no chão, tropeçando e torcendo os tornozelos na luz do crepúsculo, conforme nos atirávamos de cabeça no mato, esperando a cada momento levar um tiro nas costas.
Tal é a capacidade do cérebro para se divertir que eu era capaz de imaginar com detalhes vívidos meu ferimento, minha captura, o declínio para a infecção e a septicemia, e por fim uma morte lenta, mas não antes de ser obrigada a presenciar a captura e execução tanto de Jamie - eu havia reconhecido a origem dos gritos indígenas e das flechas de fogo sem dificuldade - quanto de Ian.
Foi somente quando reduzimos a marcha - forçosamente; eu tive uma pontada tão aguda no lado do corpo que mal consegui respirar - que eu pensei em outras coisas. Os doentes e feridos que eu deixara para trás. O jovem consertador de rodas de carroça com a garganta vividamente vermelha. Walter Woodcock, equilibrando-se à beira do abismo.
Você não poderia lhes dar mais do que a mão para segurar, disse a mim mesma furiosamente, mancando enquanto seguia Ian aos tropeções. Era verdade; eu sabia que era verdade. Mas também sabia que de vez em quando a mão de alguém no escuro dava ao doente algo a que se agarrar, contra a força do vento do anjo negro. As vezes, era o suficiente; às vezes, não. Mas a dor daqueles deixados para trás me segurava como a âncora de um navio, e eu não sabia ao certo se o que escorria pelo meu rosto era suor ou lágrimas.
Anoitecera completamente agora e as nuvens em ebulição cobriam a lua, permitindo apenas rápidos vislumbres de sua claridade brilhante. Ian diminuíra ainda mais a marcha, para que eu pudesse acompanhá-lo, e de vez em quando segurava meu braço para ajudar a transpor pedras ou a atravessar arroios.
- Quanto... falta? - perguntei, parando mais uma vez para recobrar o fôlego.
- Não muito - a voz de Jamie respondeu suavemente ao meu lado. - Você está bem, Sassenach?
Meu coração deu um tremendo salto, em seguida aninhou-se outra vez em meu peito quando ele tateou buscando minha mão, depois me apertou contra Si. Tive um momento de alívio tão profundo que achei que meus ossos haviam se dissolvido.
- Sim - eu disse, falando para dentro de seu peito, e com grande esforço levantei a cabeça. - E você?
- Bem, agora - ele disse, passando a mão pela minha cabeça, tocando meu rosto. - Consegue andar mais um pouco?
Empertiguei-me, cambaleando um pouco. Começara a chover; gotas grandes caíam em meus cabelos, frias e surpreendentes em meu couro cabeludo.
- Ian... está com aquele cantil?
Houve um suave estalido e Ian colocou o cantil em minha mão. Muito cuidadosamente, virei-o na boca.
- É conhaque? - Jamie perguntou, parecendo atônito.
- Hum-hum. - Engoli, o mais devagar possível, e passei o cantil para ele. Ainda havia alguns goles.
- Onde conseguiu isso?
- Seu filho me deu - eu disse. - Onde estamos indo?
Houve uma longa pausa na escuridão e, em seguida, o barulho do conhaque sendo bebido.
- Sul - ele disse finalmente e, segurando minha mão, conduziu-me para dentro da floresta, a chuva sussurrando nas folhas à nossa volta.
Encharcados e trêmulos, alcançamos uma unidade de milícia pouco antes do amanhecer e quase levamos um tiro por engano de uma sentinela nervosa. A essa altura, eu não me importava realmente. Estar morta era imensamente preferível a ter que dar mais um passo.
Nossas credenciais tendo sido confirmadas, Jamie desapareceu momentaneamente e voltou com um cobertor e três broas de milho frescas. Consumi minha porção desse manjar dos deuses em exatos quatro segundos, enrolei-me no cobertor e deitei-me embaixo de uma árvore onde o solo era úmido, mas não encharcado, e com uma camada tão espessa de folhas mortas que cedia como uma esponja sob meu peso.
- Volto em um instante, Sassenach - Jamie sussurrou, agachando-se ao meu lado. - Não vá a lugar algum, hein?
- Não se preocupe, estarei aqui. Não vou mover um músculo sequer antes do Natal. - Um leve calor já retornava aos meus músculos trêmulos e o sono puxava-me para baixo com a inexorabilidade da areia movediça.
Ele esboçou uma risada e estendeu a mão, ajeitando o cobertor ao redor dos meus ombros. A luz da aurora mostrava as rugas profundas que a noite esculpira em seu rosto, a terra e a exaustão que manchavam seus ossos fortes. A boca larga, comprimida por tanto tempo, relaxara agora no alívio da segurança momentânea, parecendo estranhamente jovem e vulnerável.
- Ele se parece com você - murmurei. Sua mão parou de se mover, ainda em meu ombro, e ele olhou para baixo, as pestanas longas encobrindo seus olhos.
- Eu sei - ele disse, muito suavemente. - Fale-me dele. Mais tarde, quando houver tempo.
Ouvi seus passos, o farfalhar nas folhas úmidas, e adormeci, uma prece por Walter Woodcock pela metade em minha mente.
JOGO DO DESERTOR
A prostituta grunhiu através do trapo agarrado com os dentes.
- Quase terminado - murmurei e corri as costas da minha mão delicadamente pela sua panturrilha como forma de tranquilizá-la, antes de retornar ao debridamento do feio ferimento em seu pé. O cavalo de um oficial a havia pisoteado quando eles - e muitas outras pessoas e animais - se atropelaram para beber água em um riacho durante a retirada. Eu podia ver com clareza a impressão dos cravos da ferradura do cavalo, negra na carne vermelha e inchada do peito de seu pé. A borda da ferradura, desgastada e afiada como a lâmina de uma navalha, fizera um corte curvo e profundo que atravessava os metatarsos, desaparecendo entre o quarto e o quinto dedos.
Eu temera ter que amputar o dedo mínimo - parecia pendurado apenas por um fio de pele -, mas quando examinei o pé mais detalhadamente descobri que todos os ossos estavam milagrosamente intactos - até onde eu podia dizer, sem acesso a um aparelho de raio X.
O casco do cavalo havia enterrado seu pé na lama da margem do riacho, ela me dissera; isso provavelmente salvara os ossos de serem esmagados. Agora, se eu pudesse conter a infecção e não tivesse que amputar o pé, ela talvez pudesse vir a andar normalmente outra vez. Talvez.
Com certo grau de cautelosa esperança, larguei o bisturi e peguei uma garrafa do que eu esperava que fosse um líquido contendo penicilina que eu trouxera comigo do forte. Eu salvara o tubo da ocular do microscópio do dr. Rawlings do incêndio da casa e o achei muito útil para iniciar fogueiras - mas sem os outros componentes seu uso em determinar o tipo dos micro-organismos era limitado. Eu podia ter certeza de que o que eu cultivara e filtrara era mofo de pão, sem dúvida - mas além disso...
Reprimindo um suspiro, despejei o líquido generosamente sobre a carne viva que eu acabara de expor. Não era alcoólico, mas a carne era viva. A prostituta emitiu um ruído agudo através do pano e respirou pelo nariz como uma máquina a vapor, mas depois que terminei a compressa de lavanda e confrei, e enfaixei seu pé, ela estava calma, ainda que afogueada.
- Pronto - eu disse, com um tapinha em sua perna. - Acho que vai ficar bom. - Comecei a falar automaticamente. - Mantenha o ferimento limpo - mas mordi a língua. Ela não tinha sapatos, nem meias e caminhava diariamente através de uma região deserta, de pedras, terra e riachos, ou vivia em um acampamento imundo, emporcalhado de pilhas de fezes, tanto humanas quanto de animais. As solas de seus pés eram duras como cascos e negras como o diabo. Venha me ver em um ou dois dias - eu disse, ao invés. Se você puder, pensei. - Eu verificarei e trocarei o curativo. - Se eu puder, pensei, com um olhar para a mochila no canto, onde eu mantinha meu parco estoque de medicamentos.
- Muito obrigada - a prostituta disse, sentando-se e colocando o pé cuidadosamente no chão. A julgar pela pele de suas pernas e pés, ela era jovem, embora não se pudesse dizer pelo seu rosto. Sua pele era castigada pelas intempéries, sulcada de rugas de fome e tensão. As maçãs de seu rosto eram salientes de desnutrição e sua boca era murcha, para dentro, de um lado da boca onde faltavam dentes - perdidos para a cárie ou derrubados por um cliente ou outra prostituta. - Vai ficar aqui um pouco? - ela perguntou. - Tenho uma amiga, sabe, pegou coceira.
- Ficarei aqui pelo menos esta noite - assegurei-lhe, reprimindo um gemido ao me levantar. - Mande sua amiga vir. Verei o que posso fazer.
Nosso bando de milicianos se encontrara com outros, formando um grande grupo e, dentro de poucos dias, começamos a cruzar com outros grupos rebeldes. Estávamos encontrando fragmentos dos exércitos do general Schuyler e do general Arnold, esses também se movendo para o sul pelo Vale do Hudson.
Nós ainda nos movíamos o dia inteiro, mas começamos a nos sentir seguros o suficiente para dormir à noite, e com alimentação fornecida - irregularmente, mas ainda assim era comida - pelo exército minhas forças começaram a retornar. A chuva geralmente chegava à noite, mas hoje chovia desde o amanhecer e nos arrastamos pesadamente pela lama durante horas antes de surgir algum abrigo.
As tropas do general Arnold haviam saqueado e incendiado a casa da fazenda. O celeiro estava bastante chamuscado de um dos lados, mas o fogo se apagara antes de consumir o prédio.
Uma rajada de vento atravessou o celeiro, levantando pequenos redemoinhos de palha estragada e poeira, agitando nossas anáguas ao redor das pernas. O celeiro originalmente possuíra assoalho de tábuas; eu podia ver as linhas das pranchas, marcadas na terra. Os exploradores as arrancaram para servir de lenha, mas felizmente não se deram ao trabalho de demolir o prédio.
Alguns dos refugiados do Ticonderoga haviam buscado abrigo ali; outros chegariam antes do anoitecer. Uma mulher com dois filhos pequenos, exaustos, dormiam encolhidos junto à parede ao fundo; seu marido os instalara ali e saíra em busca de comida.
Orai para que a vossa fuga não aconteça no inverno, nem no sábado...
Segui a prostituta até a porta e fiquei parada, vendo-a se afastar. O sol tocava o horizonte agora; talvez restasse uma hora de luz, mas a brisa do pôr do sol já agitava a copa das árvores, as saias da noite farfalhando com a sua chegada. Estremeci automaticamente, apesar de o dia ainda estar bastante ameno. O velho celeiro estava frio e as noites começavam a gelar. Qualquer dia desses, iríamos acordar para um campo coberto de geada.
E então, o quê?, disse a vozinha apreensiva que morava na boca do meu estômago.
- Então, calçarei outro par de meias - murmurei para ela. - Cale-se!
Uma pessoa verdadeiramente cristã sem dúvida teria dado o par de meias extra à prostituta descalça, observou a vozinha hipócrita da minha consciência.
- E você, cale-se também! - eu disse. - Haverá muitas oportunidades de ser cristã mais tarde, se eu tiver a urgente necessidade. Metade das pessoas em fuga precisava de meias, eu diria.
Eu me perguntei o que poderia fazer pela amiga da prostituta, caso ela realmente viesse. "A coceira" poderia ser qualquer coisa, de eczema ou varíola bovina a gonorreia - apesar de que, considerando-se a profissão da mulher, alguma doença venérea era a melhor aposta. Lá em Boston, provavelmente não passaria de uma simples candidíase - estranhamente, eu quase nunca via casos dessa infecção por aqui e especulei distraidamente que isso provavelmente se devia ao fato da falta quase universal de roupas de baixo. Ponto negativo para os avanços da modernidade!
Olhei para minha mochila outra vez, calculando o que ainda me restava e como poderia usá-lo. Uma boa quantidade de ataduras e algodão. Um pote de unguento de genciana, bom para arranhões e pequenos ferimentos, que ocorria em abundância. Um pequeno estoque das ervas mais úteis para tintura e compressa: lavanda, confrei, hortelã, semente de mostarda. Por milagre, eu ainda tinha a caixa de casca de cinchona que adquiri em New Bern - pensei em Tom Christie e me benzi, mas o afastei da mente; não havia nada que eu pudesse fazer por ele e muito a pensar ali mesmo. Dois bisturis que eu pegara no corpo do tenente Stactoe - ele sucumbira a uma febre na estrada - e minha tesoura cirúrgica de prata. As agulhas de acupuntura de ouro de Jamie poderiam ser usadas para tratar outras pessoas, mas eu não fazia a menor ideia de onde aplicá-las para qualquer outra doença que não enjoo do mar.
Eu podia ouvir vozes, grupos de exploradores movendo-se pelas árvores, aqui e ali alguém chamando um nome, procurando um amigo ou um membro da família perdido no caminho. Os refugiados começavam a se instalar para a noite.
Gravetos estalaram perto de mim e um homem saiu de dentro do mato. Eu não o reconheci. Um dos chamados "meias sujas" de uma das milícias, sem dúvida; tinha um mosquete em uma das mãos e um chifre de pólvora na cintura. Quase nada mais. E, sim, estava descalço, apesar de seus pés serem grandes demais para usar minhas meias - um fato que ressaltei para a minha consciência, caso ela se sentisse tentada a me compelir a um comportamento caridoso outra vez.
Ele me viu na entrada do celeiro e levantou uma das mãos.
- Você é a curandeira? - ele perguntou.
- Sim. - Eu desistira de fazer as pessoas me chamarem de doutora.
- Encontrei uma prostituta com um bonito curativo no pé - o homem disse" com um sorriso. - Ela disse que havia uma curandeira aqui no celeiro que tem alguns remédios.
- Sim - eu disse outra vez, lançando-lhe um rápido olhar de cima a baixo. Não vi nenhum ferimento óbvio e ele não estava doente - eu podia saber pela sua cor e pela maneira firme como caminhava. Talvez tivesse uma esposa ou filho, ou um companheiro doente.
- Entregue tudo para mim agora - ele disse, ainda sorrindo, e apontou o cano do mosquete para mim.
- O quê? - exclamei, surpresa.
- Me dê os remédios que tem. - Fez um pequeno movimento de ataque com a arma. - Eu poderia simplesmente atirar em você e pegá-los, mas não quero desperdiçar pólvora.
Permaneci imóvel e fitei-o por um instante.
- Para que você precisa deles? - Eu já havia sido assaltada por remédios uma vez - em uma sala de emergências em Boston. Um jovem viciado, suando e com os olhos vidrados, com uma arma. Eu entreguei as drogas na mesma hora. No momento, eu não estava disposta a isso.
Ele resfolegou e engatilhou a arma. Antes que eu pudesse sequer pensar em sentir medo, ouviu-se um estrépito e o cheiro de fumaça de pólvora. O sujeito pareceu terrivelmente surpreso, o mosquete pendurado em suas mãos. Em seguida, caiu aos meus pés.
- Segure isso, Sassenach. - Jamie enfiou a pistola que acabara de ser disparada em minha mão, abaixou-se e segurou o corpo pelos pés. Arrastou-o para fora do celeiro, para a chuva. Engoli em seco, enfiei a mão em minha sacola e tirei o par de meias extra. Larguei as meias no colo da mulher e fui guardar a pistola e minha mochila junto à parede. Eu estava consciente dos olhos da mãe e das crianças em mim - e os vi se voltarem repentinamente para a porta aberta. Virei-me e vi Jamie entrando, encharcado até os ossos, o rosto abatido e macilento de fadiga.
Ele atravessou o celeiro e sentou-se ao meu lado, colocou a cabeça sobre os joelhos e fechou os olhos.
- Obrigado, senhor - disse a mulher, muito suavemente. - Senhora.
Achei, por um instante, que ele havia adormecido instantaneamente, pois ele não se moveu. Após um instante, entretanto, ele disse, em uma voz igualmente suave:
- De nada, madame.
Fiquei mais do que contente ao encontrar os Hunter quando chegamos à vila seguinte; eles estavam em uma das balsas que foram capturadas no começo, mas haviam conseguido escapar pelo simples expediente de entrar para a floresta depois de anoitecer. Como os soldados que os haviam capturado não tinham se dado ao trabalho de contar os prisioneiros, ninguém notou que eles haviam partido.
De um modo geral, as coisas estavam melhorando um pouco. A comida começava a aparecer com mais abundância e nós estávamos entre membros oficiais do Exército Continental. No entanto, ainda estávamos apenas a alguns quilômetros à frente do exército de Burgoyne e o desgaste da longa retirada estava começando a se fazer sentir. A deserção era frequente - embora ninguém soubesse com que frequência. Organização, disciplina e estrutura militar começaram a se restaurar quando entramos nos domínios do Exército Continental, mas ainda havia homens que podiam simplesmente desaparecer sem serem notados.
Foi Jamie quem pensou no jogo dos desertores. Eles seriam acolhidos nos acampamentos britânicos, alimentados, vestidos e interrogados para dar informações.
- Então, vamos dar isso a eles, hein? - ele disse. - E é justo que façamos o mesmo em troca, não?
Sorrisos começaram a surgir nos semblantes dos oficiais a quem ele estava propondo a ideia. E dentro de poucos dias "desertores" cuidadosamente escolhidos dirigiam-se furtivamente aos acampamentos dos inimigos e eram levados à presença de oficiais britânicos, onde despejavam as histórias que haviam sido cuidadosamente preparadas. Após uma boa refeição, pegavam a primeira oportunidade para "desertar" outra vez, de volta para o lado americano - trazendo com eles informações úteis sobre as forças britânicas que nos perseguiam.
Ian visitava acampamentos indígenas de vez em quando, se parecessem seguros, mas não fazia este mesmo jogo; ele era facilmente lembrado. Achei que Jamie iria gostar de se fazer passar por desertor - isso o atrairia por sua noção de drama, bem como de aventura, que eram extremas. Seu tamanho e aparência formidáveis, entretanto, colocavam a ideia fora de consideração; os desertores tinham que ser homens de aparência comum, improváveis de serem reconhecidos posteriormente.
- Porque mais cedo ou mais tarde os ingleses vão perceber o que está acontecendo. Não são bobos. E não vão ser gentis quando perceberem.
Havíamos encontrado abrigo em outro celeiro para passar a noite - este não havia sido incendiado e ainda estava equipado com alguns montículos de feno mofado, apesar de os animais domésticos já terem desaparecido há muito tempo. Estávamos sozinhos, mas provavelmente não por muito tempo. O interlúdio no jardim do comandante parecia ter ocorrido na vida de outra pessoa, mas eu descansei a cabeça no ombro de Jamie, relaxando contra o calor de seu corpo sólido.
- Você acha que talvez...
Jamie parou abruptamente, a mão apertando minha perna. Um instante depois, ouvi o ruído furtivo que o alertara e minha boca ficou seca. Podia ser qualquer coisa, desde um lobo rondando a uma emboscada indígena, mas o que quer que fosse era de grande vulto e eu tateei - o mais silenciosamente possível pelo bolso onde eu guardara a faca que ele me dera.
Não era um lobo; algo passara diante do vão da porta aberta, uma sombra da altura de um homem, e desaparecera. Jamie apertou minha coxa e se afastou, Movendo-se agachado pelo celeiro vazio silenciosamente. Por um instante, não consegui vê-lo no escuro, mas meus olhos estavam bem adaptados e eu o encontrei alguns segundos depois, uma longa sombra escura pressionada contra a parede, perto da porta.
A sombra do lado de fora voltara; vi a breve silhueta de uma cabeça contra a escuridão mais clara da noite lá fora. Puxei os pés para mim, de prontidão para levantar, a pele pinicando de medo. A porta era a única saída; talvez eu devesse me atirar no chão e rolar para junto da base da parede. Talvez assim não fosse detectada - ou, com sorte, pudesse agarrar os tornozelos de um intruso, ou apunhalar seu pé.
Eu estava prestes a implementar essa estratégia quando um sussurro trêmulo veio da escuridão.
- Amigo... amigo James? - disse a voz, e eu soltei de repente a respiração que estivera prendendo.
- É você, Denzell? - eu disse, tentando fazer minha voz soar normal.
- Claire! - Ele lançou-se repentinamente pela porta, aliviado, prontamente tropeçou em alguma coisa e estatelou-se no chão com uma pancada.
- Bem-vindo de volta, amigo Hunter - Jamie disse, a necessidade nervosa de rir evidente em sua voz. - Se machucou? - A longa sombra destacou-se da parede e abaixou-se para ajudar nosso visitante a se levantar.
- Não. Não, acho que não. Embora na realidade eu mal saiba... James, eu consegui!
Houve um silêncio momentâneo.
- A que distância, a charaid? - Jamie perguntou serenamente. - E estão se movendo?
- Não, graças a Deus. - Denzell sentou-se abruptamente ao meu lado e eu pude sentir que tremia. - Estão esperando que suas carroças os alcancem. Eles não ousam se distanciar muito de sua linha de suprimentos e estão tendo dificuldades terríveis; nós acabamos com as estradas - o orgulho em sua voz era palpável - e a chuva ajudou muito também.
- Sabe quanto tempo ainda?
Vi Denzell balançar a cabeça, ansioso.
- Um dos sargentos disse que ainda deve levar dois, até mesmo três dias. Ele dizia a um de seus soldados para ser cauteloso com a farinha e a cerveja, já que não teriam mais até as carroças de suprimento chegarem.
Jamie expirou e senti um pouco da tensão abandoná-lo. A minha também, e senti uma apaixonada onda de gratidão. Haveria tempo para dormir. Eu apenas começara a relaxar um pouco; agora a tensão fluía para fora de mim como água, a tal ponto que eu mal notei o que mais Denzell tinha a confidenciar. Ouvi a voz de Jamie, murmurando congratulações; ele deu um tapa no ombro de Denzell e deslizou para fora do celeiro, sem dúvida para passar adiante as informações.
Denzell permaneceu sentado, imóvel, respirando ruidosamente. Reuni o que restara de minha concentração e fiz um esforço para ser amável.
- Eles lhe deram de comer, Denzell?
- oh. - A voz de Denzell mudou e ele começou a tatear no bolso. - Tome. Trouxe isso para você. - Enfiou alguma coisa em minhas mãos: um pequeno pão amassado, um pouco queimado nas bordas; pude notar pela crosta dura e pelo cheiro de cinzas. Minha boca começou a salivar incontrolavelmente.
- Oh, não - consegui dizer, tentando devolver-lhe o presente. - Você devia...
- Eles me alimentaram - garantiu-me. - Uma espécie de ensopado. Comi tudo que pude. E tenho outro pão no bolso para minha irmã. Eles me deram a comida - assegurou-me ansiosamente. - Não roubei.
- Obrigada - consegui dizer, e com todo o autocontrole possível cortei o pão ao meio e guardei metade em meu bolso para Jamie. Em seguida, enfiei o restante na boca e arranquei pedaços como um lobo rasgando bocados sangrentos de uma presa.
O estômago de Denny fazia eco ao meu, roncando como uma série de enormes burburinhos.
- Achei que você tinha dito que comeu! - eu disse, acusadoramente.
- E comi. Mas parece que o ensopado não quer parar quieto - ele disse, com uma pequena risada. Inclinou-se para frente, os braços cruzados sobre o estômago. - Eu... hum, você teria um pouco de água de cevada ou hortelã à mão, amiga Claire?
- Tenho - eu disse, imensamente aliviada por ainda ter um pouco de remédios em minha mochila. Não havia muita coisa, mas eu tinha hortelã. Não havia água quente; dei-lhe um punhado para mascar, engolido com água do cantil. Ele bebeu avidamente, arrotou e depois parou, respirando de tal forma que me revelou exatamente o que estava acontecendo. Eu o conduzi apressadamente para o lado e segurei sua cabeça enquanto ele vomitava, perdendo tanto a hortelã quanto o ensopado.
- Comida estragada? - perguntei, tentando sentir sua testa, mas ele se afastou de mim, desmoronando em um monte de palha, a cabeça entre os joelhos.
- Ele disse que me enforcaria - ele sussurrou repentinamente.
- Quem?
- O oficial inglês. Um tal de capitão Bradbury, acho que se chamava. Disse que achava que eu estava brincando de espião e se não confessasse imediatamente ele iria me enforcar.
- Mas não o fez - eu disse suavemente, colocando a mão em seu braço.
Todo o seu corpo tremia e eu vi uma gota de suor pingando da ponta de seu queixo, translúcida na penumbra.
- Eu disse a ele... disse a ele que podia me matar. Se quisesse. E realmente achei que ele fosse me matar. Mas não o fez. - Ele respirava pesadamente e eu Percebi que ele estava chorando, silenciosamente.
Passei os braços ao seu redor, abracei-o, procurando tranquilizá-lo e, após instantes, ele parou. Ficou em silêncio por alguns minutos.
- Eu pensei... que estava preparado para morrer - ele disse suavemente. - Que eu iria feliz para o Senhor, a qualquer momento que Ele me chamasse. Estou envergonhado de descobrir que não era verdade. Tive tanto medo.
Respirei profundamente e sentei-me ao seu lado.
- Sempre me perguntei sobre mártires - eu disse. - Ninguém nunca disse que eles não tiveram medo. E apenas que eles estavam dispostos a ir e fazer o que tinham que fazer apesar do medo. Você foi.
- Eu não tinha intenção de ser um mártir - ele disse após um instante. Ele soou tão dócil que tive vontade de rir.
- Duvido muito que alguém tenha - eu disse. - E acho que uma pessoa que tivesse seria realmente arrogante. Já é tarde, Denzell, e sua irmã deve estar preocupada. E com fome.
Passou-se uma hora ou mais antes de Jamie retornar. Eu estava deitada no feno, coberta com meu xale, mas não estava dormindo. Ele arrastou-se para o meu lado e deitou-se, suspirando, colocando um braço sobre mim.
- Por que ele? - perguntei após um instante, tentando manter a voz calma. Não funcionou; Jamie era extremamente sensível a tonalidades de voz, de qualquer pessoa, mas particularmente da minha. Vi sua cabeça virar-se abruptamente para mim, mas ele parou um instante antes de responder.
- Ele quis ir - disse, saindo-se muito melhor com a aparência de calma do que eu. - E eu achei que ele se sairia bem.
- Sair-se bem? Ele não é nenhum ator! Sabe que ele não pode mentir; ele deve ter gaguejado e tropeçado nas palavras! Estou abismada que tenham acreditado nele... se é que acreditaram - acrescentei.
- Oh, eles acreditaram, sim. Acha que um verdadeiro desertor não ficaria aterrorizado, Sassenach? - ele disse, parecendo achar graça. - Eu queria que ele entrasse lá suando e gaguejando. Se eu tivesse tentado lhe dar falas para decorar, eles o teriam fuzilado na hora.
A ideia fez o bolo de pão subir à minha garganta. Forcei-o para baixo outra vez.
- Sim - eu disse, e respirei fundo algumas vezes, sentindo o suor frio pinicando meu próprio rosto, vendo o pequeno Denny Hunter, suando e gaguejando diante dos olhos frios de um oficial britânico. - Sim - eu disse outra vez.
- Mas... uma outra pessoa não poderia ter feito isso? Não se trata apenas do fato de Denny Hunter ser um amigo, ele é um médico. Ele é necessário.
A cabeça de Jamie virou-se para mim outra vez. O céu lá fora começava a clarear; eu podia ver o contorno de seu rosto.
- Não me ouviu dizer que ele queria fazer isso, Sassenach? - ele perguntou. - Eu não pedi a ele. Na verdade, tentei dissuadi-lo, pela mesma razão que você disse. Mas ele não quis saber disso e só me pediu que tomasse conta de sua irmã, caso ele não voltasse.
Rachel. Meu estômago se apertou de novo à menção de sua irmã.
- O que ele podia estar pensando?
Jamie suspirou profundamente e virou-se de costas.
- Ele é um quaker, Sassenach. Mas ele é um homem. Se ele fosse o tipo de homem que não lutaria por suas crenças, teria permanecido em seu vilarejo, fazendo curativos em cavalos e cuidando da irmã. Mas ele não é. - Sacudiu a cabeça e olhou para mim. - Teria preferido que eu ficasse em casa, Sassenach? Que eu desse as costas à luta?
- Teria - eu disse, a agitação transformando-se em exasperação. - Num piscar de olhos. Eu simplesmente sei que você não faria isso, portanto, de que adianta?
Isso o fez rir.
- Então, você compreende - ele disse, segurando minha mão. - É o mesmo para Denzell Hunter, hein? Se ele está decidido a arriscar a vida, então é meu dever assegurar que ele obtenha o máximo retorno de seu jogo.
- Não se esquecendo de que o retorno da maior parte do jogo é um zero grande e redondo - observei, tentando soltar minha mão. - Nunca ninguém lhe disse que a casa sempre ganha? - Ele não me soltava, mas começara a correr o polegar delicadamente para frente e para trás sobre as pontas dos meus dedos.
- Sim, bem. Você avalia as chances e corta as cartas, Sassenach. E nem tudo é sorte, hein? - A luz aumentara, daquele jeito imperceptível que precede a aurora. Nada tão flagrante quanto um raio de sol, apenas um emergir gradual de objetos conforme as sombras à volta passavam do negro, ao cinza e ao azul.
Seu polegar deslizou pela palma da minha mão e eu dobrei meus dedos involuntariamente sobre ele.
- Por que não há uma palavra que signifique o contrário de "esvanecer"? - perguntei, observando as linhas de seu rosto emergirem das sombras da noite. Tracei a forma de uma fronte áspera com meu polegar e senti o emaranhado de cerdas curtas de sua barba contra a palma de minha mão, mudando conforme eu observava de uma mancha amorfa a anéis distintos, minúsculos e crespos, um aglomerado brilhante de castanho-avermelhado, ouro e prata, vigoroso contra a pele castigada pelas intempéries.
- Acho que não é necessário - ele disse. - Se estiver falando da luz. - Olhou para mim e sorriu quando eu vi seus olhos traçarem os contornos do meu rosto. - Quando a luz está esvanecendo, a noite está chegando, e quando a luz aumenta novamente é a noite que está esvanecendo, certo?
Certo. Deveríamos dormir, mas o exército estaria ativo ao nosso redor em Pouco tempo.
- Por que será que as mulheres não fazem a guerra?
- Não foram feitas para isso, Sassenach. - Sua mão segurou meu rosto, forte e e áspera. - E não seria certo; vocês mulheres levam muita coisa com vocês quando viajam.
- O que quer dizer com isso?
Fez um pequeno movimento com os ombros que significava que estava procurando a palavra ou a ideia certa, um movimento inconsciente, como se seu casaco estivesse apertado demais, apesar de não estar usando um no momento.
- Quando um homem morre, é apenas ele - ele disse. - E um é basicamente igual ao outro. Sim, uma família precisa de um homem, para alimentá-la, protegê-la. Mas qualquer homem decente pode fazer isso. Uma mulher... - Seus lábios moveram-se contra as pontas dos meus dedos, um leve sorriso. - Uma mulher leva a vida com ela quando morre. Uma mulher é... possibilidade infinita.
- Idiota - eu disse, brandamente. - Se acha que um homem é igual a qualquer outro.
Ficamos em silêncio por um instante, observando a luz aumentar.
- Quantas vezes você fez isso, Sassenach? - ele perguntou repentinamente.
- Ficou entre a escuridão e o alvorecer, segurando o medo de um homem nas palmas de suas mãos?
- Muitas - eu disse, mas não era a verdade, e ele sabia disso. Ouvi sua respiração, um humor muito leve, e ele virou a palma de minha mão para cima, o enorme polegar traçando as colinas e vales, juntas e calos, a linha da vida e a linha do coração, e a elevação lisa e macia do monte de Vênus, onde a cicatriz fraca da letra "J" era quase invisível. Eu o segurara em minha mão a maior parte da minha vida. - Parte do trabalho - eu disse, sem nenhuma intenção de petulância, e ele não tomou como tal.
- Acha que não tenho medo? - ele perguntou serenamente. - Quando faço meu trabalho?
- Oh, você tem medo - eu disse. - Mas o faz mesmo assim. Você é um maldito jogador, e o maior jogo de todos é a vida, certo? Talvez a sua, talvez a de outra pessoa.
- Sim, bem - ele disse suavemente. - Você deve saber isso melhor do que ninguém.
- Não estou tão preocupado por mim mesmo - ele disse pensativamente.
- Considerando tudo, quero dizer, eu fiz algumas coisas úteis aqui e ali. Meus filhos estão crescidos; meus netos prosperam. Isso é o mais importante, não é?
- É, sim - eu disse. O sol nascera; ouvi um galo cantar, ao longe.
- Bem. Não posso dizer que tenho tanto medo quanto costumava ter. Não gostaria de morrer, é claro, mas haveria menos pesar nisso. Por outro lado - um canto de sua boca torceu-se para cima enquanto ele olhava para mim -, embora eu possa estar com menos medo por mim mesmo, estou um pouco mais relutante em matar jovens que ainda não viveram suas vidas. - E isso, pensei, era o mais perto que eu conseguiria chegar de um pedido de desculpas por Denny Hunter.
- Vai começar a calcular a idade das pessoas que atiram em você? - perguntei, sentando-me e começando a tirar o feno dos meus cabelos.
- É difícil - ele admitiu.
- E eu sinceramente espero que não se disponha a deixar algum presunçoso matá-lo, meramente porque ele ainda não teve uma vida tão completa quanto a sua.
Ele sentou-se também e olhou diretamente para mim, sério, pontas de feno despontando de seus cabelos e roupas.
- Não - ele disse. - Eu o matarei. Só vou lamentar mais.
DIA DA INDEPENDÊNCIA
Filadélfia 4 de julho de 1777
Grey nunca havia estado na Filadélfia antes. Fora as ruas, execráveis, parecia uma cidade agradável. O verão adornara as árvores da cidade com enormes copas verdejantes e um passeio a pé deixou-o ligeiramente polvilhado de fragmentos de folhas e as solas de suas botas grudentas da resina caída. Talvez fosse a temperatura febril do ar a responsável pelo evidente estado de espírito de Henry, pensou sombriamente.
Não que culpasse seu sobrinho. A sra. Woodcock era graciosa, mas meio roliça, com um lindo rosto e uma personalidade afetuosa. E ela havia cuidado dele, arrancando-o das portas da morte quando o oficial da prisão local o trouxera para ela, preocupado de que um prisioneiro potencialmente lucrativo morresse antes de proporcionar uma boa colheita. Esse tipo de coisa criava um laço, ele sabia - embora ele nunca, graças a Deus, tivesse sentido algum tipo de tendresse por qualquer uma das mulheres que cuidaram dele na doença. Exceto...
- Merda - disse involuntariamente, fazendo um senhor com aparência de sacerdote lançar-lhe um olhar arregalado ao passar.
Ele colocou uma xícara imaginária sobre o pensamento que zumbiu pela sua mente como uma mosca intrometida. Porém, incapaz de ignorá-la, ele levantou a xícara cautelosamente e encontrou Claire Fraser sob ela. Relaxou um Pouco.
Certamente não uma tendresse. Por outro lado, diabos o carregassem se soubesse dizer do que se tratava. Uma espécie de intimidade perturbadora muito peculiar, ao menos - sem dúvida por ela ser a mulher de Jamie Fraser e saber dos sentimentos dele em relação a Jamie. Descartou Claire Fraser e voltou a se preocupar com o próprio sobrinho.
Agradável a sra. Woodcock inegavelmente era e também inegavelmente um pouco interessada demais em Henry para uma mulher casada - embora seu marido fosse um rebelde, Henry lhe contara, e só Deus soubesse quando ou se voltaria. Muito bem, não havia perigo de Henry perder a cabeça e casar-se com ela, ao menos. Podia imaginar o escândalo se Henry levasse para casa a viúva de um carpinteiro, e ainda por cima ela sendo uma feiticeira negra. Riu com a ideia e sentiu-se mais caridoso em relação a Mercy Woodcock. Ela havia afinal salvo a vida de Henry.
Por enquanto. O pensamento indesejado penetrou zumbindo em sua mente antes que ele pudesse virar a xícara sobre ele. Não conseguiu evitá-lo por muito tempo. Ele continuava voltando.
Ele compreendia a relutância de Henry de se submeter a nova cirurgia. E havia o persistente temor de que ele pudesse estar fraco demais para suportá-la. Mas, ao mesmo tempo, ele não podia permanecer no estado atual; iria apenas definhar e morrer, depois que a doença e a dor tivessem exaurido o pouco que restava de sua vitalidade. Nem mesmo os corpulentos atributos da sra. Woodcock o manteriam vivo, quando isso acontecesse.
Não, a cirurgia tinha que ser feita, e logo. Nas conversas de Grey com o dr. Franklin, ele lhe falara de um amigo, dr. Benjamin Rush, que ele alegava ser um médico absolutamente prodigioso. O dr. Franklin insistiu com Grey para que fosse visitá-lo, se um dia estivesse na cidade - na verdade, dera uma carta de apresentação a Grey. Ele estava a caminho de apresentá-la, na esperança de que o dr. Rush fosse um cirurgião experiente ou capaz de indicar-lhe a alguém que fosse. Porque, quer Henry quisesse ou não, tinha que ser feito. Grey não podia levar Henry de volta para casa na Inglaterra no estado em que se encontrava, e ele prometera tanto a Minnie quanto a seu irmão que levaria seu filho mais novo de volta, se ainda estivesse vivo.
Seu pé escorregou em uma pedra do calçamento enlameado, ele soltou uma exclamação e lançou-se para o lado, os braços girando como um cata-vento em busca de equilíbrio. Conseguiu equilibrar-se e ajeitou as roupas novamente com grande dignidade, ignorando as risadinhas de duas jovens vendedoras de leite que observaram a cena.
Droga, ela estava de volta. Claire Fraser. Por quê?... Claro. O éter, como ela chamava aquilo. Ela lhe pedira um garrafão de uma espécie de ácido e lhe dissera que precisava para fazer éter. Não no reino do etéreo, mas uma substância química que deixava as pessoas inconscientes, para que a cirurgia pudesse ser feita... sem dor.
Parou repentinamente no meio da rua. Jamie lhe contara sobre as experiências de sua mulher com a substância, com um relato completo da extraordinária operação que realizara em um garoto, ele tendo ficado completamente inconsciente enquanto ela abria sua barriga, removia o órgão infeccionado e o costurava de novo. Após o que o menino ficou bom, alegre e cheio de energia, aparentemente.
Continuou a andar, mais devagar, pensando sem parar. Ela viria? Era uma jornada penosa de Fraser's Ridge para praticamente qualquer lugar. Mas não uma viagem terrível da montanha para o litoral. Era verão, o tempo estava bom; a viagem poderia ser feita em menos de duas semanas. E se ela viesse a Wilmington, ele poderia providenciar para que fosse levada à Filadélfia em qualquer embarcação naval disponível - ele conhecia muita gente na marinha.
Quanto tempo? Quanto tempo ela levaria - se viesse? Um pensamento mais sombrio: quanto tempo Henry tinha?
Ele foi arrancado dessas reflexões perturbadoras pelo que parecia ser uma pequena baderna descendo a rua em sua direção. Várias pessoas, a maioria bêbadas a julgar pelo comportamento, que envolvia muita gritaria e empurrões e acenos com lenços. Um rapaz tocava um tambor, com muito entusiasmo e nenhuma habilidade, e duas crianças seguravam um estranho estandarte, com listras vermelhas e brancas, mas sem nenhuma inscrição.
Ele encostou numa parede, abrindo caminho para a passagem da turba. No entanto, eles não passaram, mas pararam diante de uma casa do outro lado da rua e ficaram lá, gritando palavras em inglês e alemão. Ele ouviu um grito de "Liberdade!" e alguém fez soar um toque de ataque de cavalaria em uma corneta. Em seguida, ele ouviu os gritos: "Rush! Rush! Rush!"
Santo Deus, devia ser a casa que ele estava procurando, a do dr. Rush. A turba parecia bem-humorada; imaginava que não pretendessem arrastar o médico para fora para uma dose de alcatrão e penas, esta sendo uma forma notável de entretenimento público, ou assim ele fora informado. Cautelosamente, aproximou-se e bateu de leve no ombro de uma mulher.
- Desculpe-me. - Tinha que se inclinar para perto e gritar em seu ouvido para ser escutado; ela girou nos calcanhares e pestanejou, surpresa, depois notou seu colete de borboletas e abriu um largo sorriso. Ele retribuiu o sorriso.
- Estou procurando o dr. Benjamin Rush - ele gritou. - Esta é a casa dele?
- Sim, é. - Um jovem ao lado da mulher ouviu-o e virou-se, as sobrancelhas levantando-se ao ver Grey. - Tem negócios a tratar com o dr. Rush?
- Tenho uma carta de apresentação a ele de um cavalheiro chamado dr. Franklin, um amigo em comum...
O rosto do rapaz abriu-se em um largo sorriso. No entanto, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a porta da casa se abriu e um homem esbelto, muito bem-vestido, de trinta e poucos anos, surgiu na entrada. Ouviu-se um rugido da multidão e o sujeito, que devia ser o próprio dr. Rush, estendeu as mãos para eles, rindo. A algazarra se aquietou por um instante, o sujeito inclinando-se para falar com alguém na multidão. Em seguida, entrou na casa, Saiu outra vez já de casaco, desceu os degraus da varanda debaixo de fragorosos aPlausos e toda a multidão se moveu outra vez, tocando tambor e corneta com renovado fervor.
- Venha! - o jovem gritou em seu ouvido. - Vai haver cerveja de graça!
E foi assim que lorde John Grey se viu no salão de uma próspera taverna, comemorando o primeiro aniversário da publicação da Declaração da Independência. Houve discursos políticos inflamados, ainda que não muito eloquentes, e foi no decurso dessa celebração que Grey ficou sabendo que o dr. Rush não só era um simpatizante dos rebeldes rico e influente, mas ele próprio um importante rebelde; na realidade, como ficou sabendo através de seus novos amigos, tanto Rush quanto o dr. Franklin haviam eles próprios assinado o documento.
A notícia de que Grey era amigo de Franklin se espalhou pelas pessoas ao redor e assim ele foi muito saudado, sendo por fim levado sem realmente perceber através da multidão, até se ver cara a cara com Benjamin Rush.
Não era a primeira vez que Grey se via muito próximo a um criminoso, e ele manteve a compostura. Aquela obviamente não era a hora de falar da situação de seu sobrinho a Rush, e Grey contentou-se em apertar a mão do jovem médico e mencionar sua ligação com Franklin. Rush foi muito cordial e gritou acima do barulho que Grey deveria ir visitá-lo em sua casa quando ambos estivessem livres, talvez de manhã.
Grey expressou sua grata aceitação do convite e retirou-se educadamente através da multidão, esperando que a Coroa não conseguisse enforcar Rush antes de ele ter a chance de examinar Henry.
Um alarido lá fora na rua causou uma pausa nas festividades. Ouviam-se uma grande gritaria e o som de projéteis atingindo a frente do prédio. Um desses - uma pedra grande e enlameada - atingiu e estilhaçou uma vidraça do estabelecimento, permitindo que os berros de "Traidores! Renegados!" fossem ouvidos com mais clareza.
- Cala a boca, puxa-saco! - gritou alguém de dentro da taverna. Bolotas de lama e mais pedras foram arremessadas, algumas através da porta aberta e da janela quebrada, juntamente com gritos patrióticos de "Deus salve o Rei!".
- Castrem o desgraçado legalista! - gritou em resposta o rapaz que Grey conhecera anteriormente, e metade da taverna correu para a rua, alguns parando para quebrar pernas dos bancos, como auxílio para a discussão política que se seguiu.
Grey ficou um pouco preocupado de que Rush fosse abordado pelos legalistas na rua e atacado antes que pudesse ser útil a Henry, mas Rush e alguns outros que ele imaginou serem rebeldes proeminentes também mantiveram-se afastados da rixa e, depois de confabularem rapidamente, decidiram ir embora pela cozinha da taverna.
Grey se viu na companhia de um homem de Norfolk chamado Paine, um miserável malnutrido, malvestido, com um nariz grande e uma personalidade esfuziante, possuidor de opiniões fortes sobre questões de liberdade e democracia, e de um extraordinário domínio de epítetos referentes ao rei. Achando a conversa difícil, já que não podia razoavelmente expressar nenhuma de suas opiniões contrárias sobre esses assuntos, Grey pediu licença com a intenção de seguir Rush e seus amigos pelos fundos.
O motim lá fora, tendo atingido um breve crescendo, prosseguiu para sua conclusão natural com a fuga dos legalistas, e agora as pessoas começavam a fluir para dentro da taverna outra vez, levadas em uma onda de virtuosa indignação e autocongratulação. Entre elas, estava um homem alto, magro, moreno, que desviou o rosto de sua conversa, fitou Grey nos olhos - e estancou.
Grey aproximou-se dele, esperando que os batimentos de seu coração não pudessem ser ouvidos acima do barulho enfraquecido da rua.
- Sr. Beauchamp - ele disse, tomando Perseverance Wainwright pela mão e pelo pulso, no que podia ser considerado um cumprimento cordial, mas que na realidade era uma firme detenção. - Posso dar uma palavra em particular com o senhor?
Não iria levar Percy à casa que ele havia alugado para si próprio e Dottie. Dottie não o reconheceria, pois nem sequer era nascida quando Percy desapareceu da vida de Grey; tratava-se simplesmente de obra do instinto que o impedia de dar uma cobra venenosa para uma criança brincar.
Percy, qualquer que fosse seu motivo, não sugeriu levar Grey para seus alojamentos; provavelmente não queria que Grey soubesse onde ele estava hospedado, caso quisesse se esquivar silenciosamente. Após um instante de indecisão - pois Grey ainda não conhecia a cidade - Grey concordou com a sugestão de Percy de que caminhassem para um parque chamado Southeast Square.
- E uma vala comum - Percy disse, liderando o caminho. - Onde enterram os estranhos à cidade.
- Muito apropriado - Grey disse, mas Percy ou não ouviu ou fingiu não ter ouvido. Era um pouco distante e eles não conversaram muito, as ruas estando lotadas de pessoas. Apesar do clima de festa e das bandeiras listradas penduradas aqui e ali - todas pareciam ter um campo de estrelas, embora ele não tivesse visto o mesmo arranjo duas vezes seguidas, e as listras variavam de tamanho e de cor, algumas tendo listras brancas, vermelhas e azuis, outras apenas brancas e vermelhas -, havia um certo frenesi na alegria geral e uma aguçada sensação de perigo nas ruas. A Filadélfia podia ser a capital dos rebeldes, mas estava longe de ser um baluarte.
O parque público estava mais tranquilo, como seria de se esperar de um cemitério. Na verdade, estava surpreendentemente agradável. Havia apenas alguns marcadores de sepultura em madeira aqui e ali, dando os detalhes conhecidos sobre a pessoa enterrada embaixo; ninguém iria se dar ao trabalho de colocar lápides, embora alguma alma caridosa tivesse erigido uma grande cruz de pedra sobre uma base no meio do campo. Sem dizer nada, ambos se dirigiram a esse monumento, seguindo o curso de um riacho que atravessava o Parque.
Ocorreu a Grey que Percy devia ter sugerido este destino a fim de dar tempo a si mesmo de pensar no caminho. Muito bem - ele também andara pensando. Assim, quando Percy se sentou na base do monumento e virou-se para ele com um ar de expectativa, ele não perdeu tempo fazendo observações sobre o tempo.
- Fale-me a respeito da segunda irmã do barão Amandine - ele disse, em pé diante de Percy.
Percy pestanejou, surpreso, mas depois sorriu.
- Realmente, John, você me surpreende. Claude não lhe falou sobre Amelie, tenho certeza.
Grey não respondeu a isso, mas cruzou as mãos às costas, sob as abas de seu casaco, e aguardou. Percy refletiu por um instante, depois deu de ombros.
- Muito bem. Ela era a irmã mais velha de Claude; minha mulher, Cecile, é a mais nova.
- "Era" - Grey repetiu. - Então, ela está morta.
- Está morta há uns quarenta anos. Por que está interessado nela? - Percy retirou um lenço da manga para enxugar a testa; o dia estava quente e fora uma longa caminhada; a própria camisa de Grey estava úmida.
- Onde ela morreu?
- Em um bordel em Paris. - Isso fez Grey estancar em seus pensamentos. Percy notou e deu um sorriso irônico. - Se quer saber, John, estou procurando o filho dela.
Grey fitou-o por um instante, depois lentamente sentou-se ao seu lado. A pedra cinzenta da base da cruz estava quente sob suas nádegas.
- Muito bem - disse após alguns instantes. - Conte-me, por gentileza.
Percy lançou-lhe um olhar de esguelha, achando graça - muito cauteloso, mas ainda assim achando graça.
- Há coisas que não posso lhe contar, John, como você certamente compreende. A propósito, ouvi dizer que há uma discussão bastante acalorada ocorrendo entre os secretários de Estado britânicos quanto a qual deles deve fazer uma abordagem em relação à minha oferta anterior... e a quem, exatamente, fazê-la. Imagino que isso seja obra sua, não? Obrigado.
- Não mude de assunto. Não estou lhe perguntando sobre sua proposta anterior. - Pelo menos, ainda não. - Estou lhe perguntando sobre Amelie Beauchamp e seu filho. Não vejo como possam estar ligados à outra questão, portanto presumo que tenham alguma importância pessoal para você. Naturalmente, há coisas que você não pode me contar a respeito da questão maior - fez uma pequena reverência -, mas esse mistério sobre a irmã do barão parece um pouco mais pessoal.
- E é. - Percy revirava alguma coisa em sua mente; Grey podia ver isso por trás de seus olhos. Os olhos de Percy estavam enrugados e um pouco empapuçados, mas eram os mesmos de sempre; um castanho cálido e vivaz, da cor do xerez. Seus dedos tamborilaram de leve sobre a pedra, em seguida pararam, e ele virou-se para Grey com um ar decidido.
- Muito bem. Sendo teimoso como é, se eu não lhe contar, você certamente vai ficar me seguindo por toda a Filadélfia, no esforço de descobrir meu propósito em estar aqui.
Isso era exatamente o que Grey pretendia fazer, de qualquer modo, mas fez um ruído indeterminado que podia ser tomado como encorajamento, antes de perguntar:
- E qual é o seu propósito em estar aqui?
- Estou à procura de um tipógrafo chamado Fergus Fraser. - Grey pestanejou; ele não esperava uma resposta concreta.
- Quem é...?
Percy ergueu a mão, dobrando os dedos enquanto falava.
- Ele é, primeiro, o filho de um tal de James Fraser, um famoso ex-jacobita e atualmente um rebelde. Ele é, segundo, um tipógrafo, como disse... e, creio eu, um rebelde como o pai. E, terceiro, tenho fortes suspeitas de que ele seja o filho de Amelie Beauchamp.
Havia libélulas azuis e vermelhas pairando acima do riacho; Grey sentiu como se um desses insetos tivesse repentinamente entrado por suas narinas.
- Está me dizendo que James Fraser teve um filho ilegítimo com uma prostituta francesa? Que por acaso era a filha de uma família nobre e antiga? - Choque não era uma palavra que pudesse descrever adequadamente seus sentimentos, mas ele manteve o tom de voz descontraído e Percy riu.
- Não. O tipógrafo é de fato filho de Fraser, mas é adotado. Ele tirou o garoto de um bordel em Paris há mais de trinta anos. - Um fio de suor escorreu pelo lado do pescoço de Percy e ele o enxugou. O calor do dia havia feito sua colônia desabrochar em sua pele; Grey apreendeu um traço de âmbar cinza e de cravos, especiarias e almíscar juntos.
- Amelie era, como eu disse, a irmã mais velha de Claude. Na adolescência, foi seduzida por um homem muito mais velho, um nobre casado, e ficou grávida. O normal teria sido ela simplesmente ser apressadamente casada com um marido complacente, mas a mulher do nobre morreu repentinamente e Amelie criou uma grande confusão, insistindo em que, já que ele agora era livre, deveria se casar com ela.
- Mas ele não estava disposto a isso?
- Não. Mas o pai de Claude estava. Imagino que ele tenha pensado que tal casamento iria aumentar a fortuna da família; o conde era um homem muito rico e, embora não fosse um político, na verdade tinha uma certa... posição.
O velho barão de Amandine estava inclinado a manter as coisas em surdina no começo, mas quando começou a ver as possibilidades da situação ficou mais valente e fez todo tipo de ameaças, desde uma queixa ao rei, pois o velho Amandine era um homem ativo na corte, ao contrário do filho, até um processo Por danos e uma solicitação de excomunhão à Igreja.
- Ele poderia realmente ter feito isso? - Grey perguntou, fascinado, apesar de suas reservas quanto à veracidade da história. Percy sorriu ligeiramente.
- Ele podia ter se queixado ao rei. De qualquer modo, não teve oportunidade. Amelie desapareceu.
Ajovem sumiu de sua casa no meio de uma noite, levando suas jóias. Pensou-se que talvez ela tivesse pretendido fugir para seu amante, na esperança de que ele cedesse e se casasse com ela, mas o conde afirmou absoluta ignorância do ocorrido e ninguém se apresentou para dizer que a tinha visto, ou deixando Trois Flèches ou entrando na mansão de Paris do conde St. Germain.
- E você acha que de algum modo ela terminou em um bordel de Paris? - Grey disse, incrédulo. - Como? E, se assim for, como descobriu isso?
- Encontrei seus papéis de casamento.
- O quê?
- Uma certidão de casamento de Amelie Elise LeVigne Beauchamp com Robert Françoise Quesnay de St. Germain. Assinado por ambas as partes. E um padre. Estava na biblioteca de Trois Flèches, dentro da Bíblia da família. Receio que Claude e Cecile não sejam muito religiosos - Percy disse, sacudindo a cabeça.
- E você é? - Isso fez Percy rir; ele sabia que Grey conhecia perfeitamente os seus sentimentos em relação à religião.
- Eu estava entediado - ele disse, sem se desculpar.
- A vida em Trois Flèches devia ser realmente maçante, se o obrigou a ler a Bíblia. O ajudante de jardineiro foi embora?
- O... oh, Emile. - Percy riu. - Não, mas teve um terrível acesso de lagripe naquele mês. O pobre homem não conseguia respirar pelo nariz de modo nenhum.
Grey sentiu novamente um traiçoeiro impulso de rir, mas se conteve e Percy continuou sem fazer uma pausa.
- Eu não estava realmente lendo a Bíblia; afinal de contas, eu sei de cor a maior parte de todos os pecados capitais. Eu estava interessado na capa.
- Coberta de pedras preciosas, não é? - Grey perguntou secamente e Percy lançou-lhe um olhar ligeiramente ofendido.
- Nem sempre tem a ver com dinheiro, John, mesmo para aqueles de nós não tão abençoados com tal substância como você.
- Minhas desculpas - Grey disse. - Por que a Bíblia, então?
- Vou lhe informar que eu sou um encadernador de reputação nada insignificante - Percy disse, com certa vaidade. - Exerci esse ofício na Itália como meio de subsistência. Depois que você tão nobremente salvou minha vida. Aliás, obrigado por isso - ele disse, com um olhar direto, cuja repentina seriedade fez Grey abaixar os olhos para evitar os dele.
- Não há de quê - ele disse com voz rouca e, inclinando-se, cuidadosamente induziu uma pequena lagarta verde que lentamente avançava pela ponta muito bem polida de sua bota a subir em seu dedo.
- De qualquer forma - Percy continuou, sem perder o ritmo -, descobri esse curioso documento. Eu já ouvira falar do escândalo da família, é claro, e reconheci os nomes imediatamente.
- Perguntou ao barão atual sobre isso?
- Perguntei. O que achou de Claude, por falar nisso? - Percy sempre fora como mercúrio, Grey pensou, e não perdera nada de sua mutabilidade com a idade.
- Mau jogador de cartas. Mas uma voz maravilhosa. Ele canta?
- Na verdade, sim. E você tem razão com relação às cartas. Ele sabe guardar um segredo, se quiser, mas não consegue mentir. Você ficaria surpreso de ver como a honestidade perfeita é algo tão poderoso, em algumas circunstâncias - Percy acrescentou pensativamente. - Quase me faz pensar que deve haver alguma coisa no Oitavo Mandamento.
Grey murmurou uma citação de Shakespeare sobre "mais honrado na violação", mas depois tossiu e pediu a Percy que continuasse.
- Ele não sabia sobre a certidão de casamento, tenho certeza. Ficou genuinamente perplexo. E após certa hesitação - "sanguinário, valente e resoluto" pode ser o seu lema shakespeariano, John, mas não o dele - ele me deu seu consentimento para investigar o assunto.
Grey ignorou a lisonja implícita - se é que o fosse, e achava que sim - e cuidadosamente depositou a lagarta sobre as folhas de um arbusto comestível.
- Você procurou o padre - ele disse, com segurança.
Percy riu com o que parecia um prazer genuíno e ocorreu a Grey com um pequeno choque que obviamente ele conhecia a mente de Percy, e Percy a dele; conversaram, através dos véus da política e do sigilo, durante muitos anos. Claro, Percy provavelmente sabia com quem estava conversando, mas Grey não.
- Sim, procurei. Ele havia morrido. Assassinado. Morto na rua, à noite, quando corria para dar a extrema-unção a um paroquiano à morte, uma coisa horrível. Uma semana após o desaparecimento de Amelie Beauchamp.
Aquilo começava a despertar o interesse profissional de Grey, embora particularmente continuasse mais do que cauteloso.
- O passo seguinte teria sido o conde, mas, se ele foi capaz de matar um padre para guardar seus segredos, teria sido perigoso abordá-lo diretamente - Grey disse. - Os criados dele, então?
Percy balançou a cabeça, o canto da boca torcendo-se repentinamente, em reconhecimento à acuidade mental de Grey.
- O conde também estava morto... ou desaparecido, ao menos; estranhamente, ele tinha a reputação de ser um bruxo... e morreu uns dez anos depois de Amelie. Mas eu procurei seus antigos criados, sim. Encontrei alguns. Para algumas pessoas, realmente é sempre uma questão de dinheiro e o ajudante do cocheiro era uma delas. Dois dias após o desaparecimento de Amelie, ele entregou um tapete a um bordel perto da Rue Fauborg. Um tapete muito pesado que tinha cheiro de ópio, que ele reconheceu, pois havia em dado momento transportado uma trupe de acrobatas chineses que fora divertir os convidados em uma festa na mansão.
- E assim você foi ao bordel. Onde o dinheiro...
- Dizem que a água é o solvente universal - Percy disse, sacudindo a cabeça -, mas não é. Você pode mergulhar um homem em um barril de água gelada e deixá-lo ali por uma semana e você conseguiria muito menos do que poderia conseguir com uma modesta quantidade de ouro.
Grey silenciosamente notou o adjetivo "gelada" e balançou a cabeça para que Percy continuasse.
- Levou algum tempo, várias visitas, diferentes tentativas; a madame era uma verdadeira profissional, querendo dizer que quem quer que tivesse pago sua predecessora o fizera em uma escala espantosa, e sua recepcionista, apesar de muito velha, tivera a língua cortada quando ainda era jovem; nenhuma ajuda ali. E naturalmente nenhuma das prostitutas estava lá quando o infame tapete foi entregue, tendo sido há tanto tempo.
No entanto, ele havia pacientemente rastreado as famílias das atuais prostitutas - pois algumas ocupações são de família - e conseguira, após meses de trabalho, descobrir uma senhora já idosa que estivera empregada no bordel e que reconheceu o pequeno retrato de Amelie que ele levara consigo de Trois Flèches.
A jovem havia de fato sido levada ao bordel, no meio da gravidez. Isso não importara muito; havia clientes com tais preferências. Alguns meses depois, ela deu à luz um filho. Ela sobrevivera ao parto, mas morreu um ano depois durante uma epidemia de gripe.
- E não dá nem para começar a lhe contar as dificuldades de descobrir alguma coisa sobre uma criança nascida em um bordel de Paris há mais de quarenta anos, meu caro. - Percy suspirou, usando seu lenço outra vez.
- Mas seu nome é Perseverance - Grey observou com extrema aridez, e Percy lançou-lhe um olhar penetrante.
- Sabia - ele disse de forma amena - que você talvez seja a única pessoa no mundo que sabe disso? - E, pela expressão em seus olhos, um já era demais.
- Seu segredo está a salvo comigo - Grey disse. - Esse, pelo menos. E quanto a Denys Randall-Isaacs?
Funcionou. O rosto de Percy tremeluziu como uma poça de mercúrio ao sol. Em menos de um segundo, ele já recuperara aquele perfeito ar impassível - mas era tarde demais.
Grey riu, embora sem humor, e levantou-se.
- Obrigado, Perseverance - ele disse, e afastou-se pelo meio das sepulturas cobertas de capim dos pobres anônimos.
Naquela noite, quando todos na casa dormiam, ele pegou a pena e tinta para escrever a Arthur Norrington, a Harry Quarry e a seu irmão. Quase ao amanhecer, ele começou, pela primeira vez em dois anos, a escrever para Jamie Fraser.
BATALHA DE BENNINGTON
Acampamento do general Burgoyne 11 de setembro de 1777
A fumaça de campos queimados e ainda em chamas pairava sobre o acampamento, e já estava assim há dias. Os americanos ainda se retiravam, destruindo as lavouras em seu rastro.
William estava com Sandy Lindsay, conversando sobre a melhor forma de assar um peru - um dos batedores de Lindsay tendo acabado de lhe trazer um - quando a carta chegou. Provavelmente foi imaginação de William o silêncio mortal que se abateu sobre o acampamento, o tremor da terra e o véu do templo sendo rasgado ao meio. Mesmo assim, logo ficou claro que algo havia acontecido.
Houve uma mudança definitiva no ar, algo errado no ritmo das conversas e do movimento entre os homens que o cercavam. Balcarres sentiu isso também e parou em seu exame da asa aberta do peru, olhando para William com as sobrancelhas erguidas.
- O que foi? - William disse.
- Não sei, mas não é bom. - Balcarres jogou a ave morta nas mãos de seu ordenança e, agarrando o chapéu, partiu em direção à barraca de Burgoyne, William em seus calcanhares.
Encontraram Burgoyne com os lábios cerrados e branco de raiva, seus oficiais superiores reunidos ao seu redor, conversando em voz baixa e chocada.
O capitão sir Francis Clerke, o ajudante de ordens do general, emergiu do grupo de cabeça baixa e rosto sombrio. Balcarres segurou seu cotovelo quando ele passou.
- Francis, o que aconteceu?
O capitão Clerke estava visivelmente agitado. Olhou para trás, para dentro da barraca, em seguida afastou-se para o lado, longe do alcance de ouvidos, levando Balcarres e William consigo.
- Howe - ele disse. - Ele não vem.
- Não vem? - William repetiu debilmente. - Mas... afinal, ele não está saindo de Nova York?
- Ele está saindo - Clerke disse, os lábios tão apertados que era de admirar que conseguisse falar. - Para invadir a Pensilvânia.
- Mas... - Balcarres lançou um olhar perplexo na direção da porta da barraca, depois de novo para Clerke.
- Exatamente.
As verdadeiras proporções do desastre se revelavam para William. O general Howe estava não só menosprezando o general Burgoyne como ignorando seu plano, o que seria bastante ruim do ponto de vista de Burgoyne. Ao preferir marchar sobre a Filadélfia em vez de subir o Hudson para se juntar às tropas de Burgoyne, Howe deixava Burgoyne entregue à própria sorte, sem suprimentos e reforços.
Em outras palavras, estavam por conta própria, separados de suas caravanas de suprimentos, com a desagradável opção de continuar perseguindo os americanos em retirada através de uma região inóspita de onde qualquer possibilidade de sustento havia sido removida, ou dar meia-volta e marchar desonrosamente de volta ao Canadá, através de uma região inóspita de onde qualquer possibilidade de sustento havia sido removida.
Balcarres estivera argumentando nesse sentido com sir Francis, que passou a mão pelo rosto, frustrado, sacudindo a cabeça.
- Eu sei - ele disse. - Se me dão licença, milordes...
- Aonde você vai? - William perguntou, e Clerke olhou para ele.
- Contar à sra. Lind - Clerke disse. - Acho melhor avisá-la. - A sra. Lind era a esposa do oficial encarregado dos suprimentos. Era também amante do general Burgoyne.
Quer a sra. Lind tenha exercido seus inegáveis dotes com eficácia ou se a natural capacidade de adaptação do general tenha prevalecido, o golpe da carta de Howe foi rapidamente absorvido. O que quer que possam dizer sobre ele, William escreveu em sua carta semanal a lorde John, ele sabe o valor de uma decisão firme e da ação rápida. Retomamos nossa perseguição do corpo principal das tropas americanas com esforço redobrado. A maior parte de nossos cavalos foi abandonada, roubada ou comida. As solas do meu único par de botas estão completamente gastas.
Nesse ínterim, recebemos informações de um dos batedores de que a cidade de Bennington, que não fica muito distante, está sendo usada como posto de abastecimento dos americanos. Segundo o relatório, a cidade é pouco vigiada e, assim, o general está enviando o coronel Baum, um dos hessianos, com quinhentos homens, para confiscar suprimentos essenciais para nós. Partimos pela manhã.
Se a sua conversa de bêbado com Balcarres foi em parte responsável, William nunca soube, mas descobrira que agora se referiam a ele como "bom de lidar com os índios". E fosse por sua duvidosa capacidade ou ao fato de que soubesse falar o básico de alemão, ele se viu na manhã de 12 de agosto designado para acompanhar a expedição por suprimentos do coronel Baum, que incluía um bom número da cavalaria desmontada de Brunswick, três peças de artilharia e cem índios.
Segundo relatórios, os americanos estavam recebendo gado, enviado aos poucos da Nova Inglaterra e concentrado em grande quantidade em Bennington, bem como um número considerável de carroças, cheias de milho, farinha e outros gêneros de primeira necessidade.
Surpreendentemente, não estava chovendo quando partiram e só isso incutiu uma sensação de otimismo na expedição. A perspectiva de obter alimentos aumentava significativamente essa sensação. Parecia que já fazia muito tempo que as rações estavam reduzidas, embora na verdade não tivesse se passado mais do que uma semana aproximadamente. Ainda assim, mais de um dia passado avançando a pé sem alimentação adequada parece um longo tempo, como William tinha motivos para saber.
Grande parte dos índios ainda estava montada; eles rodeavam o grupo principal de soldados, cavalgando um pouco à frente para patrulhar a estrada, voltando para dar orientação para atravessarem ou se desviarem de trechos onde a estrada - não mais do que uma trilha na maior parte - se dera por vencida e fora absorvida pela floresta ou inundada por um dos rios aumentados com as chuvas, os quais surgiam inesperadamente do alto das colinas. Bennington situava-se perto de um rio chamado Walloomsac, e conforme caminhavam William começou a discutir de uma maneira digressiva com um dos tenentes hessianos se poderia ser possível carregar as provisões em barcaças até um ponto de encontro rio abaixo.
Essa discussão era inteiramente teórica, já que nenhum dos dois sabia para onde o Walloomsac corria nem até que ponto ele seria navegável, mas isso deu aos dois homens a oportunidade de praticar o idioma um do outro e assim passar o tempo em uma longa e extenuante marcha.
- Meu pai passou muito tempo na Alemanha - William disse ao ober-leftenant Gruenwald, em seu alemão lento e cuidadoso. - Ele gosta muito da comida de Hanover.
Gruenwald, de Hesse-Cassel, permitiu-se uma torcidinha desdenhosa do bigode à menção de Hanover, mas contentou-se com a observação de que até mesmo um habitante de Hanover podia assar uma vaca e talvez cozinhar algumas batatas para acompanhar. Mas sua própria mãe fazia um prato com carne de porco e maçãs, nadando em vinho tinto e temperado com noz-moscada e canela, que fazia sua boca se encher d'água só de lembrar.
A água escorria pelo rosto de Gruenwald, suor fazendo trilhas na poeira da pele e molhando a gola de seu casaco azul-claro. Ele tirou da cabeça o ornato de granadeiro e enxugou a cabeça com um enorme lenço manchado, já saturado de muitos usos anteriores.
- Acho que provavelmente não encontraremos canela hoje - William disse. - Mas talvez um porco.
- Se encontrarmos, vou assá-lo para você - Gruenwald assegurou-lhe. - Quanto a maçãs... - Enfiou a mão dentro da túnica e retirou um punhado de maçãs silvestres, pequenas e vermelhas, que repartiu com William. - Tenho um Punhado delas. Tenho...
Pequenos gritos, agudos e nervosos, de um índio que cavalgava de volta Pela coluna interromperam-no. William ergueu os olhos e viu o índio atirar um braço para trás, gesticulando e gritando "Rio!".
A palavra despertou as colunas desfeitas e William viu a cavalaria - que insistira em usar suas botas altas e suas espadas largas, apesar da falta de cavalos, e sofria em consequência - empertigar-se de expectativa, com ruidosos estrépitos metálicos.
Outro grito veio da linha de frente.
- Bosta de vaca!
Isso causou uma euforia geral e muitas risadas entre os homens, que apertaram o passo com pressa. William viu o coronel Baum, que ainda tinha um cavalo, sair da coluna e aguardar na beira da estrada, inclinando-se para baixo para falar brevemente com os oficiais conforme eles passavam. William viu seu ajudante de ordens inclinar-se bem perto, apontando para uma pequena colina em frente.
- O que você acha - ele disse, virando-se para Gruenwald, e ficou surpreso de ver o ober-leftenant fitando-o perplexo, boquiaberto. Sua mão soltou-se e caiu ao lado do corpo, e o capacete mitrado tombou e rolou na terra. William pestanejou e viu um grosso fio vermelho descer como uma cobra, lentamente, de baixo dos cabelos escuros de Gruenwald.
Gruenwald sentou-se subitamente e caiu para trás na estrada, o rosto pálido e anuviado.
- Droga! - William exclamou, acordando com um salto repentino para o que acabara de acontecer. - Emboscada! - ele berrou a plenos pulmões. - Das ist ein Ubetfal!
Gritos de alarme ergueram-se da coluna e ouviu-se o estrépito de disparos esporádicos vindos da floresta. William segurou Gruenwald por baixo dos braços e arrastou-o apressadamente para o refúgio de um grupo de pinheiros. O ober-leftenant ainda estava vivo, apesar de seu casaco estar molhado de suor e sangue. William certificou-se de que a pistola do alemão estivesse carregada e em sua mão antes de pegar sua própria arma e correr na direção de Baum, que estava em pé nos seus estribos, gritando ordens em alemão alto e estridente.
Ele só compreendia uma ou outra palavra e olhava ansiosamente ao redor, para ver se adivinhava quais eram as ordens do coronel pelas ações dos hessianos. Avistou um pequeno grupo de batedores, correndo pela estrada em sua direção, e também correu ao encontro deles.
- Maldito bando de rebeldes - um dos batedores disse ofegante, apontando para trás. - Estão vindo.
- Onde? A que distância? - Sentiu como se estivesse prestes a arremeter-se em disparada, mas forçou-se a permanecer parado, a falar calmamente, a respirar.
Dois quilômetros, talvez três. Respirou finalmente e conseguiu perguntar quantos eram. Talvez duzentos, talvez mais. Armados com mosquetes, mas sem artilharia.
- Certo. Voltem e fiquem de olho neles. - Virou-se na direção do coronel Baum, sentindo a superfície da estrada estranha sob seus pés, como se ela não estivesse exatamente onde ele esperava que estivesse.
Eles cavaram, com pressa, mas eficientemente, abrigando-se atrás de trincheiras rasas e barricadas improvisadas de árvores caídas. Os canhões de campanha foram arrastados para cima do morro e apontados para cobrir a estrada. Os rebeldes, é claro, ignoraram a estrada e avançaram como um enxame dos dois lados.
Devia haver uns duzentos homens na primeira leva; era impossível contá-los, conforme se arremetiam pela floresta densa. William vislumbrou um movimento e disparou, mas sem grande esperança de atingir alguém. A leva hesitou, mas apenas por um instante.
Então, uma voz forte berrou, em algum lugar atrás do front dos rebeldes:
- Nós os tomamos agora ou Molly Stark será uma viúva esta noite!
- O quê? - William disse, sem acreditar. O que quer que o homem que gritara queria dizer, sua exortação teve um efeito marcante, pois um enorme número de rebeldes saiu fervilhando do meio das árvores, em uma corrida louca na direção dos canhões. Os soldados encarregados dos canhões fugiram prontamente, assim como muitos dos outros.
Os rebeldes estavam dando conta facilmente do resto e William apenas começou sombriamente a fazer o que podia antes que o pegassem, quando dois índios vieram saltando pelo terreno sinuoso, agarraram-no por baixo dos braços e, colocando-o de pé, o empurraram rapidamente para longe dali.
E foi assim que o tenente Ellesmere se viu mais uma vez lançado no papel de Cassandra, relatando o fiasco em Bennington ao general Burgoyne. Homens mortos e feridos, armas perdidas - e nem uma única vaca como recompensa.
E eu ainda não matei um único rebelde, tampouco - pensou, esgotado, dirigindo-se lentamente de volta à sua barraca mais tarde. Achava que devia lamentar isso, mas não tinha certeza se o faria.
O JOGO DO DESERTOR II
Jamie tomava banho no rio, lavando o suor e a sujeira do corpo, quando ouviu imprecações incrivelmente estranhas em francês. As palavras eram francesas, mas os sentimentos expressos definitivamente não eram. Curioso, ele saiu da água, vestiu-se e caminhou um pouco ao longo da margem, onde descobriu um Jovem sacudindo os braços e gesticulando em uma tentativa agitada de se fazer compreender por um grupo de perplexos trabalhadores. Como metade deles era de alemães e o resto de americanos da Virgínia, seus esforços para se comunicar com eles em francês até o momento só conseguiram diverti-los.
Jamie se apresentou e ofereceu seus serviços como intérprete. E foi assim que ele veio a passar uma boa parte de cada dia com um jovem engenheiro polonês cujo sobrenome impronunciável fora rapidamente reduzido a "Kos".
Ele achava Kos inteligente e até um pouco comovente em seu entusiasmo - e ele próprio estava interessado nas fortificações que Kosciuszko (pois ele se orgulhava de ser capaz de pronunciar seu nome adequadamente) estava construindo. Kos, de sua parte, estava tanto agradecido pela assistência linguística quanto interessado nas observações e sugestões ocasionais que Jamie era capaz de fazer, em consequência de suas conversas com Brianna.
Conversar sobre vetores e tensões trazia uma saudade da filha quase insuportável, mas ao mesmo tempo a trazia para mais perto dele, e ele se viu passando cada vez mais tempo com o jovem polonês, aprendendo um pouco de sua língua e permitindo que Kos praticasse o que ele ilusoriamente acreditava ser inglês.
- O que o trouxe aqui? - Jamie perguntou-lhe um dia. Apesar da falta de pagamento, um extraordinário número de oficiais europeus viera se unir, ou tentar se unir, ao Exército Continental, evidentemente achando que, ainda que as perspectivas de pilhagem fossem limitadas, eles poderiam enganar o Congresso, fazendo-o conceder-lhes a patente de general, que eles então poderiam aproveitar em outras ocupações de volta à Europa. Alguns desses duvidosos voluntários eram realmente úteis, mas ouvira muitas lamúrias sobre os que não eram. Pensando em Matthias Fermoy, ele mesmo tinha vontade de lamuriar-se um pouco.
Mas Kos não era um desses.
- Bem, primeiro, dinheiro - ele disse com franqueza, quando perguntado como ele viera parar na América. - Meu irmão mansão em Polônia tem, mas família não ter nenhum dinheiro, nada para mim. Nenhuma garota olhar para mim sem dinheiro. - Deu de ombros. - Nenhum lugar no exército polonês, mas eu sei construir coisas, vir onde tem coisas para construir. - Abriu um largo sorriso. - Talvez garotas, também. Garotas com boa família, bom dinheiro.
- Se veio por dinheiro e garotas, rapaz, você se alistou no exército errado - Jamie disse secamente, mas Kosciuszko riu.
- Eu dizer primeiro dinheiro - ele corrigiu. - Eu vir para Filadélfia, lá eu li La Declaration. - Pronunciou-a em francês e tirou o chapéu em reverência diante do nome, apertando o chapéu manchado de suor contra o peito. - Esse documento, o texto... ficar extasiado.
Tão extasiado ficou com os sentimentos expressos naquele nobre documento que imediatamente procurou seu autor. Apesar de provavelmente surpreso pelo súbito aparecimento de um apaixonado jovem polonês em seu meio, Thomas Jefferson deu-lhe as boas-vindas e os dois homens passaram boa parte de um dia profundamente envolvidos na discussão de filosofia (em francês), de onde emergiram como grandes amigos.
- Um grande homem - Kos assegurou a Jamie solenemente, fazendo o sinal da cruz antes de colocar o chapéu novamente. - Que Deus o mantenha são e salvo.
- "Dieu accorde-lui la sagesse" - Jamie retrucou. Que Deus lhe dê sabedoria. Ele achava que Jefferson certamente estaria seguro, já que não era um soldado. O que o fez recordar desconfortavelmente de Benedict Arnold, mas este não era um problema que ele pudesse - ou fosse - resolver.
Kos havia afastado um cacho de cabelos escuros da boca e sacudido a cabeça.
- Talvez uma esposa, um dia, se Deus quiser. Isso... O que fazemos aqui... mais importante do que esposa.
Retornaram ao trabalho, mas Jamie se viu repassando a conversa com interesse. A ideia de que era melhor passar a vida atrás de um propósito nobre do que meramente buscando segurança: ele concordava inteiramente com ela. Mas sem dúvida tal pureza de propósito era o reino de homens sem família? Havia um paradoxo ali: um homem que buscava a própria segurança era um covarde; um homem que arriscava a segurança de sua família era um medroso, senão pior.
Isso levou a mais divagações e a paradoxos mais interessantes: as mulheres atrasam a evolução de coisas como liberdade e outros ideais sociais, por medo em relação a elas próprias e a seus filhos? Ou elas na realidade inspiram tais coisas - e os riscos exigidos para alcançá-las - ao prover aquilo pelo qual vale a pena lutar? Não apenas lutar para defender, tampouco, mas para impulsionar, impelir, pois um homem quer mais para seus filhos do que ele teve.
Teria que perguntar a Claire o que ela achava disso, embora ele tenha sorrido ao pensar em algumas das coisas que ela poderia dizer, particularmente a parte sobre se a mulher atrasava a evolução social por natureza. Ela havia lhe dito algo de sua própria experiência na Grande Guerra - não conseguia pensar nesse conflito mundial por nenhum outro nome, embora ela tenha lhe dito que houve uma outra, antes, com esse nome. Ela dizia coisas depreciativas sobre heróis de vez em quando, mas somente quando ele se feria; ela sabia muito bem para que serviam os homens.
Ele estaria ali, de fato, se não fosse por ela? Faria isso de qualquer modo, somente pelos ideais da Revolução Americana, se não tivesse certeza da vitória? Tinha que admitir que somente um idealista, um louco, ou um homem realmente desesperado estaria ali agora. Qualquer pessoa sã que soubesse qualquer coisa sobre exércitos teria sacudido a cabeça e virado as costas, estarrecido. Ele Próprio frequentemente se sentia estarrecido.
Mas, na realidade, ele faria isso - se estivesse sozinho. A vida de um homem tinha que ter mais propósito do que apenas alimentar-se a cada dia. E este era um grandioso propósito - maior, talvez, do que qualquer pessoa que lutasse por honra poderia saber. E se perdesse a vida nesta ação... não iria ficar satisfeito, mas teria consolo na morte, sabendo que dera a sua contribuição. Afinal, ele não iria deixar sua mulher desamparada; ao contrário da maioria das mulheres, Claire teria um lugar para onde ir caso alguma coisa lhe acontecesse.
Estava no rio novamente, boiando na água e entretendo tais pensamentos, quando ouviu um grito sufocado. Era um grito feminino e ele colocou os pés para baixo imediatamente e levantou-se, os cabelos molhados escorrendo sobre seu rosto. Afastou-os para trás e viu Rachel Hunter parada na margem, as duas mãos cobrindo os olhos e cada linha de seu corpo tensa em uma demonstração eloquente de aflição.
- Estava me procurando, Rachel? - ele perguntou, tentando enxugar os olhos no esforço de localizar em que lugar da margem afinal deixara suas roupas. Ela soltou outro grito baixo e virou o rosto na direção dele, as mãos ainda sobre os olhos.
- Amigo James! Sua mulher disse que eu o acharia aqui. Desculpe-me... por favor! Saia daí imediatamente! - Não conteve a angústia e deixou as mãos caírem, apesar de manter os olhos fechados com força enquanto estendia as mãos para ele, suplicante.
- O que...
- Denny! Os ingleses o pegaram!
Um jato frio projetou-se pelas suas veias, muito mais frio do que o vento em sua pele molhada e exposta.
- Onde? Como? Pode olhar agora - ele acrescentou, abotoando as calças apressadamente.
- Ele foi com outro homem, fingindo se passar por desertores. - Ele já estava no alto da margem, ao lado de Rachel, a camisa sobre o braço, e viu que ela carregava os óculos de seu irmão no bolso do avental; sua mão invariavelmente o buscava, agarrando-o. - Eu disse a ele para não ir!
- Eu também disse - Jamie falou, taciturno. - Tem certeza, menina?
Ela balançou a cabeça, branca como um lençol e com os olhos arregalados, mas não - ainda não - chorando.
- O outro homem, ele voltou agora mesmo e veio correndo me procurar. Ele... foi azar, ele disse; foram levados diante de um major, e era o mesmo homem que ameaçara enforcar Denny da última vez! O outro homem fugiu correndo e conseguiu escapar, mas eles pegaram Denny, e desta vez, desta vez... - Ele viu que ela arquejava e mal conseguia falar, de terror. Ele colocou a mão em seu braço.
- Encontre o outro homem e mande-o à minha barraca, para que ele me diga exatamente onde seu irmão está. Vou buscar Ian e nós o traremos de volta. - Apertou seu braço delicadamente para fazê-la olhar para ele, o que ela fez, mas tão transtornada que ele achou que ela mal o via. - Não se preocupe. Nós o traremos de volta para você - ele repetiu delicadamente. - Juro, por Cristo e pela Virgem Maria.
- Não deve jurar... oh, para o diabo com isso! - ela disse, depois tampou a boca com a mão. Fechou os olhos, engoliu em seco e retirou-a outra vez. - Obrigada - ela disse.
- Não há de quê - ele disse, olhando para o sol poente. Os ingleses preferiam enforcar pessoas no pôr do sol ou na aurora? - Nós o traremos de volta - ele disse outra vez, com firmeza. Vivo ou morto.
O comandante do acampamento havia construído um cadafalso no centro do pátio. Era uma grosseira construção de troncos não descascados e toras de madeira bruta, e pelos buracos e entalhes ao redor dos pregos já fora desmontada e remontada várias vezes. Mas parecia eficaz e o laço de corda pendente deu a Jamie a sensação de gelar seu sangue.
- Nós já fizemos esse jogo do desertor vezes demais - Jamie sussurrou a seu sobrinho.
- Acha que já usaram essa forca? - Ian murmurou, espreitando a construção sinistra através da cortina de folhagem de pequenos carvalhos.
- Não iriam se dar a tanto trabalho só para assustar alguém.
Mas aquilo o assustava, e muito. Ele não mostrou a Ian o local perto da base da estaca principal, onde alguém - ou os pés descontrolados de alguém - havia arrancado lascas da casca da madeira. O cadafalso improvisado não era alto o suficiente para que a queda quebrasse o pescoço do enforcado; um homem pendurado ali iria ser estrangulado lentamente.
Ele tocou o próprio pescoço em um reflexo de aversão, a garganta desfigurada de Roger Mac e sua feia cicatriz em carne viva bem clara em sua mente. Mais clara ainda era a lembrança da dor que se apoderara dele, indo retirar Roger Mac da árvore em que o haviam enforcado, sabendo que ele estava morto e o mundo para sempre mudado. Realmente mudara, embora ele não tivesse morrido.
Bem, não iria fazer diferença para Rachel Hunter. Não era tarde demais, isso é que era importante. Disse isso a Ian, que não respondeu, mas lançou-lhe um rápido olhar de surpresa.
Como você sabe? - dizia o olhar, claro como palavras. Ele ergueu um dos ombros e inclinou a cabeça para um ponto um pouco mais distante na descida da colina, onde uma saliência da rocha coberta de musgo e de uva-ursina lhes daria proteção. Moveram-se silenciosamente, mantendo-se abaixados, os movimentos no mesmo ritmo lento com que a floresta se movia. Era hora do crepúsculo e o mundo estava repleto de sombras; não era difícil se passarem Por mais duas.
Ele sabia que ainda não haviam enforcado Denny Hunter porque ele já vira homens serem enforcados. A execução deixava uma mancha no ar e marcava as almas dos que a viam.
O acampamento estava silencioso. Não literalmente - os soldados faziam uma algazarra considerável, o que, aliás, era bom -, mas em termos de seu espírito. Não havia nem uma sensação de aterrorizada opressão, nem a empolgação doentia que vinha da mesma fonte; essas coisas podiam ser sentidas. Portanto, ou Denny Hunter estava ali, vivo, ou fora mandado para outro lugar. Se estivesse ali, onde estaria?
De alguma forma, confinado, e sob guarda. Este não era um acampamento permanente; não havia nenhuma paliçada de proteção. Mas era um acampamento grande e levaram algum tempo para rodeá-lo, verificando se Hunter poderia estar ao ar livre, amarrado a uma árvore ou acorrentado a uma carroça. Mas ele não estava em nenhum lugar à vista. Sobravam as barracas.
Havia quatro grandes e uma delas evidentemente abrigava o oficial encarregado das provisões; ficava afastada das outras e tinha um pequeno agrupamento de carroças ao lado. Também tinha um fluxo constante de homens entrando e saindo, emergindo com sacas de farinha ou ervilhas secas. Nenhuma carne, embora ele pudesse sentir o cheiro de coelhos e esquilos assados em uma das fogueiras do acampamento. Os desertores alemães tinham razão, então; o exército estava vivendo da terra, da melhor maneira possível.
- A barraca do comandante? - Ian sussurrou baixinho. Era bem visível, com seus estandartes e o aglomerado de homens que pairavam por ali, perto da entrada.
- Espero que não. - Certamente, teriam levado Denny à presença do comandante para ser interrogado. E, se ele ainda estivesse em dúvida quanto à bonnafides de Hunter, poderia ter mantido o sujeito por perto para novos interrogatórios.
Mas, se já tivesse tomado uma decisão quanto ao assunto - e Rachel estava convencida disso -, não ficaria com ele. Teria sido enviado a outro lugar, sob guarda, para aguardar o acerto de contas. Sob guarda e fora do alcance da vista, embora Jamie duvidasse de que o comandante britânico temesse uma tentativa de resgate.
- Uni-duni-tê - murmurou baixinho, balançando o dedo para frente e para trás entre as duas barracas restantes. Um vigia com um mosquete montava guarda mais ou menos entre as duas; não dava para saber qual das duas ele estava guardando. - Aquela. - Ergueu o queixo indicando a da direita, mas enquanto o fazia sentiu Ian enrijecer-se ao seu lado.
- Não - Ian disse baixinho, o olhar fixo. - A outra.
Havia algo estranho na voz de Ian e Jamie olhou para ele, surpreso, depois para a tenda.
No começo, seu único pensamento era uma sensação fugaz de confusão. Então, o mundo mudou.
Era hora do anoitecer, mas agora estavam a não mais de cinquenta metros de distância; não havia como errar. Ele não via o garoto desde que tinha doze anos, mas memorizara cada instante que haviam passado na companhia um do outro: sua postura, os movimentos rápidos, graciosos - isso é da mãe dele, pensou, confuso com o choque, vendo o oficial jovem e alto fazer um gesto da mão que era idêntico ao de Geneva Dunsany -, a forma de suas costas, cabeça e orelhas, apesar dos ombros magros terem se encorpado nos ombros de um homem. Meus, pensou, com uma onda de orgulho que o chocou quase tanto quanto o repentino surgimento de William. São meus.
Apesar de perturbadores, esses pensamentos levaram menos de meio segundo para atravessar sua cabeça. Inspirou fundo, bem devagar, e expirou. Ian teria se lembrado de William de seu encontro sete anos antes? Ou a semelhança era instantaneamente visível a um olhar casual?
Não importava agora. O acampamento começava a se preparar para o jantar - dentro de alguns instantes, todos estariam absortos na refeição. Era melhor agir então, mesmo sem a proteção da noite.
- Tem que ser eu, hein? - Ian agarrou seu pulso, exigindo sua atenção.
- Quer fazer a distração antes ou depois?
- Depois. - Estivera pensando, no fundo da mente, durante todo o tempo em que rastejavam na direção do acampamento e agora a decisão estava pronta, como se outra pessoa a tivesse tomado. - Melhor se pudermos tirá-lo de lá silenciosamente. Tente, e se as coisas derem errado grite.
Ian assentiu e, sem mais conversa, deixou-se cair de barriga no chão e começou a rastejar furtivamente pelo mato. O fim de tarde estava fresco e agradável após o calor do dia, mas as mãos de Jamie estavam frias e ele envolveu o bojo do pequeno fogareiro de barro. Ele o trouxera de seu próprio acampamento, enchendo-o de pedacinhos de gravetos secos ao longo do caminho. Estava sibilando baixinho consigo mesmo enquanto se alimentava de um pedaço de nogueira seca, tanto a visão quanto o cheiro do fogo seguramente ocultos na névoa da fumaça da fogueira do acampamento, que se embrenhava entre as árvores, afastando os mosquitinhos e os mosquitos maiores e mais sanguinários, graças a Deus e à Virgem Maria.
Admirando-se com sua própria inquietação - não era próprio dele -, tocou o sporran, verificando mais uma vez se a rolha não tinha se soltado do frasco de terebintina, embora soubesse muito bem que não; ele sentiria o cheiro.
As flechas em seu estojo chacoalharam-se quando ele se mexeu, as penas das flechas roçando umas nas outras. A barraca do comandante estava facilmente ao alcance de uma flecha, em questão de segundos ele poderia incendiar a lona, se Ian berrasse. Se não...
Começou a se mover outra vez, os olhos dardejando pelo terreno, buscando uma área apropriada. Capim seco havia em abundância, mas arderia rápido demais se houvesse apenas isso. Ele queria uma chama rápida, mas forte.
Os soldados já teriam limpado a floresta próxima à cata de lenha, mas ele avistou um tronco caído de abeto, pesado demais para ser carregado. Os exploradores haviam arrancado os galhos mais baixos, mas ainda restavam muitos, cobertos de agulhas secas que o vento não levara ainda. Moveu-se um pouco Para trás, a uma boa distância fora de vista para poder movimentar-se rapidamente outra vez, apanhando braçadas de capim seco, casca arrancada apressadamente de um tronco caído, qualquer coisa que pegasse fogo rapidamente.
Flechas flamejantes na barraca do comandante iriam atrair atenção imediata, sem dúvida, mas também causariam um alerta geral; os soldados se lançariam para fora do acampamento como marimbondos, em busca dos atacantes. Um fogo no mato, não. Isso era comum e, enquanto sem dúvida criava uma distração capaz de desviar a atenção do inimigo, ninguém iria investigar mais a fundo, quando vissem que não se tratava de nenhum ataque.
Em poucos minutos ele já tinha sua distração preparada. Estivera tão ocupado que nem pensara em olhar novamente para seu filho.
- Maldito seja por ser um mentiroso, Jamie Fraser - disse baixinho, e olhou.
William desaparecera.
Os soldados estavam em seu jantar; uma conversação alegre e os sons da refeição encobriam quaisquer ruídos menores que Ian fizesse enquanto dava a volta silenciosamente pelo lado da barraca da esquerda. Se alguém o visse, ele falaria em mohawk, alegaria ser um batedor do acampamento de Burgoyne, trazendo informações. Quando o tivessem levado à presença do comandante, ele já teria pensado em alguma boa e pitoresca informação ou ele gritaria e procuraria fugir enquanto estivessem distraídos por flechas flamejantes.
Mas isso não ajudaria Denny Hunter, e ele procurava ser cauteloso. Havia sentinelas a postos, mas ele e seu tio Jamie haviam observado bastante tempo para saber qual era o padrão de seu posicionamento e identificar o ponto morto onde a visão de uma sentinela era obstruída pelas árvores. Ele sabia que não podia ser visto atrás de uma barraca, a não ser por alguém que estivesse se dirigindo à floresta para urinar e se deparasse com ele.
Havia uma fenda na base da barraca e uma vela acesa no interior; um ponto na lona brilhava turvamente à luz do anoitecer. Ele observou a fenda e não viu nenhuma sombra se movendo. Tudo bem, então.
Estendeu-se no chão e enfiou a mão cautelosamente, tateando ao longo do chão de terra, esperando que ninguém lá dentro pisasse em sua mão. Se pudesse achar um catre, poderia se esgueirar para dentro e esconder-se sob ele. Se - algo tocou sua mão e ele mordeu a língua, com força.
- E um amigo? - sussurrou a voz de Denny. Ian pôde ver a sombra do quaker na lona, uma mancha agachada, e a mão de Denny segurou a dele com força.
- Sim, sou eu - ele sussurrou em resposta. - Fique quieto. Recue.
Denny moveu-se e Ian ouviu o barulho de metal. Droga, os desgraçados o mantinham acorrentado. Comprimiu os lábios e deslizou por baixo da borda da barraca.
Denny o saudou silenciosamente, o rosto iluminado de esperança e ansiedade. O pequeno quaker ergueu as mãos, indicou os pés com um movimento da cabeça. Completamente acorrentado. Santo Deus, eles realmente pretendiam enforcá-lo.
Ian inclinou-se mais para perto para sussurrar no ouvido de Denny.
- Vou sair antes de você. Deite-se lá, da melhor forma que puder, o mais perto que puder. - Indicou com o queixo os fundos da barraca. - Não se mexa; eu o puxarei para fora. - Em seguida, colocaria Denny nas costas como um pequeno cervo morto e partiria para a floresta, piando como uma coruja, para avisar seu tio que era hora de atear fogo ao mato.
Não era possível remover um homem preso com correntes em absoluto silêncio, mas com sorte o barulho de colheres nos utensílios da comida de rancho e a conversa dos soldados encobririam qualquer estalido metálico isolado. Puxou a lona para fora o máximo possível, enfiou as mãos por baixo e segurou Denny com firmeza pelos ombros. O danado era mais pesado do que parecia, mas Ian conseguiu tirar a parte de cima do corpo de Denny para fora da barraca sem muito problema. Suando, arrastou-se para o lado e enfiou a mão para dentro da barraca para segurar os tornozelos de Denny, enrolando a corrente ao redor do próprio pulso para levantar a parte inferior do corpo.
Não houve nenhum ruído, mas a cabeça de Ian ergueu-se com um supetão antes mesmo que sua mente lhe dissesse que o ar perto dele se movera de uma forma que significava que havia alguém de pé ali.
- Quieto! - ele disse num reflexo, sem saber se falava com Denny ou com o soldado alto que saíra da floresta atrás dele.
- Que diabos - o soldado começou a dizer, alarmado. Não terminou a pergunta, mas deu três passos rápidos e agarrou Ian pelo pulso.
- Quem é você e o que está... Santo Deus, de onde você veio? - William olhava fixamente para o rosto de Ian e Ian agradeceu rapidamente a Deus pelo fato de seu outro pulso estar imobilizado pela corrente de Denny, pois de outra forma William já estaria morto. E ele não queria ter que contar isso ao seu tio Jamie.
- Ele veio me ajudar a fugir, amigo William - Denny Hunter disse docilmente das sombras no chão atrás de Ian. - Eu agradeceria muito se você não tentasse impedi-lo, embora eu compreenda se o dever obrigá-lo a isso.
A cabeça de William levantou-se abruptamente, ele olhou desenfreadamente ao redor, depois para baixo. Tivessem as circunstâncias sido menos assustadoras, Ian teria rido das expressões - pois havia um grande número delas, passadas em uma fração de segundo - em seu rosto. William cerrou os olhos por um instante, depois os abriu outra vez.
- Não me conte - ele disse sucintamente. - Eu não quero saber. - Agachou-se ao lado de Ian e, juntos, tiraram Denny num piscar de olhos. Ian respirou fundo, colocou as mãos na boca e gritou como uma coruja, em seguida fez uma Pausa e depois gritou outra vez. William fitou-o com um ar ao mesmo tempo intrigado e furioso. Em seguida, Ian enfiou a ponta do ombro no abdômen de Denny e com a ajuda de William, ajeitou o médico sobre os ombros com não mais do que um pequeno grunhido e um leve ruído de correntes.
A mão de William fechou-se no braço de Ian. Sua cabeça, um oval escuro - surgiam os últimos traços de luz, fez um movimento brusco, indicando a floresta.
- Para a esquerda - sussurrou. - Há trincheiras de latrina à direita. Dois guardas avançados, a uns cem metros. - Apertou com força e soltou o braço de Ian.
- Que a luz de Deus o ilumine, amigo William. - O sussurro de Denny chegou sem fôlego aos ouvidos de Ian, mas Ian já estava a caminho e não sabia se William ouvira. Imaginou que não fazia diferença.
Alguns instantes depois, ouviu os primeiros gritos de "Fogo!" atrás dele, no acampamento.
NÃO HÁ AMIGO MELHOR DO QUE O RIFLE
15 de setembro de 1777
No começo de setembro, já tínhamos alcançado o exército principal, acampado junto ao Hudson, perto da cidade de Saratoga. O general Horatio Gates estava no comando e recebeu os refugiados maltrapilhos e milícias aleatórias com prazer. Ao menos desta vez, o exército estava razoavelmente bem abastecido e fomos equipados com roupas, comida decente - e a notável extravagância de uma pequena barraca, em honra ao status de Jamie de coronel de milícia, apesar do fato de não ter nenhum homem.
Conhecendo Jamie como conhecia, estava razoavelmente certa de que esta seria uma situação temporária. De minha parte, estava encantada em ter um verdadeiro catre para dormir, uma pequena mesa onde fazer as refeições - e comida para colocar sobre ela regularmente.
- Trouxe-lhe um presente, Sassenach. - Jamie arriou a sacola sobre a mesa com uma pancada agradavelmente suculenta e um bafo de sangue fresco. Minha boca encheu-se de água.
- O que é? Aves? - Não eram patos ou gansos; aquilo tinha um cheiro distinto, um odor penetrante de óleos corporais, penas e plantas aquáticas em decomposição. Talvez perdizes, digamos, ou tetrazes... Engoli com força ao imaginar uma torta de pombo.
- Não, um livro. - Retirou um pequeno pacote embrulhado em um oleado esfarrapado da sacola volumosa e orgulhosamente o depositou em minhas mãos.
- Um livro? - exclamei, sem entender.
Ele balançou a cabeça de forma encorajadora.
- Sim. Palavras impressas em papel, lembra-se? Sei que faz muito tempo.
Lancei-lhe um olhar significativo e, tentando ignorar o ronco no meu estômago, abri o pacote. Era um exemplar de bolso, muito desgastado, de A vida e as opiniões de Tristam Shandy, Cavalheiro - Vol. I, e, apesar do meu desgosto em ser presenteada com literatura em vez de comida, fiquei interessada. De fato, fazia muito tempo desde que eu tivera um bom livro nas mãos, e essa era uma história da qual eu já ouvira falar, mas que nunca lera.
- O dono devia gostar muito deste livro - eu disse, revirando o volume delicadamente em minha mão. A lombada estava quase completamente gasta e as bordas da capa de couro brilhantes de uso. Um pensamento desagradável me ocorreu. - Jamie... você não... tirou isto de, hã, um corpo, tirou? - Ficar com armas, equipamentos e roupas úteis de inimigos mortos não era considerado saque; era uma necessidade desagradável. Mesmo assim...
Mas ele sacudiu a cabeça, continuando a remexer na sacola.
- Não, encontrei isso na margem de um arroio. Abandonado na fuga, imagino.
- Bem, isso é melhor, embora eu tenha certeza de que o homem que o deixou cair lamentaria a perda de seu valioso companheiro. - Abri o livro aleatoriamente e apertei os olhos para a letra miúda.
- Sassenach.
- Hum? - Ergui os olhos, arrancados do texto, e deparei-me com Jamie olhando-me com uma mistura de compaixão e humor.
- Você precisa de óculos, não é? - ele disse. - Eu não tinha percebido.
- Bobagem! - eu disse, embora meu coração tenha dado um pequeno salto. - Posso enxergar perfeitamente bem.
- Oh, é mesmo? - Ele veio ficar ao meu lado e pegou o livro da minha mão. Abrindo-o no meio, segurou-o diante de mim. - Leia.
Inclinei-me para trás e ele avançou à minha frente.
- Pare com isso! - eu disse. - Como espera que eu leia alguma coisa tão de perto?
- Fique parada, então - ele disse, e afastou o livro do meu rosto. - Já pode ver as letras com clareza?
- Não - eu disse, irritada. - Mais para trás. Mais para trás. Não, mais, mais Para trás!
E finalmente fui obrigada a admitir que eu não conseguia colocar as letras em foco a uma distância mais perto do que aproximadamente meio metro.
- Bem, as letras são muito pequenas! - eu disse, aborrecida e frustrada. Eu já havia, é claro, percebido que minha visão já não era tão aguçada quanto costumava ser, mas ser tão brutalmente confrontada com a prova de que estava, e não, cega como um morcego, definitivamente em competição com toupeiras era Um pouco perturbador.
- Caslon, corpo doze - Jamie disse, lançando um olhar profissional ao texto. - Eu diria que o chumbo é horrível - acrescentou criticamente. - E as calhas são metade do que deveriam ser. Ainda assim... - Fechou o livro com um movimento rápido e olhou para mim, uma das sobrancelhas erguidas. - Você precisa de óculos, a nighean - ele repetiu delicadamente.
- Humm! - resmunguei. Num impulso, peguei o livro, abri e entreguei a ele. - Bom... leia você mesmo, por que não?
Parecendo surpreso e um pouco desconfiado ele pegou o livro e olhou para a página. Então, estendeu um pouco o braço. E mais um pouco. Fiquei observando, experimentando aquela mesma mistura de humor e compaixão, quando ele finalmente segurou o livro quase com o braço esticado e leu:
- De modo que a vida de um escritor, por mais que ele possa pensar o contrário, não era tanto uma condição de redação, mas uma condição de guerra; e sua prova nela exatamente a de qualquer outro homem militante na face da Terra - ambos dependendo igualmente não tanto do grau de sua INTELIGÊNCIA, mas de sua RESISTÊNCIA.
Fechou o livro e olhou para mim, o canto da boca torcido.
- Sim, bem - ele disse. - Ainda posso atirar, ao menos.
- E eu posso diferenciar uma erva de outra pelo cheiro, imagino - eu disse, e ri. - Não tem importância. Não creio que haja um oculista deste lado da Filadélfia.
- Não, creio que não - ele disse pesarosamente. - Mas quando chegarmos a Edimburgo eu conheço o homem certo. Comprarei para você óculos de aro de tartaruga para o dia a dia, Sassenach, e um par de ouro para os domingos.
- Espera que eu leia a Bíblia com eles, não? - perguntei.
- Ah, não - ele disse -, é só para exibir. Afinal - tomou minha mão, que cheirava a endro e coentro e, levando-a à boca, passou a ponta da língua delicadamente ao longo da linha da vida em minha palma -, as coisas importantes se fazem pelo tato, hein?
Fomos interrompidos por uma tosse vinda da porta da barraca e eu me voltei, vendo um homem grande, parecendo um urso, com cabelos longos e grisalhos soltos nos ombros. Tinha um rosto amável com uma cicatriz no lábio superior e um olhar meigo, mas penetrante, que se dirigiu imediatamente para a sacola sobre a mesa.
Enrijeci-me um pouco; havia proibições estritas sobre o saque de fazendas e, embora Jamie tivesse pegado aquelas galinhas em particular ciscando em lugares remotos, não havia como provar isso e aquele cavalheiro, embora vestido com tecido rústico e camisa de caça, portava-se com a inconfundível autoridade de um oficial.
- E o coronel Fraser? - ele disse, com um sinal da cabeça na direção de Jamie, e estendeu a mão. - Daniel Morgan.
Reconheci o nome, apesar de que a única coisa que eu sabia a respeito de Daniel Morgan - uma nota de rodapé no livro de história da oitava série de Brianna - é que ele fora um famoso carabineiro do Exército. Isso não era particularmente útil; todos sabiam disso e o acampamento comentara com interesse quando ele chegara com vários homens no final de agosto.
Em seguida, ele olhou com interesse para mim e depois para a sacola de galinhas, enfeitada com incriminadores tufos de penas.
- Com sua licença, madame - ele disse e, sem esperar pela minha permissão, pegou a sacola e retirou dali uma galinha morta. O pescoço prostrou-se, flácido, exibindo o buraco grande e sangrento através de sua cabeça onde antes havia um olho - bem, dois olhos. Sua boca marcada pela cicatriz enrugou-se em um assovio sem som e ele olhou incisivamente para Jamie. - Fez isso de propósito? - ele perguntou.
- Eu sempre atiro nos olhos delas - Jamie respondeu educadamente. - Não quero estragar a carne.
Um lento e largo sorriso espalhou-se pelo rosto do coronel Morgan e ele balançou a cabeça.
- Venha comigo, sr. Fraser. Traga seu rifle.
Naquela noite, comemos na fogueira de Daniel Morgan e a companhia - saciada com ensopado de galinha - ergueu canecas de cerveja e assoviou, brindando à adição de um novo membro à unidade de elite. Eu não tivera chance de uma conversa em particular com Jamie desde que Morgan o sequestrara naquela tarde e me perguntava o que ele estaria achando de sua apoteose. Mas Jamie parecia à vontade com os atiradores, embora olhasse para Morgan de vez em quando, com a expressão de quem ainda estava tomando uma decisão.
De minha parte, estava extremamente satisfeita. Pela sua natureza, os carabineiros lutavam a distância - e em geral uma distância muito maior do que o alcance de um mosquete. Também eram valiosos e os comandantes não costumavam arriscá-los em combate corpo a corpo. Nenhum soldado estava a salvo, mas algumas ocupações possuíam uma taxa de mortalidade muito maior - e, apesar de eu aceitar o fato de Jamie ser um jogador inato, gostava que ele tivesse as melhores chances possíveis.
Muitos dos carabineiros eram exploradores pioneiros, outros o que chamavam de "homens das montanhas", desbravadores que ajudaram a transpor a fronteira natural dos montes Apalaches e conquistar os territórios a oeste das Colônias. Esses homens não tinham suas mulheres ali. Alguns, no entanto, tinham, e eu logo fiz amizade com as mulheres pelo simples expediente de admirar o bebê de uma jovem.
- Sra. Fraser? - uma senhora mais velha perguntou, vindo se sentar pesadamente no tronco ao meu lado. - Você é a curandeira?
- Sou - eu disse amavelmente. - Me chamam de Feiticeira Branca. - Isso as deixou um pouco ressabiadas, mas o proibido tem seu próprio poder de atração e a afinal, o que eu poderia fazer no meio de um acampamento militar, cercada Por seus maridos e filhos, todos armados até os dentes?
Em poucos minutos, eu distribuía conselhos sobre tudo, desde cólicas menstruais a dores de barriga. Vi Jamie de soslaio, rindo diante de minha popularidade, e fiz um aceno discreto para ele antes de voltar para a minha plateia.
Os homens, é claro, continuaram bebendo, com rompantes de risadas ruidosas, seguidos pela diminuição das vozes quando outro homem iniciava uma história, repetindo o ciclo. Em certo momento, entretanto, o ambiente mudou, tão abruptamente que eu interrompi uma intensa discussão sobre assadura de fraldas e olhei na direção da fogueira.
Daniel Morgan levantava-se com grande dificuldade e houve um ar inconfundível de expectativa entre os espectadores. Ele estaria prestes a fazer um discurso, dando as boas-vindas a Jamie?
- Oh, Santo Deus - disse a sra. Graham baixinho ao meu lado. - Lá vai ele de novo.
Não tive tempo de perguntar o que ele estava fazendo, antes que ele o fizesse.
Ele arrastou-se para o centro do grupo, onde ficou oscilando como um velho urso, os longos cabelos grisalhos esvoaçando ao vento do fogo e os olhos enrugados de amabilidade. Mas, eu vi, estavam focalizados em Jamie.
- Tenho algo a lhe mostrar, sr. Fraser - ele disse, bem alto para que as mulheres que ainda conversavam parassem, todos os olhares voltados para ele. Segurou a bainha de sua longa camisa de lã e puxou-a por cima da cabeça. Largou-a no chão, abriu os braços como um dançarino e deu a volta batendo os pés.
Todos arfaram, apesar de que, pelo comentário da sra. Graham, a maioria já devia ter visto isso antes. Suas costas eram um emaranhado de cicatrizes, do pescoço à cintura. Cicatrizes antigas, sem dúvida - mas não havia um centímetro quadrado de pele sem marca em suas costas, apesar de largas. Até eu fiquei chocada.
- Os ingleses fizeram isso - ele disse descontraidamente, virando-se de costas e deixando os braços penderem. - Me deram quatrocentas e noventa e nove chibatadas. Eu contei. - O amontoado de homens irrompeu numa risada, e ele riu. - Deveriam ser quinhentas, mas ele falhou uma. Não quis chamar sua atenção para isso.
Mais risadas. Obviamente, aquela era uma performance frequente, mas que sua plateia adorava. Houve aclamações e brindes quando ele terminou e foi sentar-se ao lado de Jamie, ainda nu da cintura para cima, a camisa embolada na mão.
O rosto de Jamie permanecia impassível - mas eu vi que seus ombros haviam relaxado. Evidentemente, ele havia chegado a uma conclusão a respeito de Dan Morgan.
Jamie levantou a tampa da minha pequena panela de ferro, com uma expressão entre cautela e esperança.
- Não é comida - eu o informei, um pouco desnecessariamente, já que ele estava respirando ruidosamente como alguém que sem querer inalou raiz forte até o cérebro.
- Imagino que não - ele disse, tossindo e enxugando os olhos. - Santo Deus, Sassenach, isto está pior do que de costume. Pretende envenenar alguém?
- Sim, Plasmodium vivax. Coloque a tampa de novo. - Eu estava fazendo uma decocção de casca de cinchona efitolaca, para tratamento dos casos de malária.
- E temos alguma comida? - ele perguntou em tom de súplica, recolocando a tampa na panela.
- Na verdade, temos. - Enfiei a mão na vasilha coberta com um pano aos meus pés e triunfalmente retirei dali uma torta de carne, a crosta dourada e cintilante da gordura.
Seu rosto assumiu a expressão de um israelita contemplando a terra prometida; e ele estendeu as mãos, recebendo a torta com a reverência devida a um objeto precioso, embora essa impressão tenha se dissipado no instante seguinte quando ele deu uma grande mordida na torta.
- Onde você conseguiu isso? - ele perguntou, após alguns instantes de mastigação enlevada. - Tem mais?
- Tem, sim. Uma amável prostituta chamada Daisy as trouxe para mim.
Ele parou, examinou a torta com ar crítico em busca de sinais de sua proveniência, depois encolheu os ombros e deu outra mordida.
- Vou querer saber o que foi que você fez para ela, Sassenach?
- Bem, provavelmente não enquanto estiver comendo. Você viu Ian?
- Não. - A resposta pode ter sido abreviada pelas exigências de estar comendo, mas percebi uma leve mudança em seu jeito e parei, fitando-o.
- Você sabe onde Ian está?
- Mais ou menos. - Ele mantinha os olhos firmemente fixos na torta de carne, confirmando assim as minhas suspeitas.
- Vou querer saber o que ele está fazendo?
- Não, não vai - ele disse, com firmeza.
- Oh, meu Deus.
Ian Murray, tendo cuidadosamente arrumado os cabelos com gordura de urso e um par de penas de peru, retirou a camisa, deixando-a enrolada com seu xale esfarrapado sob um tronco, dizendo a Rollo que tomasse conta. Em seguida, atravessou uma pequena extensão de terreno aberto na direção do acampamento britânico.
- Pare!
Ele virou um rosto impassível e desinteressado para a sentinela que o mandara parar. A sentinela, um garoto de uns quinze anos, segurava um mosquete cujo cano tremia visivelmente. Ian esperava que o idiota não atirasse nele por acidente.
- Batedor - ele disse sucintamente e passou pela sentinela sem olhar para trás, embora tenha sentido uma aranha passeando de um lado para o outro entre suas omoplatas. Batedor, pensou, e sentiu uma repentina vontade de rir. Bem, era verdade, afinal de contas.
Ele deu um giro pelo acampamento no mesmo passo, ignorando um ou outro olhar interessado - embora a maior parte dos que notavam sua presença meramente olhava para ele e em seguida desviava o olhar.
Foi fácil identificar o quartel-general de Burgoyne, uma barraca grande de lona verde que brotava como um cogumelo entre as fileiras perfeitas de pequenas barracas brancas que abrigavam os soldados. Ficava um pouco distante - e ele não pretendia chegar muito perto no momento -, mas podia vislumbrar as idas e vindas de oficiais, mensageiros... e um ou outro batedor, embora nenhum deles fosse um índio.
Os acampamentos indígenas estavam na extremidade oposta do acampamento do exército, dispersado pela floresta, fora do arranjo militar perfeitamente alinhado. Ele não tinha certeza se encontraria algum dos thayendanegea, que por sua vez podiam reconhecê-lo. Isso não seria um problema, já que não falara nada concernente a política durante sua malfadada visita à casa de Joseph Brant; provavelmente o aceitariam assim que o vissem, sem nenhuma pergunta embaraçosa.
Caso ele encontrasse alguns dos hurons ou oneidas que Burgoyne empregava para acossar os continentais, a situação poderia ficar um pouco mais sensível. Ele tinha absoluta confiança em sua capacidade de impressioná-los com sua identidade como mohawk - mas, se ficassem muito desconfiados ou muito impressionados, ele não ficaria sabendo de muita coisa.
Constatara alguns dados pela simples caminhada através do acampamento. O moral não estava alto; havia lixo entre algumas das barracas e a maioria das lavadeiras entre as seguidoras do acampamento estava sentada na grama tomando gim, seus caldeirões frios e vazios. Ainda assim, a atmosfera de um modo geral parecia subjugada, mas decidida; alguns homens jogavam dados e bebiam, porém a maioria estava derretendo chumbo e fazendo balas de mosquete, consertando ou limpando suas armas.
A comida estava racionada; ele sentia a fome no ar, mesmo sem ver a fileira de homens aguardando do lado de fora da barraca do padeiro. Nenhum deles olhou para ele; estavam concentrados nos pães que emergiam da barraca - rasgados ao meio antes de serem entregues. Meia ração, portanto; isso era bom.
No entanto, nada disso importava, e quanto à quantidade de tropas e armamentos - já estava bem estabelecida agora. Tio Jamie, o coronel Morgan e o general Gates gostariam de saber sobre as provisões de pólvora e munição, mas o parque de artilharia e o arsenal de pólvora estariam bem guardados, sem nenhuma razão concebível para um batedor indígena estar bisbilhotando por perto.
Alguma coisa chamou sua atenção pelo canto do olho e ele olhou cautelosamente ao redor, em seguida apressadamente lançou os olhos para frente, forçando-se a caminhar no mesmo passo. Santo Deus, era o inglês que ele havia salvo do pântano - o homem que o ajudara a resgatar o pequeno Denny. E...
Reprimiu aquele pensamento. Sabia muito bem; ninguém poderia ter aquela aparência e não ser. Mas achou perigoso até mesmo reconhecer a ideia consigo mesmo, com receio de que isso se revelasse na expressão do seu rosto.
Forçou-se a respirar normalmente e caminhar despreocupadamente, como um verdadeiro batedor indígena faria. Droga. Pretendera passar as horas restantes do dia com alguns dos índios, recolhendo toda informação que pudesse e, depois que escurecesse, voltar silenciosamente ao acampamento, esgueirando-se até onde desse para ouvir o que se passava na barraca de Burgoyne. Mas, se aquele tenentezinho estivesse rondando por ali, poderia ser perigoso demais tentar. A última coisa que ele queria era encontrar o sujeito cara a cara.
- Ei! - O grito penetrou em sua carne como uma farpa aguda. Ele reconheceu a voz, sabia que estava se dirigindo a ele, mas não se virou. Seis passos, cinco, quatro, três... Alcançou o final de uma passagem entre duas fileiras de barracas e arremeteu-se para a direita, fora do alcance da vista. - Ei! - A voz estava mais próxima, quase atrás dele, e ele começou a correr, na direção do abrigo das árvores. Somente um ou dois soldados o viram; um deles se levantou, mas parou, em dúvida sobre o que fazer, e ele passou pelo sujeito e mergulhou no meio das árvores.
- Bem, isso estragou tudo - murmurou, agachado atrás de um abrigo de moitas. O tenente alto fazia perguntas ao homem pelo qual ele passara. Ambos olhavam na direção da floresta, o soldado sacudindo a cabeça e dando de ombros, sem poder ajudar.
Santo Deus, o maluco estava vindo em seu encalço! Virou-se e andando cuidadosamente pelo meio das árvores aprofundou-se silenciosamente na floresta. Podia ouvir o inglês atrás dele, pisando em gravetos e sacudindo a folhagem como um urso que acabou de sair de sua toca na primavera.
- Murray! - ele gritava. - Murray, é você? Espere!
- Irmão do Lobo! É você?
Ian disse uma blasfêmia à meia-voz em gaélico e virou-se para ver quem o chamara em mohawk.
- É mesmo você! Onde está seu lobo demoníaco? Alguma coisa finalmente o devorou? - Seu velho amigo Glutão ria para ele, ajeitando a braguilha da calça depois de ter urinado.
- Espero que alguma coisa devore você - Ian disse a seu amigo, mantendo a voz baixa. - Preciso fugir. Tem um inglês me seguindo.
O rosto de Glutão mudou no mesmo instante, embora não perdesse o sorriso, nem a expressão entusiástica. O largo sorriso ampliou-se ainda mais e ele fez um movimento brusco com a cabeça para trás, indicando a passagem Para uma trilha. Em seguida, seu rosto tornou-se repentinamente frouxo e ele Cambaleou de um lado para o outro, lançando-se na direção de onde Ian viera.
Ian mal conseguiu ficar fora do alcance de vista quando o inglês chamado William entrou correndo na clareira, deparando-se com Glutão, que o agarrou pelas lapelas de seu casaco, ergueu os olhos esperançosamente para William e perguntou:
- Uísque?
- Não tenho nenhum uísque - William disse, brusco, porém não descortês, e tentou se desvencilhar de Glutão. Isso mostrou ser uma proposição difícil; Glutão era muito mais ágil do que sua aparência atarracada sugeria e no instante em que uma das mãos era removida de um lugar agarrava-se molemente em outro. Para melhorar sua exibição, Glutão começou a contar ao tenente - em mohawk - a história da famosa caçada que havia lhe dado seu nome, parando periodicamente para gritar "UISQUIII!" e atirar os braços ao redor do corpo do inglês.
Ian não perdeu tempo admirando a própria facilidade do inglês com línguas, que era considerável, mas se evadiu o mais depressa possível, dando a volta pelo oeste. Não podia atravessar o acampamento outra vez. Poderia se refugiar em um dos acampamentos indígenas, mas era possível que William fosse procurar por ele lá, quando conseguisse escapar de Glutão.
- Que diabos ele quer comigo? - murmurou, sem se importar mais com o silêncio, mas abrindo caminho pelo mato com o mínimo de ruído. William, o tenente, tinha que saber que ele era um continental, por causa de Denny Hunter e do jogo do desertor. Entretanto, ele não deu um alerta geral ao vê-lo - apenas chamou-o, surpreso, e como alguém que quisesse conversar.
Bem, talvez isso fosse um truque. O pequeno William podia ser jovem, mas não era bobo. Não podia ser, considerando-se quem era seu pai... e o sujeito estava perseguindo-o.
Podia ouvir vozes desaparecendo atrás dele - achou que William talvez tivesse reconhecido Glutão, apesar do fato de estar meio morto de febre quando se conheceram. Se assim fosse, ele saberia que Glutão era seu, de Ian, amigo - e instantaneamente detectaria a farsa. Mas não importava; ele já estava bem fundo na floresta. William jamais o alcançaria.
O cheiro de fumaça e carne fresca chegou ao seu nariz e ele se virou, descendo a colina na direção da margem de um riacho. Havia um acampamento mohawk ali; percebeu de imediato.
No entanto, parou. O cheiro, o reconhecimento, o havia atraído como uma mariposa - mas ele não devia entrar. Não agora. Se William tivesse realmente reconhecido Glutão, o primeiro lugar onde procuraria por Ian seria o acampamento mohawk. E se ela estivesse lá...
- Você de novo? - disse uma desagradável voz mohawk - Você não aprende, não é?
Na verdade, aprendia, sim. Aprendera o suficiente para atacar primeiro. Virou-se nos calcanhares e lançou o braço de algum lugar atrás de seus joelhos, continuando a subir com toda a força de seu corpo. "Atinja em cheio o rosto do inimigo", tio Jamie o instruíra quando ele começou a circular em Edimburgo sozinho. Era, como sempre, um bom conselho.
As juntas de seus dedos estalaram com um impacto que enviou um relâmpago azul direto pelo seu braço até o pescoço e o maxilar - mas Alce do Sol voou dois passos para trás e chocou-se contra o tronco de uma árvore.
Ian ficou parado, arquejante e afagando delicadamente os nós dos dedos, lembrando-se tarde demais de que o conselho de seu tio Jamie começara com: "Se puder, atinja as partes macias." Não tinha importância; valeu a pena. Alce do Sol gemia baixinho, as pálpebras adejando. Ian ponderava os méritos de dizer alguma coisa de natureza desdenhosa e se afastar altivamente ou dar-lhe um chute nos testículos, antes que ele pudesse se levantar, quando William, o inglês, saiu do meio das árvores.
Ele olhou de Ian, ainda respirando como se tivesse corrido dois quilômetros, para Alce do Sol, que havia rolado sobre as mãos e os joelhos, mas que não parecia querer se levantar. Sangue escorria de seu rosto pingando sobre as folhas mortas.
- Não quero de forma alguma me meter em um assunto particular - William disse educadamente. - Mas gostaria de dar uma palavra com você, sr. Murray. - Virou-se, sem esperar para ver se Ian o seguiria, e voltou para o meio das árvores.
Ian assentiu, sem saber o que dizer, e seguiu o inglês, guardando com carinho o último som do sangue pingando de Alce do Sol.
O inglês estava recostado contra uma árvore, observando o acampamento mohawk junto ao riacho embaixo. Uma mulher descarnava a carcaça fresca de um cervo, pendurando-a para secar. Não era Trabalha com as Mãos.
William voltou o olhar azul-escuro para Ian, fazendo-o sentir uma sensação estranha. Mas Ian já se sentia estranho de qualquer modo, de maneira que não teve realmente importância.
- Não vou perguntar o que você estava fazendo no acampamento.
- Oh, não?
- - Não. Queria lhe agradecer pelo cavalo e pelo dinheiro e lhe perguntar se tem visto a srta. Hunter, desde que me deixou entregue aos cuidados dela e de seu irmão.
- Sim, tenho. - Os nós dos dedos de sua mão direita já haviam dobrado de tamanho e começado a latejar. Iria ver Rachel; ela enfaixaria sua mão para ele. A ideia era tão inebriante que no começo ele não percebeu que William estava esperando - não muito pacientemente - que ele comentasse sua declaração.
- Ah. Sim, a... hã... os Hunter estão com o exército. O... hum... outro exército - ele disse, um pouco constrangido. - O irmão dela é médico do exército.
O rosto de William não se alterou, mas pareceu, de certo modo, endurecer-se. Ian observou-o, fascinado. Já vira o rosto de seu tio Jamie fazer exatamente a mesma coisa, muitas vezes, e sabia o que significava.
- Aqui? - William perguntou.
- Sim, aqui. - Ele inclinou a cabeça na direção do acampamento america-no. - Lá, quero dizer.
- Compreendo - William disse calmamente. - Quando a vir outra vez, Poderia lhe dar lembranças minhas, então? E a seu irmão, também, é claro.
- Oh... sim - Ian disse, pensando. Então é assim, hein? Bem, você não irá vê-la pessoalmente e ela não iria querer nada com um soldado inglês, de qualquer modo, portanto, pense melhor! - Claro - acrescentou, tardiamente consciente de que seu único valor para William neste ponto estava em seu suposto papel de mensageiro para Rachel Hunter, e se perguntou o quanto isso valia.
- Obrigado. - O rosto de William perdera aquela expressão dura; examinava Ian cuidadosamente e, por fim, balançou a cabeça.
- Uma vida por outra, sr. Murray - disse, serenamente. - Estamos quites. Não deixe que eu o veja da próxima vez. Eu posso não ter escolha.
Virou-se e foi embora, o vermelho de seu uniforme visível por algum tempo em meio às árvores.
UM ÚNICO HOMEM JUSTO
19 de setembro de 1777
O sol ergueu-se invisível, ao som dos tambores. Tambores dos dois lados;
podíamos ouvir o toque de alvorada inglês e, da mesma forma, eles deviam ouvir o nosso. Os carabineiros haviam tido uma pequena escaramuça com as tropas britânicas dois dias antes e, graças ao trabalho de Ian e dos outros batedores, o general Gates sabia muito bem o tamanho e a disposição do exército de Burgoyne. Kosciuszko escolhera Bemis Heights como posto defensivo; era uma íngreme escarpa, com vários barrancos pequenos que desciam até o rio, e seus homens haviam trabalhado como loucos na última semana com pás e machados. Os americanos estavam prontos. Mais ou menos.
As mulheres não eram, é claro, admitidas nos conselhos dos generais. Mas Jamie era e assim eu soube de tudo sobre a discussão entre o general Gates, que tinha o comando, e o general Arnold, que achava que ele é quem deveria ter. O general Gates queria postar-se nas Bemis Heights e esperar pelo ataque britânico. Por outro lado, o general Arnold defendia veementemente que os americanos deviam dar o primeiro passo, forçando o exército britânico a lutar pelas ravinas densamente cobertas de floresta, arruinando sua formação e deixando-os vulneráveis ao fogo dos franco-atiradores, recuando - se necessário - para as barricadas e trincheiras nas Heights.
- Arnold venceu - Ian informou, surgindo brevemente do meio da neblina para pegar um pedaço de pão torrado. - Tio Jamie já partiu com os carabineiros. Disse que vê você à noite e enquanto isso... - Inclinou-se e beijou-me delicadamente no rosto, depois riu insolentemente e desapareceu.
Meu próprio estômago parecia dar nós, embora tanto da empolgação generalizada quanto do medo. Os americanos eram um bando diversificado, maltrapilho, mas tiveram tempo para se preparar, sabiam o que vinha pela frente e sabiam o que estava em risco. Esta batalha decidiria a campanha no norte. Ou Burgoyne iria dominar e seguir em frente, prendendo o exército de George Washington em uma armadilha perto da Filadélfia entre suas tropas e as do general Howe - ou seu exército de invasão seria detido e tirado da guerra, em cuja hipótese o exército de Gate poderia mover-se para o sul e reforçar Washington. Todos os homens sabiam disso e o nevoeiro parecia elétrico com a expectativa.
Pelo sol, deviam ser quase dez horas quando o nevoeiro se dissipou. Os tiros já haviam começado há algum tempo, disparos de rifle, breves e distantes. Os homens de Daniel Morgan estavam eliminando as sentinelas avançadas, pensei - e eu sabia pelo que Jamie dissera na noite anterior que eles deviam ter em mira os oficiais, matar os soldados que usavam gorjal de prata. Eu não dormira à noite anterior, imaginando o tenente Ransom e o gorjal de prata em sua garganta. No nevoeiro, na poeira da batalha, a distância... engoli em seco, mas minha garganta continuou teimosamente fechada; eu não conseguia sequer beber água.
Jamie dormira, com a concentração determinada de um soldado, mas acordara altas horas da noite, a camisa ensopada de suor, apesar do frio, tremendo. Não perguntei sobre o que ele estava sonhando; eu sabia. Dei-lhe uma camisa limpa e o fiz deitar-se outra vez com a cabeça em meu colo, depois afaguei sua cabeça até ele fechar os olhos - mas achava que ele não tinha voltado a dormir.
Não estava frio agora; o nevoeiro se fora e ouvíamos estrépitos constantes de disparos, saraivadas irregulares, mas repetidas. Gritos ao longe, fracos, impossível de discernir quem estava gritando o que com quem. Em seguida, o estrondo repentino de um canhão de campanha britânico, uma explosão ressonante que silenciou o acampamento. Um intervalo e então a batalha eclodiu com toda a intensidade - tiroteio, gritaria e o baque intermitente de canhão. As mulheres se ajuntavam ou sombriamente começavam a empacotar seus pertences, caso tivéssemos que fugir.
Por volta de meio-dia, houve um relativo silêncio. Estaria terminada? Esperamos. Após certo tempo, as crianças começaram a choramingar para serem alimentadas e uma espécie de normalidade tensa se abateu sobre nós - mas nada aconteceu. Podíamos ouvir gemidos e pedidos de ajuda dos homens feridos - mas nenhum ferido foi trazido.
Eu estava preparada. Eu tinha uma pequena carroça puxada a mula, equiPada com ataduras e equipamentos médicos, bem como uma pequena tenda, que eu poderia armar no caso de ter que realizar uma cirurgia na chuva. A mula estava amarrada perto dali, pastando placidamente e ignorando tanto a tensão quanto os tiros esporádicos de mosquete.
No meio da tarde, as hostilidades recomeçaram e desta vez os seguidores do acampamento e as carroças de mantimentos de fato começaram a recuar. Havia artilharia dos dois lados, o suficiente para que os ribombos contínuos parecessem trovoada, e eu vi uma enorme nuvem de fumaça preta elevar-se do penhasco. Não tinha a forma de cogumelo, mas ainda assim me fez pensar em Nagasaki e Hiroshima. Amolei minha faca e bisturis pela duodécima vez.
Era quase noite; o sol desaparecia invisivelmente, manchando a névoa com uma cor de laranja embotada e tristonha. O vento da noite que vinha do rio começava a soprar, levantando a névoa do chão e fazendo-a girar em ondas e redemoinhos.
Nuvens de fumaça preta de pólvora assentavam-se pesadamente nas pequenas depressões, erguendo-se mais devagar do que os fragmentos mais leves de névoa e emprestando um odor adequado de enxofre a um cenário que era - se não infernal - ao menos desgraçadamente assustador.
Aqui e ali, um espaço clareava repentinamente, como uma cortina puxada para mostrar as consequências da batalha. Pequenas figuras escuras moviam-se ao longe, correndo e abaixando-se, parando repentinamente, as cabeças erguidas como babuínos alertas à presença de um leopardo. Seguidores de acampamento; as esposas e prostitutas dos soldados, vindo como abutres para pilhar os mortos.
Crianças, também. Embaixo de um arbusto, um menino de nove ou dez anos montou no corpo de um soldado de casaco vermelho, batendo em seu rosto com uma pedra pesada. Parei, paralisada diante da cena, e vi o menino enfiar a mão dentro da boca aberta e ensanguentada e arrancar um dente. Enfiou o prêmio ensanguentado do saque em uma sacola pendurada a seu lado, tateou mais fundo, puxando, e não encontrando mais dentes soltos pegou sua pedra de maneira prática e voltou ao trabalho.
Senti a bílis subir à minha garganta e apressei o passo, engolindo. Eu não era estranha a guerra, morte e ferimentos. Mas nunca vira uma batalha tão de perto; nunca antes eu estivera em um campo de batalha onde os mortos e feridos ainda estavam espalhados, antes da administração dos primeiros-socorros e dos detalhes do sepultamento.
Havia pedidos de socorro e gemidos ou gritos soando desencarnados do meio do nevoeiro, fazendo-me lembrar desconfortavelmente de histórias das Highlands sobre os urisge, os espíritos condenados dos vales. Como os heróis dessas histórias, não parei para ouvir seus chamados, mas continuei andando, tropeçando em pequenas elevações, escorregando no capim úmido.
Eu havia visto fotografias dos grandes campos de batalha, da Guerra Civil Americana às praias da Normandia. Isso não se parecia em nada com aquilo - nenhuma terra revirada, nenhuma pilha de pernas e braços embaralhados. Tudo estava em silêncio, salvo pelos barulhos dos feridos espalhados e as vozes dos que chamavam, como eu, por um amigo ou marido desaparecido.
Árvores estilhaçadas espalhavam-se por toda parte, derrubadas pela artilharia; àquela luz, parecia que os próprios corpos haviam se transformado em troncos caídos, formas escuras estendidas no capim - salvo pelo fato de que alguns deles ainda se moviam. Aqui e ali, uma forma se remexia debilmente, vítima da bruxaria da guerra, lutando contra o feitiço da morte.
Parei e gritei para o meio da neblina, chamando seu nome. Ouvi gritos em resposta, mas nenhum com a sua voz. A minha frente, jazia um rapaz, os braços atirados para fora, uma expressão de perplexidade e susto no rosto, o sangue formando uma poça em volta da parte superior do tronco, como uma grande auréola. A parte de baixo estava a uns dois metros de distância. Passei entre as metades, segurando minhas saias junto ao corpo, as narinas apertadas contra o forte cheiro de ferro do sangue.
A luz se esvanecia agora, mas vi Jamie assim que atravessei o topo da elevação seguinte. Ele estava estendido de rosto para baixo no fundo do barranco, um dos braços atirado para o lado, o outro dobrado sob o corpo. Os ombros de seu casaco azul-marinho estavam quase pretos de umidade, e suas pernas abertas, os saltos das botas entortados.
Minha respiração ficou presa na garganta e desci a ribanceira correndo em sua direção, indiferente a tufos de capim, lama e arbustos espinhosos. Entretanto, quando cheguei perto, vi uma figura sair correndo precipitadamente de trás de uma moita próxima e arremessar-se na direção de Jamie. Ela caiu de joelhos ao seu lado e, sem hesitação, agarrou-o pelos cabelos e puxou sua cabeça com um safanão para o lado. Algo brilhou na mão da mulher, cintilante mesmo à luz turva.
- Pare! - gritei. - Largue isso, desgraçada!
Espantada, a mulher ergueu os olhos enquanto eu me atirava pelos últimos metros de distância que nos separavam. Olhos apertados, vermelhos, fitaram-me com raiva de um rosto redondo, marcado de fuligem e sujeira.
- Afaste-se! - ela rosnou. - Eu o achei primeiro! - Era uma faca em sua mão; ela fazia pequenos movimentos de estocadas para mim, no esforço de me fazer ir embora.
Eu estava furiosa demais - e temendo muito por Jamie - para temer por mim mesma.
- Solte-o! Toque nele e eu mato você! - eu disse. Meus punhos estavam cerrados e eu devia estar parecendo alguém que cumpriria a ameaça, pois a mulher se encolheu, soltando os cabelos de Jamie.
- Ele é meu - ela disse, lançando o queixo ameaçadoramente para mim. - Vá achar outro.
Uma outra forma saiu do meio da névoa e se materializou ao lado dela. Era o menino que eu vira antes, imundo e esfarrapado como a própria mulher. Ele não tinha nenhuma faca, mas segurava uma lâmina bruta de metal, cortada de um cantil. A borda era escura, de ferrugem ou sangue.
Fitou-me odiosamente.
- Ele é nosso, mamãe disse! Vá embora daqui! Desapareça!
Sem esperar para ver se eu iria ou não, ele lançou uma perna sobre as costas de Jamie, sentou-se sobre ele e começou a tatear nos bolsos laterais de seu casaco.
- Ele ainda está vivo, mamãe - avisou. - Posso sentir seu coração batendo. É melhor cortar sua garganta logo; acho que não está muito ferido.
Agarrei o menino pela gola e arranquei-o de cima de Jamie, fazendo-o largar a arma. Ele soltou um guincho agudo e começou a agitar braços e cotovelos tentando me atingir, mas eu o golpeei com o joelho nas nádegas, com força suficiente para abalar sua coluna vertebral, em seguida segurei-o pelo pescoço com uma gravata, seu pulso magricela preso em minha outra mão.
- Solte-o! - Os olhos da mulher estreitaram-se como os de uma doninha e seus dentes caninos exibiram-se num esgar.
Eu não ousava tirar os olhos da mulher tempo suficiente para olhar para Jamie. Mas podia vê-lo, pelo canto do olho, a cabeça virada para o lado, o pescoço branco e brilhante, exposto e vulnerável.
- Levante-se e recue - eu disse - ou eu o estrangulo até morrer, juro que farei!
Ela agachou-se sobre o corpo de Jamie, a faca na mão, enquanto me avaliava, tentando decidir se eu falava a sério. Eu falava.
O menino se debatia e remexia sob meus braços, os pés martelando minhas pernas. Ele era pequeno para a idade, e magro como uma vara, mas forte ainda assim; era como lutar com uma enguia. Apertei o braço em seu pescoço; ele gorgolejou e parou de se debater. Seus cabelos eram grossos de gordura rançosa e sujeira, o fedor ardendo em minhas narinas.
Devagar, a mulher levantou-se. Ela era bem menor do que eu, e esquelética - os pulsos ossudos projetando-se das mangas esfarrapadas. Eu não conseguia calcular sua idade - sob a imundície e o inchaço da desnutrição, ela podia ter de vinte a cinquenta anos.
- Meu homem está estirado lá atrás, morto no chão - ela disse, sacudindo a cabeça para o nevoeiro atrás dela. - Ele só tinha seu mosquete e isso o sargento vai tomar de volta. - Seus olhos deslizaram na direção da floresta distante, para onde as tropas britânicas haviam se retirado. - Logo acharei outro homem, mas tenho filhos para alimentar enquanto isso, dois além do menino. - Ela umedeceu os lábios e um tom persuasivo surgiu em sua voz. - Você está sozinha; pode se arranjar melhor do que nós. Deixe-me ficar com este, há mais lá. - Ela apontou com o queixo na direção da encosta atrás de mim, onde estavam os rebeldes mortos e feridos.
Meu braço deve ter afrouxado um pouco enquanto ouvia, pois o garoto, que havia ficado quieto, deu um salto repentino e se libertou de mim, mergulhando por cima do corpo de Jamie para rolar aos pés de sua mãe.
Levantou-se ao lado dela, fitando-me com olhos de rato, duas contas brilhantes e alertas. Abaixou-se e tateou pelo capim, levantando-se com a adaga improvisada.
- Não deixe ela se aproximar, mamãe - ele disse, a voz áspera do estrangulamento. - Eu cuido dele.
- Espere! - eu disse, dando um passo para trás. - Não o mate. Não. - Um passo para o lado, outro para trás. - Eu vou embora, deixarei ele para vocês, mas... - Lancei-me para o lado e agarrei o cabo frio de metal.
Eu já havia pegado a espada de Jamie antes. Era uma espada da cavalaria, maior e mais pesada do que o normal, mas não notei na hora.
Levantei a espada com as duas mãos e desfechei um golpe em arco que rasgou o ar e deixou o metal retinindo em minhas mãos.
Mãe e filho deram um salto para trás, olhares idênticos de ridícula surpresa em cada rosto redondo e encardido.
- Vão embora! - eu disse.
Ela ficou boquiaberta, mas não disse nada.
- Lamento pelo seu homem - eu disse. - Mas o meu está deitado aqui. Vão embora, já disse! - Ergui a espada e a mulher recuou alguns passos apressadamente, puxando o menino pelo braço.
Ela virou-se e foi embora, praguejando em voz baixa contra mim por cima do ombro, mas não prestei nenhuma atenção ao que ela dizia. Os olhos do menino continuaram fixos em mim enquanto ele se afastava, escuros como carvão na luz mortiça. Ele não se esqueceria de mim - nem eu dele.
Eles desapareceram no nevoeiro e eu abaixei a espada, que de repente me parecia pesada demais para segurar. Larguei-a no chão e caí de joelhos ao lado de Jamie.
Meu próprio coração latejava em meus ouvidos e minhas mãos tremiam em reação, enquanto eu buscava sentir o pulso em seu pescoço. Virei sua cabeça e pude vê-lo, latejando regularmente abaixo da mandíbula.
- Graças a Deus! - sussurrei a mim mesma. - Oh, graças a Deus!
Corri as mãos rapidamente pelo seu corpo, buscando ferimentos antes de mudá-lo de posição. Eu não achava que os abutres iriam voltar; eu podia ouvir as vozes de um grupo de homens, distantes no topo da elevação atrás de mim - um destacamento rebelde que vinha buscar os feridos.
Havia um enorme calombo em sua testa, já ficando roxo. Nada mais que eu pudesse ver. O menino tinha razão, pensei, com gratidão; ele não estava gravemente ferido. Em seguida, virei-o para cima e vi sua mão.
Os guerreiros das Highlands estavam acostumados a lutar com a espada em uma das mãos, escudo na outra, o pequeno escudo de couro usado para aparar os golpes do inimigo. Ele não tinha um escudo.
A lâmina o atingira entre o terceiro e o quarto dedos de sua mão direita e atravessara a própria mão, um corte fundo que dividia a palma de sua mão a meio caminho do pulso.
Apesar da terrível aparência do ferimento, não havia muito sangue; a mão ficara dobrada sob seu corpo, seu peso agindo como a pressão de uma atadura. Sua camisa estava suja de sangue na frente e profundamente manchada sobre o coração. Rasguei sua camisa, abrindo-a, e examinei seu peito, para me certificar se o sangue era da mão, e era. Seu peito estava fresco e úmido do capim, mas ileso, os mamilos contraídos e rígidos de frio.
- Isso... faz cócegas - ele disse com voz arrastada. Tocou o peito desajeitadamente com a mão esquerda, tentando afastar minha mão.
- Desculpe-me - eu disse, reprimindo a vontade de rir de alegria ao vê-lo vivo e consciente. Passei um braço por baixo de seus ombros e ajudei-o a se sentar. Ele parecia bêbado, com um dos olhos inchado e semicerrado, e capim nos cabelos. Agia como um bêbado também, oscilando assustadoramente de um lado para o outro.
- Como se sente? - perguntei.
- Enjoado - respondeu sucintamente. Virou-se para o lado e vomitou.
Ajudei-o a se deitar no chão outra vez e limpei sua boca, depois comecei a enfaixar sua mão.
- Logo vai chegar alguém - afirmei. - Nós o levaremos para a carroça e eu poderei cuidar disto.
- Mmmmhum. - Resmungou levemente quando apertei a atadura. - O que aconteceu?
- O que aconteceu? - Parei o que estava fazendo e olhei fixamente para ele. - Você está perguntando a mim?
- O que aconteceu na batalha, quero dizer - ele disse pacientemente, fitando-me com o olho bom. - Sei o que aconteceu comigo... mais ou menos - acrescentou, encolhendo-se ao tocar a testa.
- Sim, mais ou menos - eu disse rudemente. - Você foi cortado como um porco abatido e metade de sua cabeça afundada. Estava sendo um maldito herói outra vez, isso é o que lhe aconteceu!
- Eu não estava... - ele começou a dizer, mas eu interrompi, meu alívio ao vê-lo vivo rapidamente substituído pela raiva.
- Você não tinha que ir para Ticonderoga! Não devia ter ido! Ficar com a imprensa, escrever e imprimir, você disse. Não iria lutar, a menos que fosse obrigado, você disse. Bem, você não foi obrigado, mas lutou de qualquer modo, seu escocês convencido, teimoso, exibido!
- Exibido? - perguntou.
- Sabe muito bem o que quero dizer, porque foi exatamente o que você fez! Podia ter sido morto!
- Sim - ele concordou pesarosamente. - Achei que tivesse sido, quando o dragão me atacou. Mas eu berrei e assustei seu cavalo - ele acrescentou, mais animado. - Ele empinou e me atingiu no rosto com o joelho.
- Não mude de assunto! - retorqui.
- O assunto não é que eu não fui morto? - ele perguntou, tentando levantar uma das sobrancelhas e fracassando, contraindo-se outra vez.
- Não! O assunto é a sua estupidez, sua maldita e egoísta teimosia!
- Oh, isso.
- Sim, isso! Seu... seu... imbecil! Como ousa fazer isso comigo? Acha que não tenho nada melhor a fazer com a minha vida do que andar por aí atrás de você, juntando os pedaços? - A essa altura, eu já gritava histericamente com ele.
Para minha fúria ainda maior, ele riu para mim, a expressão do rosto ainda mais petulante pelo olho semicerrado.
- Você teria dado uma boa vendedora de peixe, Sassenach - ele observou. - Tem língua para isso.
- Ah, cale-se, seu maldito...
- Eles vão ouvi-la - ele disse brandamente, com um aceno da mão na direção do grupo de soldados continentais que descia a encosta em nossa direção.
- Não me importo que ouçam! Se já não estivesse ferido, eu... eu...
- Cuidado, Sassenach - ele disse, ainda rindo. - Não vai querer espalhar mais pedaços; só vai ter que costurar todos eles de volta no lugar, hein?
- Não me tente - eu disse entre dentes, com um olhar de relance para a espada que eu soltara.
Ele viu e tentou pegá-la, mas não conseguiu. Com um explosivo riso de desdém, inclinei-me por cima dele e agarrei o cabo, colocando-o em sua mão. Ouvi um grito dos homens que desciam a encosta e virei-me para acenar para eles.
- Qualquer um que tivesse ouvido você agora, Sassenach, ia achar que você não gosta muito de mim - ele disse, pelas minhas costas.
Virei-me para olhar para ele. O sorriso insolente desaparecera, mas ele ainda sorria.
- Você tem a língua de uma megera venenosa, mas é uma ótima espadachim, Sassenach.
Minha boca abriu-se, mas as palavras que eram tão abundantes um instante atrás haviam todas se evaporado como a névoa evanescente.
Ele colocou a mão boa em meu braço.
- Por ora, a nighean donn... obrigado por me salvar a vida.
Fechei a boca. Os homens já estavam quase nos alcançando, farfalhando pelo mato rasteiro, suas exclamações e tagarelice abafando os gemidos cada vez mais fracos dos feridos.
- De nada - eu disse.
- Hambúrguer - eu disse baixinho, mas não o suficiente. Ele ergueu uma das sobrancelhas para mim. - Arrancou um bife - elaborei, e a sobrancelha desceu.
- Oh, sim, é. Aparei um golpe de espada com a mão. Pena que eu não tinha um escudo. Teria evitado o golpe facilmente.
- Sei. - Engoli em seco. Não era o pior ferimento que eu já vira, de modo algum, mas ainda assim me deixava levemente nauseada. A ponta de seu dedo anelar fora completamente removida, em um ângulo logo abaixo da unha.
O golpe talhara uma tira de carne da parte interna do dedo e descera entre os dedos médio e anelar.
- Você deve tê-la aparado perto do cabo - eu disse, tentando demonstrar calma. - Ou a metade de fora de sua mão teria sido arrancada.
- Mmmmhum. - A mão não se movia enquanto eu trabalhava nela, mas havia suor em seu lábio superior e ele não conseguiu conter um pequeno grunhido de dor.
- Desculpe - murmurei automaticamente.
- Tudo bem - ele disse, da mesma forma automática. Ele cerrou os olhos, depois os abriu novamente. - Remova-o - ele disse de repente.
- O quê? - Recuei e olhei para ele, espantada.
Ele balançou a cabeça indicando a mão.
- O dedo. Tire-o, Sassenach.
- Não posso fazer isso! - No entanto, mesmo enquanto falava, eu sabia que ele tinha razão. Além dos ferimentos no dedo propriamente dito, o tendão estava gravemente danificado. As chances de ele mover o dedo outra vez, sem falar em movê-lo sem dor, eram infinitesimais.
- Pouco tem me servido nos últimos vinte anos - ele disse, olhando desapaixonadamente para o toco desfigurado do dedo - e provavelmente não vai ser melhor agora. Já quebrei o maldito uma meia dúzia de vezes, por ele ficar rígido como fica. Se você amputá-lo, ao menos ele não vai mais me atrapalhar.
Eu queria argumentar, mas não havia tempo; homens feridos começavam a subir a encosta em direção à carroça. Eram milicianos, não soldados regulares; se houvesse um regimento por perto, devia haver um médico com eles, mas eu estava mais perto.
- Uma vez um maldito herói, sempre um maldito herói - murmurei baixinho. Enfiei um chumaço de algodão na palma ensanguentada de Jamie e enrolei uma tira de atadura apressadamente em volta de sua mão. - Sim, vou ter que amputá-lo, porém mais tarde. Fique quieto.
- Ai! - ele exclamou, brandamente. - Eu disse que não era um herói.
- Se não é, não foi por falta de tentativa - eu disse, apertando o nó da atadura com os dentes. - Pronto, vai ter que servir por enquanto; cuidarei disso quando tiver tempo. - Agarrei a mão enfaixada e mergulhei-a na pequena bacia de álcool com água.
Ele ficou branco quando o álcool penetrou pelo tecido e atingiu a carne viva. Inalou com força através dos dentes, mas não disse mais nada. Apontei enfaticamente para o cobertor que eu estendera no chão e ele deitou-se obedientemente, acomodando-se sob a proteção da carroça, o punho enfaixado cuidadosamente mantido junto ao peito.
Levantei-me, mas hesitei por um instante. Em seguida, ajoelhei outra vez e apressadamente beijei sua nuca, afastando o rabo de cavalo, emaranhado com folhas mortas e lama seca; eu podia ver apenas a curva de sua face; ela se contraiu ligeiramente quando ele sorriu e depois relaxou.
A notícia de que a carroça do hospital estava lá se espalhou; já havia um grupo desordenado de feridos que conseguia caminhar aguardando atendimento e eu podia ver homens carregando ou arrastando seus companheiros feridos na direção da luz da minha lanterna. Ia ser uma noite atarefada.
O coronel Everett me prometera dois assistentes, mas só Deus sabia onde o coronel estaria no momento. Fiz uma pausa para inspecionar a multidão crescente e escolhi um rapaz que acabara de depositar um amigo ferido embaixo de uma árvore.
- Você - eu disse, puxando-o pela manga. - Tem medo de sangue?
Ele pareceu momentaneamente estarrecido, depois riu para mim através de uma máscara de lama e fumaça de pólvora. Ele era mais ou menos da minha altura, de ombros largos, atarracado e com um rosto que se podia chamar de querúbico se não estivesse tão imundo.
- Só se for meu, madame, e até agora não é, graças a Deus.
- Então venha comigo - eu disse, retribuindo o sorriso. - Você agora é um assistente de triagem.
- O quê? Ei, Harry! - gritou para seu amigo. - Fui promovido. Conte à sua mãe da próxima vez que escrever, Lester conseguiu ser alguém afinal! - Veio gingando atrás de mim, ainda sorrindo.
O sorriso rapidamente se transformou em uma expressão de preocupada concentração quando o conduzi rapidamente pelo meio dos feridos, indicando graus de gravidade.
- Homens sangrando muito são a primeira prioridade - eu lhe disse. Enfiei uma braçada de ataduras de linho e um saco de algodão em suas mãos. - Dê isso a eles; diga a seus amigos para pressionar o algodão com força nos ferimentos ou colocar um torniquete ao redor do membro, acima do ferimento. Sabe o que é um torniquete?
- Oh, sim, madame - garantiu-me. - Eu mesmo fiz um quando uma pantera atacou meu primo Jess, no condado da Carolina.
- Ótimo. Mas não desperdice tempo fazendo isso você mesmo aqui, a menos que seja imprescindível; deixe que seus amigos façam isso. Agora, ossos quebrados podem esperar um pouco; coloque-os lá, embaixo daquela faia grande. Ferimentos na cabeça e internos que não estão sangrando, lá atrás, perto da castanheira, se puderem ser removidos. Se não, eu irei até eles. - Apontei para tras dele, depois dei meia-volta, inspecionando o terreno.
- Se você vir uns dois homens sãos, mande-os para mim para erguer a barraca do hospital; deve ficar lá, naquele lugar plano. E depois mais uns dois para cavar uma trincheira de latrina... lá, eu acho.
- Sim, senhor! Senhora, quero dizer! - Lester balançou a cabeça várias Vezes e segurou com força o saco de algodão. - Vou providenciar agora mesmo, madame. Embora eu não me preocupe com as latrinas por enquanto - acrescentou. - A maioria dos homens já se esvaziou de tanto medo. - Riu e balançou a cabeça outra vez, em seguida partiu em sua missão.
Ele tinha razão, o leve cheiro de fezes pairava no ar como sempre acontecia em campos de batalha, um leve odor entre os cheiros pungentes de sangue e fumaça.
Com Lester fazendo a triagem dos feridos, instalei-me para o trabalho de reparação, com meu estojo médico, saco de suturas e uma tigela de álcool apoiada na extremidade traseira da carroça, e um barril pequeno de álcool para os pacientes se sentarem - desde que pudessem se sentar.
As piores baixas eram por ferimento de baioneta; felizmente não tinha havido nenhuma metralha e os homens feridos por tiro de canhão já haviam passado há muito tempo do ponto em que eu podia ser de alguma ajuda para eles. Enquanto trabalhava, ouvia com um dos ouvidos a conversa dos homens que aguardavam atendimento.
- Não foi a pior coisa que você já viu na vida? Quantos desgraçados havia? - um homem perguntava ao seu vizinho.
- Não faço a menor ideia - seu amigo respondeu, sacudindo a cabeça. - Teve uma hora lá que eu só via casacos vermelhos, nada mais. Então, um canhão disparou e atingiu bem perto de mim; depois disso eu não vi mais nada além de fumaça por muito tempo. - Ele esfregou o rosto; lágrimas de ardência dos olhos haviam feito longas listras na fuligem negra que o cobria do peito à testa.
Olhei para trás, para a carroça, mas não conseguia ver embaixo dela. Eu esperava que o choque e a fadiga tivessem feito Jamie conseguir dormir, apesar da mão, mas eu duvidava.
Apesar do fato de que praticamente todo mundo perto de mim estava ferido de alguma maneira, eles estavam animados e o estado de espírito geral era de júbilo e alívio incontido. Mais abaixo da colina, na névoa perto do rio, eu podia ouvir aclamações e gritos de vitória e a algazarra indisciplinada de tambores e flautas, numa barulheira desordenada de euforia.
Em meio ao barulho, uma voz mais próxima gritou: um oficial de uniforme, em um cavalo baio.
- Alguém viu aquele desgraçado ruivo grandão que interrompeu o ataque?
Houve um murmúrio e olhares à volta, mas ninguém respondeu. O cavaleiro desmontou e, enrolando as rédeas em um galho, abriu caminho entre a multidão de feridos em minha direção.
- Seja quem for, vou lhe dizer, ele tem colhões do tamanho de uma bala de canhão - observou o sujeito cuja face eu estava costurando.
- E uma cabeça da mesma consistência - murmurei.
- Hein? - Ele olhou de lado para mim, perplexo.
- Nada - eu disse. - Fique quieto mais um instante, já estou quase terminando.
Foi uma noite infernal. Alguns dos feridos ainda jaziam nos barrancos e depressões, assim como todos os mortos. Os lobos que saíam silenciosamente da floresta não distinguiam entre eles, a julgar pelos gritos distantes.
O dia já estava quase amanhecendo quando eu voltei para a barraca onde Jamie estava deitado. Levantei a aba da entrada silenciosamente, para não perturbá-lo, mas ele já estava acordado, deitado de lado, enroscado, de frente para a porta da barraca, a cabeça descansando em um cobertor dobrado.
Sorriu debilmente ao me ver.
- Uma noite difícil, Sassenach? - ele perguntou, a voz ligeiramente rouca do ar frio e da falta de uso. A névoa infiltrava-se pela abertura da barraca, tingida de amarelo pela luz da lanterna.
- Já tive piores. - Alisei seus cabelos, afastando-os do rosto, examinando-o cuidadosamente. Estava pálido, mas não suado. Seu rosto estava abatido de dor, mas sua pele estava fresca ao toque; nenhum sinal de febre. - Você não dormiu, não é? Como se sente?
- Um pouco assustado - ele disse. - E um pouco enjoado. Mas estou melhor agora que você está aqui. - Fez um esgar enviesado que era quase um sorriso.
Coloquei a mão sob seu maxilar, os dedos pressionados contra o pulso em seu pescoço. Seu coração batia regularmente sob as pontas dos meus dedos e eu estremeci brevemente, lembrando-me da mulher no campo de batalha.
- Você está fria, Sassenach - ele disse, sentindo. - E cansada também. Vai dormir, hein? Posso aguentar mais um pouco.
Eu estava cansada. A adrenalina da batalha e do trabalho da noite estava desaparecendo rapidamente; a fadiga se insinuava pela minha espinha dorsal e relaxava minhas juntas. Mas eu tinha uma boa ideia do que as horas de espera já haviam custado a ele.
- Não levará muito tempo - afirmei. - E é melhor acabar logo com isso. Assim, poderá dormir melhor.
Ele assentiu, embora não parecesse muito confiante. Desdobrei a pequena mesa dobrável que eu trouxera da barraca do hospital e armei-a perto de mim. Em seguida, retirei a preciosa garrafa de láudano e despejei uma dose do líquido escuro e fragrante em uma caneca.
- Tome bem devagar - eu disse, colocando a caneca em sua mão esquerda. Comecei a ordenar os instrumentos de que iria precisar certificando-me de que tudo estivesse à mão e arrumado. Eu havia pensado em pedir a Lester para vir me auxiliar, mas ele estava dormindo em pé, cambaleando como um bêbado sob as lanternas de luz turva da barraca do hospital, e eu o mandei ir buscar um cobertor e arranjar um lugar para dormir junto à fogueira.
Um pequeno bisturi, recentemente amolado. Ajarra de álcool, com as ligaduras molhadas enroladas dentro como um ninho de minúsculas víboras, cada qual exibindo como presa uma pequena agulha curva. Outra com ligaduras enceradas e secas, para compressão arterial. Um ramalhete de instrumentos de sondagem, as pontas mergulhadas em álcool. Fórceps. Retratores de cabo longo. O tenáculo curvo, para pegar as pontas das artérias cortadas.
A tesoura cirúrgica, com suas lâminas curvas e curtas e o cabo modelado para se encaixar na mão, feita para mim sob medida pelo prateiro Stephen Moray. Ou quase sob medida. Eu insistira para que a tesoura fosse o mais simples possível, para facilitar a limpeza e desinfecção. Stephen obedecera com um modelo singelo e elegante, mas não conseguiu resistir a um pequeno floreio - um dos cabos exibia uma extensão em forma de gancho, contra o qual eu podia apoiar meu dedo mínimo, a fim de exercer mais força, e essa extrusão formava uma curva lisa, flexionada, abrindo-se na ponta como um pequeno botão de rosa contra um arranjo de folhinhas. O contraste entre as lâminas pesadas e malévolas em uma das extremidades e essa delicada extravagância na outra sempre me fazia sorrir quando eu tirava a tesoura de seu estojo.
Tiras de gaze de algodão e de linho grosso, chumaços de algodão, emplastros adesivos manchados de vermelho com a seiva de sangue-de-dragão, que as tornava grudentas. Uma tigela aberta de álcool para desinfecção conforme eu trabalhava e os frascos de casca de cinchona, pasta de alho e milefólio para curativos.
- Pronto - eu disse com satisfação, verificando o arranjo pela última vez. Tudo devia estar preparado, já que estava trabalhando sozinha; se eu me esquecesse de alguma coisa, não haveria ninguém disponível para ir buscar para mim.
- Parece um bocado de preparativos para um mísero dedo - Jamie observou atrás de mim.
Virei-me e o encontrei apoiado em um dos cotovelos, observando, a xícara de láudano intacta em sua mão.
- Você não podia simplesmente arrancá-lo com uma faquinha e selar a ferida com ferro em brasa, como os cirurgiões militares?
- Poderia, sim - eu disse, secamente. - Mas felizmente eu não preciso. Temos tempo suficiente para fazer o trabalho adequadamente. Foi por isso que eu o fiz esperar.
- Mmmmhum. - Ele examinou a fileira de instrumentos brilhantes sem entusiasmo e era evidente que preferia acabar logo com aquilo o mais rápido possível. Percebi que para ele aquilo parecia uma tortura lenta e ritualizada, em vez de cirurgia sofisticada.
- Pretendo deixá-lo com a mão funcional - disse-lhe com firmeza. - Sem infecção, sem um toco supurando, sem uma mutilação malfeita e, se Deus quiser, sem dor, depois que sarar.
Suas sobrancelhas ergueram-se diante disso. Ele nunca mencionara o fato, mas eu sabia muito bem que sua mão direita e o incômodo dedo anelar haviam lhe causado dores intermitentes durante anos, desde que fora esmagada na prisão de Wentworth, quando foi mantido prisioneiro lá nos dias que antecederam o Levante dos Stuart.
- Trato é trato - eu disse, com um sinal da cabeça para a caneca em sua mão. - Beba.
Ele ergueu a caneca e relutantemente levou-a ao nariz longo e reto, as narinas torcendo-se com o cheiro enjoativamente doce. Deixou que o líquido escuro tocasse a ponta de sua língua e fez uma careta.
- Vai me deixar enjoado.
- Vai fazer você dormir.
- Vai me dar pesadelos terríveis.
- Desde que você não resolva caçar coelhos em seu sono, não tem importância - assegurei-lhe. Ele riu contra a vontade, mas fez uma tentativa final.
- Tem gosto daquilo que você raspa dos cascos dos cavalos.
- E quando foi a última vez que você lambeu o casco de um cavalo? - perguntei, com as mãos nos quadris. Lancei-lhe um olhar furioso de intensidade média, adequado para a intimidação de burocratas mesquinhos e oficiais subalternos do exército.
Ele suspirou.
- Você está falando sério, não é?
- Estou.
- Está bem, então. - Com um olhar acusatório de paciente resignação, atirou a cabeça para trás e bebeu o conteúdo da caneca de um único gole.
Um tremor convulsivo percorreu-o e ele fez pequenos ruídos de engasgamento.
- Eu disse para beber em pequenos goles - observei brandamente. - Vomite e eu farei você lamber tudo do chão.
Considerando-se a terra revirada e o capim pisoteado sob os pés, isso obviamente era uma ameaça infundada, mas ele comprimiu os lábios, apertou os olhos com força e deitou-se no travesseiro outra vez, respirando pesadamente e engolindo convulsivamente a intervalos de segundos. Peguei um banquinho baixo e sentei-me junto à cama de campanha para esperar.
- Como se sente? - perguntei, alguns minutos mais tarde.
- Zonzo - ele respondeu. Abriu uma brecha em um dos olhos e olhou-me através da estreita fenda azul, depois gemeu e fechou-a. - Como se estivesse caindo de um penhasco. É uma sensação muito desagradável, Sassenach.
- Tente pensar em alguma outra coisa por um instante - sugeri. - Algo agradável, para distrair a mente.
Franziu as sobrancelhas por um momento, depois relaxou.
- Fique de pé por um segundo, sim? - ele disse. Levantei-me obsequiosamente, imaginando o que ele estaria querendo. Ele abriu os olhos, estendeu o braço da mão sã e segurou minha nádega com força. - Pronto - ele disse. - É a melhor coisa em que posso pensar. Segurar seu traseiro sempre me faz sentir bem.
Eu ri e aproximei-me dele, de modo que sua testa pressionou-se contra as minhas coxas.
- Bem, pelo menos é um remédio portátil.
Ele fechou os olhos e continuou apertando-me com firmeza, respirando devagar e profundamente. As linhas duras de dor e exaustão em seu rosto começaram a relaxar conforme a droga surtia efeito.
- Jamie - eu disse suavemente, após um minuto. - Sinto muito.
Ele abriu os olhos, olhou para cima e sorriu, dando-me um leve apertão.
- Sim, bem - ele disse. Suas pupilas haviam começado a se contrair; seus olhos estavam insondáveis, profundos, como se ele olhasse a uma grande distância. - Diga-me, Sassenach - falou, um momento depois. - Se alguém colocasse um homem à sua frente e lhe dissesse que se você amputasse um dedo seu o homem viveria e, se não o fizesse, ele morreria, você faria isso?
- Não sei - eu disse, ligeiramente surpresa. - Se decididamente não houvesse escolha e ele fosse um bom homem... sim, imagino que faria. Mas não ia gostar nem um pouco - acrescentei de modo prático, e sua boca curvou-se um pouco.
- Não - ele disse. Sua expressão estava se tornando suave e sonhadora. - Sabia - ele disse após um instante um coronel veio me ver, quando você estava tratando os feridos? Coronel Johnson; Micah Johnson, era o nome dele.
- Não; o que ele disse?
A mão em minha nádega começava a afrouxar; coloquei minha própria mão sobre a dele, para mantê-la no lugar.
- Era a companhia dele... na batalha. Parte de Morgan e o resto do regimento logo depois da colina, no caminho dos ingleses. Se o ataque tivesse ido adiante, eles certamente teriam perdido a companhia, ele disse, e só Deus sabe o que aconteceria com o resto. - Seu sotaque das Highlands estava ficando cada vez mais pronunciado, os olhos fixos em minha saia.
- Então, você os salvou - eu disse suavemente. - Quantos homens há em uma companhia?
- Cinquenta - ele disse. - Embora eu ache que nem todos seriam mortos. - Sua mão escorregou; levantou-a e segurou-me de novo, com uma risadinha. Eu podia sentir seu hálito através da minha saia, quente em minhas coxas. - Eu estive pensando que foi como na Bíblia, não é?
- Sim? - Pressionei sua mão contra a curva do meu quadril, mantendo-a no lugar.
- Aquela parte em que Abraão negocia com o Senhor pelas cidades da Planície. "Não destruirás a cidade" - ele citou - "por causa de cinquenta homens justos?" E então Abraão começa a negociar, um pouco de cada vez, de cinquenta para quarenta, depois para trinta, vinte e dez.
Seus olhos estavam semicerrados e a voz tranquila e despreocupada.
- Eu não tive tempo de averiguar a condição moral de nenhum daqueles homens da companhia. Mas você acha que podia haver dez homens justos entre eles? Homens bons?
- Tenho certeza que sim. - Sua mão estava pesada, o braço frouxo.
- Ou cinco. Ou mesmo apenas um. Um já bastaria.
- Tenho certeza que havia um.
- O rapaz de rosto redondo que a ajudou com os feridos... é um deles?
- Sim, é.
Ele suspirou profundamente, os olhos quase fechados.
- Diga-lhe, então, que eu não lamento pelo meu dedo - ele disse.
Segurei sua mão sã com força por um minuto. Ele respirava devagar e profundamente, a boca completamente relaxada. Virei-o delicadamente de costas e coloquei a mão sobre seu peito.
- Desgraçado - sussurrei. - Eu sabia que você ia me fazer chorar.
O acampamento lá fora estava em silêncio, nos últimos instantes de repouso antes que o nascer do sol fizesse os homens se movimentarem. Eu podia ouvir o chamado esporádico de uma sentinela avançada e o murmúrio de conversas quando dois exploradores passaram perto de minha barraca, na direção da floresta para caçar. As fogueiras do acampamento haviam se transformado em cinzas, mas eu tinha três lanternas, arrumadas de modo a lançar luz sem sombras.
Coloquei uma tábua fina e quadrada de pinho macio no colo para servir de superfície de trabalho. Jamie estava deitado de barriga para baixo na cama de campanha, a cabeça virada para mim para que eu pudesse monitorar a cor de seu rosto. Estava profundamente adormecido; sua respiração vinha lenta e ele não se contraiu quando pressionei a ponta afiada de um instrumento de exame contra o dorso de sua mão. Tudo pronto.
A mão estava inchada, intumescida e descolorada, o ferimento de espada uma linha grossa e preta contra a pele dourada de sol. Fechei os olhos por um instante, segurando seu pulso, contando os batimentos cardíacos. Um-e-dois-e-três-e-quatro...
Eu raramente rezava conscientemente ao me preparar para cirurgia, mas sempre buscava algo - algo que não sabia descrever, mas sempre reconhecia: certa quietude da alma, o distanciamento da mente na qual eu pudesse me equilibrar naquele fio de navalha entre a impiedade e a compaixão, ao mesmo tempo envolvida na mais completa intimidade com o corpo sob minhas mãos e capaz de destruir o que eu tocava em nome da cura.
Um-e-dois-e-três-e-quatro...
Percebi com um sobressalto que meu próprio coração havia reduzido os batimentos; o pulso na ponta do meu dedo combinava com o pulso de Jamie, batimento por batimento, forte e devagar. Se eu estivesse esperando por um sinal, imagino que aquele serviria. Um, dois, três e já, pensei, pegando o bisturi.
Uma pequena incisão horizontal sobre as juntas dos dedos anelar e mínimo, depois para baixo, cortando a pele até quase o pulso. Soltei a pele cuidadosamente com a ponta da tesoura, depois prendi para trás a aba solta com um dos longos instrumentos de exame, enfiando-o na madeira macia da tábua.
Eu tinha um pequeno atomizador cheio com uma solução de água destilada e álcool; a esterilização sendo impossível, eu o usava para borrifar uma fina camada de umidade sobre a área da operação e lavar o primeiro afluxo de sangue. Não muito; o vasoconstritor que eu lhe dera estava funcionando, mas o efeito não duraria muito.
Delicadamente, afastei as fibras musculares - as que ainda estavam intactas - para expor o osso e o tendão que o cobria, brilhando, prateado, entre as cores vívidas do corpo. A espada quase atravessara o tendão, um centímetro acima dos ossos do carpo. Cortei as poucas fibras restantes e a mão torceu-se de forma desconcertante em reflexo.
Mordi o lábio, mas estava tudo bem; fora a mão, ele não se movera. Ele parecia diferente ao tato; sua carne tinha mais vida do que a de um homem sob o efeito de éter ou pentotal. Ele não estava anestesiado, mas apenas drogado, em estupor; a sensação de sua carne era flexível, não a flacidez maleável a que eu estava acostumada no hospital na minha própria época. Ainda assim, era um grande contraste - e um incomensurável alívio - com as convulsões vívidas e aterrorizadas que eu senti sob minhas mãos na barraca do hospital.
Afastei o tendão cortado com o fórceps. Havia a ramificação profunda do nervo ulnal, uma trama delicada de mielina branca, com seus minúsculos ramos espalhando-se até se tornarem invisíveis, dentro dos tecidos. Ótimo, avançava bem adiante na direção do dedo mínimo, de modo que eu podia trabalhar sem danificar o tronco principal do nervo.
Nunca se sabia; as ilustrações dos livros de medicina eram uma coisa, mas a primeira lição que um cirurgião aprendia era que os corpos eram assustadoramente únicos. Um estômago estaria mais ou menos onde você esperava que ele estivesse, mas os nervos e os vasos sanguíneos que o supriam podiam estar em qualquer parte das vizinhanças imediatas, e muito provavelmente variando na forma e na quantidade também.
Mas agora eu conhecia os segredos desta mão. Eu podia ver sua engenharia, as estruturas que lhe davam forma e movimento. Havia o arco belo e forte do terceiro osso metacarpiano e a delicadeza da teia de vasos sanguíneos que o supriam. O sangue aflorava, lento e vívido; um vermelho escuro na minúscula poça da região aberta; escarlate brilhante onde manchava o osso talhado; um azul real escuro na minúscula veia que pulsava abaixo da junta; uma crosta negra na borda do ferimento original, onde havia coagulado.
Eu já sabia, sem me perguntar como, que o quarto metacarpiano estava estilhaçado. Estava; a lâmina atingira perto da base do osso, lascando a pequena cabeça próxima ao centro da mão.
Iria tirá-lo, também, portanto; os pedaços de ossos livres teriam que ser removidos, de qualquer modo, para impedir que irrigassem os tecidos próximos. Remover o osso metacarpiano iria deixar os dedos médio e mínimo se juntarem, na verdade estreitando a mão e eliminando a estranha lacuna que o dedo faltante deixaria.
Puxei o dedo mutilado com força, para abrir o espaço articular entre as juntas, depois usei a ponta do bisturi para cortar o ligamento. As cartilagens se separaram com um minúsculo, mas audível pop!-, Jamie deu um sobressalto e gemeu, a mão contorcendo-se na minha.
- Calma - sussurrei para ele, segurando sua mão com firmeza. - Calma, está tudo bem. Eu estou aqui, está tudo bem.
Eu não podia fazer nada pelos rapazes que morriam no campo de batalha, mas ali, para ele, eu podia oferecer magia e saber que o feitiço daria certo. Ele me ouviu, no fundo de seus sonhos perturbados pelo ópio; ele franziu a testa e murmurou alguma coisa ininteligível, depois suspirou profundamente e relaxou, o pulso ficando frouxo outra vez sob minha mão.
Em algum lugar nas proximidades, um galo cantou, e eu olhei para a parede da barraca. Estava bem mais claro agora e uma brisa fraca do alvorecer infiltrava-se pela abertura da barraca atrás de mim, fresca em minha nuca.
Destacar o músculo subjacente com o menor dano possível. Amarrar a pequena artéria digital e dois outros vasos sanguíneos que pareciam grandes o suficiente para atrapalhar, cortar as últimas fibras e fragmentos de pele que seguravam o dedo, em seguida tirá-lo, o osso metacarpiano pendurado, surpreendentemente branco e despido, como um rabo de rato.
Foi um trabalho limpo, perfeito, mas senti uma ligeira sensação de tristeza ao dispor do pedaço de carne mutilada. Tive uma visão momentânea de Jamie segurando o recém-nascido Jemmy, contando os dedinhos das mãos e dos pés, a admiração e o prazer estampados em seu rosto. Seu pai também havia contado seus dedos.
- Tudo bem - sussurrei, tanto para mim mesma quanto para ele. - Tudo bem. Vai sarar.
O resto foi rápido. Fórceps para pinçar os minúsculos fragmentos de osso estilhaçado. Limpei o ferimento da melhor forma possível, removendo vestígios de grama e terra, até mesmo um fiapo de pano que se enfiara na carne. Depois, nada mais além de limpar as bordas irregulares do ferimento, aparando um pequeno excesso de pele e suturando as incisões. Uma pasta de alho e folhas de carvalho-branco, misturadas com álcool e espalhadas na mão em uma grossa camada, um curativo de algodão e gaze, e uma bandagem apertada de linho e emplastro adesivo, para reduzir o inchaço e estimular os dedos médio e mínimo a se aproximarem.
O sol já estava quase surgindo no horizonte; a lanterna no alto parecia turva e fraca. Meus olhos ardiam do trabalho meticuloso e da fumaça das fogueiras. Ouviam-se vozes do lado de fora, vozes de oficiais dando ordens aos soldados, acordando-os para encararem o dia - e o inimigo?
Coloquei a mão de Jamie sobre o catre, perto do rosto. Ele estava pálido, mas não excessivamente, e seus lábios estavam levemente rosados, não azulados. Deixei os instrumentos cirúrgicos em um balde de água e álcool, repentinamente cansada demais para limpá-los adequadamente. Enrolei o dedo amputado em uma atadura de linho, sem saber ao certo o que fazer com ele, e deixei-o sobre a mesa.
- É hora de acordar! É hora de acordar! - vinham os gritos ritmados dos sargentos lá de fora, pontuados por espirituosas variações e respostas ásperas dos relutantes madrugadores.
Não me dei ao trabalho de me despir; se houvesse luta hoje, logo eu seria acordada. Mas não Jamie. Eu não tinha nada a temer; independente do que acontecesse, ele não iria lutar hoje.
Soltei meus cabelos e sacudi-os por cima dos ombros, suspirando de alívio. Em seguida, deitei-me ao seu lado no catre, bem junto dele. Ele estava de barriga para baixo; eu podia ver a elevação musculosa de suas nádegas, lisa sob o cobertor que o cobria. Movida por um impulso, coloquei a mão em seu traseiro e apertei.
- Bons sonhos - eu disse, deixando o cansaço tomar conta de mim.
SEPARADO PARA SEMPRE DE AMIGOS E PARENTES
O tenente lorde Ellesmere finalmente matara um rebelde. Vários, ele achava, apesar de não poder ter certeza sobre aqueles em que atirara; alguns deles caíram, mas podiam estar apenas feridos. Ele tinha certeza sobre o homem que atacara um dos canhões ingleses, com um grupo de outros rebeldes. Ele cortara o sujeito ao meio com um sabre de cavalaria e sentiu uma estranha dormência no braço da espada durante vários dias depois, fazendo-o flexionar a mão esquerda, a intervalos regulares para se certificar de que ainda conseguia usá-la.
A dormência não se limitava a seu braço.
Os dias que se seguiram à batalha no acampamento britânico eram passados em parte na retirada ordenada dos feridos, no enterro dos mortos e na reorganização das tropas. Ou do que restara das tropas para ser reorganizado. A deserção prevalecia; havia um fluxo constante de partidas furtivas - certo dia, uma companhia inteira dos homens de Brunswick desertou.
Ele supervisionou mais de um destacamento para enterrar os mortos, observando com o rosto constrito enquanto os homens - e garotos - que ele conhecera eram consignados à terra. Nos dois primeiros dias, não haviam enterrado os corpos bastante fundo e foram obrigados a ouvir durante toda a noite os uivos e rosnados de lobos lutando por causa dos cadáveres que desenterraram de suas sepulturas rasas. Enterraram novamente o que sobrou no dia seguinte, mais fundo.
Havia fogueiras acesas a cada cem metros ao redor do acampamento à noite, pois os atiradores de elite americanos aproximavam-se na escuridão, matando as sentinelas avançadas.
Os dias eram escaldantes, as noites desgraçadamente frias - e ninguém descansava. Burgoyne emitira uma ordem de que nenhum oficial ou soldado jamais deveria dormir sem roupas, e William não trocava suas roupas de baixo há mais de uma semana. Não importava como ele cheirava; seu próprio fedor era indetectável. Os homens eram obrigados a estar em suas fileiras, com suas armas, uma hora antes do amanhecer, e permanecer ali até o sol ter dissipado a neblina, para ter certeza de que a névoa não escondia americanos prontos para atacar.
A ração diária de pão foi cortada. Carne de porco salgada e farinha estavam acabando e os mascates que acompanhavam os acampamentos militares já não tinham tabaco e conhaque, para descontentamento das tropas alemãs. Do lado bom, as defesas britânicas estavam em esplêndida ordem, com duas largas fortificações construídas e mil homens enviados para cortar árvores, a fim de abrir campos de tiro para a artilharia. E Burgoyne anunciara que o general Clinton era esperado em dez dias, com uma tropa de apoio - e comida, esperava-se. Tudo que tinham a fazer era esperar.
- Os judeus esperam o Messias assim como nós esperamos o general Clinton - brincou o ober-leftenant Gruenwald, que por algum milagre sobrevivera a seu ferimento em Bennington.
- Ha-ha - William disse.
O acampamento americano estava animado, mais do que pronto para terminar o que tinham começado. Infelizmente, enquanto o acampamento britânico estava com falta de rações, os americanos estavam com falta de munição e pólvora. O resultado foi um período de nervosa estagnação, durante o qual os americanos constantemente faziam incursões na periferia do acampamento britânico, mas não podiam fazer nenhum progresso verdadeiro.
Ian Murray achava a situação extremamente maçante e, depois que uma investida simbólica no nevoeiro resultara em que um companheiro descuidado pisara em uma escápula de canhão jogada fora e perfurara o pé, ele decidiu que isso era uma desculpa aceitável para fazer uma visita à barraca do hospital onde Rachel Hunter ajudava seu irmão.
Mas a perspectiva deixou-o tão animado que ele não prestou a devida atenção onde pisava na névoa e mergulhou de cabeça em uma ribanceira, batendo com a cabeça de raspão em uma pedra. E foi assim que os dois homens voltaram ao acampamento mancando, um apoiando o outro, e se arrastaram até a barraca do hospital.
Estava movimentado lá dentro; não era ali que estavam os feridos na batalha, mas os que tinham aflições triviais iam para tratamento. Ian não quebrara a cabeça, mas estava vendo tudo em duplicata e fechou um dos olhos na esperança de que isso o ajudasse a localizar Rachel.
- Ho ro - alguém atrás dele disse com grande aprovação - mo nighean donn boidheach!
Por um instante de tontura, achou que era seu tio falando e pestanejou estupidamente, perguntando-se por que seu tio Jamie estaria flertando com sua tia enquanto ela estava trabalhando - mas tia Claire não estava ali, seu raciocínio lento o relembrou, portanto o que...
Com uma das mãos sobre o olho para impedir que ele caísse de sua cabeça, virou-se cuidadosamente e viu um homem na porta da barraca.
O sol da manhã acendia fagulhas dos cabelos do sujeito e Ian ficou boquiaberto, sentindo como se tivesse levado um soco na boca do estômago.
Não era tio Jamie, pôde ver isso imediatamente quando o homem entrou, também ajudando um companheiro que mancava. O rosto estava errado; vermelho e castigado pelo tempo, com feições bem-humoradas e nariz arrebitado; os cabelos eram cor de gengibre, não ruivos, e recuavam acentuadamente nas têmporas. Tinha uma constituição sólida, não era extraordinariamente alto, mas a maneira como se movia... como um lince, mesmo sobrecarregado com o peso do amigo, e por alguma razão Ian não conseguia se livrar da persistente impressão de Jamie Fraser.
O homem de cabelos cor de gengibre vestia um kilt, ambos vestiam. Escoceses das Highlands, pensou, completamente zonzo. Mas ele soubera disso no instante em que o sujeito falou.
- Có thu? - Ian perguntou abruptamente. Quem é você?
Ouvindo o gaélico, o homem olhou para ele, surpreso. Examinou Ian de cima a baixo, observando seu traje mohawk, antes de responder.
- Is mise Seaumais Mac Choinnich à Boisdale - ele respondeu, educadamente.
- Có tha faighneachd? - Sou Hamish Mackenzie, de Boisdale. Quem pergunta?
- Ian Murray - ele respondeu, tentando clarear as ideias. O nome parecia-lhe vagamente familiar, mas por que não o seria? Ele conhecia centenas de MacKenzies. - Minha mãe era Mackenzie - acrescentou, da forma usual de estabelecer relações com estranhos. - Ellen Mackenzie, de Leoch.
Os olhos do sujeito arregalaram-se.
- Ellen, de Leoch? - exclamou o homem, empolgado. - Filha daquele que chamavam Jacob Ruaidh?
Em sua empolgação, a mão de Hamish apertou seu amigo com força e o homem deu um ganido. Isso atraiu a atenção da jovem - aquela que Hamish saudara como "Oh, bela senhorita cor da noz" - e ela veio correndo ver do que se tratava.
Ela estava da cor da noz, Ian notou; Rachel Hunter, bronzeada do sol até o tom suave de uma noz, o que aparecia de seus cabelos por baixo do lenço da cor da casca da noz, e ele sorriu diante do pensamento. Ela o viu e estreitou os olhos.
- Bem, se consegue rir como um macaco, então não está gravemente ferido. Por que... - Parou, perplexa de ver Ian Murray abraçado a um escocês das Highlands em seu kilt e que chorava de alegria. Ian não estava chorando, mas estava inegavelmente contente.
- Vai querer conhecer meu tio Jamie - ele disse, desvencilhando-se habilmente do abraço. - Seaumais Ruaidh, acho que era assim que o chamava.
Jamie Fraser estava de olhos fechados, cautelosamente explorando a dor em sua mão. Era aguda, forte o suficiente para deixá-lo nauseado, mas com aquela dor profunda, opressiva, comum a ossos quebrados. Ainda assim, era uma dor de cura. Claire costumava falar de ossos se soldando como se tecessem uma malha, e ele sempre achara que isso era mais do que uma simples metáfora; às vezes, sentia como se alguém estivesse de fato enfiando agulhas de aço no osso e forçando as pontas estilhaçadas a se refazer em algum formato, independente de como a carne ao redor se comportasse.
Devia olhar para sua mão, ele sabia disso. Tinha que se acostumar com ela, afinal. Ele dera uma rápida olhada e isso o deixara tonto e a ponto de vomitar por puro atordoamento. Não conseguia reconciliar a visão, a sensação, com a forte lembrança de como sua mão deveria ser.
Mas ele já fizera isso antes, lembrou a si mesmo. Ele se acostumara com as cicatrizes e a rigidez. No entanto... lembrava-se de como era sua mão jovem, de como a sentia, tão cômoda, flexível e sem dor, fechada em torno do cabo de uma enxada, do punho de uma espada. Segurando uma pena de escrever - bem, não. Sorriu amargamente consigo mesmo. Isso não tinha sido fácil, mesmo quando seus dedos estavam na melhor forma.
Ele seria capaz de escrever com essa mão agora?, perguntou-se repentinamente, e por curiosidade flexionou-a um pouco. A dor o fez arfar, mas... seus olhos estavam abertos, fixos na mão. A visão desconcertante de seu dedo mínimo pressionado junto ao dedo médio de fato dava um aperto em sua barriga, mas... seus dedos curvaram-se. Era uma dor terrível, mas era apenas dor; não havia resistência, nenhum impedimento persistente causado pelo dedo rígido. Sua mão... funcionava.
"Pretendo deixá-lo com a mão funcional." Podia ouvir a voz de Claire, ansiosa, mas segura.
Sorriu ligeiramente. Não adiantava argumentar com a mulher sobre nenhuma questão médica.
Entrei na barraca para pegar meu pequeno instrumento de cauterização e encontrei Jamie sentado no catre, lentamente flexionando a mão ferida e contemplando o dedo amputado em uma caixa ao seu lado. Eu o havia embrulhado rapidamente em um emplastro e agora parecia um verme mumificado.
- Ei - eu disse suavemente. - Eu vou, hum, jogar isso fora, está bem?
- Como? - Ele estendeu o indicador experimentalmente, tocou o dedo, depois retirou a mão bruscamente, como se o dedo amputado tivesse se movido de repente. Emitiu um pequeno som nervoso, que não chegava a ser uma risadinha.
- Queimá-lo? - sugeri. Esse era o método usual para dispor de membros amputados em campos de batalha, embora eu pessoalmente nunca tivesse feito isso. A ideia de fazer uma pira funerária para a cremação de um único dedo pareceu-me repentinamente absurda - apesar de não mais absurda do que simplesmente atirá-lo em uma das fogueiras para o preparo de comida e esperar que ninguém notasse.
Jamie fez um ruído de dúvida na garganta, indicando que ele não gostava da ideia.
- Bem... imagino que se pode defumá-lo - eu disse, igualmente em dúvida. - E guardá-lo no seu sporran como suvenir. Como o Jovem Ian fez com a orelha de Neil Forbes. Sabe se ele ainda a tem?
- Sim, tem. - A cor de Jamie começou a voltar, à medida que recuperava seu autocontrole. - Mas não, não acho que eu possa fazer isso.
- Eu podia conservá-lo em álcool de vinho - propus. Isso evocou o fantasma de um sorriso.
- Aposto dez a um que alguém iria bebê-lo antes do final do dia, Sassenach. - Eu mesma achei que essa era uma aposta generosa. Mil a um era mais provável. Eu só conseguia manter meu álcool medicinal intato fazendo um dos mais ferozes amigos índios de Ian guardá-lo, quando eu não o estava usando - e dormir com o barril perto de mim à noite.
- Bem, acho que isso deixa o enterro como única opção.
- Mmmhum. - Esse som indicava concordância, mas com reservas, e eu ergui os olhos para ele.
- O que foi?
- Sim, bem - ele disse, um pouco timidamente. - Quando Fergus perdeu a mão, nós... bem, foi ideia de Jenny. Mas fizemos uma espécie de funeral, sabe?
Mordi o lábio.
- Bem, por que não? Vai ser um acontecimento em família ou devemos convidar todo mundo?
Antes que ele pudesse responder, ouvi a voz de Ian do lado de fora, conversando com alguém, e um instante depois sua cabeça desgrenhada surgiu através da porta da barraca. Um dos olhos estava roxo e inchado, e havia um galo considerável em sua testa, mas ele ria de orelha a orelha.
- Tio Jamie? - ele disse. - Tem uma pessoa aqui para vê-lo.
- Como é que você veio parar aqui, a charaid? - Jamie perguntou, em algum momento depois da terceira garrafa. Havíamos jantado há muito tempo e a fogueira do acampamento queimava fracamente.
Hamish limpou a boca e devolveu a nova garrafa.
- Aqui - ele repetiu. - Aqui neste fim de mundo, você quer dizer? Ou aqui, lutando contra o rei? - Lançou um olhar direto e azul a Jamie, tão parecido com o do próprio Jamie que ele sorriu ao perceber.
- A segunda pergunta é uma resposta da primeira? - ele disse, e Hamish esboçou um sorriso em resposta.
- Sim, isso mesmo. Você sempre foi rápido como um beija-flor, a Sheaumais. Tanto física quanto mentalmente. - Vendo pela minha expressão que eu talvez não fosse tão rápida em minhas percepções, virou-se para mim.
"Foram as tropas do rei que mataram meu tio, os soldados do rei que mataram os guerreiros do clã, que destruíram a terra, que deixaram as mulheres e crianças desamparadas, que destruíram minha casa e me exilaram, que mataram metade das pessoas que me restaram de frio e de fome e das doenças das terras inóspitas. - Ele falou calmamente, mas com uma paixão que ardia em seus olhos.
"Eu tinha onze anos quando vieram ao castelo e nos exilaram. Fiz doze anos no dia em que me obrigaram a fazer meu juramento ao rei; disseram que eu era um homem. E quando finalmente chegamos à Nova Escócia... eu era."
Virou-se para Jamie.
- Também o fizeram prestar juramento, a Sheaumais?
- Sim - Jamie disse brandamente. - Mas um juramento sob coação não obriga um homem, nem o afasta do conhecimento do que é certo.
Hamish estendeu a mão e Jamie apertou-a, embora não olhassem um para o outro.
- Não - ele disse, com determinação e certeza. - Isso não faz.
Talvez não; mas eu sabia que ambos estavam pensando, como eu, nas palavras daquele juramento: Que eu repouse em uma sepultura não consagrada, separado para sempre de amigos e parentes. E ambos pensando - como eu - quais eram as chances de que fosse exatamente esse o destino que teriam.
E eu também.
Limpei a garganta.
- Mas e os outros? - eu disse, impelida pela lembrança de tantos que eu conhecera na Carolina do Norte e sabendo que o mesmo era verdade para muitos no Canadá. - Os escoceses das Highlands que são legalistas?
- Sim, bem - Hamish disse suavemente, e olhou para dentro do fogo, as linhas de seu rosto esculpidas pela sua claridade. - Lutaram corajosamente, mas seu coração estava morto. Só querem sossego agora e que os deixem em paz. Mas a guerra não deixa ninguém em paz, não é? - Olhou repentinamente para mim, e por um surpreendente momento eu vi Dougal Mackenzie olhando através de seus olhos, aquele homem violento, impaciente, que tinha fome de guerra. Sem esperar uma resposta, ele deu de ombros e continuou: - A guerra os encontrou outra vez; não têm escolha senão lutar. Mas qualquer um pode ver que bando patético o Exército Continental é... ou era. - Ergueu a cabeça, halançando-a um pouco, como se o fizesse para si mesmo, à visão das fogueiras do acampamento, das barracas, da imensidão de névoa cravejada de estrelas que se estendia acima de nós, cheia de fumaça e poeira, e do cheiro de armas e fezes. Achavam que os rebeldes seriam exterminados, e rapidamente. Independentemente de juramento, quem senão um tolo iria se unir a uma empreitada tão arriscada?
Um homem que não tivesse tido chancee de lutar antes, pensei.
Ele sorriu de viés para Jamie.
- Fiquei surpreso de não termos sido exterminados - ele disse, soando de fato um pouco admirado. - Você também não ficou surpreso, a Sheaumais?
- Estupefato - Jamie disse, um leve sorriso em seu próprio rosto. - Mas fiquei contente. E contente por você também... A Sheaumais.
Conversaram durante quase a noite inteira. Quando resvalaram para o gaélico, levantei-me, coloquei a mão no ombro de Jamie, como sinal de boa-noite, e entrei embaixo de meus cobertores. Exausta com o trabalho do dia, peguei no sono imediatamente, embalada pelo som de sua conversa tranquila, como o som de abelhas nas urzes. A última coisa que vi antes de o sono me dominar foi o rosto do Jovem Ian do outro lado da fogueira, extasiado em ouvir o escocês que desaparecera exatamente quando ele próprio nascia.
UM VISITANTE CAVALHEIRO
Sra. Fraser? - uma agradável voz masculina falou atrás de mim e eu me virei, deparando-me com um oficial troncudo, de ombros largos, na porta da minha barraca, em manga de camisa e colete, segurando uma caixa em um dos braços.
- Sim, sou eu. Em que posso ajudá-lo?
Ele não parecia doente; na realidade, tinha uma aparência mais saudável do que a maior parte do exército, o rosto muito castigado pelas intempéries, mas cheio e rosado. Ele sorriu, um sorriso repentino, encantador, que transformou totalmente seu nariz grande e adunco, e as grossas sobrancelhas.
- Eu espero que possamos fazer um pequeno negócio, sra. Fraser. - Ergueu uma das sobrancelhas peludas e, ao meu gesto convidando-o a entrar, agachou-se apenas um pouco e entrou na barraca.
- Suponho que isso dependa do que você está procurando - eu disse, com um olhar de curiosidade para a sua caixa. - Se for uísque, receio que não possa lhe dar. - Havia de fato um pequeno barril dessa preciosa substância escondido sob a mesa no momento, juntamente com um barril um pouco maior do meu álcool medicinal bruto - e o cheiro deste último era forte no ar, já que eu estava colocando ervas em infusão nele. Aquele cavalheiro não era o primeiro a ser seduzido pelo cheiro - soldados de todos os níveis eram atraídos como moscas.
- Oh, não - garantiu-me, apesar de lançar um olhar interessado para a mesa atrás de mim, onde eu tinha vários jarros em que produzia o que eu esperava fosse penicilina. - Soube, no entanto, que a senhora possui um estoque de casca de cinchona. É verdade?
- Bem, sim. Por favor, sente-se. - Indiquei-lhe o banquinho de meus pacientes e eu mesma me sentei, joelho contra joelho. - Você sofre de malária? - Eu achava que não; seus olhos estavam límpidos, não amarelados.
- Não, graças a Deus. Mas tenho um cavalheiro sob meu comando, um amigo particular, que sofre muito, e nosso médico não tem nenhuma casca de quina. Esperava que a senhora pudesse ser convencida a fazer uma troca...?
Ele colocara a caixa na mesa ao nosso lado e nesse momento abriu-a com um piparote. Era dividida em pequenos compartimentos e continha um extraordinário sortimento de coisas: galões, fitas de seda, um par de travessas de tartaruga, uma sacolinha de sal, uma caixa de pimenta, uma caixa esmaltada de rapé, um broche de estanho na forma de um lírio, várias meadas de coloridos fios de seda para bordar, um feixe de paus de canela e uma série de pequenos frascos cheios aparentemente de ervas. E uma garrafa de vidro, cujo rótulo dizia...
- Láudano! - exclamei, estendendo a mão involuntariamente. Parei, mas o oficial gesticulou, indicando-me que prosseguisse, e eu retirei o frasco cuidadosamente de seu lugar, destampei-o e passei o bocal cautelosamente pelo nariz. O cheiro pungente, enjoativamente doce do ópio, flutuou para fora, um gênio na garrafa. Limpei a garganta e recoloquei a rolha.
Ele me observava com interesse.
- Eu não tinha certeza do que lhe agradaria mais - ele disse, abanando a mão para o conteúdo da caixa. - Eu tinha uma loja, sabe. A maior parte dos produtos era farmacêutica, mas artigos de luxo também. Aprendi no decorrer dos negócios que é sempre melhor dar às senhoras uma boa escolha; elas tendem a ser muito mais discriminadoras do que os homens.
Lancei-lhe um olhar incisivo, mas não era conversa fiada; ele sorriu para mim outra vez e achei que ele era um desses homens incomuns - como Jamie que realmente gostava das mulheres, além do óbvio.
- Acho que podemos ajudar um ao outro, então - eu disse, devolvendo o sorriso. - Eu não deveria perguntar, imagino, não quero atrasá-lo; eu lhe darei o que precisa para seu amigo, mas, pensando em um possível negócio futuro, o senhor tem mais láudano?
Ele continuou a sorrir, mas seu olhar se aguçou; possuía olhos incomuns, aquele cinza claro em geral descrito como "cor de cuspe".
- Ora, sim - ele disse devagar. - Tenho bastante. A senhora... O usa regularmente?
Ocorreu-me que ele estava se perguntando se eu era viciada; não era absolutamente incomum, em círculos onde o láudano podia ser obtido com facilidade.
- Eu mesma não uso, não - respondi sem me alterar. - E o administro aos que precisam com considerável cautela. Mas alívio da dor é uma das coisas mais importantes que eu posso oferecer a algumas pessoas que me procuram... Deus sabe que não posso oferecer a cura a muitas delas.
Suas sobrancelhas ergueram-se.
- Essa é uma afirmação bastante inusitada. A maioria das pessoas em sua profissão parece prometer a cura a praticamente todo mundo.
- Como é mesmo aquele ditado? "De boas intenções o inferno está cheio"? - Sorri, mas sem muito humor. - Todo mundo quer a cura e certamente não há nenhum médico que não queira proporcioná-la. Mas há muitas coisas que estão além do poder de um médico e, embora você possa não dizer isso a um paciente, é bom você conhecer seus próprios limites.
- Acha mesmo? - Ele inclinou a cabeça para o lado, olhando-me com curiosidade. - Não acha que a admissão de tais limites, a priori, e eu não falo apenas no sentido médico, mas em qualquer área da atividade humana, que tal admissão em si mesma estabelece os limites? Isto é, essa expectativa pode impedir uma pessoa de realizar tudo que for possível, pois ela presume que algo não é possível e portanto não se esforça com todas as suas forças para realizá-lo?
Pestanejei para ele, um pouco surpresa.
- Bem... sim - respondi devagar. - Se coloca dessa forma, acho que concordo com você. Afinal - abanei a mão na direção da aba de entrada da barraca, indicando o exército ao redor -, se eu não, se nós não acreditássemos que uma pessoa pode realizar coisas além de toda expectativa razoável, eu e meu marido estaríamos aqui?
Ele riu.
- Brava, senhora! Sim, um observador imparcial chamaria, eu acho, esta aventura de pura loucura. E poderia estar certo - acrescentou, com um jeito irônico da cabeça. - Mas vão ter que nos derrotar, de qualquer forma. Nós não vamos desistir.
Ouvi vozes do lado de fora; Jamie, conversando informalmente com alguém, e no instante seguinte, enfiando a cabeça pela abertura da barraca.
- Sassenach - ele começou a dizer você poderia - estancou de repente, ao ver meu visitante, e endireitou-se com um cumprimento formal. - Senhor.
Olhei de novo para o visitante, surpresa; a atitude de Jamie deixava claro que aquele era algum tipo de oficial superior; eu achara que ele devia ser talvez um capitão ou um major. Quanto ao próprio oficial, ele balançou a cabeça, com um cumprimento amistoso, mas reservado.
- Coronel. Sua esposa e eu estávamos discutindo a filosofia do empreendimento. O que me diz... um homem sábio conhece seus limites ou um homem corajoso os nega? E de que forma o senhor se declara?
Jamie pareceu ligeiramente surpreso e olhou para mim; ergui um dos ombros quase imperceptivelmente.
- Ah, bem - ele disse, voltando a atenção novamente para o meu visitante. - Ouvi dizer que o alcance de um homem deve exceder o que ele pode agarrar, ou para que serviria o céu?
O oficial fitou-o por um instante, boquiaberto, depois riu com prazer, dando um tapa no joelho.
- O senhor e sua esposa são únicos! São meu tipo de gente. Isso é esplêndido; lembra-se de onde ouviu isso?
Jamie lembrava-se; ouvira de mim, mais de uma vez ao longo dos anos. Mas ele apenas sorriu e deu de ombros.
- Um poeta, eu creio, mas esqueci o nome.
- Bem, um sentimento perfeitamente expresso, ainda assim, e eu pretendo experimentá-lo diretamente em Granny, embora imagine que ele apenas piscará estupidamente para mim através de seus óculos e reclamará da falta de suprimentos. Esse é um homem que conhece seus limites - observou para mim, ainda de bom humor, mas com um tom distintamente cortante na voz. - Conhece seus limites desgraçadamente pequenos e não deixa ninguém excedê-los. O céu não é para alguém como ele.
Essa última observação foi mais do que irritada; o sorriso desaparecera de seu rosto e eu vislumbrei uma raiva ardente no fundo de seus olhos pálidos. Tive um momento de inquietação; "Granny" só podia ser o general Gates e este homem era evidentemente um membro descontente do alto comando. Eu sinceramente esperava que Robert Browning e eu não tivéssemos colocado Jamie no meio de alguma enrascada.
- Bem - eu disse, tentando minimizar a questão -, não podem derrotá-lo se você não desistir.
A sombra que anuviara sua fronte clareou e ele sorriu para mim, com uma expressão alegre outra vez.
- Oh, eles nunca me derrotarão, sra. Fraser. Acredite-me!
- Acredito - afirmei, virando-me para abrir uma de minhas caixas. - Deixe-me encontrar a casca de cinchona para você... hã... - hesitei, sem saber sua patente, e ele notou, batendo a mão na testa como um pedido de desculpas.
- Minhas desculpas, sra. Fraser! O que vai pensar de um homem que surge de repente em sua presença, grosseiramente pedindo medicamentos e se esquecendo até mesmo de se apresentar adequadamente?
Ele pegou o pequeno pacote de casca triturada de minha mão, reteve-a e inclinou-se numa pronunciada mesura, delicadamente beijando os nós dos meus dedos.
- General de divisão Benedict Arnold. Seu criado, madame.
Jamie ficou olhando o general se afastar, a testa ligeiramente franzida. Em seguida, olhou novamente para mim e sua fronte se desanuviou instantaneamente.
- Você está bem, Sassenach? Está com uma aparência de quem está prestes a desmaiar.
- Na verdade, é bem provável - eu disse, um pouco zonza, buscando meu banquinho. Sentei-me e descobri o novo frasco de láudano na mesa ao meu lado. Peguei-o, achando em seu peso sólido a tranquilidade que precisava depois do choque da descoberta de quem era o homem que acabava de nos deixar. - Eu estava mentalmente preparada para me deparar com George Washington ou Benjamin Franklin em pessoa em algum momento - eu disse. - Até mesmo John Adams. Mas não esperava ele... e eu gostei dele - acrescentei melancolicamente.
As sobrancelhas de Jamie ainda estavam erguidas e ele olhou para a garrafa em meu colo como se imaginasse se eu andara tomando um gole.
- Por que você não deveria gostar... oh. - Seu rosto mudou. - Sabe alguma coisa sobre ele?
- Sei, sim. E não é algo que eu queira saber. - Engoli em seco, sentindo-me um pouco nauseada. - Ele ainda não é um traidor, mas vai ser.
Jamie olhou para trás por cima do ombro, para ter certeza de que não fôssemos ouvidos, depois voltou e sentou-se no banquinho do paciente, segurando minhas mãos nas suas.
- Conte-me - ele disse, a voz baixa.
Havia limites para o que eu podia lhe contar - e não pela primeira vez lamentei não ter prestado mais atenção ao dever de casa de história de Brianna, já que isso formava o núcleo do meu conhecimento específico com relação à Revolução Americana.
- Ele lutou em nosso... do lado americano por algum tempo, e era um soldado brilhante, embora eu não saiba os detalhes. Mas em determinado momento ele ficou desiludido, decidiu mudar de lado e começou a fazer tentativas de diálogo com os ingleses, usando um homem chamado John André como seu mensageiro. André foi capturado e enforcado, isso eu sei. Mas acho que Arnold conseguiu fugir para a Inglaterra. Para um general americano virar casaca... foi um ato de traição tão espetacular que o nome "Benedict Arnold" tornou-se sinônimo de traidor. Irá se tornar, quero dizer. Se alguém comete um terrível ato de traição, você o chama de "Benedict Arnold".
A sensação de enjoo não passara. Em algum lugar - exatamente neste instante - um major John André estava cuidando de sua missão alegremente, provavelmente sem saber do que o aguardava no futuro.
- Quando? - Os dedos de Jamie pressionando os meus tiraram minha atenção do iminente destino do major André e o trouxeram de volta para a questão mais urgente.
- Este é o problema - eu disse, sentindo-me impotente. - Não sei. Ainda não. Eu acho que ainda não.
Jamie pensou por um instante, as sobrancelhas arriadas.
- Ficarei de olho nele, então - disse serenamente.
- Não - eu disse, em reflexo. Fitamo-nos por um longo instante, lembrando-nos de Carlos Stuart. Já sabíamos por experiência que tentar interferir na história podia acarretar graves consequências inesperadas - se é que isso podia ser feito. Não tínhamos a menor ideia do que poderia transformar Arnold de patriota - o que ele sem dúvida era no momento - no traidor que ele viria a ser. Seria sua briga com Gates o pequenino grão de areia que iria formar o núcleo de uma pérola traiçoeira? - Não se sabe que pequeno fato pode afetar a mente de uma pessoa - ressaltei. - Veja Robert Bruce e aquela aranha.
Isso o fez sorrir.
- Serei cauteloso, Sassenach - ele disse. - Mas eu vou observá-lo.
O TRUQUE DO CHAPÉU
7 de outubro de 1777
..Bem, então, ordene a Morgan que inicie o jogo.
General Horatio Gates
Em uma tranquila manhã de outono, revigorante e dourada, um desertor inglês entrou no acampamento americano. Burgoyne estava enviando uma tropa de reconhecimento, ele disse. Dois mil homens, para testar a força da ala direita americana.
- Os olhos de Granny Gates quase saltaram através dos óculos - Jamie me contou, apressadamente recarregando sua caixa de cartuchos. - E não é para menos.
O general Arnold, presente quando a notícia chegou, insistiu com Gates para enviar uma tropa forte contra esse ataque. Gates, de forma típica, se mostrara cauteloso, e quando Arnold pediu permissão para sair e ver por si mesmo o que os ingleses estavam fazendo lançara um olhar frio ao seu subordinado e dissera: "Tenho medo de confiar em você, Arnold."
- As coisas degringolaram a partir daí - Jamie disse, com uma leve careta. - O fim de tudo isso foi que Gates disse a Arnold, e cito exatamente suas Palavras, Sassenach, "General Arnold, não tenho nada para você fazer. Isso não é assunto seu".
Senti um calafrio que nada tinha a ver com a temperatura do ar matinal. Teria sido esse o momento? Aquilo que faria - ou iria fazer - Benedict Arnold voltar-se contra a causa pela qual lutava? Jamie viu o que eu estava pensando, Pois levantou um dos ombros e disse simplesmente:
- Ao menos, não tem nada a ver conosco desta vez.
- Isso é reconfortante - eu disse, sinceramente. - Cuide-se, hein?
- Sim - ele disse, pegando seu rifle.
Desta vez, ele pôde me dar um beijo de despedida pessoalmente.
O reconhecimento inglês tinha um propósito duplo: não só ver exatamente onde os americanos estavam - pois o general Burgoyne não fazia ideia verdadeiramente; há muito os desertores americanos haviam parado de procurá-los - como também obter forragem muito necessária para os animais restantes. Consequentemente, as companhias de vanguarda pararam em um promissor campo de trigo.
William enviou seus homens da infantaria para sentarem-se em fileiras duplas entre os pés de trigo, enquanto os exploradores encarregados de obter provisões começavam a cortar os grãos e carregar os cavalos. Um tenente dos dragões, um irlandês de cabelos escuros chamado Absolute, acenou do outro lado da plantação, chamando-o para um jogo de azar em sua barraca naquela noite. Ele se preparava para responder quando o homem ao seu lado deixou escapar um grito abafado e desmoronou no chão. Ele nunca ouviu a bala, mas agachou-se automaticamente, gritando para seus homens.
No entanto, nada mais aconteceu e, após alguns instantes, eles se levantaram cautelosamente e continuaram seu trabalho. Entretanto, começaram a ver pequenos grupos de rebeldes deslocando-se furtivamente pelo meio das árvores, e William não teve dúvida de que estavam sendo cercados. Mas quando disse isso a outro oficial o sujeito assegurou-lhe que os rebeldes haviam decidido ficar atrás de suas defesas para serem atacados.
Logo perceberam seu erro quando, no meio da tarde, um grande grupo de americanos apareceu na floresta à sua esquerda e tiros de canhão foram deflagrados, lançando balas de seis e doze libras, que teriam feito um grande estrago não fosse pelas árvores intervenientes.
Os soldados da infantaria dispersaram-se como codornas, apesar das chamadas de seus oficiais. William viu Absolute arremetendo-se pelo meio do trigal atrás de um grupo de seus homens e, virando-se, segurou um cabo de uma de suas próprias companhias.
- Reúna os homens! - ele disse e, sem esperar uma resposta, agarrou as rédeas de um dos cavalos dos exploradores, um cavalo baio assustado. Sua intenção era cavalgar até o acampamento principal e pedir reforços, pois obviamente os americanos estavam atacando em peso.
Nunca chegou lá, pois, ao virar a cabeça do cavalo, o general de brigada entrou no campo.
Jamie Fraser agachou-se no bosquete na base do campo de trigo com um grupo dos homens de Morgan, escolhendo seus alvos como podia. Era uma batalha das mais ferozes que ele já vira e a fumaça dos canhões na floresta flutuava pelo campo em nuvens grossas e sufocantes. Ele viu o homem a cavalo, um oficial inglês de alto escalão, a julgar pelos galões em seu uniforme. Dois ou três outros, menos graduados, estavam perto dele, também a cavalo, mas ele só tinha olhos para aquele.
Gafanhotos saltavam do campo como pedras de granizo, em pânico diante das botas pisoteando e atropelando; um chocou-se diretamente contra sua face, zumbindo, e ele afastou-o com um tapa, o coração martelando como se tivesse sido uma bala de mosquete.
Ele reconheceu o sujeito, embora apenas pelo seu uniforme de general. Já encontrara Simon Fraser de Balnain duas ou três vezes, mas quando ambos eram garotos nas Ighlands - Simon era alguns anos mais novo e as vagas lembranças de Jamie de um menino alegre, rechonchudo e pequeno, que vinha correndo atrás dos garotos mais velhos, agitando um galho maior do que ele próprio quando jogavam shinty, nada tinham a ver com o homem vigoroso e corpulento que se erguia agora em seus estribos, gritando e brandindo sua espada, tentando reunir suas tropas apavoradas pela simples força de sua personalidade.
Os ajudantes de ordens movimentavam suas montarias ao redor do cavalo do general, tentando formar um escudo, obviamente instando-o a se afastar dali, mas ele os ignorava. Jamie captou uma olhadela de relance de um rosto que se voltou para a floresta e logo se desviou - sem dúvida, eles sabiam que as árvores estavam cheias de atiradores com seus rifles, ou podiam estar, e tentavam se manter fora de alcance.
- Lá está ele! - Era Arnold, arremetendo sua pequena égua marrom através do mato cerrado, o rosto iluminado com uma euforia selvagem. - Os generais! - ele gritou, erguendo-se em seus próprios estribos e estendendo um braço. - Acertem os generais, rapazes! Cinco dólares para o soldado que tirar o gordo filho da mãe da sela!
Os estouros aleatórios de tiros de rifle responderam imediatamente. Jamie viu a cabeça de Daniel Morgan virar-se abruptamente, os olhos ferozes à voz de Arnold e o atirador começou a correr em sua direção, com toda a rapidez que suas pernas emperradas pelo reumatismo lhe permitiam.
- Outra vez! Tentem outra vez! - Arnold bateu o punho cerrado na coxa, avistou Jamie observando-o. - Você. Atire nele, não pode?
Jamie deu de ombros e, levando o rifle ao ombro, mirou deliberadamente Para o alto e para fora. O vento virara e a fumaça do tiro fez seus olhos arderem, mas ele viu um dos suboficiais perto de Simon dar um salto e colocar a mão na cabeça, torcendo-se na sela para ver seu chapéu rolar para dentro do trigal.
Ele teve vontade de rir, embora sua barriga tenha se contraído um pouco, ao perceber que quase atingira a cabeça do sujeito, inteiramente por acidente. O rapaz - sim, ele era jovem, alto e magro - ergueu-se nos estribos e sacudiu o Punho cerrado para a floresta.
- Me deve um chapéu, senhor! - ele gritou.
A risada alta e penetrante de Arnold ecoou pela floresta, nítida acima da gritaria, e os homens que o acompanhavam assoviaram e vaiaram como gralhas.
- Venha aqui, rapaz, e eu lhe compro dois! - Arnold gritou de volta, depois conduziu seu cavalo em um círculo nervoso, gritando com os atiradores. - Desgraçados, vocês são cegos? Será que ninguém consegue matar aquele maldito general para mim?
Ouviram-se um ou dois tiros através dos galhos das árvores, mas a maioria dos homens tinha visto Daniel Morgan correndo pesadamente na direção de Arnold como uma árvore animada, retorcido e implacável, e pararam de atirar.
Arnold deve tê-lo visto também, mas o ignorou. Arrancou a pistola do cinto e atirou em Fraser, disparando pelo lado do corpo. Mas ele não podia esperar atingir qualquer coisa àquela distância, e seu cavalo assustou-se com o barulho e disparou, as orelhas para trás, coladas na cabeça. Morgan, que quase já o havia alcançado, foi obrigado a dar um salto para trás para evitar ser pisoteado; ele tropeçou e estatelou-se no chão.
Sem um instante de hesitação, Arnold saltou de seu cavalo e abaixou-se para ajudar o homem mais velho a se levantar, desculpando-se com uma solicitude absolutamente sincera, a qual, Jamie notou, não foi muito bem recebida por Morgan. Ele achou que o velho Dan iria simplesmente dar um golpe nos colhões de Arnold, independentemente de reumatismo ou patente.
A égua do general era treinada para ficar parada, mas o tiro inesperado feito acima de suas orelhas a havia assustado; ela se remexia nervosamente, arrastando as patas pela camada de folhas mortas, os olhos mostrando a parte branca.
Jamie agarrou as rédeas e puxou o focinho da égua para baixo, soprando em suas narinas para distraí-la. Ela resfolegou e sacudiu a cabeça, mas parou de dançar. Ele afagou seu pescoço, estalando a língua, e suas orelhas levantaram-se um pouco; ele viu que sua mão estava sangrando de novo, mas era uma lenta infiltração através da bandagem, sem importância. Por cima da curva sólida do pescoço da égua, ele pôde ver Morgan, agora aprumado e rejeitando violentamente os esforços de Arnold para limpar o mofo das folhas mortas de suas roupas.
- O senhor está destituído do comando! Como ousa dar ordens aos meus homens?
- Oh, vamos parar com esse jogo de soldados! - Arnold disse impaciente. - Eu sou um general. Ele é um general - sacudiu a cabeça bruscamente na direção da figura distante a cavalo - e eu o quero morto. Vai haver muito tempo para política quando terminar; isto é uma batalha, droga! - Jamie captou um repentino e forte bafo de rum, doce e feroz sob o cheiro de fumaça e trigo pisoteado. Sim, bem, talvez isso tivesse algo a ver com o caso, apesar de que do pouco que sabia de Arnold não havia muita diferença entre o homem sóbrio e o outro tresloucado de bebida.
O vento vinha em rajadas, quente, pelas orelhas, denso de fumaça e sons aleatórios: o crepitar de mosquetes pontuado pelo estrondo da artilharia à esquerda e, através de tudo isso, os gritos de Simon Fraser e seus suboficiais, procurando reunir hessianos e ingleses, os grunhidos do impacto e os gritos agudos de dor de longe, onde os hessianos lutavam para abrir caminho pelo meio dos homens do general Enoch Poor que avançavam.
A coluna do general Ebenezer Learned pressionava os hessianos de cima; Jamie podia ver o ajuntamento de uniformes verdes dos alemães, lutando em meio a uma onda de continentais, mas sendo forçados a recuar da borda do campo. Alguns tentavam escapar, descer o campo em direção ao general Fraser. O vislumbre de um movimento chamou sua atenção; o jovem que ele privara do chapéu galopava pelo campo acima, abaixado sobre o pescoço do cavalo, o sabre em punho.
O general se movera um pouco, afastando-se da floresta. Estava quase fora de alcance para a maior parte dos homens de Morgan - mas Jamie estava bem localizado; ele estava bem no alvo. Olhou para baixo. Largara o rifle quando pegou o cavalo, mas a arma estava carregada; ele a havia recarregado automaticamente após o primeiro tiro. O cartucho parcialmente vazio ainda estava dobrado na mão que segurava as rédeas; levaria apenas um instante para preparar a arma.
- Sheas, a nighean - ele murmurou para o cavalo, e respirou fundo, tentando se acalmar, incutir essa calma na égua, apesar de sua mão latejar com a precipitação do sangue. - Cha chluinn thu an córr a chuireas eagal ort - ele disse, baixinho. Pronto. Nenhum outro tiro irá assustá-la.
Ele nem pensara nisso ao atirar para errar em Fraser. Ele mataria qualquer outro homem no campo, mas não aquele. Então, ele avistou o jovem soldado no cavalo, o casaco vermelho-vivo entre o agitado mar de verde, de azul e de tecidos rústicos, golpeando à volta com seu sabre, e sentiu sua boca se torcer. Nem aquele, tampouco.
Tudo indicava que o jovem estava em um dia de sorte. Ele atravessara a coluna de Learned a galope, pegando a maioria dos continentais de surpresa, e os que o viam estavam ocupados demais na luta ou impossibilitados de atirar nele porque haviam descarregado suas armas e fixavam baionetas.
Jamie afagou o animal distraidamente, assoviando pelo meio dos dentes e observando. O jovem oficial alcançara os hessianos, despertara a atenção de alguns e agora abria caminho de volta pelo campo, uma torrente de casacos verde-escuros em seu rastro, hessianos a toda brida, ajudando a fechar a passagem cada vez mais estreita, conforme os homens de Poor avançavam pela esquerda.
Jamie estava tão absorto nesse espetáculo que ignorara a discussão que ocorria entre Dan Morgan e o general Arnold. Uma exclamação vinda de cima interrompeu ambos.
- Peguei-o, por Deus!
Jamie ergueu os olhos, espantado, e viu Tim Murphy empoleirado nos galhos de um carvalho, rindo como um duende, o cano de seu rifle apoiado em Uma forquilha. Jamie virou a cabeça bruscamente e viu Simon Fraser caindo e sacolejando-se na sela, os braços cruzados sobre o corpo.
Arnold emitiu uma exclamação de júbilo semelhante e Morgan ergueu os olhos para Murphy, balançando a cabeça em aprovação, embora a contragosto.
- Belo tiro - ele gritou.
Simon Fraser oscilava, prestes a cair - um dos ajudantes de ordens estendeu os braços para ampará-lo, gritando desesperadamente por socorro, outro segurou as rédeas de seu cavalo, virando o animal de um lado para o outro, sem saber para onde ir ou o que fazer. Jamie cerrou o punho, sentiu uma dor lancinante dardejar pela mão ferida e parou, a mão espalmada sobre a sela. Simon estaria morto?
Não sabia dizer. Os ajudantes de ordens haviam dominado seu pânico; dois deles cavalgaram bem perto, um de cada lado, amparando a figura caída, buscando mantê-lo na sela, alheios aos gritos de júbilo vindos da floresta.
Ele olhou para o outro lado do campo, procurando o jovem com o sabre. Não conseguiu encontrá-lo e sentiu uma pequena pontada de perda - em seguida, localizou-o, empenhado em um combate corpo a corpo com um capitão de milícia montado. Não havia nenhum tipo de elegância nesse tipo de luta; dependia tanto do homem quanto do cavalo e, enquanto observava, os cavalos foram forçados a se afastarem um do outro pelo aglomerado de corpos ao redor deles. O oficial inglês não tentou forçar seu cavalo a voltar à posição anterior; tinha um objetivo em mente e gritou e gesticulou, incitando a pequena companhia de hessianos que ele extraíra da confusão lá em cima. Então, ele se virou para trás na direção da floresta e viu o que estava acontecendo, o cavalo do general Fraser sendo levado às pressas, o corpo oscilante do general uma mancha vermelha contra o trigo pisoteado.
O jovem ficou de pé em seus estribos por um instante, sentou-se de novo e esporeou seu cavalo na direção do general, deixando que seus hessianos o seguissem como quisessem.
Jamie estava bastante perto para ver o vermelho escuro do sangue que ensopava o meio do corpo de Simon Fraser. Se Simon já não estivesse morto, pensou, não demoraria muito. Fúria e pesar com o desperdício arderam em sua garganta. Lágrimas da fumaça já escorriam pelas suas faces; pestanejou e sacudiu a cabeça violentamente para clarear a visão.
A mão de alguém arrancou as rédeas de seus dedos sem nenhuma cerimônia e o corpo troncudo de Arnold afastou-o da égua em uma baforada de rum. Arnold subiu na sela, o rosto vermelho como as folhas do bordo, de empolgação e vitória.
- Sigam-me, rapazes! - ele gritou, e Jamie viu que a floresta fervilhava de milícias, companhias que Arnold reunira em sua louca investida para o campo de batalha. - Para a fortificação!
Os homens deram vivas e correram atrás dele, quebrando galhos e tropeçando em seu entusiasmo.
- Sigam o maldito idiota - Morgan disse sucintamente, e Jamie olhou para ele, surpreso. Morgan lançou um olhar severo às costas de Arnold.
- Ele vai ser levado à corte marcial, escreva o que estou dizendo - o velho atirador disse. - É melhor que ele tenha uma boa testemunha. Essa testemunha é você, James. Vá!
Sem uma palavra, Jamie pegou seu rifle do chão e partiu em disparada, deixando a floresta com sua chuva delicada de ouro e marrom. Seguindo a figura entusiástica, de ombros largos, de Arnold. Para dentro do trigal.
Eles, de fato, o seguiram. Uma horda aos berros, uma multidão armada. Arnold estava montado, mas seu cavalo achava difícil avançar e os homens não tinham dificuldade em acompanhá-lo. Jamie viu as costas do casaco azul de Arnold com uma mancha negra de suor, moldada como uma casca aos ombros musculosos. Um tiro da retaguarda, na confusão da batalha... Mas não passou de um pensamento fugaz, logo desaparecido.
Arnold desaparecera, também, com um grito entusiástico, esporeando sua égua para frente e em círculos, ultrapassando a fortificação. Jamie deduziu que ele pretendia invadir pela retaguarda - suicídio, já que o lugar fervilhava com granadeiros alemães; ele podia ver seus chapéus mitrados despontando acima dos muros da fortificação. Talvez Arnold pretendesse cometer suicídio - talvez apenas criar uma distração para os homens que atacavam a fortificação pela frente, com sua própria morte como um preço aceitável a ser pago.
A fortificação propriamente dita erguia-se a uma altura de cinco metros, uma muralha de taipa de barro com uma paliçada de troncos de madeira construída em cima - e entre o barro e o tapume havia um abatis, galhos entrançados e com as pontas aguçadas, apontando para fora.
Balas começaram a salpicar o campo diante da fortificação e Jamie correu, desviando-se de projéteis que não podia ver.
Escalou o obstáculo, fincando os pés e procurando se agarrar aos galhos do abatis, enfiou a mão por uma brecha e agarrou uma tora, mas sua mão escorregou na casca lascada e ele caiu de costas, aterrissando dolorosamente sobre seu rifle e expulsando o ar de seus pulmões. O homem ao seu lado atirou através da brecha e a fumaça branca espalhou-se sobre ele, ocultando-o momentaneamente do hessiano que ele avistara acima. Ele rolou sobre o corpo e rastejou rapidamente para longe, antes que a fumaça se dispersasse ou o sujeito resolvesse atirar uma granada pelo vão.
- Afaste-se! - ele gritou por cima do ombro, mas o homem que havia atirado estava tentando sua própria sorte com uma corrida e um salto. A granada atravessou a fenda exatamente quando o sujeito saltava. Ela atingiu-o no peito e detonou.
Jamie esfregou a mão na camisa, engolindo bílis. A pele da palma de sua mao ardia, esfolada e cheia de farpas de casca de galhos. Estilhaços de metal e lascas de madeira haviam explodido em todas as direções; algo atingira Jamie no rosto e ele sentiu a ardência do suor e o calor do seu sangue escorrendo pela face. Ele pôde ver o granadeiro, o vislumbre de um casaco verde pelo vão no abatis. Rapidamente, antes que ele desaparecesse.
Agarrou um cartucho de sua bolsa e abriu-o com os dentes, contando. Ele podia carregar um rifle em vinte segundos, sabia, havia marcado o tempo. Nove... oito... Como era que Bri ensinava as crianças a contar os segundos? Hipopótamos, sim. Seis hipopótamos... Sentiu uma vontade insana de rir, vendo mentalmente um grupo de vários hipopótamos observando-o solenemente e fazendo observações críticas quanto ao seu progresso. Dois hipopótamos... Não estava morto ainda, então pressionou o corpo contra a base do abatis, apontou o cano do rifle pela fenda e disparou em uma mancha verde que podia ser um abeto, mas não era, já que gritou.
Lançou o rifle nas costas e saltou mais uma vez, os dedos cravando-se desesperadamente nas cascas ásperas das toras. Eles escorregaram, farpas entranhando-se sob as unhas, e a dor disparou pela sua mão como um raio, mas agora ele já erguera a outra mão, prendeu o pulso direito com a mão esquerda sã e agarrou-se com força à tora. Seus pés escorregaram na terra mal compactada e por um instante ele se balançou livremente, como um esquilo pendurado de um galho de árvore. Impulsionou seu peso para cima e sentiu algo penetrar em seu ombro, mas não podia parar para dar atenção a isso. Um pé, agora conseguira fincar um pé sob uma tora. Um balanço violento com a perna livre e ele se viu agarrado a uma tora como um bicho-preguiça. Algo tirou um naco da tora à qual estava agarrado; sentiu a madeira estremecer.
- Cuidado, Vermelho! - alguém gritou abaixo dele, e ele ficou paralisado. Sentiu outro golpe na madeira e algo desceu a dois centímetros de seus dedos - um machado? Não tinha tempo de sentir medo; o homem embaixo disparou acima de seu ombro - ele ouviu a bala passar zumbindo como um vespão furioso, e avançou apressadamente contra a base da tora, sobrepondo as mãos o mais rápido possível, contorcendo-se entre as toras, as roupas se dilacerando e suas juntas também.
Havia dois hessianos caídos logo acima da fenda onde estava, mortos ou feridos. Outro, a três metros de distância, viu sua cabeça despontar pela fresta e enfiou a mão na bolsa, dentes arreganhados sob um bigode encerado. Mas um grito de enregelar o sangue veio de trás do hessiano e um dos homens de Morgan cravou um tacape em seu crânio.
Ele ouviu um barulho e virou-se a tempo de ver um cabo pisar no corpo de um dos hessianos, que abruptamente voltou à vida, rolando sobre o corpo e levantando-se, com um mosquete na mão. O hessiano golpeou com todas as forças, a lâmina de sua baioneta rasgando as calças do cabo quando ele tropeçou e liberando-se em um jorro de sangue.
Jamie, num reflexo, agarrou seu rifle pelo cano e girou-o, o movimento repercutindo pelos seus ombros, braços e pulsos, enquanto tentava atingir a cabeça do sujeito com a coronha. O solavanco da colisão torceu seus braços violentamente e ele sentiu os ossos de seu pescoço estalarem e sua visão embranquecer. Sacudiu a cabeça para clarear a vista e limpou suor e sangue de suas órbitas com a base da mão. Droga, ele entortara o rifle.
O hessiano estava definitivamente morto, um ar de surpresa no que restava de seu rosto. O cabo ferido arrastava-se para longe dali, uma das pernas das calças encharcada de sangue, o mosquete pendurado nas costas, a lâmina de sua própria baioneta na mão. Ele olhou por cima do ombro e, vendo Jamie, gritou:
- Carabineiro! Atrás de você!
Ele não se virou para ver o que era, mas em vez disso mergulhou de cabeça para o lado, rolando sobre folhas e terra pisoteada. Vários corpos rolaram por cima dele em um emaranhado gemente e colidiram contra as paliçadas. Levantou-se devagar, tirou uma das pistolas da cintura, engatilhou-a e explodiu os miolos de um granadeiro preparado para atirar uma de suas granadas por cima da borda.
Mais alguns tiros, grunhidos e pancadas surdas, e tão rapidamente quanto começara, a luta esmoreceu. A fortificação estava coberta de corpos - a maior parte vestida de verde. Avistou de relance a pequena égua de Arnold, com os olhos arregalados e mancando, sem cavaleiro. Arnold estava no solo, esforçando-se para levantar.
O próprio Jamie sentia-se quase incapaz de se levantar; seus joelhos estavam fracos e sua mão direita paralisada, mas ele cambaleou até Arnold e praticamente caiu ao seu lado. O general fora atingido por um tiro; sua perna estava coberta de sangue e seu rosto lívido e suado, os olhos semicerrados com o choque. Jamie estendeu o braço e agarrou a mão de Arnold, chamando seu nome para trazê-lo de volta, pensando, enquanto o fazia, que aquilo era loucura; devia enfiar sua adaga entre as costelas do sujeito e poupar tanto ele quanto as vítimas de sua traição. Mas a escolha estava feita antes que ele tivesse tempo de pensar. A mão de Arnold fechou-se com força sobre a sua.
- Onde? - Arnold sussurrou, os lábios lívidos. - Onde fui atingido?
- Na perna, senhor - Jamie disse. - A mesma em que foi ferido antes.
Os olhos de Arnold se abriram e se fixaram em seu rosto.
- Quisera que tivesse sido em meu coração - murmurou, e fechou-os novamente.
DIREITO DE MORTE
Um jovem oficial inglês chegou logo após o anoitecer, sob uma bandeira de trégua. O general Gates o enviou à nossa barraca; o general Simon Fraser soubera da presença de Jamie e queria vê-lo.
- Antes que seja tarde demais, senhor - o enviado disse, a voz baixa. Era muito jovem e parecia destruído. - O senhor virá?
Jamie já se levantava, embora tenha precisado de duas tentativas. Não estava ferido, à exceção de inúmeros machucados espetaculares e um ombro deslocado, mas não tivera forças nem para comer quando se arrastou de volta ao acampamento após a batalha. Eu lavara seu rosto e lhe dera um copo de cerveja. Ele ainda o segurava, intacto, e agora o deixara de lado.
- Eu e minha mulher iremos - disse com voz rouca.
Peguei minha capa - e, só por garantia, meu estojo médico.
Eu não precisava ter me preocupado com o estojo. O general Fraser estendia-se em uma longa mesa de jantar no aposento principal de uma grande cabana de toras de madeira - a casa da baronesa Von Riedesel, o pequeno oficial sussurrara - e era evidente só de ver que ele já ultrapassara qualquer ajuda que eu pudesse oferecer. Seu rosto largo estava quase exangue à luz de velas e seu corpo envolto em ataduras, encharcadas de sangue. Sangue fresco; vi as manchas úmidas ampliando-se lentamente, mais escuras do que as manchas de sangue seco que já havia ali.
Absorta com o moribundo, eu apenas vagamente registrara a presença de diversas outras pessoas no aposento e conscientemente notara apenas duas: os médicos à cabeceira do leito de morte, sujos de sangue e pálidos de cansaço. Um deles lançou um olhar para mim e empertigou-se um pouco. Seus olhos se estreitaram e ele cutucou seu colega, que ergueu os olhos de sua contemplação do general Fraser, franzindo a testa. Olhou para mim sem nenhum sinal de reconhecimento e voltou à sua meditação infrutífera.
Olhei diretamente para o primeiro médico, mas sem nenhuma animosidade. Eu não pretendia invadir seu território. Não havia nada que eu pudesse fazer ali, nada que alguém pudesse fazer, como a atitude exausta dos médicos claramente evidenciava. O segundo cirurgião não havia desistido e eu o admirei por isso, mas o cheiro de putrefação no ar era inconfundível e eu podia ouvir a respiração do general - estertores longos, com um silêncio excruciante entre eles.
Não havia nada que eu pudesse fazer pelo general Fraser como médica e havia pessoas que podiam oferecer mais consolo do que eu. Jamie, talvez, entre elas.
- Ele não tem muito tempo - sussurrei para Jamie. - Se houver alguma coisa que queira dizer a ele...
Ele assentiu, engolindo em seco, e adiantou-se. Um coronel inglês ao lado do leito de morte improvisado estreitou os olhos, mas, diante de um murmúrio de outro oficial, recuou um passo para que Jamie pudesse se aproximar. O aposento era pequeno e estava apinhado. Permaneci recuada, tentando não estorvar.
Jamie e o oficial inglês sussurraram entre si por um instante. Um jovem oficial, sem dúvida ajudante de ordens do general, ajoelhou-se na sombra da extremidade oposta da mesa, segurando a mão do general, a própria cabeça inclinada em evidente agonia. Empurrei minha capa para trás, por cima dos ombros. Apesar de muito frio do lado de fora, o ar no interior da casa estava brutalmente quente, sufocante e insalubre, como se a febre que devorava o general Fraser diante de seus olhos tivesse se erguido da cama e se espalhado pelo aposento, insatisfeita com a presa escassa. Era um miasma, denso de vísceras deterioradas, suor rançoso e o cheiro de pólvora que pairava nas roupas dos homens.
Jamie inclinou-se, em seguida se ajoelhou, para se aproximar do ouvido de Fraser. Os olhos do general estavam cerrados, mas ele estava consciente; vi seu rosto contrair-se ao som da voz de Jamie. Ele virou a cabeça e seus olhos se abriram, o embotamento que havia neles iluminou-se momentaneamente ao reconhecê-lo.
- Ciamar atha thu, a charaid? - Jamie perguntou brandamente. Como vai, primo?
A boca do general torceu-se um pouco.
- Tha ana-cnàmhadh an Diabhail orm - respondeu roucamente. - Feumaidh gun do dh'ith mi rudegin nach robh dol leam. - Estou com uma maldita indigestão. Devo ter comido alguma coisa que não me fez bem.
Os oficiais ingleses remexeram-se um pouco, ao ouvir o gaélico, e o jovem oficial na extremidade oposta do leito ergueu os olhos, surpreso.
Não tão surpreso quanto eu.
O aposento obscurecido pareceu se mover ao meu redor e eu quase caí contra a parede, pressionando as mãos na madeira, na esperança de encontrar algo sólido que me servisse de apoio.
A falta de sono e o sofrimento marcavam seu rosto de rugas, ainda sujo de fumaça e sangue, espalhados como listras de um racum pela testa e ossos da face pela passagem descuidada da manga do casaco. Nada disso fazia a menor diferença. Seus cabelos eram escuros, o rosto estava mais fino, mas eu teria reconhecido aquele nariz longo e reto, e aqueles olhos azuis rasgados como os de um gato em qualquer lugar. Ele e Jamie ajoelharam-se de cada lado do leito de morte do general, a não mais do que um metro e meio de distância. Certamente ninguém deixaria de notar a semelhança se...
- Ellesmere. - Um capitão de infantaria deu um passo à frente e tocou o ombro do jovem oficial com uma palavra sussurrada e um pequeno sinal da cabeça, obviamente dizendo-lhe para deixar a cabeceira do general, a fim de dar ao general Fraser um momento de privacidade, se ele quisesse.
Não levante os olhos!, pensei com todas as forças que pude reunir na direção de Jamie. Pelo amor de Deus, não levante os olhos!
Ele não levantou. Quer ele tenha reconhecido o nome ou visto de relance aquele rosto sujo de fuligem do outro lado da cama improvisada, ele manteve a cabeça baixa, as feições ocultas nas sombras, e inclinou-se para mais perto, falando muito baixo com seu primo Simon.
O jovem ergueu-se, lentamente, como Dan Morgan em uma manhã fria. Sua sombra oscilou nas toras toscamente cortadas atrás dele, alto e esguio. Ele não prestava nenhuma atenção a Jamie; cada fibra de seu ser estava concentrada no general moribundo.
- É uma alegria vê-lo mais uma vez na Terra, Seaumais mac Brian - Fraser sussurrou, estendendo ambas as mãos com esforço para segurar as mãos de Jamie. - Estou contente de morrer entre meus camaradas, que eu amo. Mas pode dizer isso aos do nosso sangue na Escócia? Diga-lhes...
Um dos outros oficiais falou com William e ele relutantemente se afastou da cama, respondendo em voz baixa. Meus dedos estavam úmidos de transpiração e eu podia sentir gotas de suor escorrendo pelo meu pescoço. Eu queria desesperadamente tirar minha capa, mas receava fazer qualquer movimento que pudesse chamar a atenção de William para mim e, assim, para Jamie.
Jamie estava imóvel como um coelho sob uma moita. Eu podia ver seus ombros tensos sob o casaco molhado de suor, as mãos segurando com força as do general, e apenas o brilho trêmulo da luz do fogo no topo ruivo de sua cabeça dava alguma ilusão de movimento.
- Sua vontade será feita, Shimi mac Shimi.
Eu mal conseguia ouvir o murmúrio de sua voz.
- Eu cumprirei seu desejo.
Ouvi um soluço alto ao meu lado e desviei o olhar para ver uma mulher pequena, primorosa como uma boneca de porcelana apesar da hora e circunstância. Seus olhos brilhavam com lágrimas não derramadas; ela virou a cabeça para enxugá-las delicadamente, viu que eu a observava e dirigiu-me a trêmula tentativa de um sorriso.
- Estou muito contente por seu marido ter vindo, senhora - ela sussurrou para mim com um leve sotaque alemão. - E... é um alívio, talvez, que nosso querido amigo tenha o consolo de um parente ao seu lado.
Dois deles, pensei, mordendo a língua, e por absoluta força de vontade não olhei na direção de William. De repente, me sobreveio o terrível pensamento de que William pudesse me reconhecer e procurar vir falar comigo. O que poderia significar um desastre, se...
A baronesa - pois ela devia ser a mulher de Von Riedesel - pareceu oscilar um pouco, embora pudesse ser apenas o efeito da luz cambiante e da pressão de corpos. Toquei seu braço.
- Preciso de ar - eu disse a ela. - Venha comigo lá para fora.
Os médicos aproximavam-se da cama outra vez, atentos como abutres, e os murmúrios em gaélico foram repentinamente interrompidos por um terrível gemido de Simon Fraser.
- Tragam uma vela! - um dos médicos disse energicamente, aproximando-se rapidamente da cama.
Os olhos da baronesa fecharam-se com força e eu vi sua garganta se mover enquanto ela engolia. Tomei sua mão e a conduzi rapidamente para fora.
jvjão demorou muito, mas pareceu uma eternidade até os homens saírem, as cabeças abaixadas.
Houve uma discussão curta, áspera, do lado de fora da cabana, conduzida em vozes abafadas em respeito ao morto, mas ainda assim acalorada. Jamie manteve-se afastado, com o chapéu bem enfiado na cabeça, mas um dos oficiais ingleses virava-se para ele de vez em quando, obviamente solicitando sua opinião.
O tenente William Ransom, também conhecido como lorde Ellesmere, mantinha-se reservado também, como convinha ao seu posto relativamente inferior naquela companhia. Ele não tomou parte na discussão, parecendo contrito demais com a morte. Perguntei-me se ele já teria visto alguém que ele conhecia morrer - e em seguida percebi o quanto esse pensamento era idiota.
Mas mortes em campo de batalha, por mais violentas que fossem, não são iguais à morte de um amigo. E, pela aparência do jovem William, Simon Fraser fora seu amigo, além de seu comandante.
Absorta nessas observações furtivas, eu não prestava mais do que uma atenção superficial ao principal tema da discussão - esse sendo a disposição imediata do corpo do general Fraser - e absolutamente nenhuma aos dois médicos, que haviam saído da cabana e agora permaneciam um pouco afastados dos demais, conversando em voz baixa. Pelo canto do olho, vi um deles enfiar a mão no bolso e entregar ao outro um pedaço de tabaco, abanar a mão dispensando os agradecimentos do outro e desviar-se. O que ele disse, entretanto, atraiu minha atenção com a mesma eficácia que teria se sua cabeça tivesse explodido em chamas.
- Até logo, então, dr. Rawlings - ele dissera.
- Dr. Rawlings? - exclamei, num reflexo.
- Sim, madame? - ele disse educadamente, mas com a expressão de um homem exausto lutando contra um desejo intenso de dizer ao mundo que fosse para o inferno. Reconheci o impulso e me compadeci - mas, tendo falado, eu não tinha escolha senão continuar.
- Com licença - eu disse, corando um pouco. - Ouvi seu nome por acaso e fiquei surpresa. Eu conheci um dr. Rawlings.
O efeito dessa observação casual foi inesperado. Seus ombros empertigaram-se abruptamente e seu olhar embotado aguçou-se com ansiedade.
- É mesmo? Onde?
- Hã... - Hesitei por um instante, já que na realidade eu jamais me encontrara com o sr. Rawlings, apesar de realmente sentir que o conhecia, e contemporizei dizendo: - Seu nome era Daniel Rawlings. Seria talvez um parente seu?
Seu rosto se iluminou e ele me segurou pelo braço.
- Sim! Sim, é meu irmão. Por favor, diga-me, madame, sabe onde ele está?
Senti um terrível aperto no estômago. Eu de fato sabia exatamente onde Daniel Rawlings estava, mas a notícia não seria agradável para seu irmão. Entretanto, não havia escolha; eu tinha que lhe contar.
- Sinto muito ter que lhe dizer que ele está morto - eu disse, o mais delicadamente possível. Coloquei a mão sobre a dele e apertei-a, minha garganta contraindo-se novamente enquanto a luz em seus olhos esmorecia.
Ele permaneceu imóvel pelo período de várias respirações, os olhos focalizados em algum lugar além de mim. Lentamente, eles concentraram-se novamente em mim e ele respirou fundo e firmou os lábios.
- Compreendo. Eu... temia isso. Como ele... como isso aconteceu, a senhora sabe?
- Sei - disse apressadamente, vendo o coronel Grant remexer-se de um modo que indicava partida iminente. - Mas é... uma longa história.
- Ah. - Ele detectou a direção do meu olhar e virou a cabeça. Todos os homens moviam-se agora, ajeitando os casacos, colocando os chapéus, enquanto trocavam algumas palavras finais. - Eu irei ao seu encontro - ele disse abruptamente, virando-se para mim outra vez. - Seu marido... O rebelde escocês alto, acho que disseram que ele é parente do general?
Vi seu olhar mover-se momentaneamente para um ponto além de mim e o susto fez minha pele se arrepiar. As sobrancelhas de Rawlings estavam ligeiramente enrugadas e eu compreendi, tão claramente como se ele tivesse falado, que a palavra "parente" havia desencadeado alguma ligação em sua mente... e que ele olhava para William.
- Sim. Coronel Fraser - eu disse apressadamente, segurando-o pela manga antes que ele pudesse olhar para Jamie e completar o pensamento que se formava em sua mente.
Eu estivera remexendo em meu estojo ao conversarmos e nesse ponto encontrei o pedaço de papel dobrado que procurava. Tirei-o e, desdobrando-o rapidamente, entreguei-o a ele. Ainda havia espaço para dúvidas, afinal.
- Esta é a caligrafia de seu irmão?
Ele agarrou o papel da minha mão e examinou apreensivamente a caligrafia pequena e nítida com uma expressão onde se misturavam ansiedade, desespero e esperança. Fechou os olhos por um instante, abriu-os novamente, lendo e relendo a Receita para Diarreia como se fosse a Escritura Sagrada.
- A folha está queimada - ele disse, tocando as bordas chamuscadas. Sua voz estava rouca. - Daniel... morreu num incêndio?
- Não - eu disse. Não havia tempo; um dos oficiais ingleses postava-se impacientemente atrás dele, aguardando. Toquei a mão que segurava a folha.
- Guarde isso, por favor. E se puder atravessar as linhas, e imagino que agora possa, me encontrará facilmente em minha barraca, próxima ao parque de artilharia. Eles... hã... eles me chamam de Feiticeira Branca - acrescentei timidamente. - Pergunte a qualquer um.
Seus olhos injetados arregalaram-se diante disso, depois se estreitaram, conforme ele me examinava mais atentamente. Mas não havia tempo para novas perguntas; o oficial deu um passo à frente e murmurou alguma coisa no ouvido de Rawlings, com apenas um olhar apressado em minha direção.
- Sim - Rawlings disse. - Sim, sem dúvida. - Fez uma profunda mesura para mim. - Seu criado, madame. Agradeço-lhe enormemente. Posso...? - Ergueu o papel e eu assenti.
- Sim, claro, por favor, fique com ele.
O oficial se virara, obviamente empenhado em importunar outro membro errante de seu grupo e, com um rápido olhar às suas costas, o dr. Rawlings deu um passo em minha direção e tocou minha mão.
- Eu irei procurá-la - ele disse, a voz baixa. - Assim que puder. Obrigado. - Ele ergueu os olhos então para alguém atrás de mim e percebi que Jamie terminara o que tinha que fazer e vinha me buscar.
Jamie deu um passo à frente e, com um breve sinal da cabeça para o médico, tomou minha mão.
- Onde está seu chapéu, tenente Ransom? - O coronel falou atrás de mim, com um ligeiro tom de reprovação, e pela segunda vez em cinco minutos senti os pelos da minha nuca se arrepiarem. Não com as palavras do coronel, mas com a resposta sussurrada.
- ...O rebelde filho da mãe arrancou-o da minha cabeça com um tiro - disse uma voz. Era uma voz inglesa, jovem, rouca com a dor reprimida e com um toque de raiva. Fora isso... era a voz de Jamie, e a mão de Jamie apertou a minha tão bruscamente que quase esmagou meus dedos.
Estávamos na cabeceira da trilha que vinha do rio; mais dois passos e estaríamos em segurança no abrigo das árvores envoltas em neblina. Em vez de dar esses dois passos, Jamie ficou paralisado pelo espaço de um batimento cardíaco, depois largou minha mão, girou nos calcanhares e, tirando o chapéu da cabeça, avançou em largas passadas e enfiou-o nas mãos do tenente Ransom.
- Creio que lhe devo um chapéu, senhor - ele disse educadamente, virando-se instantaneamente e deixando o jovem oficial pestanejando diante do surrado tricórnio em suas mãos. Olhando para trás, vislumbrei a expressão desconcertada de William olhando Jamie se afastar, mas Jamie empurrava-me pela trilha como se houvesse peles-vermelhas em nosso encalço, e um agrupamento de abetos novos ocultou o tenente de nossa vista em poucos segundos.
Eu podia sentir o corpo de Jamie vibrar como uma corda de violino, a respiração acelerada.
- Você ficou louco? - perguntei sem me alterar.
- É muito provável.
- Que diabos - comecei a dizer, mas ele apenas sacudiu a cabeça e continuou me puxando, até estarmos bem longe, fora do alcance da vista ou dos ouvidos da cabana. Um tronco caído que até então escapara dos lenhadores atravessava-se no caminho e Jamie sentou-se nele repentinamente, cobrindo o rosto com a mão trêmula. - Você está bem? O que foi? - Sentei-me ao seu lado e coloquei a mão em suas costas, começando a ficar preocupada.
- Não sei se rio ou se choro, Sassenach - ele disse. Tirou a mão do rosto e eu vi que, de fato, ele parecia estar fazendo ambos. Suas pestanas estavam úmidas, mas os cantos de sua boca esboçavam um sorriso. - Perdi um parente e encontrei outro, tudo ao mesmo tempo. E um instante depois percebi que, pela segunda vez na vida, por um fio não atirei em meu próprio filho. - Olhou para mim e sacudiu a cabeça, entre o riso e o espanto. - Eu sei que não devia ter feito isso. E que... pensei de repente E se eu acertasse em uma terceira vez? E... e eu achei que devia... falar com ele. Como um homem. Caso fosse a única vez, sabe?
O coronel Grant lançou um olhar curioso para a cabeceira da trilha, onde um galho trêmulo assinalava a passagem do rebelde e de sua mulher, depois voltou o olhar para o chapéu nas mãos de William.
- Que diabos foi isso?
William limpou a garganta.
- Evidentemente, o coronel Fraser foi o, hum, rebelde filho da mãe que me privou do meu chapéu durante a batalha ontem - ele disse, esperando ter imprimido um tom seco e distanciado à voz. - Ele... me recompensou.
Uma expressão de humor insinuou-se no rosto extenuado de Grant.
- É mesmo? Muito honrado da parte dele. - Ele espreitou o objeto em questão com ar de dúvida. - Acha que tem piolho?
Com outro homem, em outro momento, isso poderia ser interpretado como calúnia. Mas Grant, apesar de mais do que disposto a denegrir a coragem, aptidões e soluções dos rebeldes, claramente só pretendeu a descoberta prática de um fato com a pergunta; a maior parte das tropas hessianas e inglesas estava infestada de piolho, assim como os oficiais.
William inclinou o chapéu, examinando-o tanto quanto a luz turva permitia. O objeto estava quente em suas mãos, mas nada se movia ao longo das costuras.
- Acho que não.
- Bem, então, use-o, capitão Ransom. Temos que dar um bom exemplo aos homens.
William havia de fato adotado o chapéu, sentindo-se ligeiramente estranho com o calor do objeto em sua cabeça, antes de ouvir adequadamente o que Grant dissera.
- Capitão...? - disse debilmente.
- Parabéns - Grant disse, o esboço de um sorriso iluminando o rosto exausto. - O general... - Olhou para trás, para a cabana fétida e silenciosa, e o sorriso desapareceu. - Ele queria que você fosse promovido a capitão depois de Ticonderoga; deveria ter sido feito na ocasião, mas... bem. - Seus lábios comprimiram-se, mas depois relaxaram. - O general Burgoyne assinou a ordem ontem à noite, após ouvir vários relatos da batalha. Pelo que pude entender, você se distinguiu.
William abaixou a cabeça timidamente. Havia um nó em sua garganta e seus olhos ardiam. Não conseguia se lembrar do que fizera... apenas que não conseguira salvar o general.
- Obrigado - conseguiu dizer, e ele próprio não conseguiu deixar de olhar para trás, para a cabana. Haviam deixado a porta aberta. - Você sabe... ele... não, não importa.
- Se ele sabia? - Grant disse gentilmente. - Eu contei a ele. Eu trouxe a ordem.
Impossibilitado de falar, William apenas balançou a cabeça. O chapéu, espantosamente, assentou com perfeição e permaneceu no lugar.
- Meu Deus, como está frio - Grant disse baixinho. Apertou o casaco em volta do corpo, olhando ao redor para as árvores gotejantes e para a densa neblina entre elas. - Que lugar desolador. Péssima hora do dia, também.
- Sim. - William sentiu um alívio momentâneo em ser capaz de admitir sua própria sensação de desolação, embora a hora e o lugar pouco tivessem a ver com isso. Engoliu em seco, olhando novamente para a cabana. A porta aberta incomodava-o; enquanto a neblina assentava-se pesadamente como um colchão de penas sobre a floresta, a névoa perto da cabana subia, volteando perto das janelas, e ele teve a sensação desconfortável de que ela de certa forma... vinha para pegar o general.
- Eu só vou... fechar a porta, está bem? - Começara a se dirigir à cabana, mas foi detido por um gesto de Grant.
- Não, não o faça.
William olhou para ele com surpresa e o capitão deu de ombros, tentando minimizar a questão.
- O homem que doou seu chapéu disse que devemos deixá-la aberta. Uma superstição das Highlands, algo sobre, hum, a alma precisar de uma saída - disse delicadamente. - E ao menos está frio demais para as moscas - acrescentou, sem nenhuma delicadeza.
William sentiu um aperto no estômago já atrofiado e engoliu o amargor que subiu ao fundo de sua garganta diante da visão de larvas multiplicando-se.
- Mas certamente não podemos... Quanto tempo? - ele perguntou.
- Não muito - Grant assegurou-lhe. - Só estamos esperando por um destacamento especial para realizar o funeral.
William reprimiu o protesto que veio aos seus lábios. Claro. O que mais poderia ser feito? No entanto, a lembrança das trincheiras que haviam cavado junto às Heights, a terra salpicando as faces rechonchudas e frias de seu cabo... Após os últimos dez dias, imaginava que já estivesse além da sensibilidade a tais coisas. Mas os sons dos lobos que vinham comer os moribundos e os mortos ecoaram repentinamente no fundo vazio de seu estômago.
Murmurando um pedido de licença, afastou-se para o lado, entrando no meio dos arbustos molhados, e vomitou, o mais silenciosamente possível. Chorou um pouco, baixinho, depois limpou o rosto com um punhado de folhas úmidas e voltou.
Grant diplomaticamente fingiu acreditar que William havia simplesmente ido urinar e não fez nenhuma pergunta.
- Um notável cavalheiro - observou casualmente. - O parente do general, quero dizer. Não daria para imaginar que eram parentes só de olhar, não é?
Dividido entre a esperança agonizante e o luto dilacerante, William mal notara o coronel Fraser antes de este último ter lhe dado o chapéu tão repentinamente - e ficara espantado demais para notar qualquer coisa a respeito dele. Mas sacudiu a cabeça, concordando, tendo a vaga lembrança de uma figura alta ajoelhada junto ao leito, a luz do fogo reluzindo no topo de sua cabeça, vermelha.
- Se parece mais com você do que com o general - Grant acrescentou casualmente, depois riu, um riso áspero. - Tem certeza de que você não tem um ramo escocês na família?
- Não, povo de Yorkshire desde o Dilúvio, exceto por uma bisavó francesa - William respondeu, grato pela distração momentânea da conversa descontraída. - A mãe do meu padrasto é parcialmente escocesa; acha que isso conta?
O que quer que Grant pudesse ter respondido se perdeu, já que o som de uma alma penada chegou até eles através da bruma. Os dois homens ficaram paralisados, ouvindo. O flautista do general de brigada se aproximava, com Balcarres e alguns de seus batedores. O destacamento encarregado do funeral.
O sol se levantara, mas estava invisível, bloqueado pelas nuvens e pelo dossel de árvores. O rosto de Grant estava da mesma cor da névoa, pálido, com um lustro de umidade.
O som parecia vir de uma grande distância e, no entanto, da própria floresta. Em seguida, lamentos e gritos uivantes de pesar uniram-se ao canto fúnebre do flautista - Balcarres e seus índios. Apesar dos sons aterradores, William sentiu-se um pouco reconfortado. Não seria apenas um apressado enterro no campo de batalha, realizado sem consideração ou respeito.
- Soam como lobos uivando, não? - Grant murmurou. Ele passou a mão pelo rosto, depois cuidadosamente enxugou a palma molhada na coxa.
- Sim, é verdade - William disse. Assumiu uma postura de prontidão e aguardou os pranteadores, o tempo todo consciente da cabana às suas costas, a porta silenciosa, aberta à neblina.
MAIS GORDUROSO DO QUE A GORDURA
Eu sempre presumi que a rendição fosse algo relativamente simples. Entregar sua espada, apertar as mãos e marchar em retirada - para a liberdade condicional, a prisão ou a batalha seguinte. Fui desmistificada dessa presunção simplista pelo dr. Rawlings, que de fato conseguiu atravessar as linhas dois dias depois para conversar comigo sobre seu irmão. Eu lhe contei tudo que pude, expressando minha ligação sentimental com o livro de registros de casos de seu irmão, através do qual eu sentia que tinha conhecido Daniel Rawlings. O segundo dr. Rawlings - seu nome era David, ele disse - era uma pessoa de conversa fácil e ele demorou-se por algum tempo, a conversa passando a outros assuntos.
- Oh, não - ele disse, quando mencionei minha surpresa de que a cerimônia de rendição não tivesse ocorrido imediatamente. - Os termos da rendição têm que ser negociados primeiro, e essa é uma questão espinhosa.
- Negociados? - eu disse. - O general Burgoyne tem escolha no assunto?
Ele pareceu achar graça.
- Oh, tem, sim - assegurou-me. - Por acaso, eu vi as propostas que o major Kingston trouxe hoje de manhã para uma leitura cuidadosa do general Gates. Começam com a firme declaração de que, tendo lutado contra Gates duas vezes, o general Burgoyne está absolutamente preparado para fazê-lo uma terceira vez. Não está, é claro - o médico acrescentou -, mas salva sua honra permitindo-lhe observar que ele obviamente notou a superioridade dos rebeldes em números e assim se sente justificado em aceitar a rendição, a fim de salvar a vida de homens corajosos em termos honrosos. Aliás, a batalha ainda não está oficialmente encerrada - ele acrescentou, com um débil ar de desculpas. - O general Burgoyne propõe a cessação das hostilidades enquanto as negociações estão em andamento.
- Oh, é mesmo? - eu disse, achando graça. - Eu me pergunto se o general Gates está disposto a aceitar isso ao pé da letra.
- Não, não está - disse uma seca voz escocesa, e Jamie abaixou a cabeça e entrou na barraca, seguido de seu primo Hamish. - Ele leu a proposta de Burgoyne, em seguida enfiou a mão no bolso e arrancou sua própria versão. Ele exige uma rendição incondicional e requer que tanto as tropas britânicas quanto as alemãs larguem suas armas no acampamento e saiam como prisioneiros. A trégua durará até o pôr do sol, quando então Burgoyne deverá dar sua resposta. Achei que o major Kingston ia ter um ataque apoplético ali mesmo.
- Você acha que ele está blefando? - perguntei. Jamie fez um pequeno ruído escocês na garganta e lançou um olhar ao dr. Rawlings, indicando que ele achava impróprio discutir o assunto diante do inimigo. E, considerando-se o evidente acesso do dr. Rawlings ao alto comando inglês, talvez ele tivesse razão.
David Rawlings diplomaticamente mudou de assunto, abrindo a tampa do estojo que trouxera com ele.
- Este é igual ao estojo que você tinha, sra. Fraser?
- Sim, é. - Eu notara o fato imediatamente, mas não quis ficar olhando abertamente para o estojo. Estava mais surrado do que o meu e possuía uma Pequena placa de bronze, mas fora isso era igual.
- Bem, na realidade eu não tinha dúvidas sobre o destino do meu irmão - ele disse, com um pequeno suspiro mas isso põe um ponto final definitivo na questão. Os estojos nos foram dados pelo nosso pai, ele mesmo um médico, quando começamos a exercer a profissão.
Olhei para ele, surpresa.
- Não está me dizendo... vocês eram gêmeos?
- Sim, éramos. - Ele pareceu surpreso que eu não soubesse disso.
- Idênticos?
Ele sorriu.
- Nossa mãe sempre podia diferenciar um do outro, mas poucas pessoas conseguiam.
Fitei-o, sentindo uma ternura incomum - quase constrangimento. Eu havia, é claro, criado uma imagem mental de Daniel Rawlings conforme lia seu livro de casos. Encontrá-lo repentinamente cara a cara, de certa forma, abalava-me um pouco.
Jamie fitava-me estarrecido, as sobrancelhas erguidas. Tossi, corando. Ele sacudiu a cabeça ligeiramente e, com outro ruído escocês, pegou o baralho que viera buscar e conduziu Hamish para fora.
- Eu me pergunto... tem necessidade de alguma coisa em particular na área médica? - David Rawlings perguntou, também corando por sua vez. - Tenho bem poucos remédios, mas tenho duplicata de alguns instrumentos. E uma boa coleção de bisturis. Ficaria muito honrado se você...
- Oh. - Era uma oferta galanteadora e meu constrangimento logo foi submerso em uma onda de consumismo. - Você por acaso teria um par extra de pinças? Fórceps pequenos, quero dizer.
- Oh, sim, claro. - Ele puxou a gaveta inferior, empurrando um amontoado de pequenos instrumentos para o lado, à procura de pinças. Ao fazê-lo, avistei algo incomum e indiquei-o.
- O que diabos é isso?
- Chama-se um jugum penis - o dr. Rawlings me explicou, o rubor aumentando visivelmente.
- Parece uma armadilha de urso. O que é... não pode ser um instrumento para realizar circuncisão, não? - Peguei o objeto, o que fez o dr. Rawlings soltar uma arfada de ansiedade e eu o olhei com curiosidade.
- Isso... hã... minha cara senhora... - Ele quase arrancou o aparelho das minhas mãos, enfiando-o de volta no estojo.
- Para que serve isso? - perguntei, mais divertida do que ofendida por sua reação. - Considerando-se o nome, obviamente...
- Previne... hã... intumescência noturna. - Seu rosto, a essa altura, tinha um aspecto roxo pouco salutar e ele se recusava a me olhar de frente.
- Sim, imagino que faça isso. - O objeto em questão consistia em dois círculos concêntricos de metal, o círculo externo flexível, com pontas sobrepostas, e uma espécie de mecanismo que permitia apertá-lo. O círculo interno era denteado, muito semelhante a uma armadilha de urso, como eu dissera. Um pouco obviamente, destinava-se a ser preso ao redor de um pênis flácido, o qual permaneceria nesse estado, sabendo o que o esperava se não o fizesse.
Tossi.
- Hum... por que, precisamente, isso é necessário?
Seu constrangimento transformou-se lentamente em choque.
- Ora... é que... A perda da essência masculina é muito debilitante. Drena a vitalidade do homem e o expõe a todo tipo de doença, além de prejudicar barbaramente suas faculdades mentais e espirituais.
- Ainda bem que ninguém pensou em mencionar isso ao meu marido - eu disse.
Rawlings lançou-me um olhar absolutamente escandalizado, mas antes que a discussão pudesse assumir proporções ainda mais impróprias fomos felizmente interrompidos por uma movimentação do lado de fora, e ele aproveitou a oportunidade para fechar seu estojo e enfiá-lo apressadamente debaixo do braço, antes de vir se juntar a mim na entrada da barraca.
Havia uma pequena parada atravessando o acampamento, a uns cem metros de distância. Um major inglês em uniforme de gala, vendado, e tão ruborizado que eu pensei que ele poderia explodir. Ele estava sendo conduzido por dois soldados continentais e um flautista os seguia a uma distância discreta, tocando Yankee Doodle". Tendo em mente o que Jamie dissera sobre apoplexia, eu não tinha a menor dúvida de que aquele era o infeliz major Kingston, escolhido para entregar a proposta de rendição de Burgoyne.
- Santo Deus - murmurou o dr. Rawlings, sacudindo a cabeça diante da cena. - Receio que este processo vá levar algum tempo.
Levou. Uma semana mais tarde todos nós ainda estávamos parados no mesmo lugar, conforme cartas eram formalmente trocadas uma ou duas vezes por dia entre os dois acampamentos. Havia um ar geral de relaxamento no acampamento americano; achei que as coisas ainda deviam estar um pouco tensas do outro lado, mas o dr. Rawlings não voltara, de modo que o boato geral era a única maneira de julgar o progresso - ou a falta de - das negociações de capitulação. Evidentemente, o general Gates estivera blefando, e Burgoyne fora bastante astuto para perceber.
Eu estava satisfeita de permanecer em um lugar tempo suficiente para laVar minhas roupas sem o risco de levar um tiro, ser escalpelada ou molestada de alguma forma. Fora isso, havia muitas vítimas das duas batalhas que ainda requeriam cuidados.
Eu havia notado, de um modo vago, a presença de um homem espreitando nas bordas do acampamento. Eu o vira várias vezes, mas ele nunca se aproximara o suficiente para falar comigo, e eu concluí que ele provavelmente sofria de alguma doença embaraçosa como gonorreia ou hemorroidas. Geralmente, Sses homens levavam algum tempo para reunir a coragem ou o desespero para pedir ajuda, e quando o faziam ainda assim esperavam para falar comigo em particular.
Da terceira ou quarta vez em que eu o notei, tentei olhá-lo diretamente, induzi-lo a se aproximar o suficiente para que eu pudesse examiná-lo com privacidade, mas toda vez ele se esquivava, os olhos abaixados, e desaparecia no formigueiro efervescente de milicianos, continentais e seguidores de acampamento.
Ele reapareceu repentinamente ao final da tarde do dia seguinte, enquanto eu preparava uma espécie de sopa, usando um osso - impossível de identificar a que animal pertencia, mas razoavelmente fresco e ainda com lascas de carne agarradas a ele - que me fora dado por um paciente, duas batatas-doces ressecadas, um punhado de cereais, outro punhado de feijão e um pouco de pão dormido.
- É a sra. Fraser? - ele perguntou, com um sotaque surpreendentemente educado das Lowlands escocesas, pensei, e senti uma leve pontada à lembrança do tom semelhante de Tom Christie. Ele sempre fizera questão de me chamar de sra. Fraser, dito exatamente daquela forma concisa, formal.
Mas os pensamentos sobre Tom Christie desapareceram no instante seguinte.
- Eles a chamam de Feiticeira Branca, não é? - o homem disse, e sorriu. Não era de forma alguma uma expressão agradável.
- Algumas pessoas, sim. Por quê? - eu disse, segurando com força meu socador e fitando-o desafiadoramente. Ele era alto e magro, de rosto fino e moreno, trajando um uniforme continental. Por que ele não procurara o médico de seu regimento, em vez de uma curandeira?, me perguntei. Será que queria um feitiço de amor? Não parecia o tipo.
Ele riu um pouco e fez uma mesura.
- Eu só queria ter certeza de que tinha vindo ao lugar certo, senhora - ele disse. - Não tive intenção de ofendê-la.
- Não precisa se desculpar. - Ele não estava fazendo nada ameaçador, além, talvez, de ficar parado perto demais de mim, mas eu não gostei dele. E meu coração batia mais rápido do que deveria. - Evidentemente, você sabe meu nome - eu disse, esforçando-me para manter a calma. - Qual é o seu, então?
Ele sorriu novamente, examinando-me tão acintosamente que beirava as raias da insolência.
- Meu nome não importa. Seu marido é James Fraser?
Senti uma grande vontade de acertá-lo com meu socador, mas não o fiz; poderia aborrecê-lo, mas não iria me livrar dele. Eu não queria admitir o nome de Jamie e não me dei ao trabalho de me perguntar por que não. Eu simplesmente pedi licença e, tirando o caldeirão do fogo, coloquei-o no chão e fui embora.
Ele não esperava isso e não me seguiu de imediato. Afastei-me depressa, dei a volta por trás de uma pequena barraca pertencente à milícia de New Hamp shire e entrei em um grupo de pessoas reunido ao redor de outra fogueira - milicianos, alguns com as esposas. Um ou dois pareceu surpreso com a minha aparição repentina, mas todos me conheciam e cordialmente abriram espaço, balançando a cabeça e murmurando cumprimentos.
Olhei para trás do meio desse refúgio e pude ver o sujeito, em silhueta contra o sol poente, de pé junto à minha própria fogueira abandonada, a brisa da tarde soprando mechas dos seus cabelos. Era sem dúvida minha imaginação que me fazia achá-lo sinistro.
- Quem é, tia? Um de seus admiradores rejeitados? - o Jovem Ian falou em meu ouvido, com um riso na voz.
- Certamente rejeitado - eu disse, de olho no sujeito. Eu imaginara que ele fosse me seguir, mas ele permaneceu onde estava, o rosto virado em minha direção. Seu rosto era um oval escuro, mas eu sabia que ele estava olhando para mim. - Onde está seu tio, você sabe?
- Oh, sim. Ele e o primo Hamish estão tirando o dinheiro do coronel Martin com as cartas, lá. - Sacudiu o queixo na direção do acampamento da milícia de Vermont, onde se erguia a barraca do coronel Martin, reconhecível por um grande rasgão no topo, remendado com um pedaço de tecido de algodão amarelo.
- Hamish é bom nas cartas? - perguntei, curiosa, olhando na direção da barraca.
- Não, mas tio Jamie é, e ele sabe quando Hamish fará a jogada errada, o que é quase tão bom quanto ele fazer a jogada certa, hein?
- Acredito em você. Sabe quem é aquele homem? Aquele que está de pé perto da minha fogueira?
Ian estreitou os olhos contra o sol poente, depois franziu o cenho repentinamente.
- Não, mas ele acabou de cuspir na sua sopa.
- Ele o quê? - Girei nos calcanhares, a tempo de ver o anônimo sujeito se afastar a passos largos, as costas empinadas. - Ora, aquele maldito, nojento, idiota!
Ian limpou a garganta e me cutucou, indicando uma mulher de miliciano, que me olhava com evidente desaprovação. Clareei minha própria garganta, engoli outros comentários sobre o assunto e lancei-lhe o que esperava que fosse um sorriso de desculpas. Afinal, agora provavelmente seríamos obrigados a pedir sua hospitalidade, se quiséssemos comer alguma coisa no jantar.
Quando voltei a olhar para a nossa própria fogueira, o sujeito havia desaparecido.
- Devo lhe dizer uma coisa, tia? - Ian falou, franzindo o cenho pensativamente às sombras vazias que se estendiam sob as árvores. - Ele vai voltar.
Jamie e Hamish não voltaram para o jantar, levando-me a imaginar que o jogo estava indo bem para eles. As coisas também estavam indo razoavelmente bem Para mim; a sra. Kebbits, mulher de um miliciano, de fato ofereceu o jantar para e Ian, e de uma maneira muito hospitaleira, com broas de milho frescas e ensopado de coelho com cebolas. Melhor ainda, meu visitante sinistro não retornou.
Ian fora cuidar de seus próprios assuntos, Rollo nos calcanhares, de modo que eu abafei o fogo e me preparei para fazer a ronda noturna nas barracas de hospital. A maioria dos gravemente feridos havia morrido nos primeiros dois ou três dias após a batalha; quanto ao resto, os que tinham esposas, amigos ou parentes para cuidar deles, fora levado para seus próprios acampamentos. Restavam mais ou menos três dúzias de pacientes, homens solitários, com ferimentos ou doenças persistentes, mas que não apresentavam risco de morte iminente.
Calcei um segundo par de meias, me enrolei na minha grossa capa de lã e agradeci a Deus pelo tempo frio. Uma friagem surgira no final de setembro, acendendo as fogueiras com uma glória de vermelho e dourado, mas também felizmente matando os insetos. O alívio da vida no acampamento sem moscas era em si mesmo maravilhoso - não era de admirar que as moscas tenham sido uma das Dez Pragas do Egito. Os piolhos, por sua vez, ainda estavam conosco, mas sem moscas, pulgas e mosquitos a ameaça de uma epidemia reduzia-se tremendamente.
Ainda assim, toda vez que eu me aproximava da barraca do hospital, eu me via cheirando o ar, alerta para o fedor fecal revelador que poderia anunciar uma erupção repentina de cólera, tifo ou os males menores de um surto de salmonela. Esta noite, entretanto, não senti nenhum cheiro além do costumeiro odor de fossa das latrinas, sobrepujado pelo ranço de corpos não lavados, roupas de cama sujas e um cheiro penetrante e forte de sangue seco. Reconfortantemente familiar.
Três enfermeiros jogavam cartas sob uma meia-água de lona montada ao lado da tenda maior, o jogo iluminado por uma vela de pavio de junco, cuja chama erguia-se e tremulava com o vento da noite. Suas sombras cresciam e encolhiam na lona clara, e ouvi o som de suas risadas ao passar. Isso significava que nenhum dos médicos do regimento estava por perto; tanto melhor.
A maioria deles era simplesmente grata por qualquer ajuda que lhes fosse oferecida e assim deixavam que eu fizesse o que achasse melhor. No entanto, sempre havia um ou dois que queriam afirmar sua autoridade. Em geral, nada além de uma amolação, mas muito perigoso em caso de emergência.
Nenhuma emergência esta noite, graças a Deus. Havia várias velas em latinhas e tocos de vela de tamanhos variados em uma bacia do lado de fora da barraca; acendi uma vela na fogueira e, abaixando a cabeça, entrei, percorrendo as duas barracas grandes, verificando sinais vitais, conversando com os homens que estavam acordados e avaliando sua condição.
Nada muito ruim, mas eu tinha uma certa preocupação com o cabo Jebediah Shoreditch, que sofrera três ferimentos separados de baioneta durante a invasão da Grande Fortificação. Por algum milagre, nenhum havia atingido um órgão vital e, embora o cabo estivesse se sentindo desconfortável - uma estocada tendo atravessado de baixo para cima sua nádega esquerda -, não exibia nenhum sinal de febre. Mas havia algum indício de infecção no ferimento da nádega.
- Vou desinfetar isso aqui - eu lhe disse, examinando minha garrafa pela metade de tintura de genciana. Era praticamente tudo que restava, mas com sorte não deveria haver grande necessidade da tintura até eu estar em posição de preparar mais. - Quero dizer, vou lavá-la, para tirar o pus. Como aconteceu? - A irrigação não ia ser confortável; melhor se ele pudesse ser distraído um pouco, contando-me os detalhes.
- Não foi fugindo, senhora, nem pense isso - assegurou-me, agarrando com força a borda de seu catre quando eu virei para trás o cobertor e retirei os pedaços ressequidos de um curativo de alcatrão e terebintina. - Um daqueles malditos hessianos traiçoeiros se fingiu de morto e, quando passei por cima dele, ele voltou à vida e se ergueu como uma víbora, a baioneta na mão.
- Baioneta na sua mão, é o que você quer dizer, Jeb - brincou um amigo deitado ali perto.
- Não, esse foi outro. - Shoreditch deu de ombros, descartando a piada com um olhar despreocupado à sua mão direita, envolta em ataduras. Um dos hessianos havia pregado sua mão no chão com a lâmina da baioneta, ele me contara, quando então Shoreditch agarrou sua faca, que havia caído, com a mão esquerda, e desfechou um golpe furioso nas panturrilhas do hessiano, derrubando-o; em seguida, cortara a garganta do hessiano, descuidando-se, entretanto, de um terceiro atacante, cujo golpe decepou a parte de cima de sua orelha esquerda. - Alguém deu um tiro nesse sujeito, graças a Deus, antes que ele pudesse melhorar a sua mira. Por falar em mãos, senhora, a mão do coronel está sarando bem? - Sua testa brilhava de suor à luz da vela e os tendões destacavam-se em seus antebraços, mas ele falou educadamente.
- Creio que sim - eu disse, pressionando devagar o êmbolo de minha seringa de irrigação. - Ele está jogando cartas com o coronel Martin desde hoje à tarde e, se sua mão estivesse incomodando, ele já teria voltado.
Shoreditch e seu amigo deram uma risadinha diante dessa fraca piada, mas ele soltou um longo suspiro quando eu retirei minhas mãos do novo curativo e recostou a testa no catre por um instante, antes de rolar dolorosamente sobre o lado bom.
- Muito obrigado, senhora - ele disse. Seus olhos percorreram com aparente casualidade as figuras que se moviam de um lado para o outro na escuridão. - Se a senhora vir o amigo Hunter ou o dr. Tolliver, poderia pedir a eles para virem aqui um instante?
Ergui uma das sobrancelhas diante desse pedido, mas assenti e lhe servi um copo de cerveja; havia cerveja em abundância agora que as linhas de suprimento do sul haviam nos alcançado, e não lhe faria mal algum.
Fiz o mesmo para seu amigo, um homem da Pensilvânia chamado Neph Brewster, que sofria de uma disenteria, mas acrescentei uma pequena porção de mistura do dr. Rawlings para prender intestinos antes de lhe entregar a Caneca.
- Jeb não pretende desrespeitá-la, senhora - Neph sussurrou, inclinando-se confidencialmente para perto de mim enquanto pegava a bebida. - É apenas que ele não consegue evacuar sem ajuda e ele não quer pedir isso a uma senhora. Mas, se o sr. Denzell ou o doutor não vierem logo, eu o ajudarei.
- Quer que eu chame um dos enfermeiros? - perguntei, surpresa. - Estão logo ali fora.
- Oh, não, senhora. Depois que o sol se põe, eles acham que estão dispensados do serviço. Não entram aqui, a não ser que haja uma briga ou a barraca pegue fogo.
- Hum - eu disse. Obviamente, as atitudes dos enfermeiros de hospital de campanha não diferiam muito de uma época para outra. - Encontrarei um dos médicos - afirmei; o sr. Brewster era magro e amarelado, e sua mão tremia tanto que eu tive que colocar meus próprios dedos ao redor dos dele para ajudá-lo a beber. Eu duvidava que ele conseguisse ficar de pé bastante tempo para resolver suas próprias necessidades, quanto mais ajudar o cabo Shoreditch com as dele. O sr. Brewster, entretanto, era bem-disposto.
- Defecar é algo em que posso dizer que já adquiri alguma habilidade a essa altura - ele disse, rindo para mim. Limpou o rosto com a mão trêmula e parou entre cada gole para respirar pesadamente. - Ah... teria um pouco de gordura de cozinha à mão, madame? Meu cu está em carne viva, como um coelho que acabou de ser esfolado. Eu posso aplicar em mim mesmo, a menos que a senhora queira ajudar, é claro.
- Mencionarei isso ao dr. Hunter - respondi secamente. - Tenho certeza de que ele ficará encantado.
Terminei minha ronda rapidamente - a maioria dos homens dormia - e fui procurar Denny Hunter, que encontrei do lado de fora de sua própria barraca, encolhido contra o frio, com um cachecol ao redor do pescoço, sonhadoramente ouvindo uma balada cantada ao redor de uma fogueira próxima.
- Quem? - Ele saiu do transe quando eu surgi, embora tivesse levado alguns instantes a retornar completamente à Terra. - Oh, amigo Jebediah, claro. Sem dúvida, irei imediatamente.
- Tem um pouco de gordura de urso ou de ganso?
Denny ajeitou os óculos com mais firmeza no nariz, dirigindo-me um olhar inquiridor.
- O amigo Jebediah não está com prisão de ventre, está? Achei que sua dificuldade fosse mais de engenharia do que de fisiologia.
Eu ri, e expliquei.
- Oh. Bem. Eu de fato tenho um pouco de unguento - ele disse, em dúvida. - Mas é mentolado, para o tratamento de gripe e pleurite. Acho que não fará nenhum bem ao traseiro do amigo Brewster.
- Receio que não - concordei. - Por que não vai ajudar o sr. Shoreditch enquanto eu vou buscar um pouco de gordura simples e levo até lá?
Gordura - qualquer tipo de gordura - era um ingrediente essencial da cozinha e foram necessárias apenas duas consultas junto a fogueiras do acampamento para conseguir uma xícara. Era, a doadora me informou, sebo de gambá processado.
- Mais gorduroso do que a gordura - a mulher me informou. - E saboroso, também. - Essa última característica era improvável que fosse de grande interesse para o sr. Brewster, ou ao menos assim eu esperava, mas agradeci efusivamente e parti na escuridão, de volta à pequena barraca do hospital.
Ao menos, eu tinha a intenção de partir naquela direção. Mas a lua ainda não havia surgido e em poucos instantes eu me vi em uma encosta densamente arborizada da qual eu não me lembrava, tropeçando em raízes e galhos caídos.
Murmurando comigo mesma, virei para a esquerda... certamente, era este... não, não era. Parei, praguejando silenciosamente. Eu não podia estar perdida; eu estava no meio de um acampamento contendo ao menos metade do Exército Continental, sem falar nas dezenas de milícias. No entanto, exatamente onde eu estava no dito acampamento... eu podia ver o clarão de diversas fogueiras através das árvores, mas a configuração delas me parecia estranha. Desorientada, virei-me na outra direção, estreitando os olhos, em busca do teto remendado da grande barraca do coronel Martin, sendo esse o maior marco capaz de ser visível na escuridão.
Algo correu por cima do meu pé e eu dei um salto, em reflexo, derramando a gordura líquida de gambá sobre a minha mão. Cerrei os dentes e limpei a mão cuidadosamente no meu avental. A gordura de gambá é realmente extremamente gordurosa, a principal desvantagem como lubrificante de uso geral, sendo que cheirava a gambá morto.
Meu coração batia aceleradamente com o choque e deu um salto convulsivo quando uma coruja saiu do bosque à minha direita, um pedaço da noite dando uma revoada súbita e silenciosa a poucos passos do meu rosto. Então, um galho estalou repentinamente e eu ouvi os movimentos de vários homens, murmurando ao mesmo tempo conforme abriam caminho pela vegetação próxima.
Permaneci absolutamente imóvel, os dentes mordendo o lábio inferior, e senti uma onda de terror repentina e irracional.
Está tudo bem!, disse a mim mesma, furiosa. São apenas soldados procurando um atalho. Nenhuma ameaça, absolutamente nenhuma ameaça!
Conte outra, meu sistema nervoso replicou, ao som de uma imprecação abafada, o farfalhar de folhas secas e gravetos quebrados e o baque repentino de um objeto sólido batendo contra a cabeça de alguém. Um grito, a pancada da queda de um corpo e os ruídos apressados de ladrões vasculhando os bolsos da vítima.
Não consegui me mover. Queria desesperadamente correr, mas estava fincada no lugar; minhas pernas simplesmente não me obedeciam. Era exatamente como um pesadelo, com algo terrível prestes a me acontecer, sem que eu conseguisse sair do lugar.
Minha boca estava aberta e eu tentava com todas as minhas forças não gritar enquanto ao mesmo tempo aterrorizada que eu não pudesse gritar. Minha Própria respiração era ruidosa, ecoando dentro de minha cabeça, e de repente senti minha garganta arder com sangue engolido, a respiração difícil, as narinas entupidas. E o peso sobre mim, amorfo, esmagando-me na terra áspera de cascalhos e pinhas caídas. Senti um hálito quente em meu ouvido.
Pronto. Sinto muito, Martha, mas você tem que aceitar. Tenho que lhe dar isso. Sim, agora... oh, meu Deus, agora... agora....
Não me lembrava de ter caído no chão. Estava encolhida em uma bola, o rosto pressionado contra os joelhos, tremendo de ódio e terror. Farfalhando nos arbustos próximos, vários homens passaram a poucos passos de mim, rindo e pilheriando.
E então algum pequeno fragmento de minha sanidade ergueu a voz nos recessos de meu cérebro, observando friamente, desapaixonadamente, Oh, então isso é um flashback. Que interessante.
- Vai ver o que é interessante - sussurrei, ou achei que havia sussurrado. Não acredito que tenha emitido nenhum som. Eu estava completamente vestida, enrolada em muitas roupas contra o frio, podia sentir o ar frio em meu rosto, mas não fazia nenhuma diferença. Eu estava nua, sentia o ar frio em meus seios, minhas coxas, entre minhas coxas...
Fechei as pernas com todas as forças que pude reunir e mordi o lábio. Agora eu realmente sentia gosto de sangue. Mas o fato seguinte não aconteceu. Eu me lembrava vividamente. Mas era uma lembrança. Não aconteceu outra vez.
Muito lentamente, retornei à realidade. Meu lábio doía, e sangrava. Eu podia sentir o corte, uma pele solta na parte interna de meu lábio, e sentir o gosto de prata e cobre, como se minha boca estivesse cheia de moedas.
Eu respirava como se tivesse corrido dois quilômetros, mas eu podia respirar; meu nariz estava desobstruído, minha garganta estava mansa e aberta, não machucada, nem esfolada. Eu estava banhada de suor e meus músculos doíam de estarem contraídos com tanta força.
Ouvi gemidos nos arbustos à minha esquerda. Não o mataram, então, pensei indistintamente. Imaginei que devia ir vê-lo, ajudá-lo. Eu não queria, não queria tocar em um homem, ver um homem, estar perto de um homem. Mas não importava; eu não conseguia me mover.
Eu já não estava paralisada de terror; sabia onde estava, que estava segura, suficientemente segura. Mas não conseguia me mover. Permaneci agachada, suando e tremendo, e ouvindo.
O homem gemeu algumas vezes, depois rolou devagar, agitando a folhagem.
- Oh, merda - murmurou. Permaneceu imóvel, respirando com dificuldade, depois se sentou abruptamente, exclamando, não sei se por causa da dor do movimento ou da lembrança do roubo: - Oh, merda!
Ouviu-se uma imprecação sussurrada, um suspiro, silêncio... em seguida, um grito agudo de puro terror que atingiu minha espinha dorsal como um raio de eletricidade.
Sons farfalhantes agitados conforme o sujeito tentava ficar de pé - ora, ora, o que estava acontecendo? Estrépitos e ruídos de fuga. O terror era contagiante; eu também quis correr, fiquei em pé, o coração na boca, mas não sabia para onde ir. Eu não conseguia ouvir nada acima da barulhada daquele idiota. O que estaria ali?
Um suave farfalhar de folhas secas me fez virar a cabeça abruptamente - e me salvou pela fração de um segundo de ter um ataque do coração quando Rollo enfiou o focinho úmido em minha mão.
- Jesus H. Roosevelt Cristo! - exclamei, aliviada com o som de minha própria voz. O ruge-ruge de passos nas folhas chegou até mim.
- Oh, aí está você, tia. - Uma figura alta assomou à minha frente, não mais do que uma sombra no escuro, e o Jovem Ian tocou meu braço. - Você está bem, tia? - Havia um tom de ansiedade em sua voz, que Deus o abençoe.
- Sim - eu disse, debilmente, depois com mais convicção. - Sim. Estou. Eu me perdi, no escuro.
- Oh. - A figura alta relaxou. - Imaginei que tivesse se perdido. Denny Hunter veio e disse que você tinha ido pegar um pouco de gordura, mas não tinha voltado, e ele estava preocupado. Assim, eu e Rollo viemos procurá-la. Quem era o sujeito que Rollo botou para correr?
- Não sei. - A menção de gordura me fez procurar a vasilha com gordura de gambá. Estava no chão, vazia e limpa. Pelos ruídos suculentos, deduzi que Rollo, tendo terminado com o que restara na vasilha, agora cuidadosamente lambia as folhas mortas em que a gordura se espalhara quando a deixei cair. Nas circunstâncias atuais, não achava que podia realmente reclamar.
Ian abaixou-se e pegou a xícara.
- Volte para a fogueira, tia. Vou procurar mais gordura.
Não fiz nenhuma objeção a isso e o segui para fora da encosta da colina, sem prestar verdadeira atenção aos meus arredores. Estava ocupada demais em reorganizar meu estado mental, acalmar meus sentimentos e tentar recuperar alguma espécie de equilíbrio.
Eu ouvira a palavra "flashback" apenas de passagem, em Boston, nos anos 1960. Não chamávamos de flashback antes, mas eu já ouvira falar. E já vira. Neurose de guerra, diziam na Primeira Guerra Mundial. Trauma de guerra, na Segunda. É o que acontece quando alguém sofre certas experiências que não deveria vivenciar e não consegue conciliar esse conhecimento com o fato de tê-las vivenciado.
Bem, eu vivenciei, disse desafiadoramente a mim mesma. Então, pode ir se acostumando a isso. Perguntei-me por um instante com quem eu estava falando e - muito seriamente - se eu estaria enlouquecendo.
Eu certamente me lembrava do que me acontecera quando fora raptada anos antes. Eu teria preferido não me lembrar, mas sabia o suficiente de psicologia para não tentar reprimir as lembranças. Quando elas se apresentavam, eu as enfrentava cautelosamente, fazendo exercícios respiratórios, depois as armaZenava de novo no lugar de onde tinham vindo e ia procurar Jamie. Após algum tempo, descobri que apenas certos detalhes surgiam vividamente; uma orelha morta, roxa à luz do amanhecer, parecendo um fungo exótico; a brilhante explosão de luz que eu vira quando Harley Boble quebrou meu nariz; o cheiro de milho no hálito do adolescente que tentara me violentar. O volume pesado e macio do homem que o fez. O resto era uma misericordiosa mancha turva.
Eu também tinha pesadelos, embora Jamie geralmente acordasse imediatamente quando eu começava a choramingar e me agarrasse com força suficiente para estraçalhar o sonho, segurando-me contra ele e afagando meus cabelos, minhas costas, murmurando docemente para mim, ele próprio sonolento, até eu afundar novamente em sua paz e voltar a dormir.
Isso foi diferente.
Ian foi de fogueira em fogueira em busca de gordura e finalmente conseguiu uma latinha contendo uns dois centímetros de gordura de ganso misturada com confrei. Era mais do que um pouco rançosa, mas Denny Hunter lhe dissera para que serviria e ele achou que o estado do unguento não fazia diferença.
O estado de sua tia o preocupava um pouco mais. Ele sabia muito bem por que ela às vezes se contorcia como um pequeno grilo ou se lamuriava em seu sono. Ele vira o estado em que ela estava quando a resgataram das mãos daqueles miseráveis e sabia o que haviam feito com ela. O sangue subiu ao seu rosto e os vasos sanguíneos em suas têmporas se intumesceram à lembrança do combate quando a tomaram de volta.
Ela não quis cobrar sua própria vingança, quando a resgataram; ele achava que talvez tivesse sido um erro, embora compreendesse a parte de ela ser uma curandeira e ter jurado não matar. A questão é que alguns homens precisavam ser mortos. A Igreja não admitia isso, a não ser em guerra. Os mohawks entendiam isso muito bem. Assim como tio Jamie.
E os quakers...
Ele suspirou.
De mal para pior. No instante em que conseguiu a gordura, ele mudou a direção de seus passos, não para a barraca do hospital onde Denny certamente deveria estar, mas na direção da barraca dos Hunter. Podia fingir que estava indo para a barraca do hospital; as duas ficavam próximas uma da outra. Mas ele nunca vira necessidade de mentir para si mesmo.
Não pela primeira vez, sentia falta de Brianna. Podia conversar qualquer coisa com ela, e ela com ele - mais, ele achava, do que ela podia conversar com Roger Mac.
Mecanicamente, fez o sinal da cruz, murmurando:
- Gum biodh iad sabhhailte, a Dhia. - Que estejam a salvo, oh, Senhor.
Quanto a isso, perguntou-se o que Roger Mac teria aconselhado se estivesse ali. Ele era um homem calado, e religioso, ainda que presbiteriano. Mas ele participara daquela cavalgada noturna e da ação empreendida, e nunca dissera nem uma palavra sobre o assunto depois.
Ian contemplou por um instante a futura congregação de Roger Mac e o que eles pensariam daquela descrição de seu ministro, mas sacudiu a cabeça e seguiu em frente. Todas essas ponderações eram apenas meios de impedi-lo de pensar no que diria quando a visse, e isso era inútil. Ele só queria dizer uma coisa para ela e essa era a única coisa que não podia dizer, nunca.
A porta da barraca estava fechada, mas havia uma vela acesa lá dentro. Tossiu educadamente do lado de fora e Rollo, vendo onde estavam, abanou o rabo e emitiu um uuuf cordial!
A aba foi virada para trás no mesmo instante e Rachel ficou ali parada, a costura em uma das mãos, estreitando os olhos para a escuridão, mas já sorrindo; ela ouvira o cachorro. Ela tirara a touca e seus cabelos estavam despenteados, desprendendo-se dos grampos.
- Rollo! - ela disse, abaixando-se para afagar suas orelhas. - E vejo que trouxe seu amigo com você.
Ian sorriu, erguendo a latinha.
- Trouxe um pouco de gordura. Minha tia disse que seu irmão precisava para o seu traseiro. - Logo em seguida, tardiamente, ele se recompôs. - Quero dizer, para um traseiro. - A mortificação queimou em seu peito, mas ele estava falando provavelmente com a única mulher no acampamento que podia considerar traseiros como um tema comum de conversa. Bem, a única salvo sua tia, corrigiu-se. Ou as prostitutas, talvez.
- Oh, ele vai ficar satisfeito; muito obrigada.
Ela estendeu o braço para pegar a latinha de sua mão e seus dedos roçaram os dele. A latinha estava lambuzada de gordura e escorregadia; ela caiu e ambos se abaixaram para pegá-la. Ela endireitou-se primeiro; seus cabelos roçaram o rosto dele, quentes, com seu cheiro.
Sem sequer pensar, ele colocou as duas mãos em seu rosto e inclinou-se para ela. Viu o brilho e o escurecimento de seus olhos e teve um batimento cardíaco, dois, de perfeita e cálida felicidade, quando seus lábios pousaram sobre os dela e seu coração descansou em suas mãos.
Então, uma dessas mãos estalou em seu rosto e ele cambaleou para trás como um bêbado acordado de repente.
- O que está fazendo? - ela sussurrou. Os olhos arregalados como dois pires, ela havia recuado e fora pressionada contra a lona da barraca como se fosse atravessá-la. - Não pode fazer isso!
Ele não conseguiu encontrar as palavras certas para dizer. Seus idiomas ferviam em sua mente como um ensopado, e ele emudeceu. Mas a primeira Palavra a vir à tona através da confusão foi em gaélico.
- Mo chridhe - ele disse, e respirou pela primeira vez desde que a tocara. A língua mohawk veio em seguida, profunda e visceral. Eu preciso de você. E por último o inglês, a mais apropriada para um pedido de desculpas. - Sin... sinto muito.
Ela balançou a cabeça, com movimentos espasmódicos como uma marionete.
- Sim. Eu... sim.
Ele devia ir embora. Ela estava com medo. Ele sabia disso. Mas sabia de outra coisa também. Não era dele que tinha medo. Devagar, bem devagar, ele estendeu a mão para ela, os dedos movendo-se contra a sua vontade, devagar, como se fosse pescar uma truta com as mãos.
E por um milagre inesperado, mas ainda assim um milagre, a mão dela estendeu-se furtivamente para a dele, trêmula. Ele tocou a ponta de seus dedos, achou-os frios. Os seus estavam quentes, ele a aqueceria... Mentalmente, ele sentiu a friagem da pele dela contra a sua, notou os mamilos duros contra o tecido de seu vestido e sentiu o peso pequeno e redondo de seus seios, frios em suas mãos, a pressão de suas coxas, frias e rígidas contra o calor de seu corpo.
Ele segurava sua mão, puxando-a para si. E ela estava vindo, desarmada, indefesa, atraída para o seu calor.
- Você não deve fazer isso - ela sussurrou, de forma quase inaudível. - Nós não devemos.
Ele percebeu, indistintamente, que era claro que não podia simplesmente atraí-la para si, deixar-se cair no chão, livrar-se de suas roupas e possuí-la, embora cada fibra de seu corpo exigisse que ele fizesse exatamente isso. No entanto, alguma vaga lembrança da civilização se impôs e ele a agarrou. Ao mesmo tempo, com terrível relutância, soltou sua mão.
- Não, claro que não - ele disse, em perfeito inglês. - Claro que não devemos.
- Eu... você... - Ela engoliu em seco e passou as costas das mãos pelos lábios. Não para limpar o beijo dele, mas de perplexidade, ele pensou. - Você sabe...? - Ela parou de repente, impotente, fitando-o.
- Não estou preocupado se você me ama - ele disse, e sentiu que falava a verdade. - Não agora. Estou preocupado que você possa morrer porque ama.
- Como você é atrevido! Eu não disse que o amava.
Ele olhou para ela e algo se moveu em seu peito. Podia ser uma risada. Podia não ser.
- É bem melhor que não ame - ele disse suavemente. - Não sou nenhum tolo, nem você.
Ela fez um gesto impulsivo na direção dele e ele recuou, apenas uma fração de centímetro.
- Acho melhor você não me tocar, garota - ele disse, ainda fitando-a intensamente nos olhos, da cor de agrião sob águas correntes. - Porque, se o fizer, vou possuí-la, aqui e agora. E então será tarde demais para nós dois, não é?
A mão da jovem parou no ar e, apesar de ele ver que ela queria retirá-la, não conseguia.
Ele virou-se, então, e saiu para dentro da noite, a pele tão quente que o ar noturno virava vapor ao tocá-lo.
Rachel permaneceu paralisada por um instante, ouvindo as batidas do seu coração. Outro som regular começou a se interpor, um ruído suave de lambidas, e ela olhou para baixo, pestanejando, deparando-se com Rollo, que havia metodicamente limpado o que restara da gordura de ganso na lata que ela deixara cair e agora lambia a lata vazia.
- Oh, meu Deus - ela exclamou, colocando a mão sobre a boca, com receio de que, se risse, teria um ataque de riso histérico. O cachorro ergueu os olhos para ela, amarelos à luz da vela. Lambeu os beiços, a cauda comprida balançando suavemente. - O que vou fazer agora? - perguntou a ele. - Tudo bem para você; pode andar atrás dele o dia inteiro e compartilhar sua cama à noite, sem precisar dizer nada.
Ela sentou-se no banquinho, sentindo os joelhos fraquejarem, e segurou com força a pelagem espessa do pescoço de Rollo.
- O que ele pensa? - perguntou-lhe. - "Estou preocupado que você possa morrer porque ama"? Será que me acha uma dessas tontas que definham, desfalecem e adoecem por amor, como Abigail Miller? Não que ela fosse pensar em realmente morrer por causa de alguém, muito menos por causa de seu pobre marido. - Abaixou os olhos para o cachorro e afagou seu pescoço. - E o que ele pretende, beijando aquela assanhada - perdoe minha falta de caridade, Senhor, mas de nada adianta ignorar a verdade - e menos de três horas depois me beijando? Diga-me! O que ele pretende com isso?
Soltou o cachorro. Ele lambeu sua mão educadamente, depois desapareceu silenciosamente pela abertura da barraca, sem dúvida para levar sua pergunta a seu impertinente dono.
Ela devia estar esquentando a água do café e preparando alguma coisa para o jantar; logo Denny estaria de volta da barraca do hospital, com fome e com frio. Mas ela continuou sentada, olhando fixamente para a chama da vela, imaginando se sentiria alguma coisa caso passasse a mão por ela.
Duvidava. Todo o seu corpo se incendiara quando ele a tocou, repentinamente, como uma tocha embebida em terebintina, e ela ainda ardia. Era de admirar que sua roupa não tivesse irrompido em chamas.
Ela sabia o que ele era. Ele não fizera nenhum segredo disso. Um homem que vivia por meio da violência, que a carregava consigo.
- E eu usei isso quando me foi conveniente, não é? - ela perguntou à vela. Não era um ato de um Amigo. Ela não se contentara em confiar na graça divina, não estivera disposta a aceitar Sua vontade. Ela não só fora conivente e encorajara a violência, mas colocara Ian Murray em grande perigo tanto de corpo quanto de alma. Não, não adiantava ignorar a verdade. - Embora, se for a verdade o que estamos falando aqui - ela disse à vela, ainda se sentindo rebelde - sou testemunha que ele o fez por Denny, tanto quanto por mim.
- Quem fez o quê? - A cabeça abaixada de seu irmão se enfiou pela porta da barraca e ele se endireitou, piscando para ela.
- Pode rezar por mim? - ela pediu abruptamente. - Estou correndo grande Perigo.
Seu irmão a fitou espantado, os olhos arregalados atrás dos óculos.
- De fato, está - ele disse, devagar. - Embora eu tenha minhas dúvidas se a prece a ajudará muito.
- O quê? Não lhe resta nenhuma fé em Deus? - Ela falou rispidamente, ainda mais ansiosa com a ideia de que seu irmão pudesse ter sido vencido pelas coisas que vira no último mês. Ela temia que houvessem abalado consideravelmente sua fé, mas dependia da fé de seu irmão como de seu escudo e broquel. Se ela tivesse desaparecido...
- Oh, fé infinita em Deus - ele disse, e sorriu. - E você? Não tanto. - Ele tirou o chapéu e pendurou-o no prego que enfiara na estaca da barraca e verificou se a porta estava fechada e bem amarrada atrás dele. - Ouvi lobos uivando em meu caminho de volta - ele observou. - Mais perto do que o suportável.
- Ele sentou-se e olhou diretamente para ela. - Ian Murray? - ele perguntou sem rodeios.
- Como soube disso? - Suas mãos tremiam e ela as limpou irritadamente no avental.
- Acabo de ver o cachorro dele. - Olhou-a com interesse. - O que ele lhe disse?
- Eu... nada.
Denny ergueu uma das sobrancelhas com ceticismo e ela se acalmou.
- Não muito. Ele disse... que eu o amava.
- E ama? - Denny perguntou, não parecendo nem um pouco surpreso.
- Como posso estar apaixonada por um homem como ele?
- Se não estivesse, acho que não estaria me pedindo para rezar por você - ele ressaltou logicamente. - Você simplesmente o mandaria embora. "Como" não é provavelmente uma pergunta que eu esteja qualificado para responder, embora imagine que fale retoricamente, de qualquer forma.
Ela riu, apesar de sua agitação.
- Não - ela disse, alisando o avental sobre os joelhos. - Não, eu não falo retoricamente. Mais... Bem, você diria que Jó falava retoricamente quando perguntou ao Senhor o que Ele estava pensando? É dessa forma que eu falo.
- Questionar Deus é um assunto estranho - seu irmão disse pensativamente. - Você realmente obtém respostas, mas elas tendem a levá-lo a lugares estranhos. - Sorriu para ela outra vez, mas amavelmente e com tanta compreensão nos olhos que ela teve que desviar os seus.
Ela continuou sentada fazendo pregas com o tecido do avental entre os dedos, ouvindo os gritos e a cantoria bêbada que caracteriza todas as noites no acampamento. Ela tinha vontade de dizer que os lugares não podiam ser muito mais estranhos do que ali - dois Amigos no meio de um exército, e fazendo parte dele -, mas foi na verdade o questionamento de Deus de Denny que os levara até ali, e ela não queria que ele achasse que o culpava por isso.
Em vez disso, ela ergueu os olhos e perguntou ansiosamente:
- Você já esteve apaixonado, Denny?
- Oh - ele exclamou, e olhou para as próprias mãos, espalmadas sobre os joelhos. Continuou sorrindo, mas sua expressão se alterara, tornara-se introspectiva, como se visse algo dentro de sua cabeça. - Sim. Creio que sim.
- Na Inglaterra?
Ele assentiu.
- Sim. Mas... não seria possível.
- Ela... não era uma Amiga?
- Não - ele disse suavemente. - Não era.
De certa forma, isso foi um alívio; ela temia que ele tivesse se apaixonado por uma mulher que se recusava a deixar a Inglaterra, mas se sentira obrigado a retornar à América, por ela. Até onde isso dizia respeito a seus próprios sentimentos por Ian Murray, entretanto, não era um bom augúrio.
- Sinto muito pela gordura - ela disse repentinamente.
Ele pestanejou.
- Gordura?
- Para o traseiro de alguém, o amigo Murray disse. O cachorro a comeu.
- O cachorro comeu... oh, o cachorro comeu a gordura. - Sua boca se torceu e ele passou o polegar da mão direita devagar por cima dos dedos. - Tudo bem; consegui um pouco.
- Você está com fome - ela disse abruptamente, levantando-se. - Lave as mãos enquanto eu preparo o café.
- Seria ótimo. Obrigado, Rachel. Rachel... - Ele hesitou, mas não era homem de evitar os problemas. - O amigo Murray disse a você que você o ama... mas não que ele ama você? Isso parece... uma forma peculiar de expressão, não é?
- Sim, é - ela disse, em um tom de voz que indicava que ela não queria discutir as peculiaridades de Ian Murray. Não estava disposta a tentar explicar a Denny que Ian Murray não se declarara a ela em palavras porque não fora preciso. O ar ao seu redor ainda tremeluzia com o calor de sua declaração. Embora... - Talvez ele o tenha feito - ela disse devagar. - Ele disse alguma coisa para mim, mas não foi em inglês e eu não compreendi. Você sabe o que "mo criga" significa?
Denny franziu o cenho por um instante, depois sua testa desanuviou.
- Essa é a língua das Highlands, o que eles chamam de gàidhlig, eu acho. Não, não sei o que significa, mas já ouvi o amigo Jamie dizer isso a sua mulher, em tais circunstâncias que deixavam evidente tratar-se de um termo de profundo... afeto. - Ele tossiu. - Rachel... você quer que eu fale com ele?
Sua pele ainda queimava e seu rosto parecia arder em febre, mas diante disso um estilhaço de gelo pareceu penetrar fundo em seu coração.
- Falar com ele - ela repetiu, engolindo em seco. - E dizer... O quê? - Encontrara o bule de café e a bolsa de bolotas e chicória tostadas. Ela despejou um punhado da mistura escura em seu pilão e começou a socá-la como se a vasilha estivesse cheia de cobras.
Denny deu de ombros, observando-a com interesse.
- Você vai quebrar esse pilão - ele observou. - Quanto ao que eu deveria dizer... ora, você tem que me dizer, Rachel. - Seus olhos ainda estavam fixos nela, mas agora sérios, sem nenhum vestígio de humor. - Eu direi a ele para ficar afastado e nunca mais falar com você de novo, se você quiser. Ou, se preferir, posso assegurar-lhe que seu afeto por ele é só o de uma amiga e que ele deve se abster de novas declarações constrangedoras.
Ela despejou o pó no bule e acrescentou água do cantil que mantinha pendurado na estaca da barraca.
- Essas são as duas únicas alternativas que você vê? - ela perguntou, tentando manter a voz firme.
- Maninha - ele disse, muito gentilmente -, você não pode se casar com um homem assim e continuar a ser uma Amiga. Nenhuma comunidade quaker aceitaria tal união. Você sabe disso. - Esperou um instante e acrescentou: - Você me pediu para rezar por você.
Ela não respondeu, nem olhou para ele, mas desamarrou a porta da barraca e saiu para colocar o bule de café entre as brasas, parando para atiçar o fogo e acrescentar mais lenha. O ar brilhava perto do chão, iluminado pela fumaça e pela névoa avermelhada dos milhares de pequenas fogueiras como a dela. Mas a noite no alto estendia-se negra, límpida e infinita, as estrelas cintilando com seu próprio fogo frio.
Quando ela entrou na barraca outra vez, ele estava parcialmente embaixo da cama, murmurando consigo mesmo.
- O que foi? - ela perguntou, e ele se arrastou de ré para fora, trazendo com ele o pequeno caixote que guardava suas provisões - exceto que não havia nenhuma. Restavam apenas algumas bolotas e uma maçã, roída por ratos.
- O que foi? - ela repetiu, chocada. - O que aconteceu com a comida?
Denny estava afogueado e obviamente com raiva; ele passou os nós dos dedos com força pelos lábios antes de responder.
- Algum miserável filho da... do Mal... cortou a barraca e levou-a.
A consequente onda de fúria diante da notícia foi quase bem-vinda, pela distração que oferecia do problema principal.
- Ora, que... que...
- Sem dúvida - Denny disse, respirando fundo e procurando recuperar o autocontrole -, ele estava com fome. Pobre coitado - acrescentou, com uma notável falta de entonação caridosa.
- Se assim fosse, devia ter pedido que lhe dessem comida - ela retrucou. - E um ladrão, pura e simplesmente. - Batia o pé, furiosa. - Bem. Eu mesma vou pedir um pouco de comida. Tome conta do café.
- Não precisa ir por minha causa - ele protestou, mas foi um protesto desanimado; ela sabia que ele não havia comido desde a manhã e estava faminto; disse-lhe isso com os olhos arregalados em sua direção. - Os lobos... - ele protestou, mas ela já vestia sua capa e enfiava a touca na cabeça.
- Levarei uma tocha - assegurou-lhe. - E seria um lobo muito azarado que cometesse o erro de cruzar meu caminho no meu atual estado de espírito, posso lhe garantir! - Pegou sua bolsa e saiu rapidamente, antes que ele pudesse lhe perguntar onde ela pretendia ir.
Ela podia ter ido a uma dezena de barracas próximas. A perplexidade e a desconfiança com os Hunter desapareceram depois das aventuras de Denny como desertor e a própria Rachel mantinha relações cordiais com várias mulheres das milícias acampadas perto deles.
Ela podia ter dito a si mesma que não queria perturbar essas mulheres tão tarde da noite. Ou que queria saber as últimas notícias referentes à rendição. O amigo Jamie estava sempre a par das negociações e lhe contava tudo que podia. Ou que ela pensou em consultar Claire Fraser com relação a uma pequena, mas dolorosa, verruga em seu dedo do pé, e podia fazer isso enquanto procurava comida, em prol da conveniência.
Mas ela era uma mulher honesta e não disse nada disso a si mesma. Ela se dirigia ao acampamento dos Fraser como se atraída por um ímã, e o nome do ímã era Ian Murray. Ela via isso claramente, achava seu comportamento insano - e não podia fazer nada para mudá-lo, como não podia mudar a cor de seus olhos.
O que pretendia fazer, dizer ou mesmo pensar se de fato o visse era inimaginável, mas continuou andando mesmo assim, com firmeza, como se estivesse indo ao mercado, a luz de sua tocha um farol na terra pisoteada de seu caminho, sua própria sombra seguindo-a, enorme e estranha sobre a lona clara das barracas pelas quais passava.
CAOS
Eu cuidava do fogo quando ouvi o som de passos lentos se aproximando.
Virei-me e vi um vulto enorme entre mim e a lua, aproximando-se rapidamente. Tentei correr, mas não conseguia fazer minhas pernas obedecerem. Como em todos os melhores pesadelos, tentei gritar, mas o grito ficou preso em minha garganta. Engasguei e ele saiu como um pequeno e estrangulado "iip".
A figura monstruosa - com a de um homem, mas corcunda e sem cabeça, grunhindo - parou diante de mim, houve um curto sussurro e um baque forte de algo batendo no chão que lançou um deslocamento de ar frio por baixo de minha saia.
- Trouxe-lhe um presente, Sassenach - Jamie disse, rindo e enxugando o suor do queixo.
- Um... presente - eu disse debilmente, olhando para a enorme pilha de... O quê?... que ele deixara cair no chão aos meus pés. Então, o cheiro me alcançou. - Uma manta de búfalo! - exclamei. - Oh, Jamie! Uma verdadeira manta de búfalo?
Não havia muita dúvida a respeito. Não era - graças a Deus - uma pele fresca, mas o cheiro de seu dono original ainda era perceptível, mesmo no frio. Caí de joelhos, passando as mãos sobre ela. Era bem curada, flexível e relativamente limpa, a pelagem áspera sob minhas mãos, mas livre de lama, carrapichos, esterco seco e os demais defeitos que normalmente acompanham o búfalo vivo. Era enorme. E quente. Maravilhosamente quente.
Enfiei as mãos geladas em suas profundezas, que ainda retinham o calor do corpo de Jamie.
- Oh - exclamei. - Você a ganhou no jogo?
- Ganhei - ele disse, orgulhoso. - De um dos oficiais ingleses. Um bom jogador de cartas - ele acrescentou com justiça -, mas sem sorte.
- Andou jogando com oficiais ingleses? - Lancei um olhar de inquietação na direção do acampamento inglês, embora não fosse visível dali.
- Apenas um. Um capitão Mansel. Ele veio com a última resposta de Burgoyne e foi obrigado a esperar enquanto Granny digeria o recado. Terá sorte se não for completamente depenado antes de ir embora - acrescentou impiedosamente. - Nunca vi tanto azar com as cartas.
Eu não prestava nenhuma atenção, absorta em examinar a manta.
- É maravilhosa, Jamie! E enorme!
Realmente, era. Uns dois metros e meio de comprimento e larga o suficiente para duas pessoas se aconchegarem em seu calor - desde que não se importassem de dormir juntinhos. A ideia de me meter embaixo daquele abrigo envolvente, quente e confortável, após tantas noites tremendo de frio sob cobertores puídos...
Jamie parecia estar entretendo os mesmos pensamentos.
- Grande o suficiente para nós dois - ele disse, e tocou meus seios, muito delicadamente.
- Oh, é mesmo?
Inclinou-se para mais perto e eu senti seu próprio cheiro acima da catinga da manta de búfalo - folhas secas, o amargor do café de bolotas batizado com conhaque doce, aromas acrescentados ao profundo cheiro masculino de sua pele.
- Eu poderia identificá-lo no meio de uma dúzia de homens em um quarto escuro - eu disse, fechando os olhos e inalando deliciosamente.
- Acredito que sim; faz uma semana que não tomo banho.
Ele colocou a mão em meus ombros e inclinou a cabeça até nossas testas se tocarem.
- Quero desfazer o laço do pescoço de sua combinação - ele sussurrou - e sugar seus seios até você se dobrar como um pequeno camarão, com os joelhos nas minhas bolas. Depois, possuí-la rápido e com força, e adormecer com a cabeça recostada em seus seios nus. É verdade - ele disse, endireitando-se.
- Oh - eu disse. - Que excelente ideia.
Por mais favorável que eu fosse à ideia, eu podia ver que Jamie necessitava de nutrição antes de executar qualquer coisa de natureza extenuante; eu podia ouvir seu estômago roncando a um metro de distância.
- Jogar cartas o deixa exausto, não é? - observei, vendo-o exterminar três maçãs com seis mordidas.
- Sim, é verdade - disse laconicamente. - Temos pão?
- Não, mas temos cerveja.
Como se a palavra o tivesse evocado, o Jovem Ian se materializou da escuridão.
- Cerveja? - repetiu animadamente.
- Pão? - Jamie e eu dissemos juntos, farejando o ar como cachorros. Desprendendo-se das roupas de Ian, havia uma fragrância tostada, de farinha, a qual, constatou-se, vinha de dois pães pequenos em seus bolsos.
- Onde os conseguiu, Ian? - perguntei, entregando-lhe um cantil de cerveja.
Ele tomou um grande gole, depois abaixou o cantil e fitou-me distraidamente por um instante.
- Ah? - disse, vagamente.
- Você está bem, Ian? - Espreitei-o com certa preocupação, mas ele piscou e a inteligência retornou momentaneamente ao seu rosto.
- Sim, tia, estou. Só que... ah... oh, obrigado pela cerveja. - Devolveu-me o cantil vazio, sorriu para mim como se eu fosse uma estranha e saiu, hesitante, perdendo-se na escuridão.
- Você viu isso? - Virei-me e me deparei com Jamie absorto em limpar farelos de pão do colo com um dedo úmido.
- Não, o quê? Tome, Sassenach. - Entregou-me o segundo pãozinho.
- Ian está agindo como um retardado. Tome, coma a metade; precisa mais do que eu.
Ele não argumentou.
- Ele não estava sangrando ou cambaleando, estava? Bem, então, acho que está apaixonado por alguma pobre garota.
- Oh? Isso condiz com os sintomas. Mas... - Mordisquei o pão devagar, Para fazê-lo durar; estava fresco e crocante, obviamente acabara de sair das brasas. Eu já vira rapazes apaixonados, sem dúvida, e o comportamento de Ian realmente combinava com a sintomatologia. Mas eu não via isso em Ian desde...
- Quem seria?
- Só Deus sabe. Espero que não seja uma das prostitutas. - Jamie suspirou e passou a mão pelo rosto. - Embora talvez seja melhor isso do que a mulher de alguém.
- Oh, ele não... - comecei a dizer, mas vi o olhar irônico em seu rosto. - Oh, ele não fez isso, fez?
- Não, mas por pouco, e nenhum crédito para a senhora envolvida.
- Quem?
- A mulher do coronel Miller.
- Santo Deus. - Abigail Miller era uma jovem loura e alegre de vinte e poucos anos, e vinte e poucos anos mais nova do que seu um tanto corpulento, e notoriamente rabugento, marido. - Exatamente... que pouco?
- Quase o suficiente - Jamie disse soturnamente. - Ela o encostou em uma árvore e ficou se esfregando nele como uma gata no cio. Embora eu imagine que seu marido já tenha colocado um ponto final em suas travessuras a essa altura.
- Ele os viu?
- Sim. Ele e eu estávamos caminhando juntos, demos a volta em uma moita e lá estavam eles. Ficou obviamente claro para mim que não era ideia de Ian, mas ele também não estava resistindo muito.
O coronel Miller ficara paralisado por um instante, depois deu um passo à frente, agarrou sua espantada mulher pelo braço e, com um "Bom-dia, senhor" murmurado para Jamie, arrastou-a dali, guinchando, na direção de seu acampamento.
- Meu Deus... quando isso aconteceu? - perguntei.
Jamie olhou para a lua nascente, estimando.
- Oh, umas cinco ou seis horas atrás.
- E ele já conseguiu se apaixonar por outra pessoa?
Ele sorriu para mim.
- Já ouviu falar em coup defoudre, Sassenach? Não precisei de mais de uma boa olhada em você.
- Hum - eu disse, satisfeita.
Com algum esforço, levantei a pesada manta de búfalo para cima da pilha de galhos de abeto que formavam a base de nossa cama, estendi nossos dois cobertores por cima da manta, em seguida dobrei tudo como uma panqueca, criando um bolso grande, aconchegante, à prova d'água, no qual me enfiei, tremendo em minha combinação.
Deixei a porta da barraca aberta, observando Jamie enquanto ele bebia café e conversava com dois milicianos que haviam se aproximado para mexericar.
Conforme meus pés descongelavam pela primeira vez em um mês, relaxei em um estado de graça sem entraves. Como a maioria das pessoas obrigadas a viver ao ar livre no outono, eu normalmente dormia com todas as roupas que possuía. As mulheres que acompanhavam o exército de vez em quando removiam seus espartilhos - se não estivesse chovendo, às vezes era possível vê-los pendurados nos galhos de árvores de manhã para arejar, como pássaros imensos, fedidos, prontos para voar -, porém mais simplesmente apenas afrouxavam os cadarços e dormiam com eles. Os espartilhos são muito confortáveis de usar quando se está de pé, mas deixa muito a desejar como roupa de dormir.
Esta noite, com a perspectiva de abrigo quente e à prova d'água, eu havia na realidade chegado ao ponto de tirar não só meus espartilhos - enrolados sob minha cabeça como travesseiro - como também minha saia, blusa, casaco e lenço, enfiando-me na cama apenas de combinação e meias. Sentia-me absolutamente depravada.
Espreguicei-me luxuriosamente e percorri meu corpo com as mãos, em seguida cuidadosamente segurei meus seios, contemplando o plano de ação proposto por Jamie.
O calor da manta de búfalo estava me deixando deliciosamente sonolenta. Achei que não precisava me esforçar para me manter acordada; eu sabia que Jamie não estava com nenhuma disposição de abster-se de me acordar por cavalheiresca consideração pelo meu repouso.
A fortuita aquisição da manta o teria inspirado?, perguntei-me, o polegar sonhadoramente girando em torno de um mamilo. Ou teria o desespero sexual o inspirado a apostar na manta? Com sua mão ferida, fazia... quantos dias? Eu estava distraidamente contando os dias mentalmente quando ouvi o murmúrio baixo de uma nova voz junto ao fogo, e suspirei.
Ian. Não que não ficasse contente em vê-lo, mas... oh, bem. Ao menos, ele não aparecera exatamente quando estávamos...
Ele sentava-se em uma das pedras junto à fogueira, a cabeça abaixada. Havia tirado alguma coisa do seu sporran e esfregava-a cuidadosamente entre os dedos enquanto falava. Seu rosto comprido parecia preocupado, mas exibia uma espécie estranha de luminosidade.
Que bizarro, pensei. Eu já a vira antes, essa expressão. Uma espécie de decidida concentração em algo maravilhoso, um segredo assombroso guardado para si mesmo.
Era uma moça, eu pensei, achando graça e enternecida. Ele olhara exatamente daquela forma para Mary, a jovem prostituta que fora sua primeira. E Emily?
Bem, sim... creio que sim, apesar de que naquele momento sua alegria por ela fora terrivelmente obscurecida pelo conhecimento de sua iminente separaÇão de tudo e de todos que ele amava.
Cruimnich, Jamie lhe dissera, colocando seu próprio xale escocês nos ombros de Ian em despedida. Lembre-se. Eu achara que meu coração iria se partir, ao deixá-lo - sabia que o de Jamie se partira.
Ele ainda usava o mesmo xale esfarrapado, preso com um broche no ombro e sua camisa de camurça.
- Rachel Hunter? - Jamie exclamou, alto o suficiente para eu ouvir, e eu sentei me na cama com um salto, estupefata.
- Rachel Hunter? - repeti como um eco. - Você está apaixonado por Rachel?
Ian olhou para mim, surpreso com minha aparição, como se tivesse saído de uma caixa de surpresa.
- Oh, você está aí, tia. Eu estava pensando onde você teria ido - ele disse brandamente.
- Rachel Hunter? - repeti, não pretendendo deixar que ele se esquivasse da pergunta.
- Bem... sim. Ao menos, eu... bem, sim. Estou. - A admissão fez o sangue subir às suas faces; era visível mesmo à luz da fogueira.
- O garoto está achando que talvez pudéssemos dar uma palavra com Denzell, Sassenach - Jamie explicou. Parecia estar achando divertido, mas também parecia ligeiramente preocupado.
- Uma palavra? Para quê?
Ian ergueu a cabeça, olhando de um para o outro de nós.
- É só que... Denny Hunter não vai gostar disso. Mas ele tem grande admiração por tia Claire e o respeita, é claro, tio Jamie.
- Por que ele não iria gostar? - perguntei. A essa altura, eu já havia conseguido sair de dentro da manta e, enrolando meu xale ao redor dos ombros, sentei-me em uma pedra ao seu lado. Minha mente corria acelerada. Eu gostava muito de Rachel Hunter. E ficaria muito satisfeita - para não dizer aliviada - se Ian tivesse finalmente encontrado uma jovem decente para amar. Mas...
Ian olhou para mim.
- Certamente você sabe que eles são quakers, tia?
- Sim, claro - eu disse, devolvendo o olhar. Mas...
- E eu não sou.
- Sim, eu sei disso também. Mas...
- Ela seria expulsa das comunidades quakers, se casasse comigo. É provável que ambos fossem. Já foram expulsos uma vez por Denny se juntar ao exército, e isso foi muito difícil para ela.
- Oh - Jamie disse, parando no ato de rasgar um pedaço de pão. Ficou segurando-o por um instante, o cenho franzido. - Sim, imagino que seriam. - Colocou o pão na boca e mastigou devagar, refletindo.
- Acha que ela também o ama, Ian? - perguntei, o mais delicadamente possível.
O rosto de Ian dilacerava-se entre preocupação, susto e aquele brilho interior que cismava em atravessar as nuvens de aflição.
- Eu... bem. Acho que sim. Espero que sim.
- Você não perguntou a ela?
- Eu... não exatamente. Quero dizer... nós não conversamos realmente, sabe?
Jamie engoliu o pão e tossiu.
- Ian - ele disse. - Diga-me que você não se deitou com Rachel Hunter.
Ian lançou-lhe um olhar indignado. Jamie fitou-o, as sobrancelhas erguidas. Ian abaixou os olhos novamente para o objeto em suas mãos, rolando-o entre as palmas como uma bola de massa de pão.
- Não - murmurou. - Mas quisera ter feito isso.
- O quê?
- Bem... se tivesse, ela teria que se casar comigo, não é? Quisera ter pensado nisso, mas não, não pude; ela disse para eu parar, e eu parei. - Engoliu em seco, com força.
- Muito honrado de sua parte - murmurei, embora na verdade eu compreendesse seu ponto de vista. - E muito inteligente da parte dela.
Ele suspirou.
- O que devo fazer, tio Jamie?
- Acho que você mesmo não poderia se tornar um quaker, não é? - perguntei, hesitante.
Tanto Jamie quanto Ian olharam para mim. Eles não se pareciam nem um pouco, mas a expressão irônica e divertida em ambos os rostos era idêntica.
- Não me conheço muito bem, tia - Ian disse, com um doloroso esgar -, mas acho que não nasci para ser um quaker.
- E imagino que não pudesse... não, claro que não. - A ideia de professar uma conversão que ele não pretendia obviamente nunca passara por sua cabeça.
Percebi repentinamente que, mais do que qualquer outra pessoa, Ian compreenderia exatamente qual seria o custo para Rachel se seu amor por ele a separasse de seu povo. Não era de admirar que ele hesitasse à ideia de fazê-la pagar tal preço.
Sempre presumindo, lembrei a mim mesma, que ela realmente o amasse. Era melhor eu ter uma conversa com Rachel primeiro.
Ian continuava revirando algo nas mãos. Olhando mais atentamente, vi se tratar de um objeto pequeno, escuro, de couro. Certamente, não era...
- Isso não é a orelha de Neil Forbes, é? - exclamei.
- Sr. Fraser?
A voz me fez levantar com um salto, arrepiando os cabelos da minha nuca. Maldição, ele outra vez? De fato, era o soldado continental, o que estragara a minha sopa. Entrou devagar no círculo de luz da fogueira, os olhos fundos fixos em Jamie.
- Sou James Fraser, sim - Jamie disse, abaixando a caneca e indicando educadamente uma pedra vazia para que o estranho se sentasse. - Aceita uma xícara de café, senhor? Ou o que faz as vezes de café?
O homem sacudiu a cabeça, sem falar nada. Ele examinava Jamie de cima a baixo, como alguém prestes a comprar um cavalo, mas em dúvida quanto ao Seu temperamento.
- Talvez prefira uma boa xícara de cuspe? - Ian disse, em um tom nada amistoso. Jamie olhou para ele, espantado.
- Seo mac na muice a thàinig na bu thràithegad shiubhal - Ian acrescentou. Ele não tirou os olhos do estranho. - Chan eil e ag iarraidh rnath dhut idir, tio". - Este é o maldito filho de uma porca que esteve aqui antes à sua procura. Ele não tem boas intenções, tio.
- Tapadh leat Iain. Cha robh fios air a bhith agam - Jamie respondeu na mesma língua, mantendo a voz agradavelmente relaxada. Obrigado, Ian. Eu jamais imaginaria. - Tem alguma coisa a me dizer, senhor? - ele perguntou, mudando para inglês.
- Sim, quero falar com você. Em particular - o sujeito acrescentou, com um olhar de desprezo para Ian. Aparentemente, eu não contava.
- Este é meu sobrinho - Jamie disse, ainda amável, mas cauteloso. - Pode falar diante dele.
- Receio que possa pensar de modo diferente, sr. Fraser, quando ouvir o que tenho a dizer. E, uma vez dito, tais coisas não podem ser apagadas. Vá embora, rapaz - ele disse, sem se importar em olhar para Ian. - Ou vocês dois vão se arrepender.
Tanto Jamie quanto Ian empertigaram-se visivelmente. Então, se moveram, quase simultaneamente, os corpos se mexendo sutilmente, os pés posicionando-se sob o corpo, os ombros endireitando-se. Jamie olhou pensativamente para o homem por um instante, depois inclinou a cabeça quase imperceptivelmente para Ian. Seu sobrinho levantou-se sem dizer nem uma palavra e desapareceu na escuridão.
O sujeito ficou parado, esperando, até que o som dos passos de Ian desaparecesse e a noite silenciasse ao redor da pequena fogueira. Em seguida, deu a volta à fogueira e sentou-se devagar, em frente a Jamie, ainda mantendo aquele enervante ar de escrutínio. Bem, ele enervava a mim; Jamie apenas levantou sua caneca e esvaziou-a, calmo como se estivesse sentado em sua própria mesa de cozinha.
- Se tem alguma coisa a me dizer, senhor, diga. É tarde e já estou indo para a cama.
- Uma cama com sua adorável mulher, eu diria. Homem de sorte. - Eu começava a detestar imensamente aquele homem. Jamie ignorou tanto o comentário quanto o tom de troça com que foi feito, inclinando-se para a frente para servir o restante do café em sua caneca. Eu podia sentir o cheiro amargo da bebida, acima até mesmo do cheiro que a manta de búfalo deixara em minha combinação. - O nome Willie Coulter o faz se lembrar de alguém? - o sujeito perguntou abruptamente.
- Conheci vários homens com esse nome e essa laia - Jamie respondeu. - A maioria na Escócia.
- Sim, foi na Escócia. Um dia antes do grande massacre em Culloden. Mas você teve seu próprio massacre particular nesse dia, não?
Eu estivera vasculhando a mente por alguma lembrança de Willie Coulter - A menção de Culloden me atingiu como um soco no estômago.
Jamie fora obrigado a matar seu tio Dougal Mackenzie naquele dia. E tinha havido uma testemunha do fato além de mim: um membro do clã Mackenzie chamado Willie Coulter. Eu presumira que ele já havia morrido há muito tempo, em Culloden ou nas agruras que se seguiram - e tinha certeza de que Jamie pensara o mesmo.
Nosso visitante balançou-se um pouco para trás em sua pedra, sorrindo sarcasticamente.
- Em certa época, fui capataz em uma plantação de cana-de-açúcar de bom tamanho, sabe, na ilha de Jamaica. Tínhamos doze escravos negros da África, mas negros de boa qualidade ficavam cada vez mais caros. E assim o patrão me mandou ao mercado um dia com uma bolsa de prata, para examinar uma nova leva de degredados - criminosos expatriados para trabalho forçado, a maior parte da Escócia.
E entre as duas dúzias de homens que o capataz selecionara das fileiras de homens maltrapilhos, infestados de piolhos, esqueléticos, estava Willie Coulter. Capturado após a batalha, julgado e condenado rapidamente, e embarcado em um navio para as Antilhas, tudo no período de um mês, para nunca mais voltar à Escócia.
Eu podia ver apenas o lado do rosto de Jamie e vi um músculo saltar em seu maxilar. A maioria dos seus homens em Ardsmuir havia sido exilada do mesmo modo; somente o interesse de John Grey o salvara do mesmo destino e ele alimentava sentimentos distintamente contraditórios a esse respeito, mesmo muitos anos após o fato. No entanto, ele apenas balançou a cabeça, vagamente interessado, como se ouvisse uma história de um viajante em uma hospedaria.
- Todos eles morreram em duas semanas - o estranho disse, a boca torcida. - Como os negros também. Uns desgraçados trouxeram uma febre devastadora com eles do navio. Perdi meu emprego. Mas consegui uma coisa de valor para levar comigo. As últimas palavras de Willie Coulter.
Jamie não se movera muito desde que o sr. X se sentara, mas pude sentir a tensão Percorrendo seu corpo; estava esticado como um arco com a flecha engatada.
- O que você quer? - ele perguntou calmamente, inclinando-se para frente para pegar a caneca de café, de lata, envolta em um trapo.
- Mmmmhum. - O sujeito fez um ruído de satisfação iia garganta e inclinou-se um pouco para trás, balançando a cabeça.
- Sabia que era um homem educado e sensato. Sou um homem simples, senhor... digamos uns cem dólares? Para mostrar sua boa vontade - ele acrescentou, com um esgar que exibia dentes tortos, manchados de rapé. - E, para Poupar-lhe o trabalho de protestar, mencionarei apenas que sei que você tem isso no bolso. Acabo de conversar com o cavalheiro que você venceu no jogo esta tarde, hein?
Pestanejei; evidentemente, Jamie tivera uma sorte extraordinária. Nas cartas, ao menos.
- Para mostrar boa vontade - Jamie repetiu. Olhou para a caneca em sua mão, em seguida para o rosto sorridente do escocês das Lowlands, mas evidentemente concluiu que a distância era grande demais para atirá-la nele. - E para continuar com...?
- Ah, bem. Podemos discutir isso mais tarde. Ouvi dizer que é um homem de muitos recursos, coronel Fraser.
- E você pretende engordar agarrando-se a mim como uma sanguessuga, é isso?
- Ora, o uso de sanguessugas faz bem a uma pessoa, coronel. Mantém os humores em equilíbrio. - Olhou maliciosamente para mim. - Tenho certeza de que sua mulher conhece os benefícios disso.
- E o que você quer dizer com isso, verme nojento? - eu disse, ficando de pé. Jamie podia ter resolvido não atirar a caneca de café nele, mas eu estava disposta a tentar com o bule.
- Modos, mulher - ele disse, lançando-me um olhar de reprovação antes de voltar os olhos novamente para Jamie. - Você não bate nela, homem?
Pude ver o corpo retesado de Jamie mudando sutilmente; o arco estava sendo puxado.
- Não - comecei a dizer, virando-me para Jamie, mas nunca cheguei a terminar. Vi a expressão do rosto de Jamie mudar, eu o vi saltar sobre o sujeito - e girei nos calcanhares bem a tempo de ver Ian se materializar da escuridão atrás do chantagista e colocar um braço vigoroso ao redor de sua garganta.
Não vi a faca. Não tive que ver; vi o rosto de Ian, tão decidido a ponto de se tornar quase sem expressão - e vi o rosto do ex-capataz. Seu maxilar caiu e seus olhos se esbugalharam, as costas arqueando-se em uma tentativa vã de escapar.
Então, Ian soltou-o e Jamie segurou o sujeito quando ele começou a cair, o corpo repentina e horrivelmente mole.
- Santo Deus!
A exclamação veio diretamente de trás de mim e eu girei nos calcanhares outra vez, agora me deparando com o coronel Martin e dois de seus ajudantes de ordens, tão boquiabertos quanto o sr. X estivera momentos antes.
Jamie ergueu os olhos para eles, surpreso. No instante seguinte, virou-se e disse em voz baixa por cima do ombro:
- Ruith. - Corra.
- Alto aí! Assassinato! - um dos ajudantes de ordens gritou, saltando para a frente. - Pare, assassino!
Ian não perdera tempo em aceitar o conselho de Jamie; pude vê-lo correndo em disparada na direção da borda da floresta distante, mas havia bastante luz das fogueiras para revelar sua fuga e os gritos de Martin e seus asseclas despertavam todos ao alcance de sua voz; as pessoas saltavam de perto de suas fogueiras" espreitando na escuridão, gritando perguntas. Jamie largou o corpo do capataz junto à fogueira e correu atrás de Ian.
O mais jovem dos ajudantes de ordens passou correndo por mim, as pernas batendo em furiosa perseguição. O coronel Martin correu atrás dele e eu consegui estender o pé e fazê-lo tropeçar. Ele se estatelou por cima da fogueira, lançando uma chuva de fagulhas e cinzas na noite.
Deixando o segundo ajudante de ordens tentando apagar as chamas, segurei para cima a barra de minha combinação e corri o mais rápido que podia na direção que Jamie e Ian haviam tomado.
O acampamento parecia o Inferno de Dante, vultos negros gritando contra o clarão das chamas, empurrando-se uns aos outros em meio à fumaça e à confusão, gritos de "Assassino! Assassino!" entoando de diferentes direções, enquanto mais pessoas ouviam e se uniam ao coro.
Senti uma pontada no lado do corpo, mas continuei correndo, tropeçando em pedras, buracos e galhos. Gritos mais altos da esquerda - parei, arquejando, a mão sobre o lado do corpo, e vi a figura alta de Jamie libertando-se de dois perseguidores. Ele devia estar tentando desviar a perseguição de Ian - o que significava... virei-me e corri na direção contrária.
De fato, avistei Ian, que sensatamente parara de correr assim que viu Jamie partir em disparada, agora caminhando a passos rápidos na direção da floresta.
- Assassino! - uma voz gritou atrás de mim. Era Martin, o desgraçado, um pouco chamuscado, mas sem se dar por vencido. - Pare, Murray! Pare, já disse!
Ouvindo gritarem seu nome, Ian recomeçou a correr, ziguezagueando por uma fogueira de acampamento. Ao passar diante dela, vi uma sombra em seus calcanhares - Rollo estava com ele.
O coronel Martin me alcançara e vi, alarmada, que ele empunhava sua pistola.
- Pa... - comecei a dizer, mas antes que pudesse terminar a palavra colidi de frente com alguém e fomos todos ao chão.
Era Rachel Hunter, boquiaberta e com os olhos esbugalhados. Levantou-se apressadamente e correu para Ian, que ficara paralisado ao vê-la. O coronel Martin engatilhou a pistola e apontou para Ian, e um segundo depois Rollo saltou no ar e agarrou o braço do coronel em suas mandíbulas.
O pandemônio piorou. Ouviram-se os estrépitos de dois ou três tiros, e Rollo caiu no chão com um ganido, contorcendo-se. O coronel Martin deu Um salto para trás, praguejando e segurando o pulso ferido, e Jamie recuou e desfechou um soco em sua barriga. Ian já corria em direção a Rollo; Jamie segurou o cachorro por duas pernas e, os dois juntos, desapareceram na escuridão, seguidos por Rachel e eu.
Conseguimos chegar à beira da floresta, arquejando e resfolegando, e eu caí Mediatamente de joelhos ao lado de Rollo, tateando freneticamente o corpo enorme e peludo, procurando o ferimento.
- Ele não está morto - disse, arfando. - Ombro... quebrado.
- Oh, meu Deus - Ian disse e eu senti que ele se virava para olhar na direção de onde vinham os perseguidores. - Oh, meu Deus. - Ouvi lágrimas em sua voz e ele levou a mão ao cinto para pegar sua faca.
- O que está fazendo? - exclamei. - Ele pode se curar!
- Eles vão matá-lo - ele disse, desvairado. - Se eu não estiver lá para impedir, eles o matarão! É melhor que eu faça isso.
- Eu... - Jamie começou a dizer, mas Rachel Hunter o interrompeu, caindo de joelhos e agarrando Rollo pelo pescoço.
- Protegerei seu cachorro por você - ela disse, sem fôlego, mas decidida.
Ele deu um último olhar desesperado para ela, depois para Rollo. E correu.
Quando chegou a mensagem do general Gates pela manhã, Jamie já sabia do que se tratava. Ian conseguira escapar, o que não era de admirar. Ele devia estar na floresta ou talvez em um acampamento indígena; de qualquer modo, ninguém o encontraria enquanto ele não quisesse ser encontrado.
E Ian tinha razão: eles de fato queriam matar o cachorro, particularmente o coronel Martin, e foram necessários não só todos os recursos de Jamie, como também a jovem quaker se prostrar sobre o corpo peludo do animal e declarar que teriam que matá-la primeiro.
Isso desconcertou Martin um pouco, mas ainda havia uma considerável parte da opinião pública a favor de arrancá-la dali e matar o cachorro. Jamie se preparou para interferir, mas nesse momento o irmão de Rachel surgiu do meio da escuridão como um anjo vingador. Denny parou em frente a ela e denunciou a multidão como covardes, traidores e monstros desumanos, que queriam se vingar em um animal inocente, para não falar de sua maldita injustiça - sim, ele realmente dissera "maldita", com grande fervor, e a lembrança da cena fez Jamie sorrir, mesmo diante da entrevista que teria em seguida - em escorraçar e condenar um rapaz com base em sua própria suspeita e iniquidade, e não poderiam eles buscar em suas próprias entranhas a menor centelha de compaixão divina que era a vida dada por Deus a cada homem...
A chegada de Jamie ao quartel-general de Gates interrompeu essas divertidas reminiscências e ele se empertigou, adotando a expressão grave adequada às ocasiões penosas.
- Fuja!
TERMOS DE CAPITULAÇÃO
O próprio Gates parecia ter passado por grandes provações - o que de fato ocorrera, com toda a justiça. O rosto redondo, brando, nunca parecia ter nenhum osso, mas agora estava desfeito como um ovo mal cozido, e os olhos pequenos por trás dos óculos de aro de metal estavam imensos e injetados quando olharam para Jamie.
- Sente-se, coronel - Gates disse, empurrando uma garrafa de bebida e um copo para Jamie.
Jamie ficou estupefato. Ele já tivera muitas entrevistas severas com oficiais de alto escalão para saber que não começavam com uma dose de licor. No entanto, aceitou a bebida e tomou um pequeno gole, cautelosamente.
Gates esvaziou seu copo de uma só vez, com muito menos cautela, depositou o copo na mesa e suspirou ruidosamente.
- Preciso de um favor seu, coronel.
- Terei prazer em atendê-lo, senhor - respondeu, com mais cautela ainda. O que o maldito gorducho podia querer com ele? Se era saber o paradeiro de Ian ou uma explicação para o assassinato, podia ficar querendo em vão e devia saber disso. Se não...
- As negociações da rendição estão quase encerradas.
Gates lançou um olhar pouco amistoso para uma grossa pilha de documentos manuscritos, talvez rascunhos do acordo.
- As tropas de Burgoyne deverão marchar do acampamento com honras de guerra e depositar as armas na margem do Hudson ao comando de seus próprios oficiais. Todos os oficiais conservarão suas espadas e equipamento, os soldados, suas mochilas. O exército deverá marchar para Boston, onde será adequadamente alimentado e terá abrigo, antes de embarcar para a Inglaterra. A única condição imposta é que não sirvam na América do Norte outra vez durante a guerra atual. Termos generosos, deve concordar, não é, coronel?
- Realmente, muito generosos, senhor. - E surpreendentes. O que teria feito um general que inegavelmente dominava a situação como Gates oferecer termos de capitulação tão extraordinários?
Gates sorriu amargamente.
- Vejo que está surpreso, coronel. Talvez fique menos surpreso se eu lhe disser que sir Henry Clinton se dirige para o norte. - E Gates estava com pressa de concluir a rendição e se livrar de Burgoyne, a fim de ter tempo de se preparar para um ataque a partir do sul.
- Sim, senhor, compreendo.
- Sim, bem. - Gates fechou os olhos por um instante e suspirou outra vez, Parecendo exausto. - Mas há um pedido adicional de Burgoyne antes de aceitar o acordo.
- Sim?
Os olhos de Gates estavam abertos outra vez e percorreram-no devagar.
- Disseram-me que o senhor é primo do general de brigada Simon Fraser.
- Sou.
- Ótimo. Então, tenho certeza de que não terá nenhuma objeção a realizar um pequeno serviço pelo seu país.
- Um pequeno serviço relativo a Simon? Certamente...
- Em certa ocasião, ele havia expressado seu desejo a vários de seus ajudantes de ordens que, se viesse a morrer no estrangeiro, deveriam enterrá-lo imediatamente, o que fizeram, na verdade, eles o enterraram na Grande Fortificação. Mas que, quando fosse conveniente, ele queria ser levado de volta para a Escócia, para descansar em paz em sua terra.
- Quer que eu leve seu corpo para a Escócia? - Jamie exclamou de repente. Não poderia ter ficado mais surpreso, ainda que Gates tivesse se levantado repentinamente e dançado em cima da mesa. O general balançou a cabeça, com crescente amabilidade.
- O senhor é muito perspicaz, coronel. Sim. É a última solicitação de Burgoyne. Ele diz que o general de brigada era muito amado por seus homens e que, sabendo que seu desejo fora cumprido, iria fazê-los aceitar a retirada, já que não estariam abandonando sua sepultura.
Aquilo soou extremamente romântico, e muito próprio de Burgoyne, Jamie refletiu. Ele tinha uma reputação por gestos dramáticos. E provavelmente não estava errado em sua avaliação dos sentimentos dos homens que haviam servido sob o comando de Simon. Ele era um bom sujeito, Simon.
Somente depois é que percebeu que o resultado final desse pedido...
- Há... alguma providência a ser tomada para que eu chegue à Escócia com o corpo, senhor? - perguntou delicadamente. - Existe um bloqueio.
- Você será transportado, com sua mulher e criados, se desejar, em um dos navios de Sua Majestade, e uma quantia em dinheiro será fornecida para transportar o caixão depois de descarregado na Escócia. Tenho a sua concordância, coronel Fraser?
Ele estava tão estupefato que mal se lembrava do que dissera em resposta, mas evidentemente fora suficiente, pois Gates sorriu fatigadamente e dispensou-o. Ele voltou para sua barraca com a cabeça girando, imaginando se poderia disfarçar o Jovem Ian como criada de sua mulher, como fizera Carlos Stuart.
O dia 17 de outubro, como todos os dias anteriores, amanheceu escuro e enevoado. Em sua barraca, o general Burgoyne vestiu-se com particular esmero, em um estupendo casaco vermelho com galões dourados e um chapéu decorado com plumas. William o viu, quando foi com os demais oficiais à barraca de Burgoyne para sua última e angustiada reunião.
O barão Von Riedesel também falou com eles; ele guardou todos os estandartes dos regimentos. Iria dá-los a sua mulher, para serem costurados, segundo ele, dentro de um travesseiro e secretamente levado de volta a Brunswick.
William não se importava com nada disso. Estava consciente de uma grande tristeza, pois ele nunca deixara companheiros em um campo de batalha e se retirara. Um pouco de vergonha, mas não muita - o general tinha razão em dizer que eles não poderiam desfechar novo ataque sem perder a maior parte do exército, tão precárias eram suas condições.
Pareciam deploravelmente infelizes agora, enfileirados em silêncio, mas quando os pífanos e tambores começaram a soar cada regimento por sua vez seguiu as bandeiras desfraldadas, as cabeças erguidas em seus uniformes esfarrapados - ou qualquer roupa que podiam encontrar. O inimigo havia se retirado por ordem de Gates, o general disse. Isso foi cavalheiresco, William pensou entorpecidamente; os americanos não estariam presentes para testemunhar a humilhação deles.
Casacos vermelhos primeiro, depois os regimentos alemães: dragões e granadeiros de azul, a infantaria e a artilharia de verde, de Hessecassel.
Nos baixios do rio, dezenas de cavalos jaziam mortos, o fedor aumentando o sombrio horror da ocasião. A artilharia estacionou o canhão ali e a infantaria, fileira por fileira, interminavelmente, despejou suas caixas de munição e empilhou seus mosquetes. Alguns homens estavam bastante furiosos para estraçalhar a coronha de suas armas antes de atirá-las nas pilhas; William viu um tocador de tambor enfiar o pé e destruir seu instrumento antes de se virar e ir embora. Ele não estava furioso, nem horrorizado.
Tudo que queria agora era ver seu pai outra vez.
As tropas e as milícias continentais marcharam até a casa designada como ponto de encontro em Saratoga e a partir dali se enfileiraram ao longo dos dois lados da estrada do rio. Algumas mulheres se aproximaram, observando de longe. Eu poderia ter permanecido no acampamento, para ver a histórica cerimônia de rendição entre os dois generais, mas em vez disso segui as tropas.
O sol se levantara e a neblina desaparecera, exatamente como vinha acontecendo nas últimas semanas. Havia um cheiro de fumaça no ar e o céu tinha àquele azul profundo, infinito, de outubro.
Os homens da artilharia e da infantaria enfileiravam-se ao longo da estrada, regularmente espaçados, mas esse espaçamento era a única coisa uniforme a respeito deles. Não havia trajes comuns e o equipamento de cada homem era obviamente de sua propriedade, na forma e na maneira como o portavam - mas cada homem segurava seu mosquete, ou seu rifle, ou postava-se junto ao seu canhão.
Formavam um grupo variegado em todo o sentido da palavra, ornamentados com chifres de pólvora e sacolas de munição, alguns usando perucas esquisitas e antiquadas. E mantinham-se em circunspecto silêncio, cada homem com o pé direito à frente, as mãos direitas na arma, para ver o inimigo se retirar, com honras de guerra.
Permaneci dentro do bosque, a certa distância atrás de Jamie, e vi seus ombros empertigarem-se um pouco. William passou por ele, alto e ereto, o rosto de um homem que não estava realmente ali. Jamie não abaixou a cabeça, nem fez nenhum esforço para não ser visto - mas vi sua cabeça se virar, muito ligeiramente, seguindo William até ele ficar fora de vista, na companhia de seus homens. Então, seus ombros abaixaram-se um pouco, como se um peso tivesse sido retirado de cima deles.
A salvo, o gesto dizia, apesar de ainda permanecer ereto como o rifle ao seu lado. Graças a Deus. Ele está a salvo.
SANTUÁRIO
Lallybroch
Roger não sabia dizer o que exatamente o impelia a fazer isso, além do senso de paz que pairava naquele lugar, mas ele começara a reconstruir a velha capela. Com as mãos, e sozinho, uma pedra depois da outra.
Tentara explicar a Bri; ela perguntara.
- São eles - disse finalmente, desamparado. - É uma espécie de... eu sinto como se precisasse me conectar com eles, lá atrás.
Ela tomou uma de suas mãos, abrindo seus dedos, e deslizou a ponta de seu polegar delicadamente sobre os nós de seus dedos, ao longo de seus dedos, tocando os arranhões e cascas de feridas, a unha enegrecida onde uma pedra havia batido ao escorregar.
- Eles - ela repetiu cuidadosamente. - Quer dizer, meus pais.
- Sim, entre outras coisas. - Não apenas com Jamie e Claire, mas com a vida que sua família havia construído. Com a própria noção de si mesmo como homem, protetor, provedor. No entanto, era sua necessidade premente de proteger que o levara a abandonar todos os seus princípios cristãos - nada menos do que às vésperas da ordenação - e sair em perseguição a Stephen Bonnet.
- Imagino que eu esteja esperando dar sentido às... coisas - ele dissera, com um sorriso irônico. - Como conciliar o que eu achava que sabia na época com o que eu acho que sou agora.
- Não é cristão querer salvar sua mulher de ser estuprada e vendida como escrava? - ela perguntou, um perceptível tom cortante na voz. - Porque se não for vou pegar as crianças e me converter ao judaísmo, ao xintoísmo, alguma outra religião.
Seu sorriso tornou-se mais genuíno.
- Eu encontrei alguma coisa lá. - Ele procurava as palavras certas.
- Perdeu algumas coisas, também - ela sussurrou. Sem despregar os olhos dele, ela estendeu a mão, as pontas de seus dedos frios na garganta de Roger.
A cicatriz da corda havia desbotado um pouco, mas ainda era assustadoramente visível; ele não fazia nenhum esforço para escondê-la. As vezes, quando conversava com outras pessoas, podia ver seus olhos fixos na cicatriz; considerando sua altura, não era incomum que os homens parecessem estar falando diretamente para a cicatriz, em vez de se dirigirem a ele próprio.
Encontrara um sentido de si mesmo como homem, encontrara o que achava que era sua vocação. E isso, imaginava, era o que procurava sob aquelas pilhas de pedras tombadas, sob os olhos de um santo cego.
Deus estaria abrindo uma porta, mostrando-lhe que ele deveria ser um professor agora? Seria isso, o ensino do gaélico, o que ele estava destinado a fazer? Tinha muito espaço para fazer perguntas, espaço, tempo e silêncio. As respostas eram raras. Trabalhara a maior parte da tarde; estava com calor, exausto e pronto para uma cerveja.
Seus olhos captaram a ponta de uma sombra na entrada e ele se virou - Jem ou talvez Brianna, vindo chamá-lo de volta para casa para tomar chá. Não era nenhum dos dois.
Por um instante, fitou o recém-chegado, esquadrinhando a memória. Calças jeans rasgadas e camiseta, cabelos louros e sujos, repicados e despenteados.
Sem dúvida, conhecia o sujeito; o rosto bonito, de ossos largos, lhe era familiar, mesmo sob uma espessa camada de pelos de barba castanho-claros.
- Posso ajudá-lo? - Roger perguntou, agarrando a pá que estivera usando.
O homem não parecia ameaçador, mas estava malvestido e sujo - um vagabundo, talvez - e havia algo indefinível a seu respeito que deixava Roger desconfortável.
- E uma igreja, hein? - o homem disse, e riu, embora nenhum vestígio de calor humano transparecesse em seus olhos. - Então, acho que vim reclamar um santuário. - Entrou repentinamente na luz e Roger viu seus olhos com mais nitidez. Frios, de um verde escuro, surpreendente. - Santuário - William Buccleigh Mackenzie repetiu. - E depois, meu caro ministro, quero que me diga quem você é, quem eu sou, e o que, em nome de Deus Todo-Poderoso, nós somos.
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