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Hazel Bannock é herdeira da Bannock Oil Corporation. Seu iate é tomado por piratas somalis e sua filha, Cayla, sequestrada. Os piratas exigem 20 bilhões de dólares, e complicadas circunstâncias políticas não permitem que ela seja ajudada pelo governo. Hazel só pode chamar Hector Cross para resgatar a sua filha. Ele é o homem por trás da Cross Bow, a empresa de segurança da Bannock Oil Corporation. Hazel e Hector estão determinados a fazer justiça com as próprias mãos. Em alto-mar mistura o talento para contar histórias de Smith com a realidade da pirataria do século XXI.
O Khamseen soprava havia cinco dias. As nuvens de poeira rolavam até eles pela extensão intimidante do deserto. Hector Cross usava um lenço listrado, um keffiyeh
ao redor do pescoço e óculos protetores. A barba rala e escura protegia a maior parte do rosto, mas a sensação nas áreas expostas era de que a pele fora lixada pelos
grãos abrasivos de areia até ficar em carne viva. Mesmo com o rugido do vento, ele foi capaz de escutar a batida pulsante do helicóptero que se aproximava. Ele sabia,
mesmo sem olhar, que nenhum dos homens ao seu redor havia escutado ainda. Seria constrangedor se ele não tivesse sido o primeiro. Embora fosse dez anos mais velho
do que a maioria dos demais, ele tinha de, na posição de líder, ser o mais rápido e perspicaz. Então, Uthmann Waddah fez um movimento ligeiro e o encarou. Hector
assentiu com a cabeça de forma quase imperceptível. Uthmann era um dos seus agentes de maior confiança. A amizade dos dois datava de vários anos, desde que Uthmann
havia tirado Hector de um veículo em chamas sob uma chuva de tiros em uma rua de Bagdá. Na ocasião, o fato de Uthmann ser muçulmano sunita deixara Hector desconfiado,
mas com o tempo ele provou seu valor. Agora, era indispensável. Entre outras virtudes, ensinara Hector a falar árabe de maneira quase perfeita. Seria necessário
um interrogador qualificado para notar que Hector não era um falante nativo.
Devido a alguma ilusão de ótica causada pela luz do sol, a silhueta monstruosamente distorcida do helicóptero se lançava contra a faixa de nuvens como num show de
lanterna mágica, de maneira que, quando o MIL-26 russo, pintado nas cores branca e vermelha da Bannock Oil, surgiu por entre elas, pareceu insignificante, tornando-se
visível apenas quando estava a cerca de noventa metros da pista de pouso. Devido à importância da única passageira, Hector havia contatado o piloto pelo rádio antes
da decolagem em Sidi el Razig - a base de operações da empresa no ponto terminal do oleoduto na costa - ordenando que não voasse em tais condições. A mulher havia
desobedecido ao seu comando e Hector não estava acostumado a ser contrariado.
Embora não se conhecessem pessoalmente ainda, o relacionamento entre ele e a mulher era delicado. Na prática, Hector não era empregado dela. Era o único dono da
Cross Bow Segurança Limitada. Porém, a empresa era contratada da Bannock Oil para proteger seus funcionários e suas instalações. O velho Henry Bannock havia escolhido
Hector a dedo entre várias firmas de segurança ávidas para lhe fornecer seus serviços.
O helicóptero pousou delicadamente na pista, e quando a porta da fuselagem se abriu, Hector caminhou ao encontro da mulher pela primeira vez. Ela surgiu na porta,
parando para olhar em volta, o que fez Hector pensar em um leopardo se equilibrando em um ramo no alto de uma árvore Marula, inspecionando a presa antes de saltar.
Embora achasse que a conhecia bem pelo que ouvira falar, em carne e osso ela parecia imbuída de tal poder e graciosidade que ele acabou tomado pela surpresa. Como
parte de sua pesquisa, havia estudado centenas de fotos, lido páginas e páginas e assistido a várias horas de filmagem sobre ela. As imagens mais antigas mostravam-na
na quadra central de Wimbledon, sendo derrotada por Navratilova em uma partida de quartas de final disputadíssima, ou três anos mais tarde, recebendo o troféu pela
conquista do torneio feminino do Aberto da Austrália em Melbourne. Em seguida, um ano depois, viria o casamento com Henry Bannock, chefe da Bannock Oil, um magnata
bilionário trinta anos mais velho. Depois, cenas dela e do marido conversando e rindo com chefes de Estado ou estrelas de cinema e outras personalidades do meio
artístico; caçando faisões em Sandringham como convidados da rainha da Inglaterra e do príncipe Philip, ou passando férias no Caribe no iate do casal, o Golfinho
Amoroso. Em seguida, recortes dela sentada ao lado do marido na reunião anual da empresa; outros, dela lidando habilmente com as perguntas de Larry King em seu programa
de entrevistas. Muito tempo depois, ela vestida em trajes de viúva e segurando a mão da filha, uma jovem encantadora, enquanto assistiam ao sarcófago de Henry Bannock
ser instalado no mausoléu do rancho da família nas montanhas do Colorado.
Depois disso, a batalha dela com os bancos e acionistas, e com o enteado, particularmente malévolo, fora narrada com entusiasmo pela mídia de negócios do mundo todo.
Quando finalmente conseguiu arrancar os direitos herdados de Henry das mãos ambiciosas do enteado e assumiu o lugar do marido à frente da diretoria da Bannock Oil,
as ações da empresa haviam desvalorizado drasticamente. Os investidores evaporaram, a fonte dos empréstimos bancários secou. Ninguém queria apostar as fichas em
uma antiga tenista e alpinista social glamorosa transformada em baronesa do petróleo. Mas eles não haviam levado em conta seu tino natural para os negócios e os
anos de tutelagem sob as asas de Henry Bannock, que valiam por cem diplomas de MBA. Assim como as multidões nas arenas romanas, seus detratores e críticos aguardaram
com uma ansiedade medonha a mulher ser devorada pelos leões. Então, para o desgosto de todos, ela veio com o terminal Zara número oito.
A revista Forbes publicou uma imagem de capa de Hazel de uniforme branco de tenista, segurando uma raquete na mão direita. A manchete dizia: "Hazel Bannock aplica
um ace na oposição. O ataque mais poderoso do petróleo nos últimos sessenta anos. Ela assume a coroa do marido, Henry, o Grande". O artigo principal começava assim:
No interior desolado de um pequeno e pobre Emirado abandonado por Deus chamado Abu Zara, há uma concessão de exploração de petróleo que já pertenceu à Shell. A área
havia sido extraída até a última gota e abandonada no período subsequente à Segunda Guerra Mundial. Isso até Hazel Bannock entrar em cena. Ela adquiriu a concessão
por alguns míseros milhões de dólares, e os peritos no assunto cutucaram uns aos outros e sorriram desdenhosos. Ignorando os protestos de seus conselheiros, gastou
muitos milhões mais enfiando uma broca de perfuração rotativa em uma anomalia subterrânea minúscula, situada na extremidade norte do terreno; uma anomalia que, de
acordo com as explorações primitivas realizadas sessenta anos antes, havia sido considerada periférica ao reservatório principal. Os geólogos da época chegaram à
conclusão de que qualquer petróleo existente na área há muito tempo tinha sido escoado para o reservatório principal e bombeado para a superfície, esgotando e desvalorizando
o terreno.
No entanto, quando a broca da senhora Bannock perfurou o impenetrável domo de sal do diapiro - uma vasta câmara subterrânea em que os depósitos de petróleo estavam
presos -, a sobrepressão do gás subiu com tamanha força pela abertura que expeliu quase 8 quilômetros de coluna de perfuração de aço como se fosse pasta de dentes
saindo do tubo, e a abertura se rompeu. Petróleo bruto de alta qualidade saiu jorrando pelo ar, alcançando dezenas de metros de altura. Finalmente tornou-se evidente
que os terrenos Zara de um a sete que haviam sido abandonados pela Shell eram apenas uma fração das reservas totais. O novo reservatório se situa a uma profundidade
de 6.664 metros e possui reservas estimadas em cinco bilhões de barris de óleo cru, leve e puro.
Assim que o helicóptero pousou, o engenheiro de voo soltou a escada e desceu, estendendo uma das mãos para a ilustre passageira, que ignorou a oferta e saltou 1,20m
até o chão, aterrissando com a leveza do leopardo com que tanto se assemelhava. Ela vestia um elegante conjunto tipo safári, feito sob medida, na cor cáqui, acompanhado
de um par de botas de deserto de camurça e uma vibrante echarpe Hermès no pescoço. A cabeleira farta e dourada, sua marca registrada, estava solta, ondulando ao
vento. Quantos anos tinha? Hector se perguntou. Ninguém parecia saber com certeza. Ela aparentava estar na casa dos trinta, mas tinha pelo menos quarenta. Ela agarrou
momentaneamente a mão que lhe foi oferecida por Hector, com uma força resultante das horas intermináveis passadas na quadra de tênis.
- Bem-vinda a Zara número oito, senhora - ele disse.
Ela lhe dirigiu um breve olhar. O azul dos seus olhos eram de um tom que o faziam lembrar da luz do sol irradiando das paredes de uma caverna de gelo encrustada
na fenda de uma grande montanha. Ela era bem mais atraente do que as fotografias o haviam levado a acreditar.
- Major Cross.
Ela o saudou com frieza. Surpreendendo-o novamente, dessa vez por saber o nome dele, e Hector lembrou que ela tinha a reputação de não deixar nada ao acaso. E provavelmente
havia pesquisado cada um dos diversos funcionários seniores que poderia encontrar durante essa primeira visita ao novo campo petrolífero.
"Se é esse o caso, ela deveria saber que eu não uso mais minha patente militar", pensou, e então lhe ocorreu que ela provavelmente sabia e o estava irritando de
propósito. Ele reprimiu o sorriso desgostoso que surgiu nos lábios.
"Por algum motivo, ela não gosta de mim e não se esforça para esconder o fato", pensou. "Essa mulher é feita do mesmo material de suas sondas de petróleo: puro aço
e diamantes." Mas ela já tinha dado as costas para ele, indo ao encontro dos três homens que despencaram de um grande jipe Humvee bege, detendo-se ao lado dela,
formando uma fila obsequiosa de boas-vindas, sorrindo e saltitando como filhotinhos de cachorro. Ela apertou a mão de Bert Simpson, seu gerente geral.
- Minhas desculpas por ter demorado tanto para visitá-lo, senhor, mas é que estive bastante ocupada no escritório.
Ela deu um sorriso rápido e radiante, mas não esperou pela resposta. Seguiu em frente e, sem perder tempo, cumprimentou o engenheiro-chefe e, logo a seguir, o geólogo
sênior.
- Obrigada, cavalheiros. Agora, vamos sair deste vento desagradável. Teremos tempo para nos conhecer melhor mais tarde.
O tom dela era suave, quase cadenciado, mas a inflexão era precisa e claramente sul-africana. Hector sabia que ela havia nascido na Cidade do Cabo e adquirido a
cidadania norte-americana após se casar com Henry Bannock. Bert Simpson abriu a porta do passageiro do Humvee, e ela deslizou para o assento. Assim que Bert se colocou
atrás do volante, Hector assumiu a posição de acompanhante no segundo Humvee logo atrás dele. Um terceiro jipe liderava os demais. Todos os veículos tinham o logotipo
de uma cruz medieval pintado nas portas. Uthmann estava no primeiro, e ele conduziu o pequeno comboio até a estrada de serviço que corria paralela à grande tubulação
prateada que carregava o líquido precioso por mais de cem quilômetros até os tanques de espera. Enquanto dirigiam, as torres de perfuração surgiram através da névoa
amarelada em ambos os lados, fileira após fileira, como esqueletos de uma legião perdida de guerreiros. Antes de alcançarem o vale ressecado, Uthmann abandonou a
trilha, e todos subiram pela crista de pedra bruta, coberta em fuligem negra como se tivesse sido chamuscada pelo fogo. O complexo principal de prédios ficava no
ponto mais alto.
Dois sentinelas da Cross Bow em uniformes de batalha abriram os portões, e os três Humvees passaram em alta velocidade. De imediato, o veículo que levava Hazel Bannock
se afastou do grupo e atravessou o complexo interno, parando diante das portas pesadas que guardavam as luxuosas suítes executivas com ar condicionado. Hazel entrou
rapidamente, escoltada por Bert Simpson e meia-dúzia de empregados uniformizados. As portas se fecharam solenemente. Hector teve a impressão de que restara uma lacuna
após sua partida - até mesmo o vento Khamseen agora uivava com menos fúria - e, ao parar diante da entrada para o quartel-general da Cross Bow, olhou para o céu
e viu que as nuvens de poeira estavam de fato se desfazendo, desintegrando-se.
Já em seu aposento particular, ele removeu os óculos e desenroscou o lenço do pescoço. Em seguida, lavou o rosto e as mãos, aplicou colírio para aliviar os olhos
avermelhados e examinou o próprio rosto no espelho na parede. A barbicha rala e escura lhe conferia um quê de pirata. A pele era escura, bronzeada pelo sol do deserto,
com exceção da cicatriz prateada acima do olho direito, onde um golpe de baioneta havia deixado o osso do crânio exposto. O nariz era grande e imponente. O verde
de seus olhos era frio e calmo. Os dentes eram branquíssimos como os de um predador.
- É o único rosto que você terá na vida, Hector, meu rapaz. Isso não significa que tem de adorá-lo - murmurou, replicando em seguida a si mesmo -, mas graças a Deus
existem moças de gosto menos exigente no mundo.
Ele riu e foi até o gabinete de crises. Assim que entrou, o zumbido da conversa dos homens desapareceu. Hector subiu no palanque e olhou para eles. Os dez presentes
eram os líderes de seu esquadrão. Cada um comandava um grupo de dez homens, e ele sentiu uma pequena ponta de orgulho. Eram experientes, verdadeiros guerreiros que
tinham aprendido seu ofício no Congo, no Afeganistão, no Paquistão, no Iraque e em outros terrenos sangrentos do perverso velho mundo. O esquadrão demorara a ser
montado, era um bando nada admirável de assassinos perversos e endurecidos, e ele os amava como se fossem seus irmãos.
- Onde estão os arranhões e as marcas de mordida, chefe? Não diga que conseguiu se livrar dela sem ser castigado? - um deles gritou.
Hector sorriu com tolerância, dando-lhes um minuto para desafogar o humor pesado e se acalmar. Em seguida, levantou uma das mãos.
- Cavalheiros, se é que faz algum sentido chamá-los assim, cavalheiros, temos sob nossos cuidados uma senhora que irá atrair a atenção fervorosa de todos os todos
os trogloditas de Kinshasa a Bagdá, de Cabul a Mogadíscio. Se algo de ruim acontecer a ela, eu mesmo vou cortar o saco do homem que permitir tal coisa. Juro de pés
juntos.
Eles sabiam que não se tratava de uma ameaça vã. As risadas cessaram, e os olhos deles se tornaram sérios diante da expressão impassível de Hector, que os encarou
assim que o silêncio se fez presente. Por fim, ele pegou o indicador da mesa à sua frente e se virou para a enorme imagem aérea e ampliada do terreno na parede atrás
dele, e começou a ditar as últimas instruções. Delegou tarefas e reforçou ordens anteriores. Não queria nenhum tipo de descuido nesse trabalho. Meia hora depois,
virou-se para eles mais uma vez.
- Perguntas?
Não havia nenhuma, e ele os dispensou com uma ordem curta e grossa:
- Qualquer dúvida, atirem e façam de tudo para que o tiro seja certeiro.
Ele pegou o helicóptero e mandou Hans Lategan, o piloto, seguir pelo oleoduto até o terminal na costa do Golfo. Voaram a uma altitude bem baixa. Hector estava no
banco da frente ao lado de Hans, examinando o caminho em busca de sinais que indicassem atividades suspeitas - pegadas de estranhos ou marcas de pneus de veículos
que não fossem dos caminhões GM de patrulha ou das equipes de engenheiros trabalhando no oleoduto. Todos os funcionários da Cross Bow usavam botas com a marca inconfundível
de uma seta na sola, por isso até mesmo daquela altura Hector era capaz de diferenciar rastros familiares de potenciais malfeitores.
Durante o mandato de Hector como chefe de segurança, já haviam ocorrido algumas tentativas nefastas de sabotagem nas instalações da Bannock Oil em Abu Zara. Nenhum
grupo terrorista tinha assumido a responsabilidade por esses atos, provavelmente porque haviam fracassado.
O emir de Abu Zara, príncipe Farid al Mazra, era um aliado fiel da Bannock Oil. Os royalties de petróleo da empresa acumulados por ele somavam centenas de milhões
de dólares por ano. Hector criara uma forte aliança com o comandante da força policial de Abu Zara, príncipe Maomé, cunhado do emir. O príncipe Maomé fornecia informações
de alta qualidade e, três anos antes, alertara Hector sobre um iminente ataque por mar. Hector e Ronnie Wells, seu comandante de área no terminal, tinham conseguido
interceptar os criminosos com o barco patrulheiro da Bannock - um antigo torpedeiro israelense de boa capacidade de aceleração, com duas metralhadoras Browning,
calibre .50, montadas na proa. Havia oito terroristas a bordo do dhow - a embarcação árabe utilizada no ataque -, juntamente com centenas de quilos de explosivos
plásticos Semtex. Ronnie Wells era um antigo sargento-mor da Marinha britânica, um marinheiro bastante experiente e perito em ataques de embarcações pequenas. Ele
surgiu do meio da escuridão por trás do dhow, pegando a tripulação completamente de surpresa. Quando Hector ordenou pelo megafone que se rendessem, a resposta foi
uma saraivada de disparos automáticos. A primeira rajada de tiros das Brownings detonou os explosivos Semtex no porão de carga do dhow. Todos os oito terroristas
partiram simultaneamente para os Jardins do Paraíso, deixando poucos traços de sua existência neste planeta. O emir e o príncipe Maomé ficaram satisfeitíssimos com
o desfecho. Cuidaram para que nenhuma informação chegasse aos ouvidos da mídia internacional. Abu Zara tinha orgulho de sua reputação de país estável, progressivo
e amante da paz.
Hector aterrissou no terminal em Sidi el Razig e passou algumas horas com Ronnie Wells. Como sempre, Ronnie tinha tudo sob controle, o que renovou a confiança que
Hector depositava nele. Após a reunião, os dois caminharam juntos até o local onde Hans os esperava de helicóptero. Ronnie olhou de lado para ele, e Hector sabia
exatamente o que o estava preocupando. Em três meses, Ronnie completaria 65 anos. Os filhos tinham perdido o interesse nele havia muito tempo, e sua única casa era
a Cross Bow, a menos que talvez o Royal Hospital de Chelsea o aceitasse como pensionista. A renovação do contrato com a Cross Bow deveria acontecer algumas semanas
antes de seu aniversário.
- Ah, a propósito, Ronnie - disse Hector -, seu novo contrato está na minha mesa. Eu deveria tê-lo trazido para você assinar.
- Obrigado, Hector - Ronnie sorriu, sua careca reluzia. - Mas você sabe que vou fazer 65 anos em outubro, não sabe?
- Seu velho pilantra! - Hector sorriu de volta para ele. - E eu que pensava que você não tinha passado dos 25 nos últimos dez anos.
Hector saltou para dentro do helicóptero, e eles voltaram sobrevoando a poucos metros da superfície arenosa da trilha ao longo do oleoduto. O vento Khamseen havia
espanado a superfície como uma diarista eficiente, até mesmo as pegadas das abetardas e do órix do deserto estavam claramente visíveis. Duas vezes eles pousaram
para que Hector pudesse examinar marcas menos evidentes e que talvez tivessem sido deixadas por desconhecidos indesejáveis, mas elas se mostraram inofensivas. Tinham
sido causadas por nômades beduínos provavelmente à procura de camelos perdidos.
Eles aterrissaram uma última vez, no local onde três anos antes uma emboscada havia sido armada por seis indivíduos que se infiltraram pelo sul no terreno da concessão.
Eles haviam caminhado por quase cem quilômetros no deserto até o oleoduto. Quando chegaram, os intrusos cometeram o infeliz erro de atacar o caminhão de patrulha
que tinha Hector sentado no banco da frente. Hector avistou algo suspeito no meio do caminho até a duna, percorrendo a faixa paralela à pista em que estavam dirigindo.
- Pare! - gritou para o motorista e escalou o caminhão até o teto.
Ele fixou o olhar no objeto que tinha chamado sua atenção e se mexeu de novo, num pequeno movimento sinuoso, como uma cobra-coral rastejante. O movimento fora o
que primeiro chamou a sua atenção. Mas não existiam cobras-corais naquele deserto. Uma extremidade da cobra se projetou acima da areia, e a outra desapareceu sob
os ramos mirrados de um espinheiro. Ele o examinou com cuidado. O espinheiro era denso o suficiente para que um homem pudesse se esconder atrás dele. O objeto vermelho
não se assemelhava a nada que já tivesse visto na natureza. Então, mexeu-se de novo, e Hector tomou uma decisão. Ele apoiou o fuzil de assalto no ombro e disparou
uma rajada de três tiros no espinheiro. O homem escondido atrás da planta se levantou de um salto. Usava um turbante e tinha o rosto coberto, carregava uma AK-47
atravessada no ombro e uma pequena caixa preta nas mãos, em que estava pendurado um cabo vermelho fino de material isolante.
- Bomba! - gritou Hector. - Cabeças no chão.
O homem na duna detonou a bomba, e em uma explosão estrondosa, uma grande coluna de fogo e poeira jorrou na pista 150 metros adiante do caminhão. A onda de choque
quase derrubou Hector do teto do caminhão, mas ele se retesou e manteve o equilíbrio.
O terrorista estava quase no topo da duna, correndo como uma gazela do deserto. Hector ainda não conseguia enxergar devido à explosão, e a sua primeira rajada de
tiros atingiu a areia ao redor dos pés do árabe, mas ele continuou correndo. Hector retomou o fôlego e equilibrou-se. Viu a próxima rajada atingir as costas do árabe,
a poeira voando de seu manto com o impacto das balas. O homem fez uma pirueta como se estivesse dançando balé e caiu. Em seguida, Hector viu seus cinco companheiros
pularem para fora do esconderijo nos arbustos. Atravessaram a linha do horizonte e desapareceram antes que ele pudesse disparar contra eles.
Hector percorreu a frente da duna com os olhos. Ela se estendia por cinco ou seis quilômetros para trás e adiante do ponto em que se encontravam. Por toda sua extensão,
era íngreme e macia demais para a subida do caminhão. A perseguição teria de ser a pé, decidiu.
- Fase dois! - Hector gritou para seus homens. - Perseguição cerrada! Vamos! Vamos! Vamos!
Ele pulou do caminhão e liderou a corrida dos quatro duna acima. Quando alcançaram o topo, o grupo dos cinco insurgentes ainda corria pela salina, cerca de oitocentos
metros adiante. Tinham conseguido essa vantagem enquanto Hector e seus homens lutavam para escalar a duna. Olhando para eles, Hector deu um sorriso sarcástico.
- Grande erro, belezuras! Vocês deveriam ter se espalhado, cada um para uma direção! Agora estão convenientemente agrupados.
Hector tinha absoluta certeza de que, em uma perseguição em linha reta, estava para nascer um árabe que pudesse escapar de seus homens.
- Venham, rapazes. Não fiquem enrolando. Temos de dar cabo desses filhos da mãe antes do pôr do sol.
Foram necessárias quatro horas - os "filhos-da-mãe" eram um pouco mais durões do que Hector havia calculado. Mas então, eles cometeram o erro derradeiro. Resolveram
encarar a briga. Escolheram uma pequena cavidade, um posicionamento naturalmente forte com um campo de fogo visível em todas as direções, e foram ao chão. Hector
olhou para o sol. Estava vinte graus acima do horizonte. Tinham de encerrar o assunto depressa. Enquanto seus homens mantinham as cabeças dos terroristas abaixadas,
Hector avançou para ter uma visão melhor do campo de ação. Logo viu que não podiam enfrentar os árabes de frente. Ele perderia a maioria de seus homens, talvez todos.
Por dez minutos, ele estudou o terreno e então, com seus olhos de soldado, escolheu o ponto vulnerável. Logo atrás de onde estavam os árabes, havia uma concavidade
bastante rasa no chão - rasa demais para receber o nome de wadi ou donga, mas talvez capaz de esconder um homem se arrastando com a barriga no chão. Olhou para o
sol baixo no horizonte com os olhos semicerrados e calculou que a concavidade atravessasse quarenta metros de extensão atrás do refúgio inimigo. Assentiu satisfeito
e retornou para onde seus homens se encontravam.
- Vou dar a volta por trás deles e atirar uma granada. Ataquem assim que explodir.
Hector teve de dar uma grande volta ao redor do inimigo para se manter fora do alcance da vista e, assim que se viu dentro da donga, mover-se bem devagar para não
levantar poeira e alertá-los de sua aproximação. Os homens dele fizeram os árabes manterem a cabeça bem abaixada, atirando a qualquer movimento acima da borda do
declive. Porém, na altura em que Hector alcançou o ponto mais próximo do declive, restavam provavelmente apenas mais dez minutos de claridade para atirar antes que
o sol se pusesse no horizonte. Ele rolou até ficar de joelhos e puxou o pino da granada em sua mão direita com os dentes. Em seguida, pôs-se de pé e calculou a distância.
A área de alcance era extrema. Quarenta metros, talvez cinquenta, para arremessar a pesada granada de fragmentação. Ele preparou o arremesso tomando impulso com
toda a força de um dos ombros e atirou a granada para o alto em uma trajetória espiral. Embora o arremesso tivesse sido bom, um de seus melhores, atingiu a borda
do declive e, por um momento, pareceu que a granada ficaria presa ali. Mas, então, ela rolou para a frente e caiu entre os árabes de cócoras. Hector ouviu os gritos
ao descobrirem do que se tratava. Ele ficou de pé e sacou a pistola ao mesmo tempo em que corria para a frente. A granada explodiu momentos antes de ele alcançar
o refúgio. Ele se deteve na borda e olhou para a carnificina abaixo. Quatro dos trogloditas haviam sido reduzidos a farrapos sangrentos. O último tinha sido parcialmente
protegido pelo corpo de um de seus camaradas. Mesmo assim, estilhaços haviam rasgado seu peito chegando até os pulmões.
Hector se debruçou sobre ele, que tossia expelindo sangue espumoso, lutando para dar o suspiro final. Olhou para cima e, para a surpresa de Hector, o reconheceu.
O homem falou entre bolhas de sangue, e sua voz era fraca e ininteligível, mas Hector compreendeu o que dizia.
- O meu nome é Anwar. Lembre disso, Cross, seu porco. A dívida não foi sanada. A Disputa Sangrenta continua. Outros virão.
Agora, três anos depois, no mesmo local, Hector mais uma vez se sentia intrigado por aquelas palavras. Ainda não conseguia compreender o que significavam. Quem era
o moribundo? Como o conhecia? Por fim, balançou a cabeça e, em seguida, se virou e caminhou de volta ao helicóptero parado, com os rotores girando. Subiu a bordo
e levantaram voo. O dia passou rápido, derretendo ao calor do deserto e, quando eles retornaram ao complexo número oito, restava apenas uma hora antes do pôr-do-sol.
Hector aproveitou a claridade restante e foi até o estande onde realizou cem disparos tanto com sua Beretta M9 9 mm como com o fuzil de assalto automático SC 70/90.
Todos os seus homens tinham de realizar pelo menos quinhentos disparos por semana e apresentar seus alvos para o armeiro. Hector verificava todos com regularidade.
Todos eram exímios atiradores, mas ele não queria criar margem para a complacência ou o desleixo. Eles eram bons, mas tinham de continuar sendo.
Quando retornou do estande ao complexo, o sol tinha desaparecido e, no breve crepúsculo do deserto, a noite logo chegou. Hector foi até a bem-equipada academia e
fez uma hora de esteira e quatro horas de levantamento de peso. Tomou uma ducha quente em seu alojamento particular, trocou o uniforme de camuflagem empoeirado por
um limpo e recém-passado e finalmente desceu até o refeitório. Bert Simpson e os outros executivos estavam no bar fechado. Todos pareciam cansados e abatidos.
- Toma um drinque conosco? - Bert convidou.
- Gentileza sua - respondeu Hector, acenando com a cabeça para o barman, que serviu uma dose dupla de single malte Oban, envelhecido 18 anos. Hector fez um brinde
na direção de Bert, e ambos beberam.
- Então, como vai nossa chefe? - perguntou Hector.
Bert revirou os olhos.
- Você não vai querer saber.
- Vamos ver.
Ela não é humana.
- Ela me pareceu um pouco humana - Hector comentou.
- É uma ilusão, cara. Criada com espelhos ou coisa que o valha. Não vou dizer mais nada. Descubra você mesmo.
- O que isso significa? - perguntou Hector.
- Você vai levá-la para correr, amigo.
- Quando?
- Depois de amanhã, bem cedo. Encontre-a às cinco e meia pontualmente em frente aos portões principais. Dezesseis quilômetros, foi o que ela estipulou. Eu apostaria
que a velocidade dela será de certa forma maior do que a de uma caminhada. Não deixe que ela se perca de você.
O dia também havia sido longo e puxado para Hazel Bannock, mas nada que não pudesse ser resolvido com um banho quente com espuma. Em seguida, lavou os cabelos e
usou o secador para modelar a mecha que caia sobre o olho direito. Depois, vestiu um roupão de cetim azul que combinava com seus olhos. A bagagem dela havia sido
enviada dias antes de sua chegada. As malas do conjunto de pele de crocodilo foram desfeitas pelos empregados; as roupas, recém-passadas, agora estavam penduradas
nos armários espaçosos do closet. Os artigos de toalete e os cosméticos estavam enfileirados ordenadamente nas prateleiras de vidro acima das pias do banheiro. Ela
passou perfume Chanel atrás das orelhas e foi para a sala de estar. O bar continha todos os itens que sua assistente pessoal, Agatha, havia estipulado por e-mail
para Bert Simpson. Hazel encheu um copo longo com gelo triturado, espremeu limão e acrescentou uma pequena quantidade de vodca Dovgan. Ela levou o drinque para a
sala ao lado, um centro privado de comunicações. Havia seis telões de plasma na parede ao fundo, para que ela pudesse observar simultaneamente os preços das ações
e mercadorias nas principais bolsas mundiais; as outras telas exibiam os canais de notícias e os resultados esportivos. No momento, ela estava particularmente interessada
em uma corrida do Prix de l'Arc de Triomphe, em Longchamps, em que tinha um cavalo participando. Ela fez uma careta de desgosto quando viu que o animal tinha ficado
em um decepcionante terceiro lugar. Isso reforçou a decisão de demitir o treinador e contratar o jovem irlandês. A atenção dela passou ao tênis. Gostava de acompanhar
o desempenho das jovens russas e do Leste Europeu. Elas a faziam lembrar de quando tinha dezoito anos e era faminta como uma loba. Sentou-se ao computador e bebeu
um gole de vodca, que tinha o gosto de uma poção encantada, enquanto abria sua caixa de e-mails. Agatha tinha feito uma triagem em Houston, portanto, havia menos
de cinquenta mensagens pessoalmente endereçadas a ela. Ela os verificou rapidamente. Embora fossem três da manhã em Houston, Agatha dormia com o telefone na cabeceira
da cama, sempre preparada para receber suas chamadas. Hazel clicou no nome dela no Skype. A imagem de Agatha apareceu na tela. Ela vestia um roupão com rosas bordadas
na lapela, os cabelos grisalhos estavam enrolados em bobes, e os olhos, sonolentos. Hazel ditou as respostas para as mensagens. Por fim, perguntou:
- Como está o resfriado, Agatha? Sua voz não está tão rouca como ontem.
- Estou bem melhor, senhora. E muito obrigada por perguntar.
Era por isso que os funcionários a adoravam, a chefe atenciosa, até que cometessem algum deslize, e elas os despachasse para o espaço sideral. Ela encerrou a ligação
para Agatha e verificou a hora em seu relógio de pulso e no digital na parede. Seria a mesma a bordo do Golfinho Amoroso. Hazel não gostava do nome que Henry havia
dado ao iate e referia-se a ele simplesmente como Golfinho. Em respeito à memória do marido, não tinha coragem de mudá-lo; além disso, Henry tinha garantido que
isso traria o maior azar possível. O nome era a única coisa de que Hazel não gostava na embarcação - 125 metros de puro luxo sibarítico, com doze cabines duplas
para os hóspedes e um suntuoso camarote para os donos. O salão de jantar e as outras espaçosas áreas de entretenimento eram decorados com murais coloridos de famosos
artistas modernos. Os quatro poderosos motores a diesel podiam atravessar o Oceano Atlântico em menos de seis dias. O iate era equipado com instrumentos de navegação
e dispositivos de comunicação de ponta e dispunha de vários brinquedinhos e gadgets caros para a diversão dos convidados a bordo, até mesmo para os mais exigentes
e sofisticados. Ela discou o número de contato para a ponte de comando do Golfinho e foi atendida antes do segundo toque.
- Golfinho Amoroso. Ponte de comando - ela reconheceu o sotaque californiano.
- Sr. Jetson?
Ele era o subcomandante, e seu tom de voz foi de deslumbramento assim que percebeu com quem estava falando.
- Boa noite, senhora.
- O capitão Franklin está disponível?
- Certamente, senhora. Está aqui ao meu lado. Vou passar a ligação para ele.
Jack Franklin a cumprimentou, e Hazel imediatamente perguntou:
- Está tudo bem, capitão?
- De fato, muito bem, senhora - ele a tranquilizou.
- Qual é sua posição no momento?
Franklin leu rapidamente as coordenadas da tela do satélite de navegação e, a seguir, traduziu-as para um formato mais inteligível:
- Estamos a 146 milhas náuticas ao sudeste de Madagascar, a caminho da Ilha Mahe nas Seicheles. Nosso horário estimado de chegada em Mahe é meio-dia, quinta-feira.
- O senhor certamente fez um bom progresso, capitão Franklin - Hazel comentou. - Minha filha está na ponte com o senhor?
- Infelizmente não, senhora. Pelo que sei, a srta. Bannock se retirou cedo e pediu que o jantar fosse servido no seu camarote. Perdão, quis dizer no camarote dela.
A filha tinha permissão de ocupar o camarote principal quando Hazel não estava a bordo. Franklin sempre achara um desperdício ter aquelas pinturas de Gauguin e Monet
e o lustre de cristal Lalique à disposição de uma adolescente mimada, que se considerava tão importante quanto a mãe famosa. No entanto, sabia muito que bem que
não devia sequer insinuar os defeitos de uma filha para a mãe. Aquela cadelinha bonita, mas desagradável, era o único ponto fraco de Hazel.
- Por favor, transfira a ligação para ela - pediu Hazel Bannock.
- Certamente, senhora.
Ela o ouviu falar com o operador de rádio. Houve um clique na linha, que ficou muda, mas voltou após um toque. Ela esperou o telefone tocar doze vezes e já estava
ficando impaciente quando foi levantado do gancho. Reconheceu a voz da filha.
- Quem é? Dei ordens para não ser incomodada.
- Cayla, querida!
- Oh, mãe, é tão bom escutar sua voz. Esperei sua ligação o dia inteiro. Estava começando a pensar que você não me amava mais - a satisfação dela era evidente, e
o coração de Hazel se encheu de felicidade materna ao ouvi-la.
- Andei terrivelmente ocupada, querida. Há tantas coisas acontecendo aqui.
Cayla, a pura - o nome que escolhera para a filha era mais do que apropriado. A imagem do rosto da menina lhe veio à mente. A pele de Cayla sempre lhe pareceu ser
feita de jade transluzente, sob o qual pulsava e resplandecia sangue jovem. O azul de seus olhos que eram mais claros e etéreos do que os de Hazel, pareciam emanar
pureza de espírito e pensamento. Aos dezenove anos, estava prestes a tornar-se mulher, mas era ainda intocada, virginal, perfeita. Hazel sentiu lágrimas brilharem
em seus olhos devido à força esmagadora desse amor. A filha era o elemento mais importante de sua vida, o motivo de seus sacrifícios e de sua luta.
- Esta é a minha mamãe querida. Velocidade única. Aceleração total! - Cayla deu uma risadinha meiga e rolou para o lado na cama, desvencilhando-se da figura masculina
debaixo dela.
As barrigas nuas estavam coladas pelo suor e desprenderam-se com relutância. Sentiu o pênis escorregar para fora dela, seguido de um jorro de seus próprios fluidos
vaginais. Sentia-se vazia sem ele em suas entranhas.
- Conte para mim o que você fez hoje - Hazel pediu. - Estudou?
Esse era o motivo de ter deixado Cayla no Golfinho. As notas de Cayla do semestre tinham sido sofríveis. O professor tinha ameaçado reprová-la no final do ano caso
não melhorassem consideravelmente. Até o momento, apenas as generosas doações da mãe aos cofres da universidade a tinham salvado desse destino.
- Tenho de admitir que fui terrivelmente preguiçosa hoje, mamãe querida, só saí da cama às nove e meia - e sorriu com uma expressão malévola nos inocentes olhos
azuis, pensando consigo mesma, "e só depois dos dois orgasmos monumentais que o Rogier me deu".
Ela sentou nos lençóis brancos e se moveu para ficar mais perto do belo corpo musculoso e esguio. A pele dele brilhava por causa do suor, como chocolate derretido.
Os corpos estavam em contato, ela apoiou os joelhos no queixo e virou-se ligeiramente para que ele pudesse ter uma visão desobstruída do ninho de pelos loiros finos
abrigado entre a parte de trás de suas coxas. Ele esticou uma das mãos, afastou as coxas da garota gentilmente e ela estremeceu quando ele separou os lábios intumescidos
da vulva e buscou o botão cor-de-rosa entre eles. Ela levou o fone ao ouvido com a mão esquerda e, com a direita, alcançou o pênis dele. Ainda estava totalmente
duro. Cayla havia passado a ver esse órgão como uma entidade separada, dona de uma própria força vital. Tinha até lhe dado um apelido. Blaise, o mestre do mago Merlin.
Havia sido enfeitiçada por ele, que estava estendido ao máximo de seu comprimento majestoso, duro e resplandecendo com a doce essência com que ela o havia ungido.
Ela envolveu a circunferência com o polegar e o indicador e começou a ordenhá-lo em movimentos lentos e voluptuosos.
- Bebé, você prometeu que iria se aplicar aos estudos. Você é uma menina esperta e sabe que com apenas um pouquinho mais de esforço pode se sair muito melhor.
- Hoje foi uma exceção, mamãe. Eu me esforcei bastante nos outros dias. Minha menstruação começou hoje. Estou com uma cólica terrível.
- Ah, minha pobre Cayla. Está se sentindo melhor agora? Espero que sim.
- Sim, mamãe. Muito melhor. Amanhã estarei boa novamente.
- Queria estar aí para cuidar de você. Há apenas uma semana nos despedimos na Cidade do Cabo - disse Hazel -, mas parece uma eternidade. Sinto muito a sua falta,
filhinha.
- Eu também sinto a sua, mamãe - Cayla garantiu.
Depois disso, não houve mais necessidade de responder, já que a mãe começou a falar sem parar sobre a administração de seus grotescos campos petrolíferos e os problemas
que tinha com os imbecis imundos que os administravam para ela. Cayla às vezes respondia com pequenos ruídos afirmativos, mas estava, na verdade, analisando Blaise,
com o cenho franzido em concentração. Ele era circuncidado. Todos os outros que conhecera antes tinham aquele capuz de pele desajeitado dependurado na ponta. Foi
só quando conheceu Rogier que teve consciência de como eram feios em comparação com essa bela lança de carne que ela agora segurava reverentemente entre os dedos.
Blaise era preto azulado, liso e lustroso como o cano de um fuzil. Uma gota transparente foi expelida devagar pela fenda em sua cabeça, oscilante como uma gota de
orvalho. Era tão excitante observá-lo que ela estremeceu de prazer, e a pele de seus braços ficou arrepiada. Em um movimento rápido, debruçou-se sobre ele e lambeu
a gota com a ponta da língua. Saboreou o gosto. Queria mais, muito mais. Começou a ordenhá-lo com mais velocidade, os dedos longos e delicados deslizando pelo pênis
para e cima e para baixo, como a lançadeira de um tear. Ele ergueu os quadris ao encontro dela. Ela viu os músculos de sua barriga se contraírem. Conseguia sentir
Blaise crescendo, duro e grosso como o cabo de uma raquete de tênis em sua mão. Os traços do rosto de Rogier se contorciam. Ele jogou a maravilhosa cabeça escura
para trás, e seus lábios se partiram. Ela viu que ele estava prestes a gemer ou gritar. Soltou o pênis rapidamente e espalmou a mão sobre seus lábios para silenciá-lo,
ao mesmo tempo em que se inclinou para a frente e colocou o máximo que pode de Blaise na própria boca. Ela só conseguia abocanhar menos da metade e, com a ponta
da cabeça intumescida pressionando sua garganta, começou a engasgar. Mas ela havia aprendido a controlar isso. Arriscou tirar a mão da boca de Rogier. Queria sentir
o sêmen se acumulando dentro dele. Deslizou a mão entre as coxas e agarrou o escroto pela raiz. Ainda chupando e balançando a cabeça para cima e para baixo, sentiu
o começo da ejaculação, pulsando e bombando em sua mão, os testículos esticados na base da barriga dele.
Embora estivesse preparada, a força e o volume sempre a pegavam de surpresa. Ela arfou e engoliu o mais depressa que pôde, mas não conseguiu reter tudo, e o excesso
transbordou e escorreu pelo queixo. Queria sugá-lo até a última gota. Ela continuou bebendo e, fora de si, estava gemendo baixinho. A voz da mãe a despertou do torpor
de êxtase.
- Cayla! O que está acontecendo? Você está bem? O que está acontecendo? Fale comigo!
Os ruídos de protesto vinham do lado da cama, onde Cayla tinha deixado o fone cair. Ela o agarrou e se recompôs.
- Meu Deus, derrubei café quente em mim mesma e na cama, me assustei - riu até perder o fôlego.
- Você não se queimou, não é?
- Não, mas o edredom está todo sujo! - a garota respondeu e percorreu os respingos escorregadios espalhados pela colcha de seda, ainda quentes do corpo dele. Ela
limpou os dedos no peito de Rogier, e ele sorriu para ela. Cayla o considerava o homem mais bonito em que já tinha posto os olhos. A mãe mudou de assunto e começou
a recordar a visita recente que tinham feito à Cidade do Cabo, onde o Golfinho havia ancorado por duas semanas. A avó de Cayla morava em uma magnífica mansão projetada
por Herbert Baker, entre os vinhedos nos arredores da cidade. Hazel tinha adquirido a vinícola para lá passar a aposentadoria em um futuro distante. Enquanto isso,
era o lar perfeito para a sua amada mãe, que tinha juntado e economizado cada tostão para que a filha pudesse seguir em busca da conquista dos grandes torneios mundiais
de tênis. Agora, a velha senhora tinha uma casa maravilhosa, repleta de empregados, e um chofer uniformizado para levá-la de Mercedes Maybach às compras e para tomar
chá com as amigas todos os sábados.
Rogier se levantou da cama e fez um sinal para Cayla. Em seguida, devagar, caminhou nu até o banheiro. Suas nádegas musculosas se moviam de forma tentadora. Cayla
deixou a cama com um pulo e foi atrás dele com o fone ainda encostado na orelha. Rogier ficou de frente para o urinol, e ela se apoiou na apara ao lado dele, observando-o
completamente fascinada.
Conhecera Rogier em Paris, onde ela estava estudando a arte dos impressionistas franceses na Universidade de Belas Artes. Sabia que a mãe jamais aprovaria o relacionamento.
Ela era liberal apenas da boca para fora. Provavelmente nunca tinha ido para a cama com nenhum homem com uma pigmentação de pele mais escura do que a de uma casca
de laranja. No entanto, Cayla tinha se encantado pelo exotismo de Rogier à primeira vista - a tonalidade azul-metálica e lustrosa de sua pele, as finas feições nilóticas,
o corpo alto e esguio e o sotaque curioso. Também havia ficado excitada com os relatos das amigas de sua idade, as mais experientes do que ela, que descreviam com
detalhes lascivos como os homens de cor eram muito mais bem-dotados em termos de aparato masculino do que os de qualquer outra raça. Ela se lembrava vivamente que,
na primeira vez em que vira Blaise em toda sua glória tumescente, tinha ficado apavorada. Parecia impossível que fosse conseguir acomodar tudo aquilo dentro de si.
A tarefa não foi tão difícil como tinha imaginado em um primeiro momento. Ela riu ao se lembrar.
- Do que você está rindo, bebé? - a mãe perguntou.
- Estava me lembrando da história que a vovó contou sobre o babuíno selvagem que entrou na cozinha.
- A vovó às vezes é muito engraçada - a mãe concordou e passou a falar sobre o iminente reencontro das duas na Ilha de Ten League nas Seicheles. A ilha de setecentos
hectares pertencia totalmente a ela, assim como o amplo bangalô à beira da praia onde planejava passar os feriados de fim de ano com a família, conforme fazia todos
os anos. Ela mandaria um jatinho ir buscar a mãe e o tio John. Cayla colocou o pensamento de lado. Não queria lembrar que logo teria de se separar de Rogier. Ela
alcançou Blaise e o agarrou com firmeza, conduzindo Rogier de volta à cama. Finalmente a mãe resolveu encerrar a conversa.
- Eu tenho de ir agora, bebé. Tenho que acordar muito cedo. Ligo de novo na mesma hora amanhã. Amo você, minha pequena.
- Amo você um zilhão de vezes mais um, mamãe - ela sabia o efeito que esse tom de conversa infantil tinha sobre a mãe.
Cayla desligou e jogou o telefone no antigo tapete de seda no chão ao lado da cama. Beijou Rogier e enfiou a língua na boca dele; a seguir se afastou e disse em
tom autoritário:
- Quero que você passe a noite comigo.
- Não posso, você sabe que não, Cayla.
- Por que não? - ela perguntou.
- Se o capitão nos descobre, vai amarrar uma âncora ao redor do meu pescoço e me jogar no mar.
- Não seja tão negativo. Ele não vai descobrir. Georgie Porgie está na minha mão. Ele vai nos acobertar. É só eu sorrir que ele faz qualquer coisa por mim - referia-se
ao comissário do barco.
- Tudo pelo seu sorriso e algumas notas de cem dólares - Rogier deu uma risadinha e passou a falar no seu francês nativo. - Mas ele não é o capitão - levantou-se
e foi até a poltrona sobre a qual seu uniforme estava jogado. - Não podemos correr esse risco, já estamos nos arriscando demais. Vejo você amanhã à mesma hora. Deixe
a porta destrancada.
- Estou mandando você ficar - ela ergueu o tom de voz. Estava falando francês também, mas de uma maneira mais rudimentar.
O sorriso dele era enfurecedor.
- Você não tem o direito de me dar ordens. Você não é o capitão desse barco - ele estava fechando os botões da jaqueta branca do uniforme de camareiro.
O capitão Franklin estava certo. Cayla não dava a mínima para os impressionistas franceses ou, para dizer a verdade, para qualquer outro impressionista. Tinha ido
estudar na Universidade de Belas Artes apenas por insistência da mãe. Hazel era louca por pinturas de vitórias-régias, ou de garotas taitianas seminuas, exatamente
como a pendurada na divisória em frente à cama, de autoria de um francês alcoólatra, drogado e que sofria de sífilis. Ela tinha essa ideia maluca de transformar
a filha em negociante de arte após a formatura, sendo que a única coisa pela qual Cayla se interessava eram cavalos - mas não valia a pena discutir com a mãe, pois
a palavra final era sempre dela.
- Você pertence a mim - disse a Rogier. - Vai fazer o que eu disser.
Ela havia pago, com seu Black Amex, pela passagem de primeira classe de Rogier, de Londres à Cidade do Cabo, e arrumado o emprego de camareiro do barco para ele
adoçando Georgie Porgie com um beijinho no rosto e um maço de notas verdinhas. Rogier era sua propriedade tanto quanto o carro esporte Bugatti Veyron ou a lista
de cavalos de exibição, os verdadeiros amores de sua vida.
- Vejo você amanhã à mesma hora - ela deu o mesmo sorriso enfurecedor e deixou a cabine, fechando a porta silenciosamente.
- A merda da porta vai estar fechada! - ela gritou e, arrancando o telefone do suporte, arremessou-o com toda força no nu exuberante de Gauguin. O fone bateu na
tela esticada e deslizou pelo convés. Cayla se jogou novamente na cama e soluçou de fúria e frustração no travesseiro. Quando Rogier se recusava a obedecê-la, desejava-o
ainda mais.
Rogier verificou o estoque do bar do salão principal. Georgie Porgie havia confiado a ele essa tarefa. Retirou a faca de onde a tinha escondido - debaixo do balcão
- antes do encontro marcado com Cayla. A lâmina era de aço damasco manufaturado pela Kia, a mesma empresa japonesa que costumava fazer espadas de samurai. Era afiada
como o bisturi de um cirurgião. Rogier arregaçou a bainha de uma das pernas da calça e prendeu a faca na canela. A vida dele era perigosa, e a arma o protegia. Trancou
o bar e desceu correndo a passadas leves pela escada do tombadilho até o convés de trabalho. Antes de alcançar o refeitório da tripulação, sentiu o cheiro de porco
assado. O odor gorduroso o enjoava. Talvez tivesse de ir dormir com fome, a menos que conseguisse usar seu charme com o cozinheiro. Ele era tão gay quanto um passarinho
alegre em uma manhã de primavera, e Rogier era belo, com seus cabelos crespos e escuros e olhos sensuais. O sorriso dele combinava com sua personalidade extrovertida
e alegre. Ele tomou seu lugar na longa mesa de jantar da tripulação e esperou até que o chefe olhasse pela portinhola aberta da cozinha. Rogier sorriu e apontou
com uma eloquente careta de nojo para a grossa fatia de porco no prato do foguista ao seu lado. O chefe retribuiu o sorriso e, cinco minutos depois, mandou-lhe uma
posta generosa - um corte do meio - de kingklip pela portinhola. Um dos peixes comestíveis de água salgada mais finos, o kingklip tinha sido cozido à perfeição,
como demonstravam as tenras lâminas de carne branca, e coberto em abundância com o famoso molho do chefe. Não fosse o desvio, seu destino teria sido a mesa do capitão.
O foguista deu uma olhada no prato de Rogier e murmurou:
- Maldita bichinha!
Rogier continuou sorrindo, mas inclinou-se para a frente e levantou a bainha da perna da calça. A lâmina fina do punhal surgiu em sua mão debaixo do tampo da mesa.
- No seu lugar, eu não diria isso de novo - Rogier aconselhou, e o foguista olhou para baixo.
A ponta do punhal apontava para a virilha. Com o rosto branco, ele se levantou de supetão, abandonou a bisteca de porco e saiu correndo do refeitório. Rogier comeu
o peixe com requintada satisfação. Seus modos elegantes pareciam fora de lugar naquele ambiente.
Antes de sair, parou diante da escotilha e acenou em agradecimento para o chefe. Em seguida, subiu até o convés de popa, onde era permitido exercitar-se ou relaxar
em períodos de folga. Olhou para a meia-lua no céu. Sentiu um desejo profundo de rezar sob aquele que era um símbolo de sua fé. Queria expurgar a lembrança da puta
cristã e expiar o sacrilégio que fora forçado a cometer com ela devido às ordens do avô. Mas não podia rezar ali. Corria um grande perigo de ser visto. Tinha dito
a todos a bordo que era um católico-romano de Marselha. Isso explicava o tom norte-africano de sua pele.
Antes de descer, olhou para o norte no horizonte e gravou a direção de Meca em sua mente. Desceu até a minúscula cabine que ocupava, recolheu a necessaire e a toalha
e percorreu o corredor que levava ao banheiro compartilhado por toda a tripulação do convés inferior. Lavou cuidadosamente o rosto e o corpo, escovou os dentes e
enxaguou a boca em uma purificação ritualística. Após se secar, amarrou a toalha ao redor da cintura, retornou à cabine e passou o trinco na porta. Pegou o saco
de viagem do bagageiro acima do beliche e retirou o tapete de seda de rezas e o caftã branco imaculado. Desdobrou o tapete no chão voltado para Meca, cuja direção
tinha calculado da dianteira do iate. O tapete mal cabia no convés. Vestiu o caftã pela cabeça, deixando a bainha cair pelos tornozelos. Colocou-se na beira do tapete
e murmurou uma breve prece introdutória em árabe. Não queria correr o risco de ser ouvido por nenhum de seus companheiros que passassem pela porta da cabine:
- Diante de Alá, o Misericordioso, e de seu profeta, declaro que sou Adam Abdul Tippoo Tip, e que desde o meu nascimento adotei o Islã, e sou hoje e sempre um devoto
verdadeiro. Confesso em meus pecados que tenho coabitado com os infiéis e que assumi o nome infiel de Rogier Marcel Moreau. Rezo pelo Seu perdão quanto a essas ações,
cometidas por mim a serviço do Islã e de Alá, o mais Misericordioso, e não por meu desejo ou vontade.
Muito antes do nascimento de Rogier, seu venerado avô tomara a precaução de mandar as esposas e as noras grávidas para dar à luz na minúscula ilha de Réunion, na
extremidade sudeste do Oceano Índico. Por uma feliz coincidência, o próprio avô havia nascido nessa ilha e sabia, portanto, como o local era conveniente para se
dar à luz. A Ilha de Réunion era um diretório do território francês; portanto, qualquer um que nascesse em seu relevo vulcânico, enegrecido e acidentado, era considerado
cidadão francês e possuía todos os direitos e privilégios que isso conferia. Dois anos antes, no início da operação presente e devido à insistência do avô, Adam
mudara oficialmente de nome no diretório de Auvergne, França, e recebera um novo passaporte francês. Assim que encerrou o seu apelo pessoal a Alá, Rogier iniciou
a oração noturna com a seguinte saudação árabe:
- Pretendo oferecer quatro Rakats da prece de Isha e me colocar de frente para Qibla, na direção de Meca, em nome de Alá e somente dele.
Ele começou a complicada série de gestos - curvar-se, ajoelhar-se e prostrar-se - enquanto murmurava as orações exigidas. Ao terminar, sentiu-se animado e fortalecido,
física e espiritualmente. Havia chegado o momento do próximo passo contra os infiéis e blasfemadores. Tirou a túnica, enrolou-a dentro do tapete de seda e colocou
ambos dentro do amplo saco de viagem. Em seguida, vestiu um par de calças jeans, um camisa escura e uma jaqueta preta impermeável. Depois, retirou a mochila do bagageiro
sobre o beliche e abriu a aba lateral de um dos bolsos. Pegou um celular preto da Nokia. O modelo era idêntico ao que utilizava para comunicações normais. Porém,
esse aparelho em particular havia sido modificado por um dos técnicos do avô. Ligou o celular e verificou se a bateria estava carregada. Tinha energia suficiente
para pelo menos uma semana de operações antes que tivesse de ser recarregada. Desde que partira da Cidade do Cabo, tinha revistado furtivamente a superestrutura
do iate em busca do melhor local onde plantar o aparelho, decidindo-se por fim pelo pequeno armário no convés traseiro, onde as espreguiçadeiras e o equipamento
de limpeza eram guardados. A porta nunca estava trancada e, entre a verga e a parte baixa do teto, havia uma saliência ideal para o que precisava. Retirou um rolo
de fita adesiva dupla face e uma pequena lanterna Maglite da mochila. Cortou dois pedaços de fita adesiva e colou-os na parte de trás do celular. Colocou o celular
e a Maglite no bolso da jaqueta, fechou o zíper, saiu da cabine e subiu pela escada de tombadilho até o convés traseiro. Apoiou os cotovelos na grade e olhou para
o rastro deixado abaixo pela embarcação. Era cremoso e fosforescente devido às minúsculas criaturas marinhas trazidas à superfície pelo revolver das hélices. Ele
então olhou para a meia-lua no céu, agora acima do horizonte escuro. A Lua do Islã - ele sorriu, o sinal era auspicioso. Suspendeu os cotovelos da grade, endireitou-se
e olhou ao redor casualmente, certificando-se de que não estava sendo observado. Tinha tornado as idas noturnas ao convés, após encerrar suas obrigações no bar,
um hábito, para que ninguém desconfiasse de sua presença ali nessa ocasião. A porta do armário ficava à sombra da superestrutura. De roupas escuras, Rogier se movia
praticamente invisível naquela direção. O trinco da porta abriu facilmente. Ele entrou e a fechou. Acendeu a Maglite, mas protegeu o poderoso feixe de luz com uma
das mãos, apontando-a para a reentrância acima da verga da porta. Ela ficava acima da vista de até mesmo um homem alto que pudesse entrar no armário. Com a mão que
estava livre, tirou o celular do bolso e escolheu o local exato onde colocá-lo. Alcançou-o e pressionou os pedaços de fita adesiva na divisória. Com cautela, fez
um teste e viu que o aparelho estava firmemente grudado - seria preciso uma força considerável para removê-lo.
Apertou o botão de acionamento, e a luzinha vermelha se acendeu imediatamente, emitindo uma pulsação eletrônica quase inaudível. O transceptor estava funcionando.
Rogier soltou um grunhido de satisfação e pressionou o botão "mudo". O ruído foi silenciado, mas a luz vermelha continuou a pulsar suavemente. Apenas um receptor
sintonizado na mesma faixa de onda do transmissor e codificado de maneira exata seria capaz de ler as transmissões. O código Squawk era 1351, o equivalente islâmico
do ano 1933 no calendário gregoriano, o ano de nascimento do avô. Rogier desligou a lanterna e saiu, fechando a porta atrás de si silenciosamente, e desceu até sua
cabine.
A 180 milhas náuticas ao norte de Madagascar e a 830 quilômetros a leste do porto de Dar es Salaam, no território africano, encontram-se espalhados alguns minúsculos
atóis de corais desabitados. Ao sotavento de um deles, repousava um dhow árabe de 170 pés de comprimento com a âncora fixada a quatro braças de profundidade, e a
lona imunda de suas velas latinas triangulares colhida ao redor das longas hastes de apoio. A embarcação estava ali havia onze dias, indistinguível de qualquer outro
barco árabe mercantil ou pesqueiro. Havia muitos anos que o casco, listrado pelas fezes humanas evacuadas desde a grade do navio pelas nádegas da tripulação, não
recebia uma pintura. A única coisa estranha que talvez pudesse chamar a atenção de um observador comum eram as outras três pequenas embarcações ancoradas ao lado
do dhow. De 28 pés de comprimento, e proas extremamente aerodinâmicas, eram feitas de moderna fibra de vidro e pintadas em uma cor indefinível de acabamento fosco
capaz de amalgamar-se aos resíduos aquosos do mar aberto. Na popa de cada barco estavam aparafusados dois motores enormes. A espalhafatosa pintura original do fabricante
tinha sido coberta por uma camada irregular de tinta da mesma cor dos cascos. No entanto, os motores estavam ajustados com precisão, e eram capazes de elevar a velocidade
das pequenas embarcações acima dos 40 nós, mesmo em situações de carga máxima.
Os longos barcos estavam vazios no momento. Os tripulantes estavam todos reunidos no convés do grande dhow, onde tinham acabado de encerrar suas preces noturnas.
Circulavam pelo convés se abraçando e repetindo a tradicional invocação:
- Que Alá escute nossas preces.
Acima do alvoroço das vozes, o ouvido treinado do operador de rádio captou o bipe eletrônico que vinha da casaria em frente ao único mastro. Ele se separou do grupo
e foi correndo até o equipamento. Assim que entrou na casaria, viu a luz vermelha que piscava no painel do receptor de rádio, e seu coração bateu mais rápido.
- Em nome de Alá, o Todo Misericordioso, que o Seu nome seja exaltado para sempre! - ele se agachou de pernas cruzadas diante do aparelho de rádio.
Desde que tinham chegado ao atol e ancorado o dhow com um pedaço de coral, o rádio fora sintonizado na frequência correta. Ele digitou o código Squawk em morse:
1351. De imediato, o transceptor no armário do convés da popa do Golfinho Amoroso passou do modo de transmissão ao modo passivo, à espera da resposta ao seu sinal.
O operador de rádio se pôs de pé e correu até a porta. Berrou com excitação:
- Mestre! Venha depressa!
O capitão do dhow se aproximou em passadas largas. O convés estava iluminado por lanternas de querosene penduradas na haste do mastro. À sua luz, o capitão era uma
figura esguia com um lenço shumag xadrez vermelho e branco na cabeça, e uma longa túnica dishdashah branca. A barba dele ainda não tinha um único fio grisalho, embora
tivesse passado dos cinquenta. Ele enfiou a cabeça na cabine de rádio e respondeu ao operador em expectativa:
- Sim?
- Pela graça de Alá e Seu Profeta, que Eles sejam louvados eternamente.
O operador confirmou o contato e passou para o lado na cabine apertada para permitir que o capitão visse a luz vermelha e regular que brilhava no painel frontal.
Em silêncio, o capitão agachou diante do equipamento e começou a interrogar o transceptor. Primeiro, perguntou qual era sua posição e velocidade contra o fundo no
momento. Ele respondeu imediatamente. O capitão repetiu os dados de longitude e latitude para o operador, que tomou nota em um bloco de papel. Sabia que os dados
tinham uma margem de erro de poucos metros.
Apesar do cordame bíblico do dhow e de sua aparência arcaica, a navegação por satélite com a qual estava equipado era a mais moderna disponível no mercado. Quando
o capitão averiguou a posição e velocidade do Golfinho pelo transceptor, abriu um mapa do Oceano Índico no assoalho e debruçou-se sobre ele. A posição atual do dhow
estava marcada por uma discreta cruz vermelha. Ele determinou a posição do iate dos infiéis e também a marcou no mapa. Depois, começou a fazer os cálculos de curso
e de tempo para a interceptação. Não queria alcançar um posicionamento muito adiante do iate e desperdiçar tempo e combustível, mas acima de tudo não queria que
a outra embarcação o ultrapassasse. Quando rebocava os outros barcos, a velocidade máxima do dhow era de apenas catorze nós, o que o deixaria para trás no caso de
uma perseguição mais acirrada. Assim que ficou satisfeito com os cálculos, o capitão foi para o convés.
Trinta e nove homens estavam reunidos, agachados em silêncio, à espera. As modernas armas automáticas que todos carregavam pareciam incongruentes naquele cenário.
Cada barco tinha onze tripulantes, o restante pertencia ao dhow. O capitão caminhou a passos solenes até o leme, onde assumiu seu lugar e dirigiu-se a eles.
- A gazela está na boca da chita - as primeiras palavras geraram um forte murmúrio de comentários entre os homens. O capitão ergueu uma das mãos, e eles se calaram
de imediato, concentrando a atenção totalmente nele.
- O infiel ainda está longe, a sudeste, mas movendo-se rapidamente em nossa direção. Amanhã cedo, antes do dia clarear, levantaremos âncora. Levaremos várias horas
para chegar à posição de emboscada. A expectativa é de que o barco infiel passe por nós amanhã à tarde, duas horas antes do pôr do sol, a uma distância de cerca
de três quilômetros ao leste, uma distância muito grande, o máximo que vão enxergar é a nossa vela. Pensarão que se trata de um inofensivo barco mercantil da ilha...
Devagar, mas de maneira enfática, ele repassou mais uma vez o plano de ataque. Eram homens simples, na maioria analfabetos e não muito inteligentes, mas quando farejavam
sangue na água eram amedrontadores como um barracuda. Ao terminar, lembrou-os:
- Partiremos antes do primeiro raio de sol, que Alá e o Profeta sorriam diante da nossa empreitada.
Quando viu a maçaneta da porta do camarote girar furtivamente, Cayla estava pronta. Ela o havia esperado por quase uma hora com uma ansiedade febril. Tinha ensaiado
cada ofensa e insulto em sua mente e, em seguida, a maneira como o forçaria a submeter-se a ela, desculpando-se de forma constrangedora. Ela pulou da cama e correu
descalça, sem fazer barulho, até a porta. Falou com o lábios junto do painel, em um volume suficiente apenas para que ele pudesse escutá-la do outro lado:
- Vá embora! Nunca mais quero vê-lo. Odeio você. Está me escutando, eu odeio você! - esperou pela resposta, mas o silêncio se prolongou por trinta segundos, o que
para ela pareceu muito mais. Queria chamá-lo mais uma vez, apenas para se certificar de que ainda estava ali. E então ele falou, e o tom foi monótono e frio:
- Sim, estou ouvindo. Já estou indo embora, como desejar.
Ela ouviu os passos dele se afastando no corredor. Os acontecimentos não estavam se desenrolando como imaginara. O que esperava dele era que pedisse perdão. Rapidamente,
soltou o trinco e escancarou a porta.
- Como ousa me insultar e desafiar? Volte aqui já. Quero que saiba o quanto odeio você.
Ele se virou para encará-la e sorriu, aquele sorriso que a excitava e enfurecia. Ela bateu o pé e mal podia acreditar que tivesse feito um gesto tão infantil.
- Volte aqui imediatamente. Não fique parado aí com esse sorriso imbecil no rosto. Venha aqui.
Ele deu de ombros e caminhou devagar até ela, que segurava a porta entreaberta. Cayla tinha pensado nos insultos mais mordazes que podia imaginar, mas Rogier já
tinha chegado à porta antes que pudesse dizer qualquer coisa. Ele ainda estava sorrindo, mas o que fez a seguir a pegou completamente de surpresa. Ele forçou o ombro
contra a porta e a escancarou. Ela se encolheu, espantada.
- Seu desgraçado! - disse com a voz trêmula. - Como ousa, seu caipira grosseiro!
Ele fechou a porta e a trancou por dentro. Depois, avançou calmamente na direção dela, que foi forçada a recuar.
- Saia de perto. Não ouse encostar em mim. Vous êtes une merde noire! - Cayla avançou para cima dele com um dos punhos fechados e, com o braço na altura do ombro,
desferiu um golpe selvagem, tentando acertá-lo na cabeça. Ele a segurou pelo pulso e a fez ajoelhar-se devagar na sua frente.
- Você não pode fazer isso comigo! Vou contar para a minha mãe.
- Então de repente Cayla não é mais uma menina crescida e feroz. É uma bebezinha chorando para a mamãe.
- Não fale assim comigo. Eu mato você... - ela interrompeu o que ia dizer, perplexa ao perceber que ele estava abrindo o zíper da calça e colocando o pênis para
fora a apenas alguns centímetros de seu rosto. Blaise já estava totalmente ereto. Ela percebeu que a violência o tinha deixado excitado.
- Você não pode fazer isso comigo - suspirou. - Está me machucando.
Ele estava torcendo o braço dela com força, mas continuava a sorrir. Apesar da dor, ela de repente ficou tão excitada quanto ele. Podia sentir o líquido vaginal
vazando pela calcinha de seda. O pênis dele estava encostado em seus lábios.
- Abra a boca! - ele ordenou.
Rogier forçou os lábios dela a se abrirem devagar e empurrou a cabeça para o fundo da boca. Ela não demonstrava mais nenhuma relutância e movia a cabeça no mesmo
ritmo das estocadas dele. De repente, parou horrorizada e, em seguida, jogou a cabeça para trás, tossindo e cuspindo.
- Seu desgraçado! - soluçou, enojada. - Você mijou na minha boca. Vous êtes un cochon dégoûtant!
Rogier soltou o pulso dela, mas logo depois, agarrou um punhado de cabelos loiros e virou o rosto dela em sua direção.
- Nunca, nunca mais me chame de porco - disse em tom calmo e ameaçador. - E isto é para você não esquecer - com uma das mãos espalmadas, acertou a face dela, fazendo-a
virar para o lado.
Ela o encarou surpresa e perplexa, com os olhos inundados pelas lágrimas de dor no rosto que ardia, mas era o choque que a impedia de falar.
- Agora, abra a boca de novo - ele mandou, mas ela balbuciou uma recusa incoerente e tentou virar o rosto. Ele segurou o cabelo com mais força ainda, a ponto de
Cayla achar que fosse arrancá-lo do couro. Ela ergueu o rosto e o encarou com o rosto avermelhado no local onde o tapa a acertara.
- Por favor, Rogier, não me machuque de novo. Eu não quis dizer o que disse. Amo tanto você. Você nunca saberá quanto. Por favor, me perdoe.
- Prove - disse. - Abra a boca de novo.
Ela nunca tinha se sentido tão dominada e indefesa. Era como se estivesse ajoelhada aos pés de um deus, não de um ser humano. Desejava que ele a possuísse completamente,
que a subjugasse, violasse e humilhasse. Abriu a boca devagar conforme ele tinha mandado, e Rogier a penetrou com tanta força, que ela sentiu o maxilar doer. Quando
o fluxo morno e pungente jorrou em sua boca foi como se os sentidos dela fossem inundados. Ela então soube que lhe pertencia, somente a ele e a ninguém mais, nem
mesmo a si mesma.
Duas horas mais tarde, ele a deixou deitada e exausta nos lençóis revirados. Tinha os lábios inchados e inflamados devido aos beijos brutos e a barba por fazer dele;
o rímel tinha escorrido dos seus olhos fazendo-os parecer os de um palhaço trágico, a pele de alabastro, extremamente pálida, exceto pela bochecha cor-de-rosa onde
recebera o tapa. Os cabelos dela estavam emaranhados e escurecidos devido ao suor. Ela se apoiou com dificuldade em um dos cotovelos ao ouvi-lo sair pela porta.
Mas não conseguiu pronunciar as palavras para implorar que ficasse. E então, era tarde demais, ele já tinha partido. Destroçada e devastada, estava cansada demais
para chorar. Encostou a cabeça no travesseiro e, em poucos minutos, adormeceu.
Rogier subiu para o convés após as preces noturnas e debruçou-se na grade como de costume. Ao certificar-se de que não estava sendo observado, entrou no armário
e, só de olhar para o transceptor no esconderijo, teve certeza de que fora contatado por outra estação. Uma outra luz se acendera acima da primeira. Digitou o códio
Squawk, e a tela minúscula foi ligada, fornecendo a data e a hora do último contato. Isso havia acontecido fazia poucas horas. Ele ficou animado. Tudo estava correndo
exatamente conforme o que fora planejado muitos meses antes. Tantas coisas podiam ter dado, e quase deram, errado.
No plano original do avô, a Bannock mais velha seria o alvo. Mas logo tornou aparente que isso não era viável. Até mesmo uma pesquisa básica havia deixado claro
que a mulher era experiente e esperta demais para cair em uma armadilha amorosa tão óbvia. Embora parecesse que tivera um ou dois casos inconsequentes depois da
morte do marido, foram nos termos dela, com homens maduros e poderosos de status semelhante. Ela certamente ficaria imune ao charme e às artimanhas juvenis e mais
óbvias de Rogier. No entanto, a filha era um cordeirinho inocente, sozinha em Paris e ávida por viver a vida e suas emoções. O avô havia mandado Rogier para Paris,
e o encontro e a sedução da menina tinham sido patéticos de tão fáceis.
Tudo de que precisavam agora era que a mãe fizesse a visita anual de natal às Seicheles a bordo de seu iate e, claro, levasse a filha, mas isso não parecia suscitar
nenhuma dúvida. A reviravolta inesperada acontecera quando a mãe deixara o iate na Cidade do Cabo com a filha a bordo, que prosseguira para a ilha acompanhada apenas
da tripulação, da qual Rogier agora fazia parte. O avô tinha ficado satisfeito com a mudança inesperada. Rogier havia ligado da cabine telefônica na zona das docas
na região portuária da Cidade do Cabo, e o velho riu ao receber a notícia.
- Alá tem sido magnânimo, glorificado seja o Seu nome. Eu mesmo não teria feito melhor. A garota estará mais vulnerável e maleável sem a mãe para protegê-la, e uma
vez que esteja em nosso poder, a mãe não poderá resistir a nós. Pegue o filhote e a leoa vem atrás.
Rogier estava prestes a sair do depósito quando ouviu o bipe discreto do transceptor. A minúscula tela verde estava acesa, e ele passou os olhos pela mensagem em
árabe. Era do tio Kamal, filho mais novo de seu avô e comandante da frota de embarcações piratas com que Tippoo Tip havia devastado os navios do Oceano Índico. Kamal
havia assumido pessoalmente o comando do dhow nessa operação importante. Estava dizendo a Rogier a hora estimada em que esperava estar no campo de visão do Golfinho
no dia seguinte.
Às cinco e meia em ponto, as portas que levavam à suíte executiva se abriram e Hazel Bannock surgiu no pátio escuro. Vestia uma malha de ginástica preta que parecia
moldada ao seu longo torso e às pernas atléticas. Por cima, um par de shorts largos de seda destinados a esconder modestamente a forma das suas nádegas. Causavam
o efeito inverso, realçando sua perfeição. Nos pés, calçava um par de tênis de corrida. Os famosos cabelos dourados estavam esticados e presos com um elástico preto
na parte de trás da cabeça.
- Bom dia, major. O senhor não se importa em correr com sua parafernália de guerra completa? - o tom dela era levemente jocoso.
Ele estava de botas de combate e vestia uma cinta sobre o uniforme de camuflagem. Havia uma pistola no coldre ao redor dos quadris.
- Faço tudo nessa indumentária, madame - embora tivesse uma expressão impassível no rosto, ambos estavam cientes do duplo sentido.
Ela franziu o cenho, levemente irritada com a liberdade tomada.
- Então vamos correr - disse sem rodeios. - Vá na frente, major.
Eles deixaram o complexo, e ele a conduziu pelo caminho que subia até o ponto mais alto da serrania. Estabeleceu uma velocidade moderada no primeiro quilômetro até
que pudesse julgar a capacidade dela. Podia ouvi-la logo atrás dele na trilha, e quando alcançaram o cume, ela falou em um tom calmo, sem sinal de exaustão.
- Quando o senhor acabar de admirar a vista, major, talvez possamos experimentar uma corrida mais ritmada.
Hector sorriu. O sol ainda estava logo abaixo do horizonte, mas a poeira fina do Khamseen atravessava seus raios alastrados de forma perfeita. O céu estava incendiado
por uma glória incandescente.
- A senhora precisa admitir que isso merece muito mais do que um olhar passageiro - disse, mas ela não teceu nenhum comentário, e ele aumentou as passadas.
Eles atravessaram o cume e, finalmente, ele calculou que estavam a cinco quilômetros do complexo. O sol havia nascido, e o calor aumentava rapidamente. Muito abaixo
deles, as torres de perfuração emergiam da densa sombra causada pela montanha, e ele conseguiu distinguir os oleodutos prateados e brilhantes que desciam pelo terrível
deserto ermo até a costa.
- Logo adiante, descendo, há um caminho estreito. O chão é irregular, mas se formos por ele podemos chegar à estrada patrulhada e voltar correndo ao longo do oleoduto,
senhora. Seriam uns oito quilômetros. Quer que eu siga essa rota?
- Vá em frente, major.
Quando alcançaram a estrada, ela subiu com facilidade e assumiu a dianteira. Ela corria com graça e leveza, mas não muito depressa. Ele não teve de diminuir muito
sua velocidade máxima para acompanhá-la. Hector podia ver agora, pela linha mais escura na malha ao longo da coluna, que ela finalmente começava a transpirar e que
os cabelos loiros junto à nuca estavam molhados de suor. Sob os shorts de seda folgados, conseguia distinguir a forma das nádegas dela se movendo a cada passada.
E olhou para elas.
"Bolas de tênis?", perguntou a si mesmo, e sentiu uma pontada aguda de desejo na virilha. "Nossa, ela consegue me deixar duro até mesmo a essa velocidade. Nada mal!",
pensou e grunhiu, suprimindo o riso.
- Compartilhe a piada, major - ela encorajou, ainda falando em tom de conversa, sem mostrar sinais de cansaço.
"Maldita mulher", ele pensou, "ela é boa demais para ser de verdade, fico imaginando qual será a sua fraqueza".
- Humor colegial. A madame não acharia engraçado.
- Venha para o meu lado, major. Podemos conversar.
Ele avançou, e os dois ficaram ombro a ombro, mas ela ficou calada, forçando-o a falar primeiro.
- Com todo o respeito, madame, eu não sou mais major. Preferiria muito mais se me chamasse apenas de Cross.
- Com todo o respeito, Cross - retorquiu -, eu não sou a rainha da Inglaterra. Pode parar com esse negócio de "madame".
- Certamente, senhora.
- Estou completamente ciente do motivo de querer evitar a referência militar, Cross, ela o faz lembrar do motivo de sua expulsão do regimento. Você matou três prisioneiros
de guerra indefesos, não foi?
- Se permite que eu a corrija, eu não fui expulso do regimento, a corte marcial declarou a minha inocência. Posteriormente, solicitei e recebi uma dispensa honrosa.
- Mas os prisioneiros ainda estavam bem mortos após terem sido liquidados por você, não estavam?
- Eles haviam mandado seis dos meus camaradas para os ares com uma bomba de beira da estrada. Embora estivessem com as mãos para cima no momento da partida deste
mundo mortal, ainda eram ativamente hostis. Quando um deles alcançou o que, acredito, era um cinto de explosivos debaixo da túnica, não tive tempo de ser seletivo.
Havia um esquadrão dos meus homens ao alcance de qualquer explosão. Estávamos todos em perigo. Não tive escolha a não ser abater os três.
- Quando os corpos foram examinados, descobriram que nenhum dos três estava usando cinto. Essa foi a evidência apresentada na corte marcial. Estava incorreta?
- Eu não podia me dar ao luxo de revistar os prisioneiros antes de atirar. Tive cerca um centésimo de segundo para tomar a decisão.
- "Abater" é um eufemismo que normalmente se aplica ao assassinato de animais - ela mudou de curso.
- Entre os militares, tem outro uso.
- Abater negros? - sugeriu. - Eliminar cabeças de turbante?
- A escolha das palavras é sua, senhora, não minha.
Eles correram em silêncio por mais dez minutos. E então ela disse:
- Desde que começou a prestar serviços para a Bannock Oil, houve uma quantidade de outros incidentes fatais em que você esteve envolvido.
- Três para ser exato, senhora.
- Durante esses três incidentes, mais uma dúzia de homens foram mortos por você e seus homens. Todas as vítimas eram árabes?
- Dezenove deles para ser exato, senhora.
- Errei por pouco - ela disse.
- Antes de continuarmos, senhora, gostaria de apontar que esses dezenove insurgentes pretendiam mandar as instalações da Bannock Oil pelos ares.
- Não ocorreu a você prendê-los e detê-los para interrogação, para ter certeza de que se tratava mesmo de terroristas? - perguntou.
- A ideia me passou pela cabeça, senhora, mas na ocasião eles estavam atirando em mim e não pareciam inclinados a uma conversa educada - disse Hector e, dessa vez,
deixou escapar um leve sorriso de escárnio.
Ele tinha aprendido o suficiente sobre ela para saber o que a enfurecia. Ela correu em silêncio por um tempo, enquanto reformulava seu ataque. E prosseguiu:
- Seja sincero, Cross. Como se sente em relação às pessoas com um tom de pele mais escuro do que a sua tez branquinha?
- Sinceramente, senhora, não estou nem aí. Sou um antagonista tão acirrado dos filhos da mãe branquelos quanto dos negros. Mas tenho profunda e eterna afeição tanto
pelos bons moços branquelos como pelos negros.
- Por favor, modere a linguagem, Cross.
- Certo, assim que a senhora deixar de lado suas insinuações perspicazes.
- Muito bem, Cross. Vou ser direta. Acho que você é um racista sanguinolento, e isso não é algo que me agrada especialmente em você.
- Não foi o que o Sr. Bannock pensou quando assinou o meu contrato com a Bannock Oil.
- Sei que meu marido tinha um apreço maior pelo senhor e suas capacidades do que eu, mas, até aí, ele votou nos dois Bush, pai e filho. Henry Bannock era quase perfeito,
mas não inteiramente.
- É claro que a senhora votou no Sr. Clinton e no sr. Gore?
Ela ignorou a pergunta e continuou:
- Notei sua sutil referência ao contrato com a Bannock Oil, Cross. Li o documento inteiro, cada palavra.
- Então sabe que a quebra de contrato custará caro.
- Ninguém está falando em quebra de contrato nesse estágio, especialmente de um autorizado pelo meu marido. Mas vou ficar de olho em você. Por favor, procure não
abater muito mais negros durante o meu mandato.
Ao completarem a corrida, ela se despediu com um breve "obrigada, Cross" e se encaminhou para o edifício olhando para o relógio de pulso.
- Sra Bannock! - ele a fez parar e olhar para trás. - Gostando de mim ou me detestando, se precisar de mim, vai precisar muito, e eu estarei aqui, pela simples razão
de que o seu marido era um dos caras do bem. Era um dos melhores.
- Vamos esperar que eu não precise muito dos seus serviços - dispensou-o.
Em vinte minutos, ela tinha uma última reunião com Simpson, antes de retornar de helicóptero ao terminal de petróleo de Sidi el Razig, onde o jato estava à sua espera
na pista para levá-la à Ilha Mahe nas Seicheles, onde encontraria sua amada família. Ela tomou uma chuveirada rápida e colocou um bronzeador hidratante, mas nenhuma
maquiagem. Foi até a sala de comunicações. Havia uma série de e-mails de Agatha, mas não tinha tempo de lidar com eles agora. Ela os leria quando estivesse a bordo
do jato. Dirigiu-se até a porta, a caminho da reunião com Simpson. Nesse momento, ouviu o BlackBerry tocar no bolso externo da bolsa de couro de crocodilo na mesa
de cabeceira. Deu meia-volta. Pouquíssimas pessoas tinham aquele número. Retirou o celular da bolsa e o ligou. A mensagem na tela dizia: "Você tem duas chamadas
perdidas e uma mensagem. Deseja ver suas mensagens?". Ela apertou "sim".
- O que será que a minha macaquinha quer agora? - disse para si mesma em um tom carinhoso, e o texto surgiu. Era assustadoramente curto e simples:
Coisas terríveis acontecendo. Homens estranhos armados...
A frase estava cortada como se Cayla tivesse sido interrompida no meio. Hazel sentiu uma cortina negra cair diante de seus olhos. O corpo dela oscilou. Então, voltou
a enxergar e fixou o olhar vazio na mensagem, recusando-se propositalmente a encarar sua enormidade. Em seguida, caiu em si e sentiu uma mão gelada agarrar seu coração
e começar a sugar a vida que o habitava. Com as mãos trêmulas e a respiração entrecortada, apertou o botão para retornar a chamada e escutou o telefone tocar eternamente
no lado da linha de Cayla. O toque foi interrompido, finalmente, por uma voz impessoal:
"A pessoa para quem ligou não está disponível para atender sua chamada. Por favor, deixe sua mensagem após o sinal."
- Querida! Querida! Estou ficando louca. Por favor, me ligue assim que puder - falou ao BlackBerry e saiu correndo para a sala de comunicações. Apertou os números
de contato da ponte do Golfinho. Para a segurança do barco e dos passageiros, a maioria da tripulação era treinada em combate e bem armada.
"Com certeza eles a teriam defendido", pensou desesperadamente. Mas o telefone continuou a tocar sem resposta. A boca dela estava seca, a visão, embaçada.
- Por favor! - ela implorou. - Alguém atenda, por favor.
A seguir, o telefone parou de tocar e deu linha novamente, o toque contínuo soando de forma enfurecedora em seu ouvido. Bateu o fone no gancho e ligou para Agatha.
O coração dela deu um pulo ao ouvir a voz afetada de governanta.
- Agatha, recebi uma mensagem aterrorizante da Cayla, algo a ver com desconhecidos armados a bordo do Golfinho. Não consigo contatá-la. Não consigo entrar em contato
com o barco. As últimas coordenadas que tenho são da noite passada. Anote, Agatha - e, de cabeça, recitou a longitude e a latitude que Franklin havia passado.
"Parece agora que o barco desapareceu com a Cayla a bordo. Você tem de ligar para a casa de Chris Bessel... Tire-o da cama...
Chris era o vice-presidente executivo sênior da empresa em Houston.
- Ele tem de envolver todo mundo que conhece nisso. Tem de usar todos os contatos no Pentágono e na Casa Branca. Solicite uma visão aérea da região a partir do satélite
militar mais próximo. Descubra onde está o barco de combate norte-americano mais próximo. Peça que o enviem na maior velocidade possível. Peça para que uma aeronave
de reconhecimento da base da força aérea em Diego Garcia decole e amplie a busca. Continue a tentar entrar em contato direto com o barco. Vou pegar um voo de volta
para casa o mais rápido que puder. Tente organizar um encontro com o presidente assim que eu chegar em Washington. Você e Chris têm de se desdobrar em mil e fazer
tudo o que estiver ao seu alcance - ela estava ofegante como se tivesse acabado de correr uma maratona. - Agatha, é a Cayla, o meu bebé! Estou confiando em você.
Você não pode me decepcionar.
- Sabe que não vou decepcioná-la, senhora.
Hazel desligou e ligou para o número interno de Simpson no complexo. Ele atendeu quase imediatamente.
- Bom dia, senhora. Estamos à sua espera na sala da diretoria...
Ela o interrompeu bruscamente.
- Quero o helicóptero pronto para decolar em cinco minutos. Contate Sidi el Razig pelo rádio e mande o jato ficar de prontidão na pista. Mande meu piloto principal
reabastecê-lo completamente com os motores ligados, pronto para decolagem imediata assim que eu chegar. Diga a ele para traçar um plano de voo direto até o aeroporto
de Farnborough, na Inglaterra. Vamos reabastecer lá antes de atravessar o Atlântico em direção a Washington. Não podemos desperdiçar um único momento.
Ela abriu o cofre e retirou a bolsa que continha seu passaporte, dinheiro de emergência e cartões de crédito, depois saiu correndo da suíte pelo longo corredor até
as portas da frente, onde se encontravam Bert Simpson, dois de seus subordinados e Hector. Estavam à espera dela desde o telefonema para Simpson.
- Que diabos está acontecendo, Bert? - Hector perguntou discretamente.
- Se eu soubesse... mas deve ser uma catástrofe das grandes. O estado dela era lamentável quando nos falamos... - interrompeu o que dizia quando Hazel veio correndo
pelo corredor na direção deles.
Ela gritou com urgência:
- O helicóptero está aqui?
- Acabou de aterrissar neste momento - Bert a tranquilizou assim que ela passou por ele no caminho até a porta. E então ela viu que Hector Cross estava com os outros
homens. Ele era o único com uma expressão calma no rosto. Ele falou baixo, prendendo a atenção dela com os penetrantes olhos verdes:
- Por favor, lembre-se, senhora - ele disse -, se precisar de mim, basta uma palavra.
Foi então que ela percebeu pela primeira vez que estava chorando descaradamente, e que as lágrimas escorriam e pingavam do queixo. Ela limpou o rosto com as costas
da mão, mas desejou desesperadamente que Cross não estivesse ali para ver seu estado. Em toda sua vida, jamais experimentara tamanho caldeirão de emoções venenosas.
Sabia que estava a ponto de desmoronar, e a conscientização disso a assustava. Hector Cross era o alvo mais próximo de seu terror e confusão. Ela o atacou com o
rosto em fúria:
- Não ouse zombar de mim, Cross, seu desgraçado arrogante. Você não sabe nada, como pode ajudar? Como qualquer um pode ajudar? - ela deu as costas para ele e tropeçou
de leve ao descer os degraus da entrada. Hector foi tomado uma sensação estranha e desconhecida. Fazia muito, muito tempo que havia sentido algo assim, por isso
demorou um pouco a reconhecê-la. Era compaixão. Talvez Hazel Bannock fosse totalmente humana debaixo daquela aparência atraente. Ele não acreditava mais no amor.
O que restara dele tinha sido deixado no chão de um tribunal de divórcio qualquer. Ainda assim, esse sentimento de compaixão se parecia muito com o outro. Era perturbador.
"Você não vai fazer papel de palhaço de novo, vai, Cross?", se perguntou ao observá-la correr para o helicóptero à espera no meio do pátio, com os rotores revolvendo
devagar. Ela subiu pela escada, e o motor da grande máquina rugiu ao se erguer no ar, virando-se de frente para a costa. A aeronave abaixou o nariz e mudou de curso
devagar.
"Você não respondeu à pergunta, Cross", a pequena voz dentro dele suspirou. Deu um sorriso sem graça e respondeu a si mesmo: "Mas vai ser interessante descobrir
se ela é humana".
Rogier subiu até a ponte carregando a bandeja que continha o jantar do sr. Jetson. Havia colocado os pratos e a prataria sobre a toalha de linho branco na mesinha
apoiada na sólida divisória. Então, ficou ali em estado de alerta enquanto Jetson comia rapidamente, sem se sentar para saborear a refeição, andando para cima e
para baixo enquanto mastigava. Os olhos dele varriam sem parar o horizonte que escurecia e então se voltaram rapidamente até o repetidor de radar. Havia um minúsculo
contato brilhando na tela. Estava posicionado a 268 graus. A distância mostrada era de 3,8 milhas náuticas.
- Timoneiro, fique de olho naquele barco.
- Muito bem, sr. Jetson.
- O que acha que é, Stevens?
O timoneiro estreitou o olhar em direção ao horizonte.
- Parece um daqueles dhows árabes. Há vários deles nestas águas, senhor. Dizem que usam os ventos alísios para atravessar o oceano até a Índia. Fazem isso desde
os tempos de Jesus Cristo, ou pelo menos é o que dizem.
Rogier, que estava acompanhando a conversa disfarçadamente, virou a cabeça para olhar para fora da janela da asa de bombordo da ponte e estreitou o olhar, analisando
a superfície cinza-chumbo e encrespada do mar ao leste. O pôr do sol estava atrás deles, mas ele ainda demorou alguns momentos até distinguir a minúscula pirâmide
acinzentada de lona que, sem dúvidas, era a vela do dhow de seu tio Kamal. Mesmo do alto da ponte, não conseguia ver o casco, e a embarcação parecia seguir um curso
paralelo ao deles. E então Rogier viu a distante vela latina ir à bolina quando o dhow se virou levemente contra o vento.
"Tio Kamal está finalmente lançando os barcos de ataque", disse para si mesmo. Em seguida, a vela se encheu de novo, e o dhow se virou na outra direção, apontando
para o sul. Ele começou a se fundir com o crepúsculo e, por fim, desapareceu de vista.
Jetson retornou à tela do radar.
- Eles fizeram uma mudança de curso de trinta graus na direção sul. Duvido que estejam fazendo mais do que catorze nós e, a essa velocidade e adiante, provavelmente
vão passar por nós a vinte milhas à popa.
A seguir, olhou para Rogier.
- Obrigado, camareiro - disse Jetson. - Pode retirar os pratos agora.
Rogier empilhou os pratos e desceu com eles até a área de serviço. Quando terminou de lavar a louça, gritou para o chefe:
- Missão cumprida, Cookie. Posso me mandar agora?
O chefe estava sentado em sua própria mesinha, perto da dispensa, com uma taça de vinho de cristal e uma garrafa verde aberta diante dele.
- Por que tanta pressa, Rogier? Venha beber uma taça deste excelente Château Neuf comigo.
- Hoje à noite não, Cookie. Estou pregado. Mal consigo manter os olhos abertos - disse e saiu depressa, antes que o chefe pudesse insistir ainda mais.
Em sua cabine, pediu desculpas a Alá e ao Profeta:
- O Senhor sabe que há questões desesperadoras em progresso. Por favor, me perdoe por perder a oração noturna. Após obedecer o Seu chamado à jihad, compensarei completamente
amanhã à noite.
Depois, vestiu seus trajes negros casuais e foi até o convés da popa. Diante da grade, olhou para trás, seguindo o rastro do barco. Não conseguia ver nada além das
ondas que se formavam, correndo em direção à escuridão. As lanchas tinham sido projetadas para ficar a uma altura baixa na água. Escondidas na confusão das cristas
das ondas, ficariam abaixo do radar do Golfinho. De qualquer modo, esse não era um navio de combate, e a vigilância era menos acirrada. Conforme tinha testemunhado,
a atenção deles estava totalmente concentrada adiante. Não esperavam que nenhuma outra embarcação fosse veloz o bastante para alcançá-los por trás. Porém, Rogier
sabia que as lanchas estavam lá. O tio Kamal havia mandado o horário de contato pelo transceptor - vinte e três horas. Era quando a maior parte da tripulação estaria
se preparando para dormir e inteiramente desprevenida.
Rogier esperou por uma hora e depois outra. De tempo em tempo, verificava o disco luminoso de seu relógio de pulso japonês barato. O Golfinho estava operando com
todas as luzes acesas. Estava iluminado como um parque de diversões. Os barcos de ataque seriam capazes de visualizá-lo a trinta quilômetros de distância, mas sabia
que já estavam muito mais próximos, provavelmente seguindo o Golfinho de perto havia poucas centenas de metros. Faltavam poucos minutos para as onze, e ele sabia
que Kamal seria pontual. Rogier olhou para a esteira abaixo e, de repente, um minúsculo ponto de luz surgiu no mar escuro. Piscou três vezes logo atrás da espuma.
Rogier apontou a Maglite sobre a popa e piscou o feixe três vezes em resposta. Ficou esperando, impaciente. Os barcos não eram muito mais velozes do que o Golfinho,
portanto, passaram-se dez minutos antes que ele avistasse o primeiro casco semelhante a um tubarão surgir na escuridão traseira. Ao se aproximar, conseguiu distinguir
as silhuetas da tripulação agachada sob a amurada. É óbvio que todos vestiam roupas escuras em vez dos tradicionais dishdashas brancos, e os rostos estavam cobertos
por lenços pretos de cabeça. Estavam tomando cuidado para que as armas não transparecessem acima da amurada do barco. Os outros dois barcos de ataque surgiram da
escuridão atrás do líder.
Uma única figura estava de pé na proa do barco dianteiro, que desviou de curso ao lado da alheta de bombordo do Golfinho, e então se aproximou de lado.
Apesar do pano na cabeça, Rogier reconheceu a figura altiva e esguia do tio. Estava liderando o ataque pessoalmente. Rogier disparou o feixe da Maglite para baixo,
indicando que estava pronto para agarrar a corda a bordo. Kamal se curvou para a frente e pegou alguma coisa do convés, depois se ergueu de novo com uma pequena
arma Lyle em punho, semelhante a um rifle. Apoiou a coronha no ombro e apontou para onde Rogier estava. Ele atirou e a seguir vieram um estouro mudo e uma lufada
de fumaça branca. Rogier se abaixou, e a serpente branca de fumaça subiu e se arqueou sobre a sua cabeça. O pequeno gancho na ponta da corda chacoalhou, e Rogier
correu para pegá-la antes que fosse arrastada para fora do barco pela água. Deu três voltas da corda ao redor do balaústre de amarração no convés e fez um nó bolina.
Acenou para o tio e, imediatamente, um dos tripulantes, um homem baixinho e magro, forte e ágil como um macaco, subiu pela corda e aterrissou descalço no convés
no lado em que Rogier se encontrava. Amarrada ao redor de sua cintura, estava uma corda mais pesada que podia aguentar vários escaladores. O restante dos homens
subiu em rápida sucessão. Um deles entregou uma pistola Tokarev embainhada a Rogier, que a prendeu numa tira ao redor da cintura sob a jaqueta. Cinco deles já tinham
sido designados para guardar a ponte. Com uma única palavra de Rogier, cada um dos rifles de assalto automáticos que os homens traziam foi carregado e travado, estalando
a caixa da culatra. Eles o seguiram correndo.
Ao entrar na escada de tombadilho que levava ao convés superior, Rogier ficou cara a cara com o cozinheiro, que estava descendo as escadas. Ele encarou
Rogier e os homens que o seguiam sem compreender nada, e em seguida abriu a boca para gritar. Rogier acertou-o na têmpora com a coronha da pistola e ouviu o osso
do crânio quebrar. O cozinheiro escorregou para o chão sem fazer barulho. Ele se curvou sobre o corpo inerte e, com mais três golpes, acertou-o na nuca, para garantir
que estivesse morto. Depois, pulou o corpo e saiu correndo. Na entrada da ponte, parou para que os homens que o seguiam se reagrupassem. Em seguida, pisou na ponte.
Jetson estava de pé ao lado do painel de instrumentos, discutindo algo com o timoneiro. O operador de rádio estava na cabine no fundo da ponte. Estava reclinado
em sua cadeira giratória, completamente concentrado no romance de bolso que estava lendo. Mas se algo o alarmasse, em um instante poderia alcançar e apertar o botão
vermelho na divisória ao seu lado. Isso daria início a uma série de medidas eletrônicas que automaticamente acionaram o alarme do navio e transmitiriam um chamado
de socorro pelo rádio, que seria ouvido por todas as estações de escuta da marinha desde Perth até a Cidade do Cabo, e das Ilhas Maurício até Bombai. Rogier colocou
a mão que segurava a Tokarev para trás e entrou na cabine de rádio.
- Oi, Tim! - sorriu para operador que elevou o olhar do livro até ele.
- Rogier, que diabos você está fazendo aqui? Sabe que a sua presença não é permitida nesta estação.
Rogier apontou para além do ombro dele:
- O que é aquela luz vermelha piscando, Tim? - perguntou, e Tim virou a cadeira rapidamente.
- Que luz vermelha? - perguntou, e Rogier tirou a mão detrás das costas e atirou em Tim com a pistola no ponto de junção da vértebra superior com o crânio. A bala
saiu por entre os olhos dele em um jorro vermelho-vivo de sangue e massa cefálica que se espalhou pelo painel do rádio. Tim caiu da cadeira e escorregou para o convés.
Rogier se virou depressa e descobriu que seus homens já tinham as armas apontadas para Jetson e o timoneiro.
- Por Deus, Moreau. Você matou aquele homem... - a voz de Jetson tremia de choque e indignação.
Ele caminhou na direção de Rogier, que ergueu a pistola e o acertou em cheio no peito. Jetson segurou a ferida com ambas as mãos e continuou de pé, ligeiramente
oscilante.
- Você enlouqueceu? - suspirou, balançando a cabeça em profunda descrença.
- Você tem de matar os oficiais imediatamente. São eles que podem organizar qualquer resistência - o avô havia ordenado, portanto, Rogier atirou mais duas vezes
no peito de Jetson e observou-o com um interesse profissional cambalear para trás sobre o painel de controle e desabar como um saco.
- Poupem a tripulação. Podem ser usados como mercadoria de negociação mais tarde - ordenara o avô.
Rogier assentiu para os homens, que amarraram os braços do timoneiro para trás, prendendo os pulsos com um fio ultra-resistente. Rogier passou por ele a caminho
do painel de controle do iate e moveu o telégrafo de máquina para a posição "STOP". A vibração dos motores no convés sob seus pés cessou, e ele sentiu a mudança
sutil de movimento quando o Golfinho Amoroso perdeu o impulso.
- Sente-se - Rogier se dirigiu ao timoneiro. - Não se mexa até eu mandar.
- Pelo amor de Deus, Rogier... - o timoneiro implorou, mas Rogier o atingiu debaixo das costelas com a pistola e, com os braços ainda amarrados, ele caiu na poça
do sangue de Jetson que se espalhava sobre o convés. Os fundilhos de suas calças ficaram encharcados.
Rogier deixou um dos homens de guarda e conduziu o restante até o convés inferior. Deteve-se no lado de fora da suíte do capitão. Na posição de camareiro do barco,
tinha os cartões codificados para entrar em qualquer cabine que não estivesse fechada também com o trinco. A porta de correr abriu sem fazer barulho, e Rogier entrou
na sala de estar da suíte. Acendeu a luminária da mesa e viu que a porta do banheiro estava aberta. Um ruído de ronco profundo vinha da cabina adiante. Atravessou
a sala de estar e olhou para o quarto pela entrada. Franklin estava deitado de costas no beliche, em cima das cobertas. Estava apenas de cueca. A barriga dele era
protuberante, pálida e coberta de pelos grisalhos emaranhados. Estava de boca aberta, e os roncos subiam ritmados pela garganta. Rogier foi até ele e colocou a boca
da Tokarev a cerca de um centímetro de uma das orelhas. Fez um único disparo. Franklin engoliu em seco ruidosamente e não chegou a completar a próxima expiração,
mas depois disso não fez mais nenhum barulho nem se mexeu. Rogier disparou pela segunda vez no cérebro. A seguir, recarregou o pente da pistola e levou os homens
para fora da cabine, descendo para o salão principal.
Seu tio Kamal foi abraçá-lo assim que entrou.
- Que Alá o mantenha em Seu seio. Hoje você trabalhou em nome de Deus, Adam.
Ele fez um gesto apontando para a fila de prisioneiros agachados no convés com as mãos amarradas para trás.
- Estão todos aqui? Está faltando alguém?
Rogier contou rapidamente as cabeças dos tripulantes agachados.
- Sim, estão. O capitão, o subcomandante, o cozinheiro e operador de rádio estão no lugar a que pertencem: nas garras cruéis de Iblis, o Demônio. O outro tripulante
ausente é o timoneiro, que está na ponte, sob vigilância.
Apontou para Georgie Porgie, o intendente:
- Mantenha este aqui - ordenou -, vou cuidar dele mais tarde.
A seguir, selecionou os dois comandantes juniores e o engenheiro-chefe.
- Estes são oficiais. Leve-os para a popa e atire neles. Jogue os corpos no mar - ele estava falando em árabe, por isso, as vítimas não estavam cientes de seu destino
ao serem colocadas de pé e levadas embora.
Rogier esperou pelo barulho dos disparos antes de prosseguir.
- Não falta nenhum infiel agora, a não ser a garota. Ela ainda está adormecida na cabine - deu um sorriso amarelo ao se lembrar do estado de exaustão em que deixara
Cayla, completamente esgotada por sua perícia copulativa. - Vou descer agora para pegá-la. Enquanto isso... tio Kamal, você tem que ir para a ponte e colocar o barco
novamente a caminho.
Cayla não sabia ao certo o que a tinha acordado. Pensou ter ouvido um barulho. Sentou sonolenta nos lençóis amassados e escutou com a cabeça de lado. O barulho não
se repetiu, mas algo mais havia mudado. O sono não permitia que pensasse direito, então foram necessários alguns segundos até que ela percebesse que os motores do
barco tinham sido desligados e que ele balançava pesadamente ao embalo do mar.
- Que estranho - ela estava tranquila. - Não é possível que já tenhamos chegado ao porto.
Ela então percebeu um desconforto que sentia devido à bexiga cheia. Moveu as pernas para o lado e levantou da cama. Retesou-se diante do movimento incomum do iate
e foi cambaleando até o banheiro. Sentou-se na privada e suspirou de alívio ao esvaziar sua bexiga. A luz do luar se derramava através da vigia que tinha vista para
a piscina e o convés privados. Estava desperta agora e parou diante da vigia para olhar para o céu estrelado e o mar sombrio. Não havia esteira atrás da popa, e
ela viu que sua impressão estava correta. O Golfinho estava parado. Pensou em telefonar para a ponte e perguntar ao oficial de plantão o que estava acontecendo,
mas nesse momento uma sombra passou pela vigia, e ela percebeu que havia alguém no convés particular. Logo ficou zangada. A tripulação estava estritamente proibida
de circular naquela área. Ela e a mãe a utilizavam para tomar sol e nadar. Com certeza ia ligar para ponte e punir o intruso. Mas, antes que se virasse, uma outra
figura surgiu em seu campo de visão. Trajava roupas escuras, e o rosto estava coberto por um xale árabe ao redor da cabeça, que deixava apenas os olhos à mostra.
Eles cintilaram ao se virar para ela. Parou em frente à vigia e olhou para dentro. Ela se encolheu, alarmada. O homem encostou o rosto no vidro e ergueu uma das
mãos para proteger os olhos, e ela notou que a luz do luar não bastava para que ele pudesse enxergar o interior da cabine escura. O comportamento dele era furtivo
e ao mesmo tempo ameaçador. Ela prendeu a respiração e ficou paralisada de terror. Ele parecia estar encarando-a nos olhos, mas após alguns segundos se afastou da
vigia. Com mais uma pontada de medo, viu que ele tinha um rifle automático pendurado no ombro. O homem sumiu do campo de visão de Cayla, mas logo em seguida outras
três figuras sombrias se enfileiraram depressa e passaram silenciosamente pela vigia. Todos carregavam armas automáticas.
Ela agora sabia que devia ter sido acordada pelo som do disparo de um rifle. Precisava pedir ajuda. Estava apavorada e tremendo. Correu de volta para a cabine e
pegou o telefone via satélite da cabeceira. Digitou o número da ponte freneticamente. Não houve resposta, mas ela deixou tocar enquanto pensava no que fazer a seguir.
Havia uma única pessoa a quem podia apelar. Ligou para o número privado da mãe. A voz gravada de Hazel pediu que deixasse um recado. Desligou e ligou mais uma vez
imediatamente, obtendo o mesmo resultado.
Mamãe, mamãe! Por favor me ajude - choramingou e começou a compôr uma mensagem de texto no celular, os polegares deslizando rapidamente pelas teclas.
Coisas terríveis acontecendo. Homens estranhos armados...
Ela interrompeu a frase no meio. Havia alguém na porta da cabine. Alguém estava abrindo a porta com um cartão codificado. Apertou o botão "enviar" no celular e jogou
o aparelho dentro da gaveta da mesa de cabeceira, fechando-a com violência. Pulou da cama praticamente ao mesmo tempo. Correu para a porta, bloqueando-a com o peso
do corpo assim que começou a se abrir.
- Vá embora. Saia daqui, seja você quem for - gritou histericamente. - Me deixe em paz!
- Cayla! Sou eu, Rogier. Deixe-me entrar, Cayla. Está tudo bem. Vai dar tudo certo.
- Rogier! Graças ao bom Deus. É você mesmo? - ela escancarou a porta e, por um momento, encarou-o com descrença, pálida e de olhos arregalados, e então soluçou de
alívio.
- Rogier, Rogier! - ela se lançou no peito dele e se agarrou a ele com uma força desesperada. Ele a envolveu com um braço e acariciou seus cabelos com a outra mão.
- Não tenha medo. Tudo vai ficar bem.
Ela balançou a cabeça violentamente e berrou:
- Não! Você não compreende. Havia alguns homens aqui. Um deles olhou para dentro da cabine. Estava acompanhado de outros! Homens! Homens horríveis. Todos estavam
armados. E eu ouvi tiros...
- Escute, querida. Vai dar tudo certo. Explicarei mais tarde. Mas ninguém vai machucar você. Você tem de ser corajosa. Quero que se vista. Temos que sair daqui.
Agasalhe-se, Cayla. Vista o seu casaco à prova d'água. Está frio lá fora.
Ele esticou o braço por sobre os ombros dela e desligou as luzes principais da cabine.
- Você tem de se apressar, Cayla.
- Para onde vamos, Rogier? - ela se afastou e o encarou. E então o olhar dela desceu até o peito dele. - Você está sangrando, Rogier. Está coberto de sangue.
- Faça o que eu mandar, maldição. Não temos muito tempo. Vista-se! - ele a pegou pelo braço e empurrou-a para que entrasse no closet. Jogou-a para dentro. As prateleiras
em ambos os lados estavam empilhadas de roupas, e outros vestidos e calças estavam jogados sobre os sofás, cadeiras e até mesmo no chão, em uma profusão desordenada.
Na penteadeira, havia dezenas de potes e vidros de cremes, unguentos e perfumes, muitos deles destampados.
- Você está me machucando - ela protestou. - Solte o meu braço.
Ele ignorou o apelo, pegando um par de calças de veludo cor-de-rosa de uma das cadeiras e atirando-a para ela.
- Vista isso. Depressa! - mas ela ficou paralisada, olhando fixamente para a pistola no coldre na lateral do corpo dele.
- Isso é uma arma! Onde você a conseguiu, Rogier? Não entendo. Você está coberto de sangue, mas não é seu, é? E você está armado - ela começou a se afastar dele.
- Quem é você? O que é você, me diga?
- Não quero machucá-la, Cayla, mas você tem de fazer exatamente o que estou mandando.
Ela balançou violentamente a cabeça.
- Não, me deixe em paz! Você não pode fazer isso comigo.
Ele agarrou o pulso dela e torceu o braço para trás. A seguir, começou a levantá-la pelo pulso. Os gritos desafiadores dela se tornaram agudos de agonia, mas Rogier
continuou a erguê-la até que ficasse na ponta dos pés. Os gritos se tornaram mais altos e estridentes, até que ela se rendeu.
- Pare, por favor, pare, Rogier - choramingou. - Farei o que você quiser, mas não me machuque mais.
O fato de ela ter cedido com tanta rapidez o deixou satisfeito. Outros haviam morrido tentando ainda resistir. Assim, pouparia bastante tempo e esforço. Cayla se
vestiu com a cabeça baixa, sem olhar para o rosto dele, e ocasionalmente um soluço escapava de seus lábios. Quando acabou, ele a segurou pelo cotovelo e a levou
para o quarto.
- Onde está seu celular, Cayla? - perguntou.
Amuada, ela sacudiu a cabeça, mas não conseguiu evitar um olhar na direção da gaveta da mesa de cabeceira.
- Obrigado.
Ele escancarou a gaveta e pegou o telefone. Abriu a lista de mensagens enviadas e leu em voz alta as palavras que ela tinha mandado para a mãe alguns minutos antes:
"Coisas terríveis acontecendo. Homens estranhos armados..."
- Queria que não tivesse feito isso, Cayla. Tudo o que fez foi tornar as coisas mais difíceis para si mesma - disse em um tom suave e, então, com uma das mãos espalmadas,
desferiu mais um golpe violento no rosto dela, fazendo a cabeça da garota virar para o outro lado e o corpo se esparramar no chão.
- Chega de truques desse tipo, por favor. Não gosto de castigá-la, mas castigarei se me forçar a isso.
Ele abriu a tampa de trás do aparelho, tirou o chip do compartimento, colocou-o no bolso da jaqueta e fechou o zíper. Depois, jogou o telefone para o lado. Abaixou-se
e a segurou de novo pelo cotovelo, fazendo-a levantar. Agarrando-a pelo braço, Rogier conduziu-a para fora da cabine, descendo pela escada do tombadilho até o salão
principal. Ela engoliu em seco e tentou se desvencilhar de Rogier quando, chocada, viu a tripulação agachada no convés de braços amarrados e os homens sobre eles
com os rifles apontados.
Ele sacudiu o braço de Cayla com força.
- Agora, chega de tolices.
Levou-a para o fundo do salão e forçou-a a se sentar. Em seguida, acenou para que um dos homens mascarados viesse até ele. Cayla olhou para cima espantada ao vê-lo
falando em árabe com o homem.
- Não quero que façam nenhum mal contra a mulher. Ela é mais valiosa do que sua vida miserável. Entendeu o que estou dizendo?
- Entendi, senhor - o homem tocou o próprio peito em sinal de respeito.
- Por que você está falando nessa língua, Rogier? Quem é você? Quem são essas pessoas? Onde está o capitão Franklin? Quero falar com ele - Cayla implorou.
Vai ser difícil. O capitão está com duas balas na cabeça - deu um tapinha na pistola que trazia junto ao corpo. - Chega de perguntas. Espere aqui em silêncio. Eu
volto mais tarde. Acho que você está começando a descobrir que me deve completa obediência.
Ao entrar na ponte de comando, Rogier descobriu que o tio estava ao leme. Kamal era um marinheiro habilidoso que passara a vida nos oceanos em todos os tipos de
embarcações, desde minúsculos veleiros até navios-tanque gigantes. Rogier olhou para a bússola e viu que o Golfinho estava no curso contrário ao estabelecido por
Franklin. Eles estavam voltando pelo mesmo caminho. Foi até a asa da ponte e olhou para trás. Os três barcos de ataque estavam sendo rebocados logo atrás, o que
explicava a velocidade reduzida. Kamal estava tomando cuidado para não alagá-los com a água da esteira deixada pelo Golfinho. Rogier se colocou ao lado do tio.
- Você já entrou em contato com o dhow?
Kamal estreitou os olhos devido à fumaça espiral do cigarro de tabaco turco, enrolado à mão, que tinha nos lábios.
- Ainda não, mais logo! - respondeu.
- A menina conseguiu enviar uma mensagem para a mãe. A marinha e força aérea norte-americanas inteiras vão começar a nos procurar assim que amanhecer. A mãe da menina
é muito poderosa.
- Tudo será resolvido antes do amanhecer - Kamal o tranquilizou, sorriu e apontou para além da proa.
No horizonte logo adiante, uma chama vermelha foi disparada por um sinalizador, fazendo um reflexo rubro dançar na crista das ondas.
- Lá está ele - disse satisfeito.
Os dois barcos se aproximaram rapidamente, e quando estavam a apenas algumas centenas de metros de distância, Kamal acelerou para trás, inclinando o Golfinho transversalmente
à direção do vento, formando um quebra-mar para o dhow. O antigo veleiro seguiu ao lado sob o sotavento do Golfinho, e cordas foram jogadas para os homens no convés
abaixo. Os prisioneiros foram transferidos para o veleiro após ele ter sido firmemente amarrado e foram levados apressadamente para o porão da proa. Somente Cayla
foi arrastada, chorando e se debatendo, para os aposentos de Kamal na casaria do convés, onde ficou trancada sob a vigilância de um guarda que estava na porta.
Sem perder tempo, um grupo de marinheiros árabes abriu um alçapão no porão da popa, de onde, com um guincho, suspenderam cinco paletes de carga até o convés do Golfinho.
Assim que estavam a bordo do iate, as pesadas cobertas de lona foram afastadas, revelando uma pilha de doze pacotes grandes em cada paleta. Eles estavam embrulhados
em forro de plástico amarelo e pintados com caracteres chineses pretos. Foram necessários três homens para colocar cada um dos caixotes sob o convés. Os homens trabalhavam
com cautela, tratando-as com cuidadoso respeito. O conteúdo de cada caixote eram trinta quilos de explosivos plásticos Semtex H.
- Andem logo! - Rogier gritou. - Os detonadores não foram escorvados, o manuseio é bastante seguro.
Rogier e Kamal desceram com o grupo até os porões do Golfinho e supervisionaram a colocação dos caixotes ao longo do batelão sob a casa das máquinas. Rogier deixou
Kamal encarregado da carga explosiva e da armação do dispositivo de retardo e subiu até escritório do intendente. Georgie Porgie estava sentado no convés com um
guarda de pé ao seu lado.
- Desamarre-o! - Rogier ordenou ao guarda, que obedientemente forçou a ponta da baioneta de seu rifle entre os pulsos de Georgie, cortando fio de náilon que os amarrava.
A lâmina cortou o braço rechonchudo.
- Esse bruto me cortou - Georgie choramingou. - Veja! Estou sangrando.
- Abra o cofre! - Rogier ignorou as queixas, e Georgie Porgie começou a reclamar com mais veemência.
Rogier retirou a pistola do coldre e o acertou na perna. A bala destroçou a rótula do joelho de Georgie. O intendente soltou um grito agudo.
- Abra o cofre - Rogier repetiu e apontou a Tokarev para a outra perna.
- Não atire de novo! - Georgie suplicou e foi rastejando até o cofre de aço encaixado na antepara atrás da escrivaninha, arrastando a perna ferida, deixando um rastro
de sangue no assoalho de madeira.
Gemendo de dor, Georgie manuseou a fechadura da combinação com dificuldade, girando-a para a frente e para trás. Ouviu-se um clique, e ele girou a maçaneta. A porta
do cofre se abriu.
- Obrigado! - Rogier disse e atirou na cabeça dele. Georgie Porgie caiu virado para o chão, e a perna que não estava ferida se debateu em espasmos.
Com um aceno de cabeça de Rogier, o guarda agarrou a perna antes que parasse de se mexer e arrastou o corpo de Georgie Porgie para o lado. Rogier se ajoelhou diante
do cofre aberto e revistou rapidamente o conteúdo.
Descartou a documentação do barco, incluindo os títulos de transporte e o certificado de registro das Ilhas Caimã, mas ficou com o chumaço de passaportes da tripulação.
Os livretos verdes e marrons norte-americanos e europeus seriam bastante úteis para o avô. Debaixo da escrivaninha, estava uma pasta de lona que ele tinha visto
todas as vezes anteriores em que estivera no escritório do intendente. Rogier enfiou os passaportes na pasta. Havia também cerca de cinquenta mil dólares em notas
de diversas origens - sem contá-las, colocou-as junto dos passaportes. Na prateleira de aço abaixo do dinheiro, estavam cinco caixas azuis de joias. Na tampa da
primeira que pegou, lia-se em letras douradas: "Graff. Londres". Ele abriu a caixa. Os diamantes que formavam o pesado colar alojado sobre o forro de cetim branco
eram grandes como ovos de codorna e cintilantes como o brilho do sol no riacho de uma montanha. Rogier sabia que já haviam pertencido à herdeira norte-americana
da fortuna dos Woolworth. Eram o real objeto de seu interesse.
- Obrigado, sra. Hazel Bannock - disse sorrindo. - No entanto, duvido que as Flores do Islã resolvam lhe enviar um recibo formal.
Ele sabia o que as outras caixas continham, por isso não perdeu tempo abrindo-as e jogou todas na pasta. Fez um aceno com a cabeça para o guarda árabe e depois subiu
correndo pela escada do tombadilho até o convés. Seu tio Kamal estava à sua espera na grade. Rogier entregou a pasta.
- Cuide bem disto, meu tio honrado.
- Aonde você vai? - Kamal perguntou quando ele se virou novamente na direção da escada.
- Há mais uma coisa que preciso fazer antes de partirmos.
- Você não tem muito tempo. Os fusíveis de ação retardada serão acionados em uma hora e quarenta e cinco minutos - Kamal avisou.
- Tempo suficiente - Rogier replicou.
Ele se debruçou na grade e soltou um assovio estridente. Os três homens para quem havia delegado a tarefa olharam para cima na direção dele. Cada um deles carregava
um estojo construído sob medida, que havia sido enviado a Rogier pelo avô conforme solicitado. Acenou para que os homens subissem, e eles seguiram pela lateral do
Golfinho com os estojos. Rogier os conduziu até a suíte abandonada de Cayla. Ele se encaminhou depressa para a cabine principal e ficou de frente para a pintura
de Gauguin. Como sempre, achava as cores vibrantes agradáveis, mas a representação de um nu feminino afetava sua sensibilidade puritana. Mesmo assim, retirou o quadro
dos ganchos e o colocou virado para baixo na cama. Tinha levado um canivete especialmente para esse propósito, usando-o para alavancar e soltar a pintura da moldura
dourada ornamentada. Rogier descartou a moldura e deixou a pintura sobre a cama. Foi correndo até a sala de jantar privada dos donos do barco, tirou o quadro de
Monet da antepara de fundo e o colocou na mesa para retirar a moldura. Enquanto agia, pensava no fato de que, no ano anterior, uma pintura semelhante havia sido
vendida em um leilão por noventa e oito milhões e meio de libras esterlinas. Depois foi até O Rio em Arles, de Van Gogh, pendurado na antepara lateral. Retirou-o
da parede e colocou-o ao lado do Monet. Arrancou a moldura e passou alguns momentos admirando as duas obras maravilhosas. O avô dele não era um conhecedor de arte,
mas quando Rogier revelou o valor dessas peças, ele havia ficado boquiaberto e maravilhado com o inesperado acréscimo ao seu baú de guerra. Durante todo o tempo,
os homens que carregavam os estojos tinham o observado completamente pasmados.
Cada um dos estojos havia sido feito na exata medida de cada uma das pinturas. Rogier havia conseguido as dimensões de um catálogo de artes na internet. Guardou
o Gauguin no respectivo estojo e, com alívio, verificou que os marceneiros do avó tinham realizado um bom trabalho, pois a obra encaixava perfeitamente. As outras
duas pinturas se ajustaram igualmente aos próprios recipientes. Fechou os três e ordenou que os levassem para o convés principal. Quando Rogier retornou, Kamal estava
extremamente agitado.
- Por que demorou tanto, Adam? O temporizador do detonador não pode ser desligado nem reajustado. Temos de nos apressar!
Eles desceram até o dhow, Kamal ordenou que fosse separado do iate, e Rogier supervisionou o armazenamento dos três estojos no porão da proa. Kamal direcionou o
dhow para o leste e partiu à velocidade máxima. Rogier, que estava com o tio ao lado do enorme leme de madeira, olhou para trás, para além da popa.
- É uma grande pena não podermos levar o barco e a menina. O valor dele é enorme - Rogier refletiu.
- Quanto valem cinquenta anos em uma prisão norte-americana? - perguntou Kamal. - É tudo o que você receberia como pagamento se fosse burro o suficiente de tentar
ficar com ele.
Olhou para o relógio de pulso.
- Mais sete minutos - disse.
A explosão foi única e tremenda, e o céu noturno se iluminou como se o sol estivesse nascendo. Segundos depois, a onda de choque da explosão varreu o dhow, balançando
as velas de lona e fazendo pressão nos ouvidos de Roger por um instante doloroso. A seguir, o brilho desvaneceu, e a escuridão se fez presente mais uma vez.
- Quero ver os infiéis encontrarem-no agora - Kamal disse com satisfação.
- Quanto dias de viagem até Ras el Mandeb? - indagou Rogier. - Seis, não é?
Mais - disse Kamal. - Não conseguimos ver uma rota direta. Temos de entrar na zona costeira queniana e nos misturar às outras embarcações de pequeno porte.
A altura da neve na pista de Farnborough havia detido Hazel na Inglaterra por 36 horas, o que causou uma demora de quase quatro dias no retorno de Abu Zara aos Estados
Unidos, mas mesmo assim ela não se dirigiu a sua residência principal em Houston e foi diretamente para Washington.
Henry Bannock sempre manteve um apartamento grande, à moda antiga, na East Capitol Street com vista para o Lincoln Park. Não era a zona mais salutar da cidade, mas
Henry gostava de estar próximo da sede do poder sempre que o Senado se reunia. Após a morte dele, Hazel manteve o apartamento pelo mesmo motivo, mas havia feito
uma reforma completa. Era uma posição ideal para lançar um ataque ao governo. Desde sua chegada, ela tinha incomodado e importunado o Senador Reynolds do Texas e
a equipe da Casa Branca. Já havia conseguido um breve encontro com o presidente, que havia prometido tratar a busca pelo Golfinho e pela filha de Hazel como um assunto
de interesse pessoal. A Bannock Oil havia sido uma das principais contribuidoras para os fundos de sua campanha. Apesar da tendência esquerdista, Hazel também acreditava
em apostas de mão dupla, portanto, em caso de uma eventualidade, ela fazia doações generosas tanto para os Republicanos como para os Democratas e agora estava cobrando
todas as dívidas.
Um coronel da força aérea, Peter Roberts, da equipe do presidente, fora designado extraoficialmente como o agente de ligação durante a crise, e até mesmo Hazel teve
de admitir que o desempenho dele havia sido exemplar diante das difíceis circunstâncias.
Um dos satélites militares de observação já havia sido desviado para realizar duas inspeções de reconhecimento, sobrevoando a última área de contato do Golfinho
a alturas de quarenta e cinquenta quilômetros, e a velocidades orbitais de até onze km/h. Infelizmente, nenhum contato significativo havia sido registrado. Havia
três navios cargueiros enormes e numerosas embarcações de pequeno porte na área, mas nenhum que pudesse ser o Golfinho.
Além disso, seguindo ordens presidenciais, o USS Manila Bay, um destróier de mísseis guiados, havia sido desviado de sua base de patrulhamento no Golfo de Adem,
na costa do Iêmen, para o sul. No entanto, ele teria de navegar cerca de 1.930 quilômetros, e ainda não havia chegado à área.
O coronel havia feito um contato de emergência com todas as embaixadas norte-americanas no Oriente Médio e no continente africano. Usando a autorização do presidente,
tinha iniciado questionamentos de natureza confidencial com todos os governos, tanto os amigáveis como os opositores. Nenhum havia sido muito encorajador. A não
ser pela mensagem de texto truncada de Cayla, nenhum traço do Golfinho tinha sido avistado. Os dias passavam, e Hazel Bannock estava chegando ao fundo do poço do
desespero. O telefone em sua mesa na East Capitol Street tocou. Ela não saía de perto do aparelho e se lançou sobre ele antes do segundo toque.
- Bannock - disse. - Quem é?
- Peter Roberts, senhora.
Hazel não deixou que ele prosseguisse, cortando-o de maneira brusca:
- Bom dia, coronel. Alguma novidade para mim?
- Sim, algumas - o tom de voz dele a fez prender a respiração momentaneamente. Não era encorajador.
- Encontraram o Golfinho? - perguntou, mas ele ignorou a pergunta.
- Prefiro não conversar nesta linha. Gostaria de encontrá-la imediatamente.
- Quanto tempo o senhor vai demorar para chegar? - indagou.
- O trânsito está terrível esta manhã, mas devo chegar em vinte minutos ou menos.
Ela desligou e em seguida ligou para o porteiro no lobby.
- Estou esperando o coronel Roberts. Você o conhece. Veio aqui com frequência nos últimos dias. Mande-o subir assim que chegar.
Roberts demorou 23 minutos, e ela abriu a porta ao primeiro toque de campainha.
- Entre, coronel - estava analisando o rosto dele, tentando ler o que tinha a contar antes que ele falasse.
O coronel entregou o casaco para a empregada mexicana e acompanhou Hazel até a sala de estar, onde ela o abordou sem rodeios, sem conseguir se conter mais.
- O que o senhor tem a me dizer?
- A senhora sabe que a marinha enviou um destróier até a última posição conhecida do Golfinho. Ele chegou ao local há algumas horas.
Ela o agarrou pela manga.
- Por favor, não faça mais suspense, coronel. O que eles encontraram?
Em um gesto de constrangimento, ele passou a mão pelos cabelos grisalhos e espessos.
- Apenas uma área de destroços flutuantes.
Ela o encarou. O rosto dela estava impassível.
- E? - disse por fim. - O que isso quer dizer? Como sabemos que isso tem algo a ver com meu iate ou minha filha?
- Havia um colete salva-vidas entre os destroços. Era do seu iate. O nome estava escrito no colete.
- Isso não prova nada - ela disse, e então viu a expressão de pena no rosto dele.
- O Manila Bay recebeu ordens para retornar à base de patrulhamento - ele disse.
- Não! - ergueu a voz de repente. - Não! Não acredito. Eles não estão cancelando a busca.
- Senhora, eles revistaram a área de barco, avião e por satélite. O Golfinho é uma embarcação grande. Eles não poderiam tê-lo ignorado se estivesse na superfície.
- Você acha que ele afundou - indagou - com a minha filha? A minha Cayla está morta? É o que está dizendo? Então, como explica a mensagem que ela me enviou dizendo
que havia desconhecidos no barco?
- Com todo respeito, a senhora foi a única pessoa que viu a mensagem. Nós temos a prova dos destroços - disse calmamente. - Acho que agora temos de anunciar à imprensa
que o Golfinho desapareceu...
- Não! - ela o interrompeu. - Isso seria aceitar que a Cayla está morta.
Ela foi até a janela e olhou para o parque abaixo, tentando se recompor. Então, virou-se novamente para ele.
- Minha filha ainda está viva - disse com firmeza. - É o que o meu instinto materno diz. Minha bebé está viva!
- Todos nós esperamos que seja esse o caso, mas a cada dia que passa a esperança se esvaece um pouco.
- Não vou desistir! - gritou com ele. - Nem eles deveriam!
- Não, é claro que não. Porém, temos de pensar em outras possibilidades.
- Tais como...? - ela estava bastante zangada e assustada.
- Aquele trecho do Oceano Índico é uma área de intensa atividade sísmica no fundo do mar. Alguns tsunamis foram registrados recentemente...
Ela o cortou de novo:
- Onda gigante? O senhor acha que o Golfinho afundou devido a uma onda gigante? Acha que minha filha se afogou?
- Acredite, todos somos solidários à senhora...
Ela afastou o braço com um puxão.
- Não quero a merda da sua simpatia. Quero encontrar minha filha.
Hazel estava sozinha em seu lindo quarto, no lindo apartamento com vistas da cidade mais poderosa do globo - verdadeiramente sozinha, como nunca estivera antes.
A desolação a varria em ondas constantes. Ficava cada vez mais difícil retornar à superfície. Estava se afogando na solidão. Nem mesmo o homem mais poderoso do mundo
era capaz de ajudá-la. Não havia ninguém. Ao pensar isso, fez uma pausa.
Talvez haja um último recurso." Sentiu uma minúscula fagulha de esperança na escuridão sufocante. Ela se lembrou da voz dele, da última coisa que dissera: "Se precisar
de mim, basta uma palavra". O orgulho dela subiu pela garganta e quase a sufocou. Tinha chamado Cross de filho da puta arrogante, e é claro que ele o era. Um filho
da puta durão, cruel e superprotetor.
"Exatamente o tipo de homem de que preciso agora", disse a si mesma. Colocou o orgulho de lado e alcançou o telefone. Ligou para Agatha em Houston.
- Alguma novidade, senhora? - Agatha adorava Cayla quase tanto quanto ela.
- Sim, encontraram vestígios do Golfinho.
- E Cayla, alguma notícia?
- Ainda não, mas logo teremos - prometeu, prosseguindo rapidamente para evitar uma próxima pergunta. - Temos o número de emergência de Hector Cross, da Cross Bow
Security?
- Um momento, senhora - disse Agatha, retornando quase imediatamente. - É o número do telefone via satélite. Contato 24 horas... - ela recitou o número e continuou
a falar - Temos de ser corajosas, senhora. Temos de ser fortes pelo bem da Cayla.
- Amo você, Agatha - Hazel disse, deixando-a sem ar de choque e alegria. Havia muito tempo que ninguém dizia algo assim para Agatha Reynolds.
Ela sabia que passava da meia-noite em Abu Zara, mas Hector atendeu o telefone ao terceiro toque, com a voz precisa como um espadim.
- Hector Cross.
- Preciso desesperadamente de você, Cross - disse. - Exatamente como você disse que precisaria.
- Diga do que se trata - Hector pediu.
- Meu iate desapareceu com minha filha a bordo. Mas ela me enviou uma mensagem de texto dizendo que havia homens armados. As pessoas aqui em Washington parecem estar
ignorando isso. Infelizmente, estava tão abalada que apaguei a mensagem por engano, portanto, não posso provar. Talvez pensem que estou fantasiando. Que é apenas
uma ilusão que, quisera eu, fosse verdade - tentou manter a voz firme. - Encontraram os destroços. É ao que estão se atendo. Estão tentando me dizer que a minha
filha está morta.
"Sabia que era algo ruim" Hector pensou, "mas não tão ruim assim". Ele manteve o tom de voz totalmente imparcial.
- Onde? - perguntou, e ela repetiu as coordenadas que Roberts havia lhe passado.
Devia ficar zangada com a falta de empatia de Cross? Ele não deveria ter dito uma palavra de gentileza em relação à perda dela? Não, era um filho-da-puta durão,
cruel e superprotetor, lembrou.
- Quando? -perguntou, e ela respondeu. Ele ficou em silêncio, e Hazel esperou até não aguentar mais:
- Alô, ainda está aí?
- Estou pensando - ele disse.
- Os militares aqui acreditam que o Golfinho afundou devido a uma onda gigante - ela não conseguia ficar quieta.
- Estão falando merda! - falou em tom arrastado, e o coração dela dançou de alegria diante da observação vulgar.
Era exatamente o que queria ouvir. Exatamente o que Henry Bannock teria dito.
- Por que acha isso? - perguntou em busca de mais garantias.
- Onda gigantes não ocorrem nas profundezas. Apenas ao atingir a terra-firme é que o tsunami se ergue - calou-se mais uma vez, por quase um minuto.
A seguir, ele perguntou:
- Nenhuma exigência de pagamento de resgate ainda?
- Não. Nada. Eles querem lançar um apelo a qualquer um que saiba - ela começou, mas o homem a interrompeu.
- Pelo amor de Deus, nós não podemos deixar que façam isso - ela ficou contente ouvi-lo dizer "nós". Ele estava definitivamente no time dela agora.
Ele ficou quieto novamente, e Hazel suportou o silêncio com dificuldade.
- Ok. Estou começando a farejar algo.
- Diga! - ela sentiu a esperança surgir no peito, mas a resposta veio de maneira oblíqua.
- Em quanto tempo você consegue retornar ao Zara número oito?
- Quarenta horas no máximo.
- É onde tudo vai acontecer. Venha! - ele ordenou. - Quero que esteja aqui quando ela sair do esconderijo.
- Quem? O que vai sair do esconderijo? - indagou.
- A Besta - ele disse.
Trinta e cinco horas depois Cross estava à espera dela no aeroporto de Sidi el Razig quando o jato pousou.
- Você chegou depressa - disse ao ir ao encontro dela na base da escada do G5 Gulfstream.
Paramos por quarenta minutos apenas, em Farnborough, para reabastecer, e um vento de cinquenta nós nos acompanhou por grande parte da Europa e do Mediterrâneo.
Eles trocaram um aperto de mão.
A primeira coisa que Hazel notou foi que ele tinha feito a barba recentemente. A segunda, que isso o tornava bastante atraente, ainda que um tanto feio. Ela logo
foi atingida pela culpa de estar prestando atenção no visual do homem em uma situação assim. Era uma traição à sua amada filha.
"Calma, garota! Ele não faz seu tipo de jeito nenhum", disse a si mesma com firmeza. "É apenas um funcionário e, em circunstâncias ligeiramente diferentes, poderia
estar limpando sua piscina."
- Venha! - segurou-a pelo braço logo acima do cotovelo, e ela se surpreendeu por não se desvencilhar dele.
- Mudei nossa base de operações do Número oito para este terminal. Muito mais perto do epicentro.
Quando chegaram ao edifício da administração, Cross disse:
- Mandei que preparassem um quarto para você. É bastante utilitário, mas pelo menos tem ar condicionado e uma suíte. Trouxe toda a bagagem que você deixou no Número
oito.
Ele a conduziu até a sala de onde o fluxo dos oleodutos era controlado. Era grande e bem-equipada com aparelhos eletrônicos. O escritório do gerente da base ficava
acima do andar principal e era isolado por uma parede de vidro à prova de som. Ele a levou até essa área privada e segura. Bastou uma palavra e o inspetor se levantou,
pediu licença e saiu. Hector apontou para a cadeira que o homem deixou, e Hazel desabou sobre ela. Estava à beira da exaustão. Hector ligou para o refeitório e,
quase imediatamente, um camareiro chegou trazendo uma bandeja coberta por um tecido fino de musselina. Colocou-a na mesa diante dela e, de repente, Hazel se lembrou
de que não havia comido quase nada desde que deixara Washington.
- Trouxe o chefe do Número oito - disse Hector ao dispensar o camareiro. Na travessa Wedgwood, havia uma refeição leve composta por filés de caranha vermelha do
Golfo e saladas.
- Sei que você não bebe vinho antes do anoitecer - disse ao desenroscar a tampa de uma garrafa de San Pellegrino e servir um copo de água mineral com gás. O peixe
estava delicioso. Ela tentou não devorá-lo na frente de Cross, que tinha, estrategicamente, voltado a atenção para a tela do computador. Esperou que Hazel terminasse
e então girou a cadeira para ficar de frente para ela.
- Muito bem. Esta será a nossa sala de situação no curso desta operação. Tentaremos não discutir nenhuma informação vital fora dela. Agora, me diga tudo o que sabe
- ordenou. - Procure não excluir nenhum detalhe, insignificante ou não.
Ela falou em voz baixa, mas de maneira lúcida. Ao final do relato, as mãos dela tremiam, e o rosto estava completamente pálido.
- Mantenha o ritmo, senhora. Talvez isso demore muito tempo. Coma e descanse para se manter forte.
Ele percebeu a impaciência dela e reprimiu um sorriso.
- Ok. Chega de sermões. A senhora é uma menina crescida.
- Eu disse tudo o que sabia. E o que você tem a me dizer?
- Nada concreto ainda, mas agora que ouvi o que você tinha para me dizer tenho uma ideia bem melhor do que estamos enfrentando.
Ele se virou para o mapa projetado no telão da parede em frente às mesas. Pelo teclado do computador, podia mover o cursor eletrônico pelo mapa.
- Vamos olhar para o local. Foi puramente ao acaso que o Golfinho desapareceu na soleira da frente de uma das fortalezas mais importantes do Al-Qaeda a oeste do
Paquistão? - Hector moveu o cursor da extremidade norte do Oceano Índico para a costa leste do Golfo de Adem Iêmen! A capital número um do terrorismo do mundo -
a seguir, ele moveu o cursor por uma pequena distância, atravessando o Estreito de Bab el Mandeb até o continente africano.
- Os vizinhos mais chegados do Iêmen no outro lado do Mar Vermelho, ou do Golfo de Adem, são a Puntlândia na Somália, Eritreia e Etiópia. Aqui temos o Círculo de
Satã - disse -, um ninho explosivo de assassinos islâmicos fanáticos.
Ele moveu o cursor para baixo no mapa, até um ponto que ficava a uma distância relativamente curta do sul.
- Seu Golfinho estava aqui, navegando direto para a mandíbula deles.
Ele se levantou da mesa, foi até a janela e ficou de pé com as mãos unidas para trás, olhando para as águas azuis do Golfo. Então, virou-se e projetou o queixo para
a frente.
- E eles sabiam que ele estava a caminho.
- Como? - ela perguntou sem rodeios.
- Porque a senhora navega pela mesma rota todos os anos na mesma época, não é?
Hazel inclinou a cabeça para demonstrar que o que ele disse fazia sentido.
- Mas como você sabia disso?
- A senhora é a minha chefe. Faço questão de saber o máximo que posso a seu respeito. Sei até qual foi a escola que frequentou.
- Sabe nada! - ela o desafiou.
- Herschel Girls High, na Cidade do Cabo - ele não esperou por uma confirmação e prosseguiu. - Todos os anos o Golfinho faz uma escala na Cidade do Cabo para que
a senhora possa visitar sua mãe, que mora na sua vinícola. Eu sei, e eles sabem.
- Bastante óbvio da minha parte - ela parecia constrangida.
- Eles provavelmente colocaram alguém a bordo do Golfinho na Cidade do Cabo.
Hazel arqueou uma das perfeitas sobrancelhas ao olhar para ele. "Esses malditos olhos maravilhosos", pensou, "como os odeio".
- Como sei disso? - Cross perguntou no lugar dela.
- Pois então? - indagou. - Como?
- Pelo que aconteceu após a partida do iate da Cidade do Cabo. Eles foram emboscados, mas o Golfinho Amoroso é uma embarcação veloz, e o oceano é um lugar imenso.
Alguém estava orientando os captores. Mas isso é adivinhação. É possível verificar se algum tripulante embarcou na Cidade do Cabo?
Ela assentiu.
- Deve ser bem fácil - disse. - O Golfinho é propriedade de uma empresa privada em Basle, na Suíça. É onde é feita toda a administração.
- Incluindo contratações e demissões?
- Sim, incluindo isso.
Hector olhou para o relógio de parede que mostrava os horários em todas as principais capitais do globo.
- São catorze horas em Zurique. Pode telefonar para o seu funcionário?
Ela assentiu e discou o número de cabeça.
- Por favor, me transfira para o Herr Ludwig Grubber. Hazel Bannock falando.
Hector achou ligeiramente engraçada a prontidão com que Ludwig atendeu.
- Sr. Grubber? Pode, por favor, me dizer se algum tripulante embarcou no Golfinho na Cidade do Cabo? Sim, aguardo.
Ela não teve de esperar muito antes do retorno.
- Sim, pode escanear e enviar para o meu e-mail de sempre. Muito obrigada, sr. Grubber. Por favor, envie meus sinceros cumprimentos ao seu pai - ela desligou e olhou
para Hector.
- O Golfinho contratou um terceiro camareiro temporário na Cidade do Cabo.
- E é claro que ele tinha excelentes referências, do contrário jamais teria sido aceito a bordo? - Hector estava constatando um fato, e ela assentiu com relutância
e reuniu a coragem para dizer:
- Aparentemente, era um amigo da minha filha. Ela se responsabilizou por ele.
- Mas ela não disse nada disso antes de a senhora vir da Cidade do Cabo para cá?
Ela balançou a cabeça e virou o rosto. Hector odiava ter de vê-la conscientizar-se do fato de que a filha talvez não fosse exatamente a virgem vestal que pensava.
"Ele acha que sabe tudo", pensou com raiva, "e está fazendo insinuações sobre Cayla". Hazel ainda não queria olhar para ele. Lembrava-se do que Henry havia dito
na única vez em que tinham falado sobre ele: "O jovem Heck é um tremendo sujeito. Sabe improvisar e atira sem perguntar, mas frequentemente acerta direitinho o nariz
do touro".
- Qual é o nome do amigo? - a sondagem de Hector foi suave. Ele sabia que ela estava zangada.
Ela olhou para o bloco de anotações.
- Rogier Marcel Moreau.
- Parece que se trata de um jovem cavalheiro francês. Temos uma cópia do passaporte?
- Estão escaneando para mim em Basle.
Quinze minutos depois, a imagem chegou ao laptop de Hazel. Hector leu em voz alta:
- Data de nascimento, 3 de outubro de 1973. O local é a Ilha Réunion no Oceano Índico. Pertinho de casa?
Ele tirou o telefone do gancho.
- Para quem você está ligando?
- Apenas um amigo em Paris. É inspetor-chefe na Interpol francesa.
Ele começou a falar em um francês acelerado que Hazel não conseguiu acompanhar muito bem. Era óbvio que ele estava sendo transferido para os altos escalões. Finalmente,
pareceu alcançar o destino final, pois houve várias exclamações ao estilo de "Allons, mon brave!", "Courage!" e "Formidable!" antes de ele desligar e olhar para
Hazel.
- Meu amigo do peito, Pierre Jacques, prometeu providenciar uma cópia da certidão de nascimento do Rogier em uma hora. Às vezes eu amo os computadores e os jovens
policiais franceses, não é? - pela primeira vez, sorriu para ela. Era estranho como as feições dele se suavizavam e mudavam de forma com um sorriso.
- Vamos continuar com nossa pequena fantasia? - ele sugeriu. - Agora eles infiltraram um homem no Golfinho, e ele tem uma espécie de transmissor eletrônico, provavelmente
um transceptor. Por meio dele, os outros sabem exatamente a posição do iate. O barco de emboscada começa a se mover nessa direção, mas entra em pânico! A sra. Bannock,
o alvo deles, deixa o barco na Cidade do Cabo. Isso é totalmente inesperado. E então, de repente, o pânico termina. A srta. Cayla Bannock permanece a bordo, e ela
e Rogier são bons amigos. Ela confia nele. Isso é quase tão bom quanto ter a mãe em suas garras. O plano pode ter prosseguimento.
Hazel se abraçou e tremeu violentamente.
- Isso é terrível.
- Fica melhor ainda. Há esperança - prometeu. - Agora tudo segue exatamente como o planejado. O Golfinho navega até a armadilha. Rogier consegue ajudar os piratas
a embarcar no veloz iate. Sujeito esperto, o nosso Rogier. A tripulação é detida. Há apenas um pequeno porém. Cayla Bannock é uma menina corajosa e inteligente.
Mesmo nos momentos aterrorizantes de sua captura, consegue enviar uma mensagem de texto para a mãe - Hector fez uma pausa e olhou para a tela do computador. - Com
licença. Parece que chegou um e-mail para mim.
Ele teclou, abriu os anexos da mensagem e então praguejou algumas vezes, desculpando-se logo em seguida.
- Continue. Estou me acostumando - ela disse. - O que é?
- Nosso camareiro júnior nasceu sob o nome Adam Abdul Tippoo Tip, em Réunion. Em 2008, Adam passou a se chamar Rogier Marcel Moreau, e a mudança foi lavrada em um
cartório de Auvergne, no sul da França - ficou calado por alguns instantes, enquanto analisava a cópia da certidão de nascimento.
Hazel perguntou de supetão, impaciente:
- O nome significa alguma coisa para você?
Ele balançou a cabeça.
- Absolutamente nada - admitiu. - No entanto, a boa notícia é que é quase certo que sua filha esteja viva.
- Onde ela está, então? - Hazel suplicou.
- Aposto todo o meu dinheiro que Cayla é prisioneira no barco árabe de emboscada. Ela é uma mercadoria inestimável. Eles jamais a machucariam.
- E o Golfinho? - ela balançou a cabeça, atordoada.
- Ah, foi afundado. Era um alvo muito óbvio. A força aérea norte-americana o teria encontrado poucas horas após o desaparecimento ser declarado. Minha aposta é que
o mandaram pelos ares. Provavelmente está a milhares de metros de profundidade, no fundo da Bacia de Marscarene, em Madagascar. Tenho certeza de que está coberto
pelo seguro, com uma cláusula sobre pirataria.
- O dinheiro não é importante - ela disse.
- Na minha limitada experiência, o dinheiro é sempre importante. Qual é o valor da cobertura?
- 152 milhões de euros. Por Deus, Cross, você não se importa com os sentimentos dos outros?
- Muito pouco - admitiu. - Apenas uma coisa importa no momento para mim: encontrar sua filha. Mas, enquanto isso, o sol está se pondo - ele se levantou e se alongou.
- Gostaria de preparar um drinque para a senhora. Estamos ambos com os nervos à flor da pele, mas não precisamos brigar. Há várias pessoas maravilhosas por aí com
quem brigar. Vodca com suco de limão e gelo, não é?
- Sim, e você estava certo. Estudei na Herschel Girls High - ele sabia que se tratava de uma proposta de trégua.
Ele despejou a bebida transparente sobre o gelo que estalou no copo alto, e em seguida completou com suco. Ela agradeceu com um sorriso. Depois que Cross se serviu
de um copo de uísque, eles brindaram. Após ambos tomarem um gole e balbuciarem murmúrios de aprovação, Hazel recostou e analisou o rosto dele.
- Meu marido certa vez me disse que você age de acordo com o instinto. Você está certo desta vez, Cross? - ela perguntou.
Ele colocou um dedo sobre uma das laterais do nariz.
- Isto me cheira bem. É mais do que uma intuição. É um cenário racional em que as coisas se encaixam.
- Então, onde está minha filha? Se é um sequestro, por que ainda não exigiram o pagamento de um resgate? O Golfinho desapareceu há quase dez dias.
- Eles estão esperando o tempo necessário até que estejam a salvo. A embarcação deles é provavelmente um veleiro lento, um dhow qualquer. Vão querer chegar às próprias
águas territoriais antes de sair do esconderijo, onde estarão protegidos dos navios de guerra das civilizadas nações ocidentais. Além disso, querem "amaciá-la",
querem que a senhora comece a perder a cabeça devido ao suspense e à incerteza.
- Quanto tempo mais?
- Vamos imaginar que eles podem alcançar uma velocidade de até 14 nós e que estão indo na direção do Iêmen ou da Puntlândia na Somália. Sendo assim, já devem estar
chegando ao destino - ele disse. - Não mais do que dois ou três dias.
- Você mencionou a Puntlândia antes. Até hoje, eu nunca tinha ouvido falar do local.
- Fica no nordeste da Somália e faz parte do Chifre da África. É uma região semi-desértica inabitável, acidentada e árida, três vezes maior do que o Estado do Novo
México. Está praticamente separada do restante da África pela cadeia de montanhas da porção leste do Vale de Great Rift. Essas montanhas também bloqueiam os ventos
predominantes do oeste, que despejam toda sua chuva nos morros. A vegetação da Puntlândia é constituída de acácias abissínicas, arbustos espinhentos e grama ressequida
esparsa. No entanto, o país está bem posicionado estrategicamente, na costa do Golfo de Adem, guardando os acessos ao Mar Vermelho. A Puntlândia se separou do resto
da Somália no final da guerra civil, declarando-se uma região autônoma. O nome faz referência à Terra de Punt, das antigas tradições egípcias históricas. Acredita-se
que seja o país para o qual a rainha Hatshepsut enviou a famosa expedição de 1550 a.C. Agora é governado por uma gangue desconectada de milicianos que não obedecem
ninguém e mantêm seus próprios sistemas de lei e de justiça.
Ele mudou de assunto de maneira desconcertantemente repentina:
- A senhora prefere jantar no seu quarto, onde pode ficar se remoendo sozinha? Não é recomendável. Ou vai me acompanhar no refeitório? O chefe colocou um filé de
costela Wagyu maravilhoso no cardápio. A comida, o vinho e a companhia estão recomendadíssimos na página cem da nova edição do Guia Michelin.
Hazel havia ficado sozinha durante todas as terríveis noites mais recentes e pelo menos ele não era enfadonho. Irritante? Sim, definitivamente, mas não enfadonho.
Ela sorriu e se rendeu.
Durante a refeição, ele manteve o assunto da filha e do iate totalmente fora da conversa e falou sobre a estrutura política de Abu Zara e as atividades da Bannock
Oil nos Emirados, passando a seguir para cavalos e corridas de cavalos que, sabia, eram do interesse dela.
- Meu pai mantinha e treinava alguns cavalos no rancho - ele explicou quando Hazel lhe lançou um olhar desconfiado diante do conhecimento óbvio dele no assunto.
- Como eu era um menino magrinho, era o cavalariço principal e também jockey. Uma vez por mês frequentávamos as corridas em Nairóbi. Era tudo muito bagunçado e amador,
mas levávamos extremamente a sério.
Ele era bem-informado e articulado, com um senso de humor seco e irônico, o que a distraía um pouco da preocupação com Cayla. Hazel relaxou e se permitiu saborear
o que ele dizia. Ela havia bebido apenas cerca de dois dedos do vinho, mas ele ergueu a garrafa para encher novamente a taça. O vinho era um encantador Romanée-Conti,
envelhecido por dez anos. O fato de ele ter pesquisado os gostos dela com tanta precisão a divertia. Parecia uma pena recusar, portanto, Hazel empurrou a taça na
direção dele, mas nesse momento um dos homens de Hector entrou correndo no refeitório e se curvou sobre ele, sussurrando algo urgente no ouvido do chefe. Hector
bateu a garrafa na mesa, espirrando vinho tinto na toalha. Ele a pegou pelo braço e a fez levantar.
- Venha! - disse quase gritando. Saiu correndo com ela pelo longo corredor que levava à sala de situação.
- O que foi? - Hazel perguntou arfando. - O que está acontecendo?
- A Besta saiu do esconderijo! - Cross respondeu, empurrando-a para dentro da sala.
Quatro de seus homens estavam reunidos na frente de uma tela de televisão. O homem que fora chamá-lo estava ali. Hector o havia apresentado a Hazel como Uthmann,
um de seus agentes seniores. Era árabe e muçulmano, mas a confiança que Hector depositava nele era implícita.
- Um dos caras do bem - disse sobre o homem.
- Em que canal está isso, Uthmann? - Hector indagou.
- Al Jazeera, na TV árabe, direto de Doha. Apareceu na lista das manchetes no início das notícias internacionais. Só peguei o final, mas vão repetir depois do boletim.
- Pegue uma cadeira para a sra. Bannock - Hector ordenou.
Sentaram-se tensos e calados durante a cobertura da visita do rei da Jordânia ao Irã, de um ataque suicida em Bagdá e de outros eventos relevantes ao Oriente Médio.
E então, de repente, a imagem de um esguio iate branco transoceânico surgiu na tela, e o âncora do noticiário falou em árabe. Hector traduziu simultaneamente para
Hazel.
- Um grupo de combatentes autointitulados "Flores do Islã" assumiu a responsabilidade pela captura de um iate privado no oeste do Oceano Índico. O iate, chamado
Golfinho Amoroso, é uma embarcação de lazer luxuosa de 125 metros de comprimento, registrada na Ilhas Caimã, mas de propriedade de Hazel Bannock, presidente da Bannock
Oil Corporation de Houston, Texas. A sra. Bannock é, conhecidamente, uma das mulheres mais ricas do mundo.
A imagem de Hazel apareceu na tela, esplêndida em um vestido longo de festa e usando o lendário colar de diamantes, que antes pertencera a Barbara Hutton, no pescoço.
Estava dançando com o colega John McEnroe, um tenista campeão, no baile de arrecadação de fundos para o Partido Democrata em Los Angeles. O âncora prosseguiu enquanto
Hector traduzia.
- De acordo com o porta-voz dos combatentes, o iate foi afundado em represália às recentes atrocidades cometidas pelas tropas norte-americanas no Iraque. Os passageiros
e a tripulação estão sendo mantidos prisioneiros. A sra. Bannock não estava a bordo do iate na ocasião da captura. A filha, Cayla Bannock, era a única passageira.
Ela está entre os prisioneiros do grupo.
Uma foto de Cayla de maiô molhado, emergindo da piscina, rindo, foi mostrada. A imagem dela representava os típicos jovens milionários ocidentais, mimados e privilegiados.
Os trajes sumários que vestia com certeza iriam instigar a ira e a indignação dos muçulmanos devotos de todo o mundo.
- Os combatentes estão exigindo um pedido de desculpas da parte do governo norte-americano pelas recentes ações terroristas no Iraque, juntamente com uma recompensa
financeira adequada pela libertação da tripulação e de Cayla Bannock - o apresentador árabe passou a seguir para a cobertura de um jogo de futebol no Cairo.
Uthmann desligou a televisão.
O rosto de Hazel se iluminou de alegria.
- Meu Deus! Ela está viva. Minha bebé está viva. Você estava certo, Cross. Ela está viva.
Embora Uthmann e os outros três agentes da Cross Bow não estivessem olhando na direção deles, permaneciam todos em posição de escuta. Hector franziu a testa, sinalizando
para que ficasse quieta, e se levantou.
- Venha comigo - disse em voz baixa e a levou para fora do edifício.
O sol havia se posto uma hora antes. Nenhum dos dois disse nada até chegarem à praia, onde uma pequena onda arrebentava preguiçosamente. Havia uma pilha de madeira
velha semienterrada na areia, um pouco acima do nível da maré alta. Sentaram-se lado a lado. Mais à frente, no Golfo, dois enormes navios-tanques estavam sendo atados
ao terminal perto da praia que recebia os carregamentos de óleo, a luz de seus holofotes refletida na água. Sob essa luz, Hazel e Hector conseguiam se enxergar com
clareza.
- Eu a trouxe aqui para podermos conversar sem que nos escutem - explicou, e ela pareceu surpresa.
- Eles são os seus homens. Não confia neles?
- Aqueles quatro são provavelmente as únicas pessoas em que confio no planeta. Porém, não faz sentido colocar uma pressão desnecessária na lealdade deles. Eles não
precisam saber o que estamos discutindo.
Ela assentiu.
- Compreendo.
- Fico imaginando se compreende mesmo. As pessoas com que vamos lidar de agora em diante são os indivíduos mais implacáveis e demoníacos que existem. Estão atraindo
a senhora para um mundo de ilusões fabricadas, de mentiras e subterfúgios. Eles se autointitularam "Flores do Islã" - inclinou-se para a frente e, com um dos indicadores,
fez um desenho na área sob os pés. Era a meia-lua do Islã. - Cicuta do Inferno talvez fosse um nome mais apropriado.
Ele endireitou as costas novamente e apagou o desenho com o salto da bota. - Certo, chega disso. Vamos tentar delinear o caminho a seguir.
- Acho que tenho de contatar meus amigos na Casa Branca. Agora que sabemos onde Cayla está, eles podem tentar assegurar os termos da libertação, seja pela negociação
ou pela força - Hazel sugeriu.
- Errado no primeiro caso. Não sabemos onde a Cayla está. Sabemos vagamente quem a capturou, mas não sabemos onde a estão mantendo. E errado na segunda instância.
Seus amigos não farão nada do que você disse - falou. - Em primeiro lugar, a política declarada deles é de nunca negociar com terroristas. E, quando o assunto é
o uso da força, eles vêm se metendo no que não devem com frequência. Você se lembra da tomada da embaixada norte-americana em Teerã, e do filme Falcão negro em perigo,
sobre o ataque de helicóptero a uma base terrorista em Mogadíscio? Eles aprenderam lições amargas. Não negociam, não podem e não usarão a força. Agradeça a Deus
por isso. Se os oficiais da marinha atacarem com tudo, será o fim de Cayla Bannock.
- Mas eles têm de fazer alguma coisa. Sou uma cidadã norte-americana, o presidente em pessoa prometeu me ajudar - sem querer, soltou um soluço sufocado.
Ele desviou o olhar dela para os navios-tanques. A angústia dela era um assunto particular. E esperou Hazel se recompôr.
- O que fazer, então? - ela perguntou finalmente.
- A senhora faz o que eles esperam que faça. Coloque pressão nos seus amigos em Washington conforme sugeriu há alguns instantes. Atraímos a Besta. Fingimos negociar
com eles, sem nos esquecer do quanto isso é inútil.
Ela piscou e balançou a cabeça.
- Não entendo.
- Não existe oferta nem promessa que possa persuadi-los a devolver a Cayla de bom grado. Se der dez dólares, eles vão exigir mais dez. Concorde com os termos deles
e virão com uma lista completamente nova de exigências.
- Então, por que estamos fazendo tudo isso? Não estamos só perdendo nosso tempo?
- Não, sra. Bannock, estamos ganhando tempo, não desperdiçando. Tempo para descobrir onde eles estão escondendo Cayla.
- Você consegue descobrir?
- Espero que sim. Na verdade, acho que sim.
- Se conseguir, o que vem depois? O que acontece quando descobrir onde ela está?
- Vou buscá-la - os lábios dele formaram um sorriso estreito que os olhos refutaram.
- Um minuto atrás você disse que...
- Eu sei o que disse. Mas há uma diferença entre mim e os fuzileiros navais. Eles tomariam o lugar de assalto como milhares de açougueiros desferindo golpes de cutelo.
Eu vou me infiltrar como um cirurgião cardiovascular e seu bisturi.
- É capaz de fazer isso? - ela indagou, e ele deu de ombros.
- É uma das coisas que faço. Uma das coisas que a senhora me paga para fazer. Mas, no momento, temos de esperar pelo pedido de resgate. Isso será meu ponto de partida.
- Quanto tempo mais precisamos ganhar? - ela perguntou, e ele encolheu os ombros.
- Um mês, seis meses, um ano. Quanto for necessário.
- Um ano? Enlouqueceu? Não posso fazer isso. Todos os dias eu morro um pouco. Se é tão ruim assim para mim, imagina para a minha bebé! Não, simplesmente não consigo.
- Essa explosão não faz o seu estilo, sra. Bannock. A senhora consegue e, se realmente ama a sua filha, vai conseguir.
Quando faltavam ainda oitenta quilômetros para o dhow de Kamal chegar à praia, ele enviou uma breve mensagem pelo rádio de ondas curtas:
- Os peixes estão passando pelo recife de dezesseis quilômetros.
A mensagem foi reconhecida de imediato. Eles estavam na escuta. Em menos de uma hora, uma lancha veloz de dez metros de comprimento deixou o ancoradouro na baía
e disparou na direção do dhow. Quando as duas embarcações se encontraram, ambas as tripulações ulularam e acenaram com as armas ao alto.
- Allahu Akbar! Deus é grande! - gritaram, dançando nos conveses estreitos.
Quando a brecha entre as duas embarcações se estreitou, os homens pularam para o outro lado e se abraçaram efusivamente, batendo com os pés descalços no convés.
Cayla se agachou em um dos cantos da casaria, no monte de retalhos que era sua cama, escutando aterrorizada a algazarra. Fazia onze dias que não podia tomar banho
nem trocar de roupa. Sua refeição diária era uma tigela de arroz e chilli picante de peixe, e a água fornecida era salgada e cheirava a esgoto. Ela tivera uma diarréia
grave e vomitara, uma combinação de intoxicação alimentar e enjôo. A latrina que usava era o balde sujo que ficava ao seu lado no convés. A única vez que permitiram
que subisse ao convés principal foi para esvaziar seu conteúdo pela lateral do navio. Agora a porta da casaria estava escancarada, e a silhueta de Kamal surgiu contra
a faiscante luz solar.
- Levante-se! Venha! - ordenou em um inglês de sotaque forte.
Cayla não tinha mais nenhuma resistência dentro de si. Tentou ficar de pé, mas estava muito fraca, cambaleando enquanto se agarrava à antepara ao lado como apoio.
Ele a agarrou pelo braço e levou-a para fora, para o convés externo. Ela tentou proteger os olhos da luz ofuscante com a outra mão, mas Kamal a afastou bruscamente.
- Deixe que vejam seu rosto branco e feio - ele riu dela.
Ela estava pálida como um cadáver e tinha olheiras profundas. O cabelo estava ensebado devido ao suor, e as roupas encardidas fediam a vômito e fezes. A tripulação
da lancha se aproximou dela, berrando slogans políticos e religiosos em seu rosto, puxando-a pela roupa e pelos cabelos, rindo e zombando, batendo os pés e cantando.
Cayla sentiu vertigem. Ela teria caído, mas os homens amontados ao seu redor a mantiveram de pé.
- Por favor! - suspirou enquanto as lágrimas desciam por seu rosto pálido. - Por favor, não me machuquem mais.
Eles não entenderam. Arrastaram-na para a lancha e, como se fosse um saco de peixe seco, passaram-na por sobre a brecha para a outra embarcação e a enfiaram na cabine
principal, onde Rogier estava à sua espera. Ele foi até ela de imediato.
- Desculpe, Cayla. Não posso controlá-los. Procure não resistir. Farei o melhor que puder para protegê-la, mas você precisa me ajudar.
- Oh, Rogier! - soluçou.
Ela o vira em intervalos irregulares desde que fora levada a bordo do dhow, mas não tinha conseguido falar com ele. Ele a abraçou. Ela se agarrou a ele. A delicadeza
reconfortante e a expressão carinhosa em seu rosto foram demais para ela. Em meio ao terror e à confusão, Rogier era a única coisa em que podia acreditar. A memória
da mãe e do mundo seguro e confortável de que fora arrancada pareciam agora irreais. Ele era tudo o que restava. Dependia totalmente dele.
- Coragem, Cayla. Está quase acabando. Muito em breve chegaremos à terra firme, e você estará em segurança. Quando estivermos lá, vou poder proteger e cuidar de
você.
- Amo você, Rogier. Amo tanto você. Você é tão forte e bom para mim - ele a levou até o beliche de madeira no fundo da cabine, onde a deitou. Ele acariciou o cabelo
sujo de Cayla, e ela finalmente adormeceu de exaustão.
Duas horas se passaram até que a terra firme surgisse adiante na forma de uma linha escura no horizonte, e quase mais uma antes que a lancha entrasse na baía. A
Baía de Gandanga era formada por um promontório que se projetava da costa, curvando-se como uma garra de leão, criando uma área fechada de águas profundas, protegida
dos dominantes ventos alísios que varriam incessantemente a costa. A lancha circundou o local e a baía se abriu diante dela.
Cayla foi acordada pelo tumulto no convés, sentou-se e percebeu que Rogier tinha ido embora. Espiou através das janelas dianteiras da cabina. Ficou surpresa com
a extensão da baía adiante e a quantidade massiva de embarcações que a lotava. Os barcos ancorados nos braços protetores da baía tinham todos os formatos e tamanhos.
Mais perto da praia, havia um aglomerado de dhows pesqueiros, enquanto à distância, em águas mais profundas, estavam reunidas embarcações de design mais moderno.
O que estava ancorado mais próximo era um petroleiro de dimensões medianas e listras acobreadas de ferrugem. O nome na popa era ilegível, mas o porto de registro
era Monrovia. Uma dúzia de guardas árabes olharam da grade para a lancha que passava. Acenaram e dispararam uma fuzilada de tiros no ar. Cayla não tinha como saber
que a baía era um covil central de piratas, e que o petroleiro estava ali havia três anos, desde sua captura. Ele estava com o lastro, os tanques cheios de água
do mar em lugar do óleo precioso. Os donos ou não tinham como ou não queriam pagar o pedido de resgate exigido pelo avô de Rogier.
Ancorados além do petroleiro, havia dois cargueiros. Estavam ali fazia menos de seis meses. Os contêineres de aço empilhados nos conveses estavam recheados com uma
grande variedade de artigos no valor de dezenas de milhões de dólares. As seguradoras logo pagariam pela sua liberação. Entre esses cargueiros, estavam outras numerosas
embarcações capturadas em alto-mar. Variavam de pequenos iates à vela, passando por barcos de pesca artesanal maiores, até um cargueiro refrigerado com um lote de
carne de carneiro da Austrália congelada apodrecendo em seus porões. Todos os vigias dessas embarcações deram um aceno efusivo de boas-vindas à lancha que passou.
Já tinham ouvido os rumores a respeito do tesouro inestimável que carregava - uma princesa norte-americana cuja família era a mais rica naquele odiado país de infiéis.
O pagamento de resgate exigido dos parentes sofredores pelo retorno da garota seria enorme e compartilhado por todos.
Na praia, a cidade se alinhava à beira da água, um conglomerado misturado de barracos e casebres de telhados de sapê ou de chapa ondulada e paredes de tijolos. Estavam
pintados com um conjunto sortido de cores, com tintas surrupiadas dos barcos capturados. Quando a lancha chegou à costa arenosa, a tripulação saltou para fora e,
com as túnicas enfiadas ao redor da cintura, arrastaram-na para cima até a praia. Rogier desembarcou titubeante com Cayla nos braços. A praia estava lotada de homens
armados, mas os grupos abriram caminho para que Rogier levasse Cayla até a coluna de Land Rovers e Toyotas amassados e empoeirados estacionados acima da marca da
maré alta. Rogier a colocou sentada no banco de trás do veículo mais à frente, e quatro dos seus homens se espremeram ao lado dela, dois à esquerda, dois à direita.
Cheiravam à madeira queimada, gordura râncida de carneiro e haxixe. Os corpos suados a apertavam lascivamente, e suas armas pesadas cutucavam o corpo dela. Um deles
sorriu com o rosto a poucos centímetros do dela. Os dentes dele eram enegrecidos e podres, e a boca cheirava a fossa.
Rogier se acomodou no banco do motorista, e a marcha arranhou. Os motores roncaram em disparada pela estrada de terra batida. Os outros Land Rovers seguiram no rastro
de poeira. Cayla virou o rosto para o homem ao seu lado, protegendo o nariz e a boca com uma das mãos.
- Aonde você está me levando, Rogier? - falou acima do ruído do motor.
Ele virou o rosto para Cayla, e o Land Rover deu uma guinada repentina para o outro lado da estrada estreita.
- Você está em meu mundo, agora. Nunca mais me chame por esse nome falso de novo. Meu nome verdadeiro é Adam.
- Ele Adam Tippoo Tip - disse o vigia dela - Maldição!
Eles passaram por um buraco fundo, e todos foram jogados para a frente com tal força que as cabeças bateram no teto de aço. Cayla foi a única que se mostrou perturbada.
- Aonde você está me levando, Rogier? - suplicou.
- Esse não é o meu nome.
- Por favor, me perdoe. Aonde você está me levando, Adam?
- Para a casa do meu avô.
- Quanto tempo de viagem?
- Três, talvez quatro horas - ele respondeu gritando. - Agora pare de fazer perguntas.
Eles pararam apenas uma vez. Estavam em uma planície sem árvores. O chão estava coberto de pedras de ágata vermelha, e os sulcos duplos deixados pelos pneus eram
a única característica daquela desolação monótona. Adam deixou que ela bebesse alguns goles de água morna de uma garrafa velha de vinho. Os homens foram urinar a
céu aberto sem se preocupar, mas, quando Cayla foi para trás do Land Rover para fazer o mesmo, os guardas a seguiram e, ainda apontando os rifles para ela, formaram
um público interessado e elogioso. Cayla não se importava mais. Todos subiram no carro e seguiram adiante. Por fim, em meio ao calor que formava uma miragem tremeluzente,
uma cadeia de montanhas azuladas surgiu diante deles. Ao se aproximarem mais, Cayla viu que, enfiado no meio dos sopés das montanhas acidentadas, estava um jardim
verde e viçoso. Tinha palmeiras e pomares de laranjeiras. Plantações de melões e de milho eram irrigadas a partir de sulcos com água corrente. Passaram por fileiras
de camelos que transportavam baldes de couro cheios d'água dos poços profundos do oásis e despejando-a dentro dos sulcos.
- Que lugar encantador. Como se chama? - Cayla perguntou, falando pela primeira vez em uma hora.
- Nós o chamamos de "Oásis do Milagre" - respondeu Adam. - O irmão do Profeta, louvado seja até a eternidade, dormiu aqui em sua viagem por terras ermas e, quando
despertou pela manhã, a água doce borbulhava da terra onde ele havia se deitado.
- Esta é a casa do seu avô?
- Lá em cima - ele apontou através da janela aberta do veículo.
Ela esticou o pescoço e olhou para o topo do morro íngreme. Viu que havia várias construções de pedra ao longo do penhasco. No topo do maior deles, estavam os inconfundíveis
minaretes e a cúpula de uma mesquita e, adjacente, um grande edifício disforme que se estendia morro abaixo, aparentemente sem design próprio nem propósito. Adam
apontou para ele.
- Aquele é o palácio do meu avô. Nossa família vive ali há mais de trezentos anos.
- Para mim parece mais uma fortaleza do que um palácio.
- É as duas coisas - respondeu e estacionou o Land Rover no meio do morro.
Um grupo de serviçais de túnicas brancas desceu correndo ao encontro deles. Ofereceram cestas de panos frios umedecidos para os viajantes se refrescarem, e jarras
de sherbet de laranja. Adam serviu um copo para Cayla que o sorveu agradecida, engasgando devido à pressa. Assim que terminou a bebida deliciosa, Adam a segurou
pelo braço e subiu com ela pelo morro íngreme e bastante pedregoso até o Land Rover. Cayla teve de se sentar duas vezes no chão para descansar. Mas obedecendo ao
comando de Adam, ela se pôs de pé com dificuldade e continuou a subir o morro. Ela não sentia ressentimento com o domínio dele. Estava muda de desespero, e a única
coisa que ainda importava para ela era agradá-lo ou evitar enraivecê-lo. Mas todas as partes de seu corpo doíam, e o caminho pedregoso enviava pontadas de dor das
pernas até a base de sua coluna. Ela tentou pensar na mãe, mas a imagem não estava clara em sua mente e logo desapareceu completamente. Quando desabou no chão pela
terceira vez, Adam ordenou que dois dos serviçais a carregassem pelos últimos cem metros, até que chegaram a uma porta esculpida e ornamentada na parede lateral
do palácio. Ali, eles a entregaram a quatro escravas trajando véus e hábitos pretos islâmicos compridos que chegavam até os pés.
As mulheres a conduziram por um labirinto de corredores e salas escuras até chegarem ao que era claramente a área do harém. Uma multidão de mulheres e crianças pequenas
se materializou da escuridão e se aglomerou ao redor dela, rindo, exclamando, puxando suas roupas ou estendendo as mãos para tocar os cabelos loiros ensebados. A
maioria nunca tinha visto cabelos daquela cor antes, o que as fascinava. Elas a levaram até um pátio minúsculo a céu aberto.
As escravas a colocaram no centro e, apesar de ela protestar, despiram-na das roupas imundas. As mulheres e crianças se aproximaram mais para cutucar a carne branca
de Cayla. Uma delas tentou arrancar um pelo do arbusto loiro na base da barriga como se fosse um troféu, mas Cayla a acertou com os punhos fechados, e ela soltou
um grito agudo e se encolheu, para o deleite hilário das demais.
De jarras de barro, as escravas despejaram água fresca de poço sobre a cabeça e os ombros de Cayla. Uma delas lhe entregou uma barra de sabão carbólico, e ela se
esfregou da cabeça até a sola dos pés. A água cáustica de lavagem descia pelos cabelos e fazia os olhos arderem, mas ela mal notou devido à alegria de finalmente
ficar limpa de novo. Quando acabou de se secar, as escravas ajudaram-na a vestir uma túnica preta disforme como a que usam. As mangas largas cobriam os braços até
os pulsos, e a saia batia no chão. Conversando entre elas, demonstraram como usar o lenço comprido de cabeça para que cobrisse os cabelos e o rosto, deixando apenas
os olhos à mostra. Calçaram um par de sandálias de pele de cabra em seus pés.
O traje estranho lhe trazia um estranho sentimento de privacidade, o primeiro que experimentava desde a captura do Golfinho, e ela segurou o lenço próximo ao rosto
e à boca, escondendo-se delas e dos terrores e perigos inomináveis que, sabia, a rodeavam. Não deixaram que descansasse e a levaram de volta pelos labirintos do
edifício. Quanto mais caminhavam, mais os aposentos pelos quais passavam se tornavam espaçosos e luxuosamente mobiliados, com tapetes coloridos e pilhas de almofadas
no chão e azulejos pintados nas paredes. Os azulejos eram decorados com inscrições do Corão em caracteres árabes rebuscados.
Finalmente, chegaram ao final de um corredor fechado por um par de portas sólidas. Eram guardadas por dois homens armados com rifles AK-47. As escravas a deixaram
ali e, assim que se retiraram, os guardas abriram as portas pesadas e fizeram um sinal para que Cayla entrasse no amplo aposento adiante. Ela se deteve na entrada
e olhou ao redor rapidamente. Percebeu que se tratava de parte da mesquita. Havia um fileira de homens vestidos em túnicas sentados em almofadas sobre o chão de
lajotas. Estavam voltados para o púlpito no fundo do hall. Adam estava no meio da fileira. Ele se virou para olhar para ela e acenou para que fosse até ele. Cayla
saiu correndo para atender ao pedido, caindo de joelhos ao lado dele.
- Adam! - começou a falar, mas ele a silenciou.
- Fique quieta, mulher. Dê cinco passos para a frente e se ajoelhe diante do púlpito. Espere ali em silêncio. Quando meu avô sair pela porta atrás do púlpito, você
tem de abaixar a cabeça até encostar a testa no chão e permanecer calada. Fale apenas quando se dirigirem a você. Em nenhum momento você pode olhar para o rosto
dele. Ele é um senhor poderoso e um descendente do Profeta. Você tem de demostrar respeito total. Agora vá! Faça o que eu mandei.
Ela caminhou para a frente e se ajoelhou. Enquanto esperava, ouviu os murmúrios dos homens atrás dela - um deles tossiu, e outro trocou de lugar. Em seguida, ouviu
a porta à sua frente começar a abrir e olhou para cima. Mas, ao comando brusco de Adam, se deteve.
- Abaixe!
Ela encostou a testa no chão e não viu nada do que estava acontecendo ao seu redor. A porta se abriu completamente, e uma figura corpulenta, mas imponente, entrou
no recinto. O andar dele não era arrastado como o de um velho, apesar da barba branca como a neve, cujas pontas eram tingidas de hena em tributo ao Profeta, cuja
barba era ruiva. O rosto tinha rugas profundas, e as sobrancelhas eram brancas e espessas. Na cabeça, levava um turbante ornamentado, no corpo, uma túnica em tons
dourados que se arrastava pelo chão. Sobre ela, um colete que descia até os joelhos, abundantemente incrustado com filigranas douradas e prateadas. As sandálias
eram exageradamente pontudas e também bordadas com desenhos em delicados fios dourados e pedras polidas semipreciosas. Como símbolo de seu poder, carregava um longo
chicote de couro de hipopótamo com cabo de ouro batido. Olhou para a longa fileira de figuras prostradas e sinalizou para Adam.
- Venha saudar seu avô, filho do meu filho! - ordenou. Adam se levantou depressa e foi até ele com a cabeça abaixada, desviando o olhar. Ele se ajoelhou de novo
diante do velho, de quem levantou o pé direito, colocando a sola da sandália ornamentada com joias sobre a cabeça.
- Levante-se diante de mim, meu neto. Deixe-me ver seu rosto. Deixe-me abraçá-lo - ele ergueu Adam e o encarou nos olhos.
- Através de mim e do meu filho o sangue do Profeta corre em suas veias. O que vejo em você é bom e se fortalece a cada dia que passa.
As palavras deixaram Adam extasiado, uma vez que o avô era Hadji xeique Mohammed Khan Tippoo Tip, um dos grandes guerreiros de Alá. Os títulos Hadji e xeique eram
honoríficos, atestando que ele havia feito a peregrinação a Meca e que era líder de um grande clã. Por cinco gerações, o filho mais velho da família havia carregado
o sobrenome Tippoo Tip. Todos haviam sido guerreiros lendários, temidos capturadores de homens e caçadores incansáveis de elefantes. Dizia a lenda que, juntos, haviam
reunido mais de um milhão de almas do interior da África e as levado em marcha para suas bases de tráfico de escravos na costa. O número de elefantes que haviam
matado era incontável, maior do que as pragas de gafanhotos que escureciam os céus africanos nas épocas chuvosas. Ao longo dos séculos, frotas de dhows Tippoo Tip
haviam atravessado os oceanos carregando marfim e escravos da África para a Arábia e a Índia e além, até a China.
"Alá amaldiçoe os infiéis adoradores do diabo, os ingleses e os norte-americanos, que condenaram a captura de homens e a matança de elefantes, conduzindo minha grande
família à obscuridade e ao declínio", pensou Adam. "Mas a sorte mudou. Assim que o sol percorrer a noite e emergir novamente à aurora no auge de seu poder e sua
glória, minha família recuperará seu poder. Os homens aprenderão a nos temer novamente quando recolhermos os barcos e os cidadãos infiéis e impunes."
Nesse exato momento, vários barcos capturados jaziam na Baía de Gandanga, e centenas de prisioneiros preenchiam as áreas muradas destinadas aos escravos, à espera
do pagamento pelo resgate. Dessa vez ele havia trazido um diamante de valor inestimável para o venerado avô, o prêmio mais caro que a família já havia roubado. Ao
realizar tal ato, Adam se tornara um temido capturador de homens como seus antepassados. Adam e o avô se abraçaram, e então o xeique Khan se virou e olhou para baixo,
para a mulher ainda ajoelhada em reverência a ele.
- Diga a essa mulher que se levante - comandou e Adam se dirigiu a Cayla em voz baixa.
- Levante-se! Meu avô quer olhar para você - Cayla ficou de pé com a cabeça baixa em posição submissa.
- Diga-lhe para tirar o véu. Quero ver seu rosto - xeique Khan ordenou.
Adam transmitiu o comando a Cayla, que removeu o xale do cabelo e do rosto. Permaneceu calada até o velho homem levantar sua cabeça segurando-a pelo queixo para
encará-la. Sem saber como se comportar, Cayla o fitou diretamente nos olhos e sorriu. Era um sorriso indeciso mas conquistador, que teria encantado qualquer outro
homem. O xeique Khan deu um passo para trás e a golpeou no rosto com o chicote de couro de hipopótamo. Cayla gritou de agonia devido ao golpe.
- Prostituta infiel! - gritou para ela. - Como ousa lançar seu olhar demoníaco sobre meu semblante? Eu sou à prova dos seu feitiços malignos.
Cayla cobriu com as mãos o vergão protuberante que o chicote deixara em seu rosto, e pediu desculpas soluçando:
- Desculpe. Por favor, me perdoe. Não foi minha intenção ofendê-lo.
Mas o xeique tinha se virado para dar ordens a Adam.
- Leve-a até meu santuário - ele caminhou de volta até a porta, e Adam se apoderou do braço de Cayla, trazendo-a logo atrás de si.
- Sua tola - sibilou. - Eu avisei.
Na sala além da porta, estava exposto um painel grotesco. Uma grande bandeira estava pendurada na parede do fundo. O emblema central era a silhueta negra de um rifle
automático AK-47 em um campo verdejante. Acima dele, estava escrito em caracteres árabes: "As Flores do Islã. Morte aos infiéis. Morte a todos os inimigos de Alá.
Deus é grande".
Um banco de madeira tinha sido colocado em frente à bandeira. Em cada lado havia um guerreiro em uniformes de camuflagem. Os rostos se escondiam atrás de lenços
pretos. Apenas os olhos ficavam visíveis. Os homens estavam armados com rifles de assalto, e as máscaras lhes conferiam uma aparência assustadoramente satânica.
Adam levou Cayla até o banco e a fez sentar de frente para o fotógrafo que estivera à sua espera. A câmera estava montada em um tripé, e ele focalizou na cena. Um
dos seus assistentes trouxe uma folha grossa de papel branco enrolada, que Adam desenrolou e entregou para Cayla.
- Segure isso para que possamos ler a data - disse-lhe.
- O que é isto?
- É a capa da edição de hoje do International Herald Tribune, baixada da internet. Serve meramente para estabelecer a data em que o retrato foi tirado.
Ele deu um passo para trás e deu uma ordem sem rodeios aos homens ao lado do banco. Eles ergueram os punhos fechados em um gesto guerreiro. Adam acenou com a cabeça
para o cinegrafista. O flash fotográfico iluminou o cenário brevemente, capturando Cayla com o olhar fixo na lente da câmera com uma expressão de profundo desespero.
Hector e quatro de seus agentes seniores de campo estavam reunidos ao redor da mesa central da sala de situação do terminal de Sidi el Razig, totalmente concentrados
na discussão. Hazel Bannock estava sentada ao lado. Tentava acompanhar o que diziam, mas grande parte da conversa era em árabe. Ela desistiu e se manteve ocupada
analisando os homens com quem Hector decidira trabalhar. Alguns deles iriam tentar resgatar Cayla para ela. Ela, que se orgulhava de conhecer bem as pessoas e suas
habilidades, havia discutido sobre cada um deles com Hector e finalmente admitido que ele havia escolhido bem.
Dois dos homens eram de origem europeia. O primeiro era David Imbiss. Jovem, com um rosto vivaz e a impressão de ser gordinho. Porém, o que havia em seu corpo eram
músculos, não gordura. Hector o havia apresentado a ela com um ex-capitão da infantaria dos Estados Unidos, que havia servido no Afeganistão como agente de ligação
destacado para a brigada comandada por Hector. Ao final de sua jornada, deixara o exército com uma Estrela de Bronze e algumas cicatrizes. Hector havia dito a Hazel
que, quando David voltou para casa, na Califórnia, descobrira que sua mulher havia pegado o bebê e fugido com um cultivador de laranjas que ela conhecia da faculdade.
O semblante jovial e ingênuo de David era enganador; por trás dessa aparência, ele era forte, inteligente e sensato. Devido ao treinamento que recebera nas forças
armadas, era um perito em eletrônica e computadores, uma aptidão altamente valorizada por Hector.
Debruçado sobre a mesa, ao lado direito de Hector, estava Paddy O'Quinn. Ele era bem mais jovem do que Hector e havia sido seu subordinado no Serviço Aéreo Especial
(SAS). Era alto, magro, musculoso, tinha um temperamento explosivo e uma mente aguçada. Ele fora soldado profissional até cometer um pequeno erro de julgamento.
No campo de batalha, havia atingido um oficial de baixa patente com força suficiente para quebrar seu maxilar.
- O homem era um bosta - foi como explicara o lapso de julgamento a Hector. - Tinha perdido metade do pelotão graças à sua imbecilidade, e então começou a discutir
comigo.
Paddy provavelmente seria agora um oficial sênior, se não fosse aquele único soco fora de hora. O exército havia perdido, e Hector e a Cross Bow, ganhado. Os outros
dois homens no outro lado da mesa eram árabes. Isso tinha surpreendido Hazel em um primeiro momento, afinal, Hector Cross era reconhecidamente racista, não era?
- Preferiria ter qualquer um desses homens protegendo meu traseiro em uma luta acirrada do que a maioria que conheço - Hector havia dito quando ela comentara a escolha.
- Como a maioria dos homens de sua raça, são guerreiros resistentes e terrivelmente astutos. É claro que podem pensar, conversar e agir como trogloditas. Mande uma
raposa para capturar outra raposa, alguém disse. Juntos, formamos uma boa equipe, quando as coisas ficam realmente difíceis, posso rezar para Jesus Cristo, enquanto
eles rezam para Alá. Desse modo, cobrimos todas as bases.
Tariq Hakam tinha sido ligado à unidade de Hector no Iraque como intérprete e guia local. Ele e Hector haviam se afeiçoado desde o primeiro dia, quando acabaram
em uma emboscada e tiveram de lutar para fugir. Ele estava ao lado de Hector na terrível ocasião da bomba à beira da estrada. Quando Hector abriu fogo contra os
três insurgentes árabes que haviam plantado a bomba e pareciam prestes a acionar um dispositivo explosivo, Tariq deu cobertura a ele e derrubou um dos inimigos.
Quando Hector renunciara a sua patente, Tariq foi até ele e disse:
- Você é meu pai. Vou aonde você for.
- Não há como contra-argumentar - Hector tinha concordado. - Não tenho muita certeza de onde estou indo, mas faça as malas e venha junto.
O outro homem de frente para Hector era Uthmann Waddah.
- O Uthmann é Uthmann - Hector tinha dito a Hazel. - Ninguém pode substituí-lo. Confio nele como em mim mesmo.
Hazel sorriu ao se lembrar da maneira simples como Hector tinha explicado os relacionamentos com os quatro homens. Tinha levado tudo como um exagero grosseiro na
ocasião, mas observando-os agora enquanto debatiam as opções à mesa da sala de situação, estava revendo a própria opinião.
"Nós, os poucos e felizes!", pensou e, de uma maneira estranha, sentia inveja de Hector. Devia ser maravilhoso pertencer a um grupo tão próximo, passar seus dias
em companhia de irmãos a quem confiaria a vida. Jamais conhecer a solidão. Havia agora muitos anos desde que Henry se fora. Mesmo em meio à multidão, a solidão era
a sua companhia austera e constante.
O laptop dela bipou, indicando que uma mensagem havia chegado. Seria Agatha. Hazel se virou de imediato. Olhava para a tela em descrença e então soltou um grito
engasgado.
- Meu Deus! Isto não pode estar acontecendo!
- O que é? - Hector indagou.
- Cayla me enviou uma mensagem!
- Não abra! Não é da Cayla - Hector gritou, mas ele estava do outro lado da mesa e não conseguiu alcançá-la a tempo de detê-la. Os dedos dela percorreram o teclado
com rapidez. Um alerta dizia que havia um arquivo em anexo. Ela apertou o botão de download e olhou para a tela. O sangue sumiu de seu rosto. Abriu a boca como se
fosse falar, mas o som que eclodiu de seus lábios era um grito agudo de lamento. Hector achou que ela fosse cair, pois oscilou na cadeira. Hector a sacudiu pelos
ombros.
- O que é? Recomponha-se! Pelo amor de Deus, mulher! O que é?
Ela fechou a boca e o encarou como se nunca o tivesse visto antes. Em seguida se endireitou na cadeira e respirou fundo, lutando pelo controle de suas emoções. Ainda
não conseguia falar, mas passou o laptop para ele. Ele olhou para a imagem na tela. Uma menina branca, bonita, em trajes muçulmanos, mas com o rosto e os cabelos
expostos. A expressão dela era de assombro e desolação. Estava segurando um exemplar de jornal, e ele conseguiu ler a data sob a manchete principal. A menina estava
ladeada por dois homens armados e mascarados. Na parede atrás deles, havia uma faixa com slogans religiosos militantes e radicais, impressos em caracteres árabes
em preto.
- É ela? - perguntou , quando ela não conseguiu responder, ele a sacudiu gentilmente. - Esta é a Cayla?
Ela arfou para retomar a respiração e então suspirou:
- Sim, é a Cayla. É a minha bebé - ela estremeceu. - Mas por que ela me mandaria uma foto tão horrível de si mesma?
- Não foi ela quem mandou - Hector disse secamente. - Foi enviada pelos captores. A foto é só para intimidá-la, mas pelo menos eles estão prontos para negociar.
- Mas veio do celular da Cayla.
- Eles o tiraram dela, ou pelo menos o chip - Hector virou Hazel em sua direção. - Escute. Isso é para o bem. Nós agora sabemos com certeza que a Cayla estava viva
três dias atrás. É o que a data no jornal está dizendo.
Hazel assentiu.
- Agora temos uma linha direta com os captores. Podemos negociar com eles. Talvez até possamos rastrear a origem da mensagem através da operadora que a enviou -
ele entregou o laptop para David Imbiss.
- Você é o nerd, Dave. Diga o que sabe a respeito dessa transmissão. É possível saber de que país foi enviada?
- Com certeza, Heck - Imbiss examinou o laptop. - Pode demorar um pouco, mas com um mandado judicial o servidor talvez possa ser forçado a dizer qual de suas operadoras
a enviou - disse e devolveu o computador a Hector. - Mas seria um belo desperdício de tempo.
- Por que, Dave?
A foto foi tirada há três dias. Suponha que tenha sido no Cairo. Houve tempo suficiente para o chip ser mandado por courier para, por exemplo, Roma. Ele ou ela transmite
a mensagem para nós e então devolve o chip para o chefe pela mesma rota de envio.
- Merda! - disse Hector.
- Merda mesmo - Dave concordou. - Se vamos manter uma correspondência constante com essa gente, pode ter certeza que cada mensagem será enviada de um país diferente.
Hoje, Itália, semana que vem, Venezuela.
Hector refletiu sobre isso e se virou novamente para Hazel.
- Qual é o saldo da conta do BlackBerry da Cayla, a senhora tem alguma ideia? A Besta não vai comprar crédito se ele acabar, seria perigoso demais para eles. Não
queremos perder a pista por causa de uns poucos dólares.
- Coloquei dois mil dólares na conta da Cayla quando estávamos na Cidade do Cabo.
Dá para falar por um ano com essa quantia - Hector opinou.
"Essa mulher não faz nada pela metade", pensou e sorriu por dentro.
- Não queria que ela tivesse uma desculpa para não me ligar - disse Hazel se justificando.
- Excelente! Queremos garantir que eles continuem a usar esse número - ele disse. - O que tem de fazer imediatamente é responder. Garanta que eles saibam que vamos
ficar à espera de um contato. Faça isso agora, por favor, sra. Bannock.
Ela assentiu e então digitou uma mensagem no teclado. Quando terminou, virou-se para ele e leu:
- Cavalheiros, estarei à espera de futuras mensagens. Enquanto isso, por favor, não a machuquem.
- Não! - Hector foi ríspido. - Deixe a saudação de fora. Cavalheiros eles não são, e isso não serve para nada. A seguir, corte o pedido para que não a machuquem.
Seja curta e grossa. "Estou esperando". É só isso.
Ela assentiu, fez as correções e mostrou o resultado para Hector.
- Ótimo. Envie! - ele disse. A seguir, olhou para os seus homens.
- Todo mundo para fora, por favor. De agora em diante, é uma questão de se saber apenas o que é necessário saber.
Eles entenderam. Se um deles fosse capturado e torturado, não poderiam divulgar o que não sabiam. Começaram a sair em fila da sala.
- Tariq. Uthmann. Fiquem, por favor.
Os dois árabes voltaram para os seus assentos à mesa. Hazel não conseguiu mais se segurar.
- Cross - falou de supetão -, não há nada mais que possamos fazer? Meu Deus, como vamos descobrir onde eles estão mantendo a Cayla?
- É o que estávamos discutindo há uma hora - Hector a lembrou. - Se a Besta tem uma fraqueza, é a de gostar de falar, de se gabar de suas conquistas.
Ela balançou a cabeça.
- Eu não entendo.
Se você souber onde escutar, talvez consiga captar os ecos dessa gabação.
- Você sabe onde escutar?
- Não, mas Uthmann e Tariq sabem - respondeu. - Vou infiltrá-los a fundo. Posicioná-los nos países em que nasceram e onde os elos de ligação com os habitantes locais
são mais fortes. Tariq irá para a Puntlândia, e Uthmann, para o Iraque. Vão sair farejando até encontrar uma pista. Mesmo que Cayla esteja em outro lugar, estes
dois vão descobrir.
- Isso vai ser terrivelmente perigoso para eles, não vai? Estarão completamente sozinhos, e você não poderá protegê-los.
- Está entendendo muito bem o caso, sra. Bannock. O risco que correrão é mortal. Mas eles não morrem tão facilmente. Sobreviveram até agora contrariando todas as
previsões.
Hazel olhou para os dois árabes.
- Nunca terei como agradecê-los. Vocês estão arriscando a própria vida pela minha filha. São homens muito, muito corajosos.
- Não elogie demais! - Hector protestou. - Eles já têm uma opinião bastante inflada sobre si mesmos. Daqui a pouco vão estar me pedindo um aumento ou algo igualmente
ridículo - todos, com exceção de Hazel, riram, o que dissipou um pouco a tensão.
- Até que nos forneçam um pista mais definitiva, vamos manter as coisas funcionando deste lado. Ao mesmo tempo, faremos todos os preparativos possíveis para o momento
em que soubermos com certeza onde Cayla está e podermos ir buscá-la.
O jato bimotor Fokker F-27 Friendship da Zara Airlines fazia um voo diário partindo da pista de Sidi el Razig até Ash-Alman, a capital de Abu Zara. Na manhã seguinte,
Tariq e Uthmann se juntaram discretamente ao grupo de funcionários e trabalhadores do oleoduto na área de check-in da pequena companhia aérea. Vestidos em trajes
tradicionais, com os rostos semicobertos pelo shumag, misturaram-se à multidão. Ao chegar à capital, separaram-se. Tariq embarcou na aeronave para Mogadishu, na
Somália, e, uma hora depois, Uthmann pegou o voo para Bagdá. Desapareceram entre as multidões árabes sem rosto.