Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EM ALTO MAR
EM ALTO MAR

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Na manhã seguinte, Hector foi à procura de Hazel e a encontrou tomando o café da manhã no minúsculo refeitório da empresa. Ao chegar perto dela, olhou para baixo
e viu uma tigela de cereal e uma xícara de café preto na mesa. Não era de se espantar que estivesse em boa forma, ele pensou.

- Bom dia, sra. Bannock. Espero que tenha dormido bem.

- Tentando fazer uma piadinha irônica, Cross? É claro que não dormi bem.

- O dia vai ser longo. É pouco provável que algo aconteça por enquanto. Vou levar alguns dos meus rapazes para um treino de paraquedas antes do grande show. Alguns
não saltam há mais de um ano. Precisam dar uma desenferrujada.

- Tem um paraquedas para mim? - ela perguntou.

Ele piscou. Pensara que talvez ela quisesse assistir para se distrair das próprias preocupações. Não tinha imaginado que gostaria de participar. Ficou pensando qual
seria seu nível de experiência.

- Já saltou da paraquedas? - perguntou com tato.

- Meu marido adorava e costumava me levar junto. Fizemos vários saltos de base juntos nos fiordes noruegueses em Trollstigen.

Hector olhou para ela boquiaberto antes de conseguir falar de novo.

- Esse é o suprassumo - admitiu. - Não há nada mais radical do que saltar de uma montanha para um abismo de 600 metros de altura.

- Não me diga que já saltou daqueles fiordes? - perguntou ligeiramente interessada.

- Sou corajoso, mas não louco - ele balançou a cabeça. - Sra. Bannock, a senhora tem a minha admiração e ficarei honrado se juntar-se a nós hoje pela manhã.

Hector havia reunido quinze dos seus melhores homens, incluindo Dave Imbiss e Paddy O'Quinn. Saltaram três vezes do helicóptero. O primeiro salto foi a três mil
metros de altitude; o segundo e o último, em um nível mais baixo, a 120 metros, apenas o suficiente para que o paraquedas se abrisse antes que tocassem os pés no
chão. Essa técnica daria pouca chance ao inimigo de acertá-los se estivesse atirando do chão enquanto eles caíam, vulneráveis. Após o terceiro salto, todos os homens
estavam claramente maravilhados com Hazel. Nem mesmo Paddy O'Quinn conseguiu disfarçar a admiração.

Comeram sanduíches de queijo e presunto e tomaram café de uma garrafa térmica sentados na lateral de uma duna de areia. Depois disso, Hector empurrou um pneu velho
de caminhão duna abaixo, e enquanto ele descia quicando pelo morro íngreme, os homens, alternadamente, atiraram com seus rifles de assalto Beretta SC 70/90 no alvo
de papelão encaixado na parte de dentro. Hazel foi a última a atirar. Pegou a arma de Hector emprestada e verificou a munição e a estabilidade com um ar competente
e sagaz. Em seguida, foi até a linha e acertou o alvo com um estilo elegante, oscilando ligeiramente antes de disparar contra o pneu, como um atirador munido de
uma espingarda de calibre .12 se posicionando para atirar em um faisão em movimento. Dave resgatou o pneu da base da duna, todos se reuniram em volta dele, olhando
para os buracos de bala perfurados no alvo de papelão. Ninguém falou muito.

- Por que estão todos tão surpresos? - Hector gracejou. - Ela é uma atleta de gabarito internacional. É claro que é bastante competitiva e tem a coordenação visomotora
de um leopardo.

Depois disse ingenuamente:

- Deixe-me adivinhar, sra. Bannock. Seu marido gostava de atirar e arrastava a senhora junto. É isso, não é?

O riso foi espontâneo e contagiante e, após alguns instantes, Hazel foi forçada a acompanhar. Era a primeira vez que ria desde que perdera Cayla. Foi catártico.
Sentiu parte da dor debilitante ser expurgada da alma.

Antes que o riso cessasse, Hector bateu palmas e gritou:

- Certo, meninos e meninas! São apenas onze quilômetros de volta ao terminal. O último a chegar paga as bebidas.

O solo arenoso dificultava a caminhada. Quando passaram pelo portão na cerca de arame farpado do perímetro do terminal, Hector estava alguns passos atrás de Hazel.
Ela estava correndo em um ritmo forte e suave, mas as costas de sua camiseta estavam escurecidas pelo suor. Hector sorriu.

"Duvido que a madame vá ter muita dificuldade em pegar no sono hoje à noite", pensou.


Uthmann ouviu a explosão e viu a coluna de fumaça preta subindo acima dos telhados dos edifícios à frente dele. Logo soube que era um carro-bomba, e saiu correndo
em disparada para a casa do irmão, que ficava nas proximidades da explosão. Virou a esquina e olhou para a rua estreita e sinuosa abaixo. Até mesmo para um veterano
escaldado como Uthmann, a carnificina era horrível. Um homem veio correndo na direção dele com o corpo de uma criança ensopada em sangue apertado contra o peito.
O olhar vazio sequer focalizou em Uthmann quando ele passou correndo. A fachada de três edifícios havia sido destruída. O interior estava exposto como o de uma casa
de bonecas. Móveis e pertences pessoais estavam dependurados nos aposentos abertos ou caíam em cascata na rua. No meio da via, estavam os destroços enegrecidos e
contorcidos do carro que carregara a bomba.

- Você não é um mártir! - Uthmann gritou ao passar correndo pelas ferragens fumegantes e os restos vaporizados do motorista. - Você é um assassino xiita!

Então ele viu que a casa de Ali, seu irmão, mais ao final da rua, estava intacta. A mulher de Ali veio até a porta. Ela estava chorando e embalando dois dos filhos
nos braços.

- Onde está o Ali? - gritou.

- Foi trabalhar no hotel - ela soluçava.

- Todas as crianças estão com você?

Ela assentiu em meio às lágrimas.

- Que o nome de Alá seja louvado! - Uthmann gritou e a levou de volta para dentro.

A mulher e os três filhos do próprio Uthmann não tiveram tanta sorte quanto a família do irmão. Três anos antes, Lailah estava no mercado local com os meninos quando
uma bomba explodiu a trinta passos deles. Uthmann pegou o menininho dos braços da cunhada e o embalou até que parasse de choramingar. Ao se lembrar do calor do corpinho
do filho em seus braços, sentiu as lágrimas subirem aos olhos. Ele virou o rosto para que não vissem.

O irmão Ali chegou do trabalho uma hora depois. Devido à bomba, o gerente geral do hotel havia autorizado que ele saísse mais cedo. O alívio do homem ao ver que
a família estava em segurança foi doloroso de assistir para Uthmann. Somente no dia seguinte Uthmann conseguiu ter uma discussão séria com ele. Para começar, Uthmann
tocou no assunto da captura do iate e da jovem herdeira da fortuna da Bannock Oil.

- Essa foi a notícia mais excitante que ouvimos em anos - Ali logo respondeu. - O mundo muçulmano inteiro está em expectativa desde o anúncio dos camaradas no Al
Jazeera. Que planejamento cauteloso e que senso de dever para fazer que tal operação florescesse! É uma das nossas maiores vitórias desde os ataques em Nova Iorque.
Os norte-americanos estão atordoados. O prestígio deles sofreu mais um ataque mortal - Ali estava extasiado.

No dia a dia, ele era o gerente do Airport Hotel, mas na realidade sua ocupação principal era a de coordenador dos Combatentes Sunitas que estavam perseguindo a
Jihad contra o Grande Satã. Estava claro para ambos os irmãos que Ali era o alvo principal da bomba xiita que havia causado tamanha devastação na rua da casa onde
se encontravam.

- Tenho certeza de que os nossos líderes vão exigir um pagamento de resgate enorme pela princesa norte-americana capturada - Ali disse com seriedade. - O suficiente
para financiar a Jihad contra os Estados Unidos por outros dez anos ou mais.

- Então, qual dos nossos grupos foi o responsável por essa conquista? - Uthmann perguntou. - Nunca ouvi falar desse "Flores do Islã" até que o nome fosse usado pelo
Al Jazeera.

- Irmão, você sabe que não deve fazer essa pergunta. Embora você tenha provado a sua lealdade centena de vezes, eu jamais poderia respondê-la, mesmo que soubesse
a resposta, e eu não sei - Ali hesitou e depois prosseguiu. - Mas posso dizer que logo você talvez seja um dos que precisem saber.

- Minha conexão com a Bannock Oil? - Uthmann sorriu para ele, mas Ali fez um gesto de negativa com as mãos.

- Chega, não posso dizer mais nada.

- Então parto amanhã e retorno a Abu Zara...

- Não! - Ali o interrompeu. - Foi a mão de Alá que trouxe você aqui hoje. Fique comigo por pelo menos mais um mês. Inshallah! Talvez possa dizer algo a você nessa
altura.

Uthmann assentiu.

- Mashallah! Ficarei, irmão.

- Seja bem-vindo sob o meu teto, irmão.


No palácio na encosta acima do Oásis do Milagre, um outro grupo de homens tomava café em minúsculas xícaras de prata, conversando seriamente em voz baixa. Estavam
sentados em círculo ao redor da mesa incrustada com mármore e madrepérola. O único item sobre a mesa era o bule prateado de café. Não havia nenhum material escrito
na sala. Nada era anotado. Todas as decisões eram anunciadas pelo xeique Khan Tippoo Tip em pessoa e memorizadas por seus ouvintes.

- Meu neto Adam enviará a primeira exigência para o resgate - olhou para Adam que, ainda sentado na almofada de seda, fez uma mesura até a testa encostar nas lajotas.

- Ouvir seu comando é obedecê-lo - murmurou.

O xeique Khan gracejou:

- A quantidade de exigências será tão grande que até mesmo na terra doentia e amaldiçoada do Grande Satã não haverá ninguém rico o suficiente para cumpri-las - quando
sorriu, seus olhos desapareceram detrás das pálpebras enrugadas. - Não existe quantia de dinheiro capaz de quitar a dívida de sangue que esse homem chamado Cross
tem comigo. Somente o sangue pode pagar por sangue.

Eles bebericaram das xícaras de prata em silêncio, esperando que o xeique continuasse a falar.

- O infiel pérfido matou três dos meus filhos - ergueu um dos dedos contorcidos pela artrite. - O primeiro era meu filho e o pai do meu neto Saladin Gamel.

Adam se curvou mais uma vez, e o xeique Khan prosseguiu:

- Ele era um verdadeiro guerreiro de Alá. Foi assassinado por Cross em uma rua de Bagdá sete anos atrás.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros homens na roda murmuraram.

- A segunda dívida de sangue é o meu filho Gafour. Foi enviado para honrar a dívida de sangue de seu irmão mais velho, Saladin, mas Cross o matou também quando atacou
o dhow em que Gafour velejava a Abu Zara para cumprir a tarefa de que fora incumbido por mim.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros entonaram novamente.

- O terceiro dos meus filhos que morreu nas mãos desse infiel adorador do Cristo foi Anwar. Também tinha sido enviado em uma missão de honra.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - repetiram em coro pela terceira vez.

- Essa dívida de sangue se tornou um fardo em minha consciência. A vida dos meus três filhos foi tirada por esse idólatra tolo, servo de um falso deus. Para mim
não basta mais apenas tirar a sua vida. Uma vida não pode pagar por três. Tenho de capturá-lo e entregá-lo vivo às mães e às mulheres dos homens que matou. As mulheres
são altamente treinadas no assunto. Sob suas mãos e as lâminas afiadas das facas de esfola ele terá vários dias de tormento até passar ao ventre do inferno e os
braços de Satã.

- Seu comando é uma ordem, poderoso Khan, que assim seja - murmuraram de acordo.

- Está me escutando, meu neto? - o xeique Khan indagou.

Adam fez mais uma mesura, devotada, reverente.

- Estou escutando, venerado avô.

- Deposito a dívida da dívida de sangue diretamente nos seus ombros. Você tem de recolher o pagamento pelos seus dois tios e pelo seu próprio pai. Que você não conheça
paz nem descanso até que a dívida seja completamente quitada.

- Escuto o que diz, meu avô. É um voto de confiança sagrado.

- Quando você trouxer o suíno infiel vivo até mim, vou colocá-lo no pedestal mais alto da sua tribo. Você ganhará um lugar em meu coração juntamente com as memórias
do seu pai e dos seus tios assassinados. Quando eu morrer, você assumirá o meu lugar como líder do nosso clã.

- Reconheço esse dever passado a mim como sagrado, meu avô. Entregarei o homem e a mulher para que enfrentem sua ira e seu julgamento, conforme seu comando.


A espera é sempre a parte mais difícil, Hector lhe dissera no início. Gradualmente ela descobriu o quanto ele estava certo. Todos os dias, passava horas em teleconferências
no Skype conduzindo os negócios da Bannock Oil pelo mundo. No restante do tempo, ela treinava com os homens de Hector. Correndo, pulando e atirando até estar tão
em forma física e mentalmente concentrada quanto na ocasião em que entrou na quadra de Flinders Park naquele dia de glória longínquo.
Mas as noites, aquelas terríveis noites, passavam em agonia espiritual. Ela dormia pouco, mas quando dormia, sonhava com Cayla - Cayla galopando com ela em seu cavalo
dourado de crina branca pelos altos prados do rancho. Cayla gritando de excitação ao abrir o presente extravagante que Hazel lhe dera quando completara 18 anos.
Cayla adormecendo no ombro de Hazel enquanto assistiam juntas a filmes antigos tarde da noite na TV a cabo. E então homens, mascarados e com armas nas mãos, surgiam
e o terror que sentia era infinito. Cayla! Cayla! O nome dela ressoando sem parar em sua mente, atormentando-a e deixando-a à beira da loucura.
Falava todos os dias com Chris Bessel e o coronel Roberts nos Estados Unidos, mas eles ofereciam pouco conforto. Todas as noites, sozinha em seu quarto, rezava como
quando era uma menininha, de joelhos e chorando. Mas as pistas haviam cessado. Nem todo o poder de suas orações, tampouco o da CIA, eram capazes de fazer com que
surgisse algum traço de Cayla ou das Flores do Islã. Passava várias horas do dia com Hector Cross, extraindo forças de sua companhia.

- Mas não temos notícias há quase um mês, Cross! - dizia isso pelo menos uma vez ao dia.

- Eles brincam de gato e rato com uma habilidade sem limites. Têm anos de prática - respondeu. - Não estão com pressa. Temos de esperar. Mas, lembre-se, Cayla ainda
está viva. Apegue-se a esse pensamento como algo positivo.

- Mas e Tariq e Uthmann? Com certeza eles já devem ter descoberto alguma coisa.

- É um jogo extremamente lento - enfatizou. - Se Tariq e Uthmann cometerem um único deslize, morrerão de uma morte pouco invejável. Estão profundamente infiltrados,
vivendo, comendo e dormindo com a Besta. Não podemos apressá-los; na verdade, não posso nem mesmo entrar em contato. Se tentar, o resultado será o mesmo do que levar
um tiro na cabeça.

- Queria que houvesse algo que pudéssemos fazer - ela lamentou.

- Há uma coisa que a senhora pode fazer, sra. Bannock.

- O que é, Cross? - perguntou com avidez. - Farei qualquer coisa que você sugerir.

- Então eu sugiro que pare de enviar e-mails para a Besta no celular da Cayla.

- Como...? - a voz dela abrandou, e a seguir ela balançou a cabeça e admitiu. - Estava apenas repetindo a mensagem que você me fez mandar antes. Dizendo que estamos
esperando. Mas como você... - ela interrompeu a frase de novo.

- Como soube o que andava fazendo? - ele concluiu a pergunta por ela. - Às vezes você não é tão esperta quanto pensa, Hazel Bannock.

- E você, Hector Cross, é o imbecil mais esperto do mundo inteiro - ela explodiu.

- Faz bem desabafar de vez em quando, não é, Hazel?

- Não ouse me chamar de Hazel, seu filho da puta arrogante!

- Ótimo, sra. Bannock! Seu jeito de falar melhora a cada dia. Logo estará dentro dos meus elevados padrões.

- Odeio você, Hector Cross! De verdade.

- Não, não odeia de verdade. A senhora é astuta demais para isso. Guarde seu ódio para quando ele for necessário - ele riu.

A risada dele foi suave e contagiante, amena e compreensiva, e, mesmo sem querer, ela riu com ele, mas o riso dela tinha um quê de histérico.

- Você é incorrigível! - disse em meio ao riso.

- Agora que me entende, pode me chamar de Hector ou de Heck, se quiser.

- Obrigada - ela tentou abafar o riso. - Mas não quero merda nenhuma.

 

-O que os forçará a vir aqui e tentar libertar a garota? - xeique Khan encarou o neto, esperando a resposta.

Adam pensou bem antes de responder.

- Primeiro, ele têm de saber onde ela está.

O avô assentiu.

- A seguir, pedirão a ajuda dos amigos em Washington. Sabemos que a mãe é amiga do presidente norte-americano. Eles enviarão multidões de cruzados para nos assolar.

O xeique Khan penteou a barba com os dedos, observando os olhos do neto, à espera do momento em que o rapaz veria o caminho adiante tão claramente quanto o próprio
xeique Khan.

- Levará várias semanas, ou até meses, até que os norte-americanos preparem um ataque contra nós. Podemos nos mudar deste lugar e, em poucas horas, desaparecermos
no deserto. Hector Cross, o assassino dos meus filhos, sabe disso. Ele e a mãe da menina querem esperar o exército norte-americano se mexer?

- Sim! - disse Adam com certeza. - A menos que... - xeique Khan viu a solução surgir nos olhos do neto, e seu coração se encheu de orgulho.

- Sim, Adam! - encorajou o neto a falar.

- A menos que possamos convencê-los de que a menina está sob perigo de morrer, ou um perigo pior do que a própria morte - disse Adam, e o avô sorriu até que os olhos
quase desaparecessem nas pregas das pálpebras. - Desse modo, eles virão atrás de nós, sem medo nem hesitação, virão atrás de nós.

- Onde é melhor? - o xeique Khan murmurou alegremente.

Adam respondeu sem hesitar:

- Não aqui, em uma cela de pedra da fortaleza. Tem de ser em um lugar onde a beleza do cenário contraste com o horror do ato.

Pensou por um momento e em seguida disse:

- O lago das vitórias-régias, no Oásis do Milagre!

- Mostramos primeiro o perigo e depois deixamos que descubram onde estamos? Ou eles ficam sabendo primeiro qual é o local e depois testemunham o ato? - O xeique
Khan fingiu que estava ponderando a questão, mas Adam falou de novo.

- Primeiro, têm de ver o que a garota está sofrendo, pois quando finalmente descobrirem o local, virão correndo sem hesitar nem parar para pensar.

- Estou orgulhoso de você - disse o xeique Khan. - Você será um grande general e um guerreiro implacável de Alá - Adam fez uma mesura reconhecendo o elogio.

Em seguida, acenou para um dos guardas de confiança que estava posicionado na porta de braços cruzados. O guarda foi depressa para o lado dele e se abaixou sobre
um dos joelhos para receber suas ordens.

- Mande uma mensagem para o fotógrafo - Adam disse em voz baixa. - Diga para ficar à espera nos portões principais do palácio após as orações matinais. Peça para
trazer a filmadora.


As escravas foram buscar Cayla na cela apertada em que fora mantida prisioneira desde que havia sido levada para o Oásis do Milagre. De novo, banharam-na com jarras
d'água e depois a vestiram em roupas limpas - uma toga negra até os pés e um xale negro enrolado modestamente ao redor do rosto e dos cabelos. Em seguida, ela foi
conduzida até as portas principais do palácio, onde quatro homens com rifles automáticos esperavam para acompanhá-la até a encosta do oásis.

Em contraste com o cheiro mofado da cela de seu confinamento, o ar do deserto era puro e quente. Ela o respirou com alívio. Havia muito que perdera o interesse no
que lhe aconteceria a seguir. Tinha se retraído em um estado entorpecido de resignação. No meio do percurso pela trilha da montanha, ela reparou na multidão reunida
ao lado de uma das lagoas nos jardins luxuriantes logo abaixo. Pareciam dispostos em uma espécie de ordem, em semicírculo. Todos eram homens. Ao se aproximar mais,
viu que no centro do círculo aberto estava um homem sentado de pernas cruzadas sobre vários tapetes de lã. Vestia as tradicionais calças brancas folgadas, um colete
e um turbante pretos, mas mesmo com o lenço que cobria o rosto dele, ela reconheceu Adam. Sentiu uma lufada de ânimo. Não o via desde o dia em que, fazia quase um
mês, ela fora fotografada segurando um exemplar do International Herald Tribune. Queria correr até ele. No meio daquela multidão cruel e selvagem, ele era a única
pessoa em que podia confiar. Sabia que ele era seu protetor. Ele era a luz na escuridão de seu desespero. Ela começou a avançar com mais rapidez, mas os homens ao
seu lado a detiveram, e continuaram a descer o morro a uma velocidade moderada. De repente, outro homem surgiu na sua frente. Caminhava para trás, segurando uma
filmadora profissional com a lente focalizada no rosto dela.

- Sorria, senhorita, por favor - suplicou. - Olhe o passarinho, senhorita, por favor - o inglês dele era quase ininteligível.

- Vá embora! - gritou para ele com a última centelha que sobrara de seu temperamento fogoso. - Deixe-me em paz.

Ela arremeteu contra ele, que se desviou, ficando a uma distância segura. Os guardas a agarraram pelos braços e a puxaram para trás. O cinegrafista continuou a filmar.
Eles entraram no semi-círculo de homens armados e mascarados e Cayla gritou para Adam, apelando de uma maneira patética:

- Por favor! Por favor, Adam! Faça-os parar de me atormentar!

Adam deu uma ordem. Os guardas a empurraram e forçaram-na a sentar-se ao lado dele no tapete estampado de cores vibrantes. A seguir, o cinegrafista foi ajoelhar-se
diante deles. Ele havia encaixado a câmera em um tripé. Curvou-se para a frente para focalizar no rosto de Adam, e a câmera fez um ruído suave. Adam retirou o lenço
que cobria seu rosto e olhou diretamente para a lente da câmera.

- Cayla - disse Adam em seu inglês quase perfeito, tingido apenas ligeiramente pelo sotaque francês -, eles estão fazendo esta filmagem para mandar para sua mãe,
para mostrar que estamos cuidando bem de você. Pode enviar a mensagem que quiser. Fale para a câmera. Diga que eles logo farão um pedido de pagamento de resgate.
Você precisa pedir a ela que pague imediatamente. Assim que receberem o dinheiro, essa situação desagradável terminará. Você será libertada e enviada de volta para
sua mãe de novo. Compreende?

Ela assentiu calada.

- Remova o véu - Adam ordenou gentilmente. - Deixe sua mãe ver seu rosto.

Lentamente, como se estivesse em transe, Cayla ergueu o lenço e o deixou cair sobre os ombros. - Agora, olhe para a câmera. Isso, ótimo! Agora, fale com sua mãe.
Diga o que está sentindo.

Estremecendo, Cayla respirou fundo e disse:

- Oi, mamãe. Sou eu, Cayla - ela interrompeu e balançou a cabeça. - Desculpe. Isso é uma coisa imbecil de dizer. É claro que você sabe quem eu sou - ela se recompôs
de novo. - Estas pessoas estão me mantendo presa neste lugar horrível. Estou com tanto medo. Sei que alguma coisa terrível vai acontecer comigo. Eles querem que
você mande dinheiro. Eles prometeram que vão me soltar quando você fizer isso. Mamãe, por favor, me ajude, não deixe que façam isso comigo - ela começou a soluçar
e abaixou a cabeça, pousando-a nas mãos em concha, a voz dela abafada pelos dedos e a força do terror e da dor que sentia. - Por favor, minha mãe querida. Você é
a única pessoa no mundo que pode me salvar - os soluços se intensificaram, e as palavras dela perderam a forma e o sentido.

Adam esticou um dos braços e acariciou os cabelos dela carinhosamente. Depois, olhou diretamente para a câmera.

- Sra. Bannock, quero dizer que sinto muito que isto esteja acontecendo com sua filha. Cayla é uma jovem adorável. É trágico que ela tenha sido envolvida nisto.
Sinto muito mesmo. Queria que houvesse algo que eu pudesse fazer. No entanto, não sou responsável pelos atos destes homens. Eles seguem sua própria lei. A senhora
é a única pessoa que pode colocar um fim neste horror. Faça o que Cayla pediu. Pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora.

Ele se levantou e saiu da frente da câmera. O lugar dele foi tomado por quatro homens mascarados. Tinham colocado as armas de lado. Colocaram Cayla de pé e viraram
o rosto dela para a câmera. Um deles a pegou pelas costas, agarrando um punhado de seus cabelos loiros e a puxou para trás. Um outro mascarado entrou em cena pela
direita, e então extraiu um punhal de cabo de chifre de rinoceronte e lâmina de dez polegadas da cintura. A lâmina era incrustada com dizeres árabes em dourado.
Posicionou a ponta do punhal sob o queixo de Cayla, quase encostando na pele aveludada de sua garganta.

- Não! Por favor! - falou desesperada.

O grupo não se mexeu por um minuto. A seguir, ele desceu a lâmina lentamente até apontar para o seio esquerdo dela, os contornos revelados pelo algodão preto do
vestido. O homem cobriu o seio direito com a mão livre. Tomou-o nas mãos e começou a sacudi-lo quase como se estivesse brincando com ele. Cayla começou a se debater
ainda mais, e os homens que a seguravam começaram a rir sob as máscaras. O barulho era como o de uma hiena gargalhando ao sentir o cheiro de sangue no vento.

O homem de punhal enganchou um dos dedos no colarinho do vestido e o abriu. A seguir, percorreu o espaço entre o tecido preto e a pele de Cayla com a lâmina. Ela
sentiu a frieza do metal e ficou paralisada, olhando para a faca que descia pelos seus seios. O tecido arrebentou e um dos seios saltou para fora. A pele era branquíssima,
mas o mamilo era vermelho como um rubi. O homem embainhou novamente o punhal e alcançou o interior do vestido aberto. Tirou ambos os seios, um em cada mão, e os
apertou com tanta brutalidade que os mamilos delicados se projetaram, e Cayla gritou de dor. Ele soltou os seios e enganchou um dos indicadores no corte feito no
tecido fino e o rasgou até os calcanhares. Ela estava nua sob o vestido. O fotógrafo percorreu o corpo dela lentamente com a câmera, registrando cada detalhe, detendo-se
nos seios e então descendo até os pêlos púbicos dourados e macios.

Cayla permaneceu docilmente imóvel. Não ofereceu mais nenhuma resistência quando os quatro homens que a seguravam a colocaram no chão e a seguraram de pernas abertas
sobre o tapete. Cada um segurava um braço pelos pulsos. Os outros dois prendiam os tornozelos. Afastaram bem as pernas dela. O fotógrafo mudou o foco da lente, passando
para uma imagem de alta definição em close-up dos lábios rosados da genitália. Cayla rolava a cabeça de um lado para o outro.

- Por favor, não faça isto - choramingou. - Por favor...

O homem que estava sobre ela desfez o cinto e deixou as calças largas caírem pelos tornozelos. Olhou para o sexo de Cayla e cuspiu na palma da mão direita. Espalhou
o cuspe sobre a cabeça do pênis para lubrificá-lo. A câmera acompanhou todos os movimentos. O pênis dele endureceu, estendendo-se adiante do emaranhado de pelos
púbicos negros. Era enorme. As veias grossas e azuis se contorciam ao redor da haste como abomináveis ramos de uma videira. Cayla olhou para cima, de olhos arregalados
e muda de pavor. Ele se ajoelhou entre os joelhos dela e se abaixou até Cayla. Ela tentou afastá-lo com chutes, mas o homem segurou as pernas dela abertas. As nádegas
do homem sobre ela eram musculosas e cobertas por uma densa camada de pelos pretos e animalescos. Elas se contraíram e moveram para baixo. Cayla soltou um berro
agudo, e seu corpo inteiro se convulsionou. Enquanto ele se movia em vaivém sobre ela, os outros homens do círculo que observavam colocaram as armas de lado e se
adiantaram formando uma fila, abaixaram as calças e começaram a se masturbar, preparando-se para a sua vez.

Quando um terminava e se levantava, outro o substituía imediatamente. Após o quarto estupro, Cayla permaneceu imóvel, parou de gritar e de se debater. Após o sexto,
ela começou a sangrar, sangrar muito, o vermelho vivo se destacando contra as coxas pálidas. Quando o décimo homem se levantou sorrindo e subindo as calças, a câmera
se afastou para focalizar no rosto de Adam, que assistia a tudo impassível. Ele se virou para a lente.

- Sinto muito que a senhora tivesse que testemunhar isto, sra. Bannock - disse suavemente. - Não acho que sua filha vá aguentar muito mais. A senhora e eu podemos
dar um fim definitivo a isto tudo. Tudo o que tem a fazer é realizar uma transferência bancária para Hong Kong na quantia de dez bilhões de dólares norte-americanos.
A senhora sabe como entrar em contato com as pessoas que estão fazendo isto com Cayla. Receberá os dados bancários assim que avisá-los que está pronta para enviar
o dinheiro.


Durante o dia, Hazel carregava o BlackBerry sob a blusa, pendurado em uma corda ao redor do pescoço. Tinha prendido o aparelho entre os seios com fita adesiva para,
mesmo quando estivesse correndo, saltando de paraquedas e treinando com os homens, poder atender antes do segundo toque. À noite, mantinha-o debaixo do travesseiro
e frequentemente acordava com ele na mão. Era o mais perto que conseguia chegar de Cayla.
Quando ele finalmente tocou, estava sentada à mesa com Hector Cross, na reunião diária que fazia com seus agentes seniores, na sala de situação. As obrigações da
Cross Bow em relação à segurança tinham de continuar a ser cumpridas com toda eficiência. Hector estava bastante consciente de que o inimigo poderia se aproveitar
do caos causado pelo sequestro de Cayla e, a qualquer hora, lançar outro ataque surpresa. A reunião foi encerrada, e Hector olhou ao redor da mesa.

- Alguma pergunta? Ótimo! Não vou mais segurá-los... - a frase foi interrompida pelo toque do BlackBerry sob a camisa safari cáqui de Hazel.

- Meu Deus! - murmurou e, abrindo rapidamente os botões da blusa, retirou o aparelho.

- Deixem-nos a sós! - Hector ordenou de supetão aos homens. - Saiam! Agora!

Eles obedeceram imediatamente, e Paddy O'Quinn os conduziu pela porta, fechando-a atrás de si. Hazel já estava com o telefone ao ouvido e gritando no bocal:

- Alô? Quem é? Fale comigo. Por favor, fale comigo! - Hector alcançou os ombros dela e os sacudiu de leve.

- Hazel, não é uma chamada telefônica. Ou é uma mensagem de texto, ou um arquivo.

Por causa do nervosismo, ela não tinha reconhecido a diferença dos toques. Com uma pressa desesperada, localizou o conteúdo da mensagem.

- Você está certo - falou de súbito. - É um arquivo. Parece ser uma foto ou um vídeo. Sim, é um vídeo! Longo... doze megabytes.

- Espere! Não abra ainda! - Hector tentou detê-la. Teve um pressentimento do mal que avizinhava. Tentou prepará-la. Mas ela não pareceu escutar. Já estava passando
o vídeo na pequena tela do aparelho.

- É a Cayla! - exclamou com alegria. - Ela ainda está viva. Graças a Deus! Venha ver, Cross!

Ele deu a volta ao redor da mesa e ficou do lado dela.

- Coitada da minha bebé, está com uma aparência tão bonita, mas tão trágica.

Na tela, Cayla caminhava em direção aos homens sentados no tapete no círculo de árabes mascarados e armados. O rosto do homem também estava coberto com um xale de
cabeça. Mas a câmera focalizou nele até que apenas a cabeça e os ombros ficassem enquadrados. O homem removeu o xale que escondia o rosto.

- Quem é esse homem, Cross? Você o conhece? - Hazel perguntou com nervosismo.

- Não, nunca o vi antes. Mas a partir de agora jamais irei esquecê-lo - Hector disse em voz baixa. Adam fez seu breve pronunciamento, e ambos escutaram em silêncio,
olhando para a tela fixamente como se estivessem diante de um réptil venenoso.

- ... pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora - Adam finalizou em voz baixa.

- Pagarei - Hazel suspirou. - Pagarei o que for para tê-la de volta.

- Sinto muito, sra. Bannock - o tom de Hector foi gentil -, mas ele está mentindo para a senhora. Tudo o que ele diz é mentira. Trata-se da Besta, e a Besta é mestre
em mentir.

A imagem na tela mudou, e o árabe com a faca avançou sobre Cayla.

- Ele não vai feri-la. Não, ele não pode feri-la. Pagarei o que for. Qualquer coisa para não machucarem mais a minha bebé - o tom de voz dela subiu, histérico.

- Seja corajosa, pela Cayla, seja corajosa.

- Com certeza esses indivíduos são seres humanos, não animais - ela disse. - Não vão machucar uma menina inocente que não lhes fez mal algum.

- Não, eles não são animais. Os animais mais selvagens são nobres e bons em comparação a essas criaturas.

O árabe na tela ficou de pé diante de Cayla e expôs o sexo grotesco. Hazel soluçou e segurou uma das mãos de Hector. Depois, ficou em silêncio enquanto o cenário
de horror começou a se desdobrar. Mas ela tremia como se estivesse ardendo de febre.

- Desligue! - Hector ordenou, mas ela balançou a cabeça e apertou o braço de Hector como se tivesse garras de aço.

Ele mal conseguia acreditar na força. Não se esforçou para se desvencilhar da mão dela; embora a dor tivesse enchido seus olhos d'água, não podia negar qualquer
tipo de conforto que pudesse oferecer. Os múltiplos estupros de Cayla pareceram, para ambos, durar uma eternidade. Hector sentiu a raiva subir pelo sangue como nunca
havia sentido. Quando a imagem de Adam surgiu novamente na tela, Hector encontrou um foco para seu ódio. Encarou o rosto como se quisesse esculpir os traços indelevelmente
na memória. Finalmente o terrível vídeo chegou ao fim, e a tela ficou em branco. Nenhum dos dois se mexeu ou falou por um longo tempo. Continuaram a encarar a tela
vazia.

- Eu pagaria se pudesse - Hazel suspirou.

- A senhora não possui a quantia que eles estão exigindo. Dez bilhões de dólares - disse Hector, mais em tom de declaração do que de pergunta.

Ela balançou a cabeça e soltou a mão dele.

- A Bannock não me pertence. Pertence aos acionistas. Setenta e três por cento do capital social pertence ao fundo do Henry. Eu possuo uma procuração que me confere
poder de voto em relação às ações, mas não posso me livrar delas. Tenho apenas dois e meio por cento do capital integralizado das ações da empresa registrado em
meu nome. Se vender essas ações e o restante do meu patrimônio, é capaz que consiga arrecadar cinco bilhões, ou talvez cinco bilhões e meio. Talvez possa negociar
com eles.

- Nem pense nisso! - Hector disse. - Mesmo que tivesse vinte bilhões, não bastaria. Não é isso que eles querem da senhora.

- O que mais podemos fazer?

- Precisamos detê-los até Uthmann e Tariq voltarem. Diga-lhes que está levantando a quantia, mas que vai demorar. Diga qualquer coisa. Revide as mentiras deles com
as suas.

- E então o quê?

- Não sei - admitiu. - Nesta altura, é a única coisa que sei com certeza.

Hazel se virou na direção dele pela primeira vez desde que o vídeo começara. Era como se nunca o tivesse visto. O rosto dele parecia esculpido a partir de um mármore
pálido e indestrutível. Havia sido expurgado de qualquer emoção humana que não fosse ódio. Os olhos verdes faiscavam. O rosto era como a máscara de Nêmesis.

- Do que você tem certeza?

- De que vou tirar aquela menina dali, e vou matar qualquer um que tentar me deter.

Sentiu uma estranha emoção crescer dentro dela, como uma maré em ascensão. Ele era um homem, o primeiro que conhecera desde que Henry Bannock fora tirado dela. É
por ele que eu estava esperando. Eu o quero, pensou, preciso dele. Tanto eu como a Cayla precisamos dele. Meu Deus, como precisamos.


- Finalmente recebemos um pedido de pagamento de resgate - Hector disse aos homens reunidos na sala de comunicações. Observaram o rosto dele com atenção.

- Quanto? - perguntou Paddy O'Quinn em voz baixa.

- Não importa - Hector respondeu. - Não podemos pagar. Não vamos pagar.

Paddy assentiu.

- Vocês seriam loucos de pedra se pagassem. Mas o que vão fazer?

- Extração a quente - Hector respondeu. - Vamos tirar a menina de lá.

- Você sabe onde ela está? - todos se aproximaram avidamente, como cães de caça ao farejarem o cheiro da presa.

- Não! - recostaram-se nos assentos e não conseguiram disfarçar a decepção. Paddy falou em nome de todos.

- Então parece que temos um pequeno problema.

- Tariq e Uthmann vão voltar logo. Vão ter descoberto onde eles a estão mantendo.

- Tem certeza disso? - Paddy perguntou.

- Alguma vez eles fracassaram?

Ninguém respondeu por alguns momentos. Paddy comentou a seguir:

- Tem sempre uma primeira vez.

- Escute, Zé Pessimista, digo a você que a probabilidade é de dez para um se você apostar cem libras. Aguente ou fique calado.

- Onde eu vou arranjar essa quantia com o que você me paga?

- Certo! Quando Tariq e Uthmann voltarem, temos de estar preparados para partir imediatamente. Onde quer que formos, há apenas um modo de entrar. Saltamos à noite
de uma grande altitude.

Eles assentiram concordando.

- Não muitos, um grupo de dez homens. Todos os nossos falantes de árabe que puderem se passar por nativos.

- Em vez de chegar de pará-quedas, por que não usar o helicóptero da empresa? - Hazel perguntou.

- Eles nos ouviriam chegar. Uma aterrissagem noturna, ainda mais em um helicóptero? Não, obrigado - Hector recusou a oferta dela bruscamente, mas ela não demonstrou
estar ressentida.

- Ok, podem usar o meu jato.

- Nunca saltei de um Gulfstream antes - o olhar de Hector percorreu a sala. - Alguém já fez isso?

Eles balançaram a cabeça, e ele olhou novamente para Hazel.

- Não acho que seja uma boa ideia. Existe o problema da pressurização da fuselagem e da localização da porta, em frente à asa. A asa pode decapitar você quando saltar.
E, também, a velocidade do avião... Não, acho que teremos de escolher algo menos exótico.

- Que tal o Bernie Vosloo? - Paddy sugeriu.

- Estava pensando justamente nisso - Hector assentiu e se virou para Hazel. - Ele e a mulher operam uma aeronave de transporte, um Hércules C-130 antigo, levando
carregamentos pesados pela África e pelo o Oriente Médio. Não são frescos quanto ao que transportam, e sabem como manter o bico bem fechado. Já utilizei os serviços
deles várias vezes. O Hércules tem uma fuselagem parcialmente pressurizada e pode chegar a uma altitude de 6.400 metros se levar um chute no traseiro. A essa altura,
o barulho para quem está embaixo não será muito maior do que o de um gato mijando num pedaço de veludo.

Hazel nunca tinha ouvido a expressão antes e tentou manter o rosto elaboradamente sério enquanto tentava reprimir um sorriso, mas os olhos dela cintilaram como luzes
de Natal. Olhos absolutamente maravilhosos, pensou Hector, mas me distraem. Ele desviou o olhar dela para os homens.

- No entanto, não queremos saltar de 6.400 metros, portanto o Bernie vai acelerar bem menos para manter o nível de ruído baixo, e poderemos descer até três mil metros.
Nesse nível, ele pode despressurizar a cabine, e nós podemos pular. Como sempre, nos manteremos próximos durante a queda para atingirmos o chão em conjunto, e vamos
estar completamente equipados para lidar com um comitê hostil de boas-vindas.

- O que vem depois? - Dave Imbiss perguntou.

- Não se preocupe com isso, David, meu filho. Você não vai estar presente, nem você nem seu rostinho rosado de bebÉ - Hector respondeu e prosseguiu. - Essa é a parte
fácil. A difícil será a viagem de volta. Como sempre, há três possíveis saídas: terra, mar e ar. A passagem de primeira classe será para o helicóptero da empresa
- acenou com a cabeça para Hans Lategan, que estava sentado na fileira do fundo. - Hans estará à espera no helicóptero, na fronteira com o país civilizado mais próximo,
preparado para captar o nosso sinal de chamada e ir nos buscar. Isso deve ser suficiente - fez uma pausa -, mas todos estamos cientes do que pode acontecer aos planos
dos ratos e dos homens, portanto, vamos cobrir as outras duas rotas de saída. Tenho certeza de que eles estão mantendo a srta. Bannock prisioneira ou na Puntlândia
ou no Iêmen. Os sujeitos são piratas, portanto, nunca ficam muito longe do litoral.

Hector projetou o mapa no telão da parede e moveu o cursor sobre a área para demonstrar o que estava dizendo.

- Independente do que aconteça, Ronnie Wells vai estar nos esperando em seu torpedeiro na zona marítima - olhou para Ronnie na fileira do fundo, sentado ao lado
de Hans. - Que velocidade pode alcançar naquela banheira velha?

- Com meus novos tanques auxiliares no convés, pode chegar a mais de mil milhas náuticas - Ronnie respondeu. - E agradeço se você lembrar que ela não é uma "banheira
velha". Se eu acelerar, pode chegar aos quarenta nós.

- Desculpe pela escolha infeliz de palavras, Ronnie - disse Hector com um sorriso. - Portanto, o Ronnie vai estar esperando para proporcionar a todos vocês que conseguirem
chegar até a praia um cruzeiro de lazer pelo Mar Vermelho no caminho para casa.

- E se nem Hans nem Ronnie conseguirem cumprir o combinado, o que acontece, então?

Ah! É aí que você entra, Paddy. Você vai estar esperando na primeira fronteira em terra firme com uma coluna de caminhões. Se o alvo for o Iêmen, você ficará ou
na fronteira da Arábia Saudita, ou do Omã. Se o alvo for a Puntlândia, ficará na Etiópia esperando para ir nos buscar. Bernie Vosloo e a mulher podem levar você
e os caminhões até o local de avião, assim que soubermos aonde vamos. A propósito: não se esqueça de jeito nenhum de levar o médico junto. Com certeza alguém sairá
ferido se formos pela rota etíope - Hector olhou para o círculo de rostos ao redor. - Então, todo mundo tem trabalho a fazer. Quero estar pronto para partir dentro
de 24 horas assim que tomarmos conhecimento do alvo, isso pode acontecer a qualquer hora. Vamos nos mexer!

Assim que os demais saíram da sala, Hector ligou para Bernie Vosloo do telefone via satélite. Hazel estava escutando na extensão.

- Bernie, é Hector Cross. Onde você e a sua encantadora patroa estão?

- Oi, Heck. Estou em Nairóbi, mas não por muito tempo. Ainda está vivo? Aqueles caras bronzeados são ruins de alvo, não são?

- A pontaria deles é boa, eu é que aprendi a desviar. Escute, Bernie, tenho um trabalho para você.

Bernie deu uma risadinha.

- Você e o resto da África, Heck. Nella e eu temos pilotado sem parar, dia e noite. Amanhã nos mandamos para a República Democrática do Congo, aquela fossa de país
de nome irônico.

- Venha para Abu Zara. O clima e a cerveja são excelentes aqui.

- Desculpe, Heck. Tenho um contrato a cumprir. Um cliente importante. Não posso deixá-lo na mão.

- Qual é o valor do contrato?

- Cinquenta mil - Hector cobriu o bocal com uma das mãos e olhou para Hazel no outro lado.

- Qual é o meu limite? - suspirou.

- Com quem você está falando? - Bernie indagou com rispidez.

- Com a adorável senhora para quem trabalho. Aguarde um pouco, Bernie.

- O necessário para conseguir contratá-lo - Hazel suspirou em resposta e escreveu "um milhão de dólares" no bloco de anotações à sua frente, virando-o na direção
dele para que pudesse ver.

- Isso é loucura! - Hector balançou a cabeça e falou no bocal - Pagamos 250 mil dólares.

Bernie permaneceu calado por alguns momentos e disse a seguir:

- Adoraria ajudar. Desculpe, Heck. Mas é a minha reputação em jogo.

- Nella está aí?

- Sim, mas...

- Mas nada! Coloque-a ao telefone - o forte sotaque africaans de Nella surgiu na linha.

- Ja, Hector Cross. Qual é a enrolação desta vez, cara?

- Só liguei para dizer que amo você.

- Beije a minha bunda, Cross!

- Nada me daria mais prazer, Nella. Mas você tem de se divorciar do cretino do seu marido primeiro. Sabe o que ele acabou de fazer? Recusou a minha oferta de meio
milhão por dez dias de trabalho.

- Quanto? - Nella perguntou pensativa.

- Meio milhão.

- De dólares? Não de dinheiro africano do Banco Imobiliário?

- Dólares - confirmou -, adoráveis verdinhas norte-americanas.

- Onde você está?

- Em Sidi el Razig, Abu Zara.

- Chegaremos depois de amanhã para o café da manhã. E amo você também, Hector Cross.


Hector, Hazel e quatro agentes da Cross Bow estavam esperando na pista quando o monstruoso quadrimotor de transporte deu a volta e iniciou o procedimento de aproximação,
descendo num ângulo bastante inclinado.

- Nella está operando os controles - Hector disse com convicção.

- Como você sabe? - indagou Hazel.

- Bernie pilota como uma velha donzela. Nella é a personificação da cowgirl de rodeio de Germiston, a cidade que teria de ser entubada se alguém quisesse causar
um enema no mundo.

- Não seja grosseiro. Meu avô por parte de pai nasceu em Germiston.

- Aposto que, em outros aspectos, ele era um sujeito esplêndido.

O Hércules C-130 tocou o solo, foi desacelerando pela pista e manobrou para o lado para estacionar próximo de onde eles estavam, as hélices contra-rotativas espalhando
uma nuvem de areia pinicante sobre eles. Nella desligou os motores e estendeu a rampa pela porta traseira da fuselagem. Ela e Bernie desceram da aeronave. Nella
era uma loira robusta de rostinho de bebé. Vestia um macacão de camuflagem. As mangas haviam sido cortadas, o que revelava uma tatuagem de um anjo em voo no carnudo
braço direito. Era mais alta do que o marido.

- Ok, Heck, o que quer que a gente faça por meio milhão? Se conheço bem você, aposto que não vai ser moleza - disse ao trocarem um aperto de mão.

- Como sempre, acertou em cheio.

- Apresente-nos para sua namorada - Nella lançou um olhar penetrante sobre Hazel, tentando não demonstrar ciúmes.

- Quanto ao nosso relacionamento, Nella, meu amor, acho que você cometeu um pequeno engano. Esta é a sra. Bannock, minha chefe e sua. Portanto, um pouco de respeito
é recomendável. Venham, vamos até o terminal, onde podemos conversar.

Eles foram amontoados em duas caminhonetes Humvee. Sentaram-se à mesa comprida da sala de situação, e Hector explicou o problema aos Vosloos. Quando terminou, ficaram
todos em silêncio por alguns momentos, e então Nella olhou para Hazel.

- Também tenho uma filha. Graças a Deus, arrumou um homem bom na Austrália. Mas sei como deve estar se sentindo - disse, esticando um dos braços até Hazel no outro
lado da mesa e cobrindo a mão sedosa de Hazel com sua enorme pata encardida de óleo de motor e sujeira. As unhas eram curtas e quebradas.

- Levaria a senhora de graça se me pedisse, sra. Bannock.

- Obrigada, Nella. Você é uma boa pessoa. Dá para ver.

- Pelo amor de Deus, mulheres. Chega. Vão me levar às lágrimas se não pararem - Hector interrompeu. - Há apenas um problema. Não temos certeza de onde ou quando
estamos indo. Mas será para perto e logo.

- Logo quando? - Bernie Vosloo perguntou. - Não podemos passar semanas aqui esperando. Cada dia que passamos no chão nos custa dinheiro.

- Controle essa boca, Bernie Vosloo! - Nella sussurrou para ele. - Não ouviu eu dar a minha palavra para a senhora?

- Ele está certo! - disse Hazel. - É claro que pagarei pelo tempo parado. Vinte mil pelo primeiro dia, acrescidos de mais dez mil por cada dia que permanecerem em
terra.

- A senhora não precisa fazer, isso sra. Bannock - Nella parecia constrangida.

- Sim, preciso - Hazel replicou. - Agora vamos ouvir o que o sr. Cross tem a dizer.


Foram necessários quatro dias, mas estavam todos preparados. Ronnie Wells e três de seus homens desceram no torpedeiro até o Golfo e ao redor de Ras el Mandeb. Estava
ancorado em uma angra deserta na costa saudita, bem ao norte da fronteira com o Iêmen e do outro lado do estreito da Puntlândia. Ronnie usou as latas que carregava
no convés para reabastecer os tanques de combustível e estava em total e constante contato com Sidi el Razig.

O Hércules permaneceu na borda da pista atrás do minúsculo terminal do aeroporto. A aeronave continha três das caminhonetes GM de longa distância da Cross Bow fixados
no porão e um pequeno tanque de duas rodas de 750 galões à gasolina, que poderia ser acoplado à traseira de um dos outros veículos. As caminhonetes estavam lotadas
de equipamento e cada uma carregava um par de metralhadoras pesadas Browning, calibre .50, escondidas sob o oleado. Podiam ser montadas em alguns minutos, e seu
poder de fogo era devastador.

Hector havia ensaiado o procedimento de queda com Bernie e Nella. Assim que obtivessem o alvo, decolariam ao anoitecer e o sobrevoariam. Bernie e Nella tinham realizado
dezenas de saltos de paraquedas. Eram peritos. Assim que o grupo de Hector saltasse, o Hércules voaria até o aeródromo da fronteira em questão. Chegando lá, pousaria
e Paddy e Dave descarregariam as caminhonetes e se colocariam em posição de escuta e espera o mais perto da base do inimigo que fosse seguro e viável. Quando recebessem
o chamado de Hector pelo rádio, iriam em disparada até a fronteira em direção ao encontro combinado.

Esses dois veículos eram os menos desejáveis para a retirada. Hector estava contando fortemente com Hans Lategan e o grande helicóptero russo MIL-26 da Bannock Oil
para uma retirada organizada e rápida. A pintura vermelha e branca, nas cores da Bannock Oil, já havia recebido uma camada de spray nas cores verde e marrom de camuflagem.
Ficaria de prontidão na fronteira mais próxima, completamente abastecido.

Hazel tinha enviado uma resposta ao pedido de resgate, garantindo à Besta que estava fazendo tudo o que podia para arrecadar a quantia exigida, mas declarando que,
levando em conta o valor em questão, iria levar tempo. Esperava ter a quantia total pronta para ser enviada, de acordo com instruções, dentro de vinte dias. Não
recebeu um retorno, o que a deixava incessantemente aflita. Não restava nada a fazer a não ser esperar, mas Hazel Bannock não era boa de espera. Após o final da
conferência diária com o seu pessoal em Houston e de falar com o coronel Roberts, sobravam ainda dezoito horas a serem preenchidas.

Todas as manhãs Hector a levava para verificarem a chegada do voo local de passageiros de Ash-Alman, a capital de Abu Zara. Escaneavam os rostos de todos que desembarcavam,
mas Uthmann e Tariq nunca estavam entre eles. Até mesmo alguém como Hazel tinha um limite de resistência atlética, portanto eles não podiam passar mais do que sete
ou oito horas diárias correndo pelas dunas, ou praticando mergulho livre no paraíso de corais da enseada. Felizmente, não era difícil falar com ela agora que havia
começado a confiar um pouco em Hector e a baixar a guarda alguns centímetros. Quando discutiam política, ele começou a detectar uma tendência para a direita em relação
à sua instância original. No entanto, ela se opunha veementemente à pena de morte e acreditava na santidade da vida humana.

- Você está dizendo que não existe um único troglodita horrível neste mundo, não importa o quanto ele seja ruim, que não mereça morrer? - Hector indagou.

- A decisão permanece nas mãos de Deus. Não conosco.

- O velho lá em cima suspirou vezes suficientes nos meus ouvidos quando tenho um troglodita na minha frente, "destrua-o, Hector, meu camarada!". Quando o Senhor
chama, Hector Cross obedece.

- Você é totalmente pagão - ela mal conseguia esconder o sorriso.

Ele descobriu que ela era religiosa à moda antiga, que acreditava sublimemente na onipresença e onipotência de Jesus Cristo.

- Então, você acredita que, todas as vezes que ajoelha para rezar, J.C. está sintonizado na frequência do seu chamado? - ele perguntou.

- Espere para ver, Cross. É tudo o que tem a fazer.

- Dá para ver que a senhora tem batido papo com ele recentemente - ele acusou, e ela sorriu como a esfinge.

Essas discussões, e outras semelhantes, eram boas para passar o tempo. E, certo dia, após o jantar, ela reparou no jogo de xadrez barato em uma prateleira atrás
do bar do refeitório, e o desafiou para uma partida. Ele não jogava desde que tinha terminado a faculdade. Sentaram-se frente a frente com o tabuleiro no meio, e
ele logo descobriu que ela não se importava muito com a defesa, e que confiava em atacar agressivamente com a rainha. Uma vez que suas torres unissem forças, era
quase impossível contê-la. Porém, duas vezes ele conseguiu encurralar o rei e a rainha de Hazel com o cavalo. Após uma série de partidas disputadas, acabaram praticamente
em pé de igualdade.

E então, após o quinto dia desde a chegada de Bernie e Nella a Sidi el Razig, Hector disse:

- Sra. Bannock, vou levá-la para jantar hoje à noite, quer a senhora goste ou não.

- Continue assim e talvez consiga me convencer - ela disse. - Devo me vestir para a ocasião?

- Para mim, a senhora está bem como está.

Ele a levou de carro até uma faixa praiana cinco quilômetros adiante na costa. Ela ficou observando enquanto ele montava a churrasqueira.

- Ok, você sabe fazer fogo como um escoteiro mediano, mas qual é o cardápio?

- Venha, temos de ir às compras.

Restava apenas uma hora até o sol se pôr, mas eles nadaram por algumas centenas de metros até o recife de corais secreto de Hector. Após três mergulhos, ele conseguiu
pegar dois bodiões vermelhos como morangos, de quase três quilos cada, e duas lagostas grandes. Ela se sentou em uma toalha de piquenique com as pernas encolhidas
sob o corpo e uma taça de Burgundy em punho, enquanto assistia a Hector cozinhar.

- O jantar está servido - anunciou finalmente, e eles comeram com as mãos, arrancando a carne branca e suculenta da espinha do bodião e chupando a carne das pernas
encapadas das lagostas. Jogaram as sobras no fogo e observaram enquanto queimavam até esturricar. Depois, Hazel se levantou.

- Aonde você vai? - ele perguntou em um tom preguiçoso.

- Nadar - ela respondeu. - Pode vir junto se tiver vontade.

Ela levou as mãos para trás e abriu o fecho da parte de cima do biquíni. A seguir, colocou os polegares dentro do elástico da calcinha e se desvencilhou dela, que
caiu pelos tornozelos. Ela chutou a bela peça para o ar e ficou ali por um instante, de frente para ele. Ele ficou sem ar, chocado de prazer. O corpo dela era o
de uma mulher no auge absoluto - tonificado e com os seios firmes, o abdômen liso e rígido, os quadris se projetando com orgulho da linhas perfeitas da cintura,
como um vaso etrusco. Era uma mulher natural, não se depilava como era a moda hoje em dia, no estilo vedete pornô. Ela riu da cara dele, de um jeito provocante e
malicioso, e depois virou de costas e correu pela praia para mergulhar em uma pequena onda e nadar até águas mais profundas com braçadas poderosas. Lá, boiou de
costas e, ainda rindo, observou-o pulando em um pé só na areia antes de se desvencilhar da sunga.

- Vou pegar você, sua raposa! - gritou para esquentar o clima e saiu correndo pela praia.

Ela se encolheu de medo, deliciada, fazendo a água espumar ao nadar para longe dele. Hector a alcançou, e ela virou o rosto para ele, que procurou a boca de Hazel
com a própria. Ela colocou as mãos nos ombros dele de maneira submissa, até que os lábios dele estivessem a poucos centímetros. Então, Hazel se ergueu bem acima
dele, fazendo-o afundar. Quando ele emergiu cuspindo água, ela estava dez metros adiante. Hector disparou atrás dela, mas ao esticar o braço para agarrá-la, ela
suspendeu ambas as pernas no ar, tombou o corpo em L e mergulhou fundo nas águas escuras. Ele a perdeu de vista e boiou, virando-se devagar para vê-la emergir novamente.
Ela surgiu mais próxima à praia, e ele foi nadando na mesma direção, girando os braços e batendo os pés, deixando uma trilha de espuma para trás. Ela mergulhou de
novo, como um corvo-marinho pescador. Estava, vagarosa e desonestamente, atraindo-o de volta ao raso.

De repente, Hazel se levantou, com a água pela cintura. Ela esperou por ele e então correu ao seu encontro. Eles se encaixaram, respiração e ventre. Ela o sentiu
contra o corpo, rígido e enorme, tão pronto quanto ela. Ela lançou os braços ao redor do pescoço de Hector e prendeu os quadris dele com ambas as pernas. Foram necessários
alguns momentos de manobras frenéticas de ambas as partes antes que eles pudessem se alinhar perfeitamente, e então ele deslizou para dentro dela. Ela teve a impressão
de que ele chegaria até o coração.

- Meu Deus. Era o que eu estava esperando, por tanto tempo - ela respirou e se entregou a ele sem perguntas nem reservas.


Passava da meia-noite quando eles retornaram aos edifícios doterminal. Ele a acompanhou até o quarto e teria se despedido na porta com apenas um beijo demorado.

- Não seja bobo - ela disse, mantendo a porta aberta. - Entre.

- O que as pessoas vão pensar?

- Usando a sua terminologia erudita, eu não estou nem aí! - Hazel respondeu.

- Que grande ideia! Vamos lá - ele riu e a seguiu pela porta, fechando-a atrás de si.

Eles tomaram banho juntos, sem inibições, deliciando-se com o corpo um do outro enquanto enxaguavam a areia da praia e o sal. A seguir, foram para a cama.

- Hemingway chamava a cama dele de pátria - Hector comentou quando os dois deslizaram para baixo dos lençóis.

- O velho Ernie tem o meu voto - ela riu ao chegar pelo outro lado, encontrando-o no meio da cama.

Fizeram amor com alegria e carinho, mas a sombra da tragédia continuava a tingir a felicidade dos dois. Quando se cansaram momentaneamente, ela deitou nos braços
dele com o rosto encostado no peito nu e chorou baixo, mas com amargura. Ele acariciou o cabelo dela, compartilhando a agonia.

- Eu vou junto quando você for buscar a Cayla - ela disse. - Não consigo ficar aqui sozinha. Só aguentei até agora por sua causa. Sou tão durona quanto qualquer
um dos seus homens. Posso cuidar de mim durante uma crise, você sabe disso. Você tem de me levar junto.

- Você sabia que tem os olhos mais azuis e bonitos do mundo? - ele disse.

Ela se sentou e olhou para ele furiosa.

- Você está fazendo suas piadinhas idiotas numa hora destas?

- Não, minha querida. Estou dizendo que você não pode vir comigo.

Ela balançou a cabeça sem compreender, e ele prosseguiu:

- É possível que as coisas não corram conforme o planejado. Podemos ficar encurralados e ter de nos misturar à população local e cavar o caminho da saída. Os árabes
chamam olhos como os seus de "olhos do demônio". O primeiro inimigo que olhar para o seu rosto saberá o que você é. Se eu levá-la comigo, isso diminui as chances
de um resgate seguro de Cayla pela metade.

Hazel olhou fixamente para ele por um longo tempo, em seguida, abaixou os ombros e escondeu o rosto no peito dele novamente.

- Esse é o único motivo que me faria ficar - ela suspirou. - Não faria nada que reduzisse as chances de resgatá-la. Você vai tirá-la de lá, Hector? Vai trazê-la
de volta para mim?

- Sim, vou.

- E você? Vai voltar para mim? Acabei de encontrá-lo. Não posso perder você agora.

- Eu vou voltar, prometo, com Cayla ao meu lado.

- E eu acredito em você - ela disse.

Ela permaneceu agarrada a ele. Hector mal podia ouvir a respiração dela. Tomou cuidado para não se mexer e incomodá-la. Ela acordou assim que a luz da aurora se
infiltrou pelas cortinas.

- Essa foi a primeira noite em que dormi direto desde que Cayla... - ela não terminou a frase. - Estou morrendo de fome. Vamos tomar o café da manhã.

A grande Nella chegou ao refeitório antes deles, e tinha uma enorme travessa com ovos mexidos, bacon e linguiça diante dela. Ela ergueu o olhar até Hazel, e um flash
de entendimento intuitivo passou entre as duas. Nella baixou os olhos até o prato e sorriu.

- Mazel tov! - ela disse aos ovos, e Hazel corou.

Hector jamais teria acreditado que ela fosse capaz de tal coisa, e o fenômeno o deixou espantado - para ele, era algo mais encantador do que o pôr do sol. Após comerem,
ele levou Hazel até o Humvee no lado de fora. Ela se sentou ao lado dele no banco da frente, e Hector encostava na perna dela todas vezes que trocava a marcha, o
que a fazia sorrir modestamente. Ele estacionou o Humvee à sombra sob a asa do Hércules, pois mesmo a essa hora o sol já estava desconfortavelmente quente. Agora
podiam ficar de mãos dadas. O Fokker F-27 Friendship estava apenas meia hora atrasado.

- Em termos de Abu Zara Airways, está quase adiantado - Hector disse a ela enquanto observavam a aeronave taxiar em frente ao edifício do terminal e desligar os
motores. Os cerca de vinte passageiros começaram a desembarcar, e Hector os observou sem grandes expectativas. Eram quase todos árabes em trajes tradicionais, carregando
seus pertences em trouxas e pacotes. De repente, Hector se contraiu e apertou a mão dela com força.

- Filhos da mãe! São eles! - praguejou em voz baixa.

- Onde? - Hazel se endireitou no assento. - Para mim, parecem todos iguais.

- Os dois últimos. Posso reconhecê-los a um quilômetro de distância só pelo andar.

Deu uma buzinada curta e ligou a ignição do Humvee. Os dois árabes olharam para eles, caminhando em sua direção. Subiram no banco de trás.

- Que a paz esteja com vocês! - Hector os saudou.

- Em paz, você esteja - responderam em uníssono.

Hector dirigiu por um quilômetro e meio ao longo da pista acima da praia antes de estacionar.

Hazel se virou no assento para olhar para os dois homens na parte de trás.

- Isso está me enlouquecendo! - disse de supetão. - Eu preciso saber! Descobriram onde minha filha está, Uthmann?

- Sim, sra. Bannock. Descobrimos. Eu estava hospedado na casa do meu irmão Ali em Bagdá. Ele me pareceu diferente. Acredita que o único caminho a ser seguido pela
nossa nação é a rota da Jihad. Ele é um combatente mujahid e está fortemente aliado à Al-Qaeda. Sabe que não concordo com o ponto de vista dele, mas somos irmãos
e unidos pelo sangue. Jamais revelaria qualquer coisa relativa às atividades dele na jihad, mas após essas últimas semanas que passei na casa do meu irmão, o comportamento
dele se tornou mais relaxado e menos sigiloso. Ele normalmente usa um celular e nunca faz telefonemas de negócios de casa. Há alguns dias, cometeu o erro de pensar
que eu tinha saído com a mulher dele para vistar uns amigos, mas eu estava no andar de cima da casa quando Ali usou a linha fixa para falar com um dos seus colegas
na Al Qaeda. Escutei a conversa pela extensão. Estavam discutindo a captura e o aprisionamento da sua filha, e um deles mencionou que ela tinha sido levada por membros
do clã do xeique Khan Tippoo Tip.

- Tippoo Tip! É o mesmo nome do camareiro que estava a bordo do Golfinho. Mas quem é esse xeique? - Hazel indagou, e Uthmann respondeu.

- É um senhor da guerra, e o chefe de um dos clãs mais poderosos da Puntlândia.

Hector tocou os ombros dele.

- Como sempre, você provou seu valor, meu velho amigo - disse.

- Espere! Tenho mais coisas para contar - Uthmann balançou a cabeça demonstrando tristeza. - Você se lembra dos homens que matou a tiros em Bagdá há muitos anos?

Hector assentiu.

- Os três jihadistas que detonaram a bomba na beira da estrada - olhou de lado para Tariq. - É claro que Tariq e eu nos lembramos deles.

- Sabe como se chamavam?

- Não - Hector admitiu -, aparentemente, estavam todos usando codinomes. Nem mesmo o Departamento de Inteligência Militar conseguiu identificá-los. O que você descobriu,
Uthmann?

- O homem que você matou se chamava Saladin Gamel Tippoo Tip. Era filho do xeique Tippoo Tip e pai de Adam Tippoo Tip. O xeique declarou uma rixa de sangue a você
- Hector olhou para ele sem dizer nada, e Uthmann prosseguiu. - O dhow que você e Ronnie Wells destruíram tinha cinco homens a bordo. Haviam sido enviados pelo xeique
Khan para se vingar da morte do filho mais velho. Entre os que morreram, estava Gafour Tippoo Tip, o quinto filho do xeique. A dívida de sangue foi então dobrada.
O xeique enviou um terceiro filho para encontrá-lo e vingar os irmãos...

- O que se chamava Anwar! - Hector exclamou. - Meu Deus! Jamais irei esquecê-lo. Em seu último suspiro de vida, ele zombou de mim, dizendo: "O meu nome é Anwar.
Lembre disso, Cross, seu grande porco. A dívida não foi sanada. A Disputa Sangrenta continua. Outros virão".

Tariq assentiu.

- É exatamente o que está dizendo, Hector.

- Onde podemos encontrar essa criatura chamada xeique Tippoo Tip? - Hector perguntou.

Tariq respondeu sem hesitar:

- Eu o conheço. A fortaleza dele fica na Puntlândia.

- Puntlândia! Esse nome vive surgindo - Hazel interveio.

- É uma província rebelde da Somália. A Puntlândia é território do Tariq - Hector explicou, olhando novamente para Tariq. - É o que estávamos esperando. O que tem
a nos dizer sobre esse troglodita?

- Apenas o que todo mundo na Puntlândia sabe: que a fortaleza de Tippoo Tip se situa na região noroeste do país, em um lugar chamado "Oásis do Milagre". Fica no
sul da principal rodovia da província, perto do pequeno vilarejo de Ameera.

- Você conhece a área? - Hector indagou, mas Tariq balançou a cabeça.

Hector o conhecia tão bem que não teve dúvidas de que ele estava mentindo ou, pelo menos, contando apenas parte da verdade.

- Ok - Hector não precisava de outra confirmação. - Precisamos descobrir tudo o que pudermos a respeito de Tippoo Tip e da fortaleza. Precisamos de mapas da área.
Tenho de retornar ao terminal e botar todo mundo para trabalhar.

Quando se encontravam reunidos novamente ao redor da mesa, Hector olhou para todos antes de falar.

- Bem, nós agora sabemos para onde vamos. Alguém aqui além do Tariq conhece um lugar na Puntlândia chamado Oásis do Milagre, ou o vilarejo de Ameera? Esses são os
nossos alvos.

Todos pareciam surpresos. Hector se dirigiu a Dave Imbiss.

- Dave, entre no site do Google Earth. Tariq vai apontar os alvos no mapa. Quero cópias das fotos de satélite da área. Quero saber a distância de avião. Quero saber
qual é a pista mais próxima na Etiópia, e a distância de carro de lá até o nosso alvo - fez uma pausa e olhou para Bernie e Nella. - Ou vocês dois têm alguma ideia
a respeito disso? Conhecem uma pista de pouso adequada?

- Jig Jig! - disse Nella, que soltou uma gargalhada histérica e deu um cutucão com um dos cotovelos nas costelas de Bernie, fazendo-o se encolher.

- Um terreno de pouso com um nome desses? - Hector levantou uma das sobrancelhas. - Interessante!

- Foi Nella quem deu o nome, não eu - Bernie protestou enquanto se endireitava e esfregava as costelas. - Não sei qual é o nome verdadeiro, provavelmente não tem.
É uma antiga faixa militar italiana abandonada da Segunda Guerra Mundial. Está em condições deploráveis, mas o Hércules não se importa com terrenos acidentados.

- Fizemos um pouso de emergência lá, certa vez - Nella ainda estava rindo esfuziantemente. - Fui acometida de um fogo incontrolável e nós aterrissamos para o Bernie
sossegar o meu facho. Foi maravilhoso. Um dos seus melhores desempenhos de todos os tempos. Nunca esquecerei.

Bernie manteve a postura sóbria, apesar das explosões de riso e da frivolidade em si.

- Está situada em um local perfeito, a menos de cinquenta quilômetros da fronteira da Puntlândia, mas o melhor de tudo é: não há nenhum oficial presente, nem polícia,
nem imigração - disse Bernie.

- Soa como se tivesse sido feita para nós. Mostre ao Dave a localização no mapa. Nella, você acha que consegue se conter quando aterrissar lá de novo? Chega de transas
indiscriminadas! - ele se virou para Paddy. - Paddy, contate Ronnie Wells pelo rádio e diga a ele para atravessar com o torpedeiro para o litoral da Puntlândia e
encontrar um ancoradouro seguro o mais próximo possível do alvo. Avise-nos quando ele chegar lá.

Durante todo o tempo em que estava distribuindo as ordens, estava ciente que Tariq o observava dissimuladamente. Finalmente, lançou um olhar direto para ele, e Tariq
sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente, levantando-se a seguir e saindo da sala. Hector aguardou um minuto e disse para Paddy O'Quinn.

- Continue a reunião. Não vou demorar.

Saiu à procura de Tariq e, após alguns minutos, avistou-o atrás de uma das caminhonetes estacionadas. Estava fumando um cigarro, desprezando a placa na lateral do
veículo que dizia "Proibido Fumar". Quando viu Hector se aproximar, esmagou o cigarro sob a sola do sapato e saiu andando ao longo do oleoduto. Hector o seguiu e
o encontrou agachado atrás de uma das estações de bombeamento.

- Fale comigo, amado do Profeta - Hector pediu ao se agachar ao lado dele.

- Não podia falar na frente dos outros - Tariq explicou.

- Nem mesmo do Uthmann?

Tariq deu de ombros.

- Você acha mesmo que Uthmann conseguiu reunir todas aquelas informações sobre o clã Tippoo Tip simplesmente porque escutou sem querer uma conversa do irmão ao telefone?
Meu receio é em relação à minha família, mestre. Não posso correr riscos.

- Há uma certa verdade no que você diz, Tariq - Hector assentiu pensativo.

Apesar do profundo afeto que sentia por Uthmann, sentiu os vermes da traição se movimentando nos intestinos.

Tariq respirou fundo e disse:

- Minha tia se casou com um homem do vilarejo de Ameera, bem perto do Oásis do Milagre. Quando eu era criança, passava vários meses lá todos os anos. Conduzia os
rebanhos com meus primos. Vi a fortaleza de Tippoo Tip muitas vezes, mas apenas a distância. Mas isso foi há muito tempo, e talvez a minha tia esteja morta agora.

- Mas talvez não esteja. Talvez ainda trabalhe na fortaleza. Talvez saiba onde estão mantendo a menina. Talvez ainda o ame o bastante para mostrar como entrar na
fortaleza e onde encontrar a menina.

- Talvez - Tariq sorriu e acariciou a barba. - Talvez todas essas coisas sejam verdade.

- Talvez você devesse visitar sua tia e descobrir.

- Talvez - Tariq assentiu.

- Talvez você deva partir hoje à noite. Vamos lançá-lo do Hércules próximo a Ameera. Vou dar um dos telefones de satélite para você. Ligue para mim assim que fizer
contato com sua família. E isso não é talvez.

- Como sempre, ouvi-lo é obedecê-lo, Hector - Tariq assentiu, e seu sorriso se tornou mais largo.

Hector deu um soco de brincadeira em seu ombro e começou a se levantar, mas Tariq colocou a mão em um de seus braços.

- Espere, tenho mais uma coisa para contar - Hector se agachou novamente ao lado dele. - Se conseguirmos pegar a menina, vários homens virão no nosso encalço. Vão
estar em caminhonetes quatro por quatro. Vamos estar a pé com a menina. É capaz que ela esteja fraca e doente depois do que fizeram com ela. Talvez tenhamos de carregá-la.

- Diga o que sugere.

Ao norte da fortaleza, há uma ravina funda e rochosa. Estende-se, de leste a oeste, por 112 quilômetros. Podemos atravessá-la a pé, mas até mesmo um veículo de tração
nas quatro rodas não conseguirá nos seguir. Terão que se deslocar por cerca de cinquenta ou sessenta e cinco quilômetros na direção leste para atravessarem o wadi,
o vale. Assim que atravessarmos o vale, teremos uma dianteira de duas ou três horas, ou até mais.

- Você merece ser recompensado com uma centena de virgens! - Hector disse sorrindo.

- Ficarei contente com uma - disse Tariq retribuindo o sorriso -, mas uma das boas.

Hector o deixou agachado à sombra da casa de bombeamento enrolando mais um cigarro.

Assim que Hector entrou na sala de situação, Dave se dirigiu a ele.

- Essas são as fotos de satélite do Google Earth da área, chefe - ele tamborilou os dedos sobre os mapas estendidos na mesa à sua frente. - O vilarejo de Ameera
está sinalizado, mas não consigo encontrar nada em relação ao Oásis do Milagre.

- Vamos dar uma olhada - Hector estudou a fotografia em alta resolução e depois bateu com um dos indicadores sobre ela. - Aqui está! - exclamou. - Mo'jiza. O milagre.
Passe as coordenadas, Dave.

Enquanto Dave fazia os cálculos, Hector continuou a analisar o mapa. Agora que sabia o que e onde procurar, encontrou o vale imediatamente. Pegou a lupa de Dave
e examinou o wadi cuidadosamente. A informação fornecida por Tariq se confirmou - nenhuma estrada ou trilha atravessava o vale.

Endireitou as costas e foi até onde se encontravam Bernie e Nella, no lado de fora, tragando seus cigarros. Hector falou com eles em voz baixa:

- Hoje à noite, quero que vocês deixem o Tariq o mais próximo possível do vilarejo de Ameera. Ele está sendo infiltrado para fazer um reconhecimento da área. Depois
disso, vão prosseguir diretamente até a pista de Jig Jig com o Paddy e a gangue dele, que vão estar a bordo. Vão descarregá-los e as caminhonetes e depois voltar
aqui para Sidi el Razig - através da abertura da porta, ele olhou para Hazel, que tinha saído da sala de situação e ido atrás dele. Sabia que não era sensato, tampouco
educado, deixá-la de braços cruzados em Sidi el Razig, sem nada para ocupá-la.

- A sra. Bannock e eu vamos acompanhar vocês no passeio até Ameera e Jig Jig.

Hazel assentiu em concordância, e Hector se virou novamente para Bernie.

- Calcule o tempo de voo de cada estágio da viagem. Temos que chegar a Jig Jig enquanto ainda estiver claro o suficiente para aterrissar. Não queremos ficar dando
voltas na área por muito tempo e chamar atenção. Acha que conseguimos encontrar a pista de primeira?

- Pergunta estúpida - Nella respondeu. - Já fomos lá antes, lembra?

Ela colocou um par de óculos de leitura, de armação de plástico laranja, sobre o nariz e ela e Bernie foram trabalhar na calculadora. Em poucos minutos, Nella olhou
para cima:

- Ok, a decolagem daqui será às vinte horas em ponto. Quem não estiver a bordo fica para trás.

 

Hector e Hazel ficaram na cabine de voo do Hércules e, por sobre a cabeça dos pilotos, assistiram ao anoitecer africano. Hazel se recostou levemente nele. Os últimos
raios de sol iluminavam as cristas das montanhas adiante, colorindo-as em tons de bronze e de ouro recém-cunhado. Simultaneamente, a terra lá embaixo deles já havia
sido apagada pela escuridão, e apenas minúsculos pontinhos de luz assinalavam o posicionamento dos vilarejos e aldeias da Puntlândia, espalhados por todo seu território.

- É tão bonito - Hazel suspirou. - Mas não consigo enxergar a beleza devido ao horror. Cayla está lá embaixo, em algum lugar.

A noite os envolveu completamente, e as estrelas se espalhavam, esplendorosas, sobre eles. Nella se virou no banco e retirou os fones dos ouvidos.

- Estou iniciando a descida agora. São vinte minutos até a zona de salto, Hector. Diga para os seus homens ficarem com o equipamento em ordem e de prontidão.

Hector foi até a cabine principal. A maioria dos homens de Paddy tinha subido nas caminhonetes e encontrado um lugar confortável para dormir. Mas Tariq estava esperando
por Hector próximo à saída traseira. Estava vestido como um camponês somali, com os pertences em uma bolsa de pele de cabra amarrada ao redor da cintura e sandálias
de couro cru nos pés. Enquanto Hector o ajudava a afivelar o paraquedas, repassou rapidamente os sinais de contato e reconhecimento que haviam combinado.

- Dez minutos até a zona de salto - a voz de Nella chegou pelos alto-falantes.

Hazel foi apertar a mão de Tariq.

- Não é a primeira vez que está arriscando sua vida por mim, Tariq. Vou encontrar uma maneira de retribuir.

- Não exijo pagamento, sra. Bannock.

- Então rezarei para que Alá o abençoe e proteja - disse e, em seguida, a voz de Nella nos alto-falantes foi ouvida mais uma vez.

- Cinco minutos até a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora. Verifique se as correias de segurança estão enganchadas.

A rampa abaixou pesadamente, e o frio ar noturno chicoteou em volta das cabeças, dando puxões nas roupas.

- Consigo enxergar as luzes de Ameera logo adiante - Nella cantou. - Um minuto para saltar.

Em seguida, começou a contagem regressiva:

- Cinco, quatro, três, dois e já! Já! Já!

Tariq correu para a frente e colocou primeiro a cabeça para fora da rampa. O vento o puxou instantaneamente pela escuridão. Nella fechou a rampa traseira e aumentou
gradualmente a potência dos motores. Prosseguiram rumo a Jig Jig.

Rodearam a pista ao amanhecer. Havia um edifício em ruínas, destelhado e com as paredes restantes caindo aos pedaços. Mesmo após oitenta anos, a pista abandonada
ainda era sinalizada pelos pequenos montes de pedras caiadas. O único sinal de vida estava na encosta do morro acima da pista, onde um menino enrolado em um cobertor
vermelho se aquecia diante de uma pequena fogueira fumegante, enquanto suas cabras pastavam ao redor. A fumaça revelou a direção do vento para Nella. Ao ouvir o
ruído retumbante do Hércules que voava baixo sobre eles, o menino e seu rebanho se dispersaram em pânico. Nella aterrissou a grande máquina tão suavemente quanto
uma borboleta pousando em uma rosa. A seguir, a aeronave foi aos solavancos e chacoalhando sobre o piso marcado, estacionando bem antes do final da pista. Nella
abriu a porta traseira, e Paddy conduziu o comboio de três caminhonetes rampa abaixo e, com um último aceno da mão enluvada, arrancou em direção à fronteira somali.
Nella usou os motores para acelerar o Hércules em uma volta de 180 graus, e eles estavam novamente no ar cinco minutos depois de terem pousado.
- Cinco horas e meia de voo de volta - Hector disse ao colocar um dos braços ao redor dos ombros de Hazel. - Não tenho a menor ideia de como vamos passar o tempo.

- Este porão de carga é todo nosso - Hazel comentou. - Posso fazer uma sugestão?

- Li sua mente e acho a sugestão excelente. Sra. Bannock, a senhora é um gênio.


Tariq encontrou um buraco de tamanduá africano, onde enfiou os paraquedas e o capacete de proteção. Enrolou o turbante ao redor da cabeça e pendurou a bolsa de pele
de cabra atravessada sobre o ombro. Durante a descida, havia memorizado cautelosamente a direção do vilarejo. Havia apenas duas ou três luzinhas acesas, e ele ficou
impressionado com a precisão da vista de Nella Vosloo, que fora capaz de distingui-las a três mil metros de altura. Ele se colocou a caminho de Ameera e, após oitocentos
metros, sentiu o cheiro da fumaça dos fogões a lenha e o forte odor das cabras e dos homens. Ao se aproximar do vilarejo, um cão latiu e outro se juntou a ele, mas
todos estavam adormecidos. Haviam se passado dez anos desde sua última visita, mas a lua quase cheia fornecia iluminação suficiente para que ele se orientasse enquanto
se movia silenciosamente entre as cabanas de teto de palha. A casa de sua tia era a terceira após o poço. Ele bateu na porta e, após um intervalo, a voz baixa de
uma mulher disse do outro lado:

- Quem é? O que você quer a esta hora da noite? Sou uma mulher decente. Vá embora!

- É o Tariq Hakam, venho à procura da irmã de minha mãe, Taheera.

- Espere! - gritou a mulher que não podia ser vista.

Ele ouviu ela se movimentar pela cabana e o riscar de um fósforo. A luz suave e amarelada de uma lâmpada de querosene podia ser vista através das frestas nas paredes
de barro. Finalmente a porta se abriu, e a mulher estava olhando para ele.

- É você mesmo, Tariq Hakam? - ela perguntou e segurou a lâmpada de modo que iluminasse o rosto dele. - Sim - suspirou timidamente -, é você mesmo.

De forma despojada, afastou o véu do rosto.

- Quem é você? - ele a encarou.

Ela era jovem e muito bonita. Os traços eram vagamente familiares.

- Fico triste que não tenha me reconhecido, Tariq. Sou a sua prima Daliyah.

- Daliyah! Mas você está tão crescida!

Ela deu uma risadinha modesta e puxou o véu novamente sobre a boca e o nariz. Havia apenas dez anos, ela era como um ouriço que não saía do pé dele, comportando-se
da maneira mais irritante possível, vestindo saias curtas e encardidas, com os cabelos emaranhados e moscas caminhando sobre o ranho ressequido debaixo do nariz.

- Minha tia está, Daliyah?

- Minha mãe está morta, Tariq, que Alá conserve a sua alma. Retornei a Ameera para viver meu luto.

- Que ela encontre a felicidade no Paraíso - disse em voz baixa. - Não sabia que tinha morrido.

- Ficou doente por um longo tempo.

- E você, Daliyah? Tem um protetor? Seu pai, seus irmãos?

- Meu pai morreu há cinco anos. Meus irmãos partiram. Foram para Mogadíscio lutar pelo exército de Alá. Estou sozinha aqui - fez uma pausa antes de prosseguir. -
Há homens aqui, homens rústicos e grosseiros. Infelizmente. Por isso hesitei em abrir a porta para você.

- O que vai ser de você?

- Antes de morrer, a minha mãe cuidou para que eu fosse trabalhar como serviçal na fortaleza no Oásis do Milagre. Voltei para cá apenas para enterrá-la e viver o
meu luto. Agora que os dias de luto se passaram, voltarei para o meu trabalho na fortaleza.

Ela o tinha conduzido até à cozinha, em uma extensão no fundo da cabana. Abaixou a lanterna e virou-se para ele:

- Você está com fome, primo? Tenho algumas tâmaras e pão sem fermento. Tenho também coalhada de leite de cabra - estava ávida para agradá-lo.

- Obrigado, Daliyah. Trouxe um pouco de comida comigo. Podemos compartilhar.

Ele abriu a bolsa de couro e retirou um pacote de rações militares. Os olhos dela se acenderam. Ele imaginara que ela não andava se alimentando bem. Eles se sentaram
um de frente para o outro, de pernas cruzadas no chão seco de barro, com pequenas tigelas esmaltadas entre os dois, e ele a observou comer com prazer. Ela sabia
que estava sendo observada, e manteve os olhos modestamente abaixados, mas de vez em quando sorria um pouco para si mesma. Quando finalmente terminaram, ela enxaguou
as tigelas e voltou a se sentar diante dele.

- Você diz que trabalha na fortaleza? - perguntou, e ela assentiu em confirmação. - Tenho negócios a tratar na fortaleza - Tariq disse, e ela olhou para ele com
um ligeiro interesse.

- É o que o traz aqui? - ele inclinou a cabeça e ela continuou - O que está procurando, primo?

- Uma menina. Uma jovem branca de cabelos claros.

Daliyah engasgou e cobriu a boca com uma das mãos. Os olhos dela estavam escuros de choque e de medo.

- Você a conhece! - disse com convicção.

Ela não respondeu, e em vez disso abaixou a cabeça com os olhos fixos no chão entre eles.

- Vim buscá-la para levá-la de volta à família.

Ela balançou a cabeça com tristeza.

- Cuidado, Tariq Hakam. É perigoso falar assim livremente. Temo por você.

Ficaram calados por um longo período, e ele a viu tremer.

- Vai me ajudar, Daliyah?

Conheço essa menina, ela é jovem como eu. Mesmo assim, foi dada aos homens para brincarem com ela - a voz era quase inaudível. - Ela está doente. Está doente por
causa dos ferimentos que sofreu. Está doente de medo e solidão.

- Leve-me até ela, Daliyah. Ou pelo menos me mostre o caminho.

Ela demorou um pouco a responder e então disse:

- Se eu fizer o que me pede, eles vão saber que fui eu quem levou você até ela. Vão fazer comigo o que fizeram com ela. Se eu levá-lo até ela, não posso permanecer
neste lugar. Você me levará junto quando partir, Tariq? Vai me proteger da ira deles?

- Sim, Daliyah. Levarei você comigo, com prazer.

- Então vou ajudar, Tariq Hakam, meu primo - deu um sorriso tímido, e seus olhos escuros brilharam à luz da lanterna.


Tariq ficou agachado sob a saliência de uma rocha voltada para o leste. Estava ali fazia uma hora, desde o anoitecer. Estava pensando na prima Daliyah. Ainda pensando
sobre a transformação dela de menina em mulher. Pensar nela o fazia se sentir feliz. Na manhã em que se despediu dele para caminhar os mais de seis quilômetros até
o Oásis do Milagre, ela havia tocado o braço dele e dito:

- Estarei à sua espera quando vier.

Ele esfregou o braço no local em que ela o tocou e sorriu.

Os pensamentos dele foram distraídos pelo leve tremor de um som no céu. Olhou para cima, mas não havia nada além de estrelas. Inclinou a cabeça para o lado e escutou.
O som se intensificou. Ele levantou e pegou a velha lata de querosene com a tampa cortada que Daliyah havia lhe dado e a levou para fora. Fez uma pilha com as pedras
que havia juntado anteriormente ao redor da lata para apoiá-la com firmeza. Ficou de novo na escuta - dessa vez não havia dúvidas. A vibração de múltiplos motores
de aeronaves era inconfundível. Tirou o sinalizador naval de socorro da bolsa e puxou a fita de ignição, jogando-o dentro da lata. Deu um passo para trás. As chamas
irromperam, e a fumaça sulfurosa borbulhou para fora da lata. O brilho avermelhado foi refletido no sentido vertical. O barulho dos motores aumentou até ficar logo
acima da cabeça dele.


A voz de Nella retumbou dos alto-falantes:

- A chama do marcador vermelho está no meu campo de visão. Dois minutos para a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora.

Hector tinha dividido os homens em dois grupos de cinco. Saltaria primeiro com o grupo dele, e Uthmann o seguiria imediatamente com seus quatro homens. Estavam todos
vestidos em trajes tradicionais, com lenços pretos cobrindo grande parte do rosto, mas por cima usavam coletes à prova de balas e capacetes de batalha, e carregavam
kits de sobrevivência, dez pentes de munição para os rifles de assalto nos cintos e uma faca de trincheira embainhada. As facas haviam sido afiadas pelo armeiro
da Cross Bow até que estivessem boas o suficiente para barbear.

- Primeiro grupo de pé! - Hector comandou, e eles se ergueram e caminharam com passos arrastados até a porta aberta.

- Acendam as suas luzes de sinalização!

Cada um deles tinha uma luz fosforescente minúscula afixada à frente do capacete com um elástico. Eles ergueram os braços e as acenderam. As lâmpadas eram azuis,
e a luz que emanavam era tão tênue que seria pouco possível que um observador hostil em terra pudesse captá-la, mas os pontinhos luminosos serviriam para que pudessem
localizar uns aos outros durante a queda livre. Hazel, que estava sentada no banco ao lado de Hector, se levantou e colocou os braços ao redor do pescoço dele.

- Amo você! - suspirou, ele era o primeiro homem para quem dizia aquilo em muito tempo. - Volte. Volte para mim.

Nos alto-falantes, a voz de Nella havia iniciado a contagem regressiva para a queda.

- Amo você mais do que posso expressar - Hector disse e a beijou, deixando um borrão de tinta de camuflagem na bochecha de Hazel, que ele limpou carinhosamente com
um dos polegares. - Quando voltar, trarei Cayla comigo.

Ela se virou de costas para ele rapidamente e correu em direção à entrada da cabine de pilotagem. Não queria que a visse chorar. Antes que alcançasse a cabine, Nella
deu o comando de salto pelos alto-falantes.

- Grupo número um! Já! Já! Já! - Hazel se virou rapidamente para ter um último vislumbre, mas ele já havia sido sugado pelo ventre sombrio da escuridão.

Hector estabilizou a queda pelo vento veloz usando a posição de estrela, com a barriga para baixo, e a primeira coisa que fez foi procurar pela chama de sinalização
de Tariq. Avistou-a três mil metros abaixo, a um ângulo inferior de cerca de 45 graus. Em seguida, procurou as luzes azuis dos homens no espaço ao redor. Assim que
localizou todos, fez uma manobra com movimentos sutis dos membros e do corpo para se colocar na frente da formação. Seus quatro companheiros estavam todos próximos
quando caíram na direção da chama vermelha. Ele checou o altímetro e o cronômetro. Estavam em queda livre havia um pouco mais de um minuto. Já tinham alcançado a
velocidade terminal, e a terra se aproximava rapidamente. Estavam a menos de 450 metros acima do chão quando ele fez um sinal com a mão para que ativassem e abrissem
os paraquedas. Agora, ficava mais fácil manobrar, e eles deslizaram pela pequena brisa para pousarem, como um bando de garças-azuis, a cerca de vinte passos da chama
vermelha, aterrissando quase simultaneamente e ficando de pé enquanto esvaziavam o ar dos paraquedas. De imediato, formaram um círculo defensivo com as armas apontadas.

- Tariq! - Hector chamou discretamente. - Apareça!

- Sou eu, Tariq Hakam - levantou-se detrás de uma pilha de pedras quebradas. - Não atirem!

Correu ao encontro de Hector, e eles trocaram um breve aperto de mão duplo.

- Está tudo bem? - Hector indagou. - Onde está a tal menina, sua prima?

Tariq havia falado brevemente sobre ela de manhã no telefonema via satélite.

- Ela está dentro da fortaleza. Vai nos levar até onde estão mantendo a menina Bannock.

- Pode confiar nela? - Hector perguntou. Contar com alguém dentro da fortaleza era um incrível golpe de sorte, e ele sempre desconfiava quando a sorte era muita.

- Ela é sangue do meu sangue - Tariq respondeu e quase adicionou "e mora em meu coração". Mas não queria tentar Iblis, o Demônio.

- Ok. Vou aceitar sua palavra - Hector entregou a ele o rifle e o kit sobressalentes que estava carregando.

Nesse momento, Uthmann e seus quatro homens caíram do céu escuro e aterrissaram próximo a eles. Tariq chutou a lata e pilha de pedras sobre a chama ardente. Os outros
estavam enrolando e enterrando os paraquedas.

- Tariq, lidere! Avante, já!

Seguiram Tariq a intervalos cuidadosamente determinados. Com as armas à mão, avançaram a passos rápidos, em ritmo acelerado ao longo de um caminho acidentado formado
pelo pastar das cabras. Alcançaram as primeiras palmeiras do oásis em 45 minutos e formaram novamente um círculo defensivo, deitando de bruços no chão e de cabeça
erguida. Tariq fez um sinal indicando que o terreno adiante estava livre, e Hector gesticulou para que avançasse. Tariq desapareceu entre as árvores. Uthmann engatinhava
ao lado de Hector.

- Aonde ele está indo? - suspirou. - Por que paramos aqui?

- Tariq tem uma pessoa infiltrada na fortaleza. Foi fazer contato para depois nos guiar através de um dos portões laterais.

- Eu não sabia disso. Quem é o informante? Homem ou mulher? É algum parente do Tariq?

- Qual é a importância disso? - Hector sentiu um pequeno mal-estar. Uthmann estava insistindo demais.

- Você não me contou, Hector.

- Você não precisava saber até este momento - Hector respondeu, e Uthmann desviou o olhar.

A posição da cabeça e do corpo de Uthmann mostravam que ele estava zangado. Estaria exibindo ressentimento por Hector não ter confiado nele? Não era o estilo habitual
de Uthmann. Hector ficou pensando se não estaria ficando velho demais para o esporte. Estaria perdendo a coragem? Hector não conseguia pensar em possibilidade mais
sombria. De repente, tomou uma decisão e tocou um dos braços de Uthmann, forçando-o a se virar para ele.

- Uthmann, você precisa ficar aqui com seu grupo na retaguarda. Se nos complicarmos dentro da fortaleza, vamos sair correndo. Quero que nos dê cobertura, entendeu?

- Sempre fiquei ao seu lado - Uthmann disse com amargura. O comportamento grosseiro dele era exagerado e reforçou a decisão de Hector de não levá-lo junto para o
covil da Besta.

- Não desta vez, meu velho amigo - disse e, sem dizer uma palavra, Uthmann virou o rosto e engatinhou de volta à sua posição com o segundo grupo.

Hector desviou o pensamento dele e fixou o olhar nas palmeiras do oásis. Viu uma sombra, como uma mariposa esvoaçante, em movimento, e assoviou baixo em dois tons
como sinal de reconhecimento. A resposta foi imediata, e Tariq se materializou silenciosamente detrás das árvores. Estava acompanhado de alguém, uma figura esguia
vestindo uma longa túnica negra.

- Esta é a minha prima Daliyah - disse, e os dois se abaixaram ao lado de Hector. - As novidades que traz são preocupantes. Diz que os homens de Khan andam alvoroçados
demais. Praticamente todos os homens da guarnição foram mandados para a ala norte, atrás da mesquita.

- Por quê? - Hector perguntou à moça.

- Não sei - a voz dela era bastante suave.

Hector ponderou por um momento.

- Existe um portão na ala norte para a qual os homens foram enviados? - perguntou.

- Há um portão - Daliyah confirmou -, mas não é o principal.

- Você tinha a intenção de nos conduzir para dentro da fortaleza por esse portão?

- Não! - ela balançou a cabeça. - No muro da ala leste, atrás da cozinha, existe uma outra entrada. É uma abertura bem pequena, apenas um homem de cada vez pode
passar por ela. Quase nunca é usada, e poucas pessoas sequer sabem que existe. Era como eu tinha planejado guiá-los.

- Está trancada?

- Está, mas eu tenho uma das chaves. Tirei do bolso de um dos cozinheiros esta manhã. Ele não sentiu falta.

- Guardas? O portão é vigiado?

- Nunca vi guardas ali. Usei-o hoje à noite. A passagem estava aberta, e o lugar, deserto.

- Tariq, parece que sua prima é uma mulher corajosa e inteligente - Hector olhou para ela, mas não conseguiu enxergar nada através do véu.

- Disso eu sei - Tariq disse num tom grave.

- Ela é casada?

- Ainda não - Tariq respondeu. - Mas talvez se case logo.

Daliyah abaixou a cabeça num gesto de modéstia, mas não disse nada.

- Ela nos aconselha a aguardarmos um pouco aqui antes de subir. Esperar passar a agitação na fortaleza.

- Quanto tempo ela acha que devemos esperar? - Hector perguntou, e Tariq apontou para a lua que surgia além da plantação de palmeiras. Faltavam cinco dias para que
ficasse cheia.

- Temos de esperar até que fique no mesmo nível da palmeira mais alta. A essa altura, os guardas terão relaxado e alguns poderão até mesmo estar dormindo.

- Em cerca de um hora e meia - estimou Hector, checando o relógio de pulso.

Atravessou engatinhando até onde estava Uthmann e, em poucas e sucintas palavras, explicou suas intenções. Em seguida, engatinhou novamente para a frente de seu
grupo. Eles permaneceram calados e imóveis enquanto o ponteiro luminoso dos minutos se arrastava pelo mostrador do relógio. De repente, o pesado silêncio foi interrompido
pelos uivos e guinchos de um par de chacais abaixo dos muros da fortaleza. O barulho foi imediatamente desafiado pelos latidos alvoroçados de uma matilha de cães
na parte de dentro dos muros.

- Meu Deus, quantos cães o Khan mantém lá dentro, Daliyah?

- Muitos. Gosta de sair para caçar com eles.

- O que ele caça... gazelas, órix, chacais?

- Todos esses animais, sim - Daliyah respondeu -, mas o que ele gosta mesmo de caçar são pessoas.

- Pessoas? - até mesmo Hector ficou chocado. - Quer dizer, seres humanos?

Ela assentiu, e a luz das estrelas revelou o ligeiro brilho das lágrimas nos olhos dela pela abertura do véu.

- Pois então. Homens ou mulheres que o tenham enfurecido. Alguns deles eram meus parentes ou bons amigos. Os homens dele os levam para o deserto, onde são libertados.
Depois, Khan e os filhos saem correndo atrás deles com os cães. Rejubilam-se com o esporte e riem quando os cães destroçam as vítimas. Deixam que os cães se alimentem
da carne de quem matam. O Khan acredita que isso torna os cães mais ferozes.

- Mas que velho encantador ele deve ser. Estou ansioso pelo nosso primeiro encontro - Hector murmurou.

Esperaram até que o latido dos cães se dissolvesse em silêncio, e a lua se erguesse detrás das palmeiras. Só então ele se mexeu de novo.

- Hora de partir, Tariq. Diga à Daliyah para ir na frente. Vamos manter uma boa distância atrás dela. Se ela encontrar alguém da fortaleza, diga para distraí-lo
para que possamos dar conta dele antes que faça alarde. Você vai atrás dela, e eu lidero o resto do grupo na retaguarda.

A garota se movia depressa e com confiança. Seguiram-na entre as árvores até chegarem à encosta. Hector viu claramente a fortaleza pela primeira vez. Agigantava-se
acima deles, enorme e negra. Não havia sinal de iluminação, e ela parecia tão inerte quanto a lua acima. O caminho prosseguia por uma ladeira íngreme. A garota não
diminuiu o ritmo. Agora os muros de pedra se erguiam sobre eles, tão implacavelmente malévolos quanto um monstro arcaico pronto para emboscar sua presa. De repente,
Daliyah saiu do caminho principal e virou numa trilha menos definida abaixo das muralhas. Contornaram pilhas fedorentas de lixo que tinham sido jogadas do alto dos
muros. Os chacais estavam procurando comida entre os detritos, e foram embora quando os homens se aproximavam. Finalmente, Daliyah parou ao lado de uma vala que
emergia de uma abertura em forma de arco na parte inferior da parede de pedra. A abertura estava bloqueada por grades enferrujadas. Excrementos humanos rolavam pela
arcada até a vala, e o fedor era um atentado aos sentidos. Daliyah saltou sobre a vala e virou abruptamente em outra passagem estreita entre os muros de pedra, cuja
largura não permitia mais do que um homem de cada vez. Ela desapareceu, e os outros a seguiram em fila indiana pela abertura. Subiram uma série de degraus rústicos,
Daliyah estava à espera deles no topo, do lado de fora de uma porta baixa de madeira sólida, pregada e montada com barras de ferro.

- Daqui em diante temos de nos manter bem próximos. É muito fácil se perder no lado de dentro - suspirou e retirou uma pesada chave de ferro de design antigo de
baixo da túnica. Colocou-a na fechadura e, com algum esforço, virou a chave. Encostou um dos ombros na porta, e ela se abriu. Ela teve de abaixar a cabeça para passar
sob a verga de pedra. Eles a seguiram. Daliyah fechou a porta atrás do último homem.

- Não tranque. Vamos estar com pressa quando voltarmos - Hector lhe disse em voz baixa.

A escuridão era tão dominante que parecia um peso esmagando seus ombros. Hector acendeu a luz fosforescente do capacete, e os demais seguiram o exemplo. Daliyah
os guiou através de um labirinto de passagens sinuosas e salas interligadas. Ouviram pequenos ruídos - mulheres rindo e conversando em um dos aposentos por que passaram
e, em um outro, o ronco barulhento de um homem. Finalmente, Daliyah fez um gesto para que parassem.

- Aguardem aqui - suspirou para Tariq. - Apaguem as luzes dos capacetes e fiquem em silêncio. Vou verificar se é mesmo seguro.

Ela desapareceu pelo corredor estreito. Os homens se agacharam para descansar, mas continuaram com as armas em punho. Não demorou muito, e Daliyah voltou, caminhando
silenciosa e rapidamente.

- Há dois homens de guarda em frente à porta da cela da menina. Estranho. Normalmente, são cinco ou seis. Esta noite, os outros devem ter sido mandados para o portão
da ala norte. Um dos guardas que ficaram tem a chave da cela. Não façam barulho. Sigam-me.

Hector e Tariq ficaram bem próximos a Daliyah, um de cada lado. Depois de um curto percurso, ela parou de novo e apontou para a frente. A passagem se abria de repente
em ângulos retos. Eles podiam ouvir as vozes dos homens além da curva, e a luz amarela das lamparinas se projetava no ângulo da parede lateral e no teto. Hector
escutou com atenção e percebeu que havia pelo menos dois homens recitando uma passagem da isha, a oração noturna. Depois, viu as sombras na parede lateral quando
eles se ajoelharam e levantaram de novo. Hector mostrou dois dedos, e Tariq assentiu. Hector bateu no peito dele e mostrou um dedo; em seguida, bateu no próprio
e levantou mais um.

- Um para cada um - Tariq assentiu.

Eles entregaram os rifles para os homens atrás deles e cada um desenrolou a corda de piano de arame que carregavam nos bolsos abotoados, testando-as entre dos dedos
das mãos. Hector se aproximou lentamente da quina da parede. Tariq o seguiu. Aguardaram os dois sentinelas se ajoelharem com as testas pressionadas no chão de blocos
de pedra. Então ele e Tariq se colocaram atrás deles e, quando os homens retornaram à posição sentada, Hector e Tariq passaram o laço de arame sobre as suas cabeças,
apertando-o com força sob os queixos. Os árabes de debateram, chutando e agitando os braços e as pernas. Mas não deixaram escapar um único som. Hector posicionou
um dos joelhos entre as omoplatas da vítima e aplicou a força de ambas as mãos. O homem se enrijeceu e chutou convulsivamente pela última vez, enquanto seus intestinos
se esvaziaram fazendo barulho. E então, ficou imóvel. Hector o virou para o outro lado e apalpou a túnica. Sentiu a grande chave de ferro sob o tecido e a retirou.
Daliyah estava no canto. Os olhos dela detrás do véu estavam arregalados e faiscando de terror - talvez não esperasse que fossem matar alguém.

- Que porta? - Hector perguntou. Havia três diante deles.

Mas Daliyah estava abalada demais para responder. Tariq se ergueu de um salto e a pegou pelos ombros, sacudindo-a com força.

- Que porta?

Ela se recompôs e apontou para o centro.

- Me dê cobertura - Hector disse a Tariq e foi até a porta.

Ele a destrancou com a chave que tinha tirado do sentinela e a abriu devagar e furtivamente. A cela estava às escuras, mas ele acendeu a luz do capacete. Com o feixe
de luz, viu o quanto a cela era pequena. Não possuía janelas nem ventilação. Em um canto, havia um balde que servia de privada e uma jarra d'água feita de barro.
Do balde emanava um odor pungente. No meio do chão, estava uma figura de estatura pequena, encolhida sobre um estrado com enchimento de palha. Vestia apenas uma
peça suja que mal batia na cintura, portanto não restava dúvida de que se tratava de uma mulher. Ajoelhou-se sobre ela e virou-a com delicadeza para ver o rosto.
Era o rosto da menina no vídeo brutal, a menina cuja foto Hazel lhe havia mostrado. Era Cayla, mas tão pálida e magra que a pele dele parecia quase transparente.

- Cayla! - suspirou em seu ouvido, e ela se mexeu. - Acorde, Cayla.

Ela abriu os olhos, mas por um momento não conseguiu focalizar neles.

- Acorde, Cayla. Vim buscar você e levá-la para casa.

De repente, os olhos dela se arregalaram. Eles pareciam preencher todo o rosto e estavam repletos de sombras de lembranças terríveis. Ela tentou gritar, mas ele
tapou a boca dela e suspirou num tom de urgência:

- Não tenha medo. Sou seu amigo. Sua mãe me enviou para levá-la para casa.

Ela estava surda de medo, sem compreender as palavras, debatendo-se contra ele com toda a força escassa que possuía.

- Sua mãe me disse que você tem um Bugatti Veyron chamado Mister Tartaruga. Sua mãe é Hazel Bannock. Ela ama você, Cayla. Lembra-se da potra que ela deu de presente
a você em seu último aniversário? Você a chamou de Chocolate ao Leite.

Ela parou de se debater e olhou para ele com os olhos arregalados.

- Vou tirar a mão da sua boca agora. Prometa que não vai gritar.

Ela assentiu, e ele retirou a mão.

- Não é Chocolate ao Leite - sussurrou. - Chocolate, só chocolate.

Ela começou a chorar, soluços silenciosos sacudiam todo o seu corpo. Hector a pegou no colo. Era leve como um pássaro, mas estava queimando de febre.

- Venha, Cayla. Vou levar você para casa. Sua mãe está esperando.

Tariq estava na porta dando cobertura. Hector acenou com a cabeça na direção dos cadáveres dos dois árabes.

- Tranque-os na cela.

Eles arrastaram os corpos segurando-os pelos pés, as cabeças rolavam aos solavancos no chão de pedra, e os jogaram no meio da cela. Hector trancou a porta e colocou
a chave no bolso.

- Agora! Diga à sua prima para nos tirar deste lugar fedorento, Tariq.

Daliyah os conduziu pelo mesmo caminho da ida. A todo momento, Hector esperava uma confrontação ou uma saraivada de balas.

- Está sendo fácil demais. Não era para ser tão fácil. Há uma tempestade de merda se formando, consigo pressentir, disse a si mesmo desgostoso. Mas, finalmente,
ele saiu pela porta na passagem estreita e saboreou o ar noturno do deserto.

- Puro como um beijo virginal - sussurrou e encheu os pulmões.

Cayla tremeu em seus braços. Ele a carregou pela abertura da passagem, onde havia uma rota de fuga desobstruída encosta abaixo. Ele a sentou gentilmente no chão
de pedra e se ajoelhou sobre ela. Hazel havia empacotado um macacão de camuflagem limpo, um par de tênis lona e uma calcinha para Cayla. Hector retirou as roupas
do bolso lateral da mochila e, como se ela fosse um bebê, a vestiu. Ele desviou os olhos ao puxar a calcinha para cima. Sentia uma estranha afeição paternal por
ela. Mas teve dificuldade de reconhecer a emoção em um primeiro momento. Não tinha filhos, nunca quis tê-los. A vida dele estava preenchida por outras coisas. Não
havia lugar para filhos. Agora, pensava que a sensação de ter um filho devia ser como aquela. Essa era a bebé de Hazel, portanto, de um modo estranho, era dele também.
Essa criaturinha doente revirava sentimentos profundos que ele nunca suspeitara que existiam. Encontrou a água na mochila, e forçou Cayla a engolir três tabletes
de antibióticos de amplo espectro com um grande gole da garrafa que ele segurava próxima aos lábios dela.

- Você consegue caminhar? - perguntou carinhosamente.

- Sim, é claro! - ela se levantou, deu dois passos cambaleantes e desabou.

- Boa tentativa - ele disse -, mas você ainda precisa de um pouco de prática.

Ele a pegou no colo de novo e saiu correndo. Tariq e Daliyah estavam posicionados, e o resto do grupo lhe deu cobertura. Na trilha acidentada, eles contornaram os
muros até chegarem ao caminho principal, virando diretamente na descida da encosta. A noite estava silenciosa como se toda a criação estivesse com a respiração em
suspenso. Diminuíram o ritmo ao alcançarem o oásis e caminharam entre as palmeiras na direção em que haviam deixado Uthmann e seu grupo.

"Silencioso demais", Hector pensou. "Muito silencioso, demais. O lugar inteiro exala o fedor da Besta."

De repente, à frente dele, Tariq e Daliyah foram ao chão. Tariq a puxou para baixo com ele e os dois desapareceram de vista, como se tivessem caído em uma armadilha.
Hector caiu quase no mesmo instante, aninhando Cayla nos braços para protegê-la do impacto ao atingirem o chão.

Ela choramingou, e ele sussurrou:

- Quietinha, querida, quietinha - disse e olhou adiante, retirando cuidadosamente o rifle do ombro.

Hector olhou pelo visor noturno do rifle, mas não conseguiu enxergar nada que pudesse ter alarmado Tariq. Em seguida, viu Tariq erguer a cabeça cautelosamente. Após
cinco minutos completos, deu o assovio suave de reconhecimento. Não houve resposta. Virou-se para trás devagar e olhou para Hector, à espera de uma ordem.

- Fique aqui e não se mexa! - Hector disse à garota.

- Estou com medo, por favor, não me deixe sozinha.

- Eu vou voltar. Prometo - ele ficou de pé e saiu correndo.

Deixou-se cair ao lado de Tariq e rolou duas vezes para o lado para sair da mira do inimigo. O silêncio era pesado e carregado.

- Onde? - perguntou.

- Depois daquela palmeira. Há um homem deitado ali, mas não está se mexendo.

Hector avistou a silhueta escura e a observou por um momento. A figura permanecia imóvel.

- Me dê cobertura - Hector disparou adiante de novo.

Nem mesmo o colete de proteção seria capaz de deter a bala de um rifle a tal distância. Alcançou o vulto humano e caiu ao lado dele. O rosto estava virado para Hector,
que viu que se tratava de Khaleel, um dos seus melhores homens.

- Khaleel! - suspirou, mas não houve resposta.

Esticou um dos braços para verificar a artéria carótida. A pele de Khaleel ainda estava morna, mas ele não tinha pulso. E então Hector sentiu algo molhado nos dedos.
Sabia o que era - durante sua vida, tinha provavelmente visto tanto sangue quanto um cirurgião. Procurou a ferida com as pontas dos dedos. Encontrou-a exatamente
onde achara que estaria - na parte de trás da mandíbula, logo abaixo do ouvido. Um furo minúsculo; uma lâmina fina e bastante afiada trespassada do ouvido até o
cérebro. Hector sentiu que iria vomitar. Não queria que fosse verdade. Conhecia apenas um homem que poderia matar com tanta precisão. Chamou Tariq para junto dele
com um aceno. Ele foi correndo se juntar a Hector. Logo viu o sangue nos dedos de Hector. Depois se virou para o corpo de Khaleel e tocou no ferimento atrás da orelha.
Não disse nada.

- Encontre os outros - Hector mandou.

Três corpos estavam estirados em um círculo defensivo, olhando para frente. Deviam confiar no assassino para tê-lo deixado chegar tão perto. Todos tinham morrido
instantaneamente. Todos tinham um ferimento quase idêntico.

- Onde está o Uthmann? - a pergunta era redundante, mas Hector tinha de fazê-la.

- Não está aqui. Foi aonde o coração dele pertence - Tariq olhou para a fortaleza maciça acima deles.

- Você sabia, Tariq. Por que não me preveniu a respeito dele?

- Sabia com meu coração, mas não com a cabeça. Você teria acreditado em mim? - Tariq perguntou.

Hector deu um sorriso amargo.

- Uthmann era meu irmão. Como poderia acreditar em você? - Hector disse, mas Tariq virou o rosto.

- E agora temos de sair deste lugar, antes que o seu querido irmão retorne - disse Tariq. - Com os outros irmãos dele, os que ele ama de verdade, mas que não amam
você, Hector Cross.


Uthmann observou Hector e Tariq se afastarem das palmeiras com a mulher, Daliyah, e o resto de seu grupo. Estava bravo e frustrado. Hector Cross tinha feito seus
planos, tão cuidadosamente esboçados, irem por água abaixo. Agora tinha de reavaliar sua posição com rapidez. O xeique Tippoo Tip e seu neto, Adam, estavam esperando
por ele com a maioria dos homens no Portão Norte. Era onde Uthmann havia prometido a Adam que entregaria Hector Cross. Mas, primeiro e mais importante, tinha de
fazer a mensagem chegar a Adam, avisando que Hector não iria cair na armadilha conforme o planejado, que tinha entrado por outro portão. Eles teriam de fechar todos
os portões e procurá-lo por todos os milímetros da fortaleza. Encontrá-lo antes que conseguisse se esgueirar pela saída e fugir para a amplitude do deserto. Havia
um único jeito de mandar o aviso a Adam - teria de entregá-lo pessoalmente. Mas, primeiro, tinha que dar um jeito nos quatro homens de seu grupo. Verificou o punhal
na bainha que estava presa em um dos antebraços. Tinha feito a lâmina a partir da mola dianteira de um caminhão GM. Foram necessárias várias horas de lixamento,
aquecimento, forjamento, tempero e moldagem para alcançar a perfeição. O cabo tinha uma tira de couro órix que se encaixava na mão. O equilíbrio era maravilhoso.
Um golpe sutil era o que bastava para que a lâmina afiada cortasse até o osso, e a ponta podia perfurar a carne humana sob o seu próprio peso. Esperou dez minutos
para que o grupo de Hector se afastasse e então engatinhou até o seu homem mais próximo.

- Khaleel, tudo tranquilo aqui? - perguntou. - Não, não olhe para mim. Continue olhando para a frente.

Khaleel virou o rosto obedientemente. O lóbulo de sua orelha direita estava visível sob a borda do capacete. Uthmann percorreu o canal do ouvido até o cérebro com
a ponta da lâmina. Khaleel suspirou suavemente, e a cabeça pendeu sobre a coronha do rifle que segurava. Uthmann limpou a lâmina meticulosamente em uma das mangas
de Khaleel antes de engatinhar até o próximo homem no círculo.

- Fique atento, Faisil - sussurrou enquanto se colocava ao lado do homem, e então o matou rapidamente. Os outros homens estavam deitados a menos de trinta passos
de distância e não ouviram nada. Uthmann se arrastou na direção deles. Quando os quatro estavam mortos, Uthmann ficou de pé e se virou no sentido da fortaleza. Começou
a correr. Escalou o caminho da encosta. Só tinha estado ali uma única vez, mas virou à esquerda sob o muro e correu ao longo dele até o Portão Norte. Quando faltavam
ainda uns cem passos para chegar, ele começou a gritar para avisar os homens que, sabia, estavam esperando no topo das muralhas.

- Não atirem! Sou eu, Uthmann. Sou um dos homens de Khan. Preciso falar com Adam.

Não houve resposta, e ele correu no sentido do portão, gritando a mesma advertência. Quando estava a cinquenta metros do portão, de repente, um feixe de luz branca
cegante, com toda intensidade, incidiu sobre ele. Ele parou e jogou as mãos para o alto para proteger os olhos. Uma voz chamou por ele do alto das muralhas.

- Jogue a arma no chão. Mãos ao alto! Caminhe devagar até o portão. Vamos atirar se tentar escapar.

Uthmann se aproximou do portão, e ele se abriu momentos antes dele alcançá-lo, mas os olhos dele ainda estavam ofuscados pelo feixe de luz e não conseguiam enxergar
nada na escuridão além da abertura. Ele hesitou ao alcançar o limiar, mas a voz o chamou de cima:

- Continue andando. Não pare!

Ele entrou e imediatamente um bando de homens veio correndo da escuridão e começou a bater nele até que ficasse de joelhos.

- Sou um dos homens de Khan - Uthmann cobriu a cabeça com ambos os braços. - Trago uma mensagem importante. Vocês têm de me levar até ele.

Ele teriam continuado a bater, mas nesse momento um comando autoritário os deixou paralisados.

- Deixem-no em paz! Conheço esse homem. Ele é um dos nossos agentes de confiança.

Uthmann se levantou e se curvou até o chão em reverência ao homem que surgiu das sombras e caminhava até ele.

- Que a paz esteja com você, Adam. Bençãos e paz para o seu ilustre avô, xeique Khan Tippoo Tip!

- Qual é problema, Uthmann? O plano era você guiar o infiel até aqui. Onde está Cross, aquele assassino blasfemo?

- Cross tem o instinto de sobrevivência de um animal selvagem. No último momento, decidiu que não me seguiria. Encontrou uma mulher que conhece bem a fortaleza.
Ordenou que eu ficasse enquanto a acompanhava por um caminho secreto para entrar nas muralhas.


Adam o encarou.

- Onde está Cross agora?

- Sem dúvida, já está dentro da fortaleza.

- Por que não nos avisou antes? - Adam levantou a voz, agitado.

- Porque eu mesmo não sabia até pouco tempo - Uthmann respondeu. - Não perca tempo e mande fechar todos os portões, depois envie mais homens para vigiar cela da
prisioneira e outros mais para vasculhar a citadela e encontrar o Cross.

- Venha comigo! - Adam rosnou para ele. - Vamos até o meu avô. No entanto, se você deixou o infiel escapar com a nossa refém, as coisas vão se complicar bastante
para seu lado, já aviso.

Adam levantou a túnica e correu, mas quando alcançaram a sala do conselho do xeique, estava exageradamente ofegante.

"Esse descendente do Profeta é tão mole quanto as mamas caídas de uma velha", pensou Uthmann com desprezo ao seguir Adam até a sala e se prostrar aos pés do Khan,
desfiando elogios exuberantes e votos de vida eterna ao velho homem.

- Chega! - xeique Khan se ergueu das almofadas e se agigantou sobre Uthmann. - Por que está tremendo? Está com febre? Ou quebrou nosso voto de confiança? Trouxe
o meu inimigo até mim para que eu possa liquidar a dívida de sangue e ir em paz para o túmulo, ou deixou que ele escapasse da minha vingança? Responda, sua poça
de estrume de porco doente. O filho de uma puta cristã é seu prisioneiro? Ou não?

- Bendito seja o tormento dos infiéis, não sei.

- Não sabe? Então vou fazê-lo saber - disse e açoitou as costas de Uthmann com o chicote de couro de hipopótamo.

A jaqueta à prova de balas absorveu o golpe, mas Uthmann gritou e se retorceu enquanto despejava o relatório. Após meia dúzia de golpes, o braço velho do Khan se
cansou, e ele deu um passo para trás.

- Mande os homens imediatamente para a cela da puta cristã! Traga-a até mim. Vou acorrentá-la ao meu lado onde posso eu mesmo vigiá-la. Já! Depressa!

Os homens enviados para buscar Cayla retornaram logo e se jogaram aos pés dele. Estavam balbuciando de terror e a audição do Khan era ruim, mas por fim ele entendeu
o que diziam.

- A porca infiel desapareceu e os guardas foram estrangulados? São esses os desvarios de macacos e lunáticos? - ofegava de raiva, e seus traços enrugados estavam
inchados e arroxeados.

- Temos de trancar os portões para evitar que fujam, e revirar o lugar e encontrar a menina e esses infiéis que violaram a nossa fortaleza.

Adam também tinha se prostrado. Sabia bem como se desviar da raiva do avô.

- Fechem os portões! - esbravejou o Khan. - Revirem todos os aposentos do palácio. Encontre-os e tragam-nos até mim - a seguir, virou-se para Adam. - Não podemos
deixá-lo escapar agora.

- Estamos desperdiçando tempo aqui, avô. Cross não está no palácio. Quanto mais o senhor demora, mais longe ele fica do nosso alcance. Cross tem apenas cinco homens
com ele. Uthmann matou os outros. Me dê seus cachorros, um número suficiente de homens e caminhões, e eu o trarei para o senhor.

- Há apenas um caminhão aqui, mas está com dois pneus furados que ainda não foram trocados. Mandei as outras caminhonetes e a maioria dos homens para o seu tio Kamal
na Baía de Gandanga para tripular os barcos de ataque.

O Khan prosseguiu:

- Mas podemos levar minha caminhonete particular de caça. Assim que os pneus do caminhão maior forem trocados, ele irá atrás de nós com o restante dos homens. Vamos
levar meus cães também, eu vou com você. Quero presenciar o exato momento em que os aniquilar. Quero vê-los sangrar e ouvir os gritos agonizantes.


Antes de deixarmos o oásis, tenho de ligar para Hans Lategan vir nos buscar de helicóptero - Hector disse a Tariq e puxou o telefone por satélite da mochila.

Estendeu a antena e ligou o aparelho. Hans atendeu ao primeiro toque. Hector sorriu. Devia estar esperando com o polegar no botão.

- Aqui é o Kudu - Hans forneceu seu indicativo de chamada.

- Queijo Stilton! - Hector respondeu.

Esse era o código que haviam combinado usar quando saíssem da fortaleza com Cayla e estivessem a caminho do ponto de encontro. Hector havia considerado a ideia de
ter um helicóptero pairando por perto. Mas o barulho dos motores teria alertado o inimigo de sua presença.

- Positivo! A Duquesa está extasiada.

"Maldito Hans por essa parte adicional da conversa", Hector pensou com raiva. Duquesa era o codinome de Hazel Bannock. Ela estava esperando em Sidi el Razig - como
poderia saber que Cayla já havia sido resgatada da fortaleza? Ele deixou o pensamento de lado. O ponto de encontro combinado ficava na extremidade mais distante
da ravina ao norte. Hans viria da pista de Jig Jig e sobrevoaria a ravina até avistar o sinal de reconhecimento - mais um sinalizador luminoso de socorro. Hans tinha
calculado que levaria cerca de duas horas e dez minutos de voo de Jig Jig. Hector calculara que a distância até o aterro sul da ravina seria de aproximadamente seis
quilômetros e meio, ou talvez um pouco menos. Os perseguidores estariam dirigindo caminhonetes quatro por quatro. Embora o terreno fosse acidentado e cruzado por
afloramentos rochosos e vales, as caminhonetes seriam pelo menos duas vezes mais velozes do que seu pequeno grupo. Por estar doente e malnutrida, Cayla pesava cerca
de 45 quilos. Sabia que, em condições ideais, seus homens provavelmente conseguiriam chegar à ravina em aproximadamente uma hora e cinquenta minutos. Mas não na
escuridão, não sobre aquele tipo de terreno, não tendo que carregar Cayla. "E se eles soltarem os cães?", perguntou a si mesmo e então respondeu: "Que se danem os
cães!".

Tariq observava o rosto dele, e Hector falou em voz alta:

- Sei o que quer me perguntar, se eu contei para o Uthmann que iríamos para o norte em direção à ravina. A resposta é: não, não disse. Embora ele saiba qual é o
nosso exato ponto de partida, não sabe para qual direção correremos. No escuro, não vai achar fácil nos rastrear - não queria sequer mencionar os cães. - Portanto,
não vamos perder mais tempo.

- Vocês todos bebam o máximo de água que puderem agora. Não vamos parar de novo até ouvir o helicóptero a caminho.

Enquanto conversavam, Hector tinha afivelado três cintos juntos para criar uma tipóia para carregar Cayla. Ele a colocou de pé.

- Serviços de Mudança e Transporte Heck ao seu dispôr, srta. Bannock.

- Esse é o seu nome verdadeiro? Heck? - a voz dela estava fraca e ofegante.

- Claro - ele a ajudou a se acomodar no assento improvisado da tipoia e a ergueu até que estivesse na altura dos quadris dela, com ambas as pernas balançando para
trás.

- Coloque os braços ao redor do meu pescoço e segure forte.

Ela obedeceu docilmente, e ele correu com ela, começando com uma velocidade inferior à sua máxima e ajustando o ritmo para percorrer toda a distância. Tariq enviou
dois de seus homens adiante para encontrar a rota mais fácil, e mais dois para segui-los e tentar apagar qualquer sinal óbvio que deixassem na areia do deserto.
Cobriram o primeiro quilômetro e meio, e Hector encontrou sua segunda levada de fôlego. Alargou os passos.

- Você disse que seu nome era Heck. É apelido de Hector? Minha mãe falou sobre você. Você deve ser Hector Cross.

- Espero que tenha dito coisas boas sobre mim.

- Na verdade, não. Disse que você era arrogante e pretensioso e que iria demiti-lo na primeira oportunidade. Mas não se preocupe, vou falar com ela.

- Cayla Bannock, minha protetora.

- Pode me chamar de Cay. É como todos os meus amigos me chamam.

Ele sorriu, e ela se segurou a ele pelo pescoço com mais força. Sempre pensara que quando esse momento chegasse, que seria um menino.

"Que se dane, uma filha está de bom tamanho", resolveu. Eles correram por mais quarenta minutos até que ele parou e olhou para trás. Agora tinha certeza. O sinal
era tênue, mas inconfundível.

- O que foi, Heck? - Cayla estava tremendo novamente, a voz repleta de pânico. - Acho que estou ouvindo o latido de cães.

- Ah, não é nada com que se preocupar. Há vários cães sem dono aqui.

E então se dirigiu a Tariq:

- Consegue ouvir?

- Consigo. Estão trazendo cães e pelo menos um caminhão. Vão nos alcançar antes da ravina.

- Não não, não - Hector retorquiu. - Agora vamos começar a correr de verdade.

- Do que você está falando? Não entendo - estavam falando em árabe, e Cayla ficava cada vez mais agitada. - Estou com medo, Heck.

- Você não tem do que sentir medo. Você toma conta de mim, e eu de você. Combinado?

Ele fixou a atenção na estrela polar logo acima do horizonte e correu. Correu com todo o ar que tinha nos pulmões e a batida de seu coração ressoando nos ouvidos
como um tambor de guerra. Quando as pernas começaram a vacilar, ele deixou a mochila e o rifle para trás e continuou a correr. As pernas se estabilizaram, e ele
encontrou reservas de forças que nunca soube que tinha. Correu por mais um quilômetro e então outro. Agora finalmente ele tinha certeza de que estava esgotado, que
não conseguiria dar mais um passo sequer. Mas as pernas dele continuavam a pulsar. Tariq e Daliyah corriam ao seu lado. Daliyah carregava o rifle que Hector deixara
cair e Tariq, a mochila.

- Deixe eu carregar a menina para você - Tariq apelou.

Hector balançou a cabeça. Tariq era um homem baixo e magro, mas não tinha os músculos exigidos para aquele tipo de carga. Hector sabia que se parasse de correr por
um único segundo, que não seria capaz de começar de novo. Cobriu mais um quilômetro e meio e então soube que não dava mais, que não dava mais de jeito algum.

"Eu vou morrer aqui", pensou, "e eu nem sequer tenho um rifle. A vida é uma merda."

Ele parou e colocou Cayla no chão. Estava cambaleante. O latido dos cães ficava mais próximo, mais alto. Ele ainda tinha a pistola no cinto.

- Não posso deixar que levem Cayla, não posso deixar que ela caia de novo nas garras deles. Quando não houver mais jeito, vamos compartilhar a pistola, uma bala
para cada um.

Era a decisão mais triste e difícil que já havia tomado. Ela entorpeceu sua mente, por isso quando ouviu os homens gritando o nome dele, não conseguiu entender o
que estavam dizendo. Tudo o que conseguia escutar eram os cães. "No deserto, o som se propaga por longas distâncias", tranquilizou a si mesmo, "eles não estão tão
perto quanto parecem."

- Chegamos à ravina, Hector! - Tariq estava gritando, e por fim as palavras penetraram a sua exaustão e tristeza. - Vamos, Hector. Você conseguiu chegar até aqui.
A borda da ravina fica apenas vinte metros adiante. Venha, meu amigo!

Hector já não pensava mais logicamente. O cérebro lhe dizia que fora derrotado e que não podia prosseguir. Mas ele pegou Cayla no colo e correu. Parou apenas quando
a terra sumiu sob seus pés, e ele caiu, deslizando e rolando pela primeira ladeira íngreme da ravina. Estava rindo, e Cayla se sentou ao lado dele. Estava toda empoeirada
e tinha arranhado um cotovelo e uma das bochechas. Encarou-o espantada e começou a gargalhar.

- Você deveria ir ao médico, Hector. Você é louco, cara. Quero dizer: louco de pedra. Mas a loucura fica bem em você.

Ainda rindo, Hector usou a parede da ravina para se levantar com dificuldade.

- Tariq! - gritou. - Não podemos deixar os cães nos pegarem aqui. Precisamos chegar ao norte deste cânion, onde o Hans possa nos pegar. Reúna os seus rapazes - em
seguida, virou-se para Cayla. - Vamos, Cay. Não falta muito agora.

- Você me faz sentir que qualquer coisa é possível. De agora diante, vou caminhar sozinha.

Ela começou a descer o morro. Tropeçou e quase caiu, mas então se equilibrou e continuou andando. Hector a alcançou e, com umas das mãos no ombro dela, foi conduzindo-a,
escorregando e deslizando morro abaixo.

- Você vai conseguir - disse para encorajá-la. - Seus genes são bons, Cayla Bannock.

Tariq veio escorregando atrás dele, mantendo-se firme sobre os pés como um corredor de downhill. Os homens o seguiam. Quando alcançou Hector, devolveu o rifle e
a mochila.

- Você deixou cair isto aqui, Hector.

- Descuido meu - Hector pendurou a mochila e o rifle nas costas e conduziu todos até o estreito da ravina. Chegaram ao fundo e ficaram de frente para a parede norte.
Cayla não conseguia falar de tão ofegante que estava, mas ele não podia deixá-la descansar. Agarrou-a pela mão e subiu arrastando-a pela extremidade oposta da ravina.
A subida era íngreme e árdua, mas finalmente chegaram cambaleando à borda plana. Olhou para trás e para o outro lado. Começava a clarear a leste. Não havia sinal
do inimigo, mas era possível ouvir claramente o alvoroço da matilha de cães.

- Tariq, temos de encontrar um local para nos posicionar até que o helicóptero chegue - ele focalizou adiante e, com seu olhar de soldado, escolheu o lugar.

- Está vendo aquele afloramento rochoso à esquerda? Parece ser um bom lugar. Venha, Cay.

Eles correram em direção às rochas, o instinto de Hector estava correto. Era um lugar onde teriam uma pequena vantagem. Havia uma boa área de caça na borda da ravina
que os cães e Uthmann teriam de atravessar para chegar até eles, mas estava coberta de pedregulhos grandes. Sabia que os cães eram treinados para caçar gente. Agiriam
em bando. Mas eles se separariam quando tivessem de contornar os obstáculos, e não seriam capazes de investir contra os homens em um ataque concentrado. Hector mandou
Cayla engatinhar para baixo do abrigo proporcionado pela rocha maior e sentar com as costas na parede de pedra. Colocou a mochila no chão ao lado dela e lhe entregou
a pistola.

- Sabe atirar?

Cayla assentiu. "Pergunta imbecil, Cross", sorriu para si mesmo. Ela é filha de Henry e Hazel Bannock. É claro que sabe atirar.

- Há uma bala no cano. Sem trava de segurança. Não vou pedir muito. Apenas que mate aqueles malditos animais se avançarem em você.

Ele foi se posicionar ao lado de Tariq. Ambos olharam para o céu. O amanhecer estava a caminho.

- Deixei um homem na borda da ravina - Tariq apontou adiante. O homem estava agachado atrás de uma pedra no horizonte. - Ele vai nos avisar quando avistar os cães.

- Ótimo. O sol vai nascer dentro de mais ou menos dez minutos - disse Hector. - O Hans deve chegar por volta da mesma hora. Precisamos mantê-los afastados apenas
até o helicóptero nos alcançar.

Aguardaram e a claridade ficou mais forte. Então, o vigia gritou em árabe:

- Os cães estão chegando. Muitos cães - abandonou a posição e foi em disparada na direção deles.

- Viu se havia homens com eles? - Hector gritou.

- Não, apenas cães. Muitos, muitos cães.

O homem se juntou a eles. O coro da matilha de cães caçadores mudou de intensidade, tornando-se um latido feroz.


Uthmann estava ao volante do grande caminhão Mercedes. Adam, no banco ao seu lado, e o xeique Khan, sentado no banco de caça traseiro, mais alto do que o deles.
Tinha um guarda-costas de cada lado, para evitar que fosse jogado violentamente de um lado para outro pelos solavancos do caminhão sobre a escuridão do chão acidentado.
Mais quatro homens armados estavam amontoados na caçamba aberta na traseira. Uthmann dirigia velozmente. Tinham perdido a matilha de vista havia algum tempo, mas
seguiam seu coro de caça.

- Estão seguindo na direção do vale ao norte. Como sabiam disso? - Adam gritou sobre a vibração do motor do caminhão. - Você contou a eles, Uthmann?

- Não, mas um dos homens de Cross conhece bem o distrito. Tem família aqui - Uthmann respondeu.

- Se chegarem até lá, não seremos capazes de segui-los. Vamos ter de dar a volta. É um desvio de mais de oitenta quilômetros. Vão conseguir fugir - lamentou o velho
xeique. - Não pode deixar que isso aconteça, meu neto.

- Há um helicóptero a caminho para buscá-los - Uthmann disse.

- Tem certeza?

- Eu estava presente nas sessões de planejamento, tenho absoluta certeza, Grande xeique.

Agora os cães estavam tão na dianteira que antes de saberem se estavam na trilha certa, Uthmann teve de parar o caminhão e desligar os motores para tentar escutá-los.
Depois, deu partida novamente, e eles saíram rasgando a escuridão.

- Como o helicóptero vai encontrá-los? - Adam insistiu.

- Vão fazer uma telefonema via satélite e marcar a posição exata com sinalizadores luminosos.

De repente, Uthmann pisou no breque, e o caminhão derrapou antes de parar. A cabeça de Adam bateu no para-brisas dobrado, e os homens na caçamba foram lançados para
fora do caminhão.

- Por que fez isso? - Adam gritou furioso, segurando a ponta do seu lenço de cabeça para conter o sangramento da ferida que tinha na testa. - Você quase nos matou!

Em resposta, Uthmann apontou adiante.

- Chegamos à parede sul do vale. Mais alguns metros e teríamos caído da borda e morrido todos.

Uthmann saltou do banco do motorista e correu até a borda do precipício. Permaneceu na escuta por um minuto e depois voltou correndo ao caminhão.

- Os cães continuam a seguir a pista. Consigo ouvi-los claramente agora. Precisamos deixar o caminhão aqui e prosseguir a pé.

Correu até os homens que tinham sido jogados do caminhão e chutou os corpos espalhados no chão. Um deles estava provavelmente morto, a cabeça dele pendia do pescoço
quebrado. Outros dois estavam fora da jogada - um com o cotovelo direito destroçado, e o outro com ambas pernas fraturadas. O quarto homem se levantou cambaleante,
mas estava tonto e com uma concussão.

- Nenhum destes porcos tem nenhuma serventia para mim - Uthmann rosnou.

Ele apontou para os homens sentados ao lado do xeique.

- Vocês dois! Desçam e me sigam!

- Não! - Adam gritou de volta. - Eles são os guarda-costas do meu avô. Permanecem o tempo todo ao lado dele. Não podemos deixá-lo aqui desprotegido. Há trinta homens
da fortaleza nos seguindo a pé. Podemos esperá-los chegar antes de avançar.

- Quando chegarem aqui, Cross e a menina já estarão no helicóptero e fora de alcance. Se você não tem estômago para vir comigo agora, espere aqui o quanto quiser.

- A coragem e a honra do meu neto são imaculadas. Irá com você e mostrará o caminho - o xeique Khan interveio.

Adam se prostrou no chão, ainda agarrando o tecido ensanguentado na testa.

- Está pronto para lutar? - Uthmann perguntou.

- Mais preparado do que você jamais estará - Adam rosnou para ele e pegou o rifle do suporte atrás do banco.

- Você tem de agradecer Alá por ele ter lhe dado uma cabeça de pedra - Uthmann riu dele ao correr para trás do caminhão.

Entre a pilha de armas e de equipamento que tinha se deslocado com a brecada de emergência, ele selecionou uma RPG de fabricação russa e um estojo de lona contendo
duas bombas para a arma. Pendurou-os nas costas e deu a volta até a frente do caminhão. Olhou para o xeique Khan no banco elevado.

- Onde vamos nos encontrar, Lorde Khan? - perguntou ao velho.

- Vou levar o caminhão pela beira do vale até encontrarmos a estrada que o atravessa. Assim que cruzarmos o wadi, vamos retomar este caminho e procurá-los no outro
lado - o xeique apontou para o outro lado da sombria extensão de terra ao norte. - A essa altura, o sol já vai ter nascido, e poderemos procurar os rastros ou ouvir
o barulho dos cães.

- Quando nos encontrarmos de novo, depositarei a cabeça do infiel que matou o meu pai e os meus tios aos seus pés - Adam lhe disse. - Agora, peço sua benção, avô.

- Você tem a minha benção, Adam. Que Alá o acompanhe, e que mantenha a jihad forte em seu coração.

Adam teve de correr para alcançar Uthmann antes que ele desaparecesse ravina abaixo. Desceram pelo declive quase vertical, escorregando e deslizando em pedras soltas
e xistos. Adam foi aos poucos ficando para trás de Uthmann.

- Espere por mim - ele ofegava. A camisa dele já estava coberta de suor.

- Depressa! O helicóptero já deve estar vindo buscá-los - Uthmann gritou sem parar de correr. - O infiel irá escapar da ira legítima de Alá e do seu avô.

Adam sentia como se as pernas estivessem se transformando em manteiga. Ele escorregou e caiu de barriga. Ficou de pé, tossindo e engasgando no pó que levantara.
Depois, retomou a descida, mas estava mancando e cambaleando. Uthmann chegou ao fundo e parou pela primeira vez para olhar para trás.

"Porquinho de corpo mole! É bom apenas para estuprar mulheres e assassinar prisioneiros", Uthmann pensou sem demonstrar o seu desprezo.

- Está indo bem. Não falta muito - gritou, mas Adam perdeu o equilíbrio mais uma vez.

Dessa vez, caiu de frente e atingiu o chão rochoso com força. Rolou pelo desfiladeiro nos últimos seis metros. Tentou se colocar de pé, mas o tornozelo direito estava
machucado e não podia com o peso de seu corpo. Ele caiu de joelhos.

- Me ajude! - gritou.

Uthmann deu meia-volta e o pôs de pé. Adam deu alguns passos mancando e depois parou.

- Meu tornozelo! Não consigo pisar com este pé.

- Você deve tê-lo torcido. Não há nada que eu possa fazer para ajudar - Uthmann disse. - Siga-me na melhor velocidade que puder.

Ele abandonou Adam e começou a subir pela parede oposta do vale.

- Não pode me deixar aqui - Adam gritou, mas Uthmann não olhou para trás.


-Escute os cães. Farejaram nosso rastro doce e quente - Hector gritou. - Preparem as armas!

As travas das culatras dos rifles estalaram. Seis rifles, cada um com trinta balas no pente. Eles seriam capazes de lançar praticamente uma parede sólida de disparos.
O campo de visão adiante era de noventa metros. Todos os homens eram exímios atiradores. Nenhum dos cães iria alcançá-los. Mas, se fosse esse o caso, usariam as
baionetas.

- Montem as baionetas! - Hector ordenou, e os homens alcançaram e desdobraram as baionetas debaixo da boca dos rifles. - Tariq, acenda os sinalizadores para o helicóptero
agora!

As chamas durariam vinte minutos, e a essa altura Hans com certeza já teria chegado e sido guiado até o posicionamento deles. Cada um dos homens tinha um sinalizador
na mochila. Tariq deu a ordem gritando, e eles acenderam e atiraram os sinalizadores. Hector percebeu tarde demais que deveria ter deixado claro que tinham de jogá-los
para trás, não adiante do posicionamento. A brisa do amanhecer batia no rosto dos homens e enviava a densa nuvem de fumaça sobre eles, embaçando completamente a
sua visão. Antes que Hector conseguisse mandar um dos homens remover os sinalizadores, os cães surgiram em meio a fumaça. Estavam apenas 15 metros adiante da fileira
dos homens quando se tornaram visíveis. Corriam juntos a toda a velocidade. Numerosos demais para Hector contar. Silhuetas de lobos através da fumaça, clamando por
sangue. Tinham corrido muito e espuma jorrava das mandíbulas abertas, espirrando sobre os flancos.

- Atirem! - Hector berrou. - Atirem!

Ele fez apenas três disparos, matando um animal com cada bala. Os homens ao lado dele disparavam na mesma velocidade. Os cachorros gritavam e iam ao chão, mas outros
atacavam através da fumaça em espiral. Ao lado de Hector, Tariq foi derrubado para trás pelo peso de um enorme cão preto que esmagava o seu peito. Hector se virou
e, antes que o animal conseguisse cravar os caninos na garganta de Tariq, ele o golpeou no pescoço com toda a extensão da baioneta. Ele uivou e virou com as pernas
para cima, chutando. Mas, nesse momento, um outro cão atingiu Hector por trás, desequilibrando-o e fazendo com que se esparramasse no chão. O cão estava sobre ele.
O rifle não servia para nada nessa proximidade de embate. Hector deixou que ele caísse e segurou o cão pela garganta com a mão esquerda; com a direita, alcançou
a faca de trincheira no cinto. Antes que conseguisse erguê-la, outros dois cães estavam sobre ele. Rosnando e tentando morder, lutavam para enterrar os dentes nele.
Um o agarrava pelo ombro da jaqueta e, pressionando com as pernas dianteiras dobradas, o mantinha com as costas no chão. O terceiro prendeu o braço que segurava
a faca pelo cotovelo e o lacerava com sacudidas violentas da cabeça. O primeiro animal ainda estava em cima dele, a mandíbula escancarada a poucos centímetros de
seus olhos, espumando saliva soprada pelo hálito fétido no rosto de Hector. Ele se contorcia e puxava a mão de Hector com tanta violência que não seria possível
aguentar por muito tempo mais.

Um tiro de pistola foi disparado a apenas trinta centímetros de seu ouvido direito, e a explosão quase o deixou surdo. O cão o soltou e desabou sobre ele, o sangue
espirrava do ferimento na cabeça. O estalo de mais dois tiros foi ouvido em rápida sucessão, e os outros cães que o atacavam caíram para o lado. Hector sentou e
limpou o sangue do animal com a manga, cuspindo-o também da boca. Quando conseguiu enxergar melhor, olhou espantado para Cayla. Ela tinha engatinhado do abrigo seguro
sob a rocha e agora estava ajoelhada ao lado dele, segurando a pistola com as duas mãos, o braço direito estendido de modo profissional, balançando-o de um lado
para o outro em busca do próximo alvo.

- Sua linda! - ele falou ofegante. - Sua coisinha linda. Você é com certeza a filha da sua mãe!

Ele agarrou o rifle e ficou de pé de um salto, mas a briga dos cães estava quase encerrada. O terreno estava inundado de cadáveres caninos, e os homens estavam dando
cabo dos poucos animais feridos que ainda perambulavam aterrorizados e com dor. Então, olhou para o horizonte acima e viu um grande helicóptero MIL-26 russo a menos
de um quilômetro e meio de distância, sobrevoando rente à crista na direção deles.

- Lá vem o Hans - explodiu em uma gargalhada. - Está terminado. Filés e uma garrafa de Richebourg para o jantar em Sidi el Razig hoje à noite.

Ele puxou Cayla para que ficasse de pé e colocou um dos braços de forma paternal sobre seus ombros. Observavam a grande máquina acelerando em direção a eles. De
vez em quando ficava escondida pelas nuvens de fumaça dos sinalizadores, mas cada vez que a brisa afastava a fumaça para o lado, o helicóptero se aproximava mais
e mais, e o som dos motores se intensificava. Finalmente, estava pairando diante deles a uma altura de apenas quinze metros, e era possível enxergar Hans de trás
da capota olhando para eles. Ele sorriu, saudou-os e depois rodou o helicóptero até se posicionar paralelamente em relação a eles. A porta principal da fuselagem
estava aberta e duas figuras estavam de pé na abertura. Uma era o engenheiro de voo, mas a outra deixou Hector boquiaberto.

- Mulher louca! - sussurrou.

Ele tinha mandado que ela voltasse pra Sidi el Razig após a viagem até Jig Jig, mas deveria ter considerado que Hazel Bannock não era boa em acatar ordens. Dá-las,
sim, mas não recebê-las.

- Mamãe! Mamãe! - Cayla berrou, histérica.

Ela pulava para cima e para baixo e acenava com a pistola acima da cabeça. Da porta, Hazel acenava com a mesma energia. Hans desceu com o MIL-26 até eles e, assim
que o trem de pouso tocou o solo, Hazel desceu de um salto da abertura, aterrissou com elegância e saiu correndo como louca em direção à filha. Cayla se desvencilhou
do braço protetor de Hector e saiu tropeçando ao encontro da mãe.

- Isso é o que eu chamo de uma cena bonita! - disse Hector com um sorriso, enquanto observava as duas mulheres correrem uma para os braços da outra, dando gritinhos
e chorando de alegria. Sentiu as lágrimas ardendo nos próprios olhos e balançou a cabeça.
- Abrindo o berreiro como um bebé. Você está amolecendo, Cross - Hazel olhou para ele por sobre os ombros de Cayla enquanto abraçava a filha. As lágrimas jorravam
pelo rosto dela, pingando pelo queixo. Ela não fez menção de enxugá-las. Não precisava dizer nada, a maneira como olhava para ele era eloquente o suficiente.

- E eu amo você também, Hazel Bannock! - gritou para que o mundo inteiro ouvisse.

Em seguida, voltou a se concentrar no que estava acontecendo e acenou para que Daliyah e os homens de seu grupo prosseguissem e embarcassem no helicóptero. Eles
pularam e saíram correndo em bando pelo terreno descampado.

- Hazel! Coloque a Cayla a bordo! - ele foi correndo na direção das mulheres.

Hazel escutou o que ele disse e agarrou Cayla pelo pulso, arrastando-a no sentido da aeronave. Em seguida, um outro tom de voz atravessou a alegria exultante de
Hector como o corte de um sabre.

- Na beira da ravina, Hector! - era Tariq.

Ele apontava para além do helicóptero, e o olhar de Hector girou naquela direção. Havia um homem ali, e apesar de estar a quase duzentos metros de distância e apenas
a cabeça estar visível acima da borda, Hector o reconheceu instantaneamente.

- Uthmann Waddah! - o choque paralisou sua mente.

Tariq não tinha como atirar diretamente no antigo camarada de onde estava. Os homens do grupo e as duas mulheres correndo o bloqueavam. Apenas Hector estava em posição
de lidar com o traidor. Mas, por algumas frações vitais de segundo, ele ficou paralisado. Em qualquer outra circunstância, se fosse qualquer outra pessoa e não Uthmann,
a reação dele teria sido instantânea, mas Hazel e Cayla haviam usurpado toda a sua atenção. Ele finalmente se mexeu, mas foi como se estivesse tentando nadar numa
banheira de mel grudento. Observou Uthmann pular da ravina, correr três passadas adiante e se abaixar apoiado em um dos joelhos. Viu ele erguer um longo tubo de
metal e colocá-lo sobre o ombro direito.

- RPG! - mesmo àquela distância, Hector sabia exatamente do que se tratava.

A granada-foguete, a arma predileta do insurgente, podia arrebentar a armadura de um tanque de batalha como se fosse uma camisinha barata. Uthmann estava mirando
fixa e deliberadamente o helicóptero.

A essa altura, Hector já estava com a Beretta apoiada no ombro. Inconscientemente, notara que Uthmann ainda estava vestindo o colete à prova de balas. Era uma edição
da Bannock e da melhor qualidade, feita de Kevlar com enxertos de placas de cerâmica. Àquela distância, a bala de 5.56 mm da OTAN era famosa pelo péssimo desempenho
contra essa espécie de armadura corporal. Originalmente projetada para atingir esquilos e cães de pradaria - não seres humanos -, a bala provavelmente rolaria pelo
chão com o impacto e não penetraria a carne, mas seria suficiente para derrubar Uthmann. Um instante antes de Hector atirar, Uthmann disparou o RPG.

Hector viu a explosão de retorno após o disparo do projétil atrás de Uthmann, assim como o rastro de fumaça da granada ao ser lançada no sentido do MIL-26. Antes
que ele atingisse o alvo, Uthmann saiu rodopiando após a bala de Hector explodir contra o painel frontal de sua jaqueta, e ele foi arremessado ao chão rochoso com
uma força brutal. Antes de Uthmann atingir o chão, a granada atingiu a frente do helicóptero e explodiu. Hector cambaleou quando a onda da explosão o alcançou, mas
permaneceu de pé. A alguns metros de distância da aeronave, Hazel e Cayla caíram agarradas uma a outra. Daliyah e os homens que a acompanhavam estavam mais próximos
da explosão. Todos foram derrubados e Hector sabia que alguns provavelmente tinham se ferido gravemente ou mesmo morrido. O engenheiro de voo que estava na porta
foi destroçado. Hector viu a cabeça e um dos braços rodopiando pelo ar.

O nariz e a parte frontal da fuselagem foram arrancados. A cabine do piloto e a capota tinham desparecido deixando um buraco em seu lugar, e não havia sobrado nada
que pudesse ser reconhecido como o corpo de Hans Lategan. Ele tinha recebido o impacto mais pesado da explosão. Fora de controle, a máquina gigante caiu para o lado,
os rotores rodopiando açoitando a terra endurecida, torcidos em formatos extraordinários antes dos motores cessarem, e um manto de poeira e fumaça pairava sobre
os destroços.

Por um momento, reinou o silêncio. Em seguida, Tariq gritou:

- O Uthmann está de pé. Atire nele, Hector. Em nome de Alá, atire de novo nele.

A visão de Hector agora estava parcialmente obstruída pela fumaça e a poeira, mas ele atirou na silhueta nebulosa cambaleando de costas para a borda da ravina. Hector
não tinha certeza se tinha atingido Uthmann ou se ele tinha simplesmente caído da beirada. Tariq saiu correndo na direção dele.

- Volte, Tariq! - Hector gritou. - Deixe-o em paz! Os homens dele provavelmente vêm seguindo logo atrás. Temos de sair daqui. Vá ver como estão os outros. Vá ver
como está a Daliyah.

Tariq deu meia-volta, e Hector correu até onde Hazel e Cayla estavam caídas. Estava desesperado de medo e de preocupação. Elas estavam bem dentro da zona de perigo,
e podiam facilmente ter sido atingidas pelos estilhaços da granada ou por pedaços voadores de metal da fuselagem. Ele caiu de joelhos ao lado delas. Hazel estava
sobre Cayla com os braços estendidos sobre a filha para protegê-la. Com medo que estivessem sangrando, Hector alcançou uma das mãos de Hazel. Ela girou a cabeça
e olhou para cima com uma expressão confusa no rosto, e então se sentou rapidamente e estendeu os braços para ele.

- Hector! - ela o beijou de boca aberta, e em seguida ambos voltaram a atenção completamente para Cayla. Os dois a ajudaram a se levantar.

- Você se machucou, bebé? - Hazel indagou ansiosamente.

- Não, mamãe. Não se preocupe comigo, estou bem.

- Ótima notícia - disse Hector -, porque temos de nos mexer imediatamente. Hazel, essa sua filha está fraca como um recém-nascido, mas é forte como um molho de pimenta.
Ela simplesmente não desiste. Vou mandar alguém ajudar você a mantê-la de pé.

Ele correu até onde Daliyah e os demais estavam se reagrupando. Alguns haviam sido atingidos por fragmentos que voaram com a explosão, mas embora tivessem cortes
e hematomas, ninguém estava incapacitado de prosseguir. Daliyah parecia ter saído ilesa.

- A menina precisa da sua ajuda - Hector disse, e ela correu até Hazel e Cayla.

Ele se virou para os homens e ordenou:

- Arrumem o equipamento, vamos partir já.

- Que direção vamos seguir, Hector? - Tariq perguntou.

- Vamos atravessar de novo a ravina.

Todos olharam para ele espantados, e ele logo esclareceu.

Se prosseguirmos para o leste, não vamos encontrar muita coisa além de deserto e mais deserto. Agora que eles perderam os cães, o inimigo não vai saber com certeza
que rota seguimos, mas provavelmente esperam que sigamos para o leste em direção à costa - ele se virou e apontou para o sentido de onde tinham vindo. - Porém, a
estrada norte-sul principal passa perto do Oásis do Milagre e da fortaleza. Correto, Tariq?

- Correto, fica a cerca de 16 quilômetros a oeste da fortaleza. Tem bastante tráfego - Tariq confirmou.

- Se conseguirmos chegar lá, vamos nos apoderar do primeiro ônibus ou caminhão conveniente que aparecer.

Os homens começaram a se reanimar imediatamente. A derrubada do helicóptero os tinha deixado mudos de desespero, mas Hector havia oferecido um plano e um vislumbre
de esperança. Em poucos minutos, estavam prontos para partir.

Eles formavam uma pequena e estranha caravana - três mulheres de diferentes idades e tons de pele e seis homens em trajes de camuflagem rasgados e ensanguentados.
Todos cobertos de sujeira e poeira. Hector tomou a dianteira, e Tariq seguiu por último com dois homens ajudando a apagar os rastros deixados pelo grupo em fila.
Cayla estava no meio, apoiada pela mãe em um lado e por Daliyah do outro. Formaram uma fila na beira da ravina e começaram a longa descida até o fundo. Quando começaram
a escalar a parede oposta, a maioria estava próxima da exaustão, e o ritmo diminuiu inexoravelmente. Hector ia de uma ponta à outra da fila, tentando incentivá-los
com falsas garantias e piadinhas grosseiras que, por sorte, Hazel e Cayla não entenderam. Os homens que tinham se ferido na explosão da bomba RPG sofriam bastante
agora, e novamente as pernas de Cayla começaram a fraquejar. Hector a carregou nas costas na última subida íngreme até o alto do vale. Ao chegarem ao topo, os demais
se jogaram sob a primeira sombra que encontraram, e permaneceram ali arfando como cães. As garrafas d'água estavam praticamente secas.

Hector se sentou com Hazel e Cayla, e as fez compartilhar os últimos goles que restavam em sua garrafa. Deu mais um tablete de antibiótico a Cayla. Ele tinha certeza
de que a medicação estava tendo um efeito benéfico. A cor do rosto dela estava melhor, e o espírito, fortalecido. Ele a tocou na testa, e a temperatura pareceu próxima
do normal.

- Mostre a língua! - ordenou.

- Com todo o prazer - ela tentou parecer arrogante, esticando a língua até o máximo. A penugem branca que a cobria estava se dissipando.

Ele se aproximou mais e examinou o hálito de Cayla. Não tinha mais o fedor de uma infecção.

- Coloque para dentro - ele disse -, você não vai querer deixar essa coisa para fora para as pessoas saírem tropeçando sobre ela.

Cayla alongou as costas e fechou os olhos. Hazel suspirou e se apoiou no ombro de Hector. Ele acariciou levemente os cabelos delas ensopados de suor, afastando-os
dos olhos dela ao mesmo tempo que murmurava palavras carinhosas e de encorajamento.

Estavam tão entretidos um com o outro que não perceberam que Cayla os observava através dos cílios, até que ela arregalou os olhos e perguntou:

- Quer dizer que mudamos de ideia quanto a despedir Heck, não é, mamãe?

Hazel pareceu espantada por um momento e depois se sentou com as costas retas e, sem olhar para Hector, ficou com o rosto completamente vermelho. Hector a observava
com prazer.

"Meu Deus, adoro quando ela faz isso", pensou.

- Tudo bem, mamãe. Eu já estava maquinando um jeito de aproximar vocês dois. Parece que eu não precisava ter me preocupado tanto.

- Muito bem, garotas, de pé! Hora de partir.

Hector esperou Hazel se recompôr e se levantou. Ele olhou adiante. Aos primeiros raios solares do amanhecer, o deserto parecia dotado de um austero esplendor. Não
havia o menor sinal de vegetação, mas a areia cintilava como um tesouro de diamantes quando o sol atingia os grãos de sílica, e os pequenos morros rochosos eram
tão majestosos como esculturas de Rodin. Ele conseguia sentir o calor aumentando. Tinha dado toda a água que possuía às mulheres. A boca dele estava seca e, ao tocar
os lábios, viu que estavam ásperos como uma lixa. Havia passado vários anos de sua vida em locais desérticos, portanto ao conduzir o grupo adiante, procurava ao
mesmo tempo por sinais de água na superfície e por inimigos escondidos. Não demorou para que todos estivessem com problemas de desidratação, erodindo suas últimas
reservas de forças, e ele teve de permitir que descansassem de novo. Pegou duas pedras de quartzo e deu uma para Hazel e outra para Cayla.

- Chupem! - ordenou. - Isso vai evitar que a boca de vocês resseque completamente. Respirem pelo nariz e falem apenas se for necessário. Vocês precisam economizar
fluidos corporais.

O olhar de Hector se desviou delas para os homens. Um estava encolhido e com o rosto agoniado, lutando contra cólicas. O resto não parecia que iria se sair bem numa
briga. Uma pequena nuvem passou sobre o brilho do sol, e o alívio foi imediato, ainda que temporário. Olhou para cima e viu pássaros em silhueta contra a nuvem cinza.
Havia cinco deles, grandes e ligeiros batendo as asas velozmente. Ele se levantou e protegeu os olhos. Ambas as mulheres o observavam.

- O que você viu? - Cayla indagou.

- Columba guinea para os ornitologistas - respondeu -, mas para mim e você, simplesmente os velhos pombos da guiné.

- Ah! - Cayla não tentou esconder a decepção. - Nem consigo dizer como isso é fascinante, Heck.

O bando de pombos começou a descer e, voando em círculos ao sol, exibiam a bela tonalidade de azul de suas penas, os pescoços cor de vinho e os contornos brancos
ao redor dos olhos.

- Quando voam assim em bando a esta hora do dia, estão indo beber água.

- Água? - as duas mulheres perguntaram ao mesmo tempo.

- Quando aterrissam assim, é porque a encontraram - disse. - Não é que isso é mesmo fascinante, Cay?

- Às vezes você me faz sentir como se eu fosse retardada - ela respondeu num tom arrependido.

- Pode ter certeza, Cay, que você age como uma só de vez em quando. De pé, senhoras, vamos dar uma olhada.

Ele havia memorizado o ponto para onde o bando havia se dirigido e o estabelecido a cerca de 400 metros. Ao se aproximarem, as características geográficas se tornaram
mais claras. Havia um pequeno vale do outro lado da trilha, uma ramificação do desfiladeiro principal, que atravessava um série de estratificações de formações rochosas.
A faixa do aquífero calcário estava claramente visível, sobreposta pelo xisto laranja. De repente, o bando de pombos surgiu da parede do vale batendo as asas ruidosamente.
Haviam se escondido numa fissura horizontal formada pela erosão do calcário mais macio sob a impenetrável parede rochosa e íngreme.

- Bingo! - gritou Hector com um sorriso enquanto os conduzia para o pé da parede do wadi. Enquanto todos desabavam agradecidos sob a sombra, ele a escalou até alcançar
a fissura sob a camada de calcário. Quando espiou pela abertura escura, pôde sentir o cheiro de água. A largura da fenda permitia apenas que ele engatinhasse. A
água se encontrava em uma poça rasa mais ao fundo da caverna rebaixada. Ele apanhou um punhado com a mão e experimentou.

- Merda! - ele disse. - Literalmente! Merda de pombo! Mas o que não mata engorda!

Ele gritou para Tariq levar as garrafas d'água. Ele coou a água na camisa e, apesar do gosto nojento, todos esvaziaram as garrafas. Hector as encheu de novo. Quando
finalmente todos mataram a sede, Hector encheu as garrafas pela terceira vez. Ao descer pela parede, olhou para o pequeno grupo lá embaixo. A mudança era quase mágica.
Os homens estavam sorrindo e conversando em voz baixa. Hazel estava sentada ao lado de Cayla, cantarolando baixinho enquanto penteava e trançava o cabelo da filha.

- Mulheres! - Hector murmurou carinhosamente, balançando a cabeça. - Onde ela foi encontrar um pente?

Em seguida, gritou:

- Não fiquem muito à vontade, pessoal, estamos partindo neste exato minuto.

Eles se organizaram em grupo novamente e escalaram para fora do wadi. Rumo ao oeste, Hector se manteve na parte mais elevada possível, vigiando o território ao redor
com muita atenção. Em uma hora, teve um bom motivo para ficar satisfeito com essa vigilância. Cerca de três quilômetros para o sul, avistou uma minúscula penugem
de poeira subindo pelo céu incandescente em tons de bronze. Ela se movia lentamente na direção deles, e Hector desejou ter levado os binóculos, mas tinha se preocupado
em cortar ao máximo o peso das mochilas. Após um breve momento de observação, ficou claro que a poeira estava sendo levantada por um veículo qualquer em velocidade
reduzida.

- O que quer que seja está bom para mim - ele se levantou e chamou Tariq.

Sem perder tempo, deu ordens para que dois homens vigiassem as mulheres, enquanto ele e o resto corriam ao encontro do veículo que se aproximava. Logo se tornou
evidente que ele estava acompanhando um antigo leito de rio ressecado e arenoso que percorria a extensão de um vale raso, onde o piso não era tão rachado e acidentado.
Quando alcançou um ponto do rio onde as margens eram mais rasas, Hector pode enxergá-lo com clareza pela primeira vez. Reconheceu de imediato o caminhão Mercedes
com tração nas quatro rodas, de porte mediano. O para-brisas estava dobrado, e havia um motorista, com outros três homens sentados em um banco mais elevado atrás
dele. Os quatro estavam armados e usavam trajes tradicionais - túnicas e turbantes. Hector esperou até que o caminhão fosse encoberto novamente pela margem do leito
do rio.

- Sigam-me! - Hector se levantou de um salto e, com seus homens logo atrás, desceu correndo pela encosta até caírem estendidos no chão da beira da margem, adiante
do caminhão. O Mercedes surgiu próximo da curva a cerca de duzentos metros adiante deles. Hector deixou que o veículo prosseguisse até ficar quase rente ao seu posicionamento
e, em seguida, ele e Tariq pularam no leito abaixo, bloqueando o caminho com os rifles apontados para os ocupantes do veículo.

- Não encostem nas armas ou mato vocês! - Hector gritou em árabe. - Desligue o motor. Coloquem as mãos acima da cabeça.

O motorista e dois dos homens atrás dele obedeceram com rapidez, mas o terceiro que estava sentado mais próximo à traseira do veículo, ficou de pé. Era muito alto,
mas também muito velho. O rosto dele era inacreditavelmente enrugado, e a ponta da barba branca e comprida havia sido pintada com hena. Na mão esquerda, segurava
um rifle de assalto AK-47. Encarou Hector com o olhar hipnótico e selvagem de um profeta bíblico e ergueu a mão direita para apontar para ele com um dedo com artrite
que era como a garra de um animal.

- Você é o assassino dos meus três filhos. Você é Cross, o infiel porco e imundo a quem declarei uma dívida de sangue. Amaldiçoo você com todo o poder de Alá. Que
você nunca encontre a paz mesmo depois de ser morto por mim.

- É o xeique Tippoo Tip - Tariq gritou alertando-o.

Hector manteve a pontaria no centro do peito do xeique.

- Abaixe esse rifle! - gritou com rispidez. - Desça do caminhão, senhor! Não me force a matá-lo.

O xeique era como um homem surdo. Sem tirar os olhos de Hector, começou a erguer o AK-47. As mãos contorcidas tremiam com a força do ódio que sentia.

- Não faça isso! - Hector avisou, mas o xeique ignorou a ameaça do rifle apontado para o seu peito.

Ele acomodou a coronha do AK-47 em um dos ombros e mirou por sobre do cano trêmulo.

- Deus me perdoe! - Hector sussurrou e atirou no meio do peito do homem. Tippoo Tip deixou o rifle cair, mas se agarrou à grade de proteção.

- Amaldiçoo você e seus descendentes. Amaldiçoo você com as chamas do inferno e as garras e os dentes dos anjos negros... - antes que Hector conseguisse evitar,
Tariq atirou no xeique mais uma vez, dessa vez na cabeça.

O xeique foi jogado para trás, do caminhão para o chão arenoso do leito do rio. Os dois guarda-costas rosnaram de fúria e agarraram as armas, mas antes que conseguissem
atirar uma única bala, Hector disparou rajadas curtas de três tiros em ambos. Os guardas foram derrubados dos assentos. Tariq disparou uma saraivada no motorista
atrás do volante assim que ele apontou uma pistola, matando-o instantaneamente. Em seguida, foi até o caminhão e puxou o motorista do assento para o wadi. Olhando
os corpos de cima, bem de perto, deu um tiro de misericórdia em cada um. No entanto, quando foi até o corpo do xeique, Hector o deteve.

- Não, Tariq! Chega. Não faça nada com o velho desgraçado.

Tariq olhou para ele levemente surpreso, e nem mesmo Hector conseguiu entender os próprios escrúpulos, pois o homem era velho. Sabia que Tippoo Tip era um monstro
cruel e perigoso, mas era velho. Tinha sido inevitável, mas mesmo assim havia deixado um gosto amargo na boca. Graças a Deus, Hazel não precisou testemunhar aquilo.

Ele foi até o caminhão e subiu no assento do motorista. Ligou a ignição e o motor deu partida.

- Parece estar em ordem - Hector verificou o indicador de combustível. - Um pouco mais de três quartos do tanque.

Mas viu que havia tanques de combustível para longas distâncias em ambos os lados do veículo.

- Uns 450 litros em cada um - calculou com satisfação. - Não teremos problemas por uns 1600 quilômetros ou mais.

Havia também um tanque de água potável encaixado atrás do bancos dianteiros, e ele bateu na lateral com os nós dos dedos.

- Cheio! - disse, mas havia sido perfurado por uma das balas e a água vazava do buraco. Hector rasgou uma tira da cauda do pano que usava na cabeça e estancou o
vazamento.

Em seguida, Hector acenou para os homens e, enquanto eles subiam no veículo, vasculhou o conteúdo do compartimento entre os assentos. Encontrou um mapa em escala
ampliada da área, com todas as rodovias e vilarejos indicados por nome e local. Isso foi um prêmio, mas o melhor de tudo foi o par de poderosos binóculos Nikon,
ainda guardado em seu saco de lona verde.

- Sou como uma criança em uma manhã de Natal! - disse com uma risadinha.

Pendurou os binóculos no pescoço, verificou se todos os homens estavam a bordo e dirigiu até onde tinha deixado o restante do grupo, escondidos entre as rochas com
as armas de prontidão. Então Hazel o reconheceu e desceu correndo ao encontro do caminhão.

- Você está bem? Ouvimos disparos.

- Como pode ver, éramos nós atirando. Agora podemos partir novamente com conforto. Hazel, você vai comigo na frente - a seguir, apontou para trás com um dos polegares.
- Cay, quero você na caçamba, mantendo a cabeça bem abaixada caso nos deparemos com mais tiroteios.

Cayla escalou a lateral metálica do caminhão e se deteve enojada.

- Que nojo! Há sangue por todos os lados. Não vou. Quero sentar perto da minha mãe no banco da frente.

- Cayla Bannock, pare de bancar a madame comigo. Comporte-se. Coloque seu fundamento já neste caminhão!

- Mas eu não quero...

- Escute, menininha. As pessoas estão sangrando e morrendo por sua causa. De agora em diante, você vai fazer o que eu mandar.

- Nunca fiz nada de errado... - começou de novo.

- Sim, você fez. Convidou Rogier Marcel Moreau, vulgo Adam Tippoo Tip, a bordo do iate da sua mãe.

- Como soube disso? - olhou para ele com uma expressão desolada.

- Se não sabe, deve ser mesmo uma idiota. Agora, suba no caminhão.

Sem dizer mais uma palavra, Cayla escalou pela lateral e se sentou ao lado de Daliyah na caçamba.

Hector engatou a marcha e foi embora. Ao lado dele, Hazel permanecia calada e imóvel. Não queria olhar para ela, mas podia sentir sua raiva. Sabia o quanto era protetora
em relação a Cayla. Dirigiu em alta velocidade, descendo de novo até o leito do rio. O piso arenoso dificultava a locomoção, mas era mais veloz e macio do que o
chão pedregoso e rachado e as cristas. Estavam havia pouco tempo na estrada quando, de repente, ele sentiu uma mão em sua coxa e deu um sobressalto de surpresa.
Olhou de soslaio para Hazel, cujos olhos cintilavam. Ela se reclinou na direção dele até que ficasse a poucos centímetros de seu ouvido.

- Você sabe lidar maravilhosamente bem com crianças, não é mesmo, Hector Cross? - ela sussurrou, roçando o rosto áspero de Hector com os lábios. - Você não sabe
quantas vezes eu quis fazer exatamente aquilo. Quando a mademoiselle Cayla começa a dar chilique, pode ser uma verdadeira megera.

A admissão surpreendeu Hector. Ele cobriu a mão em sua perna com a sua, muito maior, e a apertou.

- Espero que seja um sinal de que está melhorando. Entendo o seu problema, Hazel. Há muito tempo que Cay está órfã de pai, e você não se sente à vontade para ser
severa demais com ela.

Dessa vez, foi ela quem ficou espantada com o entendimento dele. Depois, se recompôs.

- Eu tenho uma pessoa em mente para assumir o papel paterno - ela disse em voz baixa.

- Sorte dele - ele sorriu e continuou a dirigir.

Em uma hora, eles deixaram o leito do rio e subiram até um terreno mais elevado. Hector brecou e desligou o motor.

- O que foi agora? - Hazel perguntou com ansiedade.

- Quero fazer alguns telefonemas via satélite. O sinal deve ser bom aqui.

Ele desceu do veículo e, enquanto abria o mapa recém-adquirido sobre o capô do motor e ligava o telefone, disse a Tariq:

- Dê uma caneca cheia d'água para todo mundo. Deixe que estiquem as pernas e tirem água dos joelhos.

Ele estendeu a antena do telefone e assentiu para Hazel.

- Bom sinal! Dave haver um satélite bem acima das nossas cabeças.

- Para quem você está ligando?

- Para o Ronnie Wells no MTB - ele discou o número e, após alguns toques, a voz de Ronnie surgiu na linha.

- Onde você está? - perguntou Hector.

- Estou ancorado na pequena enseada de uma ilhota rochosa a cerca de oito quilômetros da costa... - ele passou as coordenadas para Hector, que as verificou no mapa.

- Ok. Sei onde você está. Fique aí até eu ligar de novo. Hans Lategan não sobreviveu. O helicóptero caiu. Estamos em fuga, mas adquirimos um veículo. Dependendo
do que está adiante, vai demorar oito horas ou mais até chegar à praia em frente ao seu posicionamento.

- Boa sorte, Heck! Estarei à sua espera.

Ambos desligaram.

- Por que não vamos ao encontro do Paddy e dos homens dele em terra em vez do MTB? - Hazel perguntou.

- Boa pergunta - ele assentiu em reconhecimento. - É uma decisão ponderada. A fronteira etíope, onde Paddy está à nossa espera, fica 160 quilômetros mais longe do
que a costa onde Ronnie está.

- Mas as estradas não são melhores? Se fomos para o leste em direção ao litoral, vamos viajar por estradas secundárias.

- Exatamente - concordou, apertando mais números no telefone. - O país nas terras altas do interior é muito mais fértil e densamente povoado e, a esta altura, é
um ninho de vespas em alvoroço com a milícia de Tippoo Tip. Com quase toda a certeza, as estradas estarão bloqueadas em todos os entrocamentos. Mas vou ligar para
o Paddy agora para avisá-lo sobre o que pretendemos fazer.

Paddy atendeu quase imediatamente.

- Onde você está? - Hector perguntou.

- Estou sentado no topo de uma montanha na fronteira etíope, admirando a vista pitoresca do interior somali. Onde diabos você está?

- Estamos a cerca de 32 quilômetros a leste do oásis. Uthmann Waddah é um traidor. Passou definitivamente para o outro lado.

- Filho da mãe! Uthmann, um traidor? Não consigo acreditar.

- Ele deu a dica. Estavam nos esperando. O próprio Uthmann atingiu o helicóptero do Hans Lategan com uma RPG. Hans está morto, e o MIL, destroçado. Consegui capturar
um veículo e estamos a caminho da costa para encontrar o Ronnie.

Paddy soltou um assovio.

- Você matou o Uthmann, aquele desgraçado de coração de pedra?

- Tentei atirar nele, mas ainda estava usando o colete à prova de balas. Eu o atingi, mas não acho que esteja morto. A armadura provavelmente conteve a bala.

- Uma grande pena! - Paddy grunhiu. - Sabia que havia alguma coisa no ar. De onde estou, posso ver que todas as estradas do seu lado da fronteira estão inundadas
de veículos. Estou com os meus binóculos focados em um dos caminhões do inimigo neste exato momento. Deve haver pelo menos uns vinte homens na caçamba. Todos armados
até os dentes.

- Ok, Paddy. Fique onde está e espere pela minha próxima ligação. Se não conseguirmos nos juntar ao Ronnie, seremos forçados a ir até você. Esteja preparado para
atravessar a fronteira e nos buscar - ele desligou e olhou para Hazel.

- Ouviu o que ele disse?

Ela assentiu.

- Você está certo, é a nossa última opção. Mas vamos levar mesmo oito horas para chegar ao litoral?

- Se tivermos sorte - ele respondeu e viu que ela ergueu uma das sobrancelhas. Olhou ao redor e viu que Cayla tinha se aproximado dele em silêncio e estava ao seu
lado.

- Vim me desculpar, Heck - disse humildemente. - Às vezes um demônio toma conta de mim e não consigo me conter. Podemos ser amigos de novo? - ela estendeu uma das
mãos, e ele a segurou.

- Nunca deixamos de ser amigos, Cay. E espero que seja assim para sempre. Mas você deve uma desculpa à sua mãe mais do que a mim.

Cayla se virou para Hazel.

- Sinto tanto, mamãe. Hector estava certo. Eu trouxe Rogier a bordo do Golfinho e subornei Georgie Porgie para empregá-lo.

Hazel piscou. Até aquele momento, não quisera acreditar, mas agora tinha de encarar o fato. A bebé dela não era mais um bebé. Então, lembrou que Cayla tinha dezenove
anos, que era bem mais velha do que a própria Hazel naquela noite memorável no banco traseiro do velho Ford do seu treinador, quando havia-se tornado mulher. Ela
se recompôs e estendeu os braços para Cayla.

- Todos nós cometemos erros, bebé. O truque é jamais cometer o mesmo erro.

Cayla olhou novamente para Hector.

- O que é esse tal de fundamento que você vive me dizendo para colocar nos lugares?

- É um jeito sofisticado de se referir ao seu traseiro - Hazel explicou, e Cayla riu.

- Bom, está certo! Concordo. Fundamento soa muito mais classudo. Muito melhor do que a outra opção.


Uthmann desceu com dificuldade pela encosta íngreme da face norte do wadi. Dar um passo era trabalhoso e respirar, uma agonia. Tinha deixado a RPG para trás e agarrava
o peito com as duas mãos, no local onde a bala de Hector havia-se chocado com o painel frontal do colete à prova de balas. Em um primeiro momento, esperou que Hector
e seus homens o seguissem, mas depois percebeu que deveriam estar tentando se reagrupar após a destruição do helicóptero. Ele parou por alguns minutos para descartar
o pesado colete e examinar o ferimento. Embora a bala não tivesse penetrado, o hematoma e o inchaço no local do impacto eram enormes. Com cautela, sondou a área
e sentiu a ponta afiada de uma costela quebrada sob a pele. A possibilidade dos pulmões terem sido perfurados o preocupava. Embora a dor fosse praticamente insuportável,
respirou fundo. Os pulmões não pareciam ter sido afetados, e ele tomou fôlego e desceu cambaleante até o ponto onde deixara Adam, no fundo do vale. Ele não estava
mais lá. Provavelmente tinha escalado de volta à borda da margem onde tinham se despedido do xeique e de seus homens. Uthmann subiu pelo mesmo caminho e encontrou
Adam no topo do wadi, sentado em uma rocha colocando uma atadura feita com tiras de camisa no tornozelo.

- O que aconteceu? - perguntou assim que viu Uthmann. - Ouvi tiros e uma grande explosão.

Entre respiradas cautelosas, Uthmann descreveu o que tinha feito, e Adam ficou extasiado.

- Então, eles não escaparam! Agora estão encurralados e na palma da minha mão.

- Sim, nós os encurralamos por agora. Mas como expliquei a você e ao seu avô, Cross tem planos de contingência para outras rotas de fuga. Agora ele provavelmente
está seguindo em direção à costa, onde há um barco de prontidão para levá-los até a Arábia Saudita. Onde está seu avô? Precisamos do caminhão para persegui-los.

- Ele deve ter atravessado o wadi mais adiante, como tínhamos combinado com ele.

- Ambos estamos feridos. Jamais conseguiremos alcançar seu avô ou Cross a pé. Precisamos esperar a outra caminhonete da fortaleza. Deveriam ter chegado há séculos.

- Provavelmente perderam nosso rastro na escuridão - disse Adam com o cenho franzido. - Ou isso ou a caminhonete quebrou de novo.

Mais uma hora se passou até que ouvissem o motor de um veículo se aproximando, e ele surgisse no campo de visão acima da crista. Havia dois homens na cabine e mais
uma dúzia na caçamba. Uthmann reservou alguns minutos para enfaixar o tornozelo de Adam e o próprio peito, usando o kit de primeiros socorros da caminhonete; depois
subiram a bordo e seguiram os rastros deixados pelo veículo de caça do xeique. De uma distância de cerca de um quilômetro e meio, viram as aves de rapina voando
em círculo no céu adiante, e Adam mandou o motorista se apressar até que chegaram ao cenário onde seu avô havia sido assassinado. O corpo jazia sobre a areia do
leito ressequido do rio. Metade do rosto do velho havia sido rasgado e devorado pelos pássaros, mas a barba saíra ilesa. Com dor, Adam desceu até a areia, e foi
mancando até se ajoelhar ao lado do corpo. Outros animais carniceiros, provavelmente um bando de chacais, tinham rasgado a barriga do xeique, e as entranhas já estavam
apodrecendo devido ao calor. O fedor era nauseante.

De maneira respeitosa, Adam pronunciou as orações tradicionais para os mortos, mas seu coração estava em júbilo. Os anos da tirania do avô haviam chegado ao fim,
e agora ele era indisputavelmente o xeique do clã Tippoo Tip. Fazia apenas quatro dias que o velho o tinha nomeado formalmente como seu sucessor na mesquita, na
presença do mullah e dos filhos. De agora em diante, ninguém ousaria questionar a reivindicação da chefia do clã por parte de Adam.

Quando encerrou as preces, ele se levantou e ordenou que os homens enrolassem o avô na lona e o colocassem na caçamba. Enxergou a veneração dirigida a ele nos olhos
e no comportamento dos homens que se apressaram em atender ao seu comando. Até mesmo a atitude de Uthmann havia mudado consideravelmente em razão da subida na hierarquia
e do grau de autoridade.

Uthmann havia revistado a área com cuidado enquanto Adam rezava. Encontrara os rastros deixados por Hector e o grupo de emboscada. Foi até onde Adam se encontrava
e explicou como era provável que os infiéis tivessem retornado do outro lado do wadi após a destruição do helicóptero e que, por uma infelicidade do destino, tinham
se deparado com o caminhão que levava o xeique a bordo. Tinham assassinado o velho e se apoderado do veículo.

- Quais são suas ordens, meu xeique? - perguntou.

A pronúncia do título foi um bálsamo para a alma de Adam, como um cachimbo de haxixe.

- Temos de seguir o veículo roubado do meu avô até termos certeza da direção seguida pelos infiéis. Somente então poderemos decidir o que tem de ser feito.

Uthmann arriscou repetir a sua opinião.

- Como já expliquei, conheço esse homem, Cross, bem o bastante para adivinhar o que ele vai fazer. Agora que roubou o veículo de caça, com certeza tentará alcançar
a costa, onde há um barco à espera dele.

- O que ele irá fazer se não conseguir escapar de barco? - Adam perguntou.

- Daí, a única rota de fuga disponível será a fronteira com a Etiópia.

- Vamos ver se você está certo. Mande os homens montarem no caminhão e irem atrás dele.

Deixaram os corpos dos guarda-costas para os chacais e os pássaros e seguiram os rastros do veículo menor. Logo encontraram o local onde Hector Cross havia parado.
Viram as pegadas do grupo onde haviam desembarcado. Apesar do peito ferido, Uthmann desceu para examinar os rastros e depois retornou para dar as informações a Adam.

- São nove pessoas, seis homens e três mulheres.

- Três mulheres? - Adam indagou. - Uma é minha prisioneira que escapou, mas quem são as outras duas?

- Acho que uma delas é a conhecida de Tariq que mostrou a Cross como entrar na fortaleza. A terceira e última chegou no helicóptero. Eu a vi apenas por alguns segundos
antes de disparar contra o RPG. O vislumbre que tive foi à distância e parcialmente obstruído pela fuselagem, por isso não posso ter certeza absoluta, mas acho que
a terceira mulher é a mãe da sua cativa. Eu a vi várias vezes em Sidi el Razig e estou quase certo de que é ela.

- Hazel Bannock! - Adam o encarou sem conseguir acreditar no tamanho de sua sorte. Ele agora não somente era o xeique do clã, como tinha uma das mulheres mais ricas
do mundo ao alcance da mão. Assim que conseguisse fisgá-la, ela o transformaria em um dos homens mais poderosos da Arábia e da África.

"Dezenas de bilhões de dólares e meu próprio exército me protegendo. Não existe nada que eu deseje que não seja capaz de obter." A imaginação dele se expandiu diante
de tal magnitude. "Assim que receber a quantia do resgate, vou proporcionar mortes extraordinárias a Hazel Bannock e à filha. Deixarei que todos os meus homens se
divirtam com elas. Elas serão curradas pelos dois orifícios, mil vezes pela frente e por trás. Se não conseguirem matá-las com seus paus, poderão usar as baionetas
nos mesmos buracos para liquidar o assunto. Vai ser divertido assistir. Vamos compartilhar tal deleite com o assassino, Hector Cross. Depois, vou ter de pensar em
algo original para ele. Vou acabar passando-o às velhas da tribo com suas faquinhas, mas, para começo de história, vários dos meus homens irão saboreá-lo por trás.
O ânus vai esticar até que seja possível andar a cavalo dentro dele. Para um homem como ele, a humilhação será maior do que a dor física." Adam esfregou as mãos
de contentamento. "Vou conseguir o pagamento e também liquidar a dívida de sangue da minha família." Ele falou em voz alta para o motorista:

- Retorne ao oásis!

E depois explicou a Uthmann:

- Tenho de enterrar o meu avô com todo o respeito que ele merece. Vou mandar uma mensagem pelo rádio ao meu tio Kamal para avisá-lo que os fugitivos tentarão escapar
de barco. No entanto, se Cross conseguir se safar de novo, irá com certeza tentar alcançar a fronteira etíope, e é lá que estaremos à sua espera.


CONTINUA

Na manhã seguinte, Hector foi à procura de Hazel e a encontrou tomando o café da manhã no minúsculo refeitório da empresa. Ao chegar perto dela, olhou para baixo
e viu uma tigela de cereal e uma xícara de café preto na mesa. Não era de se espantar que estivesse em boa forma, ele pensou.

- Bom dia, sra. Bannock. Espero que tenha dormido bem.

- Tentando fazer uma piadinha irônica, Cross? É claro que não dormi bem.

- O dia vai ser longo. É pouco provável que algo aconteça por enquanto. Vou levar alguns dos meus rapazes para um treino de paraquedas antes do grande show. Alguns
não saltam há mais de um ano. Precisam dar uma desenferrujada.

- Tem um paraquedas para mim? - ela perguntou.

Ele piscou. Pensara que talvez ela quisesse assistir para se distrair das próprias preocupações. Não tinha imaginado que gostaria de participar. Ficou pensando qual
seria seu nível de experiência.

- Já saltou da paraquedas? - perguntou com tato.

- Meu marido adorava e costumava me levar junto. Fizemos vários saltos de base juntos nos fiordes noruegueses em Trollstigen.

Hector olhou para ela boquiaberto antes de conseguir falar de novo.

- Esse é o suprassumo - admitiu. - Não há nada mais radical do que saltar de uma montanha para um abismo de 600 metros de altura.

- Não me diga que já saltou daqueles fiordes? - perguntou ligeiramente interessada.

- Sou corajoso, mas não louco - ele balançou a cabeça. - Sra. Bannock, a senhora tem a minha admiração e ficarei honrado se juntar-se a nós hoje pela manhã.

Hector havia reunido quinze dos seus melhores homens, incluindo Dave Imbiss e Paddy O'Quinn. Saltaram três vezes do helicóptero. O primeiro salto foi a três mil
metros de altitude; o segundo e o último, em um nível mais baixo, a 120 metros, apenas o suficiente para que o paraquedas se abrisse antes que tocassem os pés no
chão. Essa técnica daria pouca chance ao inimigo de acertá-los se estivesse atirando do chão enquanto eles caíam, vulneráveis. Após o terceiro salto, todos os homens
estavam claramente maravilhados com Hazel. Nem mesmo Paddy O'Quinn conseguiu disfarçar a admiração.

Comeram sanduíches de queijo e presunto e tomaram café de uma garrafa térmica sentados na lateral de uma duna de areia. Depois disso, Hector empurrou um pneu velho
de caminhão duna abaixo, e enquanto ele descia quicando pelo morro íngreme, os homens, alternadamente, atiraram com seus rifles de assalto Beretta SC 70/90 no alvo
de papelão encaixado na parte de dentro. Hazel foi a última a atirar. Pegou a arma de Hector emprestada e verificou a munição e a estabilidade com um ar competente
e sagaz. Em seguida, foi até a linha e acertou o alvo com um estilo elegante, oscilando ligeiramente antes de disparar contra o pneu, como um atirador munido de
uma espingarda de calibre .12 se posicionando para atirar em um faisão em movimento. Dave resgatou o pneu da base da duna, todos se reuniram em volta dele, olhando
para os buracos de bala perfurados no alvo de papelão. Ninguém falou muito.

- Por que estão todos tão surpresos? - Hector gracejou. - Ela é uma atleta de gabarito internacional. É claro que é bastante competitiva e tem a coordenação visomotora
de um leopardo.

Depois disse ingenuamente:

- Deixe-me adivinhar, sra. Bannock. Seu marido gostava de atirar e arrastava a senhora junto. É isso, não é?

O riso foi espontâneo e contagiante e, após alguns instantes, Hazel foi forçada a acompanhar. Era a primeira vez que ria desde que perdera Cayla. Foi catártico.
Sentiu parte da dor debilitante ser expurgada da alma.

Antes que o riso cessasse, Hector bateu palmas e gritou:

- Certo, meninos e meninas! São apenas onze quilômetros de volta ao terminal. O último a chegar paga as bebidas.

O solo arenoso dificultava a caminhada. Quando passaram pelo portão na cerca de arame farpado do perímetro do terminal, Hector estava alguns passos atrás de Hazel.
Ela estava correndo em um ritmo forte e suave, mas as costas de sua camiseta estavam escurecidas pelo suor. Hector sorriu.

"Duvido que a madame vá ter muita dificuldade em pegar no sono hoje à noite", pensou.


Uthmann ouviu a explosão e viu a coluna de fumaça preta subindo acima dos telhados dos edifícios à frente dele. Logo soube que era um carro-bomba, e saiu correndo
em disparada para a casa do irmão, que ficava nas proximidades da explosão. Virou a esquina e olhou para a rua estreita e sinuosa abaixo. Até mesmo para um veterano
escaldado como Uthmann, a carnificina era horrível. Um homem veio correndo na direção dele com o corpo de uma criança ensopada em sangue apertado contra o peito.
O olhar vazio sequer focalizou em Uthmann quando ele passou correndo. A fachada de três edifícios havia sido destruída. O interior estava exposto como o de uma casa
de bonecas. Móveis e pertences pessoais estavam dependurados nos aposentos abertos ou caíam em cascata na rua. No meio da via, estavam os destroços enegrecidos e
contorcidos do carro que carregara a bomba.

- Você não é um mártir! - Uthmann gritou ao passar correndo pelas ferragens fumegantes e os restos vaporizados do motorista. - Você é um assassino xiita!

Então ele viu que a casa de Ali, seu irmão, mais ao final da rua, estava intacta. A mulher de Ali veio até a porta. Ela estava chorando e embalando dois dos filhos
nos braços.

- Onde está o Ali? - gritou.

- Foi trabalhar no hotel - ela soluçava.

- Todas as crianças estão com você?

Ela assentiu em meio às lágrimas.

- Que o nome de Alá seja louvado! - Uthmann gritou e a levou de volta para dentro.

A mulher e os três filhos do próprio Uthmann não tiveram tanta sorte quanto a família do irmão. Três anos antes, Lailah estava no mercado local com os meninos quando
uma bomba explodiu a trinta passos deles. Uthmann pegou o menininho dos braços da cunhada e o embalou até que parasse de choramingar. Ao se lembrar do calor do corpinho
do filho em seus braços, sentiu as lágrimas subirem aos olhos. Ele virou o rosto para que não vissem.

O irmão Ali chegou do trabalho uma hora depois. Devido à bomba, o gerente geral do hotel havia autorizado que ele saísse mais cedo. O alívio do homem ao ver que
a família estava em segurança foi doloroso de assistir para Uthmann. Somente no dia seguinte Uthmann conseguiu ter uma discussão séria com ele. Para começar, Uthmann
tocou no assunto da captura do iate e da jovem herdeira da fortuna da Bannock Oil.

- Essa foi a notícia mais excitante que ouvimos em anos - Ali logo respondeu. - O mundo muçulmano inteiro está em expectativa desde o anúncio dos camaradas no Al
Jazeera. Que planejamento cauteloso e que senso de dever para fazer que tal operação florescesse! É uma das nossas maiores vitórias desde os ataques em Nova Iorque.
Os norte-americanos estão atordoados. O prestígio deles sofreu mais um ataque mortal - Ali estava extasiado.

No dia a dia, ele era o gerente do Airport Hotel, mas na realidade sua ocupação principal era a de coordenador dos Combatentes Sunitas que estavam perseguindo a
Jihad contra o Grande Satã. Estava claro para ambos os irmãos que Ali era o alvo principal da bomba xiita que havia causado tamanha devastação na rua da casa onde
se encontravam.

- Tenho certeza de que os nossos líderes vão exigir um pagamento de resgate enorme pela princesa norte-americana capturada - Ali disse com seriedade. - O suficiente
para financiar a Jihad contra os Estados Unidos por outros dez anos ou mais.

- Então, qual dos nossos grupos foi o responsável por essa conquista? - Uthmann perguntou. - Nunca ouvi falar desse "Flores do Islã" até que o nome fosse usado pelo
Al Jazeera.

- Irmão, você sabe que não deve fazer essa pergunta. Embora você tenha provado a sua lealdade centena de vezes, eu jamais poderia respondê-la, mesmo que soubesse
a resposta, e eu não sei - Ali hesitou e depois prosseguiu. - Mas posso dizer que logo você talvez seja um dos que precisem saber.

- Minha conexão com a Bannock Oil? - Uthmann sorriu para ele, mas Ali fez um gesto de negativa com as mãos.

- Chega, não posso dizer mais nada.

- Então parto amanhã e retorno a Abu Zara...

- Não! - Ali o interrompeu. - Foi a mão de Alá que trouxe você aqui hoje. Fique comigo por pelo menos mais um mês. Inshallah! Talvez possa dizer algo a você nessa
altura.

Uthmann assentiu.

- Mashallah! Ficarei, irmão.

- Seja bem-vindo sob o meu teto, irmão.


No palácio na encosta acima do Oásis do Milagre, um outro grupo de homens tomava café em minúsculas xícaras de prata, conversando seriamente em voz baixa. Estavam
sentados em círculo ao redor da mesa incrustada com mármore e madrepérola. O único item sobre a mesa era o bule prateado de café. Não havia nenhum material escrito
na sala. Nada era anotado. Todas as decisões eram anunciadas pelo xeique Khan Tippoo Tip em pessoa e memorizadas por seus ouvintes.

- Meu neto Adam enviará a primeira exigência para o resgate - olhou para Adam que, ainda sentado na almofada de seda, fez uma mesura até a testa encostar nas lajotas.

- Ouvir seu comando é obedecê-lo - murmurou.

O xeique Khan gracejou:

- A quantidade de exigências será tão grande que até mesmo na terra doentia e amaldiçoada do Grande Satã não haverá ninguém rico o suficiente para cumpri-las - quando
sorriu, seus olhos desapareceram detrás das pálpebras enrugadas. - Não existe quantia de dinheiro capaz de quitar a dívida de sangue que esse homem chamado Cross
tem comigo. Somente o sangue pode pagar por sangue.

Eles bebericaram das xícaras de prata em silêncio, esperando que o xeique continuasse a falar.

- O infiel pérfido matou três dos meus filhos - ergueu um dos dedos contorcidos pela artrite. - O primeiro era meu filho e o pai do meu neto Saladin Gamel.

Adam se curvou mais uma vez, e o xeique Khan prosseguiu:

- Ele era um verdadeiro guerreiro de Alá. Foi assassinado por Cross em uma rua de Bagdá sete anos atrás.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros homens na roda murmuraram.

- A segunda dívida de sangue é o meu filho Gafour. Foi enviado para honrar a dívida de sangue de seu irmão mais velho, Saladin, mas Cross o matou também quando atacou
o dhow em que Gafour velejava a Abu Zara para cumprir a tarefa de que fora incumbido por mim.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros entonaram novamente.

- O terceiro dos meus filhos que morreu nas mãos desse infiel adorador do Cristo foi Anwar. Também tinha sido enviado em uma missão de honra.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - repetiram em coro pela terceira vez.

- Essa dívida de sangue se tornou um fardo em minha consciência. A vida dos meus três filhos foi tirada por esse idólatra tolo, servo de um falso deus. Para mim
não basta mais apenas tirar a sua vida. Uma vida não pode pagar por três. Tenho de capturá-lo e entregá-lo vivo às mães e às mulheres dos homens que matou. As mulheres
são altamente treinadas no assunto. Sob suas mãos e as lâminas afiadas das facas de esfola ele terá vários dias de tormento até passar ao ventre do inferno e os
braços de Satã.

- Seu comando é uma ordem, poderoso Khan, que assim seja - murmuraram de acordo.

- Está me escutando, meu neto? - o xeique Khan indagou.

Adam fez mais uma mesura, devotada, reverente.

- Estou escutando, venerado avô.

- Deposito a dívida da dívida de sangue diretamente nos seus ombros. Você tem de recolher o pagamento pelos seus dois tios e pelo seu próprio pai. Que você não conheça
paz nem descanso até que a dívida seja completamente quitada.

- Escuto o que diz, meu avô. É um voto de confiança sagrado.

- Quando você trouxer o suíno infiel vivo até mim, vou colocá-lo no pedestal mais alto da sua tribo. Você ganhará um lugar em meu coração juntamente com as memórias
do seu pai e dos seus tios assassinados. Quando eu morrer, você assumirá o meu lugar como líder do nosso clã.

- Reconheço esse dever passado a mim como sagrado, meu avô. Entregarei o homem e a mulher para que enfrentem sua ira e seu julgamento, conforme seu comando.


A espera é sempre a parte mais difícil, Hector lhe dissera no início. Gradualmente ela descobriu o quanto ele estava certo. Todos os dias, passava horas em teleconferências
no Skype conduzindo os negócios da Bannock Oil pelo mundo. No restante do tempo, ela treinava com os homens de Hector. Correndo, pulando e atirando até estar tão
em forma física e mentalmente concentrada quanto na ocasião em que entrou na quadra de Flinders Park naquele dia de glória longínquo.
Mas as noites, aquelas terríveis noites, passavam em agonia espiritual. Ela dormia pouco, mas quando dormia, sonhava com Cayla - Cayla galopando com ela em seu cavalo
dourado de crina branca pelos altos prados do rancho. Cayla gritando de excitação ao abrir o presente extravagante que Hazel lhe dera quando completara 18 anos.
Cayla adormecendo no ombro de Hazel enquanto assistiam juntas a filmes antigos tarde da noite na TV a cabo. E então homens, mascarados e com armas nas mãos, surgiam
e o terror que sentia era infinito. Cayla! Cayla! O nome dela ressoando sem parar em sua mente, atormentando-a e deixando-a à beira da loucura.
Falava todos os dias com Chris Bessel e o coronel Roberts nos Estados Unidos, mas eles ofereciam pouco conforto. Todas as noites, sozinha em seu quarto, rezava como
quando era uma menininha, de joelhos e chorando. Mas as pistas haviam cessado. Nem todo o poder de suas orações, tampouco o da CIA, eram capazes de fazer com que
surgisse algum traço de Cayla ou das Flores do Islã. Passava várias horas do dia com Hector Cross, extraindo forças de sua companhia.

- Mas não temos notícias há quase um mês, Cross! - dizia isso pelo menos uma vez ao dia.

- Eles brincam de gato e rato com uma habilidade sem limites. Têm anos de prática - respondeu. - Não estão com pressa. Temos de esperar. Mas, lembre-se, Cayla ainda
está viva. Apegue-se a esse pensamento como algo positivo.

- Mas e Tariq e Uthmann? Com certeza eles já devem ter descoberto alguma coisa.

- É um jogo extremamente lento - enfatizou. - Se Tariq e Uthmann cometerem um único deslize, morrerão de uma morte pouco invejável. Estão profundamente infiltrados,
vivendo, comendo e dormindo com a Besta. Não podemos apressá-los; na verdade, não posso nem mesmo entrar em contato. Se tentar, o resultado será o mesmo do que levar
um tiro na cabeça.

- Queria que houvesse algo que pudéssemos fazer - ela lamentou.

- Há uma coisa que a senhora pode fazer, sra. Bannock.

- O que é, Cross? - perguntou com avidez. - Farei qualquer coisa que você sugerir.

- Então eu sugiro que pare de enviar e-mails para a Besta no celular da Cayla.

- Como...? - a voz dela abrandou, e a seguir ela balançou a cabeça e admitiu. - Estava apenas repetindo a mensagem que você me fez mandar antes. Dizendo que estamos
esperando. Mas como você... - ela interrompeu a frase de novo.

- Como soube o que andava fazendo? - ele concluiu a pergunta por ela. - Às vezes você não é tão esperta quanto pensa, Hazel Bannock.

- E você, Hector Cross, é o imbecil mais esperto do mundo inteiro - ela explodiu.

- Faz bem desabafar de vez em quando, não é, Hazel?

- Não ouse me chamar de Hazel, seu filho da puta arrogante!

- Ótimo, sra. Bannock! Seu jeito de falar melhora a cada dia. Logo estará dentro dos meus elevados padrões.

- Odeio você, Hector Cross! De verdade.

- Não, não odeia de verdade. A senhora é astuta demais para isso. Guarde seu ódio para quando ele for necessário - ele riu.

A risada dele foi suave e contagiante, amena e compreensiva, e, mesmo sem querer, ela riu com ele, mas o riso dela tinha um quê de histérico.

- Você é incorrigível! - disse em meio ao riso.

- Agora que me entende, pode me chamar de Hector ou de Heck, se quiser.

- Obrigada - ela tentou abafar o riso. - Mas não quero merda nenhuma.

 

-O que os forçará a vir aqui e tentar libertar a garota? - xeique Khan encarou o neto, esperando a resposta.

Adam pensou bem antes de responder.

- Primeiro, ele têm de saber onde ela está.

O avô assentiu.

- A seguir, pedirão a ajuda dos amigos em Washington. Sabemos que a mãe é amiga do presidente norte-americano. Eles enviarão multidões de cruzados para nos assolar.

O xeique Khan penteou a barba com os dedos, observando os olhos do neto, à espera do momento em que o rapaz veria o caminho adiante tão claramente quanto o próprio
xeique Khan.

- Levará várias semanas, ou até meses, até que os norte-americanos preparem um ataque contra nós. Podemos nos mudar deste lugar e, em poucas horas, desaparecermos
no deserto. Hector Cross, o assassino dos meus filhos, sabe disso. Ele e a mãe da menina querem esperar o exército norte-americano se mexer?

- Sim! - disse Adam com certeza. - A menos que... - xeique Khan viu a solução surgir nos olhos do neto, e seu coração se encheu de orgulho.

- Sim, Adam! - encorajou o neto a falar.

- A menos que possamos convencê-los de que a menina está sob perigo de morrer, ou um perigo pior do que a própria morte - disse Adam, e o avô sorriu até que os olhos
quase desaparecessem nas pregas das pálpebras. - Desse modo, eles virão atrás de nós, sem medo nem hesitação, virão atrás de nós.

- Onde é melhor? - o xeique Khan murmurou alegremente.

Adam respondeu sem hesitar:

- Não aqui, em uma cela de pedra da fortaleza. Tem de ser em um lugar onde a beleza do cenário contraste com o horror do ato.

Pensou por um momento e em seguida disse:

- O lago das vitórias-régias, no Oásis do Milagre!

- Mostramos primeiro o perigo e depois deixamos que descubram onde estamos? Ou eles ficam sabendo primeiro qual é o local e depois testemunham o ato? - O xeique
Khan fingiu que estava ponderando a questão, mas Adam falou de novo.

- Primeiro, têm de ver o que a garota está sofrendo, pois quando finalmente descobrirem o local, virão correndo sem hesitar nem parar para pensar.

- Estou orgulhoso de você - disse o xeique Khan. - Você será um grande general e um guerreiro implacável de Alá - Adam fez uma mesura reconhecendo o elogio.

Em seguida, acenou para um dos guardas de confiança que estava posicionado na porta de braços cruzados. O guarda foi depressa para o lado dele e se abaixou sobre
um dos joelhos para receber suas ordens.

- Mande uma mensagem para o fotógrafo - Adam disse em voz baixa. - Diga para ficar à espera nos portões principais do palácio após as orações matinais. Peça para
trazer a filmadora.


As escravas foram buscar Cayla na cela apertada em que fora mantida prisioneira desde que havia sido levada para o Oásis do Milagre. De novo, banharam-na com jarras
d'água e depois a vestiram em roupas limpas - uma toga negra até os pés e um xale negro enrolado modestamente ao redor do rosto e dos cabelos. Em seguida, ela foi
conduzida até as portas principais do palácio, onde quatro homens com rifles automáticos esperavam para acompanhá-la até a encosta do oásis.

Em contraste com o cheiro mofado da cela de seu confinamento, o ar do deserto era puro e quente. Ela o respirou com alívio. Havia muito que perdera o interesse no
que lhe aconteceria a seguir. Tinha se retraído em um estado entorpecido de resignação. No meio do percurso pela trilha da montanha, ela reparou na multidão reunida
ao lado de uma das lagoas nos jardins luxuriantes logo abaixo. Pareciam dispostos em uma espécie de ordem, em semicírculo. Todos eram homens. Ao se aproximar mais,
viu que no centro do círculo aberto estava um homem sentado de pernas cruzadas sobre vários tapetes de lã. Vestia as tradicionais calças brancas folgadas, um colete
e um turbante pretos, mas mesmo com o lenço que cobria o rosto dele, ela reconheceu Adam. Sentiu uma lufada de ânimo. Não o via desde o dia em que, fazia quase um
mês, ela fora fotografada segurando um exemplar do International Herald Tribune. Queria correr até ele. No meio daquela multidão cruel e selvagem, ele era a única
pessoa em que podia confiar. Sabia que ele era seu protetor. Ele era a luz na escuridão de seu desespero. Ela começou a avançar com mais rapidez, mas os homens ao
seu lado a detiveram, e continuaram a descer o morro a uma velocidade moderada. De repente, outro homem surgiu na sua frente. Caminhava para trás, segurando uma
filmadora profissional com a lente focalizada no rosto dela.

- Sorria, senhorita, por favor - suplicou. - Olhe o passarinho, senhorita, por favor - o inglês dele era quase ininteligível.

- Vá embora! - gritou para ele com a última centelha que sobrara de seu temperamento fogoso. - Deixe-me em paz.

Ela arremeteu contra ele, que se desviou, ficando a uma distância segura. Os guardas a agarraram pelos braços e a puxaram para trás. O cinegrafista continuou a filmar.
Eles entraram no semi-círculo de homens armados e mascarados e Cayla gritou para Adam, apelando de uma maneira patética:

- Por favor! Por favor, Adam! Faça-os parar de me atormentar!

Adam deu uma ordem. Os guardas a empurraram e forçaram-na a sentar-se ao lado dele no tapete estampado de cores vibrantes. A seguir, o cinegrafista foi ajoelhar-se
diante deles. Ele havia encaixado a câmera em um tripé. Curvou-se para a frente para focalizar no rosto de Adam, e a câmera fez um ruído suave. Adam retirou o lenço
que cobria seu rosto e olhou diretamente para a lente da câmera.

- Cayla - disse Adam em seu inglês quase perfeito, tingido apenas ligeiramente pelo sotaque francês -, eles estão fazendo esta filmagem para mandar para sua mãe,
para mostrar que estamos cuidando bem de você. Pode enviar a mensagem que quiser. Fale para a câmera. Diga que eles logo farão um pedido de pagamento de resgate.
Você precisa pedir a ela que pague imediatamente. Assim que receberem o dinheiro, essa situação desagradável terminará. Você será libertada e enviada de volta para
sua mãe de novo. Compreende?

Ela assentiu calada.

- Remova o véu - Adam ordenou gentilmente. - Deixe sua mãe ver seu rosto.

Lentamente, como se estivesse em transe, Cayla ergueu o lenço e o deixou cair sobre os ombros. - Agora, olhe para a câmera. Isso, ótimo! Agora, fale com sua mãe.
Diga o que está sentindo.

Estremecendo, Cayla respirou fundo e disse:

- Oi, mamãe. Sou eu, Cayla - ela interrompeu e balançou a cabeça. - Desculpe. Isso é uma coisa imbecil de dizer. É claro que você sabe quem eu sou - ela se recompôs
de novo. - Estas pessoas estão me mantendo presa neste lugar horrível. Estou com tanto medo. Sei que alguma coisa terrível vai acontecer comigo. Eles querem que
você mande dinheiro. Eles prometeram que vão me soltar quando você fizer isso. Mamãe, por favor, me ajude, não deixe que façam isso comigo - ela começou a soluçar
e abaixou a cabeça, pousando-a nas mãos em concha, a voz dela abafada pelos dedos e a força do terror e da dor que sentia. - Por favor, minha mãe querida. Você é
a única pessoa no mundo que pode me salvar - os soluços se intensificaram, e as palavras dela perderam a forma e o sentido.

Adam esticou um dos braços e acariciou os cabelos dela carinhosamente. Depois, olhou diretamente para a câmera.

- Sra. Bannock, quero dizer que sinto muito que isto esteja acontecendo com sua filha. Cayla é uma jovem adorável. É trágico que ela tenha sido envolvida nisto.
Sinto muito mesmo. Queria que houvesse algo que eu pudesse fazer. No entanto, não sou responsável pelos atos destes homens. Eles seguem sua própria lei. A senhora
é a única pessoa que pode colocar um fim neste horror. Faça o que Cayla pediu. Pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora.

Ele se levantou e saiu da frente da câmera. O lugar dele foi tomado por quatro homens mascarados. Tinham colocado as armas de lado. Colocaram Cayla de pé e viraram
o rosto dela para a câmera. Um deles a pegou pelas costas, agarrando um punhado de seus cabelos loiros e a puxou para trás. Um outro mascarado entrou em cena pela
direita, e então extraiu um punhal de cabo de chifre de rinoceronte e lâmina de dez polegadas da cintura. A lâmina era incrustada com dizeres árabes em dourado.
Posicionou a ponta do punhal sob o queixo de Cayla, quase encostando na pele aveludada de sua garganta.

- Não! Por favor! - falou desesperada.

O grupo não se mexeu por um minuto. A seguir, ele desceu a lâmina lentamente até apontar para o seio esquerdo dela, os contornos revelados pelo algodão preto do
vestido. O homem cobriu o seio direito com a mão livre. Tomou-o nas mãos e começou a sacudi-lo quase como se estivesse brincando com ele. Cayla começou a se debater
ainda mais, e os homens que a seguravam começaram a rir sob as máscaras. O barulho era como o de uma hiena gargalhando ao sentir o cheiro de sangue no vento.

O homem de punhal enganchou um dos dedos no colarinho do vestido e o abriu. A seguir, percorreu o espaço entre o tecido preto e a pele de Cayla com a lâmina. Ela
sentiu a frieza do metal e ficou paralisada, olhando para a faca que descia pelos seus seios. O tecido arrebentou e um dos seios saltou para fora. A pele era branquíssima,
mas o mamilo era vermelho como um rubi. O homem embainhou novamente o punhal e alcançou o interior do vestido aberto. Tirou ambos os seios, um em cada mão, e os
apertou com tanta brutalidade que os mamilos delicados se projetaram, e Cayla gritou de dor. Ele soltou os seios e enganchou um dos indicadores no corte feito no
tecido fino e o rasgou até os calcanhares. Ela estava nua sob o vestido. O fotógrafo percorreu o corpo dela lentamente com a câmera, registrando cada detalhe, detendo-se
nos seios e então descendo até os pêlos púbicos dourados e macios.

Cayla permaneceu docilmente imóvel. Não ofereceu mais nenhuma resistência quando os quatro homens que a seguravam a colocaram no chão e a seguraram de pernas abertas
sobre o tapete. Cada um segurava um braço pelos pulsos. Os outros dois prendiam os tornozelos. Afastaram bem as pernas dela. O fotógrafo mudou o foco da lente, passando
para uma imagem de alta definição em close-up dos lábios rosados da genitália. Cayla rolava a cabeça de um lado para o outro.

- Por favor, não faça isto - choramingou. - Por favor...

O homem que estava sobre ela desfez o cinto e deixou as calças largas caírem pelos tornozelos. Olhou para o sexo de Cayla e cuspiu na palma da mão direita. Espalhou
o cuspe sobre a cabeça do pênis para lubrificá-lo. A câmera acompanhou todos os movimentos. O pênis dele endureceu, estendendo-se adiante do emaranhado de pelos
púbicos negros. Era enorme. As veias grossas e azuis se contorciam ao redor da haste como abomináveis ramos de uma videira. Cayla olhou para cima, de olhos arregalados
e muda de pavor. Ele se ajoelhou entre os joelhos dela e se abaixou até Cayla. Ela tentou afastá-lo com chutes, mas o homem segurou as pernas dela abertas. As nádegas
do homem sobre ela eram musculosas e cobertas por uma densa camada de pelos pretos e animalescos. Elas se contraíram e moveram para baixo. Cayla soltou um berro
agudo, e seu corpo inteiro se convulsionou. Enquanto ele se movia em vaivém sobre ela, os outros homens do círculo que observavam colocaram as armas de lado e se
adiantaram formando uma fila, abaixaram as calças e começaram a se masturbar, preparando-se para a sua vez.

Quando um terminava e se levantava, outro o substituía imediatamente. Após o quarto estupro, Cayla permaneceu imóvel, parou de gritar e de se debater. Após o sexto,
ela começou a sangrar, sangrar muito, o vermelho vivo se destacando contra as coxas pálidas. Quando o décimo homem se levantou sorrindo e subindo as calças, a câmera
se afastou para focalizar no rosto de Adam, que assistia a tudo impassível. Ele se virou para a lente.

- Sinto muito que a senhora tivesse que testemunhar isto, sra. Bannock - disse suavemente. - Não acho que sua filha vá aguentar muito mais. A senhora e eu podemos
dar um fim definitivo a isto tudo. Tudo o que tem a fazer é realizar uma transferência bancária para Hong Kong na quantia de dez bilhões de dólares norte-americanos.
A senhora sabe como entrar em contato com as pessoas que estão fazendo isto com Cayla. Receberá os dados bancários assim que avisá-los que está pronta para enviar
o dinheiro.


Durante o dia, Hazel carregava o BlackBerry sob a blusa, pendurado em uma corda ao redor do pescoço. Tinha prendido o aparelho entre os seios com fita adesiva para,
mesmo quando estivesse correndo, saltando de paraquedas e treinando com os homens, poder atender antes do segundo toque. À noite, mantinha-o debaixo do travesseiro
e frequentemente acordava com ele na mão. Era o mais perto que conseguia chegar de Cayla.
Quando ele finalmente tocou, estava sentada à mesa com Hector Cross, na reunião diária que fazia com seus agentes seniores, na sala de situação. As obrigações da
Cross Bow em relação à segurança tinham de continuar a ser cumpridas com toda eficiência. Hector estava bastante consciente de que o inimigo poderia se aproveitar
do caos causado pelo sequestro de Cayla e, a qualquer hora, lançar outro ataque surpresa. A reunião foi encerrada, e Hector olhou ao redor da mesa.

- Alguma pergunta? Ótimo! Não vou mais segurá-los... - a frase foi interrompida pelo toque do BlackBerry sob a camisa safari cáqui de Hazel.

- Meu Deus! - murmurou e, abrindo rapidamente os botões da blusa, retirou o aparelho.

- Deixem-nos a sós! - Hector ordenou de supetão aos homens. - Saiam! Agora!

Eles obedeceram imediatamente, e Paddy O'Quinn os conduziu pela porta, fechando-a atrás de si. Hazel já estava com o telefone ao ouvido e gritando no bocal:

- Alô? Quem é? Fale comigo. Por favor, fale comigo! - Hector alcançou os ombros dela e os sacudiu de leve.

- Hazel, não é uma chamada telefônica. Ou é uma mensagem de texto, ou um arquivo.

Por causa do nervosismo, ela não tinha reconhecido a diferença dos toques. Com uma pressa desesperada, localizou o conteúdo da mensagem.

- Você está certo - falou de súbito. - É um arquivo. Parece ser uma foto ou um vídeo. Sim, é um vídeo! Longo... doze megabytes.

- Espere! Não abra ainda! - Hector tentou detê-la. Teve um pressentimento do mal que avizinhava. Tentou prepará-la. Mas ela não pareceu escutar. Já estava passando
o vídeo na pequena tela do aparelho.

- É a Cayla! - exclamou com alegria. - Ela ainda está viva. Graças a Deus! Venha ver, Cross!

Ele deu a volta ao redor da mesa e ficou do lado dela.

- Coitada da minha bebé, está com uma aparência tão bonita, mas tão trágica.

Na tela, Cayla caminhava em direção aos homens sentados no tapete no círculo de árabes mascarados e armados. O rosto do homem também estava coberto com um xale de
cabeça. Mas a câmera focalizou nele até que apenas a cabeça e os ombros ficassem enquadrados. O homem removeu o xale que escondia o rosto.

- Quem é esse homem, Cross? Você o conhece? - Hazel perguntou com nervosismo.

- Não, nunca o vi antes. Mas a partir de agora jamais irei esquecê-lo - Hector disse em voz baixa. Adam fez seu breve pronunciamento, e ambos escutaram em silêncio,
olhando para a tela fixamente como se estivessem diante de um réptil venenoso.

- ... pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora - Adam finalizou em voz baixa.

- Pagarei - Hazel suspirou. - Pagarei o que for para tê-la de volta.

- Sinto muito, sra. Bannock - o tom de Hector foi gentil -, mas ele está mentindo para a senhora. Tudo o que ele diz é mentira. Trata-se da Besta, e a Besta é mestre
em mentir.

A imagem na tela mudou, e o árabe com a faca avançou sobre Cayla.

- Ele não vai feri-la. Não, ele não pode feri-la. Pagarei o que for. Qualquer coisa para não machucarem mais a minha bebé - o tom de voz dela subiu, histérico.

- Seja corajosa, pela Cayla, seja corajosa.

- Com certeza esses indivíduos são seres humanos, não animais - ela disse. - Não vão machucar uma menina inocente que não lhes fez mal algum.

- Não, eles não são animais. Os animais mais selvagens são nobres e bons em comparação a essas criaturas.

O árabe na tela ficou de pé diante de Cayla e expôs o sexo grotesco. Hazel soluçou e segurou uma das mãos de Hector. Depois, ficou em silêncio enquanto o cenário
de horror começou a se desdobrar. Mas ela tremia como se estivesse ardendo de febre.

- Desligue! - Hector ordenou, mas ela balançou a cabeça e apertou o braço de Hector como se tivesse garras de aço.

Ele mal conseguia acreditar na força. Não se esforçou para se desvencilhar da mão dela; embora a dor tivesse enchido seus olhos d'água, não podia negar qualquer
tipo de conforto que pudesse oferecer. Os múltiplos estupros de Cayla pareceram, para ambos, durar uma eternidade. Hector sentiu a raiva subir pelo sangue como nunca
havia sentido. Quando a imagem de Adam surgiu novamente na tela, Hector encontrou um foco para seu ódio. Encarou o rosto como se quisesse esculpir os traços indelevelmente
na memória. Finalmente o terrível vídeo chegou ao fim, e a tela ficou em branco. Nenhum dos dois se mexeu ou falou por um longo tempo. Continuaram a encarar a tela
vazia.

- Eu pagaria se pudesse - Hazel suspirou.

- A senhora não possui a quantia que eles estão exigindo. Dez bilhões de dólares - disse Hector, mais em tom de declaração do que de pergunta.

Ela balançou a cabeça e soltou a mão dele.

- A Bannock não me pertence. Pertence aos acionistas. Setenta e três por cento do capital social pertence ao fundo do Henry. Eu possuo uma procuração que me confere
poder de voto em relação às ações, mas não posso me livrar delas. Tenho apenas dois e meio por cento do capital integralizado das ações da empresa registrado em
meu nome. Se vender essas ações e o restante do meu patrimônio, é capaz que consiga arrecadar cinco bilhões, ou talvez cinco bilhões e meio. Talvez possa negociar
com eles.

- Nem pense nisso! - Hector disse. - Mesmo que tivesse vinte bilhões, não bastaria. Não é isso que eles querem da senhora.

- O que mais podemos fazer?

- Precisamos detê-los até Uthmann e Tariq voltarem. Diga-lhes que está levantando a quantia, mas que vai demorar. Diga qualquer coisa. Revide as mentiras deles com
as suas.

- E então o quê?

- Não sei - admitiu. - Nesta altura, é a única coisa que sei com certeza.

Hazel se virou na direção dele pela primeira vez desde que o vídeo começara. Era como se nunca o tivesse visto. O rosto dele parecia esculpido a partir de um mármore
pálido e indestrutível. Havia sido expurgado de qualquer emoção humana que não fosse ódio. Os olhos verdes faiscavam. O rosto era como a máscara de Nêmesis.

- Do que você tem certeza?

- De que vou tirar aquela menina dali, e vou matar qualquer um que tentar me deter.

Sentiu uma estranha emoção crescer dentro dela, como uma maré em ascensão. Ele era um homem, o primeiro que conhecera desde que Henry Bannock fora tirado dela. É
por ele que eu estava esperando. Eu o quero, pensou, preciso dele. Tanto eu como a Cayla precisamos dele. Meu Deus, como precisamos.


- Finalmente recebemos um pedido de pagamento de resgate - Hector disse aos homens reunidos na sala de comunicações. Observaram o rosto dele com atenção.

- Quanto? - perguntou Paddy O'Quinn em voz baixa.

- Não importa - Hector respondeu. - Não podemos pagar. Não vamos pagar.

Paddy assentiu.

- Vocês seriam loucos de pedra se pagassem. Mas o que vão fazer?

- Extração a quente - Hector respondeu. - Vamos tirar a menina de lá.

- Você sabe onde ela está? - todos se aproximaram avidamente, como cães de caça ao farejarem o cheiro da presa.

- Não! - recostaram-se nos assentos e não conseguiram disfarçar a decepção. Paddy falou em nome de todos.

- Então parece que temos um pequeno problema.

- Tariq e Uthmann vão voltar logo. Vão ter descoberto onde eles a estão mantendo.

- Tem certeza disso? - Paddy perguntou.

- Alguma vez eles fracassaram?

Ninguém respondeu por alguns momentos. Paddy comentou a seguir:

- Tem sempre uma primeira vez.

- Escute, Zé Pessimista, digo a você que a probabilidade é de dez para um se você apostar cem libras. Aguente ou fique calado.

- Onde eu vou arranjar essa quantia com o que você me paga?

- Certo! Quando Tariq e Uthmann voltarem, temos de estar preparados para partir imediatamente. Onde quer que formos, há apenas um modo de entrar. Saltamos à noite
de uma grande altitude.

Eles assentiram concordando.

- Não muitos, um grupo de dez homens. Todos os nossos falantes de árabe que puderem se passar por nativos.

- Em vez de chegar de pará-quedas, por que não usar o helicóptero da empresa? - Hazel perguntou.

- Eles nos ouviriam chegar. Uma aterrissagem noturna, ainda mais em um helicóptero? Não, obrigado - Hector recusou a oferta dela bruscamente, mas ela não demonstrou
estar ressentida.

- Ok, podem usar o meu jato.

- Nunca saltei de um Gulfstream antes - o olhar de Hector percorreu a sala. - Alguém já fez isso?

Eles balançaram a cabeça, e ele olhou novamente para Hazel.

- Não acho que seja uma boa ideia. Existe o problema da pressurização da fuselagem e da localização da porta, em frente à asa. A asa pode decapitar você quando saltar.
E, também, a velocidade do avião... Não, acho que teremos de escolher algo menos exótico.

- Que tal o Bernie Vosloo? - Paddy sugeriu.

- Estava pensando justamente nisso - Hector assentiu e se virou para Hazel. - Ele e a mulher operam uma aeronave de transporte, um Hércules C-130 antigo, levando
carregamentos pesados pela África e pelo o Oriente Médio. Não são frescos quanto ao que transportam, e sabem como manter o bico bem fechado. Já utilizei os serviços
deles várias vezes. O Hércules tem uma fuselagem parcialmente pressurizada e pode chegar a uma altitude de 6.400 metros se levar um chute no traseiro. A essa altura,
o barulho para quem está embaixo não será muito maior do que o de um gato mijando num pedaço de veludo.

Hazel nunca tinha ouvido a expressão antes e tentou manter o rosto elaboradamente sério enquanto tentava reprimir um sorriso, mas os olhos dela cintilaram como luzes
de Natal. Olhos absolutamente maravilhosos, pensou Hector, mas me distraem. Ele desviou o olhar dela para os homens.

- No entanto, não queremos saltar de 6.400 metros, portanto o Bernie vai acelerar bem menos para manter o nível de ruído baixo, e poderemos descer até três mil metros.
Nesse nível, ele pode despressurizar a cabine, e nós podemos pular. Como sempre, nos manteremos próximos durante a queda para atingirmos o chão em conjunto, e vamos
estar completamente equipados para lidar com um comitê hostil de boas-vindas.

- O que vem depois? - Dave Imbiss perguntou.

- Não se preocupe com isso, David, meu filho. Você não vai estar presente, nem você nem seu rostinho rosado de bebÉ - Hector respondeu e prosseguiu. - Essa é a parte
fácil. A difícil será a viagem de volta. Como sempre, há três possíveis saídas: terra, mar e ar. A passagem de primeira classe será para o helicóptero da empresa
- acenou com a cabeça para Hans Lategan, que estava sentado na fileira do fundo. - Hans estará à espera no helicóptero, na fronteira com o país civilizado mais próximo,
preparado para captar o nosso sinal de chamada e ir nos buscar. Isso deve ser suficiente - fez uma pausa -, mas todos estamos cientes do que pode acontecer aos planos
dos ratos e dos homens, portanto, vamos cobrir as outras duas rotas de saída. Tenho certeza de que eles estão mantendo a srta. Bannock prisioneira ou na Puntlândia
ou no Iêmen. Os sujeitos são piratas, portanto, nunca ficam muito longe do litoral.

Hector projetou o mapa no telão da parede e moveu o cursor sobre a área para demonstrar o que estava dizendo.

- Independente do que aconteça, Ronnie Wells vai estar nos esperando em seu torpedeiro na zona marítima - olhou para Ronnie na fileira do fundo, sentado ao lado
de Hans. - Que velocidade pode alcançar naquela banheira velha?

- Com meus novos tanques auxiliares no convés, pode chegar a mais de mil milhas náuticas - Ronnie respondeu. - E agradeço se você lembrar que ela não é uma "banheira
velha". Se eu acelerar, pode chegar aos quarenta nós.

- Desculpe pela escolha infeliz de palavras, Ronnie - disse Hector com um sorriso. - Portanto, o Ronnie vai estar esperando para proporcionar a todos vocês que conseguirem
chegar até a praia um cruzeiro de lazer pelo Mar Vermelho no caminho para casa.

- E se nem Hans nem Ronnie conseguirem cumprir o combinado, o que acontece, então?

Ah! É aí que você entra, Paddy. Você vai estar esperando na primeira fronteira em terra firme com uma coluna de caminhões. Se o alvo for o Iêmen, você ficará ou
na fronteira da Arábia Saudita, ou do Omã. Se o alvo for a Puntlândia, ficará na Etiópia esperando para ir nos buscar. Bernie Vosloo e a mulher podem levar você
e os caminhões até o local de avião, assim que soubermos aonde vamos. A propósito: não se esqueça de jeito nenhum de levar o médico junto. Com certeza alguém sairá
ferido se formos pela rota etíope - Hector olhou para o círculo de rostos ao redor. - Então, todo mundo tem trabalho a fazer. Quero estar pronto para partir dentro
de 24 horas assim que tomarmos conhecimento do alvo, isso pode acontecer a qualquer hora. Vamos nos mexer!

Assim que os demais saíram da sala, Hector ligou para Bernie Vosloo do telefone via satélite. Hazel estava escutando na extensão.

- Bernie, é Hector Cross. Onde você e a sua encantadora patroa estão?

- Oi, Heck. Estou em Nairóbi, mas não por muito tempo. Ainda está vivo? Aqueles caras bronzeados são ruins de alvo, não são?

- A pontaria deles é boa, eu é que aprendi a desviar. Escute, Bernie, tenho um trabalho para você.

Bernie deu uma risadinha.

- Você e o resto da África, Heck. Nella e eu temos pilotado sem parar, dia e noite. Amanhã nos mandamos para a República Democrática do Congo, aquela fossa de país
de nome irônico.

- Venha para Abu Zara. O clima e a cerveja são excelentes aqui.

- Desculpe, Heck. Tenho um contrato a cumprir. Um cliente importante. Não posso deixá-lo na mão.

- Qual é o valor do contrato?

- Cinquenta mil - Hector cobriu o bocal com uma das mãos e olhou para Hazel no outro lado.

- Qual é o meu limite? - suspirou.

- Com quem você está falando? - Bernie indagou com rispidez.

- Com a adorável senhora para quem trabalho. Aguarde um pouco, Bernie.

- O necessário para conseguir contratá-lo - Hazel suspirou em resposta e escreveu "um milhão de dólares" no bloco de anotações à sua frente, virando-o na direção
dele para que pudesse ver.

- Isso é loucura! - Hector balançou a cabeça e falou no bocal - Pagamos 250 mil dólares.

Bernie permaneceu calado por alguns momentos e disse a seguir:

- Adoraria ajudar. Desculpe, Heck. Mas é a minha reputação em jogo.

- Nella está aí?

- Sim, mas...

- Mas nada! Coloque-a ao telefone - o forte sotaque africaans de Nella surgiu na linha.

- Ja, Hector Cross. Qual é a enrolação desta vez, cara?

- Só liguei para dizer que amo você.

- Beije a minha bunda, Cross!

- Nada me daria mais prazer, Nella. Mas você tem de se divorciar do cretino do seu marido primeiro. Sabe o que ele acabou de fazer? Recusou a minha oferta de meio
milhão por dez dias de trabalho.

- Quanto? - Nella perguntou pensativa.

- Meio milhão.

- De dólares? Não de dinheiro africano do Banco Imobiliário?

- Dólares - confirmou -, adoráveis verdinhas norte-americanas.

- Onde você está?

- Em Sidi el Razig, Abu Zara.

- Chegaremos depois de amanhã para o café da manhã. E amo você também, Hector Cross.


Hector, Hazel e quatro agentes da Cross Bow estavam esperando na pista quando o monstruoso quadrimotor de transporte deu a volta e iniciou o procedimento de aproximação,
descendo num ângulo bastante inclinado.

- Nella está operando os controles - Hector disse com convicção.

- Como você sabe? - indagou Hazel.

- Bernie pilota como uma velha donzela. Nella é a personificação da cowgirl de rodeio de Germiston, a cidade que teria de ser entubada se alguém quisesse causar
um enema no mundo.

- Não seja grosseiro. Meu avô por parte de pai nasceu em Germiston.

- Aposto que, em outros aspectos, ele era um sujeito esplêndido.

O Hércules C-130 tocou o solo, foi desacelerando pela pista e manobrou para o lado para estacionar próximo de onde eles estavam, as hélices contra-rotativas espalhando
uma nuvem de areia pinicante sobre eles. Nella desligou os motores e estendeu a rampa pela porta traseira da fuselagem. Ela e Bernie desceram da aeronave. Nella
era uma loira robusta de rostinho de bebé. Vestia um macacão de camuflagem. As mangas haviam sido cortadas, o que revelava uma tatuagem de um anjo em voo no carnudo
braço direito. Era mais alta do que o marido.

- Ok, Heck, o que quer que a gente faça por meio milhão? Se conheço bem você, aposto que não vai ser moleza - disse ao trocarem um aperto de mão.

- Como sempre, acertou em cheio.

- Apresente-nos para sua namorada - Nella lançou um olhar penetrante sobre Hazel, tentando não demonstrar ciúmes.

- Quanto ao nosso relacionamento, Nella, meu amor, acho que você cometeu um pequeno engano. Esta é a sra. Bannock, minha chefe e sua. Portanto, um pouco de respeito
é recomendável. Venham, vamos até o terminal, onde podemos conversar.

Eles foram amontoados em duas caminhonetes Humvee. Sentaram-se à mesa comprida da sala de situação, e Hector explicou o problema aos Vosloos. Quando terminou, ficaram
todos em silêncio por alguns momentos, e então Nella olhou para Hazel.

- Também tenho uma filha. Graças a Deus, arrumou um homem bom na Austrália. Mas sei como deve estar se sentindo - disse, esticando um dos braços até Hazel no outro
lado da mesa e cobrindo a mão sedosa de Hazel com sua enorme pata encardida de óleo de motor e sujeira. As unhas eram curtas e quebradas.

- Levaria a senhora de graça se me pedisse, sra. Bannock.

- Obrigada, Nella. Você é uma boa pessoa. Dá para ver.

- Pelo amor de Deus, mulheres. Chega. Vão me levar às lágrimas se não pararem - Hector interrompeu. - Há apenas um problema. Não temos certeza de onde ou quando
estamos indo. Mas será para perto e logo.

- Logo quando? - Bernie Vosloo perguntou. - Não podemos passar semanas aqui esperando. Cada dia que passamos no chão nos custa dinheiro.

- Controle essa boca, Bernie Vosloo! - Nella sussurrou para ele. - Não ouviu eu dar a minha palavra para a senhora?

- Ele está certo! - disse Hazel. - É claro que pagarei pelo tempo parado. Vinte mil pelo primeiro dia, acrescidos de mais dez mil por cada dia que permanecerem em
terra.

- A senhora não precisa fazer, isso sra. Bannock - Nella parecia constrangida.

- Sim, preciso - Hazel replicou. - Agora vamos ouvir o que o sr. Cross tem a dizer.


Foram necessários quatro dias, mas estavam todos preparados. Ronnie Wells e três de seus homens desceram no torpedeiro até o Golfo e ao redor de Ras el Mandeb. Estava
ancorado em uma angra deserta na costa saudita, bem ao norte da fronteira com o Iêmen e do outro lado do estreito da Puntlândia. Ronnie usou as latas que carregava
no convés para reabastecer os tanques de combustível e estava em total e constante contato com Sidi el Razig.

O Hércules permaneceu na borda da pista atrás do minúsculo terminal do aeroporto. A aeronave continha três das caminhonetes GM de longa distância da Cross Bow fixados
no porão e um pequeno tanque de duas rodas de 750 galões à gasolina, que poderia ser acoplado à traseira de um dos outros veículos. As caminhonetes estavam lotadas
de equipamento e cada uma carregava um par de metralhadoras pesadas Browning, calibre .50, escondidas sob o oleado. Podiam ser montadas em alguns minutos, e seu
poder de fogo era devastador.

Hector havia ensaiado o procedimento de queda com Bernie e Nella. Assim que obtivessem o alvo, decolariam ao anoitecer e o sobrevoariam. Bernie e Nella tinham realizado
dezenas de saltos de paraquedas. Eram peritos. Assim que o grupo de Hector saltasse, o Hércules voaria até o aeródromo da fronteira em questão. Chegando lá, pousaria
e Paddy e Dave descarregariam as caminhonetes e se colocariam em posição de escuta e espera o mais perto da base do inimigo que fosse seguro e viável. Quando recebessem
o chamado de Hector pelo rádio, iriam em disparada até a fronteira em direção ao encontro combinado.

Esses dois veículos eram os menos desejáveis para a retirada. Hector estava contando fortemente com Hans Lategan e o grande helicóptero russo MIL-26 da Bannock Oil
para uma retirada organizada e rápida. A pintura vermelha e branca, nas cores da Bannock Oil, já havia recebido uma camada de spray nas cores verde e marrom de camuflagem.
Ficaria de prontidão na fronteira mais próxima, completamente abastecido.

Hazel tinha enviado uma resposta ao pedido de resgate, garantindo à Besta que estava fazendo tudo o que podia para arrecadar a quantia exigida, mas declarando que,
levando em conta o valor em questão, iria levar tempo. Esperava ter a quantia total pronta para ser enviada, de acordo com instruções, dentro de vinte dias. Não
recebeu um retorno, o que a deixava incessantemente aflita. Não restava nada a fazer a não ser esperar, mas Hazel Bannock não era boa de espera. Após o final da
conferência diária com o seu pessoal em Houston e de falar com o coronel Roberts, sobravam ainda dezoito horas a serem preenchidas.

Todas as manhãs Hector a levava para verificarem a chegada do voo local de passageiros de Ash-Alman, a capital de Abu Zara. Escaneavam os rostos de todos que desembarcavam,
mas Uthmann e Tariq nunca estavam entre eles. Até mesmo alguém como Hazel tinha um limite de resistência atlética, portanto eles não podiam passar mais do que sete
ou oito horas diárias correndo pelas dunas, ou praticando mergulho livre no paraíso de corais da enseada. Felizmente, não era difícil falar com ela agora que havia
começado a confiar um pouco em Hector e a baixar a guarda alguns centímetros. Quando discutiam política, ele começou a detectar uma tendência para a direita em relação
à sua instância original. No entanto, ela se opunha veementemente à pena de morte e acreditava na santidade da vida humana.

- Você está dizendo que não existe um único troglodita horrível neste mundo, não importa o quanto ele seja ruim, que não mereça morrer? - Hector indagou.

- A decisão permanece nas mãos de Deus. Não conosco.

- O velho lá em cima suspirou vezes suficientes nos meus ouvidos quando tenho um troglodita na minha frente, "destrua-o, Hector, meu camarada!". Quando o Senhor
chama, Hector Cross obedece.

- Você é totalmente pagão - ela mal conseguia esconder o sorriso.

Ele descobriu que ela era religiosa à moda antiga, que acreditava sublimemente na onipresença e onipotência de Jesus Cristo.

- Então, você acredita que, todas as vezes que ajoelha para rezar, J.C. está sintonizado na frequência do seu chamado? - ele perguntou.

- Espere para ver, Cross. É tudo o que tem a fazer.

- Dá para ver que a senhora tem batido papo com ele recentemente - ele acusou, e ela sorriu como a esfinge.

Essas discussões, e outras semelhantes, eram boas para passar o tempo. E, certo dia, após o jantar, ela reparou no jogo de xadrez barato em uma prateleira atrás
do bar do refeitório, e o desafiou para uma partida. Ele não jogava desde que tinha terminado a faculdade. Sentaram-se frente a frente com o tabuleiro no meio, e
ele logo descobriu que ela não se importava muito com a defesa, e que confiava em atacar agressivamente com a rainha. Uma vez que suas torres unissem forças, era
quase impossível contê-la. Porém, duas vezes ele conseguiu encurralar o rei e a rainha de Hazel com o cavalo. Após uma série de partidas disputadas, acabaram praticamente
em pé de igualdade.

E então, após o quinto dia desde a chegada de Bernie e Nella a Sidi el Razig, Hector disse:

- Sra. Bannock, vou levá-la para jantar hoje à noite, quer a senhora goste ou não.

- Continue assim e talvez consiga me convencer - ela disse. - Devo me vestir para a ocasião?

- Para mim, a senhora está bem como está.

Ele a levou de carro até uma faixa praiana cinco quilômetros adiante na costa. Ela ficou observando enquanto ele montava a churrasqueira.

- Ok, você sabe fazer fogo como um escoteiro mediano, mas qual é o cardápio?

- Venha, temos de ir às compras.

Restava apenas uma hora até o sol se pôr, mas eles nadaram por algumas centenas de metros até o recife de corais secreto de Hector. Após três mergulhos, ele conseguiu
pegar dois bodiões vermelhos como morangos, de quase três quilos cada, e duas lagostas grandes. Ela se sentou em uma toalha de piquenique com as pernas encolhidas
sob o corpo e uma taça de Burgundy em punho, enquanto assistia a Hector cozinhar.

- O jantar está servido - anunciou finalmente, e eles comeram com as mãos, arrancando a carne branca e suculenta da espinha do bodião e chupando a carne das pernas
encapadas das lagostas. Jogaram as sobras no fogo e observaram enquanto queimavam até esturricar. Depois, Hazel se levantou.

- Aonde você vai? - ele perguntou em um tom preguiçoso.

- Nadar - ela respondeu. - Pode vir junto se tiver vontade.

Ela levou as mãos para trás e abriu o fecho da parte de cima do biquíni. A seguir, colocou os polegares dentro do elástico da calcinha e se desvencilhou dela, que
caiu pelos tornozelos. Ela chutou a bela peça para o ar e ficou ali por um instante, de frente para ele. Ele ficou sem ar, chocado de prazer. O corpo dela era o
de uma mulher no auge absoluto - tonificado e com os seios firmes, o abdômen liso e rígido, os quadris se projetando com orgulho da linhas perfeitas da cintura,
como um vaso etrusco. Era uma mulher natural, não se depilava como era a moda hoje em dia, no estilo vedete pornô. Ela riu da cara dele, de um jeito provocante e
malicioso, e depois virou de costas e correu pela praia para mergulhar em uma pequena onda e nadar até águas mais profundas com braçadas poderosas. Lá, boiou de
costas e, ainda rindo, observou-o pulando em um pé só na areia antes de se desvencilhar da sunga.

- Vou pegar você, sua raposa! - gritou para esquentar o clima e saiu correndo pela praia.

Ela se encolheu de medo, deliciada, fazendo a água espumar ao nadar para longe dele. Hector a alcançou, e ela virou o rosto para ele, que procurou a boca de Hazel
com a própria. Ela colocou as mãos nos ombros dele de maneira submissa, até que os lábios dele estivessem a poucos centímetros. Então, Hazel se ergueu bem acima
dele, fazendo-o afundar. Quando ele emergiu cuspindo água, ela estava dez metros adiante. Hector disparou atrás dela, mas ao esticar o braço para agarrá-la, ela
suspendeu ambas as pernas no ar, tombou o corpo em L e mergulhou fundo nas águas escuras. Ele a perdeu de vista e boiou, virando-se devagar para vê-la emergir novamente.
Ela surgiu mais próxima à praia, e ele foi nadando na mesma direção, girando os braços e batendo os pés, deixando uma trilha de espuma para trás. Ela mergulhou de
novo, como um corvo-marinho pescador. Estava, vagarosa e desonestamente, atraindo-o de volta ao raso.

De repente, Hazel se levantou, com a água pela cintura. Ela esperou por ele e então correu ao seu encontro. Eles se encaixaram, respiração e ventre. Ela o sentiu
contra o corpo, rígido e enorme, tão pronto quanto ela. Ela lançou os braços ao redor do pescoço de Hector e prendeu os quadris dele com ambas as pernas. Foram necessários
alguns momentos de manobras frenéticas de ambas as partes antes que eles pudessem se alinhar perfeitamente, e então ele deslizou para dentro dela. Ela teve a impressão
de que ele chegaria até o coração.

- Meu Deus. Era o que eu estava esperando, por tanto tempo - ela respirou e se entregou a ele sem perguntas nem reservas.


Passava da meia-noite quando eles retornaram aos edifícios doterminal. Ele a acompanhou até o quarto e teria se despedido na porta com apenas um beijo demorado.

- Não seja bobo - ela disse, mantendo a porta aberta. - Entre.

- O que as pessoas vão pensar?

- Usando a sua terminologia erudita, eu não estou nem aí! - Hazel respondeu.

- Que grande ideia! Vamos lá - ele riu e a seguiu pela porta, fechando-a atrás de si.

Eles tomaram banho juntos, sem inibições, deliciando-se com o corpo um do outro enquanto enxaguavam a areia da praia e o sal. A seguir, foram para a cama.

- Hemingway chamava a cama dele de pátria - Hector comentou quando os dois deslizaram para baixo dos lençóis.

- O velho Ernie tem o meu voto - ela riu ao chegar pelo outro lado, encontrando-o no meio da cama.

Fizeram amor com alegria e carinho, mas a sombra da tragédia continuava a tingir a felicidade dos dois. Quando se cansaram momentaneamente, ela deitou nos braços
dele com o rosto encostado no peito nu e chorou baixo, mas com amargura. Ele acariciou o cabelo dela, compartilhando a agonia.

- Eu vou junto quando você for buscar a Cayla - ela disse. - Não consigo ficar aqui sozinha. Só aguentei até agora por sua causa. Sou tão durona quanto qualquer
um dos seus homens. Posso cuidar de mim durante uma crise, você sabe disso. Você tem de me levar junto.

- Você sabia que tem os olhos mais azuis e bonitos do mundo? - ele disse.

Ela se sentou e olhou para ele furiosa.

- Você está fazendo suas piadinhas idiotas numa hora destas?

- Não, minha querida. Estou dizendo que você não pode vir comigo.

Ela balançou a cabeça sem compreender, e ele prosseguiu:

- É possível que as coisas não corram conforme o planejado. Podemos ficar encurralados e ter de nos misturar à população local e cavar o caminho da saída. Os árabes
chamam olhos como os seus de "olhos do demônio". O primeiro inimigo que olhar para o seu rosto saberá o que você é. Se eu levá-la comigo, isso diminui as chances
de um resgate seguro de Cayla pela metade.

Hazel olhou fixamente para ele por um longo tempo, em seguida, abaixou os ombros e escondeu o rosto no peito dele novamente.

- Esse é o único motivo que me faria ficar - ela suspirou. - Não faria nada que reduzisse as chances de resgatá-la. Você vai tirá-la de lá, Hector? Vai trazê-la
de volta para mim?

- Sim, vou.

- E você? Vai voltar para mim? Acabei de encontrá-lo. Não posso perder você agora.

- Eu vou voltar, prometo, com Cayla ao meu lado.

- E eu acredito em você - ela disse.

Ela permaneceu agarrada a ele. Hector mal podia ouvir a respiração dela. Tomou cuidado para não se mexer e incomodá-la. Ela acordou assim que a luz da aurora se
infiltrou pelas cortinas.

- Essa foi a primeira noite em que dormi direto desde que Cayla... - ela não terminou a frase. - Estou morrendo de fome. Vamos tomar o café da manhã.

A grande Nella chegou ao refeitório antes deles, e tinha uma enorme travessa com ovos mexidos, bacon e linguiça diante dela. Ela ergueu o olhar até Hazel, e um flash
de entendimento intuitivo passou entre as duas. Nella baixou os olhos até o prato e sorriu.

- Mazel tov! - ela disse aos ovos, e Hazel corou.

Hector jamais teria acreditado que ela fosse capaz de tal coisa, e o fenômeno o deixou espantado - para ele, era algo mais encantador do que o pôr do sol. Após comerem,
ele levou Hazel até o Humvee no lado de fora. Ela se sentou ao lado dele no banco da frente, e Hector encostava na perna dela todas vezes que trocava a marcha, o
que a fazia sorrir modestamente. Ele estacionou o Humvee à sombra sob a asa do Hércules, pois mesmo a essa hora o sol já estava desconfortavelmente quente. Agora
podiam ficar de mãos dadas. O Fokker F-27 Friendship estava apenas meia hora atrasado.

- Em termos de Abu Zara Airways, está quase adiantado - Hector disse a ela enquanto observavam a aeronave taxiar em frente ao edifício do terminal e desligar os
motores. Os cerca de vinte passageiros começaram a desembarcar, e Hector os observou sem grandes expectativas. Eram quase todos árabes em trajes tradicionais, carregando
seus pertences em trouxas e pacotes. De repente, Hector se contraiu e apertou a mão dela com força.

- Filhos da mãe! São eles! - praguejou em voz baixa.

- Onde? - Hazel se endireitou no assento. - Para mim, parecem todos iguais.

- Os dois últimos. Posso reconhecê-los a um quilômetro de distância só pelo andar.

Deu uma buzinada curta e ligou a ignição do Humvee. Os dois árabes olharam para eles, caminhando em sua direção. Subiram no banco de trás.

- Que a paz esteja com vocês! - Hector os saudou.

- Em paz, você esteja - responderam em uníssono.

Hector dirigiu por um quilômetro e meio ao longo da pista acima da praia antes de estacionar.

Hazel se virou no assento para olhar para os dois homens na parte de trás.

- Isso está me enlouquecendo! - disse de supetão. - Eu preciso saber! Descobriram onde minha filha está, Uthmann?

- Sim, sra. Bannock. Descobrimos. Eu estava hospedado na casa do meu irmão Ali em Bagdá. Ele me pareceu diferente. Acredita que o único caminho a ser seguido pela
nossa nação é a rota da Jihad. Ele é um combatente mujahid e está fortemente aliado à Al-Qaeda. Sabe que não concordo com o ponto de vista dele, mas somos irmãos
e unidos pelo sangue. Jamais revelaria qualquer coisa relativa às atividades dele na jihad, mas após essas últimas semanas que passei na casa do meu irmão, o comportamento
dele se tornou mais relaxado e menos sigiloso. Ele normalmente usa um celular e nunca faz telefonemas de negócios de casa. Há alguns dias, cometeu o erro de pensar
que eu tinha saído com a mulher dele para vistar uns amigos, mas eu estava no andar de cima da casa quando Ali usou a linha fixa para falar com um dos seus colegas
na Al Qaeda. Escutei a conversa pela extensão. Estavam discutindo a captura e o aprisionamento da sua filha, e um deles mencionou que ela tinha sido levada por membros
do clã do xeique Khan Tippoo Tip.

- Tippoo Tip! É o mesmo nome do camareiro que estava a bordo do Golfinho. Mas quem é esse xeique? - Hazel indagou, e Uthmann respondeu.

- É um senhor da guerra, e o chefe de um dos clãs mais poderosos da Puntlândia.

Hector tocou os ombros dele.

- Como sempre, você provou seu valor, meu velho amigo - disse.

- Espere! Tenho mais coisas para contar - Uthmann balançou a cabeça demonstrando tristeza. - Você se lembra dos homens que matou a tiros em Bagdá há muitos anos?

Hector assentiu.

- Os três jihadistas que detonaram a bomba na beira da estrada - olhou de lado para Tariq. - É claro que Tariq e eu nos lembramos deles.

- Sabe como se chamavam?

- Não - Hector admitiu -, aparentemente, estavam todos usando codinomes. Nem mesmo o Departamento de Inteligência Militar conseguiu identificá-los. O que você descobriu,
Uthmann?

- O homem que você matou se chamava Saladin Gamel Tippoo Tip. Era filho do xeique Tippoo Tip e pai de Adam Tippoo Tip. O xeique declarou uma rixa de sangue a você
- Hector olhou para ele sem dizer nada, e Uthmann prosseguiu. - O dhow que você e Ronnie Wells destruíram tinha cinco homens a bordo. Haviam sido enviados pelo xeique
Khan para se vingar da morte do filho mais velho. Entre os que morreram, estava Gafour Tippoo Tip, o quinto filho do xeique. A dívida de sangue foi então dobrada.
O xeique enviou um terceiro filho para encontrá-lo e vingar os irmãos...

- O que se chamava Anwar! - Hector exclamou. - Meu Deus! Jamais irei esquecê-lo. Em seu último suspiro de vida, ele zombou de mim, dizendo: "O meu nome é Anwar.
Lembre disso, Cross, seu grande porco. A dívida não foi sanada. A Disputa Sangrenta continua. Outros virão".

Tariq assentiu.

- É exatamente o que está dizendo, Hector.

- Onde podemos encontrar essa criatura chamada xeique Tippoo Tip? - Hector perguntou.

Tariq respondeu sem hesitar:

- Eu o conheço. A fortaleza dele fica na Puntlândia.

- Puntlândia! Esse nome vive surgindo - Hazel interveio.

- É uma província rebelde da Somália. A Puntlândia é território do Tariq - Hector explicou, olhando novamente para Tariq. - É o que estávamos esperando. O que tem
a nos dizer sobre esse troglodita?

- Apenas o que todo mundo na Puntlândia sabe: que a fortaleza de Tippoo Tip se situa na região noroeste do país, em um lugar chamado "Oásis do Milagre". Fica no
sul da principal rodovia da província, perto do pequeno vilarejo de Ameera.

- Você conhece a área? - Hector indagou, mas Tariq balançou a cabeça.

Hector o conhecia tão bem que não teve dúvidas de que ele estava mentindo ou, pelo menos, contando apenas parte da verdade.

- Ok - Hector não precisava de outra confirmação. - Precisamos descobrir tudo o que pudermos a respeito de Tippoo Tip e da fortaleza. Precisamos de mapas da área.
Tenho de retornar ao terminal e botar todo mundo para trabalhar.

Quando se encontravam reunidos novamente ao redor da mesa, Hector olhou para todos antes de falar.

- Bem, nós agora sabemos para onde vamos. Alguém aqui além do Tariq conhece um lugar na Puntlândia chamado Oásis do Milagre, ou o vilarejo de Ameera? Esses são os
nossos alvos.

Todos pareciam surpresos. Hector se dirigiu a Dave Imbiss.

- Dave, entre no site do Google Earth. Tariq vai apontar os alvos no mapa. Quero cópias das fotos de satélite da área. Quero saber a distância de avião. Quero saber
qual é a pista mais próxima na Etiópia, e a distância de carro de lá até o nosso alvo - fez uma pausa e olhou para Bernie e Nella. - Ou vocês dois têm alguma ideia
a respeito disso? Conhecem uma pista de pouso adequada?

- Jig Jig! - disse Nella, que soltou uma gargalhada histérica e deu um cutucão com um dos cotovelos nas costelas de Bernie, fazendo-o se encolher.

- Um terreno de pouso com um nome desses? - Hector levantou uma das sobrancelhas. - Interessante!

- Foi Nella quem deu o nome, não eu - Bernie protestou enquanto se endireitava e esfregava as costelas. - Não sei qual é o nome verdadeiro, provavelmente não tem.
É uma antiga faixa militar italiana abandonada da Segunda Guerra Mundial. Está em condições deploráveis, mas o Hércules não se importa com terrenos acidentados.

- Fizemos um pouso de emergência lá, certa vez - Nella ainda estava rindo esfuziantemente. - Fui acometida de um fogo incontrolável e nós aterrissamos para o Bernie
sossegar o meu facho. Foi maravilhoso. Um dos seus melhores desempenhos de todos os tempos. Nunca esquecerei.

Bernie manteve a postura sóbria, apesar das explosões de riso e da frivolidade em si.

- Está situada em um local perfeito, a menos de cinquenta quilômetros da fronteira da Puntlândia, mas o melhor de tudo é: não há nenhum oficial presente, nem polícia,
nem imigração - disse Bernie.

- Soa como se tivesse sido feita para nós. Mostre ao Dave a localização no mapa. Nella, você acha que consegue se conter quando aterrissar lá de novo? Chega de transas
indiscriminadas! - ele se virou para Paddy. - Paddy, contate Ronnie Wells pelo rádio e diga a ele para atravessar com o torpedeiro para o litoral da Puntlândia e
encontrar um ancoradouro seguro o mais próximo possível do alvo. Avise-nos quando ele chegar lá.

Durante todo o tempo em que estava distribuindo as ordens, estava ciente que Tariq o observava dissimuladamente. Finalmente, lançou um olhar direto para ele, e Tariq
sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente, levantando-se a seguir e saindo da sala. Hector aguardou um minuto e disse para Paddy O'Quinn.

- Continue a reunião. Não vou demorar.

Saiu à procura de Tariq e, após alguns minutos, avistou-o atrás de uma das caminhonetes estacionadas. Estava fumando um cigarro, desprezando a placa na lateral do
veículo que dizia "Proibido Fumar". Quando viu Hector se aproximar, esmagou o cigarro sob a sola do sapato e saiu andando ao longo do oleoduto. Hector o seguiu e
o encontrou agachado atrás de uma das estações de bombeamento.

- Fale comigo, amado do Profeta - Hector pediu ao se agachar ao lado dele.

- Não podia falar na frente dos outros - Tariq explicou.

- Nem mesmo do Uthmann?

Tariq deu de ombros.

- Você acha mesmo que Uthmann conseguiu reunir todas aquelas informações sobre o clã Tippoo Tip simplesmente porque escutou sem querer uma conversa do irmão ao telefone?
Meu receio é em relação à minha família, mestre. Não posso correr riscos.

- Há uma certa verdade no que você diz, Tariq - Hector assentiu pensativo.

Apesar do profundo afeto que sentia por Uthmann, sentiu os vermes da traição se movimentando nos intestinos.

Tariq respirou fundo e disse:

- Minha tia se casou com um homem do vilarejo de Ameera, bem perto do Oásis do Milagre. Quando eu era criança, passava vários meses lá todos os anos. Conduzia os
rebanhos com meus primos. Vi a fortaleza de Tippoo Tip muitas vezes, mas apenas a distância. Mas isso foi há muito tempo, e talvez a minha tia esteja morta agora.

- Mas talvez não esteja. Talvez ainda trabalhe na fortaleza. Talvez saiba onde estão mantendo a menina. Talvez ainda o ame o bastante para mostrar como entrar na
fortaleza e onde encontrar a menina.

- Talvez - Tariq sorriu e acariciou a barba. - Talvez todas essas coisas sejam verdade.

- Talvez você devesse visitar sua tia e descobrir.

- Talvez - Tariq assentiu.

- Talvez você deva partir hoje à noite. Vamos lançá-lo do Hércules próximo a Ameera. Vou dar um dos telefones de satélite para você. Ligue para mim assim que fizer
contato com sua família. E isso não é talvez.

- Como sempre, ouvi-lo é obedecê-lo, Hector - Tariq assentiu, e seu sorriso se tornou mais largo.

Hector deu um soco de brincadeira em seu ombro e começou a se levantar, mas Tariq colocou a mão em um de seus braços.

- Espere, tenho mais uma coisa para contar - Hector se agachou novamente ao lado dele. - Se conseguirmos pegar a menina, vários homens virão no nosso encalço. Vão
estar em caminhonetes quatro por quatro. Vamos estar a pé com a menina. É capaz que ela esteja fraca e doente depois do que fizeram com ela. Talvez tenhamos de carregá-la.

- Diga o que sugere.

Ao norte da fortaleza, há uma ravina funda e rochosa. Estende-se, de leste a oeste, por 112 quilômetros. Podemos atravessá-la a pé, mas até mesmo um veículo de tração
nas quatro rodas não conseguirá nos seguir. Terão que se deslocar por cerca de cinquenta ou sessenta e cinco quilômetros na direção leste para atravessarem o wadi,
o vale. Assim que atravessarmos o vale, teremos uma dianteira de duas ou três horas, ou até mais.

- Você merece ser recompensado com uma centena de virgens! - Hector disse sorrindo.

- Ficarei contente com uma - disse Tariq retribuindo o sorriso -, mas uma das boas.

Hector o deixou agachado à sombra da casa de bombeamento enrolando mais um cigarro.

Assim que Hector entrou na sala de situação, Dave se dirigiu a ele.

- Essas são as fotos de satélite do Google Earth da área, chefe - ele tamborilou os dedos sobre os mapas estendidos na mesa à sua frente. - O vilarejo de Ameera
está sinalizado, mas não consigo encontrar nada em relação ao Oásis do Milagre.

- Vamos dar uma olhada - Hector estudou a fotografia em alta resolução e depois bateu com um dos indicadores sobre ela. - Aqui está! - exclamou. - Mo'jiza. O milagre.
Passe as coordenadas, Dave.

Enquanto Dave fazia os cálculos, Hector continuou a analisar o mapa. Agora que sabia o que e onde procurar, encontrou o vale imediatamente. Pegou a lupa de Dave
e examinou o wadi cuidadosamente. A informação fornecida por Tariq se confirmou - nenhuma estrada ou trilha atravessava o vale.

Endireitou as costas e foi até onde se encontravam Bernie e Nella, no lado de fora, tragando seus cigarros. Hector falou com eles em voz baixa:

- Hoje à noite, quero que vocês deixem o Tariq o mais próximo possível do vilarejo de Ameera. Ele está sendo infiltrado para fazer um reconhecimento da área. Depois
disso, vão prosseguir diretamente até a pista de Jig Jig com o Paddy e a gangue dele, que vão estar a bordo. Vão descarregá-los e as caminhonetes e depois voltar
aqui para Sidi el Razig - através da abertura da porta, ele olhou para Hazel, que tinha saído da sala de situação e ido atrás dele. Sabia que não era sensato, tampouco
educado, deixá-la de braços cruzados em Sidi el Razig, sem nada para ocupá-la.

- A sra. Bannock e eu vamos acompanhar vocês no passeio até Ameera e Jig Jig.

Hazel assentiu em concordância, e Hector se virou novamente para Bernie.

- Calcule o tempo de voo de cada estágio da viagem. Temos que chegar a Jig Jig enquanto ainda estiver claro o suficiente para aterrissar. Não queremos ficar dando
voltas na área por muito tempo e chamar atenção. Acha que conseguimos encontrar a pista de primeira?

- Pergunta estúpida - Nella respondeu. - Já fomos lá antes, lembra?

Ela colocou um par de óculos de leitura, de armação de plástico laranja, sobre o nariz e ela e Bernie foram trabalhar na calculadora. Em poucos minutos, Nella olhou
para cima:

- Ok, a decolagem daqui será às vinte horas em ponto. Quem não estiver a bordo fica para trás.

 

Hector e Hazel ficaram na cabine de voo do Hércules e, por sobre a cabeça dos pilotos, assistiram ao anoitecer africano. Hazel se recostou levemente nele. Os últimos
raios de sol iluminavam as cristas das montanhas adiante, colorindo-as em tons de bronze e de ouro recém-cunhado. Simultaneamente, a terra lá embaixo deles já havia
sido apagada pela escuridão, e apenas minúsculos pontinhos de luz assinalavam o posicionamento dos vilarejos e aldeias da Puntlândia, espalhados por todo seu território.

- É tão bonito - Hazel suspirou. - Mas não consigo enxergar a beleza devido ao horror. Cayla está lá embaixo, em algum lugar.

A noite os envolveu completamente, e as estrelas se espalhavam, esplendorosas, sobre eles. Nella se virou no banco e retirou os fones dos ouvidos.

- Estou iniciando a descida agora. São vinte minutos até a zona de salto, Hector. Diga para os seus homens ficarem com o equipamento em ordem e de prontidão.

Hector foi até a cabine principal. A maioria dos homens de Paddy tinha subido nas caminhonetes e encontrado um lugar confortável para dormir. Mas Tariq estava esperando
por Hector próximo à saída traseira. Estava vestido como um camponês somali, com os pertences em uma bolsa de pele de cabra amarrada ao redor da cintura e sandálias
de couro cru nos pés. Enquanto Hector o ajudava a afivelar o paraquedas, repassou rapidamente os sinais de contato e reconhecimento que haviam combinado.

- Dez minutos até a zona de salto - a voz de Nella chegou pelos alto-falantes.

Hazel foi apertar a mão de Tariq.

- Não é a primeira vez que está arriscando sua vida por mim, Tariq. Vou encontrar uma maneira de retribuir.

- Não exijo pagamento, sra. Bannock.

- Então rezarei para que Alá o abençoe e proteja - disse e, em seguida, a voz de Nella nos alto-falantes foi ouvida mais uma vez.

- Cinco minutos até a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora. Verifique se as correias de segurança estão enganchadas.

A rampa abaixou pesadamente, e o frio ar noturno chicoteou em volta das cabeças, dando puxões nas roupas.

- Consigo enxergar as luzes de Ameera logo adiante - Nella cantou. - Um minuto para saltar.

Em seguida, começou a contagem regressiva:

- Cinco, quatro, três, dois e já! Já! Já!

Tariq correu para a frente e colocou primeiro a cabeça para fora da rampa. O vento o puxou instantaneamente pela escuridão. Nella fechou a rampa traseira e aumentou
gradualmente a potência dos motores. Prosseguiram rumo a Jig Jig.

Rodearam a pista ao amanhecer. Havia um edifício em ruínas, destelhado e com as paredes restantes caindo aos pedaços. Mesmo após oitenta anos, a pista abandonada
ainda era sinalizada pelos pequenos montes de pedras caiadas. O único sinal de vida estava na encosta do morro acima da pista, onde um menino enrolado em um cobertor
vermelho se aquecia diante de uma pequena fogueira fumegante, enquanto suas cabras pastavam ao redor. A fumaça revelou a direção do vento para Nella. Ao ouvir o
ruído retumbante do Hércules que voava baixo sobre eles, o menino e seu rebanho se dispersaram em pânico. Nella aterrissou a grande máquina tão suavemente quanto
uma borboleta pousando em uma rosa. A seguir, a aeronave foi aos solavancos e chacoalhando sobre o piso marcado, estacionando bem antes do final da pista. Nella
abriu a porta traseira, e Paddy conduziu o comboio de três caminhonetes rampa abaixo e, com um último aceno da mão enluvada, arrancou em direção à fronteira somali.
Nella usou os motores para acelerar o Hércules em uma volta de 180 graus, e eles estavam novamente no ar cinco minutos depois de terem pousado.
- Cinco horas e meia de voo de volta - Hector disse ao colocar um dos braços ao redor dos ombros de Hazel. - Não tenho a menor ideia de como vamos passar o tempo.

- Este porão de carga é todo nosso - Hazel comentou. - Posso fazer uma sugestão?

- Li sua mente e acho a sugestão excelente. Sra. Bannock, a senhora é um gênio.


Tariq encontrou um buraco de tamanduá africano, onde enfiou os paraquedas e o capacete de proteção. Enrolou o turbante ao redor da cabeça e pendurou a bolsa de pele
de cabra atravessada sobre o ombro. Durante a descida, havia memorizado cautelosamente a direção do vilarejo. Havia apenas duas ou três luzinhas acesas, e ele ficou
impressionado com a precisão da vista de Nella Vosloo, que fora capaz de distingui-las a três mil metros de altura. Ele se colocou a caminho de Ameera e, após oitocentos
metros, sentiu o cheiro da fumaça dos fogões a lenha e o forte odor das cabras e dos homens. Ao se aproximar do vilarejo, um cão latiu e outro se juntou a ele, mas
todos estavam adormecidos. Haviam se passado dez anos desde sua última visita, mas a lua quase cheia fornecia iluminação suficiente para que ele se orientasse enquanto
se movia silenciosamente entre as cabanas de teto de palha. A casa de sua tia era a terceira após o poço. Ele bateu na porta e, após um intervalo, a voz baixa de
uma mulher disse do outro lado:

- Quem é? O que você quer a esta hora da noite? Sou uma mulher decente. Vá embora!

- É o Tariq Hakam, venho à procura da irmã de minha mãe, Taheera.

- Espere! - gritou a mulher que não podia ser vista.

Ele ouviu ela se movimentar pela cabana e o riscar de um fósforo. A luz suave e amarelada de uma lâmpada de querosene podia ser vista através das frestas nas paredes
de barro. Finalmente a porta se abriu, e a mulher estava olhando para ele.

- É você mesmo, Tariq Hakam? - ela perguntou e segurou a lâmpada de modo que iluminasse o rosto dele. - Sim - suspirou timidamente -, é você mesmo.

De forma despojada, afastou o véu do rosto.

- Quem é você? - ele a encarou.

Ela era jovem e muito bonita. Os traços eram vagamente familiares.

- Fico triste que não tenha me reconhecido, Tariq. Sou a sua prima Daliyah.

- Daliyah! Mas você está tão crescida!

Ela deu uma risadinha modesta e puxou o véu novamente sobre a boca e o nariz. Havia apenas dez anos, ela era como um ouriço que não saía do pé dele, comportando-se
da maneira mais irritante possível, vestindo saias curtas e encardidas, com os cabelos emaranhados e moscas caminhando sobre o ranho ressequido debaixo do nariz.

- Minha tia está, Daliyah?

- Minha mãe está morta, Tariq, que Alá conserve a sua alma. Retornei a Ameera para viver meu luto.

- Que ela encontre a felicidade no Paraíso - disse em voz baixa. - Não sabia que tinha morrido.

- Ficou doente por um longo tempo.

- E você, Daliyah? Tem um protetor? Seu pai, seus irmãos?

- Meu pai morreu há cinco anos. Meus irmãos partiram. Foram para Mogadíscio lutar pelo exército de Alá. Estou sozinha aqui - fez uma pausa antes de prosseguir. -
Há homens aqui, homens rústicos e grosseiros. Infelizmente. Por isso hesitei em abrir a porta para você.

- O que vai ser de você?

- Antes de morrer, a minha mãe cuidou para que eu fosse trabalhar como serviçal na fortaleza no Oásis do Milagre. Voltei para cá apenas para enterrá-la e viver o
meu luto. Agora que os dias de luto se passaram, voltarei para o meu trabalho na fortaleza.

Ela o tinha conduzido até à cozinha, em uma extensão no fundo da cabana. Abaixou a lanterna e virou-se para ele:

- Você está com fome, primo? Tenho algumas tâmaras e pão sem fermento. Tenho também coalhada de leite de cabra - estava ávida para agradá-lo.

- Obrigado, Daliyah. Trouxe um pouco de comida comigo. Podemos compartilhar.

Ele abriu a bolsa de couro e retirou um pacote de rações militares. Os olhos dela se acenderam. Ele imaginara que ela não andava se alimentando bem. Eles se sentaram
um de frente para o outro, de pernas cruzadas no chão seco de barro, com pequenas tigelas esmaltadas entre os dois, e ele a observou comer com prazer. Ela sabia
que estava sendo observada, e manteve os olhos modestamente abaixados, mas de vez em quando sorria um pouco para si mesma. Quando finalmente terminaram, ela enxaguou
as tigelas e voltou a se sentar diante dele.

- Você diz que trabalha na fortaleza? - perguntou, e ela assentiu em confirmação. - Tenho negócios a tratar na fortaleza - Tariq disse, e ela olhou para ele com
um ligeiro interesse.

- É o que o traz aqui? - ele inclinou a cabeça e ela continuou - O que está procurando, primo?

- Uma menina. Uma jovem branca de cabelos claros.

Daliyah engasgou e cobriu a boca com uma das mãos. Os olhos dela estavam escuros de choque e de medo.

- Você a conhece! - disse com convicção.

Ela não respondeu, e em vez disso abaixou a cabeça com os olhos fixos no chão entre eles.

- Vim buscá-la para levá-la de volta à família.

Ela balançou a cabeça com tristeza.

- Cuidado, Tariq Hakam. É perigoso falar assim livremente. Temo por você.

Ficaram calados por um longo período, e ele a viu tremer.

- Vai me ajudar, Daliyah?

Conheço essa menina, ela é jovem como eu. Mesmo assim, foi dada aos homens para brincarem com ela - a voz era quase inaudível. - Ela está doente. Está doente por
causa dos ferimentos que sofreu. Está doente de medo e solidão.

- Leve-me até ela, Daliyah. Ou pelo menos me mostre o caminho.

Ela demorou um pouco a responder e então disse:

- Se eu fizer o que me pede, eles vão saber que fui eu quem levou você até ela. Vão fazer comigo o que fizeram com ela. Se eu levá-lo até ela, não posso permanecer
neste lugar. Você me levará junto quando partir, Tariq? Vai me proteger da ira deles?

- Sim, Daliyah. Levarei você comigo, com prazer.

- Então vou ajudar, Tariq Hakam, meu primo - deu um sorriso tímido, e seus olhos escuros brilharam à luz da lanterna.


Tariq ficou agachado sob a saliência de uma rocha voltada para o leste. Estava ali fazia uma hora, desde o anoitecer. Estava pensando na prima Daliyah. Ainda pensando
sobre a transformação dela de menina em mulher. Pensar nela o fazia se sentir feliz. Na manhã em que se despediu dele para caminhar os mais de seis quilômetros até
o Oásis do Milagre, ela havia tocado o braço dele e dito:

- Estarei à sua espera quando vier.

Ele esfregou o braço no local em que ela o tocou e sorriu.

Os pensamentos dele foram distraídos pelo leve tremor de um som no céu. Olhou para cima, mas não havia nada além de estrelas. Inclinou a cabeça para o lado e escutou.
O som se intensificou. Ele levantou e pegou a velha lata de querosene com a tampa cortada que Daliyah havia lhe dado e a levou para fora. Fez uma pilha com as pedras
que havia juntado anteriormente ao redor da lata para apoiá-la com firmeza. Ficou de novo na escuta - dessa vez não havia dúvidas. A vibração de múltiplos motores
de aeronaves era inconfundível. Tirou o sinalizador naval de socorro da bolsa e puxou a fita de ignição, jogando-o dentro da lata. Deu um passo para trás. As chamas
irromperam, e a fumaça sulfurosa borbulhou para fora da lata. O brilho avermelhado foi refletido no sentido vertical. O barulho dos motores aumentou até ficar logo
acima da cabeça dele.


A voz de Nella retumbou dos alto-falantes:

- A chama do marcador vermelho está no meu campo de visão. Dois minutos para a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora.

Hector tinha dividido os homens em dois grupos de cinco. Saltaria primeiro com o grupo dele, e Uthmann o seguiria imediatamente com seus quatro homens. Estavam todos
vestidos em trajes tradicionais, com lenços pretos cobrindo grande parte do rosto, mas por cima usavam coletes à prova de balas e capacetes de batalha, e carregavam
kits de sobrevivência, dez pentes de munição para os rifles de assalto nos cintos e uma faca de trincheira embainhada. As facas haviam sido afiadas pelo armeiro
da Cross Bow até que estivessem boas o suficiente para barbear.

- Primeiro grupo de pé! - Hector comandou, e eles se ergueram e caminharam com passos arrastados até a porta aberta.

- Acendam as suas luzes de sinalização!

Cada um deles tinha uma luz fosforescente minúscula afixada à frente do capacete com um elástico. Eles ergueram os braços e as acenderam. As lâmpadas eram azuis,
e a luz que emanavam era tão tênue que seria pouco possível que um observador hostil em terra pudesse captá-la, mas os pontinhos luminosos serviriam para que pudessem
localizar uns aos outros durante a queda livre. Hazel, que estava sentada no banco ao lado de Hector, se levantou e colocou os braços ao redor do pescoço dele.

- Amo você! - suspirou, ele era o primeiro homem para quem dizia aquilo em muito tempo. - Volte. Volte para mim.

Nos alto-falantes, a voz de Nella havia iniciado a contagem regressiva para a queda.

- Amo você mais do que posso expressar - Hector disse e a beijou, deixando um borrão de tinta de camuflagem na bochecha de Hazel, que ele limpou carinhosamente com
um dos polegares. - Quando voltar, trarei Cayla comigo.

Ela se virou de costas para ele rapidamente e correu em direção à entrada da cabine de pilotagem. Não queria que a visse chorar. Antes que alcançasse a cabine, Nella
deu o comando de salto pelos alto-falantes.

- Grupo número um! Já! Já! Já! - Hazel se virou rapidamente para ter um último vislumbre, mas ele já havia sido sugado pelo ventre sombrio da escuridão.

Hector estabilizou a queda pelo vento veloz usando a posição de estrela, com a barriga para baixo, e a primeira coisa que fez foi procurar pela chama de sinalização
de Tariq. Avistou-a três mil metros abaixo, a um ângulo inferior de cerca de 45 graus. Em seguida, procurou as luzes azuis dos homens no espaço ao redor. Assim que
localizou todos, fez uma manobra com movimentos sutis dos membros e do corpo para se colocar na frente da formação. Seus quatro companheiros estavam todos próximos
quando caíram na direção da chama vermelha. Ele checou o altímetro e o cronômetro. Estavam em queda livre havia um pouco mais de um minuto. Já tinham alcançado a
velocidade terminal, e a terra se aproximava rapidamente. Estavam a menos de 450 metros acima do chão quando ele fez um sinal com a mão para que ativassem e abrissem
os paraquedas. Agora, ficava mais fácil manobrar, e eles deslizaram pela pequena brisa para pousarem, como um bando de garças-azuis, a cerca de vinte passos da chama
vermelha, aterrissando quase simultaneamente e ficando de pé enquanto esvaziavam o ar dos paraquedas. De imediato, formaram um círculo defensivo com as armas apontadas.

- Tariq! - Hector chamou discretamente. - Apareça!

- Sou eu, Tariq Hakam - levantou-se detrás de uma pilha de pedras quebradas. - Não atirem!

Correu ao encontro de Hector, e eles trocaram um breve aperto de mão duplo.

- Está tudo bem? - Hector indagou. - Onde está a tal menina, sua prima?

Tariq havia falado brevemente sobre ela de manhã no telefonema via satélite.

- Ela está dentro da fortaleza. Vai nos levar até onde estão mantendo a menina Bannock.

- Pode confiar nela? - Hector perguntou. Contar com alguém dentro da fortaleza era um incrível golpe de sorte, e ele sempre desconfiava quando a sorte era muita.

- Ela é sangue do meu sangue - Tariq respondeu e quase adicionou "e mora em meu coração". Mas não queria tentar Iblis, o Demônio.

- Ok. Vou aceitar sua palavra - Hector entregou a ele o rifle e o kit sobressalentes que estava carregando.

Nesse momento, Uthmann e seus quatro homens caíram do céu escuro e aterrissaram próximo a eles. Tariq chutou a lata e pilha de pedras sobre a chama ardente. Os outros
estavam enrolando e enterrando os paraquedas.

- Tariq, lidere! Avante, já!

Seguiram Tariq a intervalos cuidadosamente determinados. Com as armas à mão, avançaram a passos rápidos, em ritmo acelerado ao longo de um caminho acidentado formado
pelo pastar das cabras. Alcançaram as primeiras palmeiras do oásis em 45 minutos e formaram novamente um círculo defensivo, deitando de bruços no chão e de cabeça
erguida. Tariq fez um sinal indicando que o terreno adiante estava livre, e Hector gesticulou para que avançasse. Tariq desapareceu entre as árvores. Uthmann engatinhava
ao lado de Hector.

- Aonde ele está indo? - suspirou. - Por que paramos aqui?

- Tariq tem uma pessoa infiltrada na fortaleza. Foi fazer contato para depois nos guiar através de um dos portões laterais.

- Eu não sabia disso. Quem é o informante? Homem ou mulher? É algum parente do Tariq?

- Qual é a importância disso? - Hector sentiu um pequeno mal-estar. Uthmann estava insistindo demais.

- Você não me contou, Hector.

- Você não precisava saber até este momento - Hector respondeu, e Uthmann desviou o olhar.

A posição da cabeça e do corpo de Uthmann mostravam que ele estava zangado. Estaria exibindo ressentimento por Hector não ter confiado nele? Não era o estilo habitual
de Uthmann. Hector ficou pensando se não estaria ficando velho demais para o esporte. Estaria perdendo a coragem? Hector não conseguia pensar em possibilidade mais
sombria. De repente, tomou uma decisão e tocou um dos braços de Uthmann, forçando-o a se virar para ele.

- Uthmann, você precisa ficar aqui com seu grupo na retaguarda. Se nos complicarmos dentro da fortaleza, vamos sair correndo. Quero que nos dê cobertura, entendeu?

- Sempre fiquei ao seu lado - Uthmann disse com amargura. O comportamento grosseiro dele era exagerado e reforçou a decisão de Hector de não levá-lo junto para o
covil da Besta.

- Não desta vez, meu velho amigo - disse e, sem dizer uma palavra, Uthmann virou o rosto e engatinhou de volta à sua posição com o segundo grupo.

Hector desviou o pensamento dele e fixou o olhar nas palmeiras do oásis. Viu uma sombra, como uma mariposa esvoaçante, em movimento, e assoviou baixo em dois tons
como sinal de reconhecimento. A resposta foi imediata, e Tariq se materializou silenciosamente detrás das árvores. Estava acompanhado de alguém, uma figura esguia
vestindo uma longa túnica negra.

- Esta é a minha prima Daliyah - disse, e os dois se abaixaram ao lado de Hector. - As novidades que traz são preocupantes. Diz que os homens de Khan andam alvoroçados
demais. Praticamente todos os homens da guarnição foram mandados para a ala norte, atrás da mesquita.

- Por quê? - Hector perguntou à moça.

- Não sei - a voz dela era bastante suave.

Hector ponderou por um momento.

- Existe um portão na ala norte para a qual os homens foram enviados? - perguntou.

- Há um portão - Daliyah confirmou -, mas não é o principal.

- Você tinha a intenção de nos conduzir para dentro da fortaleza por esse portão?

- Não! - ela balançou a cabeça. - No muro da ala leste, atrás da cozinha, existe uma outra entrada. É uma abertura bem pequena, apenas um homem de cada vez pode
passar por ela. Quase nunca é usada, e poucas pessoas sequer sabem que existe. Era como eu tinha planejado guiá-los.

- Está trancada?

- Está, mas eu tenho uma das chaves. Tirei do bolso de um dos cozinheiros esta manhã. Ele não sentiu falta.

- Guardas? O portão é vigiado?

- Nunca vi guardas ali. Usei-o hoje à noite. A passagem estava aberta, e o lugar, deserto.

- Tariq, parece que sua prima é uma mulher corajosa e inteligente - Hector olhou para ela, mas não conseguiu enxergar nada através do véu.

- Disso eu sei - Tariq disse num tom grave.

- Ela é casada?

- Ainda não - Tariq respondeu. - Mas talvez se case logo.

Daliyah abaixou a cabeça num gesto de modéstia, mas não disse nada.

- Ela nos aconselha a aguardarmos um pouco aqui antes de subir. Esperar passar a agitação na fortaleza.

- Quanto tempo ela acha que devemos esperar? - Hector perguntou, e Tariq apontou para a lua que surgia além da plantação de palmeiras. Faltavam cinco dias para que
ficasse cheia.

- Temos de esperar até que fique no mesmo nível da palmeira mais alta. A essa altura, os guardas terão relaxado e alguns poderão até mesmo estar dormindo.

- Em cerca de um hora e meia - estimou Hector, checando o relógio de pulso.

Atravessou engatinhando até onde estava Uthmann e, em poucas e sucintas palavras, explicou suas intenções. Em seguida, engatinhou novamente para a frente de seu
grupo. Eles permaneceram calados e imóveis enquanto o ponteiro luminoso dos minutos se arrastava pelo mostrador do relógio. De repente, o pesado silêncio foi interrompido
pelos uivos e guinchos de um par de chacais abaixo dos muros da fortaleza. O barulho foi imediatamente desafiado pelos latidos alvoroçados de uma matilha de cães
na parte de dentro dos muros.

- Meu Deus, quantos cães o Khan mantém lá dentro, Daliyah?

- Muitos. Gosta de sair para caçar com eles.

- O que ele caça... gazelas, órix, chacais?

- Todos esses animais, sim - Daliyah respondeu -, mas o que ele gosta mesmo de caçar são pessoas.

- Pessoas? - até mesmo Hector ficou chocado. - Quer dizer, seres humanos?

Ela assentiu, e a luz das estrelas revelou o ligeiro brilho das lágrimas nos olhos dela pela abertura do véu.

- Pois então. Homens ou mulheres que o tenham enfurecido. Alguns deles eram meus parentes ou bons amigos. Os homens dele os levam para o deserto, onde são libertados.
Depois, Khan e os filhos saem correndo atrás deles com os cães. Rejubilam-se com o esporte e riem quando os cães destroçam as vítimas. Deixam que os cães se alimentem
da carne de quem matam. O Khan acredita que isso torna os cães mais ferozes.

- Mas que velho encantador ele deve ser. Estou ansioso pelo nosso primeiro encontro - Hector murmurou.

Esperaram até que o latido dos cães se dissolvesse em silêncio, e a lua se erguesse detrás das palmeiras. Só então ele se mexeu de novo.

- Hora de partir, Tariq. Diga à Daliyah para ir na frente. Vamos manter uma boa distância atrás dela. Se ela encontrar alguém da fortaleza, diga para distraí-lo
para que possamos dar conta dele antes que faça alarde. Você vai atrás dela, e eu lidero o resto do grupo na retaguarda.

A garota se movia depressa e com confiança. Seguiram-na entre as árvores até chegarem à encosta. Hector viu claramente a fortaleza pela primeira vez. Agigantava-se
acima deles, enorme e negra. Não havia sinal de iluminação, e ela parecia tão inerte quanto a lua acima. O caminho prosseguia por uma ladeira íngreme. A garota não
diminuiu o ritmo. Agora os muros de pedra se erguiam sobre eles, tão implacavelmente malévolos quanto um monstro arcaico pronto para emboscar sua presa. De repente,
Daliyah saiu do caminho principal e virou numa trilha menos definida abaixo das muralhas. Contornaram pilhas fedorentas de lixo que tinham sido jogadas do alto dos
muros. Os chacais estavam procurando comida entre os detritos, e foram embora quando os homens se aproximavam. Finalmente, Daliyah parou ao lado de uma vala que
emergia de uma abertura em forma de arco na parte inferior da parede de pedra. A abertura estava bloqueada por grades enferrujadas. Excrementos humanos rolavam pela
arcada até a vala, e o fedor era um atentado aos sentidos. Daliyah saltou sobre a vala e virou abruptamente em outra passagem estreita entre os muros de pedra, cuja
largura não permitia mais do que um homem de cada vez. Ela desapareceu, e os outros a seguiram em fila indiana pela abertura. Subiram uma série de degraus rústicos,
Daliyah estava à espera deles no topo, do lado de fora de uma porta baixa de madeira sólida, pregada e montada com barras de ferro.

- Daqui em diante temos de nos manter bem próximos. É muito fácil se perder no lado de dentro - suspirou e retirou uma pesada chave de ferro de design antigo de
baixo da túnica. Colocou-a na fechadura e, com algum esforço, virou a chave. Encostou um dos ombros na porta, e ela se abriu. Ela teve de abaixar a cabeça para passar
sob a verga de pedra. Eles a seguiram. Daliyah fechou a porta atrás do último homem.

- Não tranque. Vamos estar com pressa quando voltarmos - Hector lhe disse em voz baixa.

A escuridão era tão dominante que parecia um peso esmagando seus ombros. Hector acendeu a luz fosforescente do capacete, e os demais seguiram o exemplo. Daliyah
os guiou através de um labirinto de passagens sinuosas e salas interligadas. Ouviram pequenos ruídos - mulheres rindo e conversando em um dos aposentos por que passaram
e, em um outro, o ronco barulhento de um homem. Finalmente, Daliyah fez um gesto para que parassem.

- Aguardem aqui - suspirou para Tariq. - Apaguem as luzes dos capacetes e fiquem em silêncio. Vou verificar se é mesmo seguro.

Ela desapareceu pelo corredor estreito. Os homens se agacharam para descansar, mas continuaram com as armas em punho. Não demorou muito, e Daliyah voltou, caminhando
silenciosa e rapidamente.

- Há dois homens de guarda em frente à porta da cela da menina. Estranho. Normalmente, são cinco ou seis. Esta noite, os outros devem ter sido mandados para o portão
da ala norte. Um dos guardas que ficaram tem a chave da cela. Não façam barulho. Sigam-me.

Hector e Tariq ficaram bem próximos a Daliyah, um de cada lado. Depois de um curto percurso, ela parou de novo e apontou para a frente. A passagem se abria de repente
em ângulos retos. Eles podiam ouvir as vozes dos homens além da curva, e a luz amarela das lamparinas se projetava no ângulo da parede lateral e no teto. Hector
escutou com atenção e percebeu que havia pelo menos dois homens recitando uma passagem da isha, a oração noturna. Depois, viu as sombras na parede lateral quando
eles se ajoelharam e levantaram de novo. Hector mostrou dois dedos, e Tariq assentiu. Hector bateu no peito dele e mostrou um dedo; em seguida, bateu no próprio
e levantou mais um.

- Um para cada um - Tariq assentiu.

Eles entregaram os rifles para os homens atrás deles e cada um desenrolou a corda de piano de arame que carregavam nos bolsos abotoados, testando-as entre dos dedos
das mãos. Hector se aproximou lentamente da quina da parede. Tariq o seguiu. Aguardaram os dois sentinelas se ajoelharem com as testas pressionadas no chão de blocos
de pedra. Então ele e Tariq se colocaram atrás deles e, quando os homens retornaram à posição sentada, Hector e Tariq passaram o laço de arame sobre as suas cabeças,
apertando-o com força sob os queixos. Os árabes de debateram, chutando e agitando os braços e as pernas. Mas não deixaram escapar um único som. Hector posicionou
um dos joelhos entre as omoplatas da vítima e aplicou a força de ambas as mãos. O homem se enrijeceu e chutou convulsivamente pela última vez, enquanto seus intestinos
se esvaziaram fazendo barulho. E então, ficou imóvel. Hector o virou para o outro lado e apalpou a túnica. Sentiu a grande chave de ferro sob o tecido e a retirou.
Daliyah estava no canto. Os olhos dela detrás do véu estavam arregalados e faiscando de terror - talvez não esperasse que fossem matar alguém.

- Que porta? - Hector perguntou. Havia três diante deles.

Mas Daliyah estava abalada demais para responder. Tariq se ergueu de um salto e a pegou pelos ombros, sacudindo-a com força.

- Que porta?

Ela se recompôs e apontou para o centro.

- Me dê cobertura - Hector disse a Tariq e foi até a porta.

Ele a destrancou com a chave que tinha tirado do sentinela e a abriu devagar e furtivamente. A cela estava às escuras, mas ele acendeu a luz do capacete. Com o feixe
de luz, viu o quanto a cela era pequena. Não possuía janelas nem ventilação. Em um canto, havia um balde que servia de privada e uma jarra d'água feita de barro.
Do balde emanava um odor pungente. No meio do chão, estava uma figura de estatura pequena, encolhida sobre um estrado com enchimento de palha. Vestia apenas uma
peça suja que mal batia na cintura, portanto não restava dúvida de que se tratava de uma mulher. Ajoelhou-se sobre ela e virou-a com delicadeza para ver o rosto.
Era o rosto da menina no vídeo brutal, a menina cuja foto Hazel lhe havia mostrado. Era Cayla, mas tão pálida e magra que a pele dele parecia quase transparente.

- Cayla! - suspirou em seu ouvido, e ela se mexeu. - Acorde, Cayla.

Ela abriu os olhos, mas por um momento não conseguiu focalizar neles.

- Acorde, Cayla. Vim buscar você e levá-la para casa.

De repente, os olhos dela se arregalaram. Eles pareciam preencher todo o rosto e estavam repletos de sombras de lembranças terríveis. Ela tentou gritar, mas ele
tapou a boca dela e suspirou num tom de urgência:

- Não tenha medo. Sou seu amigo. Sua mãe me enviou para levá-la para casa.

Ela estava surda de medo, sem compreender as palavras, debatendo-se contra ele com toda a força escassa que possuía.

- Sua mãe me disse que você tem um Bugatti Veyron chamado Mister Tartaruga. Sua mãe é Hazel Bannock. Ela ama você, Cayla. Lembra-se da potra que ela deu de presente
a você em seu último aniversário? Você a chamou de Chocolate ao Leite.

Ela parou de se debater e olhou para ele com os olhos arregalados.

- Vou tirar a mão da sua boca agora. Prometa que não vai gritar.

Ela assentiu, e ele retirou a mão.

- Não é Chocolate ao Leite - sussurrou. - Chocolate, só chocolate.

Ela começou a chorar, soluços silenciosos sacudiam todo o seu corpo. Hector a pegou no colo. Era leve como um pássaro, mas estava queimando de febre.

- Venha, Cayla. Vou levar você para casa. Sua mãe está esperando.

Tariq estava na porta dando cobertura. Hector acenou com a cabeça na direção dos cadáveres dos dois árabes.

- Tranque-os na cela.

Eles arrastaram os corpos segurando-os pelos pés, as cabeças rolavam aos solavancos no chão de pedra, e os jogaram no meio da cela. Hector trancou a porta e colocou
a chave no bolso.

- Agora! Diga à sua prima para nos tirar deste lugar fedorento, Tariq.

Daliyah os conduziu pelo mesmo caminho da ida. A todo momento, Hector esperava uma confrontação ou uma saraivada de balas.

- Está sendo fácil demais. Não era para ser tão fácil. Há uma tempestade de merda se formando, consigo pressentir, disse a si mesmo desgostoso. Mas, finalmente,
ele saiu pela porta na passagem estreita e saboreou o ar noturno do deserto.

- Puro como um beijo virginal - sussurrou e encheu os pulmões.

Cayla tremeu em seus braços. Ele a carregou pela abertura da passagem, onde havia uma rota de fuga desobstruída encosta abaixo. Ele a sentou gentilmente no chão
de pedra e se ajoelhou sobre ela. Hazel havia empacotado um macacão de camuflagem limpo, um par de tênis lona e uma calcinha para Cayla. Hector retirou as roupas
do bolso lateral da mochila e, como se ela fosse um bebê, a vestiu. Ele desviou os olhos ao puxar a calcinha para cima. Sentia uma estranha afeição paternal por
ela. Mas teve dificuldade de reconhecer a emoção em um primeiro momento. Não tinha filhos, nunca quis tê-los. A vida dele estava preenchida por outras coisas. Não
havia lugar para filhos. Agora, pensava que a sensação de ter um filho devia ser como aquela. Essa era a bebé de Hazel, portanto, de um modo estranho, era dele também.
Essa criaturinha doente revirava sentimentos profundos que ele nunca suspeitara que existiam. Encontrou a água na mochila, e forçou Cayla a engolir três tabletes
de antibióticos de amplo espectro com um grande gole da garrafa que ele segurava próxima aos lábios dela.

- Você consegue caminhar? - perguntou carinhosamente.

- Sim, é claro! - ela se levantou, deu dois passos cambaleantes e desabou.

- Boa tentativa - ele disse -, mas você ainda precisa de um pouco de prática.

Ele a pegou no colo de novo e saiu correndo. Tariq e Daliyah estavam posicionados, e o resto do grupo lhe deu cobertura. Na trilha acidentada, eles contornaram os
muros até chegarem ao caminho principal, virando diretamente na descida da encosta. A noite estava silenciosa como se toda a criação estivesse com a respiração em
suspenso. Diminuíram o ritmo ao alcançarem o oásis e caminharam entre as palmeiras na direção em que haviam deixado Uthmann e seu grupo.

"Silencioso demais", Hector pensou. "Muito silencioso, demais. O lugar inteiro exala o fedor da Besta."

De repente, à frente dele, Tariq e Daliyah foram ao chão. Tariq a puxou para baixo com ele e os dois desapareceram de vista, como se tivessem caído em uma armadilha.
Hector caiu quase no mesmo instante, aninhando Cayla nos braços para protegê-la do impacto ao atingirem o chão.

Ela choramingou, e ele sussurrou:

- Quietinha, querida, quietinha - disse e olhou adiante, retirando cuidadosamente o rifle do ombro.

Hector olhou pelo visor noturno do rifle, mas não conseguiu enxergar nada que pudesse ter alarmado Tariq. Em seguida, viu Tariq erguer a cabeça cautelosamente. Após
cinco minutos completos, deu o assovio suave de reconhecimento. Não houve resposta. Virou-se para trás devagar e olhou para Hector, à espera de uma ordem.

- Fique aqui e não se mexa! - Hector disse à garota.

- Estou com medo, por favor, não me deixe sozinha.

- Eu vou voltar. Prometo - ele ficou de pé e saiu correndo.

Deixou-se cair ao lado de Tariq e rolou duas vezes para o lado para sair da mira do inimigo. O silêncio era pesado e carregado.

- Onde? - perguntou.

- Depois daquela palmeira. Há um homem deitado ali, mas não está se mexendo.

Hector avistou a silhueta escura e a observou por um momento. A figura permanecia imóvel.

- Me dê cobertura - Hector disparou adiante de novo.

Nem mesmo o colete de proteção seria capaz de deter a bala de um rifle a tal distância. Alcançou o vulto humano e caiu ao lado dele. O rosto estava virado para Hector,
que viu que se tratava de Khaleel, um dos seus melhores homens.

- Khaleel! - suspirou, mas não houve resposta.

Esticou um dos braços para verificar a artéria carótida. A pele de Khaleel ainda estava morna, mas ele não tinha pulso. E então Hector sentiu algo molhado nos dedos.
Sabia o que era - durante sua vida, tinha provavelmente visto tanto sangue quanto um cirurgião. Procurou a ferida com as pontas dos dedos. Encontrou-a exatamente
onde achara que estaria - na parte de trás da mandíbula, logo abaixo do ouvido. Um furo minúsculo; uma lâmina fina e bastante afiada trespassada do ouvido até o
cérebro. Hector sentiu que iria vomitar. Não queria que fosse verdade. Conhecia apenas um homem que poderia matar com tanta precisão. Chamou Tariq para junto dele
com um aceno. Ele foi correndo se juntar a Hector. Logo viu o sangue nos dedos de Hector. Depois se virou para o corpo de Khaleel e tocou no ferimento atrás da orelha.
Não disse nada.

- Encontre os outros - Hector mandou.

Três corpos estavam estirados em um círculo defensivo, olhando para frente. Deviam confiar no assassino para tê-lo deixado chegar tão perto. Todos tinham morrido
instantaneamente. Todos tinham um ferimento quase idêntico.

- Onde está o Uthmann? - a pergunta era redundante, mas Hector tinha de fazê-la.

- Não está aqui. Foi aonde o coração dele pertence - Tariq olhou para a fortaleza maciça acima deles.

- Você sabia, Tariq. Por que não me preveniu a respeito dele?

- Sabia com meu coração, mas não com a cabeça. Você teria acreditado em mim? - Tariq perguntou.

Hector deu um sorriso amargo.

- Uthmann era meu irmão. Como poderia acreditar em você? - Hector disse, mas Tariq virou o rosto.

- E agora temos de sair deste lugar, antes que o seu querido irmão retorne - disse Tariq. - Com os outros irmãos dele, os que ele ama de verdade, mas que não amam
você, Hector Cross.


Uthmann observou Hector e Tariq se afastarem das palmeiras com a mulher, Daliyah, e o resto de seu grupo. Estava bravo e frustrado. Hector Cross tinha feito seus
planos, tão cuidadosamente esboçados, irem por água abaixo. Agora tinha de reavaliar sua posição com rapidez. O xeique Tippoo Tip e seu neto, Adam, estavam esperando
por ele com a maioria dos homens no Portão Norte. Era onde Uthmann havia prometido a Adam que entregaria Hector Cross. Mas, primeiro e mais importante, tinha de
fazer a mensagem chegar a Adam, avisando que Hector não iria cair na armadilha conforme o planejado, que tinha entrado por outro portão. Eles teriam de fechar todos
os portões e procurá-lo por todos os milímetros da fortaleza. Encontrá-lo antes que conseguisse se esgueirar pela saída e fugir para a amplitude do deserto. Havia
um único jeito de mandar o aviso a Adam - teria de entregá-lo pessoalmente. Mas, primeiro, tinha que dar um jeito nos quatro homens de seu grupo. Verificou o punhal
na bainha que estava presa em um dos antebraços. Tinha feito a lâmina a partir da mola dianteira de um caminhão GM. Foram necessárias várias horas de lixamento,
aquecimento, forjamento, tempero e moldagem para alcançar a perfeição. O cabo tinha uma tira de couro órix que se encaixava na mão. O equilíbrio era maravilhoso.
Um golpe sutil era o que bastava para que a lâmina afiada cortasse até o osso, e a ponta podia perfurar a carne humana sob o seu próprio peso. Esperou dez minutos
para que o grupo de Hector se afastasse e então engatinhou até o seu homem mais próximo.

- Khaleel, tudo tranquilo aqui? - perguntou. - Não, não olhe para mim. Continue olhando para a frente.

Khaleel virou o rosto obedientemente. O lóbulo de sua orelha direita estava visível sob a borda do capacete. Uthmann percorreu o canal do ouvido até o cérebro com
a ponta da lâmina. Khaleel suspirou suavemente, e a cabeça pendeu sobre a coronha do rifle que segurava. Uthmann limpou a lâmina meticulosamente em uma das mangas
de Khaleel antes de engatinhar até o próximo homem no círculo.

- Fique atento, Faisil - sussurrou enquanto se colocava ao lado do homem, e então o matou rapidamente. Os outros homens estavam deitados a menos de trinta passos
de distância e não ouviram nada. Uthmann se arrastou na direção deles. Quando os quatro estavam mortos, Uthmann ficou de pé e se virou no sentido da fortaleza. Começou
a correr. Escalou o caminho da encosta. Só tinha estado ali uma única vez, mas virou à esquerda sob o muro e correu ao longo dele até o Portão Norte. Quando faltavam
ainda uns cem passos para chegar, ele começou a gritar para avisar os homens que, sabia, estavam esperando no topo das muralhas.

- Não atirem! Sou eu, Uthmann. Sou um dos homens de Khan. Preciso falar com Adam.

Não houve resposta, e ele correu no sentido do portão, gritando a mesma advertência. Quando estava a cinquenta metros do portão, de repente, um feixe de luz branca
cegante, com toda intensidade, incidiu sobre ele. Ele parou e jogou as mãos para o alto para proteger os olhos. Uma voz chamou por ele do alto das muralhas.

- Jogue a arma no chão. Mãos ao alto! Caminhe devagar até o portão. Vamos atirar se tentar escapar.

Uthmann se aproximou do portão, e ele se abriu momentos antes dele alcançá-lo, mas os olhos dele ainda estavam ofuscados pelo feixe de luz e não conseguiam enxergar
nada na escuridão além da abertura. Ele hesitou ao alcançar o limiar, mas a voz o chamou de cima:

- Continue andando. Não pare!

Ele entrou e imediatamente um bando de homens veio correndo da escuridão e começou a bater nele até que ficasse de joelhos.

- Sou um dos homens de Khan - Uthmann cobriu a cabeça com ambos os braços. - Trago uma mensagem importante. Vocês têm de me levar até ele.

Ele teriam continuado a bater, mas nesse momento um comando autoritário os deixou paralisados.

- Deixem-no em paz! Conheço esse homem. Ele é um dos nossos agentes de confiança.

Uthmann se levantou e se curvou até o chão em reverência ao homem que surgiu das sombras e caminhava até ele.

- Que a paz esteja com você, Adam. Bençãos e paz para o seu ilustre avô, xeique Khan Tippoo Tip!

- Qual é problema, Uthmann? O plano era você guiar o infiel até aqui. Onde está Cross, aquele assassino blasfemo?

- Cross tem o instinto de sobrevivência de um animal selvagem. No último momento, decidiu que não me seguiria. Encontrou uma mulher que conhece bem a fortaleza.
Ordenou que eu ficasse enquanto a acompanhava por um caminho secreto para entrar nas muralhas.


Adam o encarou.

- Onde está Cross agora?

- Sem dúvida, já está dentro da fortaleza.

- Por que não nos avisou antes? - Adam levantou a voz, agitado.

- Porque eu mesmo não sabia até pouco tempo - Uthmann respondeu. - Não perca tempo e mande fechar todos os portões, depois envie mais homens para vigiar cela da
prisioneira e outros mais para vasculhar a citadela e encontrar o Cross.

- Venha comigo! - Adam rosnou para ele. - Vamos até o meu avô. No entanto, se você deixou o infiel escapar com a nossa refém, as coisas vão se complicar bastante
para seu lado, já aviso.

Adam levantou a túnica e correu, mas quando alcançaram a sala do conselho do xeique, estava exageradamente ofegante.

"Esse descendente do Profeta é tão mole quanto as mamas caídas de uma velha", pensou Uthmann com desprezo ao seguir Adam até a sala e se prostrar aos pés do Khan,
desfiando elogios exuberantes e votos de vida eterna ao velho homem.

- Chega! - xeique Khan se ergueu das almofadas e se agigantou sobre Uthmann. - Por que está tremendo? Está com febre? Ou quebrou nosso voto de confiança? Trouxe
o meu inimigo até mim para que eu possa liquidar a dívida de sangue e ir em paz para o túmulo, ou deixou que ele escapasse da minha vingança? Responda, sua poça
de estrume de porco doente. O filho de uma puta cristã é seu prisioneiro? Ou não?

- Bendito seja o tormento dos infiéis, não sei.

- Não sabe? Então vou fazê-lo saber - disse e açoitou as costas de Uthmann com o chicote de couro de hipopótamo.

A jaqueta à prova de balas absorveu o golpe, mas Uthmann gritou e se retorceu enquanto despejava o relatório. Após meia dúzia de golpes, o braço velho do Khan se
cansou, e ele deu um passo para trás.

- Mande os homens imediatamente para a cela da puta cristã! Traga-a até mim. Vou acorrentá-la ao meu lado onde posso eu mesmo vigiá-la. Já! Depressa!

Os homens enviados para buscar Cayla retornaram logo e se jogaram aos pés dele. Estavam balbuciando de terror e a audição do Khan era ruim, mas por fim ele entendeu
o que diziam.

- A porca infiel desapareceu e os guardas foram estrangulados? São esses os desvarios de macacos e lunáticos? - ofegava de raiva, e seus traços enrugados estavam
inchados e arroxeados.

- Temos de trancar os portões para evitar que fujam, e revirar o lugar e encontrar a menina e esses infiéis que violaram a nossa fortaleza.

Adam também tinha se prostrado. Sabia bem como se desviar da raiva do avô.

- Fechem os portões! - esbravejou o Khan. - Revirem todos os aposentos do palácio. Encontre-os e tragam-nos até mim - a seguir, virou-se para Adam. - Não podemos
deixá-lo escapar agora.

- Estamos desperdiçando tempo aqui, avô. Cross não está no palácio. Quanto mais o senhor demora, mais longe ele fica do nosso alcance. Cross tem apenas cinco homens
com ele. Uthmann matou os outros. Me dê seus cachorros, um número suficiente de homens e caminhões, e eu o trarei para o senhor.

- Há apenas um caminhão aqui, mas está com dois pneus furados que ainda não foram trocados. Mandei as outras caminhonetes e a maioria dos homens para o seu tio Kamal
na Baía de Gandanga para tripular os barcos de ataque.

O Khan prosseguiu:

- Mas podemos levar minha caminhonete particular de caça. Assim que os pneus do caminhão maior forem trocados, ele irá atrás de nós com o restante dos homens. Vamos
levar meus cães também, eu vou com você. Quero presenciar o exato momento em que os aniquilar. Quero vê-los sangrar e ouvir os gritos agonizantes.


Antes de deixarmos o oásis, tenho de ligar para Hans Lategan vir nos buscar de helicóptero - Hector disse a Tariq e puxou o telefone por satélite da mochila.

Estendeu a antena e ligou o aparelho. Hans atendeu ao primeiro toque. Hector sorriu. Devia estar esperando com o polegar no botão.

- Aqui é o Kudu - Hans forneceu seu indicativo de chamada.

- Queijo Stilton! - Hector respondeu.

Esse era o código que haviam combinado usar quando saíssem da fortaleza com Cayla e estivessem a caminho do ponto de encontro. Hector havia considerado a ideia de
ter um helicóptero pairando por perto. Mas o barulho dos motores teria alertado o inimigo de sua presença.

- Positivo! A Duquesa está extasiada.

"Maldito Hans por essa parte adicional da conversa", Hector pensou com raiva. Duquesa era o codinome de Hazel Bannock. Ela estava esperando em Sidi el Razig - como
poderia saber que Cayla já havia sido resgatada da fortaleza? Ele deixou o pensamento de lado. O ponto de encontro combinado ficava na extremidade mais distante
da ravina ao norte. Hans viria da pista de Jig Jig e sobrevoaria a ravina até avistar o sinal de reconhecimento - mais um sinalizador luminoso de socorro. Hans tinha
calculado que levaria cerca de duas horas e dez minutos de voo de Jig Jig. Hector calculara que a distância até o aterro sul da ravina seria de aproximadamente seis
quilômetros e meio, ou talvez um pouco menos. Os perseguidores estariam dirigindo caminhonetes quatro por quatro. Embora o terreno fosse acidentado e cruzado por
afloramentos rochosos e vales, as caminhonetes seriam pelo menos duas vezes mais velozes do que seu pequeno grupo. Por estar doente e malnutrida, Cayla pesava cerca
de 45 quilos. Sabia que, em condições ideais, seus homens provavelmente conseguiriam chegar à ravina em aproximadamente uma hora e cinquenta minutos. Mas não na
escuridão, não sobre aquele tipo de terreno, não tendo que carregar Cayla. "E se eles soltarem os cães?", perguntou a si mesmo e então respondeu: "Que se danem os
cães!".

Tariq observava o rosto dele, e Hector falou em voz alta:

- Sei o que quer me perguntar, se eu contei para o Uthmann que iríamos para o norte em direção à ravina. A resposta é: não, não disse. Embora ele saiba qual é o
nosso exato ponto de partida, não sabe para qual direção correremos. No escuro, não vai achar fácil nos rastrear - não queria sequer mencionar os cães. - Portanto,
não vamos perder mais tempo.

- Vocês todos bebam o máximo de água que puderem agora. Não vamos parar de novo até ouvir o helicóptero a caminho.

Enquanto conversavam, Hector tinha afivelado três cintos juntos para criar uma tipóia para carregar Cayla. Ele a colocou de pé.

- Serviços de Mudança e Transporte Heck ao seu dispôr, srta. Bannock.

- Esse é o seu nome verdadeiro? Heck? - a voz dela estava fraca e ofegante.

- Claro - ele a ajudou a se acomodar no assento improvisado da tipoia e a ergueu até que estivesse na altura dos quadris dela, com ambas as pernas balançando para
trás.

- Coloque os braços ao redor do meu pescoço e segure forte.

Ela obedeceu docilmente, e ele correu com ela, começando com uma velocidade inferior à sua máxima e ajustando o ritmo para percorrer toda a distância. Tariq enviou
dois de seus homens adiante para encontrar a rota mais fácil, e mais dois para segui-los e tentar apagar qualquer sinal óbvio que deixassem na areia do deserto.
Cobriram o primeiro quilômetro e meio, e Hector encontrou sua segunda levada de fôlego. Alargou os passos.

- Você disse que seu nome era Heck. É apelido de Hector? Minha mãe falou sobre você. Você deve ser Hector Cross.

- Espero que tenha dito coisas boas sobre mim.

- Na verdade, não. Disse que você era arrogante e pretensioso e que iria demiti-lo na primeira oportunidade. Mas não se preocupe, vou falar com ela.

- Cayla Bannock, minha protetora.

- Pode me chamar de Cay. É como todos os meus amigos me chamam.

Ele sorriu, e ela se segurou a ele pelo pescoço com mais força. Sempre pensara que quando esse momento chegasse, que seria um menino.

"Que se dane, uma filha está de bom tamanho", resolveu. Eles correram por mais quarenta minutos até que ele parou e olhou para trás. Agora tinha certeza. O sinal
era tênue, mas inconfundível.

- O que foi, Heck? - Cayla estava tremendo novamente, a voz repleta de pânico. - Acho que estou ouvindo o latido de cães.

- Ah, não é nada com que se preocupar. Há vários cães sem dono aqui.

E então se dirigiu a Tariq:

- Consegue ouvir?

- Consigo. Estão trazendo cães e pelo menos um caminhão. Vão nos alcançar antes da ravina.

- Não não, não - Hector retorquiu. - Agora vamos começar a correr de verdade.

- Do que você está falando? Não entendo - estavam falando em árabe, e Cayla ficava cada vez mais agitada. - Estou com medo, Heck.

- Você não tem do que sentir medo. Você toma conta de mim, e eu de você. Combinado?

Ele fixou a atenção na estrela polar logo acima do horizonte e correu. Correu com todo o ar que tinha nos pulmões e a batida de seu coração ressoando nos ouvidos
como um tambor de guerra. Quando as pernas começaram a vacilar, ele deixou a mochila e o rifle para trás e continuou a correr. As pernas se estabilizaram, e ele
encontrou reservas de forças que nunca soube que tinha. Correu por mais um quilômetro e então outro. Agora finalmente ele tinha certeza de que estava esgotado, que
não conseguiria dar mais um passo sequer. Mas as pernas dele continuavam a pulsar. Tariq e Daliyah corriam ao seu lado. Daliyah carregava o rifle que Hector deixara
cair e Tariq, a mochila.

- Deixe eu carregar a menina para você - Tariq apelou.

Hector balançou a cabeça. Tariq era um homem baixo e magro, mas não tinha os músculos exigidos para aquele tipo de carga. Hector sabia que se parasse de correr por
um único segundo, que não seria capaz de começar de novo. Cobriu mais um quilômetro e meio e então soube que não dava mais, que não dava mais de jeito algum.

"Eu vou morrer aqui", pensou, "e eu nem sequer tenho um rifle. A vida é uma merda."

Ele parou e colocou Cayla no chão. Estava cambaleante. O latido dos cães ficava mais próximo, mais alto. Ele ainda tinha a pistola no cinto.

- Não posso deixar que levem Cayla, não posso deixar que ela caia de novo nas garras deles. Quando não houver mais jeito, vamos compartilhar a pistola, uma bala
para cada um.

Era a decisão mais triste e difícil que já havia tomado. Ela entorpeceu sua mente, por isso quando ouviu os homens gritando o nome dele, não conseguiu entender o
que estavam dizendo. Tudo o que conseguia escutar eram os cães. "No deserto, o som se propaga por longas distâncias", tranquilizou a si mesmo, "eles não estão tão
perto quanto parecem."

- Chegamos à ravina, Hector! - Tariq estava gritando, e por fim as palavras penetraram a sua exaustão e tristeza. - Vamos, Hector. Você conseguiu chegar até aqui.
A borda da ravina fica apenas vinte metros adiante. Venha, meu amigo!

Hector já não pensava mais logicamente. O cérebro lhe dizia que fora derrotado e que não podia prosseguir. Mas ele pegou Cayla no colo e correu. Parou apenas quando
a terra sumiu sob seus pés, e ele caiu, deslizando e rolando pela primeira ladeira íngreme da ravina. Estava rindo, e Cayla se sentou ao lado dele. Estava toda empoeirada
e tinha arranhado um cotovelo e uma das bochechas. Encarou-o espantada e começou a gargalhar.

- Você deveria ir ao médico, Hector. Você é louco, cara. Quero dizer: louco de pedra. Mas a loucura fica bem em você.

Ainda rindo, Hector usou a parede da ravina para se levantar com dificuldade.

- Tariq! - gritou. - Não podemos deixar os cães nos pegarem aqui. Precisamos chegar ao norte deste cânion, onde o Hans possa nos pegar. Reúna os seus rapazes - em
seguida, virou-se para Cayla. - Vamos, Cay. Não falta muito agora.

- Você me faz sentir que qualquer coisa é possível. De agora diante, vou caminhar sozinha.

Ela começou a descer o morro. Tropeçou e quase caiu, mas então se equilibrou e continuou andando. Hector a alcançou e, com umas das mãos no ombro dela, foi conduzindo-a,
escorregando e deslizando morro abaixo.

- Você vai conseguir - disse para encorajá-la. - Seus genes são bons, Cayla Bannock.

Tariq veio escorregando atrás dele, mantendo-se firme sobre os pés como um corredor de downhill. Os homens o seguiam. Quando alcançou Hector, devolveu o rifle e
a mochila.

- Você deixou cair isto aqui, Hector.

- Descuido meu - Hector pendurou a mochila e o rifle nas costas e conduziu todos até o estreito da ravina. Chegaram ao fundo e ficaram de frente para a parede norte.
Cayla não conseguia falar de tão ofegante que estava, mas ele não podia deixá-la descansar. Agarrou-a pela mão e subiu arrastando-a pela extremidade oposta da ravina.
A subida era íngreme e árdua, mas finalmente chegaram cambaleando à borda plana. Olhou para trás e para o outro lado. Começava a clarear a leste. Não havia sinal
do inimigo, mas era possível ouvir claramente o alvoroço da matilha de cães.

- Tariq, temos de encontrar um local para nos posicionar até que o helicóptero chegue - ele focalizou adiante e, com seu olhar de soldado, escolheu o lugar.

- Está vendo aquele afloramento rochoso à esquerda? Parece ser um bom lugar. Venha, Cay.

Eles correram em direção às rochas, o instinto de Hector estava correto. Era um lugar onde teriam uma pequena vantagem. Havia uma boa área de caça na borda da ravina
que os cães e Uthmann teriam de atravessar para chegar até eles, mas estava coberta de pedregulhos grandes. Sabia que os cães eram treinados para caçar gente. Agiriam
em bando. Mas eles se separariam quando tivessem de contornar os obstáculos, e não seriam capazes de investir contra os homens em um ataque concentrado. Hector mandou
Cayla engatinhar para baixo do abrigo proporcionado pela rocha maior e sentar com as costas na parede de pedra. Colocou a mochila no chão ao lado dela e lhe entregou
a pistola.

- Sabe atirar?

Cayla assentiu. "Pergunta imbecil, Cross", sorriu para si mesmo. Ela é filha de Henry e Hazel Bannock. É claro que sabe atirar.

- Há uma bala no cano. Sem trava de segurança. Não vou pedir muito. Apenas que mate aqueles malditos animais se avançarem em você.

Ele foi se posicionar ao lado de Tariq. Ambos olharam para o céu. O amanhecer estava a caminho.

- Deixei um homem na borda da ravina - Tariq apontou adiante. O homem estava agachado atrás de uma pedra no horizonte. - Ele vai nos avisar quando avistar os cães.

- Ótimo. O sol vai nascer dentro de mais ou menos dez minutos - disse Hector. - O Hans deve chegar por volta da mesma hora. Precisamos mantê-los afastados apenas
até o helicóptero nos alcançar.

Aguardaram e a claridade ficou mais forte. Então, o vigia gritou em árabe:

- Os cães estão chegando. Muitos cães - abandonou a posição e foi em disparada na direção deles.

- Viu se havia homens com eles? - Hector gritou.

- Não, apenas cães. Muitos, muitos cães.

O homem se juntou a eles. O coro da matilha de cães caçadores mudou de intensidade, tornando-se um latido feroz.


Uthmann estava ao volante do grande caminhão Mercedes. Adam, no banco ao seu lado, e o xeique Khan, sentado no banco de caça traseiro, mais alto do que o deles.
Tinha um guarda-costas de cada lado, para evitar que fosse jogado violentamente de um lado para outro pelos solavancos do caminhão sobre a escuridão do chão acidentado.
Mais quatro homens armados estavam amontoados na caçamba aberta na traseira. Uthmann dirigia velozmente. Tinham perdido a matilha de vista havia algum tempo, mas
seguiam seu coro de caça.

- Estão seguindo na direção do vale ao norte. Como sabiam disso? - Adam gritou sobre a vibração do motor do caminhão. - Você contou a eles, Uthmann?

- Não, mas um dos homens de Cross conhece bem o distrito. Tem família aqui - Uthmann respondeu.

- Se chegarem até lá, não seremos capazes de segui-los. Vamos ter de dar a volta. É um desvio de mais de oitenta quilômetros. Vão conseguir fugir - lamentou o velho
xeique. - Não pode deixar que isso aconteça, meu neto.

- Há um helicóptero a caminho para buscá-los - Uthmann disse.

- Tem certeza?

- Eu estava presente nas sessões de planejamento, tenho absoluta certeza, Grande xeique.

Agora os cães estavam tão na dianteira que antes de saberem se estavam na trilha certa, Uthmann teve de parar o caminhão e desligar os motores para tentar escutá-los.
Depois, deu partida novamente, e eles saíram rasgando a escuridão.

- Como o helicóptero vai encontrá-los? - Adam insistiu.

- Vão fazer uma telefonema via satélite e marcar a posição exata com sinalizadores luminosos.

De repente, Uthmann pisou no breque, e o caminhão derrapou antes de parar. A cabeça de Adam bateu no para-brisas dobrado, e os homens na caçamba foram lançados para
fora do caminhão.

- Por que fez isso? - Adam gritou furioso, segurando a ponta do seu lenço de cabeça para conter o sangramento da ferida que tinha na testa. - Você quase nos matou!

Em resposta, Uthmann apontou adiante.

- Chegamos à parede sul do vale. Mais alguns metros e teríamos caído da borda e morrido todos.

Uthmann saltou do banco do motorista e correu até a borda do precipício. Permaneceu na escuta por um minuto e depois voltou correndo ao caminhão.

- Os cães continuam a seguir a pista. Consigo ouvi-los claramente agora. Precisamos deixar o caminhão aqui e prosseguir a pé.

Correu até os homens que tinham sido jogados do caminhão e chutou os corpos espalhados no chão. Um deles estava provavelmente morto, a cabeça dele pendia do pescoço
quebrado. Outros dois estavam fora da jogada - um com o cotovelo direito destroçado, e o outro com ambas pernas fraturadas. O quarto homem se levantou cambaleante,
mas estava tonto e com uma concussão.

- Nenhum destes porcos tem nenhuma serventia para mim - Uthmann rosnou.

Ele apontou para os homens sentados ao lado do xeique.

- Vocês dois! Desçam e me sigam!

- Não! - Adam gritou de volta. - Eles são os guarda-costas do meu avô. Permanecem o tempo todo ao lado dele. Não podemos deixá-lo aqui desprotegido. Há trinta homens
da fortaleza nos seguindo a pé. Podemos esperá-los chegar antes de avançar.

- Quando chegarem aqui, Cross e a menina já estarão no helicóptero e fora de alcance. Se você não tem estômago para vir comigo agora, espere aqui o quanto quiser.

- A coragem e a honra do meu neto são imaculadas. Irá com você e mostrará o caminho - o xeique Khan interveio.

Adam se prostrou no chão, ainda agarrando o tecido ensanguentado na testa.

- Está pronto para lutar? - Uthmann perguntou.

- Mais preparado do que você jamais estará - Adam rosnou para ele e pegou o rifle do suporte atrás do banco.

- Você tem de agradecer Alá por ele ter lhe dado uma cabeça de pedra - Uthmann riu dele ao correr para trás do caminhão.

Entre a pilha de armas e de equipamento que tinha se deslocado com a brecada de emergência, ele selecionou uma RPG de fabricação russa e um estojo de lona contendo
duas bombas para a arma. Pendurou-os nas costas e deu a volta até a frente do caminhão. Olhou para o xeique Khan no banco elevado.

- Onde vamos nos encontrar, Lorde Khan? - perguntou ao velho.

- Vou levar o caminhão pela beira do vale até encontrarmos a estrada que o atravessa. Assim que cruzarmos o wadi, vamos retomar este caminho e procurá-los no outro
lado - o xeique apontou para o outro lado da sombria extensão de terra ao norte. - A essa altura, o sol já vai ter nascido, e poderemos procurar os rastros ou ouvir
o barulho dos cães.

- Quando nos encontrarmos de novo, depositarei a cabeça do infiel que matou o meu pai e os meus tios aos seus pés - Adam lhe disse. - Agora, peço sua benção, avô.

- Você tem a minha benção, Adam. Que Alá o acompanhe, e que mantenha a jihad forte em seu coração.

Adam teve de correr para alcançar Uthmann antes que ele desaparecesse ravina abaixo. Desceram pelo declive quase vertical, escorregando e deslizando em pedras soltas
e xistos. Adam foi aos poucos ficando para trás de Uthmann.

- Espere por mim - ele ofegava. A camisa dele já estava coberta de suor.

- Depressa! O helicóptero já deve estar vindo buscá-los - Uthmann gritou sem parar de correr. - O infiel irá escapar da ira legítima de Alá e do seu avô.

Adam sentia como se as pernas estivessem se transformando em manteiga. Ele escorregou e caiu de barriga. Ficou de pé, tossindo e engasgando no pó que levantara.
Depois, retomou a descida, mas estava mancando e cambaleando. Uthmann chegou ao fundo e parou pela primeira vez para olhar para trás.

"Porquinho de corpo mole! É bom apenas para estuprar mulheres e assassinar prisioneiros", Uthmann pensou sem demonstrar o seu desprezo.

- Está indo bem. Não falta muito - gritou, mas Adam perdeu o equilíbrio mais uma vez.

Dessa vez, caiu de frente e atingiu o chão rochoso com força. Rolou pelo desfiladeiro nos últimos seis metros. Tentou se colocar de pé, mas o tornozelo direito estava
machucado e não podia com o peso de seu corpo. Ele caiu de joelhos.

- Me ajude! - gritou.

Uthmann deu meia-volta e o pôs de pé. Adam deu alguns passos mancando e depois parou.

- Meu tornozelo! Não consigo pisar com este pé.

- Você deve tê-lo torcido. Não há nada que eu possa fazer para ajudar - Uthmann disse. - Siga-me na melhor velocidade que puder.

Ele abandonou Adam e começou a subir pela parede oposta do vale.

- Não pode me deixar aqui - Adam gritou, mas Uthmann não olhou para trás.


-Escute os cães. Farejaram nosso rastro doce e quente - Hector gritou. - Preparem as armas!

As travas das culatras dos rifles estalaram. Seis rifles, cada um com trinta balas no pente. Eles seriam capazes de lançar praticamente uma parede sólida de disparos.
O campo de visão adiante era de noventa metros. Todos os homens eram exímios atiradores. Nenhum dos cães iria alcançá-los. Mas, se fosse esse o caso, usariam as
baionetas.

- Montem as baionetas! - Hector ordenou, e os homens alcançaram e desdobraram as baionetas debaixo da boca dos rifles. - Tariq, acenda os sinalizadores para o helicóptero
agora!

As chamas durariam vinte minutos, e a essa altura Hans com certeza já teria chegado e sido guiado até o posicionamento deles. Cada um dos homens tinha um sinalizador
na mochila. Tariq deu a ordem gritando, e eles acenderam e atiraram os sinalizadores. Hector percebeu tarde demais que deveria ter deixado claro que tinham de jogá-los
para trás, não adiante do posicionamento. A brisa do amanhecer batia no rosto dos homens e enviava a densa nuvem de fumaça sobre eles, embaçando completamente a
sua visão. Antes que Hector conseguisse mandar um dos homens remover os sinalizadores, os cães surgiram em meio a fumaça. Estavam apenas 15 metros adiante da fileira
dos homens quando se tornaram visíveis. Corriam juntos a toda a velocidade. Numerosos demais para Hector contar. Silhuetas de lobos através da fumaça, clamando por
sangue. Tinham corrido muito e espuma jorrava das mandíbulas abertas, espirrando sobre os flancos.

- Atirem! - Hector berrou. - Atirem!

Ele fez apenas três disparos, matando um animal com cada bala. Os homens ao lado dele disparavam na mesma velocidade. Os cachorros gritavam e iam ao chão, mas outros
atacavam através da fumaça em espiral. Ao lado de Hector, Tariq foi derrubado para trás pelo peso de um enorme cão preto que esmagava o seu peito. Hector se virou
e, antes que o animal conseguisse cravar os caninos na garganta de Tariq, ele o golpeou no pescoço com toda a extensão da baioneta. Ele uivou e virou com as pernas
para cima, chutando. Mas, nesse momento, um outro cão atingiu Hector por trás, desequilibrando-o e fazendo com que se esparramasse no chão. O cão estava sobre ele.
O rifle não servia para nada nessa proximidade de embate. Hector deixou que ele caísse e segurou o cão pela garganta com a mão esquerda; com a direita, alcançou
a faca de trincheira no cinto. Antes que conseguisse erguê-la, outros dois cães estavam sobre ele. Rosnando e tentando morder, lutavam para enterrar os dentes nele.
Um o agarrava pelo ombro da jaqueta e, pressionando com as pernas dianteiras dobradas, o mantinha com as costas no chão. O terceiro prendeu o braço que segurava
a faca pelo cotovelo e o lacerava com sacudidas violentas da cabeça. O primeiro animal ainda estava em cima dele, a mandíbula escancarada a poucos centímetros de
seus olhos, espumando saliva soprada pelo hálito fétido no rosto de Hector. Ele se contorcia e puxava a mão de Hector com tanta violência que não seria possível
aguentar por muito tempo mais.

Um tiro de pistola foi disparado a apenas trinta centímetros de seu ouvido direito, e a explosão quase o deixou surdo. O cão o soltou e desabou sobre ele, o sangue
espirrava do ferimento na cabeça. O estalo de mais dois tiros foi ouvido em rápida sucessão, e os outros cães que o atacavam caíram para o lado. Hector sentou e
limpou o sangue do animal com a manga, cuspindo-o também da boca. Quando conseguiu enxergar melhor, olhou espantado para Cayla. Ela tinha engatinhado do abrigo seguro
sob a rocha e agora estava ajoelhada ao lado dele, segurando a pistola com as duas mãos, o braço direito estendido de modo profissional, balançando-o de um lado
para o outro em busca do próximo alvo.

- Sua linda! - ele falou ofegante. - Sua coisinha linda. Você é com certeza a filha da sua mãe!

Ele agarrou o rifle e ficou de pé de um salto, mas a briga dos cães estava quase encerrada. O terreno estava inundado de cadáveres caninos, e os homens estavam dando
cabo dos poucos animais feridos que ainda perambulavam aterrorizados e com dor. Então, olhou para o horizonte acima e viu um grande helicóptero MIL-26 russo a menos
de um quilômetro e meio de distância, sobrevoando rente à crista na direção deles.

- Lá vem o Hans - explodiu em uma gargalhada. - Está terminado. Filés e uma garrafa de Richebourg para o jantar em Sidi el Razig hoje à noite.

Ele puxou Cayla para que ficasse de pé e colocou um dos braços de forma paternal sobre seus ombros. Observavam a grande máquina acelerando em direção a eles. De
vez em quando ficava escondida pelas nuvens de fumaça dos sinalizadores, mas cada vez que a brisa afastava a fumaça para o lado, o helicóptero se aproximava mais
e mais, e o som dos motores se intensificava. Finalmente, estava pairando diante deles a uma altura de apenas quinze metros, e era possível enxergar Hans de trás
da capota olhando para eles. Ele sorriu, saudou-os e depois rodou o helicóptero até se posicionar paralelamente em relação a eles. A porta principal da fuselagem
estava aberta e duas figuras estavam de pé na abertura. Uma era o engenheiro de voo, mas a outra deixou Hector boquiaberto.

- Mulher louca! - sussurrou.

Ele tinha mandado que ela voltasse pra Sidi el Razig após a viagem até Jig Jig, mas deveria ter considerado que Hazel Bannock não era boa em acatar ordens. Dá-las,
sim, mas não recebê-las.

- Mamãe! Mamãe! - Cayla berrou, histérica.

Ela pulava para cima e para baixo e acenava com a pistola acima da cabeça. Da porta, Hazel acenava com a mesma energia. Hans desceu com o MIL-26 até eles e, assim
que o trem de pouso tocou o solo, Hazel desceu de um salto da abertura, aterrissou com elegância e saiu correndo como louca em direção à filha. Cayla se desvencilhou
do braço protetor de Hector e saiu tropeçando ao encontro da mãe.

- Isso é o que eu chamo de uma cena bonita! - disse Hector com um sorriso, enquanto observava as duas mulheres correrem uma para os braços da outra, dando gritinhos
e chorando de alegria. Sentiu as lágrimas ardendo nos próprios olhos e balançou a cabeça.
- Abrindo o berreiro como um bebé. Você está amolecendo, Cross - Hazel olhou para ele por sobre os ombros de Cayla enquanto abraçava a filha. As lágrimas jorravam
pelo rosto dela, pingando pelo queixo. Ela não fez menção de enxugá-las. Não precisava dizer nada, a maneira como olhava para ele era eloquente o suficiente.

- E eu amo você também, Hazel Bannock! - gritou para que o mundo inteiro ouvisse.

Em seguida, voltou a se concentrar no que estava acontecendo e acenou para que Daliyah e os homens de seu grupo prosseguissem e embarcassem no helicóptero. Eles
pularam e saíram correndo em bando pelo terreno descampado.

- Hazel! Coloque a Cayla a bordo! - ele foi correndo na direção das mulheres.

Hazel escutou o que ele disse e agarrou Cayla pelo pulso, arrastando-a no sentido da aeronave. Em seguida, um outro tom de voz atravessou a alegria exultante de
Hector como o corte de um sabre.

- Na beira da ravina, Hector! - era Tariq.

Ele apontava para além do helicóptero, e o olhar de Hector girou naquela direção. Havia um homem ali, e apesar de estar a quase duzentos metros de distância e apenas
a cabeça estar visível acima da borda, Hector o reconheceu instantaneamente.

- Uthmann Waddah! - o choque paralisou sua mente.

Tariq não tinha como atirar diretamente no antigo camarada de onde estava. Os homens do grupo e as duas mulheres correndo o bloqueavam. Apenas Hector estava em posição
de lidar com o traidor. Mas, por algumas frações vitais de segundo, ele ficou paralisado. Em qualquer outra circunstância, se fosse qualquer outra pessoa e não Uthmann,
a reação dele teria sido instantânea, mas Hazel e Cayla haviam usurpado toda a sua atenção. Ele finalmente se mexeu, mas foi como se estivesse tentando nadar numa
banheira de mel grudento. Observou Uthmann pular da ravina, correr três passadas adiante e se abaixar apoiado em um dos joelhos. Viu ele erguer um longo tubo de
metal e colocá-lo sobre o ombro direito.

- RPG! - mesmo àquela distância, Hector sabia exatamente do que se tratava.

A granada-foguete, a arma predileta do insurgente, podia arrebentar a armadura de um tanque de batalha como se fosse uma camisinha barata. Uthmann estava mirando
fixa e deliberadamente o helicóptero.

A essa altura, Hector já estava com a Beretta apoiada no ombro. Inconscientemente, notara que Uthmann ainda estava vestindo o colete à prova de balas. Era uma edição
da Bannock e da melhor qualidade, feita de Kevlar com enxertos de placas de cerâmica. Àquela distância, a bala de 5.56 mm da OTAN era famosa pelo péssimo desempenho
contra essa espécie de armadura corporal. Originalmente projetada para atingir esquilos e cães de pradaria - não seres humanos -, a bala provavelmente rolaria pelo
chão com o impacto e não penetraria a carne, mas seria suficiente para derrubar Uthmann. Um instante antes de Hector atirar, Uthmann disparou o RPG.

Hector viu a explosão de retorno após o disparo do projétil atrás de Uthmann, assim como o rastro de fumaça da granada ao ser lançada no sentido do MIL-26. Antes
que ele atingisse o alvo, Uthmann saiu rodopiando após a bala de Hector explodir contra o painel frontal de sua jaqueta, e ele foi arremessado ao chão rochoso com
uma força brutal. Antes de Uthmann atingir o chão, a granada atingiu a frente do helicóptero e explodiu. Hector cambaleou quando a onda da explosão o alcançou, mas
permaneceu de pé. A alguns metros de distância da aeronave, Hazel e Cayla caíram agarradas uma a outra. Daliyah e os homens que a acompanhavam estavam mais próximos
da explosão. Todos foram derrubados e Hector sabia que alguns provavelmente tinham se ferido gravemente ou mesmo morrido. O engenheiro de voo que estava na porta
foi destroçado. Hector viu a cabeça e um dos braços rodopiando pelo ar.

O nariz e a parte frontal da fuselagem foram arrancados. A cabine do piloto e a capota tinham desparecido deixando um buraco em seu lugar, e não havia sobrado nada
que pudesse ser reconhecido como o corpo de Hans Lategan. Ele tinha recebido o impacto mais pesado da explosão. Fora de controle, a máquina gigante caiu para o lado,
os rotores rodopiando açoitando a terra endurecida, torcidos em formatos extraordinários antes dos motores cessarem, e um manto de poeira e fumaça pairava sobre
os destroços.

Por um momento, reinou o silêncio. Em seguida, Tariq gritou:

- O Uthmann está de pé. Atire nele, Hector. Em nome de Alá, atire de novo nele.

A visão de Hector agora estava parcialmente obstruída pela fumaça e a poeira, mas ele atirou na silhueta nebulosa cambaleando de costas para a borda da ravina. Hector
não tinha certeza se tinha atingido Uthmann ou se ele tinha simplesmente caído da beirada. Tariq saiu correndo na direção dele.

- Volte, Tariq! - Hector gritou. - Deixe-o em paz! Os homens dele provavelmente vêm seguindo logo atrás. Temos de sair daqui. Vá ver como estão os outros. Vá ver
como está a Daliyah.

Tariq deu meia-volta, e Hector correu até onde Hazel e Cayla estavam caídas. Estava desesperado de medo e de preocupação. Elas estavam bem dentro da zona de perigo,
e podiam facilmente ter sido atingidas pelos estilhaços da granada ou por pedaços voadores de metal da fuselagem. Ele caiu de joelhos ao lado delas. Hazel estava
sobre Cayla com os braços estendidos sobre a filha para protegê-la. Com medo que estivessem sangrando, Hector alcançou uma das mãos de Hazel. Ela girou a cabeça
e olhou para cima com uma expressão confusa no rosto, e então se sentou rapidamente e estendeu os braços para ele.

- Hector! - ela o beijou de boca aberta, e em seguida ambos voltaram a atenção completamente para Cayla. Os dois a ajudaram a se levantar.

- Você se machucou, bebé? - Hazel indagou ansiosamente.

- Não, mamãe. Não se preocupe comigo, estou bem.

- Ótima notícia - disse Hector -, porque temos de nos mexer imediatamente. Hazel, essa sua filha está fraca como um recém-nascido, mas é forte como um molho de pimenta.
Ela simplesmente não desiste. Vou mandar alguém ajudar você a mantê-la de pé.

Ele correu até onde Daliyah e os demais estavam se reagrupando. Alguns haviam sido atingidos por fragmentos que voaram com a explosão, mas embora tivessem cortes
e hematomas, ninguém estava incapacitado de prosseguir. Daliyah parecia ter saído ilesa.

- A menina precisa da sua ajuda - Hector disse, e ela correu até Hazel e Cayla.

Ele se virou para os homens e ordenou:

- Arrumem o equipamento, vamos partir já.

- Que direção vamos seguir, Hector? - Tariq perguntou.

- Vamos atravessar de novo a ravina.

Todos olharam para ele espantados, e ele logo esclareceu.

Se prosseguirmos para o leste, não vamos encontrar muita coisa além de deserto e mais deserto. Agora que eles perderam os cães, o inimigo não vai saber com certeza
que rota seguimos, mas provavelmente esperam que sigamos para o leste em direção à costa - ele se virou e apontou para o sentido de onde tinham vindo. - Porém, a
estrada norte-sul principal passa perto do Oásis do Milagre e da fortaleza. Correto, Tariq?

- Correto, fica a cerca de 16 quilômetros a oeste da fortaleza. Tem bastante tráfego - Tariq confirmou.

- Se conseguirmos chegar lá, vamos nos apoderar do primeiro ônibus ou caminhão conveniente que aparecer.

Os homens começaram a se reanimar imediatamente. A derrubada do helicóptero os tinha deixado mudos de desespero, mas Hector havia oferecido um plano e um vislumbre
de esperança. Em poucos minutos, estavam prontos para partir.

Eles formavam uma pequena e estranha caravana - três mulheres de diferentes idades e tons de pele e seis homens em trajes de camuflagem rasgados e ensanguentados.
Todos cobertos de sujeira e poeira. Hector tomou a dianteira, e Tariq seguiu por último com dois homens ajudando a apagar os rastros deixados pelo grupo em fila.
Cayla estava no meio, apoiada pela mãe em um lado e por Daliyah do outro. Formaram uma fila na beira da ravina e começaram a longa descida até o fundo. Quando começaram
a escalar a parede oposta, a maioria estava próxima da exaustão, e o ritmo diminuiu inexoravelmente. Hector ia de uma ponta à outra da fila, tentando incentivá-los
com falsas garantias e piadinhas grosseiras que, por sorte, Hazel e Cayla não entenderam. Os homens que tinham se ferido na explosão da bomba RPG sofriam bastante
agora, e novamente as pernas de Cayla começaram a fraquejar. Hector a carregou nas costas na última subida íngreme até o alto do vale. Ao chegarem ao topo, os demais
se jogaram sob a primeira sombra que encontraram, e permaneceram ali arfando como cães. As garrafas d'água estavam praticamente secas.

Hector se sentou com Hazel e Cayla, e as fez compartilhar os últimos goles que restavam em sua garrafa. Deu mais um tablete de antibiótico a Cayla. Ele tinha certeza
de que a medicação estava tendo um efeito benéfico. A cor do rosto dela estava melhor, e o espírito, fortalecido. Ele a tocou na testa, e a temperatura pareceu próxima
do normal.

- Mostre a língua! - ordenou.

- Com todo o prazer - ela tentou parecer arrogante, esticando a língua até o máximo. A penugem branca que a cobria estava se dissipando.

Ele se aproximou mais e examinou o hálito de Cayla. Não tinha mais o fedor de uma infecção.

- Coloque para dentro - ele disse -, você não vai querer deixar essa coisa para fora para as pessoas saírem tropeçando sobre ela.

Cayla alongou as costas e fechou os olhos. Hazel suspirou e se apoiou no ombro de Hector. Ele acariciou levemente os cabelos delas ensopados de suor, afastando-os
dos olhos dela ao mesmo tempo que murmurava palavras carinhosas e de encorajamento.

Estavam tão entretidos um com o outro que não perceberam que Cayla os observava através dos cílios, até que ela arregalou os olhos e perguntou:

- Quer dizer que mudamos de ideia quanto a despedir Heck, não é, mamãe?

Hazel pareceu espantada por um momento e depois se sentou com as costas retas e, sem olhar para Hector, ficou com o rosto completamente vermelho. Hector a observava
com prazer.

"Meu Deus, adoro quando ela faz isso", pensou.

- Tudo bem, mamãe. Eu já estava maquinando um jeito de aproximar vocês dois. Parece que eu não precisava ter me preocupado tanto.

- Muito bem, garotas, de pé! Hora de partir.

Hector esperou Hazel se recompôr e se levantou. Ele olhou adiante. Aos primeiros raios solares do amanhecer, o deserto parecia dotado de um austero esplendor. Não
havia o menor sinal de vegetação, mas a areia cintilava como um tesouro de diamantes quando o sol atingia os grãos de sílica, e os pequenos morros rochosos eram
tão majestosos como esculturas de Rodin. Ele conseguia sentir o calor aumentando. Tinha dado toda a água que possuía às mulheres. A boca dele estava seca e, ao tocar
os lábios, viu que estavam ásperos como uma lixa. Havia passado vários anos de sua vida em locais desérticos, portanto ao conduzir o grupo adiante, procurava ao
mesmo tempo por sinais de água na superfície e por inimigos escondidos. Não demorou para que todos estivessem com problemas de desidratação, erodindo suas últimas
reservas de forças, e ele teve de permitir que descansassem de novo. Pegou duas pedras de quartzo e deu uma para Hazel e outra para Cayla.

- Chupem! - ordenou. - Isso vai evitar que a boca de vocês resseque completamente. Respirem pelo nariz e falem apenas se for necessário. Vocês precisam economizar
fluidos corporais.

O olhar de Hector se desviou delas para os homens. Um estava encolhido e com o rosto agoniado, lutando contra cólicas. O resto não parecia que iria se sair bem numa
briga. Uma pequena nuvem passou sobre o brilho do sol, e o alívio foi imediato, ainda que temporário. Olhou para cima e viu pássaros em silhueta contra a nuvem cinza.
Havia cinco deles, grandes e ligeiros batendo as asas velozmente. Ele se levantou e protegeu os olhos. Ambas as mulheres o observavam.

- O que você viu? - Cayla indagou.

- Columba guinea para os ornitologistas - respondeu -, mas para mim e você, simplesmente os velhos pombos da guiné.

- Ah! - Cayla não tentou esconder a decepção. - Nem consigo dizer como isso é fascinante, Heck.

O bando de pombos começou a descer e, voando em círculos ao sol, exibiam a bela tonalidade de azul de suas penas, os pescoços cor de vinho e os contornos brancos
ao redor dos olhos.

- Quando voam assim em bando a esta hora do dia, estão indo beber água.

- Água? - as duas mulheres perguntaram ao mesmo tempo.

- Quando aterrissam assim, é porque a encontraram - disse. - Não é que isso é mesmo fascinante, Cay?

- Às vezes você me faz sentir como se eu fosse retardada - ela respondeu num tom arrependido.

- Pode ter certeza, Cay, que você age como uma só de vez em quando. De pé, senhoras, vamos dar uma olhada.

Ele havia memorizado o ponto para onde o bando havia se dirigido e o estabelecido a cerca de 400 metros. Ao se aproximarem, as características geográficas se tornaram
mais claras. Havia um pequeno vale do outro lado da trilha, uma ramificação do desfiladeiro principal, que atravessava um série de estratificações de formações rochosas.
A faixa do aquífero calcário estava claramente visível, sobreposta pelo xisto laranja. De repente, o bando de pombos surgiu da parede do vale batendo as asas ruidosamente.
Haviam se escondido numa fissura horizontal formada pela erosão do calcário mais macio sob a impenetrável parede rochosa e íngreme.

- Bingo! - gritou Hector com um sorriso enquanto os conduzia para o pé da parede do wadi. Enquanto todos desabavam agradecidos sob a sombra, ele a escalou até alcançar
a fissura sob a camada de calcário. Quando espiou pela abertura escura, pôde sentir o cheiro de água. A largura da fenda permitia apenas que ele engatinhasse. A
água se encontrava em uma poça rasa mais ao fundo da caverna rebaixada. Ele apanhou um punhado com a mão e experimentou.

- Merda! - ele disse. - Literalmente! Merda de pombo! Mas o que não mata engorda!

Ele gritou para Tariq levar as garrafas d'água. Ele coou a água na camisa e, apesar do gosto nojento, todos esvaziaram as garrafas. Hector as encheu de novo. Quando
finalmente todos mataram a sede, Hector encheu as garrafas pela terceira vez. Ao descer pela parede, olhou para o pequeno grupo lá embaixo. A mudança era quase mágica.
Os homens estavam sorrindo e conversando em voz baixa. Hazel estava sentada ao lado de Cayla, cantarolando baixinho enquanto penteava e trançava o cabelo da filha.

- Mulheres! - Hector murmurou carinhosamente, balançando a cabeça. - Onde ela foi encontrar um pente?

Em seguida, gritou:

- Não fiquem muito à vontade, pessoal, estamos partindo neste exato minuto.

Eles se organizaram em grupo novamente e escalaram para fora do wadi. Rumo ao oeste, Hector se manteve na parte mais elevada possível, vigiando o território ao redor
com muita atenção. Em uma hora, teve um bom motivo para ficar satisfeito com essa vigilância. Cerca de três quilômetros para o sul, avistou uma minúscula penugem
de poeira subindo pelo céu incandescente em tons de bronze. Ela se movia lentamente na direção deles, e Hector desejou ter levado os binóculos, mas tinha se preocupado
em cortar ao máximo o peso das mochilas. Após um breve momento de observação, ficou claro que a poeira estava sendo levantada por um veículo qualquer em velocidade
reduzida.

- O que quer que seja está bom para mim - ele se levantou e chamou Tariq.

Sem perder tempo, deu ordens para que dois homens vigiassem as mulheres, enquanto ele e o resto corriam ao encontro do veículo que se aproximava. Logo se tornou
evidente que ele estava acompanhando um antigo leito de rio ressecado e arenoso que percorria a extensão de um vale raso, onde o piso não era tão rachado e acidentado.
Quando alcançou um ponto do rio onde as margens eram mais rasas, Hector pode enxergá-lo com clareza pela primeira vez. Reconheceu de imediato o caminhão Mercedes
com tração nas quatro rodas, de porte mediano. O para-brisas estava dobrado, e havia um motorista, com outros três homens sentados em um banco mais elevado atrás
dele. Os quatro estavam armados e usavam trajes tradicionais - túnicas e turbantes. Hector esperou até que o caminhão fosse encoberto novamente pela margem do leito
do rio.

- Sigam-me! - Hector se levantou de um salto e, com seus homens logo atrás, desceu correndo pela encosta até caírem estendidos no chão da beira da margem, adiante
do caminhão. O Mercedes surgiu próximo da curva a cerca de duzentos metros adiante deles. Hector deixou que o veículo prosseguisse até ficar quase rente ao seu posicionamento
e, em seguida, ele e Tariq pularam no leito abaixo, bloqueando o caminho com os rifles apontados para os ocupantes do veículo.

- Não encostem nas armas ou mato vocês! - Hector gritou em árabe. - Desligue o motor. Coloquem as mãos acima da cabeça.

O motorista e dois dos homens atrás dele obedeceram com rapidez, mas o terceiro que estava sentado mais próximo à traseira do veículo, ficou de pé. Era muito alto,
mas também muito velho. O rosto dele era inacreditavelmente enrugado, e a ponta da barba branca e comprida havia sido pintada com hena. Na mão esquerda, segurava
um rifle de assalto AK-47. Encarou Hector com o olhar hipnótico e selvagem de um profeta bíblico e ergueu a mão direita para apontar para ele com um dedo com artrite
que era como a garra de um animal.

- Você é o assassino dos meus três filhos. Você é Cross, o infiel porco e imundo a quem declarei uma dívida de sangue. Amaldiçoo você com todo o poder de Alá. Que
você nunca encontre a paz mesmo depois de ser morto por mim.

- É o xeique Tippoo Tip - Tariq gritou alertando-o.

Hector manteve a pontaria no centro do peito do xeique.

- Abaixe esse rifle! - gritou com rispidez. - Desça do caminhão, senhor! Não me force a matá-lo.

O xeique era como um homem surdo. Sem tirar os olhos de Hector, começou a erguer o AK-47. As mãos contorcidas tremiam com a força do ódio que sentia.

- Não faça isso! - Hector avisou, mas o xeique ignorou a ameaça do rifle apontado para o seu peito.

Ele acomodou a coronha do AK-47 em um dos ombros e mirou por sobre do cano trêmulo.

- Deus me perdoe! - Hector sussurrou e atirou no meio do peito do homem. Tippoo Tip deixou o rifle cair, mas se agarrou à grade de proteção.

- Amaldiçoo você e seus descendentes. Amaldiçoo você com as chamas do inferno e as garras e os dentes dos anjos negros... - antes que Hector conseguisse evitar,
Tariq atirou no xeique mais uma vez, dessa vez na cabeça.

O xeique foi jogado para trás, do caminhão para o chão arenoso do leito do rio. Os dois guarda-costas rosnaram de fúria e agarraram as armas, mas antes que conseguissem
atirar uma única bala, Hector disparou rajadas curtas de três tiros em ambos. Os guardas foram derrubados dos assentos. Tariq disparou uma saraivada no motorista
atrás do volante assim que ele apontou uma pistola, matando-o instantaneamente. Em seguida, foi até o caminhão e puxou o motorista do assento para o wadi. Olhando
os corpos de cima, bem de perto, deu um tiro de misericórdia em cada um. No entanto, quando foi até o corpo do xeique, Hector o deteve.

- Não, Tariq! Chega. Não faça nada com o velho desgraçado.

Tariq olhou para ele levemente surpreso, e nem mesmo Hector conseguiu entender os próprios escrúpulos, pois o homem era velho. Sabia que Tippoo Tip era um monstro
cruel e perigoso, mas era velho. Tinha sido inevitável, mas mesmo assim havia deixado um gosto amargo na boca. Graças a Deus, Hazel não precisou testemunhar aquilo.

Ele foi até o caminhão e subiu no assento do motorista. Ligou a ignição e o motor deu partida.

- Parece estar em ordem - Hector verificou o indicador de combustível. - Um pouco mais de três quartos do tanque.

Mas viu que havia tanques de combustível para longas distâncias em ambos os lados do veículo.

- Uns 450 litros em cada um - calculou com satisfação. - Não teremos problemas por uns 1600 quilômetros ou mais.

Havia também um tanque de água potável encaixado atrás do bancos dianteiros, e ele bateu na lateral com os nós dos dedos.

- Cheio! - disse, mas havia sido perfurado por uma das balas e a água vazava do buraco. Hector rasgou uma tira da cauda do pano que usava na cabeça e estancou o
vazamento.

Em seguida, Hector acenou para os homens e, enquanto eles subiam no veículo, vasculhou o conteúdo do compartimento entre os assentos. Encontrou um mapa em escala
ampliada da área, com todas as rodovias e vilarejos indicados por nome e local. Isso foi um prêmio, mas o melhor de tudo foi o par de poderosos binóculos Nikon,
ainda guardado em seu saco de lona verde.

- Sou como uma criança em uma manhã de Natal! - disse com uma risadinha.

Pendurou os binóculos no pescoço, verificou se todos os homens estavam a bordo e dirigiu até onde tinha deixado o restante do grupo, escondidos entre as rochas com
as armas de prontidão. Então Hazel o reconheceu e desceu correndo ao encontro do caminhão.

- Você está bem? Ouvimos disparos.

- Como pode ver, éramos nós atirando. Agora podemos partir novamente com conforto. Hazel, você vai comigo na frente - a seguir, apontou para trás com um dos polegares.
- Cay, quero você na caçamba, mantendo a cabeça bem abaixada caso nos deparemos com mais tiroteios.

Cayla escalou a lateral metálica do caminhão e se deteve enojada.

- Que nojo! Há sangue por todos os lados. Não vou. Quero sentar perto da minha mãe no banco da frente.

- Cayla Bannock, pare de bancar a madame comigo. Comporte-se. Coloque seu fundamento já neste caminhão!

- Mas eu não quero...

- Escute, menininha. As pessoas estão sangrando e morrendo por sua causa. De agora em diante, você vai fazer o que eu mandar.

- Nunca fiz nada de errado... - começou de novo.

- Sim, você fez. Convidou Rogier Marcel Moreau, vulgo Adam Tippoo Tip, a bordo do iate da sua mãe.

- Como soube disso? - olhou para ele com uma expressão desolada.

- Se não sabe, deve ser mesmo uma idiota. Agora, suba no caminhão.

Sem dizer mais uma palavra, Cayla escalou pela lateral e se sentou ao lado de Daliyah na caçamba.

Hector engatou a marcha e foi embora. Ao lado dele, Hazel permanecia calada e imóvel. Não queria olhar para ela, mas podia sentir sua raiva. Sabia o quanto era protetora
em relação a Cayla. Dirigiu em alta velocidade, descendo de novo até o leito do rio. O piso arenoso dificultava a locomoção, mas era mais veloz e macio do que o
chão pedregoso e rachado e as cristas. Estavam havia pouco tempo na estrada quando, de repente, ele sentiu uma mão em sua coxa e deu um sobressalto de surpresa.
Olhou de soslaio para Hazel, cujos olhos cintilavam. Ela se reclinou na direção dele até que ficasse a poucos centímetros de seu ouvido.

- Você sabe lidar maravilhosamente bem com crianças, não é mesmo, Hector Cross? - ela sussurrou, roçando o rosto áspero de Hector com os lábios. - Você não sabe
quantas vezes eu quis fazer exatamente aquilo. Quando a mademoiselle Cayla começa a dar chilique, pode ser uma verdadeira megera.

A admissão surpreendeu Hector. Ele cobriu a mão em sua perna com a sua, muito maior, e a apertou.

- Espero que seja um sinal de que está melhorando. Entendo o seu problema, Hazel. Há muito tempo que Cay está órfã de pai, e você não se sente à vontade para ser
severa demais com ela.

Dessa vez, foi ela quem ficou espantada com o entendimento dele. Depois, se recompôs.

- Eu tenho uma pessoa em mente para assumir o papel paterno - ela disse em voz baixa.

- Sorte dele - ele sorriu e continuou a dirigir.

Em uma hora, eles deixaram o leito do rio e subiram até um terreno mais elevado. Hector brecou e desligou o motor.

- O que foi agora? - Hazel perguntou com ansiedade.

- Quero fazer alguns telefonemas via satélite. O sinal deve ser bom aqui.

Ele desceu do veículo e, enquanto abria o mapa recém-adquirido sobre o capô do motor e ligava o telefone, disse a Tariq:

- Dê uma caneca cheia d'água para todo mundo. Deixe que estiquem as pernas e tirem água dos joelhos.

Ele estendeu a antena do telefone e assentiu para Hazel.

- Bom sinal! Dave haver um satélite bem acima das nossas cabeças.

- Para quem você está ligando?

- Para o Ronnie Wells no MTB - ele discou o número e, após alguns toques, a voz de Ronnie surgiu na linha.

- Onde você está? - perguntou Hector.

- Estou ancorado na pequena enseada de uma ilhota rochosa a cerca de oito quilômetros da costa... - ele passou as coordenadas para Hector, que as verificou no mapa.

- Ok. Sei onde você está. Fique aí até eu ligar de novo. Hans Lategan não sobreviveu. O helicóptero caiu. Estamos em fuga, mas adquirimos um veículo. Dependendo
do que está adiante, vai demorar oito horas ou mais até chegar à praia em frente ao seu posicionamento.

- Boa sorte, Heck! Estarei à sua espera.

Ambos desligaram.

- Por que não vamos ao encontro do Paddy e dos homens dele em terra em vez do MTB? - Hazel perguntou.

- Boa pergunta - ele assentiu em reconhecimento. - É uma decisão ponderada. A fronteira etíope, onde Paddy está à nossa espera, fica 160 quilômetros mais longe do
que a costa onde Ronnie está.

- Mas as estradas não são melhores? Se fomos para o leste em direção ao litoral, vamos viajar por estradas secundárias.

- Exatamente - concordou, apertando mais números no telefone. - O país nas terras altas do interior é muito mais fértil e densamente povoado e, a esta altura, é
um ninho de vespas em alvoroço com a milícia de Tippoo Tip. Com quase toda a certeza, as estradas estarão bloqueadas em todos os entrocamentos. Mas vou ligar para
o Paddy agora para avisá-lo sobre o que pretendemos fazer.

Paddy atendeu quase imediatamente.

- Onde você está? - Hector perguntou.

- Estou sentado no topo de uma montanha na fronteira etíope, admirando a vista pitoresca do interior somali. Onde diabos você está?

- Estamos a cerca de 32 quilômetros a leste do oásis. Uthmann Waddah é um traidor. Passou definitivamente para o outro lado.

- Filho da mãe! Uthmann, um traidor? Não consigo acreditar.

- Ele deu a dica. Estavam nos esperando. O próprio Uthmann atingiu o helicóptero do Hans Lategan com uma RPG. Hans está morto, e o MIL, destroçado. Consegui capturar
um veículo e estamos a caminho da costa para encontrar o Ronnie.

Paddy soltou um assovio.

- Você matou o Uthmann, aquele desgraçado de coração de pedra?

- Tentei atirar nele, mas ainda estava usando o colete à prova de balas. Eu o atingi, mas não acho que esteja morto. A armadura provavelmente conteve a bala.

- Uma grande pena! - Paddy grunhiu. - Sabia que havia alguma coisa no ar. De onde estou, posso ver que todas as estradas do seu lado da fronteira estão inundadas
de veículos. Estou com os meus binóculos focados em um dos caminhões do inimigo neste exato momento. Deve haver pelo menos uns vinte homens na caçamba. Todos armados
até os dentes.

- Ok, Paddy. Fique onde está e espere pela minha próxima ligação. Se não conseguirmos nos juntar ao Ronnie, seremos forçados a ir até você. Esteja preparado para
atravessar a fronteira e nos buscar - ele desligou e olhou para Hazel.

- Ouviu o que ele disse?

Ela assentiu.

- Você está certo, é a nossa última opção. Mas vamos levar mesmo oito horas para chegar ao litoral?

- Se tivermos sorte - ele respondeu e viu que ela ergueu uma das sobrancelhas. Olhou ao redor e viu que Cayla tinha se aproximado dele em silêncio e estava ao seu
lado.

- Vim me desculpar, Heck - disse humildemente. - Às vezes um demônio toma conta de mim e não consigo me conter. Podemos ser amigos de novo? - ela estendeu uma das
mãos, e ele a segurou.

- Nunca deixamos de ser amigos, Cay. E espero que seja assim para sempre. Mas você deve uma desculpa à sua mãe mais do que a mim.

Cayla se virou para Hazel.

- Sinto tanto, mamãe. Hector estava certo. Eu trouxe Rogier a bordo do Golfinho e subornei Georgie Porgie para empregá-lo.

Hazel piscou. Até aquele momento, não quisera acreditar, mas agora tinha de encarar o fato. A bebé dela não era mais um bebé. Então, lembrou que Cayla tinha dezenove
anos, que era bem mais velha do que a própria Hazel naquela noite memorável no banco traseiro do velho Ford do seu treinador, quando havia-se tornado mulher. Ela
se recompôs e estendeu os braços para Cayla.

- Todos nós cometemos erros, bebé. O truque é jamais cometer o mesmo erro.

Cayla olhou novamente para Hector.

- O que é esse tal de fundamento que você vive me dizendo para colocar nos lugares?

- É um jeito sofisticado de se referir ao seu traseiro - Hazel explicou, e Cayla riu.

- Bom, está certo! Concordo. Fundamento soa muito mais classudo. Muito melhor do que a outra opção.


Uthmann desceu com dificuldade pela encosta íngreme da face norte do wadi. Dar um passo era trabalhoso e respirar, uma agonia. Tinha deixado a RPG para trás e agarrava
o peito com as duas mãos, no local onde a bala de Hector havia-se chocado com o painel frontal do colete à prova de balas. Em um primeiro momento, esperou que Hector
e seus homens o seguissem, mas depois percebeu que deveriam estar tentando se reagrupar após a destruição do helicóptero. Ele parou por alguns minutos para descartar
o pesado colete e examinar o ferimento. Embora a bala não tivesse penetrado, o hematoma e o inchaço no local do impacto eram enormes. Com cautela, sondou a área
e sentiu a ponta afiada de uma costela quebrada sob a pele. A possibilidade dos pulmões terem sido perfurados o preocupava. Embora a dor fosse praticamente insuportável,
respirou fundo. Os pulmões não pareciam ter sido afetados, e ele tomou fôlego e desceu cambaleante até o ponto onde deixara Adam, no fundo do vale. Ele não estava
mais lá. Provavelmente tinha escalado de volta à borda da margem onde tinham se despedido do xeique e de seus homens. Uthmann subiu pelo mesmo caminho e encontrou
Adam no topo do wadi, sentado em uma rocha colocando uma atadura feita com tiras de camisa no tornozelo.

- O que aconteceu? - perguntou assim que viu Uthmann. - Ouvi tiros e uma grande explosão.

Entre respiradas cautelosas, Uthmann descreveu o que tinha feito, e Adam ficou extasiado.

- Então, eles não escaparam! Agora estão encurralados e na palma da minha mão.

- Sim, nós os encurralamos por agora. Mas como expliquei a você e ao seu avô, Cross tem planos de contingência para outras rotas de fuga. Agora ele provavelmente
está seguindo em direção à costa, onde há um barco de prontidão para levá-los até a Arábia Saudita. Onde está seu avô? Precisamos do caminhão para persegui-los.

- Ele deve ter atravessado o wadi mais adiante, como tínhamos combinado com ele.

- Ambos estamos feridos. Jamais conseguiremos alcançar seu avô ou Cross a pé. Precisamos esperar a outra caminhonete da fortaleza. Deveriam ter chegado há séculos.

- Provavelmente perderam nosso rastro na escuridão - disse Adam com o cenho franzido. - Ou isso ou a caminhonete quebrou de novo.

Mais uma hora se passou até que ouvissem o motor de um veículo se aproximando, e ele surgisse no campo de visão acima da crista. Havia dois homens na cabine e mais
uma dúzia na caçamba. Uthmann reservou alguns minutos para enfaixar o tornozelo de Adam e o próprio peito, usando o kit de primeiros socorros da caminhonete; depois
subiram a bordo e seguiram os rastros deixados pelo veículo de caça do xeique. De uma distância de cerca de um quilômetro e meio, viram as aves de rapina voando
em círculo no céu adiante, e Adam mandou o motorista se apressar até que chegaram ao cenário onde seu avô havia sido assassinado. O corpo jazia sobre a areia do
leito ressequido do rio. Metade do rosto do velho havia sido rasgado e devorado pelos pássaros, mas a barba saíra ilesa. Com dor, Adam desceu até a areia, e foi
mancando até se ajoelhar ao lado do corpo. Outros animais carniceiros, provavelmente um bando de chacais, tinham rasgado a barriga do xeique, e as entranhas já estavam
apodrecendo devido ao calor. O fedor era nauseante.

De maneira respeitosa, Adam pronunciou as orações tradicionais para os mortos, mas seu coração estava em júbilo. Os anos da tirania do avô haviam chegado ao fim,
e agora ele era indisputavelmente o xeique do clã Tippoo Tip. Fazia apenas quatro dias que o velho o tinha nomeado formalmente como seu sucessor na mesquita, na
presença do mullah e dos filhos. De agora em diante, ninguém ousaria questionar a reivindicação da chefia do clã por parte de Adam.

Quando encerrou as preces, ele se levantou e ordenou que os homens enrolassem o avô na lona e o colocassem na caçamba. Enxergou a veneração dirigida a ele nos olhos
e no comportamento dos homens que se apressaram em atender ao seu comando. Até mesmo a atitude de Uthmann havia mudado consideravelmente em razão da subida na hierarquia
e do grau de autoridade.

Uthmann havia revistado a área com cuidado enquanto Adam rezava. Encontrara os rastros deixados por Hector e o grupo de emboscada. Foi até onde Adam se encontrava
e explicou como era provável que os infiéis tivessem retornado do outro lado do wadi após a destruição do helicóptero e que, por uma infelicidade do destino, tinham
se deparado com o caminhão que levava o xeique a bordo. Tinham assassinado o velho e se apoderado do veículo.

- Quais são suas ordens, meu xeique? - perguntou.

A pronúncia do título foi um bálsamo para a alma de Adam, como um cachimbo de haxixe.

- Temos de seguir o veículo roubado do meu avô até termos certeza da direção seguida pelos infiéis. Somente então poderemos decidir o que tem de ser feito.

Uthmann arriscou repetir a sua opinião.

- Como já expliquei, conheço esse homem, Cross, bem o bastante para adivinhar o que ele vai fazer. Agora que roubou o veículo de caça, com certeza tentará alcançar
a costa, onde há um barco à espera dele.

- O que ele irá fazer se não conseguir escapar de barco? - Adam perguntou.

- Daí, a única rota de fuga disponível será a fronteira com a Etiópia.

- Vamos ver se você está certo. Mande os homens montarem no caminhão e irem atrás dele.

Deixaram os corpos dos guarda-costas para os chacais e os pássaros e seguiram os rastros do veículo menor. Logo encontraram o local onde Hector Cross havia parado.
Viram as pegadas do grupo onde haviam desembarcado. Apesar do peito ferido, Uthmann desceu para examinar os rastros e depois retornou para dar as informações a Adam.

- São nove pessoas, seis homens e três mulheres.

- Três mulheres? - Adam indagou. - Uma é minha prisioneira que escapou, mas quem são as outras duas?

- Acho que uma delas é a conhecida de Tariq que mostrou a Cross como entrar na fortaleza. A terceira e última chegou no helicóptero. Eu a vi apenas por alguns segundos
antes de disparar contra o RPG. O vislumbre que tive foi à distância e parcialmente obstruído pela fuselagem, por isso não posso ter certeza absoluta, mas acho que
a terceira mulher é a mãe da sua cativa. Eu a vi várias vezes em Sidi el Razig e estou quase certo de que é ela.

- Hazel Bannock! - Adam o encarou sem conseguir acreditar no tamanho de sua sorte. Ele agora não somente era o xeique do clã, como tinha uma das mulheres mais ricas
do mundo ao alcance da mão. Assim que conseguisse fisgá-la, ela o transformaria em um dos homens mais poderosos da Arábia e da África.

"Dezenas de bilhões de dólares e meu próprio exército me protegendo. Não existe nada que eu deseje que não seja capaz de obter." A imaginação dele se expandiu diante
de tal magnitude. "Assim que receber a quantia do resgate, vou proporcionar mortes extraordinárias a Hazel Bannock e à filha. Deixarei que todos os meus homens se
divirtam com elas. Elas serão curradas pelos dois orifícios, mil vezes pela frente e por trás. Se não conseguirem matá-las com seus paus, poderão usar as baionetas
nos mesmos buracos para liquidar o assunto. Vai ser divertido assistir. Vamos compartilhar tal deleite com o assassino, Hector Cross. Depois, vou ter de pensar em
algo original para ele. Vou acabar passando-o às velhas da tribo com suas faquinhas, mas, para começo de história, vários dos meus homens irão saboreá-lo por trás.
O ânus vai esticar até que seja possível andar a cavalo dentro dele. Para um homem como ele, a humilhação será maior do que a dor física." Adam esfregou as mãos
de contentamento. "Vou conseguir o pagamento e também liquidar a dívida de sangue da minha família." Ele falou em voz alta para o motorista:

- Retorne ao oásis!

E depois explicou a Uthmann:

- Tenho de enterrar o meu avô com todo o respeito que ele merece. Vou mandar uma mensagem pelo rádio ao meu tio Kamal para avisá-lo que os fugitivos tentarão escapar
de barco. No entanto, se Cross conseguir se safar de novo, irá com certeza tentar alcançar a fronteira etíope, e é lá que estaremos à sua espera.


CONTINUA

Na manhã seguinte, Hector foi à procura de Hazel e a encontrou tomando o café da manhã no minúsculo refeitório da empresa. Ao chegar perto dela, olhou para baixo
e viu uma tigela de cereal e uma xícara de café preto na mesa. Não era de se espantar que estivesse em boa forma, ele pensou.

- Bom dia, sra. Bannock. Espero que tenha dormido bem.

- Tentando fazer uma piadinha irônica, Cross? É claro que não dormi bem.

- O dia vai ser longo. É pouco provável que algo aconteça por enquanto. Vou levar alguns dos meus rapazes para um treino de paraquedas antes do grande show. Alguns
não saltam há mais de um ano. Precisam dar uma desenferrujada.

- Tem um paraquedas para mim? - ela perguntou.

Ele piscou. Pensara que talvez ela quisesse assistir para se distrair das próprias preocupações. Não tinha imaginado que gostaria de participar. Ficou pensando qual
seria seu nível de experiência.

- Já saltou da paraquedas? - perguntou com tato.

- Meu marido adorava e costumava me levar junto. Fizemos vários saltos de base juntos nos fiordes noruegueses em Trollstigen.

Hector olhou para ela boquiaberto antes de conseguir falar de novo.

- Esse é o suprassumo - admitiu. - Não há nada mais radical do que saltar de uma montanha para um abismo de 600 metros de altura.

- Não me diga que já saltou daqueles fiordes? - perguntou ligeiramente interessada.

- Sou corajoso, mas não louco - ele balançou a cabeça. - Sra. Bannock, a senhora tem a minha admiração e ficarei honrado se juntar-se a nós hoje pela manhã.

Hector havia reunido quinze dos seus melhores homens, incluindo Dave Imbiss e Paddy O'Quinn. Saltaram três vezes do helicóptero. O primeiro salto foi a três mil
metros de altitude; o segundo e o último, em um nível mais baixo, a 120 metros, apenas o suficiente para que o paraquedas se abrisse antes que tocassem os pés no
chão. Essa técnica daria pouca chance ao inimigo de acertá-los se estivesse atirando do chão enquanto eles caíam, vulneráveis. Após o terceiro salto, todos os homens
estavam claramente maravilhados com Hazel. Nem mesmo Paddy O'Quinn conseguiu disfarçar a admiração.

Comeram sanduíches de queijo e presunto e tomaram café de uma garrafa térmica sentados na lateral de uma duna de areia. Depois disso, Hector empurrou um pneu velho
de caminhão duna abaixo, e enquanto ele descia quicando pelo morro íngreme, os homens, alternadamente, atiraram com seus rifles de assalto Beretta SC 70/90 no alvo
de papelão encaixado na parte de dentro. Hazel foi a última a atirar. Pegou a arma de Hector emprestada e verificou a munição e a estabilidade com um ar competente
e sagaz. Em seguida, foi até a linha e acertou o alvo com um estilo elegante, oscilando ligeiramente antes de disparar contra o pneu, como um atirador munido de
uma espingarda de calibre .12 se posicionando para atirar em um faisão em movimento. Dave resgatou o pneu da base da duna, todos se reuniram em volta dele, olhando
para os buracos de bala perfurados no alvo de papelão. Ninguém falou muito.

- Por que estão todos tão surpresos? - Hector gracejou. - Ela é uma atleta de gabarito internacional. É claro que é bastante competitiva e tem a coordenação visomotora
de um leopardo.

Depois disse ingenuamente:

- Deixe-me adivinhar, sra. Bannock. Seu marido gostava de atirar e arrastava a senhora junto. É isso, não é?

O riso foi espontâneo e contagiante e, após alguns instantes, Hazel foi forçada a acompanhar. Era a primeira vez que ria desde que perdera Cayla. Foi catártico.
Sentiu parte da dor debilitante ser expurgada da alma.

Antes que o riso cessasse, Hector bateu palmas e gritou:

- Certo, meninos e meninas! São apenas onze quilômetros de volta ao terminal. O último a chegar paga as bebidas.

O solo arenoso dificultava a caminhada. Quando passaram pelo portão na cerca de arame farpado do perímetro do terminal, Hector estava alguns passos atrás de Hazel.
Ela estava correndo em um ritmo forte e suave, mas as costas de sua camiseta estavam escurecidas pelo suor. Hector sorriu.

"Duvido que a madame vá ter muita dificuldade em pegar no sono hoje à noite", pensou.


Uthmann ouviu a explosão e viu a coluna de fumaça preta subindo acima dos telhados dos edifícios à frente dele. Logo soube que era um carro-bomba, e saiu correndo
em disparada para a casa do irmão, que ficava nas proximidades da explosão. Virou a esquina e olhou para a rua estreita e sinuosa abaixo. Até mesmo para um veterano
escaldado como Uthmann, a carnificina era horrível. Um homem veio correndo na direção dele com o corpo de uma criança ensopada em sangue apertado contra o peito.
O olhar vazio sequer focalizou em Uthmann quando ele passou correndo. A fachada de três edifícios havia sido destruída. O interior estava exposto como o de uma casa
de bonecas. Móveis e pertences pessoais estavam dependurados nos aposentos abertos ou caíam em cascata na rua. No meio da via, estavam os destroços enegrecidos e
contorcidos do carro que carregara a bomba.

- Você não é um mártir! - Uthmann gritou ao passar correndo pelas ferragens fumegantes e os restos vaporizados do motorista. - Você é um assassino xiita!

Então ele viu que a casa de Ali, seu irmão, mais ao final da rua, estava intacta. A mulher de Ali veio até a porta. Ela estava chorando e embalando dois dos filhos
nos braços.

- Onde está o Ali? - gritou.

- Foi trabalhar no hotel - ela soluçava.

- Todas as crianças estão com você?

Ela assentiu em meio às lágrimas.

- Que o nome de Alá seja louvado! - Uthmann gritou e a levou de volta para dentro.

A mulher e os três filhos do próprio Uthmann não tiveram tanta sorte quanto a família do irmão. Três anos antes, Lailah estava no mercado local com os meninos quando
uma bomba explodiu a trinta passos deles. Uthmann pegou o menininho dos braços da cunhada e o embalou até que parasse de choramingar. Ao se lembrar do calor do corpinho
do filho em seus braços, sentiu as lágrimas subirem aos olhos. Ele virou o rosto para que não vissem.

O irmão Ali chegou do trabalho uma hora depois. Devido à bomba, o gerente geral do hotel havia autorizado que ele saísse mais cedo. O alívio do homem ao ver que
a família estava em segurança foi doloroso de assistir para Uthmann. Somente no dia seguinte Uthmann conseguiu ter uma discussão séria com ele. Para começar, Uthmann
tocou no assunto da captura do iate e da jovem herdeira da fortuna da Bannock Oil.

- Essa foi a notícia mais excitante que ouvimos em anos - Ali logo respondeu. - O mundo muçulmano inteiro está em expectativa desde o anúncio dos camaradas no Al
Jazeera. Que planejamento cauteloso e que senso de dever para fazer que tal operação florescesse! É uma das nossas maiores vitórias desde os ataques em Nova Iorque.
Os norte-americanos estão atordoados. O prestígio deles sofreu mais um ataque mortal - Ali estava extasiado.

No dia a dia, ele era o gerente do Airport Hotel, mas na realidade sua ocupação principal era a de coordenador dos Combatentes Sunitas que estavam perseguindo a
Jihad contra o Grande Satã. Estava claro para ambos os irmãos que Ali era o alvo principal da bomba xiita que havia causado tamanha devastação na rua da casa onde
se encontravam.

- Tenho certeza de que os nossos líderes vão exigir um pagamento de resgate enorme pela princesa norte-americana capturada - Ali disse com seriedade. - O suficiente
para financiar a Jihad contra os Estados Unidos por outros dez anos ou mais.

- Então, qual dos nossos grupos foi o responsável por essa conquista? - Uthmann perguntou. - Nunca ouvi falar desse "Flores do Islã" até que o nome fosse usado pelo
Al Jazeera.

- Irmão, você sabe que não deve fazer essa pergunta. Embora você tenha provado a sua lealdade centena de vezes, eu jamais poderia respondê-la, mesmo que soubesse
a resposta, e eu não sei - Ali hesitou e depois prosseguiu. - Mas posso dizer que logo você talvez seja um dos que precisem saber.

- Minha conexão com a Bannock Oil? - Uthmann sorriu para ele, mas Ali fez um gesto de negativa com as mãos.

- Chega, não posso dizer mais nada.

- Então parto amanhã e retorno a Abu Zara...

- Não! - Ali o interrompeu. - Foi a mão de Alá que trouxe você aqui hoje. Fique comigo por pelo menos mais um mês. Inshallah! Talvez possa dizer algo a você nessa
altura.

Uthmann assentiu.

- Mashallah! Ficarei, irmão.

- Seja bem-vindo sob o meu teto, irmão.


No palácio na encosta acima do Oásis do Milagre, um outro grupo de homens tomava café em minúsculas xícaras de prata, conversando seriamente em voz baixa. Estavam
sentados em círculo ao redor da mesa incrustada com mármore e madrepérola. O único item sobre a mesa era o bule prateado de café. Não havia nenhum material escrito
na sala. Nada era anotado. Todas as decisões eram anunciadas pelo xeique Khan Tippoo Tip em pessoa e memorizadas por seus ouvintes.

- Meu neto Adam enviará a primeira exigência para o resgate - olhou para Adam que, ainda sentado na almofada de seda, fez uma mesura até a testa encostar nas lajotas.

- Ouvir seu comando é obedecê-lo - murmurou.

O xeique Khan gracejou:

- A quantidade de exigências será tão grande que até mesmo na terra doentia e amaldiçoada do Grande Satã não haverá ninguém rico o suficiente para cumpri-las - quando
sorriu, seus olhos desapareceram detrás das pálpebras enrugadas. - Não existe quantia de dinheiro capaz de quitar a dívida de sangue que esse homem chamado Cross
tem comigo. Somente o sangue pode pagar por sangue.

Eles bebericaram das xícaras de prata em silêncio, esperando que o xeique continuasse a falar.

- O infiel pérfido matou três dos meus filhos - ergueu um dos dedos contorcidos pela artrite. - O primeiro era meu filho e o pai do meu neto Saladin Gamel.

Adam se curvou mais uma vez, e o xeique Khan prosseguiu:

- Ele era um verdadeiro guerreiro de Alá. Foi assassinado por Cross em uma rua de Bagdá sete anos atrás.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros homens na roda murmuraram.

- A segunda dívida de sangue é o meu filho Gafour. Foi enviado para honrar a dívida de sangue de seu irmão mais velho, Saladin, mas Cross o matou também quando atacou
o dhow em que Gafour velejava a Abu Zara para cumprir a tarefa de que fora incumbido por mim.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros entonaram novamente.

- O terceiro dos meus filhos que morreu nas mãos desse infiel adorador do Cristo foi Anwar. Também tinha sido enviado em uma missão de honra.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - repetiram em coro pela terceira vez.

- Essa dívida de sangue se tornou um fardo em minha consciência. A vida dos meus três filhos foi tirada por esse idólatra tolo, servo de um falso deus. Para mim
não basta mais apenas tirar a sua vida. Uma vida não pode pagar por três. Tenho de capturá-lo e entregá-lo vivo às mães e às mulheres dos homens que matou. As mulheres
são altamente treinadas no assunto. Sob suas mãos e as lâminas afiadas das facas de esfola ele terá vários dias de tormento até passar ao ventre do inferno e os
braços de Satã.

- Seu comando é uma ordem, poderoso Khan, que assim seja - murmuraram de acordo.

- Está me escutando, meu neto? - o xeique Khan indagou.

Adam fez mais uma mesura, devotada, reverente.

- Estou escutando, venerado avô.

- Deposito a dívida da dívida de sangue diretamente nos seus ombros. Você tem de recolher o pagamento pelos seus dois tios e pelo seu próprio pai. Que você não conheça
paz nem descanso até que a dívida seja completamente quitada.

- Escuto o que diz, meu avô. É um voto de confiança sagrado.

- Quando você trouxer o suíno infiel vivo até mim, vou colocá-lo no pedestal mais alto da sua tribo. Você ganhará um lugar em meu coração juntamente com as memórias
do seu pai e dos seus tios assassinados. Quando eu morrer, você assumirá o meu lugar como líder do nosso clã.

- Reconheço esse dever passado a mim como sagrado, meu avô. Entregarei o homem e a mulher para que enfrentem sua ira e seu julgamento, conforme seu comando.


A espera é sempre a parte mais difícil, Hector lhe dissera no início. Gradualmente ela descobriu o quanto ele estava certo. Todos os dias, passava horas em teleconferências
no Skype conduzindo os negócios da Bannock Oil pelo mundo. No restante do tempo, ela treinava com os homens de Hector. Correndo, pulando e atirando até estar tão
em forma física e mentalmente concentrada quanto na ocasião em que entrou na quadra de Flinders Park naquele dia de glória longínquo.
Mas as noites, aquelas terríveis noites, passavam em agonia espiritual. Ela dormia pouco, mas quando dormia, sonhava com Cayla - Cayla galopando com ela em seu cavalo
dourado de crina branca pelos altos prados do rancho. Cayla gritando de excitação ao abrir o presente extravagante que Hazel lhe dera quando completara 18 anos.
Cayla adormecendo no ombro de Hazel enquanto assistiam juntas a filmes antigos tarde da noite na TV a cabo. E então homens, mascarados e com armas nas mãos, surgiam
e o terror que sentia era infinito. Cayla! Cayla! O nome dela ressoando sem parar em sua mente, atormentando-a e deixando-a à beira da loucura.
Falava todos os dias com Chris Bessel e o coronel Roberts nos Estados Unidos, mas eles ofereciam pouco conforto. Todas as noites, sozinha em seu quarto, rezava como
quando era uma menininha, de joelhos e chorando. Mas as pistas haviam cessado. Nem todo o poder de suas orações, tampouco o da CIA, eram capazes de fazer com que
surgisse algum traço de Cayla ou das Flores do Islã. Passava várias horas do dia com Hector Cross, extraindo forças de sua companhia.

- Mas não temos notícias há quase um mês, Cross! - dizia isso pelo menos uma vez ao dia.

- Eles brincam de gato e rato com uma habilidade sem limites. Têm anos de prática - respondeu. - Não estão com pressa. Temos de esperar. Mas, lembre-se, Cayla ainda
está viva. Apegue-se a esse pensamento como algo positivo.

- Mas e Tariq e Uthmann? Com certeza eles já devem ter descoberto alguma coisa.

- É um jogo extremamente lento - enfatizou. - Se Tariq e Uthmann cometerem um único deslize, morrerão de uma morte pouco invejável. Estão profundamente infiltrados,
vivendo, comendo e dormindo com a Besta. Não podemos apressá-los; na verdade, não posso nem mesmo entrar em contato. Se tentar, o resultado será o mesmo do que levar
um tiro na cabeça.

- Queria que houvesse algo que pudéssemos fazer - ela lamentou.

- Há uma coisa que a senhora pode fazer, sra. Bannock.

- O que é, Cross? - perguntou com avidez. - Farei qualquer coisa que você sugerir.

- Então eu sugiro que pare de enviar e-mails para a Besta no celular da Cayla.

- Como...? - a voz dela abrandou, e a seguir ela balançou a cabeça e admitiu. - Estava apenas repetindo a mensagem que você me fez mandar antes. Dizendo que estamos
esperando. Mas como você... - ela interrompeu a frase de novo.

- Como soube o que andava fazendo? - ele concluiu a pergunta por ela. - Às vezes você não é tão esperta quanto pensa, Hazel Bannock.

- E você, Hector Cross, é o imbecil mais esperto do mundo inteiro - ela explodiu.

- Faz bem desabafar de vez em quando, não é, Hazel?

- Não ouse me chamar de Hazel, seu filho da puta arrogante!

- Ótimo, sra. Bannock! Seu jeito de falar melhora a cada dia. Logo estará dentro dos meus elevados padrões.

- Odeio você, Hector Cross! De verdade.

- Não, não odeia de verdade. A senhora é astuta demais para isso. Guarde seu ódio para quando ele for necessário - ele riu.

A risada dele foi suave e contagiante, amena e compreensiva, e, mesmo sem querer, ela riu com ele, mas o riso dela tinha um quê de histérico.

- Você é incorrigível! - disse em meio ao riso.

- Agora que me entende, pode me chamar de Hector ou de Heck, se quiser.

- Obrigada - ela tentou abafar o riso. - Mas não quero merda nenhuma.

 

-O que os forçará a vir aqui e tentar libertar a garota? - xeique Khan encarou o neto, esperando a resposta.

Adam pensou bem antes de responder.

- Primeiro, ele têm de saber onde ela está.

O avô assentiu.

- A seguir, pedirão a ajuda dos amigos em Washington. Sabemos que a mãe é amiga do presidente norte-americano. Eles enviarão multidões de cruzados para nos assolar.

O xeique Khan penteou a barba com os dedos, observando os olhos do neto, à espera do momento em que o rapaz veria o caminho adiante tão claramente quanto o próprio
xeique Khan.

- Levará várias semanas, ou até meses, até que os norte-americanos preparem um ataque contra nós. Podemos nos mudar deste lugar e, em poucas horas, desaparecermos
no deserto. Hector Cross, o assassino dos meus filhos, sabe disso. Ele e a mãe da menina querem esperar o exército norte-americano se mexer?

- Sim! - disse Adam com certeza. - A menos que... - xeique Khan viu a solução surgir nos olhos do neto, e seu coração se encheu de orgulho.

- Sim, Adam! - encorajou o neto a falar.

- A menos que possamos convencê-los de que a menina está sob perigo de morrer, ou um perigo pior do que a própria morte - disse Adam, e o avô sorriu até que os olhos
quase desaparecessem nas pregas das pálpebras. - Desse modo, eles virão atrás de nós, sem medo nem hesitação, virão atrás de nós.

- Onde é melhor? - o xeique Khan murmurou alegremente.

Adam respondeu sem hesitar:

- Não aqui, em uma cela de pedra da fortaleza. Tem de ser em um lugar onde a beleza do cenário contraste com o horror do ato.

Pensou por um momento e em seguida disse:

- O lago das vitórias-régias, no Oásis do Milagre!

- Mostramos primeiro o perigo e depois deixamos que descubram onde estamos? Ou eles ficam sabendo primeiro qual é o local e depois testemunham o ato? - O xeique
Khan fingiu que estava ponderando a questão, mas Adam falou de novo.

- Primeiro, têm de ver o que a garota está sofrendo, pois quando finalmente descobrirem o local, virão correndo sem hesitar nem parar para pensar.

- Estou orgulhoso de você - disse o xeique Khan. - Você será um grande general e um guerreiro implacável de Alá - Adam fez uma mesura reconhecendo o elogio.

Em seguida, acenou para um dos guardas de confiança que estava posicionado na porta de braços cruzados. O guarda foi depressa para o lado dele e se abaixou sobre
um dos joelhos para receber suas ordens.

- Mande uma mensagem para o fotógrafo - Adam disse em voz baixa. - Diga para ficar à espera nos portões principais do palácio após as orações matinais. Peça para
trazer a filmadora.


As escravas foram buscar Cayla na cela apertada em que fora mantida prisioneira desde que havia sido levada para o Oásis do Milagre. De novo, banharam-na com jarras
d'água e depois a vestiram em roupas limpas - uma toga negra até os pés e um xale negro enrolado modestamente ao redor do rosto e dos cabelos. Em seguida, ela foi
conduzida até as portas principais do palácio, onde quatro homens com rifles automáticos esperavam para acompanhá-la até a encosta do oásis.

Em contraste com o cheiro mofado da cela de seu confinamento, o ar do deserto era puro e quente. Ela o respirou com alívio. Havia muito que perdera o interesse no
que lhe aconteceria a seguir. Tinha se retraído em um estado entorpecido de resignação. No meio do percurso pela trilha da montanha, ela reparou na multidão reunida
ao lado de uma das lagoas nos jardins luxuriantes logo abaixo. Pareciam dispostos em uma espécie de ordem, em semicírculo. Todos eram homens. Ao se aproximar mais,
viu que no centro do círculo aberto estava um homem sentado de pernas cruzadas sobre vários tapetes de lã. Vestia as tradicionais calças brancas folgadas, um colete
e um turbante pretos, mas mesmo com o lenço que cobria o rosto dele, ela reconheceu Adam. Sentiu uma lufada de ânimo. Não o via desde o dia em que, fazia quase um
mês, ela fora fotografada segurando um exemplar do International Herald Tribune. Queria correr até ele. No meio daquela multidão cruel e selvagem, ele era a única
pessoa em que podia confiar. Sabia que ele era seu protetor. Ele era a luz na escuridão de seu desespero. Ela começou a avançar com mais rapidez, mas os homens ao
seu lado a detiveram, e continuaram a descer o morro a uma velocidade moderada. De repente, outro homem surgiu na sua frente. Caminhava para trás, segurando uma
filmadora profissional com a lente focalizada no rosto dela.

- Sorria, senhorita, por favor - suplicou. - Olhe o passarinho, senhorita, por favor - o inglês dele era quase ininteligível.

- Vá embora! - gritou para ele com a última centelha que sobrara de seu temperamento fogoso. - Deixe-me em paz.

Ela arremeteu contra ele, que se desviou, ficando a uma distância segura. Os guardas a agarraram pelos braços e a puxaram para trás. O cinegrafista continuou a filmar.
Eles entraram no semi-círculo de homens armados e mascarados e Cayla gritou para Adam, apelando de uma maneira patética:

- Por favor! Por favor, Adam! Faça-os parar de me atormentar!

Adam deu uma ordem. Os guardas a empurraram e forçaram-na a sentar-se ao lado dele no tapete estampado de cores vibrantes. A seguir, o cinegrafista foi ajoelhar-se
diante deles. Ele havia encaixado a câmera em um tripé. Curvou-se para a frente para focalizar no rosto de Adam, e a câmera fez um ruído suave. Adam retirou o lenço
que cobria seu rosto e olhou diretamente para a lente da câmera.

- Cayla - disse Adam em seu inglês quase perfeito, tingido apenas ligeiramente pelo sotaque francês -, eles estão fazendo esta filmagem para mandar para sua mãe,
para mostrar que estamos cuidando bem de você. Pode enviar a mensagem que quiser. Fale para a câmera. Diga que eles logo farão um pedido de pagamento de resgate.
Você precisa pedir a ela que pague imediatamente. Assim que receberem o dinheiro, essa situação desagradável terminará. Você será libertada e enviada de volta para
sua mãe de novo. Compreende?

Ela assentiu calada.

- Remova o véu - Adam ordenou gentilmente. - Deixe sua mãe ver seu rosto.

Lentamente, como se estivesse em transe, Cayla ergueu o lenço e o deixou cair sobre os ombros. - Agora, olhe para a câmera. Isso, ótimo! Agora, fale com sua mãe.
Diga o que está sentindo.

Estremecendo, Cayla respirou fundo e disse:

- Oi, mamãe. Sou eu, Cayla - ela interrompeu e balançou a cabeça. - Desculpe. Isso é uma coisa imbecil de dizer. É claro que você sabe quem eu sou - ela se recompôs
de novo. - Estas pessoas estão me mantendo presa neste lugar horrível. Estou com tanto medo. Sei que alguma coisa terrível vai acontecer comigo. Eles querem que
você mande dinheiro. Eles prometeram que vão me soltar quando você fizer isso. Mamãe, por favor, me ajude, não deixe que façam isso comigo - ela começou a soluçar
e abaixou a cabeça, pousando-a nas mãos em concha, a voz dela abafada pelos dedos e a força do terror e da dor que sentia. - Por favor, minha mãe querida. Você é
a única pessoa no mundo que pode me salvar - os soluços se intensificaram, e as palavras dela perderam a forma e o sentido.

Adam esticou um dos braços e acariciou os cabelos dela carinhosamente. Depois, olhou diretamente para a câmera.

- Sra. Bannock, quero dizer que sinto muito que isto esteja acontecendo com sua filha. Cayla é uma jovem adorável. É trágico que ela tenha sido envolvida nisto.
Sinto muito mesmo. Queria que houvesse algo que eu pudesse fazer. No entanto, não sou responsável pelos atos destes homens. Eles seguem sua própria lei. A senhora
é a única pessoa que pode colocar um fim neste horror. Faça o que Cayla pediu. Pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora.

Ele se levantou e saiu da frente da câmera. O lugar dele foi tomado por quatro homens mascarados. Tinham colocado as armas de lado. Colocaram Cayla de pé e viraram
o rosto dela para a câmera. Um deles a pegou pelas costas, agarrando um punhado de seus cabelos loiros e a puxou para trás. Um outro mascarado entrou em cena pela
direita, e então extraiu um punhal de cabo de chifre de rinoceronte e lâmina de dez polegadas da cintura. A lâmina era incrustada com dizeres árabes em dourado.
Posicionou a ponta do punhal sob o queixo de Cayla, quase encostando na pele aveludada de sua garganta.

- Não! Por favor! - falou desesperada.

O grupo não se mexeu por um minuto. A seguir, ele desceu a lâmina lentamente até apontar para o seio esquerdo dela, os contornos revelados pelo algodão preto do
vestido. O homem cobriu o seio direito com a mão livre. Tomou-o nas mãos e começou a sacudi-lo quase como se estivesse brincando com ele. Cayla começou a se debater
ainda mais, e os homens que a seguravam começaram a rir sob as máscaras. O barulho era como o de uma hiena gargalhando ao sentir o cheiro de sangue no vento.

O homem de punhal enganchou um dos dedos no colarinho do vestido e o abriu. A seguir, percorreu o espaço entre o tecido preto e a pele de Cayla com a lâmina. Ela
sentiu a frieza do metal e ficou paralisada, olhando para a faca que descia pelos seus seios. O tecido arrebentou e um dos seios saltou para fora. A pele era branquíssima,
mas o mamilo era vermelho como um rubi. O homem embainhou novamente o punhal e alcançou o interior do vestido aberto. Tirou ambos os seios, um em cada mão, e os
apertou com tanta brutalidade que os mamilos delicados se projetaram, e Cayla gritou de dor. Ele soltou os seios e enganchou um dos indicadores no corte feito no
tecido fino e o rasgou até os calcanhares. Ela estava nua sob o vestido. O fotógrafo percorreu o corpo dela lentamente com a câmera, registrando cada detalhe, detendo-se
nos seios e então descendo até os pêlos púbicos dourados e macios.

Cayla permaneceu docilmente imóvel. Não ofereceu mais nenhuma resistência quando os quatro homens que a seguravam a colocaram no chão e a seguraram de pernas abertas
sobre o tapete. Cada um segurava um braço pelos pulsos. Os outros dois prendiam os tornozelos. Afastaram bem as pernas dela. O fotógrafo mudou o foco da lente, passando
para uma imagem de alta definição em close-up dos lábios rosados da genitália. Cayla rolava a cabeça de um lado para o outro.

- Por favor, não faça isto - choramingou. - Por favor...

O homem que estava sobre ela desfez o cinto e deixou as calças largas caírem pelos tornozelos. Olhou para o sexo de Cayla e cuspiu na palma da mão direita. Espalhou
o cuspe sobre a cabeça do pênis para lubrificá-lo. A câmera acompanhou todos os movimentos. O pênis dele endureceu, estendendo-se adiante do emaranhado de pelos
púbicos negros. Era enorme. As veias grossas e azuis se contorciam ao redor da haste como abomináveis ramos de uma videira. Cayla olhou para cima, de olhos arregalados
e muda de pavor. Ele se ajoelhou entre os joelhos dela e se abaixou até Cayla. Ela tentou afastá-lo com chutes, mas o homem segurou as pernas dela abertas. As nádegas
do homem sobre ela eram musculosas e cobertas por uma densa camada de pelos pretos e animalescos. Elas se contraíram e moveram para baixo. Cayla soltou um berro
agudo, e seu corpo inteiro se convulsionou. Enquanto ele se movia em vaivém sobre ela, os outros homens do círculo que observavam colocaram as armas de lado e se
adiantaram formando uma fila, abaixaram as calças e começaram a se masturbar, preparando-se para a sua vez.

Quando um terminava e se levantava, outro o substituía imediatamente. Após o quarto estupro, Cayla permaneceu imóvel, parou de gritar e de se debater. Após o sexto,
ela começou a sangrar, sangrar muito, o vermelho vivo se destacando contra as coxas pálidas. Quando o décimo homem se levantou sorrindo e subindo as calças, a câmera
se afastou para focalizar no rosto de Adam, que assistia a tudo impassível. Ele se virou para a lente.

- Sinto muito que a senhora tivesse que testemunhar isto, sra. Bannock - disse suavemente. - Não acho que sua filha vá aguentar muito mais. A senhora e eu podemos
dar um fim definitivo a isto tudo. Tudo o que tem a fazer é realizar uma transferência bancária para Hong Kong na quantia de dez bilhões de dólares norte-americanos.
A senhora sabe como entrar em contato com as pessoas que estão fazendo isto com Cayla. Receberá os dados bancários assim que avisá-los que está pronta para enviar
o dinheiro.


Durante o dia, Hazel carregava o BlackBerry sob a blusa, pendurado em uma corda ao redor do pescoço. Tinha prendido o aparelho entre os seios com fita adesiva para,
mesmo quando estivesse correndo, saltando de paraquedas e treinando com os homens, poder atender antes do segundo toque. À noite, mantinha-o debaixo do travesseiro
e frequentemente acordava com ele na mão. Era o mais perto que conseguia chegar de Cayla.
Quando ele finalmente tocou, estava sentada à mesa com Hector Cross, na reunião diária que fazia com seus agentes seniores, na sala de situação. As obrigações da
Cross Bow em relação à segurança tinham de continuar a ser cumpridas com toda eficiência. Hector estava bastante consciente de que o inimigo poderia se aproveitar
do caos causado pelo sequestro de Cayla e, a qualquer hora, lançar outro ataque surpresa. A reunião foi encerrada, e Hector olhou ao redor da mesa.

- Alguma pergunta? Ótimo! Não vou mais segurá-los... - a frase foi interrompida pelo toque do BlackBerry sob a camisa safari cáqui de Hazel.

- Meu Deus! - murmurou e, abrindo rapidamente os botões da blusa, retirou o aparelho.

- Deixem-nos a sós! - Hector ordenou de supetão aos homens. - Saiam! Agora!

Eles obedeceram imediatamente, e Paddy O'Quinn os conduziu pela porta, fechando-a atrás de si. Hazel já estava com o telefone ao ouvido e gritando no bocal:

- Alô? Quem é? Fale comigo. Por favor, fale comigo! - Hector alcançou os ombros dela e os sacudiu de leve.

- Hazel, não é uma chamada telefônica. Ou é uma mensagem de texto, ou um arquivo.

Por causa do nervosismo, ela não tinha reconhecido a diferença dos toques. Com uma pressa desesperada, localizou o conteúdo da mensagem.

- Você está certo - falou de súbito. - É um arquivo. Parece ser uma foto ou um vídeo. Sim, é um vídeo! Longo... doze megabytes.

- Espere! Não abra ainda! - Hector tentou detê-la. Teve um pressentimento do mal que avizinhava. Tentou prepará-la. Mas ela não pareceu escutar. Já estava passando
o vídeo na pequena tela do aparelho.

- É a Cayla! - exclamou com alegria. - Ela ainda está viva. Graças a Deus! Venha ver, Cross!

Ele deu a volta ao redor da mesa e ficou do lado dela.

- Coitada da minha bebé, está com uma aparência tão bonita, mas tão trágica.

Na tela, Cayla caminhava em direção aos homens sentados no tapete no círculo de árabes mascarados e armados. O rosto do homem também estava coberto com um xale de
cabeça. Mas a câmera focalizou nele até que apenas a cabeça e os ombros ficassem enquadrados. O homem removeu o xale que escondia o rosto.

- Quem é esse homem, Cross? Você o conhece? - Hazel perguntou com nervosismo.

- Não, nunca o vi antes. Mas a partir de agora jamais irei esquecê-lo - Hector disse em voz baixa. Adam fez seu breve pronunciamento, e ambos escutaram em silêncio,
olhando para a tela fixamente como se estivessem diante de um réptil venenoso.

- ... pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora - Adam finalizou em voz baixa.

- Pagarei - Hazel suspirou. - Pagarei o que for para tê-la de volta.

- Sinto muito, sra. Bannock - o tom de Hector foi gentil -, mas ele está mentindo para a senhora. Tudo o que ele diz é mentira. Trata-se da Besta, e a Besta é mestre
em mentir.

A imagem na tela mudou, e o árabe com a faca avançou sobre Cayla.

- Ele não vai feri-la. Não, ele não pode feri-la. Pagarei o que for. Qualquer coisa para não machucarem mais a minha bebé - o tom de voz dela subiu, histérico.

- Seja corajosa, pela Cayla, seja corajosa.

- Com certeza esses indivíduos são seres humanos, não animais - ela disse. - Não vão machucar uma menina inocente que não lhes fez mal algum.

- Não, eles não são animais. Os animais mais selvagens são nobres e bons em comparação a essas criaturas.

O árabe na tela ficou de pé diante de Cayla e expôs o sexo grotesco. Hazel soluçou e segurou uma das mãos de Hector. Depois, ficou em silêncio enquanto o cenário
de horror começou a se desdobrar. Mas ela tremia como se estivesse ardendo de febre.

- Desligue! - Hector ordenou, mas ela balançou a cabeça e apertou o braço de Hector como se tivesse garras de aço.

Ele mal conseguia acreditar na força. Não se esforçou para se desvencilhar da mão dela; embora a dor tivesse enchido seus olhos d'água, não podia negar qualquer
tipo de conforto que pudesse oferecer. Os múltiplos estupros de Cayla pareceram, para ambos, durar uma eternidade. Hector sentiu a raiva subir pelo sangue como nunca
havia sentido. Quando a imagem de Adam surgiu novamente na tela, Hector encontrou um foco para seu ódio. Encarou o rosto como se quisesse esculpir os traços indelevelmente
na memória. Finalmente o terrível vídeo chegou ao fim, e a tela ficou em branco. Nenhum dos dois se mexeu ou falou por um longo tempo. Continuaram a encarar a tela
vazia.

- Eu pagaria se pudesse - Hazel suspirou.

- A senhora não possui a quantia que eles estão exigindo. Dez bilhões de dólares - disse Hector, mais em tom de declaração do que de pergunta.

Ela balançou a cabeça e soltou a mão dele.

- A Bannock não me pertence. Pertence aos acionistas. Setenta e três por cento do capital social pertence ao fundo do Henry. Eu possuo uma procuração que me confere
poder de voto em relação às ações, mas não posso me livrar delas. Tenho apenas dois e meio por cento do capital integralizado das ações da empresa registrado em
meu nome. Se vender essas ações e o restante do meu patrimônio, é capaz que consiga arrecadar cinco bilhões, ou talvez cinco bilhões e meio. Talvez possa negociar
com eles.

- Nem pense nisso! - Hector disse. - Mesmo que tivesse vinte bilhões, não bastaria. Não é isso que eles querem da senhora.

- O que mais podemos fazer?

- Precisamos detê-los até Uthmann e Tariq voltarem. Diga-lhes que está levantando a quantia, mas que vai demorar. Diga qualquer coisa. Revide as mentiras deles com
as suas.

- E então o quê?

- Não sei - admitiu. - Nesta altura, é a única coisa que sei com certeza.

Hazel se virou na direção dele pela primeira vez desde que o vídeo começara. Era como se nunca o tivesse visto. O rosto dele parecia esculpido a partir de um mármore
pálido e indestrutível. Havia sido expurgado de qualquer emoção humana que não fosse ódio. Os olhos verdes faiscavam. O rosto era como a máscara de Nêmesis.

- Do que você tem certeza?

- De que vou tirar aquela menina dali, e vou matar qualquer um que tentar me deter.

Sentiu uma estranha emoção crescer dentro dela, como uma maré em ascensão. Ele era um homem, o primeiro que conhecera desde que Henry Bannock fora tirado dela. É
por ele que eu estava esperando. Eu o quero, pensou, preciso dele. Tanto eu como a Cayla precisamos dele. Meu Deus, como precisamos.


- Finalmente recebemos um pedido de pagamento de resgate - Hector disse aos homens reunidos na sala de comunicações. Observaram o rosto dele com atenção.

- Quanto? - perguntou Paddy O'Quinn em voz baixa.

- Não importa - Hector respondeu. - Não podemos pagar. Não vamos pagar.

Paddy assentiu.

- Vocês seriam loucos de pedra se pagassem. Mas o que vão fazer?

- Extração a quente - Hector respondeu. - Vamos tirar a menina de lá.

- Você sabe onde ela está? - todos se aproximaram avidamente, como cães de caça ao farejarem o cheiro da presa.

- Não! - recostaram-se nos assentos e não conseguiram disfarçar a decepção. Paddy falou em nome de todos.

- Então parece que temos um pequeno problema.

- Tariq e Uthmann vão voltar logo. Vão ter descoberto onde eles a estão mantendo.

- Tem certeza disso? - Paddy perguntou.

- Alguma vez eles fracassaram?

Ninguém respondeu por alguns momentos. Paddy comentou a seguir:

- Tem sempre uma primeira vez.

- Escute, Zé Pessimista, digo a você que a probabilidade é de dez para um se você apostar cem libras. Aguente ou fique calado.

- Onde eu vou arranjar essa quantia com o que você me paga?

- Certo! Quando Tariq e Uthmann voltarem, temos de estar preparados para partir imediatamente. Onde quer que formos, há apenas um modo de entrar. Saltamos à noite
de uma grande altitude.

Eles assentiram concordando.

- Não muitos, um grupo de dez homens. Todos os nossos falantes de árabe que puderem se passar por nativos.

- Em vez de chegar de pará-quedas, por que não usar o helicóptero da empresa? - Hazel perguntou.

- Eles nos ouviriam chegar. Uma aterrissagem noturna, ainda mais em um helicóptero? Não, obrigado - Hector recusou a oferta dela bruscamente, mas ela não demonstrou
estar ressentida.

- Ok, podem usar o meu jato.

- Nunca saltei de um Gulfstream antes - o olhar de Hector percorreu a sala. - Alguém já fez isso?

Eles balançaram a cabeça, e ele olhou novamente para Hazel.

- Não acho que seja uma boa ideia. Existe o problema da pressurização da fuselagem e da localização da porta, em frente à asa. A asa pode decapitar você quando saltar.
E, também, a velocidade do avião... Não, acho que teremos de escolher algo menos exótico.

- Que tal o Bernie Vosloo? - Paddy sugeriu.

- Estava pensando justamente nisso - Hector assentiu e se virou para Hazel. - Ele e a mulher operam uma aeronave de transporte, um Hércules C-130 antigo, levando
carregamentos pesados pela África e pelo o Oriente Médio. Não são frescos quanto ao que transportam, e sabem como manter o bico bem fechado. Já utilizei os serviços
deles várias vezes. O Hércules tem uma fuselagem parcialmente pressurizada e pode chegar a uma altitude de 6.400 metros se levar um chute no traseiro. A essa altura,
o barulho para quem está embaixo não será muito maior do que o de um gato mijando num pedaço de veludo.

Hazel nunca tinha ouvido a expressão antes e tentou manter o rosto elaboradamente sério enquanto tentava reprimir um sorriso, mas os olhos dela cintilaram como luzes
de Natal. Olhos absolutamente maravilhosos, pensou Hector, mas me distraem. Ele desviou o olhar dela para os homens.

- No entanto, não queremos saltar de 6.400 metros, portanto o Bernie vai acelerar bem menos para manter o nível de ruído baixo, e poderemos descer até três mil metros.
Nesse nível, ele pode despressurizar a cabine, e nós podemos pular. Como sempre, nos manteremos próximos durante a queda para atingirmos o chão em conjunto, e vamos
estar completamente equipados para lidar com um comitê hostil de boas-vindas.

- O que vem depois? - Dave Imbiss perguntou.

- Não se preocupe com isso, David, meu filho. Você não vai estar presente, nem você nem seu rostinho rosado de bebÉ - Hector respondeu e prosseguiu. - Essa é a parte
fácil. A difícil será a viagem de volta. Como sempre, há três possíveis saídas: terra, mar e ar. A passagem de primeira classe será para o helicóptero da empresa
- acenou com a cabeça para Hans Lategan, que estava sentado na fileira do fundo. - Hans estará à espera no helicóptero, na fronteira com o país civilizado mais próximo,
preparado para captar o nosso sinal de chamada e ir nos buscar. Isso deve ser suficiente - fez uma pausa -, mas todos estamos cientes do que pode acontecer aos planos
dos ratos e dos homens, portanto, vamos cobrir as outras duas rotas de saída. Tenho certeza de que eles estão mantendo a srta. Bannock prisioneira ou na Puntlândia
ou no Iêmen. Os sujeitos são piratas, portanto, nunca ficam muito longe do litoral.

Hector projetou o mapa no telão da parede e moveu o cursor sobre a área para demonstrar o que estava dizendo.

- Independente do que aconteça, Ronnie Wells vai estar nos esperando em seu torpedeiro na zona marítima - olhou para Ronnie na fileira do fundo, sentado ao lado
de Hans. - Que velocidade pode alcançar naquela banheira velha?

- Com meus novos tanques auxiliares no convés, pode chegar a mais de mil milhas náuticas - Ronnie respondeu. - E agradeço se você lembrar que ela não é uma "banheira
velha". Se eu acelerar, pode chegar aos quarenta nós.

- Desculpe pela escolha infeliz de palavras, Ronnie - disse Hector com um sorriso. - Portanto, o Ronnie vai estar esperando para proporcionar a todos vocês que conseguirem
chegar até a praia um cruzeiro de lazer pelo Mar Vermelho no caminho para casa.

- E se nem Hans nem Ronnie conseguirem cumprir o combinado, o que acontece, então?

Ah! É aí que você entra, Paddy. Você vai estar esperando na primeira fronteira em terra firme com uma coluna de caminhões. Se o alvo for o Iêmen, você ficará ou
na fronteira da Arábia Saudita, ou do Omã. Se o alvo for a Puntlândia, ficará na Etiópia esperando para ir nos buscar. Bernie Vosloo e a mulher podem levar você
e os caminhões até o local de avião, assim que soubermos aonde vamos. A propósito: não se esqueça de jeito nenhum de levar o médico junto. Com certeza alguém sairá
ferido se formos pela rota etíope - Hector olhou para o círculo de rostos ao redor. - Então, todo mundo tem trabalho a fazer. Quero estar pronto para partir dentro
de 24 horas assim que tomarmos conhecimento do alvo, isso pode acontecer a qualquer hora. Vamos nos mexer!

Assim que os demais saíram da sala, Hector ligou para Bernie Vosloo do telefone via satélite. Hazel estava escutando na extensão.

- Bernie, é Hector Cross. Onde você e a sua encantadora patroa estão?

- Oi, Heck. Estou em Nairóbi, mas não por muito tempo. Ainda está vivo? Aqueles caras bronzeados são ruins de alvo, não são?

- A pontaria deles é boa, eu é que aprendi a desviar. Escute, Bernie, tenho um trabalho para você.

Bernie deu uma risadinha.

- Você e o resto da África, Heck. Nella e eu temos pilotado sem parar, dia e noite. Amanhã nos mandamos para a República Democrática do Congo, aquela fossa de país
de nome irônico.

- Venha para Abu Zara. O clima e a cerveja são excelentes aqui.

- Desculpe, Heck. Tenho um contrato a cumprir. Um cliente importante. Não posso deixá-lo na mão.

- Qual é o valor do contrato?

- Cinquenta mil - Hector cobriu o bocal com uma das mãos e olhou para Hazel no outro lado.

- Qual é o meu limite? - suspirou.

- Com quem você está falando? - Bernie indagou com rispidez.

- Com a adorável senhora para quem trabalho. Aguarde um pouco, Bernie.

- O necessário para conseguir contratá-lo - Hazel suspirou em resposta e escreveu "um milhão de dólares" no bloco de anotações à sua frente, virando-o na direção
dele para que pudesse ver.

- Isso é loucura! - Hector balançou a cabeça e falou no bocal - Pagamos 250 mil dólares.

Bernie permaneceu calado por alguns momentos e disse a seguir:

- Adoraria ajudar. Desculpe, Heck. Mas é a minha reputação em jogo.

- Nella está aí?

- Sim, mas...

- Mas nada! Coloque-a ao telefone - o forte sotaque africaans de Nella surgiu na linha.

- Ja, Hector Cross. Qual é a enrolação desta vez, cara?

- Só liguei para dizer que amo você.

- Beije a minha bunda, Cross!

- Nada me daria mais prazer, Nella. Mas você tem de se divorciar do cretino do seu marido primeiro. Sabe o que ele acabou de fazer? Recusou a minha oferta de meio
milhão por dez dias de trabalho.

- Quanto? - Nella perguntou pensativa.

- Meio milhão.

- De dólares? Não de dinheiro africano do Banco Imobiliário?

- Dólares - confirmou -, adoráveis verdinhas norte-americanas.

- Onde você está?

- Em Sidi el Razig, Abu Zara.

- Chegaremos depois de amanhã para o café da manhã. E amo você também, Hector Cross.


Hector, Hazel e quatro agentes da Cross Bow estavam esperando na pista quando o monstruoso quadrimotor de transporte deu a volta e iniciou o procedimento de aproximação,
descendo num ângulo bastante inclinado.

- Nella está operando os controles - Hector disse com convicção.

- Como você sabe? - indagou Hazel.

- Bernie pilota como uma velha donzela. Nella é a personificação da cowgirl de rodeio de Germiston, a cidade que teria de ser entubada se alguém quisesse causar
um enema no mundo.

- Não seja grosseiro. Meu avô por parte de pai nasceu em Germiston.

- Aposto que, em outros aspectos, ele era um sujeito esplêndido.

O Hércules C-130 tocou o solo, foi desacelerando pela pista e manobrou para o lado para estacionar próximo de onde eles estavam, as hélices contra-rotativas espalhando
uma nuvem de areia pinicante sobre eles. Nella desligou os motores e estendeu a rampa pela porta traseira da fuselagem. Ela e Bernie desceram da aeronave. Nella
era uma loira robusta de rostinho de bebé. Vestia um macacão de camuflagem. As mangas haviam sido cortadas, o que revelava uma tatuagem de um anjo em voo no carnudo
braço direito. Era mais alta do que o marido.

- Ok, Heck, o que quer que a gente faça por meio milhão? Se conheço bem você, aposto que não vai ser moleza - disse ao trocarem um aperto de mão.

- Como sempre, acertou em cheio.

- Apresente-nos para sua namorada - Nella lançou um olhar penetrante sobre Hazel, tentando não demonstrar ciúmes.

- Quanto ao nosso relacionamento, Nella, meu amor, acho que você cometeu um pequeno engano. Esta é a sra. Bannock, minha chefe e sua. Portanto, um pouco de respeito
é recomendável. Venham, vamos até o terminal, onde podemos conversar.

Eles foram amontoados em duas caminhonetes Humvee. Sentaram-se à mesa comprida da sala de situação, e Hector explicou o problema aos Vosloos. Quando terminou, ficaram
todos em silêncio por alguns momentos, e então Nella olhou para Hazel.

- Também tenho uma filha. Graças a Deus, arrumou um homem bom na Austrália. Mas sei como deve estar se sentindo - disse, esticando um dos braços até Hazel no outro
lado da mesa e cobrindo a mão sedosa de Hazel com sua enorme pata encardida de óleo de motor e sujeira. As unhas eram curtas e quebradas.

- Levaria a senhora de graça se me pedisse, sra. Bannock.

- Obrigada, Nella. Você é uma boa pessoa. Dá para ver.

- Pelo amor de Deus, mulheres. Chega. Vão me levar às lágrimas se não pararem - Hector interrompeu. - Há apenas um problema. Não temos certeza de onde ou quando
estamos indo. Mas será para perto e logo.

- Logo quando? - Bernie Vosloo perguntou. - Não podemos passar semanas aqui esperando. Cada dia que passamos no chão nos custa dinheiro.

- Controle essa boca, Bernie Vosloo! - Nella sussurrou para ele. - Não ouviu eu dar a minha palavra para a senhora?

- Ele está certo! - disse Hazel. - É claro que pagarei pelo tempo parado. Vinte mil pelo primeiro dia, acrescidos de mais dez mil por cada dia que permanecerem em
terra.

- A senhora não precisa fazer, isso sra. Bannock - Nella parecia constrangida.

- Sim, preciso - Hazel replicou. - Agora vamos ouvir o que o sr. Cross tem a dizer.


Foram necessários quatro dias, mas estavam todos preparados. Ronnie Wells e três de seus homens desceram no torpedeiro até o Golfo e ao redor de Ras el Mandeb. Estava
ancorado em uma angra deserta na costa saudita, bem ao norte da fronteira com o Iêmen e do outro lado do estreito da Puntlândia. Ronnie usou as latas que carregava
no convés para reabastecer os tanques de combustível e estava em total e constante contato com Sidi el Razig.

O Hércules permaneceu na borda da pista atrás do minúsculo terminal do aeroporto. A aeronave continha três das caminhonetes GM de longa distância da Cross Bow fixados
no porão e um pequeno tanque de duas rodas de 750 galões à gasolina, que poderia ser acoplado à traseira de um dos outros veículos. As caminhonetes estavam lotadas
de equipamento e cada uma carregava um par de metralhadoras pesadas Browning, calibre .50, escondidas sob o oleado. Podiam ser montadas em alguns minutos, e seu
poder de fogo era devastador.

Hector havia ensaiado o procedimento de queda com Bernie e Nella. Assim que obtivessem o alvo, decolariam ao anoitecer e o sobrevoariam. Bernie e Nella tinham realizado
dezenas de saltos de paraquedas. Eram peritos. Assim que o grupo de Hector saltasse, o Hércules voaria até o aeródromo da fronteira em questão. Chegando lá, pousaria
e Paddy e Dave descarregariam as caminhonetes e se colocariam em posição de escuta e espera o mais perto da base do inimigo que fosse seguro e viável. Quando recebessem
o chamado de Hector pelo rádio, iriam em disparada até a fronteira em direção ao encontro combinado.

Esses dois veículos eram os menos desejáveis para a retirada. Hector estava contando fortemente com Hans Lategan e o grande helicóptero russo MIL-26 da Bannock Oil
para uma retirada organizada e rápida. A pintura vermelha e branca, nas cores da Bannock Oil, já havia recebido uma camada de spray nas cores verde e marrom de camuflagem.
Ficaria de prontidão na fronteira mais próxima, completamente abastecido.

Hazel tinha enviado uma resposta ao pedido de resgate, garantindo à Besta que estava fazendo tudo o que podia para arrecadar a quantia exigida, mas declarando que,
levando em conta o valor em questão, iria levar tempo. Esperava ter a quantia total pronta para ser enviada, de acordo com instruções, dentro de vinte dias. Não
recebeu um retorno, o que a deixava incessantemente aflita. Não restava nada a fazer a não ser esperar, mas Hazel Bannock não era boa de espera. Após o final da
conferência diária com o seu pessoal em Houston e de falar com o coronel Roberts, sobravam ainda dezoito horas a serem preenchidas.

Todas as manhãs Hector a levava para verificarem a chegada do voo local de passageiros de Ash-Alman, a capital de Abu Zara. Escaneavam os rostos de todos que desembarcavam,
mas Uthmann e Tariq nunca estavam entre eles. Até mesmo alguém como Hazel tinha um limite de resistência atlética, portanto eles não podiam passar mais do que sete
ou oito horas diárias correndo pelas dunas, ou praticando mergulho livre no paraíso de corais da enseada. Felizmente, não era difícil falar com ela agora que havia
começado a confiar um pouco em Hector e a baixar a guarda alguns centímetros. Quando discutiam política, ele começou a detectar uma tendência para a direita em relação
à sua instância original. No entanto, ela se opunha veementemente à pena de morte e acreditava na santidade da vida humana.

- Você está dizendo que não existe um único troglodita horrível neste mundo, não importa o quanto ele seja ruim, que não mereça morrer? - Hector indagou.

- A decisão permanece nas mãos de Deus. Não conosco.

- O velho lá em cima suspirou vezes suficientes nos meus ouvidos quando tenho um troglodita na minha frente, "destrua-o, Hector, meu camarada!". Quando o Senhor
chama, Hector Cross obedece.

- Você é totalmente pagão - ela mal conseguia esconder o sorriso.

Ele descobriu que ela era religiosa à moda antiga, que acreditava sublimemente na onipresença e onipotência de Jesus Cristo.

- Então, você acredita que, todas as vezes que ajoelha para rezar, J.C. está sintonizado na frequência do seu chamado? - ele perguntou.

- Espere para ver, Cross. É tudo o que tem a fazer.

- Dá para ver que a senhora tem batido papo com ele recentemente - ele acusou, e ela sorriu como a esfinge.

Essas discussões, e outras semelhantes, eram boas para passar o tempo. E, certo dia, após o jantar, ela reparou no jogo de xadrez barato em uma prateleira atrás
do bar do refeitório, e o desafiou para uma partida. Ele não jogava desde que tinha terminado a faculdade. Sentaram-se frente a frente com o tabuleiro no meio, e
ele logo descobriu que ela não se importava muito com a defesa, e que confiava em atacar agressivamente com a rainha. Uma vez que suas torres unissem forças, era
quase impossível contê-la. Porém, duas vezes ele conseguiu encurralar o rei e a rainha de Hazel com o cavalo. Após uma série de partidas disputadas, acabaram praticamente
em pé de igualdade.

E então, após o quinto dia desde a chegada de Bernie e Nella a Sidi el Razig, Hector disse:

- Sra. Bannock, vou levá-la para jantar hoje à noite, quer a senhora goste ou não.

- Continue assim e talvez consiga me convencer - ela disse. - Devo me vestir para a ocasião?

- Para mim, a senhora está bem como está.

Ele a levou de carro até uma faixa praiana cinco quilômetros adiante na costa. Ela ficou observando enquanto ele montava a churrasqueira.

- Ok, você sabe fazer fogo como um escoteiro mediano, mas qual é o cardápio?

- Venha, temos de ir às compras.

Restava apenas uma hora até o sol se pôr, mas eles nadaram por algumas centenas de metros até o recife de corais secreto de Hector. Após três mergulhos, ele conseguiu
pegar dois bodiões vermelhos como morangos, de quase três quilos cada, e duas lagostas grandes. Ela se sentou em uma toalha de piquenique com as pernas encolhidas
sob o corpo e uma taça de Burgundy em punho, enquanto assistia a Hector cozinhar.

- O jantar está servido - anunciou finalmente, e eles comeram com as mãos, arrancando a carne branca e suculenta da espinha do bodião e chupando a carne das pernas
encapadas das lagostas. Jogaram as sobras no fogo e observaram enquanto queimavam até esturricar. Depois, Hazel se levantou.

- Aonde você vai? - ele perguntou em um tom preguiçoso.

- Nadar - ela respondeu. - Pode vir junto se tiver vontade.

Ela levou as mãos para trás e abriu o fecho da parte de cima do biquíni. A seguir, colocou os polegares dentro do elástico da calcinha e se desvencilhou dela, que
caiu pelos tornozelos. Ela chutou a bela peça para o ar e ficou ali por um instante, de frente para ele. Ele ficou sem ar, chocado de prazer. O corpo dela era o
de uma mulher no auge absoluto - tonificado e com os seios firmes, o abdômen liso e rígido, os quadris se projetando com orgulho da linhas perfeitas da cintura,
como um vaso etrusco. Era uma mulher natural, não se depilava como era a moda hoje em dia, no estilo vedete pornô. Ela riu da cara dele, de um jeito provocante e
malicioso, e depois virou de costas e correu pela praia para mergulhar em uma pequena onda e nadar até águas mais profundas com braçadas poderosas. Lá, boiou de
costas e, ainda rindo, observou-o pulando em um pé só na areia antes de se desvencilhar da sunga.

- Vou pegar você, sua raposa! - gritou para esquentar o clima e saiu correndo pela praia.

Ela se encolheu de medo, deliciada, fazendo a água espumar ao nadar para longe dele. Hector a alcançou, e ela virou o rosto para ele, que procurou a boca de Hazel
com a própria. Ela colocou as mãos nos ombros dele de maneira submissa, até que os lábios dele estivessem a poucos centímetros. Então, Hazel se ergueu bem acima
dele, fazendo-o afundar. Quando ele emergiu cuspindo água, ela estava dez metros adiante. Hector disparou atrás dela, mas ao esticar o braço para agarrá-la, ela
suspendeu ambas as pernas no ar, tombou o corpo em L e mergulhou fundo nas águas escuras. Ele a perdeu de vista e boiou, virando-se devagar para vê-la emergir novamente.
Ela surgiu mais próxima à praia, e ele foi nadando na mesma direção, girando os braços e batendo os pés, deixando uma trilha de espuma para trás. Ela mergulhou de
novo, como um corvo-marinho pescador. Estava, vagarosa e desonestamente, atraindo-o de volta ao raso.

De repente, Hazel se levantou, com a água pela cintura. Ela esperou por ele e então correu ao seu encontro. Eles se encaixaram, respiração e ventre. Ela o sentiu
contra o corpo, rígido e enorme, tão pronto quanto ela. Ela lançou os braços ao redor do pescoço de Hector e prendeu os quadris dele com ambas as pernas. Foram necessários
alguns momentos de manobras frenéticas de ambas as partes antes que eles pudessem se alinhar perfeitamente, e então ele deslizou para dentro dela. Ela teve a impressão
de que ele chegaria até o coração.

- Meu Deus. Era o que eu estava esperando, por tanto tempo - ela respirou e se entregou a ele sem perguntas nem reservas.


Passava da meia-noite quando eles retornaram aos edifícios doterminal. Ele a acompanhou até o quarto e teria se despedido na porta com apenas um beijo demorado.

- Não seja bobo - ela disse, mantendo a porta aberta. - Entre.

- O que as pessoas vão pensar?

- Usando a sua terminologia erudita, eu não estou nem aí! - Hazel respondeu.

- Que grande ideia! Vamos lá - ele riu e a seguiu pela porta, fechando-a atrás de si.

Eles tomaram banho juntos, sem inibições, deliciando-se com o corpo um do outro enquanto enxaguavam a areia da praia e o sal. A seguir, foram para a cama.

- Hemingway chamava a cama dele de pátria - Hector comentou quando os dois deslizaram para baixo dos lençóis.

- O velho Ernie tem o meu voto - ela riu ao chegar pelo outro lado, encontrando-o no meio da cama.

Fizeram amor com alegria e carinho, mas a sombra da tragédia continuava a tingir a felicidade dos dois. Quando se cansaram momentaneamente, ela deitou nos braços
dele com o rosto encostado no peito nu e chorou baixo, mas com amargura. Ele acariciou o cabelo dela, compartilhando a agonia.

- Eu vou junto quando você for buscar a Cayla - ela disse. - Não consigo ficar aqui sozinha. Só aguentei até agora por sua causa. Sou tão durona quanto qualquer
um dos seus homens. Posso cuidar de mim durante uma crise, você sabe disso. Você tem de me levar junto.

- Você sabia que tem os olhos mais azuis e bonitos do mundo? - ele disse.

Ela se sentou e olhou para ele furiosa.

- Você está fazendo suas piadinhas idiotas numa hora destas?

- Não, minha querida. Estou dizendo que você não pode vir comigo.

Ela balançou a cabeça sem compreender, e ele prosseguiu:

- É possível que as coisas não corram conforme o planejado. Podemos ficar encurralados e ter de nos misturar à população local e cavar o caminho da saída. Os árabes
chamam olhos como os seus de "olhos do demônio". O primeiro inimigo que olhar para o seu rosto saberá o que você é. Se eu levá-la comigo, isso diminui as chances
de um resgate seguro de Cayla pela metade.

Hazel olhou fixamente para ele por um longo tempo, em seguida, abaixou os ombros e escondeu o rosto no peito dele novamente.

- Esse é o único motivo que me faria ficar - ela suspirou. - Não faria nada que reduzisse as chances de resgatá-la. Você vai tirá-la de lá, Hector? Vai trazê-la
de volta para mim?

- Sim, vou.

- E você? Vai voltar para mim? Acabei de encontrá-lo. Não posso perder você agora.

- Eu vou voltar, prometo, com Cayla ao meu lado.

- E eu acredito em você - ela disse.

Ela permaneceu agarrada a ele. Hector mal podia ouvir a respiração dela. Tomou cuidado para não se mexer e incomodá-la. Ela acordou assim que a luz da aurora se
infiltrou pelas cortinas.

- Essa foi a primeira noite em que dormi direto desde que Cayla... - ela não terminou a frase. - Estou morrendo de fome. Vamos tomar o café da manhã.

A grande Nella chegou ao refeitório antes deles, e tinha uma enorme travessa com ovos mexidos, bacon e linguiça diante dela. Ela ergueu o olhar até Hazel, e um flash
de entendimento intuitivo passou entre as duas. Nella baixou os olhos até o prato e sorriu.

- Mazel tov! - ela disse aos ovos, e Hazel corou.

Hector jamais teria acreditado que ela fosse capaz de tal coisa, e o fenômeno o deixou espantado - para ele, era algo mais encantador do que o pôr do sol. Após comerem,
ele levou Hazel até o Humvee no lado de fora. Ela se sentou ao lado dele no banco da frente, e Hector encostava na perna dela todas vezes que trocava a marcha, o
que a fazia sorrir modestamente. Ele estacionou o Humvee à sombra sob a asa do Hércules, pois mesmo a essa hora o sol já estava desconfortavelmente quente. Agora
podiam ficar de mãos dadas. O Fokker F-27 Friendship estava apenas meia hora atrasado.

- Em termos de Abu Zara Airways, está quase adiantado - Hector disse a ela enquanto observavam a aeronave taxiar em frente ao edifício do terminal e desligar os
motores. Os cerca de vinte passageiros começaram a desembarcar, e Hector os observou sem grandes expectativas. Eram quase todos árabes em trajes tradicionais, carregando
seus pertences em trouxas e pacotes. De repente, Hector se contraiu e apertou a mão dela com força.

- Filhos da mãe! São eles! - praguejou em voz baixa.

- Onde? - Hazel se endireitou no assento. - Para mim, parecem todos iguais.

- Os dois últimos. Posso reconhecê-los a um quilômetro de distância só pelo andar.

Deu uma buzinada curta e ligou a ignição do Humvee. Os dois árabes olharam para eles, caminhando em sua direção. Subiram no banco de trás.

- Que a paz esteja com vocês! - Hector os saudou.

- Em paz, você esteja - responderam em uníssono.

Hector dirigiu por um quilômetro e meio ao longo da pista acima da praia antes de estacionar.

Hazel se virou no assento para olhar para os dois homens na parte de trás.

- Isso está me enlouquecendo! - disse de supetão. - Eu preciso saber! Descobriram onde minha filha está, Uthmann?

- Sim, sra. Bannock. Descobrimos. Eu estava hospedado na casa do meu irmão Ali em Bagdá. Ele me pareceu diferente. Acredita que o único caminho a ser seguido pela
nossa nação é a rota da Jihad. Ele é um combatente mujahid e está fortemente aliado à Al-Qaeda. Sabe que não concordo com o ponto de vista dele, mas somos irmãos
e unidos pelo sangue. Jamais revelaria qualquer coisa relativa às atividades dele na jihad, mas após essas últimas semanas que passei na casa do meu irmão, o comportamento
dele se tornou mais relaxado e menos sigiloso. Ele normalmente usa um celular e nunca faz telefonemas de negócios de casa. Há alguns dias, cometeu o erro de pensar
que eu tinha saído com a mulher dele para vistar uns amigos, mas eu estava no andar de cima da casa quando Ali usou a linha fixa para falar com um dos seus colegas
na Al Qaeda. Escutei a conversa pela extensão. Estavam discutindo a captura e o aprisionamento da sua filha, e um deles mencionou que ela tinha sido levada por membros
do clã do xeique Khan Tippoo Tip.

- Tippoo Tip! É o mesmo nome do camareiro que estava a bordo do Golfinho. Mas quem é esse xeique? - Hazel indagou, e Uthmann respondeu.

- É um senhor da guerra, e o chefe de um dos clãs mais poderosos da Puntlândia.

Hector tocou os ombros dele.

- Como sempre, você provou seu valor, meu velho amigo - disse.

- Espere! Tenho mais coisas para contar - Uthmann balançou a cabeça demonstrando tristeza. - Você se lembra dos homens que matou a tiros em Bagdá há muitos anos?

Hector assentiu.

- Os três jihadistas que detonaram a bomba na beira da estrada - olhou de lado para Tariq. - É claro que Tariq e eu nos lembramos deles.

- Sabe como se chamavam?

- Não - Hector admitiu -, aparentemente, estavam todos usando codinomes. Nem mesmo o Departamento de Inteligência Militar conseguiu identificá-los. O que você descobriu,
Uthmann?

- O homem que você matou se chamava Saladin Gamel Tippoo Tip. Era filho do xeique Tippoo Tip e pai de Adam Tippoo Tip. O xeique declarou uma rixa de sangue a você
- Hector olhou para ele sem dizer nada, e Uthmann prosseguiu. - O dhow que você e Ronnie Wells destruíram tinha cinco homens a bordo. Haviam sido enviados pelo xeique
Khan para se vingar da morte do filho mais velho. Entre os que morreram, estava Gafour Tippoo Tip, o quinto filho do xeique. A dívida de sangue foi então dobrada.
O xeique enviou um terceiro filho para encontrá-lo e vingar os irmãos...

- O que se chamava Anwar! - Hector exclamou. - Meu Deus! Jamais irei esquecê-lo. Em seu último suspiro de vida, ele zombou de mim, dizendo: "O meu nome é Anwar.
Lembre disso, Cross, seu grande porco. A dívida não foi sanada. A Disputa Sangrenta continua. Outros virão".

Tariq assentiu.

- É exatamente o que está dizendo, Hector.

- Onde podemos encontrar essa criatura chamada xeique Tippoo Tip? - Hector perguntou.

Tariq respondeu sem hesitar:

- Eu o conheço. A fortaleza dele fica na Puntlândia.

- Puntlândia! Esse nome vive surgindo - Hazel interveio.

- É uma província rebelde da Somália. A Puntlândia é território do Tariq - Hector explicou, olhando novamente para Tariq. - É o que estávamos esperando. O que tem
a nos dizer sobre esse troglodita?

- Apenas o que todo mundo na Puntlândia sabe: que a fortaleza de Tippoo Tip se situa na região noroeste do país, em um lugar chamado "Oásis do Milagre". Fica no
sul da principal rodovia da província, perto do pequeno vilarejo de Ameera.

- Você conhece a área? - Hector indagou, mas Tariq balançou a cabeça.

Hector o conhecia tão bem que não teve dúvidas de que ele estava mentindo ou, pelo menos, contando apenas parte da verdade.

- Ok - Hector não precisava de outra confirmação. - Precisamos descobrir tudo o que pudermos a respeito de Tippoo Tip e da fortaleza. Precisamos de mapas da área.
Tenho de retornar ao terminal e botar todo mundo para trabalhar.

Quando se encontravam reunidos novamente ao redor da mesa, Hector olhou para todos antes de falar.

- Bem, nós agora sabemos para onde vamos. Alguém aqui além do Tariq conhece um lugar na Puntlândia chamado Oásis do Milagre, ou o vilarejo de Ameera? Esses são os
nossos alvos.

Todos pareciam surpresos. Hector se dirigiu a Dave Imbiss.

- Dave, entre no site do Google Earth. Tariq vai apontar os alvos no mapa. Quero cópias das fotos de satélite da área. Quero saber a distância de avião. Quero saber
qual é a pista mais próxima na Etiópia, e a distância de carro de lá até o nosso alvo - fez uma pausa e olhou para Bernie e Nella. - Ou vocês dois têm alguma ideia
a respeito disso? Conhecem uma pista de pouso adequada?

- Jig Jig! - disse Nella, que soltou uma gargalhada histérica e deu um cutucão com um dos cotovelos nas costelas de Bernie, fazendo-o se encolher.

- Um terreno de pouso com um nome desses? - Hector levantou uma das sobrancelhas. - Interessante!

- Foi Nella quem deu o nome, não eu - Bernie protestou enquanto se endireitava e esfregava as costelas. - Não sei qual é o nome verdadeiro, provavelmente não tem.
É uma antiga faixa militar italiana abandonada da Segunda Guerra Mundial. Está em condições deploráveis, mas o Hércules não se importa com terrenos acidentados.

- Fizemos um pouso de emergência lá, certa vez - Nella ainda estava rindo esfuziantemente. - Fui acometida de um fogo incontrolável e nós aterrissamos para o Bernie
sossegar o meu facho. Foi maravilhoso. Um dos seus melhores desempenhos de todos os tempos. Nunca esquecerei.

Bernie manteve a postura sóbria, apesar das explosões de riso e da frivolidade em si.

- Está situada em um local perfeito, a menos de cinquenta quilômetros da fronteira da Puntlândia, mas o melhor de tudo é: não há nenhum oficial presente, nem polícia,
nem imigração - disse Bernie.

- Soa como se tivesse sido feita para nós. Mostre ao Dave a localização no mapa. Nella, você acha que consegue se conter quando aterrissar lá de novo? Chega de transas
indiscriminadas! - ele se virou para Paddy. - Paddy, contate Ronnie Wells pelo rádio e diga a ele para atravessar com o torpedeiro para o litoral da Puntlândia e
encontrar um ancoradouro seguro o mais próximo possível do alvo. Avise-nos quando ele chegar lá.

Durante todo o tempo em que estava distribuindo as ordens, estava ciente que Tariq o observava dissimuladamente. Finalmente, lançou um olhar direto para ele, e Tariq
sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente, levantando-se a seguir e saindo da sala. Hector aguardou um minuto e disse para Paddy O'Quinn.

- Continue a reunião. Não vou demorar.

Saiu à procura de Tariq e, após alguns minutos, avistou-o atrás de uma das caminhonetes estacionadas. Estava fumando um cigarro, desprezando a placa na lateral do
veículo que dizia "Proibido Fumar". Quando viu Hector se aproximar, esmagou o cigarro sob a sola do sapato e saiu andando ao longo do oleoduto. Hector o seguiu e
o encontrou agachado atrás de uma das estações de bombeamento.

- Fale comigo, amado do Profeta - Hector pediu ao se agachar ao lado dele.

- Não podia falar na frente dos outros - Tariq explicou.

- Nem mesmo do Uthmann?

Tariq deu de ombros.

- Você acha mesmo que Uthmann conseguiu reunir todas aquelas informações sobre o clã Tippoo Tip simplesmente porque escutou sem querer uma conversa do irmão ao telefone?
Meu receio é em relação à minha família, mestre. Não posso correr riscos.

- Há uma certa verdade no que você diz, Tariq - Hector assentiu pensativo.

Apesar do profundo afeto que sentia por Uthmann, sentiu os vermes da traição se movimentando nos intestinos.

Tariq respirou fundo e disse:

- Minha tia se casou com um homem do vilarejo de Ameera, bem perto do Oásis do Milagre. Quando eu era criança, passava vários meses lá todos os anos. Conduzia os
rebanhos com meus primos. Vi a fortaleza de Tippoo Tip muitas vezes, mas apenas a distância. Mas isso foi há muito tempo, e talvez a minha tia esteja morta agora.

- Mas talvez não esteja. Talvez ainda trabalhe na fortaleza. Talvez saiba onde estão mantendo a menina. Talvez ainda o ame o bastante para mostrar como entrar na
fortaleza e onde encontrar a menina.

- Talvez - Tariq sorriu e acariciou a barba. - Talvez todas essas coisas sejam verdade.

- Talvez você devesse visitar sua tia e descobrir.

- Talvez - Tariq assentiu.

- Talvez você deva partir hoje à noite. Vamos lançá-lo do Hércules próximo a Ameera. Vou dar um dos telefones de satélite para você. Ligue para mim assim que fizer
contato com sua família. E isso não é talvez.

- Como sempre, ouvi-lo é obedecê-lo, Hector - Tariq assentiu, e seu sorriso se tornou mais largo.

Hector deu um soco de brincadeira em seu ombro e começou a se levantar, mas Tariq colocou a mão em um de seus braços.

- Espere, tenho mais uma coisa para contar - Hector se agachou novamente ao lado dele. - Se conseguirmos pegar a menina, vários homens virão no nosso encalço. Vão
estar em caminhonetes quatro por quatro. Vamos estar a pé com a menina. É capaz que ela esteja fraca e doente depois do que fizeram com ela. Talvez tenhamos de carregá-la.

- Diga o que sugere.

Ao norte da fortaleza, há uma ravina funda e rochosa. Estende-se, de leste a oeste, por 112 quilômetros. Podemos atravessá-la a pé, mas até mesmo um veículo de tração
nas quatro rodas não conseguirá nos seguir. Terão que se deslocar por cerca de cinquenta ou sessenta e cinco quilômetros na direção leste para atravessarem o wadi,
o vale. Assim que atravessarmos o vale, teremos uma dianteira de duas ou três horas, ou até mais.

- Você merece ser recompensado com uma centena de virgens! - Hector disse sorrindo.

- Ficarei contente com uma - disse Tariq retribuindo o sorriso -, mas uma das boas.

Hector o deixou agachado à sombra da casa de bombeamento enrolando mais um cigarro.

Assim que Hector entrou na sala de situação, Dave se dirigiu a ele.

- Essas são as fotos de satélite do Google Earth da área, chefe - ele tamborilou os dedos sobre os mapas estendidos na mesa à sua frente. - O vilarejo de Ameera
está sinalizado, mas não consigo encontrar nada em relação ao Oásis do Milagre.

- Vamos dar uma olhada - Hector estudou a fotografia em alta resolução e depois bateu com um dos indicadores sobre ela. - Aqui está! - exclamou. - Mo'jiza. O milagre.
Passe as coordenadas, Dave.

Enquanto Dave fazia os cálculos, Hector continuou a analisar o mapa. Agora que sabia o que e onde procurar, encontrou o vale imediatamente. Pegou a lupa de Dave
e examinou o wadi cuidadosamente. A informação fornecida por Tariq se confirmou - nenhuma estrada ou trilha atravessava o vale.

Endireitou as costas e foi até onde se encontravam Bernie e Nella, no lado de fora, tragando seus cigarros. Hector falou com eles em voz baixa:

- Hoje à noite, quero que vocês deixem o Tariq o mais próximo possível do vilarejo de Ameera. Ele está sendo infiltrado para fazer um reconhecimento da área. Depois
disso, vão prosseguir diretamente até a pista de Jig Jig com o Paddy e a gangue dele, que vão estar a bordo. Vão descarregá-los e as caminhonetes e depois voltar
aqui para Sidi el Razig - através da abertura da porta, ele olhou para Hazel, que tinha saído da sala de situação e ido atrás dele. Sabia que não era sensato, tampouco
educado, deixá-la de braços cruzados em Sidi el Razig, sem nada para ocupá-la.

- A sra. Bannock e eu vamos acompanhar vocês no passeio até Ameera e Jig Jig.

Hazel assentiu em concordância, e Hector se virou novamente para Bernie.

- Calcule o tempo de voo de cada estágio da viagem. Temos que chegar a Jig Jig enquanto ainda estiver claro o suficiente para aterrissar. Não queremos ficar dando
voltas na área por muito tempo e chamar atenção. Acha que conseguimos encontrar a pista de primeira?

- Pergunta estúpida - Nella respondeu. - Já fomos lá antes, lembra?

Ela colocou um par de óculos de leitura, de armação de plástico laranja, sobre o nariz e ela e Bernie foram trabalhar na calculadora. Em poucos minutos, Nella olhou
para cima:

- Ok, a decolagem daqui será às vinte horas em ponto. Quem não estiver a bordo fica para trás.

 

Hector e Hazel ficaram na cabine de voo do Hércules e, por sobre a cabeça dos pilotos, assistiram ao anoitecer africano. Hazel se recostou levemente nele. Os últimos
raios de sol iluminavam as cristas das montanhas adiante, colorindo-as em tons de bronze e de ouro recém-cunhado. Simultaneamente, a terra lá embaixo deles já havia
sido apagada pela escuridão, e apenas minúsculos pontinhos de luz assinalavam o posicionamento dos vilarejos e aldeias da Puntlândia, espalhados por todo seu território.

- É tão bonito - Hazel suspirou. - Mas não consigo enxergar a beleza devido ao horror. Cayla está lá embaixo, em algum lugar.

A noite os envolveu completamente, e as estrelas se espalhavam, esplendorosas, sobre eles. Nella se virou no banco e retirou os fones dos ouvidos.

- Estou iniciando a descida agora. São vinte minutos até a zona de salto, Hector. Diga para os seus homens ficarem com o equipamento em ordem e de prontidão.

Hector foi até a cabine principal. A maioria dos homens de Paddy tinha subido nas caminhonetes e encontrado um lugar confortável para dormir. Mas Tariq estava esperando
por Hector próximo à saída traseira. Estava vestido como um camponês somali, com os pertences em uma bolsa de pele de cabra amarrada ao redor da cintura e sandálias
de couro cru nos pés. Enquanto Hector o ajudava a afivelar o paraquedas, repassou rapidamente os sinais de contato e reconhecimento que haviam combinado.

- Dez minutos até a zona de salto - a voz de Nella chegou pelos alto-falantes.

Hazel foi apertar a mão de Tariq.

- Não é a primeira vez que está arriscando sua vida por mim, Tariq. Vou encontrar uma maneira de retribuir.

- Não exijo pagamento, sra. Bannock.

- Então rezarei para que Alá o abençoe e proteja - disse e, em seguida, a voz de Nella nos alto-falantes foi ouvida mais uma vez.

- Cinco minutos até a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora. Verifique se as correias de segurança estão enganchadas.

A rampa abaixou pesadamente, e o frio ar noturno chicoteou em volta das cabeças, dando puxões nas roupas.

- Consigo enxergar as luzes de Ameera logo adiante - Nella cantou. - Um minuto para saltar.

Em seguida, começou a contagem regressiva:

- Cinco, quatro, três, dois e já! Já! Já!

Tariq correu para a frente e colocou primeiro a cabeça para fora da rampa. O vento o puxou instantaneamente pela escuridão. Nella fechou a rampa traseira e aumentou
gradualmente a potência dos motores. Prosseguiram rumo a Jig Jig.

Rodearam a pista ao amanhecer. Havia um edifício em ruínas, destelhado e com as paredes restantes caindo aos pedaços. Mesmo após oitenta anos, a pista abandonada
ainda era sinalizada pelos pequenos montes de pedras caiadas. O único sinal de vida estava na encosta do morro acima da pista, onde um menino enrolado em um cobertor
vermelho se aquecia diante de uma pequena fogueira fumegante, enquanto suas cabras pastavam ao redor. A fumaça revelou a direção do vento para Nella. Ao ouvir o
ruído retumbante do Hércules que voava baixo sobre eles, o menino e seu rebanho se dispersaram em pânico. Nella aterrissou a grande máquina tão suavemente quanto
uma borboleta pousando em uma rosa. A seguir, a aeronave foi aos solavancos e chacoalhando sobre o piso marcado, estacionando bem antes do final da pista. Nella
abriu a porta traseira, e Paddy conduziu o comboio de três caminhonetes rampa abaixo e, com um último aceno da mão enluvada, arrancou em direção à fronteira somali.
Nella usou os motores para acelerar o Hércules em uma volta de 180 graus, e eles estavam novamente no ar cinco minutos depois de terem pousado.
- Cinco horas e meia de voo de volta - Hector disse ao colocar um dos braços ao redor dos ombros de Hazel. - Não tenho a menor ideia de como vamos passar o tempo.

- Este porão de carga é todo nosso - Hazel comentou. - Posso fazer uma sugestão?

- Li sua mente e acho a sugestão excelente. Sra. Bannock, a senhora é um gênio.


Tariq encontrou um buraco de tamanduá africano, onde enfiou os paraquedas e o capacete de proteção. Enrolou o turbante ao redor da cabeça e pendurou a bolsa de pele
de cabra atravessada sobre o ombro. Durante a descida, havia memorizado cautelosamente a direção do vilarejo. Havia apenas duas ou três luzinhas acesas, e ele ficou
impressionado com a precisão da vista de Nella Vosloo, que fora capaz de distingui-las a três mil metros de altura. Ele se colocou a caminho de Ameera e, após oitocentos
metros, sentiu o cheiro da fumaça dos fogões a lenha e o forte odor das cabras e dos homens. Ao se aproximar do vilarejo, um cão latiu e outro se juntou a ele, mas
todos estavam adormecidos. Haviam se passado dez anos desde sua última visita, mas a lua quase cheia fornecia iluminação suficiente para que ele se orientasse enquanto
se movia silenciosamente entre as cabanas de teto de palha. A casa de sua tia era a terceira após o poço. Ele bateu na porta e, após um intervalo, a voz baixa de
uma mulher disse do outro lado:

- Quem é? O que você quer a esta hora da noite? Sou uma mulher decente. Vá embora!

- É o Tariq Hakam, venho à procura da irmã de minha mãe, Taheera.

- Espere! - gritou a mulher que não podia ser vista.

Ele ouviu ela se movimentar pela cabana e o riscar de um fósforo. A luz suave e amarelada de uma lâmpada de querosene podia ser vista através das frestas nas paredes
de barro. Finalmente a porta se abriu, e a mulher estava olhando para ele.

- É você mesmo, Tariq Hakam? - ela perguntou e segurou a lâmpada de modo que iluminasse o rosto dele. - Sim - suspirou timidamente -, é você mesmo.

De forma despojada, afastou o véu do rosto.

- Quem é você? - ele a encarou.

Ela era jovem e muito bonita. Os traços eram vagamente familiares.

- Fico triste que não tenha me reconhecido, Tariq. Sou a sua prima Daliyah.

- Daliyah! Mas você está tão crescida!

Ela deu uma risadinha modesta e puxou o véu novamente sobre a boca e o nariz. Havia apenas dez anos, ela era como um ouriço que não saía do pé dele, comportando-se
da maneira mais irritante possível, vestindo saias curtas e encardidas, com os cabelos emaranhados e moscas caminhando sobre o ranho ressequido debaixo do nariz.

- Minha tia está, Daliyah?

- Minha mãe está morta, Tariq, que Alá conserve a sua alma. Retornei a Ameera para viver meu luto.

- Que ela encontre a felicidade no Paraíso - disse em voz baixa. - Não sabia que tinha morrido.

- Ficou doente por um longo tempo.

- E você, Daliyah? Tem um protetor? Seu pai, seus irmãos?

- Meu pai morreu há cinco anos. Meus irmãos partiram. Foram para Mogadíscio lutar pelo exército de Alá. Estou sozinha aqui - fez uma pausa antes de prosseguir. -
Há homens aqui, homens rústicos e grosseiros. Infelizmente. Por isso hesitei em abrir a porta para você.

- O que vai ser de você?

- Antes de morrer, a minha mãe cuidou para que eu fosse trabalhar como serviçal na fortaleza no Oásis do Milagre. Voltei para cá apenas para enterrá-la e viver o
meu luto. Agora que os dias de luto se passaram, voltarei para o meu trabalho na fortaleza.

Ela o tinha conduzido até à cozinha, em uma extensão no fundo da cabana. Abaixou a lanterna e virou-se para ele:

- Você está com fome, primo? Tenho algumas tâmaras e pão sem fermento. Tenho também coalhada de leite de cabra - estava ávida para agradá-lo.

- Obrigado, Daliyah. Trouxe um pouco de comida comigo. Podemos compartilhar.

Ele abriu a bolsa de couro e retirou um pacote de rações militares. Os olhos dela se acenderam. Ele imaginara que ela não andava se alimentando bem. Eles se sentaram
um de frente para o outro, de pernas cruzadas no chão seco de barro, com pequenas tigelas esmaltadas entre os dois, e ele a observou comer com prazer. Ela sabia
que estava sendo observada, e manteve os olhos modestamente abaixados, mas de vez em quando sorria um pouco para si mesma. Quando finalmente terminaram, ela enxaguou
as tigelas e voltou a se sentar diante dele.

- Você diz que trabalha na fortaleza? - perguntou, e ela assentiu em confirmação. - Tenho negócios a tratar na fortaleza - Tariq disse, e ela olhou para ele com
um ligeiro interesse.

- É o que o traz aqui? - ele inclinou a cabeça e ela continuou - O que está procurando, primo?

- Uma menina. Uma jovem branca de cabelos claros.

Daliyah engasgou e cobriu a boca com uma das mãos. Os olhos dela estavam escuros de choque e de medo.

- Você a conhece! - disse com convicção.

Ela não respondeu, e em vez disso abaixou a cabeça com os olhos fixos no chão entre eles.

- Vim buscá-la para levá-la de volta à família.

Ela balançou a cabeça com tristeza.

- Cuidado, Tariq Hakam. É perigoso falar assim livremente. Temo por você.

Ficaram calados por um longo período, e ele a viu tremer.

- Vai me ajudar, Daliyah?

Conheço essa menina, ela é jovem como eu. Mesmo assim, foi dada aos homens para brincarem com ela - a voz era quase inaudível. - Ela está doente. Está doente por
causa dos ferimentos que sofreu. Está doente de medo e solidão.

- Leve-me até ela, Daliyah. Ou pelo menos me mostre o caminho.

Ela demorou um pouco a responder e então disse:

- Se eu fizer o que me pede, eles vão saber que fui eu quem levou você até ela. Vão fazer comigo o que fizeram com ela. Se eu levá-lo até ela, não posso permanecer
neste lugar. Você me levará junto quando partir, Tariq? Vai me proteger da ira deles?

- Sim, Daliyah. Levarei você comigo, com prazer.

- Então vou ajudar, Tariq Hakam, meu primo - deu um sorriso tímido, e seus olhos escuros brilharam à luz da lanterna.


Tariq ficou agachado sob a saliência de uma rocha voltada para o leste. Estava ali fazia uma hora, desde o anoitecer. Estava pensando na prima Daliyah. Ainda pensando
sobre a transformação dela de menina em mulher. Pensar nela o fazia se sentir feliz. Na manhã em que se despediu dele para caminhar os mais de seis quilômetros até
o Oásis do Milagre, ela havia tocado o braço dele e dito:

- Estarei à sua espera quando vier.

Ele esfregou o braço no local em que ela o tocou e sorriu.

Os pensamentos dele foram distraídos pelo leve tremor de um som no céu. Olhou para cima, mas não havia nada além de estrelas. Inclinou a cabeça para o lado e escutou.
O som se intensificou. Ele levantou e pegou a velha lata de querosene com a tampa cortada que Daliyah havia lhe dado e a levou para fora. Fez uma pilha com as pedras
que havia juntado anteriormente ao redor da lata para apoiá-la com firmeza. Ficou de novo na escuta - dessa vez não havia dúvidas. A vibração de múltiplos motores
de aeronaves era inconfundível. Tirou o sinalizador naval de socorro da bolsa e puxou a fita de ignição, jogando-o dentro da lata. Deu um passo para trás. As chamas
irromperam, e a fumaça sulfurosa borbulhou para fora da lata. O brilho avermelhado foi refletido no sentido vertical. O barulho dos motores aumentou até ficar logo
acima da cabeça dele.


A voz de Nella retumbou dos alto-falantes:

- A chama do marcador vermelho está no meu campo de visão. Dois minutos para a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora.

Hector tinha dividido os homens em dois grupos de cinco. Saltaria primeiro com o grupo dele, e Uthmann o seguiria imediatamente com seus quatro homens. Estavam todos
vestidos em trajes tradicionais, com lenços pretos cobrindo grande parte do rosto, mas por cima usavam coletes à prova de balas e capacetes de batalha, e carregavam
kits de sobrevivência, dez pentes de munição para os rifles de assalto nos cintos e uma faca de trincheira embainhada. As facas haviam sido afiadas pelo armeiro
da Cross Bow até que estivessem boas o suficiente para barbear.

- Primeiro grupo de pé! - Hector comandou, e eles se ergueram e caminharam com passos arrastados até a porta aberta.

- Acendam as suas luzes de sinalização!

Cada um deles tinha uma luz fosforescente minúscula afixada à frente do capacete com um elástico. Eles ergueram os braços e as acenderam. As lâmpadas eram azuis,
e a luz que emanavam era tão tênue que seria pouco possível que um observador hostil em terra pudesse captá-la, mas os pontinhos luminosos serviriam para que pudessem
localizar uns aos outros durante a queda livre. Hazel, que estava sentada no banco ao lado de Hector, se levantou e colocou os braços ao redor do pescoço dele.

- Amo você! - suspirou, ele era o primeiro homem para quem dizia aquilo em muito tempo. - Volte. Volte para mim.

Nos alto-falantes, a voz de Nella havia iniciado a contagem regressiva para a queda.

- Amo você mais do que posso expressar - Hector disse e a beijou, deixando um borrão de tinta de camuflagem na bochecha de Hazel, que ele limpou carinhosamente com
um dos polegares. - Quando voltar, trarei Cayla comigo.

Ela se virou de costas para ele rapidamente e correu em direção à entrada da cabine de pilotagem. Não queria que a visse chorar. Antes que alcançasse a cabine, Nella
deu o comando de salto pelos alto-falantes.

- Grupo número um! Já! Já! Já! - Hazel se virou rapidamente para ter um último vislumbre, mas ele já havia sido sugado pelo ventre sombrio da escuridão.

Hector estabilizou a queda pelo vento veloz usando a posição de estrela, com a barriga para baixo, e a primeira coisa que fez foi procurar pela chama de sinalização
de Tariq. Avistou-a três mil metros abaixo, a um ângulo inferior de cerca de 45 graus. Em seguida, procurou as luzes azuis dos homens no espaço ao redor. Assim que
localizou todos, fez uma manobra com movimentos sutis dos membros e do corpo para se colocar na frente da formação. Seus quatro companheiros estavam todos próximos
quando caíram na direção da chama vermelha. Ele checou o altímetro e o cronômetro. Estavam em queda livre havia um pouco mais de um minuto. Já tinham alcançado a
velocidade terminal, e a terra se aproximava rapidamente. Estavam a menos de 450 metros acima do chão quando ele fez um sinal com a mão para que ativassem e abrissem
os paraquedas. Agora, ficava mais fácil manobrar, e eles deslizaram pela pequena brisa para pousarem, como um bando de garças-azuis, a cerca de vinte passos da chama
vermelha, aterrissando quase simultaneamente e ficando de pé enquanto esvaziavam o ar dos paraquedas. De imediato, formaram um círculo defensivo com as armas apontadas.

- Tariq! - Hector chamou discretamente. - Apareça!

- Sou eu, Tariq Hakam - levantou-se detrás de uma pilha de pedras quebradas. - Não atirem!

Correu ao encontro de Hector, e eles trocaram um breve aperto de mão duplo.

- Está tudo bem? - Hector indagou. - Onde está a tal menina, sua prima?

Tariq havia falado brevemente sobre ela de manhã no telefonema via satélite.

- Ela está dentro da fortaleza. Vai nos levar até onde estão mantendo a menina Bannock.

- Pode confiar nela? - Hector perguntou. Contar com alguém dentro da fortaleza era um incrível golpe de sorte, e ele sempre desconfiava quando a sorte era muita.

- Ela é sangue do meu sangue - Tariq respondeu e quase adicionou "e mora em meu coração". Mas não queria tentar Iblis, o Demônio.

- Ok. Vou aceitar sua palavra - Hector entregou a ele o rifle e o kit sobressalentes que estava carregando.

Nesse momento, Uthmann e seus quatro homens caíram do céu escuro e aterrissaram próximo a eles. Tariq chutou a lata e pilha de pedras sobre a chama ardente. Os outros
estavam enrolando e enterrando os paraquedas.

- Tariq, lidere! Avante, já!

Seguiram Tariq a intervalos cuidadosamente determinados. Com as armas à mão, avançaram a passos rápidos, em ritmo acelerado ao longo de um caminho acidentado formado
pelo pastar das cabras. Alcançaram as primeiras palmeiras do oásis em 45 minutos e formaram novamente um círculo defensivo, deitando de bruços no chão e de cabeça
erguida. Tariq fez um sinal indicando que o terreno adiante estava livre, e Hector gesticulou para que avançasse. Tariq desapareceu entre as árvores. Uthmann engatinhava
ao lado de Hector.

- Aonde ele está indo? - suspirou. - Por que paramos aqui?

- Tariq tem uma pessoa infiltrada na fortaleza. Foi fazer contato para depois nos guiar através de um dos portões laterais.

- Eu não sabia disso. Quem é o informante? Homem ou mulher? É algum parente do Tariq?

- Qual é a importância disso? - Hector sentiu um pequeno mal-estar. Uthmann estava insistindo demais.

- Você não me contou, Hector.

- Você não precisava saber até este momento - Hector respondeu, e Uthmann desviou o olhar.

A posição da cabeça e do corpo de Uthmann mostravam que ele estava zangado. Estaria exibindo ressentimento por Hector não ter confiado nele? Não era o estilo habitual
de Uthmann. Hector ficou pensando se não estaria ficando velho demais para o esporte. Estaria perdendo a coragem? Hector não conseguia pensar em possibilidade mais
sombria. De repente, tomou uma decisão e tocou um dos braços de Uthmann, forçando-o a se virar para ele.

- Uthmann, você precisa ficar aqui com seu grupo na retaguarda. Se nos complicarmos dentro da fortaleza, vamos sair correndo. Quero que nos dê cobertura, entendeu?

- Sempre fiquei ao seu lado - Uthmann disse com amargura. O comportamento grosseiro dele era exagerado e reforçou a decisão de Hector de não levá-lo junto para o
covil da Besta.

- Não desta vez, meu velho amigo - disse e, sem dizer uma palavra, Uthmann virou o rosto e engatinhou de volta à sua posição com o segundo grupo.

Hector desviou o pensamento dele e fixou o olhar nas palmeiras do oásis. Viu uma sombra, como uma mariposa esvoaçante, em movimento, e assoviou baixo em dois tons
como sinal de reconhecimento. A resposta foi imediata, e Tariq se materializou silenciosamente detrás das árvores. Estava acompanhado de alguém, uma figura esguia
vestindo uma longa túnica negra.

- Esta é a minha prima Daliyah - disse, e os dois se abaixaram ao lado de Hector. - As novidades que traz são preocupantes. Diz que os homens de Khan andam alvoroçados
demais. Praticamente todos os homens da guarnição foram mandados para a ala norte, atrás da mesquita.

- Por quê? - Hector perguntou à moça.

- Não sei - a voz dela era bastante suave.

Hector ponderou por um momento.

- Existe um portão na ala norte para a qual os homens foram enviados? - perguntou.

- Há um portão - Daliyah confirmou -, mas não é o principal.

- Você tinha a intenção de nos conduzir para dentro da fortaleza por esse portão?

- Não! - ela balançou a cabeça. - No muro da ala leste, atrás da cozinha, existe uma outra entrada. É uma abertura bem pequena, apenas um homem de cada vez pode
passar por ela. Quase nunca é usada, e poucas pessoas sequer sabem que existe. Era como eu tinha planejado guiá-los.

- Está trancada?

- Está, mas eu tenho uma das chaves. Tirei do bolso de um dos cozinheiros esta manhã. Ele não sentiu falta.

- Guardas? O portão é vigiado?

- Nunca vi guardas ali. Usei-o hoje à noite. A passagem estava aberta, e o lugar, deserto.

- Tariq, parece que sua prima é uma mulher corajosa e inteligente - Hector olhou para ela, mas não conseguiu enxergar nada através do véu.

- Disso eu sei - Tariq disse num tom grave.

- Ela é casada?

- Ainda não - Tariq respondeu. - Mas talvez se case logo.

Daliyah abaixou a cabeça num gesto de modéstia, mas não disse nada.

- Ela nos aconselha a aguardarmos um pouco aqui antes de subir. Esperar passar a agitação na fortaleza.

- Quanto tempo ela acha que devemos esperar? - Hector perguntou, e Tariq apontou para a lua que surgia além da plantação de palmeiras. Faltavam cinco dias para que
ficasse cheia.

- Temos de esperar até que fique no mesmo nível da palmeira mais alta. A essa altura, os guardas terão relaxado e alguns poderão até mesmo estar dormindo.

- Em cerca de um hora e meia - estimou Hector, checando o relógio de pulso.

Atravessou engatinhando até onde estava Uthmann e, em poucas e sucintas palavras, explicou suas intenções. Em seguida, engatinhou novamente para a frente de seu
grupo. Eles permaneceram calados e imóveis enquanto o ponteiro luminoso dos minutos se arrastava pelo mostrador do relógio. De repente, o pesado silêncio foi interrompido
pelos uivos e guinchos de um par de chacais abaixo dos muros da fortaleza. O barulho foi imediatamente desafiado pelos latidos alvoroçados de uma matilha de cães
na parte de dentro dos muros.

- Meu Deus, quantos cães o Khan mantém lá dentro, Daliyah?

- Muitos. Gosta de sair para caçar com eles.

- O que ele caça... gazelas, órix, chacais?

- Todos esses animais, sim - Daliyah respondeu -, mas o que ele gosta mesmo de caçar são pessoas.

- Pessoas? - até mesmo Hector ficou chocado. - Quer dizer, seres humanos?

Ela assentiu, e a luz das estrelas revelou o ligeiro brilho das lágrimas nos olhos dela pela abertura do véu.

- Pois então. Homens ou mulheres que o tenham enfurecido. Alguns deles eram meus parentes ou bons amigos. Os homens dele os levam para o deserto, onde são libertados.
Depois, Khan e os filhos saem correndo atrás deles com os cães. Rejubilam-se com o esporte e riem quando os cães destroçam as vítimas. Deixam que os cães se alimentem
da carne de quem matam. O Khan acredita que isso torna os cães mais ferozes.

- Mas que velho encantador ele deve ser. Estou ansioso pelo nosso primeiro encontro - Hector murmurou.

Esperaram até que o latido dos cães se dissolvesse em silêncio, e a lua se erguesse detrás das palmeiras. Só então ele se mexeu de novo.

- Hora de partir, Tariq. Diga à Daliyah para ir na frente. Vamos manter uma boa distância atrás dela. Se ela encontrar alguém da fortaleza, diga para distraí-lo
para que possamos dar conta dele antes que faça alarde. Você vai atrás dela, e eu lidero o resto do grupo na retaguarda.

A garota se movia depressa e com confiança. Seguiram-na entre as árvores até chegarem à encosta. Hector viu claramente a fortaleza pela primeira vez. Agigantava-se
acima deles, enorme e negra. Não havia sinal de iluminação, e ela parecia tão inerte quanto a lua acima. O caminho prosseguia por uma ladeira íngreme. A garota não
diminuiu o ritmo. Agora os muros de pedra se erguiam sobre eles, tão implacavelmente malévolos quanto um monstro arcaico pronto para emboscar sua presa. De repente,
Daliyah saiu do caminho principal e virou numa trilha menos definida abaixo das muralhas. Contornaram pilhas fedorentas de lixo que tinham sido jogadas do alto dos
muros. Os chacais estavam procurando comida entre os detritos, e foram embora quando os homens se aproximavam. Finalmente, Daliyah parou ao lado de uma vala que
emergia de uma abertura em forma de arco na parte inferior da parede de pedra. A abertura estava bloqueada por grades enferrujadas. Excrementos humanos rolavam pela
arcada até a vala, e o fedor era um atentado aos sentidos. Daliyah saltou sobre a vala e virou abruptamente em outra passagem estreita entre os muros de pedra, cuja
largura não permitia mais do que um homem de cada vez. Ela desapareceu, e os outros a seguiram em fila indiana pela abertura. Subiram uma série de degraus rústicos,
Daliyah estava à espera deles no topo, do lado de fora de uma porta baixa de madeira sólida, pregada e montada com barras de ferro.

- Daqui em diante temos de nos manter bem próximos. É muito fácil se perder no lado de dentro - suspirou e retirou uma pesada chave de ferro de design antigo de
baixo da túnica. Colocou-a na fechadura e, com algum esforço, virou a chave. Encostou um dos ombros na porta, e ela se abriu. Ela teve de abaixar a cabeça para passar
sob a verga de pedra. Eles a seguiram. Daliyah fechou a porta atrás do último homem.

- Não tranque. Vamos estar com pressa quando voltarmos - Hector lhe disse em voz baixa.

A escuridão era tão dominante que parecia um peso esmagando seus ombros. Hector acendeu a luz fosforescente do capacete, e os demais seguiram o exemplo. Daliyah
os guiou através de um labirinto de passagens sinuosas e salas interligadas. Ouviram pequenos ruídos - mulheres rindo e conversando em um dos aposentos por que passaram
e, em um outro, o ronco barulhento de um homem. Finalmente, Daliyah fez um gesto para que parassem.

- Aguardem aqui - suspirou para Tariq. - Apaguem as luzes dos capacetes e fiquem em silêncio. Vou verificar se é mesmo seguro.

Ela desapareceu pelo corredor estreito. Os homens se agacharam para descansar, mas continuaram com as armas em punho. Não demorou muito, e Daliyah voltou, caminhando
silenciosa e rapidamente.

- Há dois homens de guarda em frente à porta da cela da menina. Estranho. Normalmente, são cinco ou seis. Esta noite, os outros devem ter sido mandados para o portão
da ala norte. Um dos guardas que ficaram tem a chave da cela. Não façam barulho. Sigam-me.

Hector e Tariq ficaram bem próximos a Daliyah, um de cada lado. Depois de um curto percurso, ela parou de novo e apontou para a frente. A passagem se abria de repente
em ângulos retos. Eles podiam ouvir as vozes dos homens além da curva, e a luz amarela das lamparinas se projetava no ângulo da parede lateral e no teto. Hector
escutou com atenção e percebeu que havia pelo menos dois homens recitando uma passagem da isha, a oração noturna. Depois, viu as sombras na parede lateral quando
eles se ajoelharam e levantaram de novo. Hector mostrou dois dedos, e Tariq assentiu. Hector bateu no peito dele e mostrou um dedo; em seguida, bateu no próprio
e levantou mais um.

- Um para cada um - Tariq assentiu.

Eles entregaram os rifles para os homens atrás deles e cada um desenrolou a corda de piano de arame que carregavam nos bolsos abotoados, testando-as entre dos dedos
das mãos. Hector se aproximou lentamente da quina da parede. Tariq o seguiu. Aguardaram os dois sentinelas se ajoelharem com as testas pressionadas no chão de blocos
de pedra. Então ele e Tariq se colocaram atrás deles e, quando os homens retornaram à posição sentada, Hector e Tariq passaram o laço de arame sobre as suas cabeças,
apertando-o com força sob os queixos. Os árabes de debateram, chutando e agitando os braços e as pernas. Mas não deixaram escapar um único som. Hector posicionou
um dos joelhos entre as omoplatas da vítima e aplicou a força de ambas as mãos. O homem se enrijeceu e chutou convulsivamente pela última vez, enquanto seus intestinos
se esvaziaram fazendo barulho. E então, ficou imóvel. Hector o virou para o outro lado e apalpou a túnica. Sentiu a grande chave de ferro sob o tecido e a retirou.
Daliyah estava no canto. Os olhos dela detrás do véu estavam arregalados e faiscando de terror - talvez não esperasse que fossem matar alguém.

- Que porta? - Hector perguntou. Havia três diante deles.

Mas Daliyah estava abalada demais para responder. Tariq se ergueu de um salto e a pegou pelos ombros, sacudindo-a com força.

- Que porta?

Ela se recompôs e apontou para o centro.

- Me dê cobertura - Hector disse a Tariq e foi até a porta.

Ele a destrancou com a chave que tinha tirado do sentinela e a abriu devagar e furtivamente. A cela estava às escuras, mas ele acendeu a luz do capacete. Com o feixe
de luz, viu o quanto a cela era pequena. Não possuía janelas nem ventilação. Em um canto, havia um balde que servia de privada e uma jarra d'água feita de barro.
Do balde emanava um odor pungente. No meio do chão, estava uma figura de estatura pequena, encolhida sobre um estrado com enchimento de palha. Vestia apenas uma
peça suja que mal batia na cintura, portanto não restava dúvida de que se tratava de uma mulher. Ajoelhou-se sobre ela e virou-a com delicadeza para ver o rosto.
Era o rosto da menina no vídeo brutal, a menina cuja foto Hazel lhe havia mostrado. Era Cayla, mas tão pálida e magra que a pele dele parecia quase transparente.

- Cayla! - suspirou em seu ouvido, e ela se mexeu. - Acorde, Cayla.

Ela abriu os olhos, mas por um momento não conseguiu focalizar neles.

- Acorde, Cayla. Vim buscar você e levá-la para casa.

De repente, os olhos dela se arregalaram. Eles pareciam preencher todo o rosto e estavam repletos de sombras de lembranças terríveis. Ela tentou gritar, mas ele
tapou a boca dela e suspirou num tom de urgência:

- Não tenha medo. Sou seu amigo. Sua mãe me enviou para levá-la para casa.

Ela estava surda de medo, sem compreender as palavras, debatendo-se contra ele com toda a força escassa que possuía.

- Sua mãe me disse que você tem um Bugatti Veyron chamado Mister Tartaruga. Sua mãe é Hazel Bannock. Ela ama você, Cayla. Lembra-se da potra que ela deu de presente
a você em seu último aniversário? Você a chamou de Chocolate ao Leite.

Ela parou de se debater e olhou para ele com os olhos arregalados.

- Vou tirar a mão da sua boca agora. Prometa que não vai gritar.

Ela assentiu, e ele retirou a mão.

- Não é Chocolate ao Leite - sussurrou. - Chocolate, só chocolate.

Ela começou a chorar, soluços silenciosos sacudiam todo o seu corpo. Hector a pegou no colo. Era leve como um pássaro, mas estava queimando de febre.

- Venha, Cayla. Vou levar você para casa. Sua mãe está esperando.

Tariq estava na porta dando cobertura. Hector acenou com a cabeça na direção dos cadáveres dos dois árabes.

- Tranque-os na cela.

Eles arrastaram os corpos segurando-os pelos pés, as cabeças rolavam aos solavancos no chão de pedra, e os jogaram no meio da cela. Hector trancou a porta e colocou
a chave no bolso.

- Agora! Diga à sua prima para nos tirar deste lugar fedorento, Tariq.

Daliyah os conduziu pelo mesmo caminho da ida. A todo momento, Hector esperava uma confrontação ou uma saraivada de balas.

- Está sendo fácil demais. Não era para ser tão fácil. Há uma tempestade de merda se formando, consigo pressentir, disse a si mesmo desgostoso. Mas, finalmente,
ele saiu pela porta na passagem estreita e saboreou o ar noturno do deserto.

- Puro como um beijo virginal - sussurrou e encheu os pulmões.

Cayla tremeu em seus braços. Ele a carregou pela abertura da passagem, onde havia uma rota de fuga desobstruída encosta abaixo. Ele a sentou gentilmente no chão
de pedra e se ajoelhou sobre ela. Hazel havia empacotado um macacão de camuflagem limpo, um par de tênis lona e uma calcinha para Cayla. Hector retirou as roupas
do bolso lateral da mochila e, como se ela fosse um bebê, a vestiu. Ele desviou os olhos ao puxar a calcinha para cima. Sentia uma estranha afeição paternal por
ela. Mas teve dificuldade de reconhecer a emoção em um primeiro momento. Não tinha filhos, nunca quis tê-los. A vida dele estava preenchida por outras coisas. Não
havia lugar para filhos. Agora, pensava que a sensação de ter um filho devia ser como aquela. Essa era a bebé de Hazel, portanto, de um modo estranho, era dele também.
Essa criaturinha doente revirava sentimentos profundos que ele nunca suspeitara que existiam. Encontrou a água na mochila, e forçou Cayla a engolir três tabletes
de antibióticos de amplo espectro com um grande gole da garrafa que ele segurava próxima aos lábios dela.

- Você consegue caminhar? - perguntou carinhosamente.

- Sim, é claro! - ela se levantou, deu dois passos cambaleantes e desabou.

- Boa tentativa - ele disse -, mas você ainda precisa de um pouco de prática.

Ele a pegou no colo de novo e saiu correndo. Tariq e Daliyah estavam posicionados, e o resto do grupo lhe deu cobertura. Na trilha acidentada, eles contornaram os
muros até chegarem ao caminho principal, virando diretamente na descida da encosta. A noite estava silenciosa como se toda a criação estivesse com a respiração em
suspenso. Diminuíram o ritmo ao alcançarem o oásis e caminharam entre as palmeiras na direção em que haviam deixado Uthmann e seu grupo.

"Silencioso demais", Hector pensou. "Muito silencioso, demais. O lugar inteiro exala o fedor da Besta."

De repente, à frente dele, Tariq e Daliyah foram ao chão. Tariq a puxou para baixo com ele e os dois desapareceram de vista, como se tivessem caído em uma armadilha.
Hector caiu quase no mesmo instante, aninhando Cayla nos braços para protegê-la do impacto ao atingirem o chão.

Ela choramingou, e ele sussurrou:

- Quietinha, querida, quietinha - disse e olhou adiante, retirando cuidadosamente o rifle do ombro.

Hector olhou pelo visor noturno do rifle, mas não conseguiu enxergar nada que pudesse ter alarmado Tariq. Em seguida, viu Tariq erguer a cabeça cautelosamente. Após
cinco minutos completos, deu o assovio suave de reconhecimento. Não houve resposta. Virou-se para trás devagar e olhou para Hector, à espera de uma ordem.

- Fique aqui e não se mexa! - Hector disse à garota.

- Estou com medo, por favor, não me deixe sozinha.

- Eu vou voltar. Prometo - ele ficou de pé e saiu correndo.

Deixou-se cair ao lado de Tariq e rolou duas vezes para o lado para sair da mira do inimigo. O silêncio era pesado e carregado.

- Onde? - perguntou.

- Depois daquela palmeira. Há um homem deitado ali, mas não está se mexendo.

Hector avistou a silhueta escura e a observou por um momento. A figura permanecia imóvel.

- Me dê cobertura - Hector disparou adiante de novo.

Nem mesmo o colete de proteção seria capaz de deter a bala de um rifle a tal distância. Alcançou o vulto humano e caiu ao lado dele. O rosto estava virado para Hector,
que viu que se tratava de Khaleel, um dos seus melhores homens.

- Khaleel! - suspirou, mas não houve resposta.

Esticou um dos braços para verificar a artéria carótida. A pele de Khaleel ainda estava morna, mas ele não tinha pulso. E então Hector sentiu algo molhado nos dedos.
Sabia o que era - durante sua vida, tinha provavelmente visto tanto sangue quanto um cirurgião. Procurou a ferida com as pontas dos dedos. Encontrou-a exatamente
onde achara que estaria - na parte de trás da mandíbula, logo abaixo do ouvido. Um furo minúsculo; uma lâmina fina e bastante afiada trespassada do ouvido até o
cérebro. Hector sentiu que iria vomitar. Não queria que fosse verdade. Conhecia apenas um homem que poderia matar com tanta precisão. Chamou Tariq para junto dele
com um aceno. Ele foi correndo se juntar a Hector. Logo viu o sangue nos dedos de Hector. Depois se virou para o corpo de Khaleel e tocou no ferimento atrás da orelha.
Não disse nada.

- Encontre os outros - Hector mandou.

Três corpos estavam estirados em um círculo defensivo, olhando para frente. Deviam confiar no assassino para tê-lo deixado chegar tão perto. Todos tinham morrido
instantaneamente. Todos tinham um ferimento quase idêntico.

- Onde está o Uthmann? - a pergunta era redundante, mas Hector tinha de fazê-la.

- Não está aqui. Foi aonde o coração dele pertence - Tariq olhou para a fortaleza maciça acima deles.

- Você sabia, Tariq. Por que não me preveniu a respeito dele?

- Sabia com meu coração, mas não com a cabeça. Você teria acreditado em mim? - Tariq perguntou.

Hector deu um sorriso amargo.

- Uthmann era meu irmão. Como poderia acreditar em você? - Hector disse, mas Tariq virou o rosto.

- E agora temos de sair deste lugar, antes que o seu querido irmão retorne - disse Tariq. - Com os outros irmãos dele, os que ele ama de verdade, mas que não amam
você, Hector Cross.


Uthmann observou Hector e Tariq se afastarem das palmeiras com a mulher, Daliyah, e o resto de seu grupo. Estava bravo e frustrado. Hector Cross tinha feito seus
planos, tão cuidadosamente esboçados, irem por água abaixo. Agora tinha de reavaliar sua posição com rapidez. O xeique Tippoo Tip e seu neto, Adam, estavam esperando
por ele com a maioria dos homens no Portão Norte. Era onde Uthmann havia prometido a Adam que entregaria Hector Cross. Mas, primeiro e mais importante, tinha de
fazer a mensagem chegar a Adam, avisando que Hector não iria cair na armadilha conforme o planejado, que tinha entrado por outro portão. Eles teriam de fechar todos
os portões e procurá-lo por todos os milímetros da fortaleza. Encontrá-lo antes que conseguisse se esgueirar pela saída e fugir para a amplitude do deserto. Havia
um único jeito de mandar o aviso a Adam - teria de entregá-lo pessoalmente. Mas, primeiro, tinha que dar um jeito nos quatro homens de seu grupo. Verificou o punhal
na bainha que estava presa em um dos antebraços. Tinha feito a lâmina a partir da mola dianteira de um caminhão GM. Foram necessárias várias horas de lixamento,
aquecimento, forjamento, tempero e moldagem para alcançar a perfeição. O cabo tinha uma tira de couro órix que se encaixava na mão. O equilíbrio era maravilhoso.
Um golpe sutil era o que bastava para que a lâmina afiada cortasse até o osso, e a ponta podia perfurar a carne humana sob o seu próprio peso. Esperou dez minutos
para que o grupo de Hector se afastasse e então engatinhou até o seu homem mais próximo.

- Khaleel, tudo tranquilo aqui? - perguntou. - Não, não olhe para mim. Continue olhando para a frente.

Khaleel virou o rosto obedientemente. O lóbulo de sua orelha direita estava visível sob a borda do capacete. Uthmann percorreu o canal do ouvido até o cérebro com
a ponta da lâmina. Khaleel suspirou suavemente, e a cabeça pendeu sobre a coronha do rifle que segurava. Uthmann limpou a lâmina meticulosamente em uma das mangas
de Khaleel antes de engatinhar até o próximo homem no círculo.

- Fique atento, Faisil - sussurrou enquanto se colocava ao lado do homem, e então o matou rapidamente. Os outros homens estavam deitados a menos de trinta passos
de distância e não ouviram nada. Uthmann se arrastou na direção deles. Quando os quatro estavam mortos, Uthmann ficou de pé e se virou no sentido da fortaleza. Começou
a correr. Escalou o caminho da encosta. Só tinha estado ali uma única vez, mas virou à esquerda sob o muro e correu ao longo dele até o Portão Norte. Quando faltavam
ainda uns cem passos para chegar, ele começou a gritar para avisar os homens que, sabia, estavam esperando no topo das muralhas.

- Não atirem! Sou eu, Uthmann. Sou um dos homens de Khan. Preciso falar com Adam.

Não houve resposta, e ele correu no sentido do portão, gritando a mesma advertência. Quando estava a cinquenta metros do portão, de repente, um feixe de luz branca
cegante, com toda intensidade, incidiu sobre ele. Ele parou e jogou as mãos para o alto para proteger os olhos. Uma voz chamou por ele do alto das muralhas.

- Jogue a arma no chão. Mãos ao alto! Caminhe devagar até o portão. Vamos atirar se tentar escapar.

Uthmann se aproximou do portão, e ele se abriu momentos antes dele alcançá-lo, mas os olhos dele ainda estavam ofuscados pelo feixe de luz e não conseguiam enxergar
nada na escuridão além da abertura. Ele hesitou ao alcançar o limiar, mas a voz o chamou de cima:

- Continue andando. Não pare!

Ele entrou e imediatamente um bando de homens veio correndo da escuridão e começou a bater nele até que ficasse de joelhos.

- Sou um dos homens de Khan - Uthmann cobriu a cabeça com ambos os braços. - Trago uma mensagem importante. Vocês têm de me levar até ele.

Ele teriam continuado a bater, mas nesse momento um comando autoritário os deixou paralisados.

- Deixem-no em paz! Conheço esse homem. Ele é um dos nossos agentes de confiança.

Uthmann se levantou e se curvou até o chão em reverência ao homem que surgiu das sombras e caminhava até ele.

- Que a paz esteja com você, Adam. Bençãos e paz para o seu ilustre avô, xeique Khan Tippoo Tip!

- Qual é problema, Uthmann? O plano era você guiar o infiel até aqui. Onde está Cross, aquele assassino blasfemo?

- Cross tem o instinto de sobrevivência de um animal selvagem. No último momento, decidiu que não me seguiria. Encontrou uma mulher que conhece bem a fortaleza.
Ordenou que eu ficasse enquanto a acompanhava por um caminho secreto para entrar nas muralhas.


Adam o encarou.

- Onde está Cross agora?

- Sem dúvida, já está dentro da fortaleza.

- Por que não nos avisou antes? - Adam levantou a voz, agitado.

- Porque eu mesmo não sabia até pouco tempo - Uthmann respondeu. - Não perca tempo e mande fechar todos os portões, depois envie mais homens para vigiar cela da
prisioneira e outros mais para vasculhar a citadela e encontrar o Cross.

- Venha comigo! - Adam rosnou para ele. - Vamos até o meu avô. No entanto, se você deixou o infiel escapar com a nossa refém, as coisas vão se complicar bastante
para seu lado, já aviso.

Adam levantou a túnica e correu, mas quando alcançaram a sala do conselho do xeique, estava exageradamente ofegante.

"Esse descendente do Profeta é tão mole quanto as mamas caídas de uma velha", pensou Uthmann com desprezo ao seguir Adam até a sala e se prostrar aos pés do Khan,
desfiando elogios exuberantes e votos de vida eterna ao velho homem.

- Chega! - xeique Khan se ergueu das almofadas e se agigantou sobre Uthmann. - Por que está tremendo? Está com febre? Ou quebrou nosso voto de confiança? Trouxe
o meu inimigo até mim para que eu possa liquidar a dívida de sangue e ir em paz para o túmulo, ou deixou que ele escapasse da minha vingança? Responda, sua poça
de estrume de porco doente. O filho de uma puta cristã é seu prisioneiro? Ou não?

- Bendito seja o tormento dos infiéis, não sei.

- Não sabe? Então vou fazê-lo saber - disse e açoitou as costas de Uthmann com o chicote de couro de hipopótamo.

A jaqueta à prova de balas absorveu o golpe, mas Uthmann gritou e se retorceu enquanto despejava o relatório. Após meia dúzia de golpes, o braço velho do Khan se
cansou, e ele deu um passo para trás.

- Mande os homens imediatamente para a cela da puta cristã! Traga-a até mim. Vou acorrentá-la ao meu lado onde posso eu mesmo vigiá-la. Já! Depressa!

Os homens enviados para buscar Cayla retornaram logo e se jogaram aos pés dele. Estavam balbuciando de terror e a audição do Khan era ruim, mas por fim ele entendeu
o que diziam.

- A porca infiel desapareceu e os guardas foram estrangulados? São esses os desvarios de macacos e lunáticos? - ofegava de raiva, e seus traços enrugados estavam
inchados e arroxeados.

- Temos de trancar os portões para evitar que fujam, e revirar o lugar e encontrar a menina e esses infiéis que violaram a nossa fortaleza.

Adam também tinha se prostrado. Sabia bem como se desviar da raiva do avô.

- Fechem os portões! - esbravejou o Khan. - Revirem todos os aposentos do palácio. Encontre-os e tragam-nos até mim - a seguir, virou-se para Adam. - Não podemos
deixá-lo escapar agora.

- Estamos desperdiçando tempo aqui, avô. Cross não está no palácio. Quanto mais o senhor demora, mais longe ele fica do nosso alcance. Cross tem apenas cinco homens
com ele. Uthmann matou os outros. Me dê seus cachorros, um número suficiente de homens e caminhões, e eu o trarei para o senhor.

- Há apenas um caminhão aqui, mas está com dois pneus furados que ainda não foram trocados. Mandei as outras caminhonetes e a maioria dos homens para o seu tio Kamal
na Baía de Gandanga para tripular os barcos de ataque.

O Khan prosseguiu:

- Mas podemos levar minha caminhonete particular de caça. Assim que os pneus do caminhão maior forem trocados, ele irá atrás de nós com o restante dos homens. Vamos
levar meus cães também, eu vou com você. Quero presenciar o exato momento em que os aniquilar. Quero vê-los sangrar e ouvir os gritos agonizantes.


Antes de deixarmos o oásis, tenho de ligar para Hans Lategan vir nos buscar de helicóptero - Hector disse a Tariq e puxou o telefone por satélite da mochila.

Estendeu a antena e ligou o aparelho. Hans atendeu ao primeiro toque. Hector sorriu. Devia estar esperando com o polegar no botão.

- Aqui é o Kudu - Hans forneceu seu indicativo de chamada.

- Queijo Stilton! - Hector respondeu.

Esse era o código que haviam combinado usar quando saíssem da fortaleza com Cayla e estivessem a caminho do ponto de encontro. Hector havia considerado a ideia de
ter um helicóptero pairando por perto. Mas o barulho dos motores teria alertado o inimigo de sua presença.

- Positivo! A Duquesa está extasiada.

"Maldito Hans por essa parte adicional da conversa", Hector pensou com raiva. Duquesa era o codinome de Hazel Bannock. Ela estava esperando em Sidi el Razig - como
poderia saber que Cayla já havia sido resgatada da fortaleza? Ele deixou o pensamento de lado. O ponto de encontro combinado ficava na extremidade mais distante
da ravina ao norte. Hans viria da pista de Jig Jig e sobrevoaria a ravina até avistar o sinal de reconhecimento - mais um sinalizador luminoso de socorro. Hans tinha
calculado que levaria cerca de duas horas e dez minutos de voo de Jig Jig. Hector calculara que a distância até o aterro sul da ravina seria de aproximadamente seis
quilômetros e meio, ou talvez um pouco menos. Os perseguidores estariam dirigindo caminhonetes quatro por quatro. Embora o terreno fosse acidentado e cruzado por
afloramentos rochosos e vales, as caminhonetes seriam pelo menos duas vezes mais velozes do que seu pequeno grupo. Por estar doente e malnutrida, Cayla pesava cerca
de 45 quilos. Sabia que, em condições ideais, seus homens provavelmente conseguiriam chegar à ravina em aproximadamente uma hora e cinquenta minutos. Mas não na
escuridão, não sobre aquele tipo de terreno, não tendo que carregar Cayla. "E se eles soltarem os cães?", perguntou a si mesmo e então respondeu: "Que se danem os
cães!".

Tariq observava o rosto dele, e Hector falou em voz alta:

- Sei o que quer me perguntar, se eu contei para o Uthmann que iríamos para o norte em direção à ravina. A resposta é: não, não disse. Embora ele saiba qual é o
nosso exato ponto de partida, não sabe para qual direção correremos. No escuro, não vai achar fácil nos rastrear - não queria sequer mencionar os cães. - Portanto,
não vamos perder mais tempo.

- Vocês todos bebam o máximo de água que puderem agora. Não vamos parar de novo até ouvir o helicóptero a caminho.

Enquanto conversavam, Hector tinha afivelado três cintos juntos para criar uma tipóia para carregar Cayla. Ele a colocou de pé.

- Serviços de Mudança e Transporte Heck ao seu dispôr, srta. Bannock.

- Esse é o seu nome verdadeiro? Heck? - a voz dela estava fraca e ofegante.

- Claro - ele a ajudou a se acomodar no assento improvisado da tipoia e a ergueu até que estivesse na altura dos quadris dela, com ambas as pernas balançando para
trás.

- Coloque os braços ao redor do meu pescoço e segure forte.

Ela obedeceu docilmente, e ele correu com ela, começando com uma velocidade inferior à sua máxima e ajustando o ritmo para percorrer toda a distância. Tariq enviou
dois de seus homens adiante para encontrar a rota mais fácil, e mais dois para segui-los e tentar apagar qualquer sinal óbvio que deixassem na areia do deserto.
Cobriram o primeiro quilômetro e meio, e Hector encontrou sua segunda levada de fôlego. Alargou os passos.

- Você disse que seu nome era Heck. É apelido de Hector? Minha mãe falou sobre você. Você deve ser Hector Cross.

- Espero que tenha dito coisas boas sobre mim.

- Na verdade, não. Disse que você era arrogante e pretensioso e que iria demiti-lo na primeira oportunidade. Mas não se preocupe, vou falar com ela.

- Cayla Bannock, minha protetora.

- Pode me chamar de Cay. É como todos os meus amigos me chamam.

Ele sorriu, e ela se segurou a ele pelo pescoço com mais força. Sempre pensara que quando esse momento chegasse, que seria um menino.

"Que se dane, uma filha está de bom tamanho", resolveu. Eles correram por mais quarenta minutos até que ele parou e olhou para trás. Agora tinha certeza. O sinal
era tênue, mas inconfundível.

- O que foi, Heck? - Cayla estava tremendo novamente, a voz repleta de pânico. - Acho que estou ouvindo o latido de cães.

- Ah, não é nada com que se preocupar. Há vários cães sem dono aqui.

E então se dirigiu a Tariq:

- Consegue ouvir?

- Consigo. Estão trazendo cães e pelo menos um caminhão. Vão nos alcançar antes da ravina.

- Não não, não - Hector retorquiu. - Agora vamos começar a correr de verdade.

- Do que você está falando? Não entendo - estavam falando em árabe, e Cayla ficava cada vez mais agitada. - Estou com medo, Heck.

- Você não tem do que sentir medo. Você toma conta de mim, e eu de você. Combinado?

Ele fixou a atenção na estrela polar logo acima do horizonte e correu. Correu com todo o ar que tinha nos pulmões e a batida de seu coração ressoando nos ouvidos
como um tambor de guerra. Quando as pernas começaram a vacilar, ele deixou a mochila e o rifle para trás e continuou a correr. As pernas se estabilizaram, e ele
encontrou reservas de forças que nunca soube que tinha. Correu por mais um quilômetro e então outro. Agora finalmente ele tinha certeza de que estava esgotado, que
não conseguiria dar mais um passo sequer. Mas as pernas dele continuavam a pulsar. Tariq e Daliyah corriam ao seu lado. Daliyah carregava o rifle que Hector deixara
cair e Tariq, a mochila.

- Deixe eu carregar a menina para você - Tariq apelou.

Hector balançou a cabeça. Tariq era um homem baixo e magro, mas não tinha os músculos exigidos para aquele tipo de carga. Hector sabia que se parasse de correr por
um único segundo, que não seria capaz de começar de novo. Cobriu mais um quilômetro e meio e então soube que não dava mais, que não dava mais de jeito algum.

"Eu vou morrer aqui", pensou, "e eu nem sequer tenho um rifle. A vida é uma merda."

Ele parou e colocou Cayla no chão. Estava cambaleante. O latido dos cães ficava mais próximo, mais alto. Ele ainda tinha a pistola no cinto.

- Não posso deixar que levem Cayla, não posso deixar que ela caia de novo nas garras deles. Quando não houver mais jeito, vamos compartilhar a pistola, uma bala
para cada um.

Era a decisão mais triste e difícil que já havia tomado. Ela entorpeceu sua mente, por isso quando ouviu os homens gritando o nome dele, não conseguiu entender o
que estavam dizendo. Tudo o que conseguia escutar eram os cães. "No deserto, o som se propaga por longas distâncias", tranquilizou a si mesmo, "eles não estão tão
perto quanto parecem."

- Chegamos à ravina, Hector! - Tariq estava gritando, e por fim as palavras penetraram a sua exaustão e tristeza. - Vamos, Hector. Você conseguiu chegar até aqui.
A borda da ravina fica apenas vinte metros adiante. Venha, meu amigo!

Hector já não pensava mais logicamente. O cérebro lhe dizia que fora derrotado e que não podia prosseguir. Mas ele pegou Cayla no colo e correu. Parou apenas quando
a terra sumiu sob seus pés, e ele caiu, deslizando e rolando pela primeira ladeira íngreme da ravina. Estava rindo, e Cayla se sentou ao lado dele. Estava toda empoeirada
e tinha arranhado um cotovelo e uma das bochechas. Encarou-o espantada e começou a gargalhar.

- Você deveria ir ao médico, Hector. Você é louco, cara. Quero dizer: louco de pedra. Mas a loucura fica bem em você.

Ainda rindo, Hector usou a parede da ravina para se levantar com dificuldade.

- Tariq! - gritou. - Não podemos deixar os cães nos pegarem aqui. Precisamos chegar ao norte deste cânion, onde o Hans possa nos pegar. Reúna os seus rapazes - em
seguida, virou-se para Cayla. - Vamos, Cay. Não falta muito agora.

- Você me faz sentir que qualquer coisa é possível. De agora diante, vou caminhar sozinha.

Ela começou a descer o morro. Tropeçou e quase caiu, mas então se equilibrou e continuou andando. Hector a alcançou e, com umas das mãos no ombro dela, foi conduzindo-a,
escorregando e deslizando morro abaixo.

- Você vai conseguir - disse para encorajá-la. - Seus genes são bons, Cayla Bannock.

Tariq veio escorregando atrás dele, mantendo-se firme sobre os pés como um corredor de downhill. Os homens o seguiam. Quando alcançou Hector, devolveu o rifle e
a mochila.

- Você deixou cair isto aqui, Hector.

- Descuido meu - Hector pendurou a mochila e o rifle nas costas e conduziu todos até o estreito da ravina. Chegaram ao fundo e ficaram de frente para a parede norte.
Cayla não conseguia falar de tão ofegante que estava, mas ele não podia deixá-la descansar. Agarrou-a pela mão e subiu arrastando-a pela extremidade oposta da ravina.
A subida era íngreme e árdua, mas finalmente chegaram cambaleando à borda plana. Olhou para trás e para o outro lado. Começava a clarear a leste. Não havia sinal
do inimigo, mas era possível ouvir claramente o alvoroço da matilha de cães.

- Tariq, temos de encontrar um local para nos posicionar até que o helicóptero chegue - ele focalizou adiante e, com seu olhar de soldado, escolheu o lugar.

- Está vendo aquele afloramento rochoso à esquerda? Parece ser um bom lugar. Venha, Cay.

Eles correram em direção às rochas, o instinto de Hector estava correto. Era um lugar onde teriam uma pequena vantagem. Havia uma boa área de caça na borda da ravina
que os cães e Uthmann teriam de atravessar para chegar até eles, mas estava coberta de pedregulhos grandes. Sabia que os cães eram treinados para caçar gente. Agiriam
em bando. Mas eles se separariam quando tivessem de contornar os obstáculos, e não seriam capazes de investir contra os homens em um ataque concentrado. Hector mandou
Cayla engatinhar para baixo do abrigo proporcionado pela rocha maior e sentar com as costas na parede de pedra. Colocou a mochila no chão ao lado dela e lhe entregou
a pistola.

- Sabe atirar?

Cayla assentiu. "Pergunta imbecil, Cross", sorriu para si mesmo. Ela é filha de Henry e Hazel Bannock. É claro que sabe atirar.

- Há uma bala no cano. Sem trava de segurança. Não vou pedir muito. Apenas que mate aqueles malditos animais se avançarem em você.

Ele foi se posicionar ao lado de Tariq. Ambos olharam para o céu. O amanhecer estava a caminho.

- Deixei um homem na borda da ravina - Tariq apontou adiante. O homem estava agachado atrás de uma pedra no horizonte. - Ele vai nos avisar quando avistar os cães.

- Ótimo. O sol vai nascer dentro de mais ou menos dez minutos - disse Hector. - O Hans deve chegar por volta da mesma hora. Precisamos mantê-los afastados apenas
até o helicóptero nos alcançar.

Aguardaram e a claridade ficou mais forte. Então, o vigia gritou em árabe:

- Os cães estão chegando. Muitos cães - abandonou a posição e foi em disparada na direção deles.

- Viu se havia homens com eles? - Hector gritou.

- Não, apenas cães. Muitos, muitos cães.

O homem se juntou a eles. O coro da matilha de cães caçadores mudou de intensidade, tornando-se um latido feroz.


Uthmann estava ao volante do grande caminhão Mercedes. Adam, no banco ao seu lado, e o xeique Khan, sentado no banco de caça traseiro, mais alto do que o deles.
Tinha um guarda-costas de cada lado, para evitar que fosse jogado violentamente de um lado para outro pelos solavancos do caminhão sobre a escuridão do chão acidentado.
Mais quatro homens armados estavam amontoados na caçamba aberta na traseira. Uthmann dirigia velozmente. Tinham perdido a matilha de vista havia algum tempo, mas
seguiam seu coro de caça.

- Estão seguindo na direção do vale ao norte. Como sabiam disso? - Adam gritou sobre a vibração do motor do caminhão. - Você contou a eles, Uthmann?

- Não, mas um dos homens de Cross conhece bem o distrito. Tem família aqui - Uthmann respondeu.

- Se chegarem até lá, não seremos capazes de segui-los. Vamos ter de dar a volta. É um desvio de mais de oitenta quilômetros. Vão conseguir fugir - lamentou o velho
xeique. - Não pode deixar que isso aconteça, meu neto.

- Há um helicóptero a caminho para buscá-los - Uthmann disse.

- Tem certeza?

- Eu estava presente nas sessões de planejamento, tenho absoluta certeza, Grande xeique.

Agora os cães estavam tão na dianteira que antes de saberem se estavam na trilha certa, Uthmann teve de parar o caminhão e desligar os motores para tentar escutá-los.
Depois, deu partida novamente, e eles saíram rasgando a escuridão.

- Como o helicóptero vai encontrá-los? - Adam insistiu.

- Vão fazer uma telefonema via satélite e marcar a posição exata com sinalizadores luminosos.

De repente, Uthmann pisou no breque, e o caminhão derrapou antes de parar. A cabeça de Adam bateu no para-brisas dobrado, e os homens na caçamba foram lançados para
fora do caminhão.

- Por que fez isso? - Adam gritou furioso, segurando a ponta do seu lenço de cabeça para conter o sangramento da ferida que tinha na testa. - Você quase nos matou!

Em resposta, Uthmann apontou adiante.

- Chegamos à parede sul do vale. Mais alguns metros e teríamos caído da borda e morrido todos.

Uthmann saltou do banco do motorista e correu até a borda do precipício. Permaneceu na escuta por um minuto e depois voltou correndo ao caminhão.

- Os cães continuam a seguir a pista. Consigo ouvi-los claramente agora. Precisamos deixar o caminhão aqui e prosseguir a pé.

Correu até os homens que tinham sido jogados do caminhão e chutou os corpos espalhados no chão. Um deles estava provavelmente morto, a cabeça dele pendia do pescoço
quebrado. Outros dois estavam fora da jogada - um com o cotovelo direito destroçado, e o outro com ambas pernas fraturadas. O quarto homem se levantou cambaleante,
mas estava tonto e com uma concussão.

- Nenhum destes porcos tem nenhuma serventia para mim - Uthmann rosnou.

Ele apontou para os homens sentados ao lado do xeique.

- Vocês dois! Desçam e me sigam!

- Não! - Adam gritou de volta. - Eles são os guarda-costas do meu avô. Permanecem o tempo todo ao lado dele. Não podemos deixá-lo aqui desprotegido. Há trinta homens
da fortaleza nos seguindo a pé. Podemos esperá-los chegar antes de avançar.

- Quando chegarem aqui, Cross e a menina já estarão no helicóptero e fora de alcance. Se você não tem estômago para vir comigo agora, espere aqui o quanto quiser.

- A coragem e a honra do meu neto são imaculadas. Irá com você e mostrará o caminho - o xeique Khan interveio.

Adam se prostrou no chão, ainda agarrando o tecido ensanguentado na testa.

- Está pronto para lutar? - Uthmann perguntou.

- Mais preparado do que você jamais estará - Adam rosnou para ele e pegou o rifle do suporte atrás do banco.

- Você tem de agradecer Alá por ele ter lhe dado uma cabeça de pedra - Uthmann riu dele ao correr para trás do caminhão.

Entre a pilha de armas e de equipamento que tinha se deslocado com a brecada de emergência, ele selecionou uma RPG de fabricação russa e um estojo de lona contendo
duas bombas para a arma. Pendurou-os nas costas e deu a volta até a frente do caminhão. Olhou para o xeique Khan no banco elevado.

- Onde vamos nos encontrar, Lorde Khan? - perguntou ao velho.

- Vou levar o caminhão pela beira do vale até encontrarmos a estrada que o atravessa. Assim que cruzarmos o wadi, vamos retomar este caminho e procurá-los no outro
lado - o xeique apontou para o outro lado da sombria extensão de terra ao norte. - A essa altura, o sol já vai ter nascido, e poderemos procurar os rastros ou ouvir
o barulho dos cães.

- Quando nos encontrarmos de novo, depositarei a cabeça do infiel que matou o meu pai e os meus tios aos seus pés - Adam lhe disse. - Agora, peço sua benção, avô.

- Você tem a minha benção, Adam. Que Alá o acompanhe, e que mantenha a jihad forte em seu coração.

Adam teve de correr para alcançar Uthmann antes que ele desaparecesse ravina abaixo. Desceram pelo declive quase vertical, escorregando e deslizando em pedras soltas
e xistos. Adam foi aos poucos ficando para trás de Uthmann.

- Espere por mim - ele ofegava. A camisa dele já estava coberta de suor.

- Depressa! O helicóptero já deve estar vindo buscá-los - Uthmann gritou sem parar de correr. - O infiel irá escapar da ira legítima de Alá e do seu avô.

Adam sentia como se as pernas estivessem se transformando em manteiga. Ele escorregou e caiu de barriga. Ficou de pé, tossindo e engasgando no pó que levantara.
Depois, retomou a descida, mas estava mancando e cambaleando. Uthmann chegou ao fundo e parou pela primeira vez para olhar para trás.

"Porquinho de corpo mole! É bom apenas para estuprar mulheres e assassinar prisioneiros", Uthmann pensou sem demonstrar o seu desprezo.

- Está indo bem. Não falta muito - gritou, mas Adam perdeu o equilíbrio mais uma vez.

Dessa vez, caiu de frente e atingiu o chão rochoso com força. Rolou pelo desfiladeiro nos últimos seis metros. Tentou se colocar de pé, mas o tornozelo direito estava
machucado e não podia com o peso de seu corpo. Ele caiu de joelhos.

- Me ajude! - gritou.

Uthmann deu meia-volta e o pôs de pé. Adam deu alguns passos mancando e depois parou.

- Meu tornozelo! Não consigo pisar com este pé.

- Você deve tê-lo torcido. Não há nada que eu possa fazer para ajudar - Uthmann disse. - Siga-me na melhor velocidade que puder.

Ele abandonou Adam e começou a subir pela parede oposta do vale.

- Não pode me deixar aqui - Adam gritou, mas Uthmann não olhou para trás.


-Escute os cães. Farejaram nosso rastro doce e quente - Hector gritou. - Preparem as armas!

As travas das culatras dos rifles estalaram. Seis rifles, cada um com trinta balas no pente. Eles seriam capazes de lançar praticamente uma parede sólida de disparos.
O campo de visão adiante era de noventa metros. Todos os homens eram exímios atiradores. Nenhum dos cães iria alcançá-los. Mas, se fosse esse o caso, usariam as
baionetas.

- Montem as baionetas! - Hector ordenou, e os homens alcançaram e desdobraram as baionetas debaixo da boca dos rifles. - Tariq, acenda os sinalizadores para o helicóptero
agora!

As chamas durariam vinte minutos, e a essa altura Hans com certeza já teria chegado e sido guiado até o posicionamento deles. Cada um dos homens tinha um sinalizador
na mochila. Tariq deu a ordem gritando, e eles acenderam e atiraram os sinalizadores. Hector percebeu tarde demais que deveria ter deixado claro que tinham de jogá-los
para trás, não adiante do posicionamento. A brisa do amanhecer batia no rosto dos homens e enviava a densa nuvem de fumaça sobre eles, embaçando completamente a
sua visão. Antes que Hector conseguisse mandar um dos homens remover os sinalizadores, os cães surgiram em meio a fumaça. Estavam apenas 15 metros adiante da fileira
dos homens quando se tornaram visíveis. Corriam juntos a toda a velocidade. Numerosos demais para Hector contar. Silhuetas de lobos através da fumaça, clamando por
sangue. Tinham corrido muito e espuma jorrava das mandíbulas abertas, espirrando sobre os flancos.

- Atirem! - Hector berrou. - Atirem!

Ele fez apenas três disparos, matando um animal com cada bala. Os homens ao lado dele disparavam na mesma velocidade. Os cachorros gritavam e iam ao chão, mas outros
atacavam através da fumaça em espiral. Ao lado de Hector, Tariq foi derrubado para trás pelo peso de um enorme cão preto que esmagava o seu peito. Hector se virou
e, antes que o animal conseguisse cravar os caninos na garganta de Tariq, ele o golpeou no pescoço com toda a extensão da baioneta. Ele uivou e virou com as pernas
para cima, chutando. Mas, nesse momento, um outro cão atingiu Hector por trás, desequilibrando-o e fazendo com que se esparramasse no chão. O cão estava sobre ele.
O rifle não servia para nada nessa proximidade de embate. Hector deixou que ele caísse e segurou o cão pela garganta com a mão esquerda; com a direita, alcançou
a faca de trincheira no cinto. Antes que conseguisse erguê-la, outros dois cães estavam sobre ele. Rosnando e tentando morder, lutavam para enterrar os dentes nele.
Um o agarrava pelo ombro da jaqueta e, pressionando com as pernas dianteiras dobradas, o mantinha com as costas no chão. O terceiro prendeu o braço que segurava
a faca pelo cotovelo e o lacerava com sacudidas violentas da cabeça. O primeiro animal ainda estava em cima dele, a mandíbula escancarada a poucos centímetros de
seus olhos, espumando saliva soprada pelo hálito fétido no rosto de Hector. Ele se contorcia e puxava a mão de Hector com tanta violência que não seria possível
aguentar por muito tempo mais.

Um tiro de pistola foi disparado a apenas trinta centímetros de seu ouvido direito, e a explosão quase o deixou surdo. O cão o soltou e desabou sobre ele, o sangue
espirrava do ferimento na cabeça. O estalo de mais dois tiros foi ouvido em rápida sucessão, e os outros cães que o atacavam caíram para o lado. Hector sentou e
limpou o sangue do animal com a manga, cuspindo-o também da boca. Quando conseguiu enxergar melhor, olhou espantado para Cayla. Ela tinha engatinhado do abrigo seguro
sob a rocha e agora estava ajoelhada ao lado dele, segurando a pistola com as duas mãos, o braço direito estendido de modo profissional, balançando-o de um lado
para o outro em busca do próximo alvo.

- Sua linda! - ele falou ofegante. - Sua coisinha linda. Você é com certeza a filha da sua mãe!

Ele agarrou o rifle e ficou de pé de um salto, mas a briga dos cães estava quase encerrada. O terreno estava inundado de cadáveres caninos, e os homens estavam dando
cabo dos poucos animais feridos que ainda perambulavam aterrorizados e com dor. Então, olhou para o horizonte acima e viu um grande helicóptero MIL-26 russo a menos
de um quilômetro e meio de distância, sobrevoando rente à crista na direção deles.

- Lá vem o Hans - explodiu em uma gargalhada. - Está terminado. Filés e uma garrafa de Richebourg para o jantar em Sidi el Razig hoje à noite.

Ele puxou Cayla para que ficasse de pé e colocou um dos braços de forma paternal sobre seus ombros. Observavam a grande máquina acelerando em direção a eles. De
vez em quando ficava escondida pelas nuvens de fumaça dos sinalizadores, mas cada vez que a brisa afastava a fumaça para o lado, o helicóptero se aproximava mais
e mais, e o som dos motores se intensificava. Finalmente, estava pairando diante deles a uma altura de apenas quinze metros, e era possível enxergar Hans de trás
da capota olhando para eles. Ele sorriu, saudou-os e depois rodou o helicóptero até se posicionar paralelamente em relação a eles. A porta principal da fuselagem
estava aberta e duas figuras estavam de pé na abertura. Uma era o engenheiro de voo, mas a outra deixou Hector boquiaberto.

- Mulher louca! - sussurrou.

Ele tinha mandado que ela voltasse pra Sidi el Razig após a viagem até Jig Jig, mas deveria ter considerado que Hazel Bannock não era boa em acatar ordens. Dá-las,
sim, mas não recebê-las.

- Mamãe! Mamãe! - Cayla berrou, histérica.

Ela pulava para cima e para baixo e acenava com a pistola acima da cabeça. Da porta, Hazel acenava com a mesma energia. Hans desceu com o MIL-26 até eles e, assim
que o trem de pouso tocou o solo, Hazel desceu de um salto da abertura, aterrissou com elegância e saiu correndo como louca em direção à filha. Cayla se desvencilhou
do braço protetor de Hector e saiu tropeçando ao encontro da mãe.

- Isso é o que eu chamo de uma cena bonita! - disse Hector com um sorriso, enquanto observava as duas mulheres correrem uma para os braços da outra, dando gritinhos
e chorando de alegria. Sentiu as lágrimas ardendo nos próprios olhos e balançou a cabeça.
- Abrindo o berreiro como um bebé. Você está amolecendo, Cross - Hazel olhou para ele por sobre os ombros de Cayla enquanto abraçava a filha. As lágrimas jorravam
pelo rosto dela, pingando pelo queixo. Ela não fez menção de enxugá-las. Não precisava dizer nada, a maneira como olhava para ele era eloquente o suficiente.

- E eu amo você também, Hazel Bannock! - gritou para que o mundo inteiro ouvisse.

Em seguida, voltou a se concentrar no que estava acontecendo e acenou para que Daliyah e os homens de seu grupo prosseguissem e embarcassem no helicóptero. Eles
pularam e saíram correndo em bando pelo terreno descampado.

- Hazel! Coloque a Cayla a bordo! - ele foi correndo na direção das mulheres.

Hazel escutou o que ele disse e agarrou Cayla pelo pulso, arrastando-a no sentido da aeronave. Em seguida, um outro tom de voz atravessou a alegria exultante de
Hector como o corte de um sabre.

- Na beira da ravina, Hector! - era Tariq.

Ele apontava para além do helicóptero, e o olhar de Hector girou naquela direção. Havia um homem ali, e apesar de estar a quase duzentos metros de distância e apenas
a cabeça estar visível acima da borda, Hector o reconheceu instantaneamente.

- Uthmann Waddah! - o choque paralisou sua mente.

Tariq não tinha como atirar diretamente no antigo camarada de onde estava. Os homens do grupo e as duas mulheres correndo o bloqueavam. Apenas Hector estava em posição
de lidar com o traidor. Mas, por algumas frações vitais de segundo, ele ficou paralisado. Em qualquer outra circunstância, se fosse qualquer outra pessoa e não Uthmann,
a reação dele teria sido instantânea, mas Hazel e Cayla haviam usurpado toda a sua atenção. Ele finalmente se mexeu, mas foi como se estivesse tentando nadar numa
banheira de mel grudento. Observou Uthmann pular da ravina, correr três passadas adiante e se abaixar apoiado em um dos joelhos. Viu ele erguer um longo tubo de
metal e colocá-lo sobre o ombro direito.

- RPG! - mesmo àquela distância, Hector sabia exatamente do que se tratava.

A granada-foguete, a arma predileta do insurgente, podia arrebentar a armadura de um tanque de batalha como se fosse uma camisinha barata. Uthmann estava mirando
fixa e deliberadamente o helicóptero.

A essa altura, Hector já estava com a Beretta apoiada no ombro. Inconscientemente, notara que Uthmann ainda estava vestindo o colete à prova de balas. Era uma edição
da Bannock e da melhor qualidade, feita de Kevlar com enxertos de placas de cerâmica. Àquela distância, a bala de 5.56 mm da OTAN era famosa pelo péssimo desempenho
contra essa espécie de armadura corporal. Originalmente projetada para atingir esquilos e cães de pradaria - não seres humanos -, a bala provavelmente rolaria pelo
chão com o impacto e não penetraria a carne, mas seria suficiente para derrubar Uthmann. Um instante antes de Hector atirar, Uthmann disparou o RPG.

Hector viu a explosão de retorno após o disparo do projétil atrás de Uthmann, assim como o rastro de fumaça da granada ao ser lançada no sentido do MIL-26. Antes
que ele atingisse o alvo, Uthmann saiu rodopiando após a bala de Hector explodir contra o painel frontal de sua jaqueta, e ele foi arremessado ao chão rochoso com
uma força brutal. Antes de Uthmann atingir o chão, a granada atingiu a frente do helicóptero e explodiu. Hector cambaleou quando a onda da explosão o alcançou, mas
permaneceu de pé. A alguns metros de distância da aeronave, Hazel e Cayla caíram agarradas uma a outra. Daliyah e os homens que a acompanhavam estavam mais próximos
da explosão. Todos foram derrubados e Hector sabia que alguns provavelmente tinham se ferido gravemente ou mesmo morrido. O engenheiro de voo que estava na porta
foi destroçado. Hector viu a cabeça e um dos braços rodopiando pelo ar.

O nariz e a parte frontal da fuselagem foram arrancados. A cabine do piloto e a capota tinham desparecido deixando um buraco em seu lugar, e não havia sobrado nada
que pudesse ser reconhecido como o corpo de Hans Lategan. Ele tinha recebido o impacto mais pesado da explosão. Fora de controle, a máquina gigante caiu para o lado,
os rotores rodopiando açoitando a terra endurecida, torcidos em formatos extraordinários antes dos motores cessarem, e um manto de poeira e fumaça pairava sobre
os destroços.

Por um momento, reinou o silêncio. Em seguida, Tariq gritou:

- O Uthmann está de pé. Atire nele, Hector. Em nome de Alá, atire de novo nele.

A visão de Hector agora estava parcialmente obstruída pela fumaça e a poeira, mas ele atirou na silhueta nebulosa cambaleando de costas para a borda da ravina. Hector
não tinha certeza se tinha atingido Uthmann ou se ele tinha simplesmente caído da beirada. Tariq saiu correndo na direção dele.

- Volte, Tariq! - Hector gritou. - Deixe-o em paz! Os homens dele provavelmente vêm seguindo logo atrás. Temos de sair daqui. Vá ver como estão os outros. Vá ver
como está a Daliyah.

Tariq deu meia-volta, e Hector correu até onde Hazel e Cayla estavam caídas. Estava desesperado de medo e de preocupação. Elas estavam bem dentro da zona de perigo,
e podiam facilmente ter sido atingidas pelos estilhaços da granada ou por pedaços voadores de metal da fuselagem. Ele caiu de joelhos ao lado delas. Hazel estava
sobre Cayla com os braços estendidos sobre a filha para protegê-la. Com medo que estivessem sangrando, Hector alcançou uma das mãos de Hazel. Ela girou a cabeça
e olhou para cima com uma expressão confusa no rosto, e então se sentou rapidamente e estendeu os braços para ele.

- Hector! - ela o beijou de boca aberta, e em seguida ambos voltaram a atenção completamente para Cayla. Os dois a ajudaram a se levantar.

- Você se machucou, bebé? - Hazel indagou ansiosamente.

- Não, mamãe. Não se preocupe comigo, estou bem.

- Ótima notícia - disse Hector -, porque temos de nos mexer imediatamente. Hazel, essa sua filha está fraca como um recém-nascido, mas é forte como um molho de pimenta.
Ela simplesmente não desiste. Vou mandar alguém ajudar você a mantê-la de pé.

Ele correu até onde Daliyah e os demais estavam se reagrupando. Alguns haviam sido atingidos por fragmentos que voaram com a explosão, mas embora tivessem cortes
e hematomas, ninguém estava incapacitado de prosseguir. Daliyah parecia ter saído ilesa.

- A menina precisa da sua ajuda - Hector disse, e ela correu até Hazel e Cayla.

Ele se virou para os homens e ordenou:

- Arrumem o equipamento, vamos partir já.

- Que direção vamos seguir, Hector? - Tariq perguntou.

- Vamos atravessar de novo a ravina.

Todos olharam para ele espantados, e ele logo esclareceu.

Se prosseguirmos para o leste, não vamos encontrar muita coisa além de deserto e mais deserto. Agora que eles perderam os cães, o inimigo não vai saber com certeza
que rota seguimos, mas provavelmente esperam que sigamos para o leste em direção à costa - ele se virou e apontou para o sentido de onde tinham vindo. - Porém, a
estrada norte-sul principal passa perto do Oásis do Milagre e da fortaleza. Correto, Tariq?

- Correto, fica a cerca de 16 quilômetros a oeste da fortaleza. Tem bastante tráfego - Tariq confirmou.

- Se conseguirmos chegar lá, vamos nos apoderar do primeiro ônibus ou caminhão conveniente que aparecer.

Os homens começaram a se reanimar imediatamente. A derrubada do helicóptero os tinha deixado mudos de desespero, mas Hector havia oferecido um plano e um vislumbre
de esperança. Em poucos minutos, estavam prontos para partir.

Eles formavam uma pequena e estranha caravana - três mulheres de diferentes idades e tons de pele e seis homens em trajes de camuflagem rasgados e ensanguentados.
Todos cobertos de sujeira e poeira. Hector tomou a dianteira, e Tariq seguiu por último com dois homens ajudando a apagar os rastros deixados pelo grupo em fila.
Cayla estava no meio, apoiada pela mãe em um lado e por Daliyah do outro. Formaram uma fila na beira da ravina e começaram a longa descida até o fundo. Quando começaram
a escalar a parede oposta, a maioria estava próxima da exaustão, e o ritmo diminuiu inexoravelmente. Hector ia de uma ponta à outra da fila, tentando incentivá-los
com falsas garantias e piadinhas grosseiras que, por sorte, Hazel e Cayla não entenderam. Os homens que tinham se ferido na explosão da bomba RPG sofriam bastante
agora, e novamente as pernas de Cayla começaram a fraquejar. Hector a carregou nas costas na última subida íngreme até o alto do vale. Ao chegarem ao topo, os demais
se jogaram sob a primeira sombra que encontraram, e permaneceram ali arfando como cães. As garrafas d'água estavam praticamente secas.

Hector se sentou com Hazel e Cayla, e as fez compartilhar os últimos goles que restavam em sua garrafa. Deu mais um tablete de antibiótico a Cayla. Ele tinha certeza
de que a medicação estava tendo um efeito benéfico. A cor do rosto dela estava melhor, e o espírito, fortalecido. Ele a tocou na testa, e a temperatura pareceu próxima
do normal.

- Mostre a língua! - ordenou.

- Com todo o prazer - ela tentou parecer arrogante, esticando a língua até o máximo. A penugem branca que a cobria estava se dissipando.

Ele se aproximou mais e examinou o hálito de Cayla. Não tinha mais o fedor de uma infecção.

- Coloque para dentro - ele disse -, você não vai querer deixar essa coisa para fora para as pessoas saírem tropeçando sobre ela.

Cayla alongou as costas e fechou os olhos. Hazel suspirou e se apoiou no ombro de Hector. Ele acariciou levemente os cabelos delas ensopados de suor, afastando-os
dos olhos dela ao mesmo tempo que murmurava palavras carinhosas e de encorajamento.

Estavam tão entretidos um com o outro que não perceberam que Cayla os observava através dos cílios, até que ela arregalou os olhos e perguntou:

- Quer dizer que mudamos de ideia quanto a despedir Heck, não é, mamãe?

Hazel pareceu espantada por um momento e depois se sentou com as costas retas e, sem olhar para Hector, ficou com o rosto completamente vermelho. Hector a observava
com prazer.

"Meu Deus, adoro quando ela faz isso", pensou.

- Tudo bem, mamãe. Eu já estava maquinando um jeito de aproximar vocês dois. Parece que eu não precisava ter me preocupado tanto.

- Muito bem, garotas, de pé! Hora de partir.

Hector esperou Hazel se recompôr e se levantou. Ele olhou adiante. Aos primeiros raios solares do amanhecer, o deserto parecia dotado de um austero esplendor. Não
havia o menor sinal de vegetação, mas a areia cintilava como um tesouro de diamantes quando o sol atingia os grãos de sílica, e os pequenos morros rochosos eram
tão majestosos como esculturas de Rodin. Ele conseguia sentir o calor aumentando. Tinha dado toda a água que possuía às mulheres. A boca dele estava seca e, ao tocar
os lábios, viu que estavam ásperos como uma lixa. Havia passado vários anos de sua vida em locais desérticos, portanto ao conduzir o grupo adiante, procurava ao
mesmo tempo por sinais de água na superfície e por inimigos escondidos. Não demorou para que todos estivessem com problemas de desidratação, erodindo suas últimas
reservas de forças, e ele teve de permitir que descansassem de novo. Pegou duas pedras de quartzo e deu uma para Hazel e outra para Cayla.

- Chupem! - ordenou. - Isso vai evitar que a boca de vocês resseque completamente. Respirem pelo nariz e falem apenas se for necessário. Vocês precisam economizar
fluidos corporais.

O olhar de Hector se desviou delas para os homens. Um estava encolhido e com o rosto agoniado, lutando contra cólicas. O resto não parecia que iria se sair bem numa
briga. Uma pequena nuvem passou sobre o brilho do sol, e o alívio foi imediato, ainda que temporário. Olhou para cima e viu pássaros em silhueta contra a nuvem cinza.
Havia cinco deles, grandes e ligeiros batendo as asas velozmente. Ele se levantou e protegeu os olhos. Ambas as mulheres o observavam.

- O que você viu? - Cayla indagou.

- Columba guinea para os ornitologistas - respondeu -, mas para mim e você, simplesmente os velhos pombos da guiné.

- Ah! - Cayla não tentou esconder a decepção. - Nem consigo dizer como isso é fascinante, Heck.

O bando de pombos começou a descer e, voando em círculos ao sol, exibiam a bela tonalidade de azul de suas penas, os pescoços cor de vinho e os contornos brancos
ao redor dos olhos.

- Quando voam assim em bando a esta hora do dia, estão indo beber água.

- Água? - as duas mulheres perguntaram ao mesmo tempo.

- Quando aterrissam assim, é porque a encontraram - disse. - Não é que isso é mesmo fascinante, Cay?

- Às vezes você me faz sentir como se eu fosse retardada - ela respondeu num tom arrependido.

- Pode ter certeza, Cay, que você age como uma só de vez em quando. De pé, senhoras, vamos dar uma olhada.

Ele havia memorizado o ponto para onde o bando havia se dirigido e o estabelecido a cerca de 400 metros. Ao se aproximarem, as características geográficas se tornaram
mais claras. Havia um pequeno vale do outro lado da trilha, uma ramificação do desfiladeiro principal, que atravessava um série de estratificações de formações rochosas.
A faixa do aquífero calcário estava claramente visível, sobreposta pelo xisto laranja. De repente, o bando de pombos surgiu da parede do vale batendo as asas ruidosamente.
Haviam se escondido numa fissura horizontal formada pela erosão do calcário mais macio sob a impenetrável parede rochosa e íngreme.

- Bingo! - gritou Hector com um sorriso enquanto os conduzia para o pé da parede do wadi. Enquanto todos desabavam agradecidos sob a sombra, ele a escalou até alcançar
a fissura sob a camada de calcário. Quando espiou pela abertura escura, pôde sentir o cheiro de água. A largura da fenda permitia apenas que ele engatinhasse. A
água se encontrava em uma poça rasa mais ao fundo da caverna rebaixada. Ele apanhou um punhado com a mão e experimentou.

- Merda! - ele disse. - Literalmente! Merda de pombo! Mas o que não mata engorda!

Ele gritou para Tariq levar as garrafas d'água. Ele coou a água na camisa e, apesar do gosto nojento, todos esvaziaram as garrafas. Hector as encheu de novo. Quando
finalmente todos mataram a sede, Hector encheu as garrafas pela terceira vez. Ao descer pela parede, olhou para o pequeno grupo lá embaixo. A mudança era quase mágica.
Os homens estavam sorrindo e conversando em voz baixa. Hazel estava sentada ao lado de Cayla, cantarolando baixinho enquanto penteava e trançava o cabelo da filha.

- Mulheres! - Hector murmurou carinhosamente, balançando a cabeça. - Onde ela foi encontrar um pente?

Em seguida, gritou:

- Não fiquem muito à vontade, pessoal, estamos partindo neste exato minuto.

Eles se organizaram em grupo novamente e escalaram para fora do wadi. Rumo ao oeste, Hector se manteve na parte mais elevada possível, vigiando o território ao redor
com muita atenção. Em uma hora, teve um bom motivo para ficar satisfeito com essa vigilância. Cerca de três quilômetros para o sul, avistou uma minúscula penugem
de poeira subindo pelo céu incandescente em tons de bronze. Ela se movia lentamente na direção deles, e Hector desejou ter levado os binóculos, mas tinha se preocupado
em cortar ao máximo o peso das mochilas. Após um breve momento de observação, ficou claro que a poeira estava sendo levantada por um veículo qualquer em velocidade
reduzida.

- O que quer que seja está bom para mim - ele se levantou e chamou Tariq.

Sem perder tempo, deu ordens para que dois homens vigiassem as mulheres, enquanto ele e o resto corriam ao encontro do veículo que se aproximava. Logo se tornou
evidente que ele estava acompanhando um antigo leito de rio ressecado e arenoso que percorria a extensão de um vale raso, onde o piso não era tão rachado e acidentado.
Quando alcançou um ponto do rio onde as margens eram mais rasas, Hector pode enxergá-lo com clareza pela primeira vez. Reconheceu de imediato o caminhão Mercedes
com tração nas quatro rodas, de porte mediano. O para-brisas estava dobrado, e havia um motorista, com outros três homens sentados em um banco mais elevado atrás
dele. Os quatro estavam armados e usavam trajes tradicionais - túnicas e turbantes. Hector esperou até que o caminhão fosse encoberto novamente pela margem do leito
do rio.

- Sigam-me! - Hector se levantou de um salto e, com seus homens logo atrás, desceu correndo pela encosta até caírem estendidos no chão da beira da margem, adiante
do caminhão. O Mercedes surgiu próximo da curva a cerca de duzentos metros adiante deles. Hector deixou que o veículo prosseguisse até ficar quase rente ao seu posicionamento
e, em seguida, ele e Tariq pularam no leito abaixo, bloqueando o caminho com os rifles apontados para os ocupantes do veículo.

- Não encostem nas armas ou mato vocês! - Hector gritou em árabe. - Desligue o motor. Coloquem as mãos acima da cabeça.

O motorista e dois dos homens atrás dele obedeceram com rapidez, mas o terceiro que estava sentado mais próximo à traseira do veículo, ficou de pé. Era muito alto,
mas também muito velho. O rosto dele era inacreditavelmente enrugado, e a ponta da barba branca e comprida havia sido pintada com hena. Na mão esquerda, segurava
um rifle de assalto AK-47. Encarou Hector com o olhar hipnótico e selvagem de um profeta bíblico e ergueu a mão direita para apontar para ele com um dedo com artrite
que era como a garra de um animal.

- Você é o assassino dos meus três filhos. Você é Cross, o infiel porco e imundo a quem declarei uma dívida de sangue. Amaldiçoo você com todo o poder de Alá. Que
você nunca encontre a paz mesmo depois de ser morto por mim.

- É o xeique Tippoo Tip - Tariq gritou alertando-o.

Hector manteve a pontaria no centro do peito do xeique.

- Abaixe esse rifle! - gritou com rispidez. - Desça do caminhão, senhor! Não me force a matá-lo.

O xeique era como um homem surdo. Sem tirar os olhos de Hector, começou a erguer o AK-47. As mãos contorcidas tremiam com a força do ódio que sentia.

- Não faça isso! - Hector avisou, mas o xeique ignorou a ameaça do rifle apontado para o seu peito.

Ele acomodou a coronha do AK-47 em um dos ombros e mirou por sobre do cano trêmulo.

- Deus me perdoe! - Hector sussurrou e atirou no meio do peito do homem. Tippoo Tip deixou o rifle cair, mas se agarrou à grade de proteção.

- Amaldiçoo você e seus descendentes. Amaldiçoo você com as chamas do inferno e as garras e os dentes dos anjos negros... - antes que Hector conseguisse evitar,
Tariq atirou no xeique mais uma vez, dessa vez na cabeça.

O xeique foi jogado para trás, do caminhão para o chão arenoso do leito do rio. Os dois guarda-costas rosnaram de fúria e agarraram as armas, mas antes que conseguissem
atirar uma única bala, Hector disparou rajadas curtas de três tiros em ambos. Os guardas foram derrubados dos assentos. Tariq disparou uma saraivada no motorista
atrás do volante assim que ele apontou uma pistola, matando-o instantaneamente. Em seguida, foi até o caminhão e puxou o motorista do assento para o wadi. Olhando
os corpos de cima, bem de perto, deu um tiro de misericórdia em cada um. No entanto, quando foi até o corpo do xeique, Hector o deteve.

- Não, Tariq! Chega. Não faça nada com o velho desgraçado.

Tariq olhou para ele levemente surpreso, e nem mesmo Hector conseguiu entender os próprios escrúpulos, pois o homem era velho. Sabia que Tippoo Tip era um monstro
cruel e perigoso, mas era velho. Tinha sido inevitável, mas mesmo assim havia deixado um gosto amargo na boca. Graças a Deus, Hazel não precisou testemunhar aquilo.

Ele foi até o caminhão e subiu no assento do motorista. Ligou a ignição e o motor deu partida.

- Parece estar em ordem - Hector verificou o indicador de combustível. - Um pouco mais de três quartos do tanque.

Mas viu que havia tanques de combustível para longas distâncias em ambos os lados do veículo.

- Uns 450 litros em cada um - calculou com satisfação. - Não teremos problemas por uns 1600 quilômetros ou mais.

Havia também um tanque de água potável encaixado atrás do bancos dianteiros, e ele bateu na lateral com os nós dos dedos.

- Cheio! - disse, mas havia sido perfurado por uma das balas e a água vazava do buraco. Hector rasgou uma tira da cauda do pano que usava na cabeça e estancou o
vazamento.

Em seguida, Hector acenou para os homens e, enquanto eles subiam no veículo, vasculhou o conteúdo do compartimento entre os assentos. Encontrou um mapa em escala
ampliada da área, com todas as rodovias e vilarejos indicados por nome e local. Isso foi um prêmio, mas o melhor de tudo foi o par de poderosos binóculos Nikon,
ainda guardado em seu saco de lona verde.

- Sou como uma criança em uma manhã de Natal! - disse com uma risadinha.

Pendurou os binóculos no pescoço, verificou se todos os homens estavam a bordo e dirigiu até onde tinha deixado o restante do grupo, escondidos entre as rochas com
as armas de prontidão. Então Hazel o reconheceu e desceu correndo ao encontro do caminhão.

- Você está bem? Ouvimos disparos.

- Como pode ver, éramos nós atirando. Agora podemos partir novamente com conforto. Hazel, você vai comigo na frente - a seguir, apontou para trás com um dos polegares.
- Cay, quero você na caçamba, mantendo a cabeça bem abaixada caso nos deparemos com mais tiroteios.

Cayla escalou a lateral metálica do caminhão e se deteve enojada.

- Que nojo! Há sangue por todos os lados. Não vou. Quero sentar perto da minha mãe no banco da frente.

- Cayla Bannock, pare de bancar a madame comigo. Comporte-se. Coloque seu fundamento já neste caminhão!

- Mas eu não quero...

- Escute, menininha. As pessoas estão sangrando e morrendo por sua causa. De agora em diante, você vai fazer o que eu mandar.

- Nunca fiz nada de errado... - começou de novo.

- Sim, você fez. Convidou Rogier Marcel Moreau, vulgo Adam Tippoo Tip, a bordo do iate da sua mãe.

- Como soube disso? - olhou para ele com uma expressão desolada.

- Se não sabe, deve ser mesmo uma idiota. Agora, suba no caminhão.

Sem dizer mais uma palavra, Cayla escalou pela lateral e se sentou ao lado de Daliyah na caçamba.

Hector engatou a marcha e foi embora. Ao lado dele, Hazel permanecia calada e imóvel. Não queria olhar para ela, mas podia sentir sua raiva. Sabia o quanto era protetora
em relação a Cayla. Dirigiu em alta velocidade, descendo de novo até o leito do rio. O piso arenoso dificultava a locomoção, mas era mais veloz e macio do que o
chão pedregoso e rachado e as cristas. Estavam havia pouco tempo na estrada quando, de repente, ele sentiu uma mão em sua coxa e deu um sobressalto de surpresa.
Olhou de soslaio para Hazel, cujos olhos cintilavam. Ela se reclinou na direção dele até que ficasse a poucos centímetros de seu ouvido.

- Você sabe lidar maravilhosamente bem com crianças, não é mesmo, Hector Cross? - ela sussurrou, roçando o rosto áspero de Hector com os lábios. - Você não sabe
quantas vezes eu quis fazer exatamente aquilo. Quando a mademoiselle Cayla começa a dar chilique, pode ser uma verdadeira megera.

A admissão surpreendeu Hector. Ele cobriu a mão em sua perna com a sua, muito maior, e a apertou.

- Espero que seja um sinal de que está melhorando. Entendo o seu problema, Hazel. Há muito tempo que Cay está órfã de pai, e você não se sente à vontade para ser
severa demais com ela.

Dessa vez, foi ela quem ficou espantada com o entendimento dele. Depois, se recompôs.

- Eu tenho uma pessoa em mente para assumir o papel paterno - ela disse em voz baixa.

- Sorte dele - ele sorriu e continuou a dirigir.

Em uma hora, eles deixaram o leito do rio e subiram até um terreno mais elevado. Hector brecou e desligou o motor.

- O que foi agora? - Hazel perguntou com ansiedade.

- Quero fazer alguns telefonemas via satélite. O sinal deve ser bom aqui.

Ele desceu do veículo e, enquanto abria o mapa recém-adquirido sobre o capô do motor e ligava o telefone, disse a Tariq:

- Dê uma caneca cheia d'água para todo mundo. Deixe que estiquem as pernas e tirem água dos joelhos.

Ele estendeu a antena do telefone e assentiu para Hazel.

- Bom sinal! Dave haver um satélite bem acima das nossas cabeças.

- Para quem você está ligando?

- Para o Ronnie Wells no MTB - ele discou o número e, após alguns toques, a voz de Ronnie surgiu na linha.

- Onde você está? - perguntou Hector.

- Estou ancorado na pequena enseada de uma ilhota rochosa a cerca de oito quilômetros da costa... - ele passou as coordenadas para Hector, que as verificou no mapa.

- Ok. Sei onde você está. Fique aí até eu ligar de novo. Hans Lategan não sobreviveu. O helicóptero caiu. Estamos em fuga, mas adquirimos um veículo. Dependendo
do que está adiante, vai demorar oito horas ou mais até chegar à praia em frente ao seu posicionamento.

- Boa sorte, Heck! Estarei à sua espera.

Ambos desligaram.

- Por que não vamos ao encontro do Paddy e dos homens dele em terra em vez do MTB? - Hazel perguntou.

- Boa pergunta - ele assentiu em reconhecimento. - É uma decisão ponderada. A fronteira etíope, onde Paddy está à nossa espera, fica 160 quilômetros mais longe do
que a costa onde Ronnie está.

- Mas as estradas não são melhores? Se fomos para o leste em direção ao litoral, vamos viajar por estradas secundárias.

- Exatamente - concordou, apertando mais números no telefone. - O país nas terras altas do interior é muito mais fértil e densamente povoado e, a esta altura, é
um ninho de vespas em alvoroço com a milícia de Tippoo Tip. Com quase toda a certeza, as estradas estarão bloqueadas em todos os entrocamentos. Mas vou ligar para
o Paddy agora para avisá-lo sobre o que pretendemos fazer.

Paddy atendeu quase imediatamente.

- Onde você está? - Hector perguntou.

- Estou sentado no topo de uma montanha na fronteira etíope, admirando a vista pitoresca do interior somali. Onde diabos você está?

- Estamos a cerca de 32 quilômetros a leste do oásis. Uthmann Waddah é um traidor. Passou definitivamente para o outro lado.

- Filho da mãe! Uthmann, um traidor? Não consigo acreditar.

- Ele deu a dica. Estavam nos esperando. O próprio Uthmann atingiu o helicóptero do Hans Lategan com uma RPG. Hans está morto, e o MIL, destroçado. Consegui capturar
um veículo e estamos a caminho da costa para encontrar o Ronnie.

Paddy soltou um assovio.

- Você matou o Uthmann, aquele desgraçado de coração de pedra?

- Tentei atirar nele, mas ainda estava usando o colete à prova de balas. Eu o atingi, mas não acho que esteja morto. A armadura provavelmente conteve a bala.

- Uma grande pena! - Paddy grunhiu. - Sabia que havia alguma coisa no ar. De onde estou, posso ver que todas as estradas do seu lado da fronteira estão inundadas
de veículos. Estou com os meus binóculos focados em um dos caminhões do inimigo neste exato momento. Deve haver pelo menos uns vinte homens na caçamba. Todos armados
até os dentes.

- Ok, Paddy. Fique onde está e espere pela minha próxima ligação. Se não conseguirmos nos juntar ao Ronnie, seremos forçados a ir até você. Esteja preparado para
atravessar a fronteira e nos buscar - ele desligou e olhou para Hazel.

- Ouviu o que ele disse?

Ela assentiu.

- Você está certo, é a nossa última opção. Mas vamos levar mesmo oito horas para chegar ao litoral?

- Se tivermos sorte - ele respondeu e viu que ela ergueu uma das sobrancelhas. Olhou ao redor e viu que Cayla tinha se aproximado dele em silêncio e estava ao seu
lado.

- Vim me desculpar, Heck - disse humildemente. - Às vezes um demônio toma conta de mim e não consigo me conter. Podemos ser amigos de novo? - ela estendeu uma das
mãos, e ele a segurou.

- Nunca deixamos de ser amigos, Cay. E espero que seja assim para sempre. Mas você deve uma desculpa à sua mãe mais do que a mim.

Cayla se virou para Hazel.

- Sinto tanto, mamãe. Hector estava certo. Eu trouxe Rogier a bordo do Golfinho e subornei Georgie Porgie para empregá-lo.

Hazel piscou. Até aquele momento, não quisera acreditar, mas agora tinha de encarar o fato. A bebé dela não era mais um bebé. Então, lembrou que Cayla tinha dezenove
anos, que era bem mais velha do que a própria Hazel naquela noite memorável no banco traseiro do velho Ford do seu treinador, quando havia-se tornado mulher. Ela
se recompôs e estendeu os braços para Cayla.

- Todos nós cometemos erros, bebé. O truque é jamais cometer o mesmo erro.

Cayla olhou novamente para Hector.

- O que é esse tal de fundamento que você vive me dizendo para colocar nos lugares?

- É um jeito sofisticado de se referir ao seu traseiro - Hazel explicou, e Cayla riu.

- Bom, está certo! Concordo. Fundamento soa muito mais classudo. Muito melhor do que a outra opção.


Uthmann desceu com dificuldade pela encosta íngreme da face norte do wadi. Dar um passo era trabalhoso e respirar, uma agonia. Tinha deixado a RPG para trás e agarrava
o peito com as duas mãos, no local onde a bala de Hector havia-se chocado com o painel frontal do colete à prova de balas. Em um primeiro momento, esperou que Hector
e seus homens o seguissem, mas depois percebeu que deveriam estar tentando se reagrupar após a destruição do helicóptero. Ele parou por alguns minutos para descartar
o pesado colete e examinar o ferimento. Embora a bala não tivesse penetrado, o hematoma e o inchaço no local do impacto eram enormes. Com cautela, sondou a área
e sentiu a ponta afiada de uma costela quebrada sob a pele. A possibilidade dos pulmões terem sido perfurados o preocupava. Embora a dor fosse praticamente insuportável,
respirou fundo. Os pulmões não pareciam ter sido afetados, e ele tomou fôlego e desceu cambaleante até o ponto onde deixara Adam, no fundo do vale. Ele não estava
mais lá. Provavelmente tinha escalado de volta à borda da margem onde tinham se despedido do xeique e de seus homens. Uthmann subiu pelo mesmo caminho e encontrou
Adam no topo do wadi, sentado em uma rocha colocando uma atadura feita com tiras de camisa no tornozelo.

- O que aconteceu? - perguntou assim que viu Uthmann. - Ouvi tiros e uma grande explosão.

Entre respiradas cautelosas, Uthmann descreveu o que tinha feito, e Adam ficou extasiado.

- Então, eles não escaparam! Agora estão encurralados e na palma da minha mão.

- Sim, nós os encurralamos por agora. Mas como expliquei a você e ao seu avô, Cross tem planos de contingência para outras rotas de fuga. Agora ele provavelmente
está seguindo em direção à costa, onde há um barco de prontidão para levá-los até a Arábia Saudita. Onde está seu avô? Precisamos do caminhão para persegui-los.

- Ele deve ter atravessado o wadi mais adiante, como tínhamos combinado com ele.

- Ambos estamos feridos. Jamais conseguiremos alcançar seu avô ou Cross a pé. Precisamos esperar a outra caminhonete da fortaleza. Deveriam ter chegado há séculos.

- Provavelmente perderam nosso rastro na escuridão - disse Adam com o cenho franzido. - Ou isso ou a caminhonete quebrou de novo.

Mais uma hora se passou até que ouvissem o motor de um veículo se aproximando, e ele surgisse no campo de visão acima da crista. Havia dois homens na cabine e mais
uma dúzia na caçamba. Uthmann reservou alguns minutos para enfaixar o tornozelo de Adam e o próprio peito, usando o kit de primeiros socorros da caminhonete; depois
subiram a bordo e seguiram os rastros deixados pelo veículo de caça do xeique. De uma distância de cerca de um quilômetro e meio, viram as aves de rapina voando
em círculo no céu adiante, e Adam mandou o motorista se apressar até que chegaram ao cenário onde seu avô havia sido assassinado. O corpo jazia sobre a areia do
leito ressequido do rio. Metade do rosto do velho havia sido rasgado e devorado pelos pássaros, mas a barba saíra ilesa. Com dor, Adam desceu até a areia, e foi
mancando até se ajoelhar ao lado do corpo. Outros animais carniceiros, provavelmente um bando de chacais, tinham rasgado a barriga do xeique, e as entranhas já estavam
apodrecendo devido ao calor. O fedor era nauseante.

De maneira respeitosa, Adam pronunciou as orações tradicionais para os mortos, mas seu coração estava em júbilo. Os anos da tirania do avô haviam chegado ao fim,
e agora ele era indisputavelmente o xeique do clã Tippoo Tip. Fazia apenas quatro dias que o velho o tinha nomeado formalmente como seu sucessor na mesquita, na
presença do mullah e dos filhos. De agora em diante, ninguém ousaria questionar a reivindicação da chefia do clã por parte de Adam.

Quando encerrou as preces, ele se levantou e ordenou que os homens enrolassem o avô na lona e o colocassem na caçamba. Enxergou a veneração dirigida a ele nos olhos
e no comportamento dos homens que se apressaram em atender ao seu comando. Até mesmo a atitude de Uthmann havia mudado consideravelmente em razão da subida na hierarquia
e do grau de autoridade.

Uthmann havia revistado a área com cuidado enquanto Adam rezava. Encontrara os rastros deixados por Hector e o grupo de emboscada. Foi até onde Adam se encontrava
e explicou como era provável que os infiéis tivessem retornado do outro lado do wadi após a destruição do helicóptero e que, por uma infelicidade do destino, tinham
se deparado com o caminhão que levava o xeique a bordo. Tinham assassinado o velho e se apoderado do veículo.

- Quais são suas ordens, meu xeique? - perguntou.

A pronúncia do título foi um bálsamo para a alma de Adam, como um cachimbo de haxixe.

- Temos de seguir o veículo roubado do meu avô até termos certeza da direção seguida pelos infiéis. Somente então poderemos decidir o que tem de ser feito.

Uthmann arriscou repetir a sua opinião.

- Como já expliquei, conheço esse homem, Cross, bem o bastante para adivinhar o que ele vai fazer. Agora que roubou o veículo de caça, com certeza tentará alcançar
a costa, onde há um barco à espera dele.

- O que ele irá fazer se não conseguir escapar de barco? - Adam perguntou.

- Daí, a única rota de fuga disponível será a fronteira com a Etiópia.

- Vamos ver se você está certo. Mande os homens montarem no caminhão e irem atrás dele.

Deixaram os corpos dos guarda-costas para os chacais e os pássaros e seguiram os rastros do veículo menor. Logo encontraram o local onde Hector Cross havia parado.
Viram as pegadas do grupo onde haviam desembarcado. Apesar do peito ferido, Uthmann desceu para examinar os rastros e depois retornou para dar as informações a Adam.

- São nove pessoas, seis homens e três mulheres.

- Três mulheres? - Adam indagou. - Uma é minha prisioneira que escapou, mas quem são as outras duas?

- Acho que uma delas é a conhecida de Tariq que mostrou a Cross como entrar na fortaleza. A terceira e última chegou no helicóptero. Eu a vi apenas por alguns segundos
antes de disparar contra o RPG. O vislumbre que tive foi à distância e parcialmente obstruído pela fuselagem, por isso não posso ter certeza absoluta, mas acho que
a terceira mulher é a mãe da sua cativa. Eu a vi várias vezes em Sidi el Razig e estou quase certo de que é ela.

- Hazel Bannock! - Adam o encarou sem conseguir acreditar no tamanho de sua sorte. Ele agora não somente era o xeique do clã, como tinha uma das mulheres mais ricas
do mundo ao alcance da mão. Assim que conseguisse fisgá-la, ela o transformaria em um dos homens mais poderosos da Arábia e da África.

"Dezenas de bilhões de dólares e meu próprio exército me protegendo. Não existe nada que eu deseje que não seja capaz de obter." A imaginação dele se expandiu diante
de tal magnitude. "Assim que receber a quantia do resgate, vou proporcionar mortes extraordinárias a Hazel Bannock e à filha. Deixarei que todos os meus homens se
divirtam com elas. Elas serão curradas pelos dois orifícios, mil vezes pela frente e por trás. Se não conseguirem matá-las com seus paus, poderão usar as baionetas
nos mesmos buracos para liquidar o assunto. Vai ser divertido assistir. Vamos compartilhar tal deleite com o assassino, Hector Cross. Depois, vou ter de pensar em
algo original para ele. Vou acabar passando-o às velhas da tribo com suas faquinhas, mas, para começo de história, vários dos meus homens irão saboreá-lo por trás.
O ânus vai esticar até que seja possível andar a cavalo dentro dele. Para um homem como ele, a humilhação será maior do que a dor física." Adam esfregou as mãos
de contentamento. "Vou conseguir o pagamento e também liquidar a dívida de sangue da minha família." Ele falou em voz alta para o motorista:

- Retorne ao oásis!

E depois explicou a Uthmann:

- Tenho de enterrar o meu avô com todo o respeito que ele merece. Vou mandar uma mensagem pelo rádio ao meu tio Kamal para avisá-lo que os fugitivos tentarão escapar
de barco. No entanto, se Cross conseguir se safar de novo, irá com certeza tentar alcançar a fronteira etíope, e é lá que estaremos à sua espera.


CONTINUA

Na manhã seguinte, Hector foi à procura de Hazel e a encontrou tomando o café da manhã no minúsculo refeitório da empresa. Ao chegar perto dela, olhou para baixo
e viu uma tigela de cereal e uma xícara de café preto na mesa. Não era de se espantar que estivesse em boa forma, ele pensou.

- Bom dia, sra. Bannock. Espero que tenha dormido bem.

- Tentando fazer uma piadinha irônica, Cross? É claro que não dormi bem.

- O dia vai ser longo. É pouco provável que algo aconteça por enquanto. Vou levar alguns dos meus rapazes para um treino de paraquedas antes do grande show. Alguns
não saltam há mais de um ano. Precisam dar uma desenferrujada.

- Tem um paraquedas para mim? - ela perguntou.

Ele piscou. Pensara que talvez ela quisesse assistir para se distrair das próprias preocupações. Não tinha imaginado que gostaria de participar. Ficou pensando qual
seria seu nível de experiência.

- Já saltou da paraquedas? - perguntou com tato.

- Meu marido adorava e costumava me levar junto. Fizemos vários saltos de base juntos nos fiordes noruegueses em Trollstigen.

Hector olhou para ela boquiaberto antes de conseguir falar de novo.

- Esse é o suprassumo - admitiu. - Não há nada mais radical do que saltar de uma montanha para um abismo de 600 metros de altura.

- Não me diga que já saltou daqueles fiordes? - perguntou ligeiramente interessada.

- Sou corajoso, mas não louco - ele balançou a cabeça. - Sra. Bannock, a senhora tem a minha admiração e ficarei honrado se juntar-se a nós hoje pela manhã.

Hector havia reunido quinze dos seus melhores homens, incluindo Dave Imbiss e Paddy O'Quinn. Saltaram três vezes do helicóptero. O primeiro salto foi a três mil
metros de altitude; o segundo e o último, em um nível mais baixo, a 120 metros, apenas o suficiente para que o paraquedas se abrisse antes que tocassem os pés no
chão. Essa técnica daria pouca chance ao inimigo de acertá-los se estivesse atirando do chão enquanto eles caíam, vulneráveis. Após o terceiro salto, todos os homens
estavam claramente maravilhados com Hazel. Nem mesmo Paddy O'Quinn conseguiu disfarçar a admiração.

Comeram sanduíches de queijo e presunto e tomaram café de uma garrafa térmica sentados na lateral de uma duna de areia. Depois disso, Hector empurrou um pneu velho
de caminhão duna abaixo, e enquanto ele descia quicando pelo morro íngreme, os homens, alternadamente, atiraram com seus rifles de assalto Beretta SC 70/90 no alvo
de papelão encaixado na parte de dentro. Hazel foi a última a atirar. Pegou a arma de Hector emprestada e verificou a munição e a estabilidade com um ar competente
e sagaz. Em seguida, foi até a linha e acertou o alvo com um estilo elegante, oscilando ligeiramente antes de disparar contra o pneu, como um atirador munido de
uma espingarda de calibre .12 se posicionando para atirar em um faisão em movimento. Dave resgatou o pneu da base da duna, todos se reuniram em volta dele, olhando
para os buracos de bala perfurados no alvo de papelão. Ninguém falou muito.

- Por que estão todos tão surpresos? - Hector gracejou. - Ela é uma atleta de gabarito internacional. É claro que é bastante competitiva e tem a coordenação visomotora
de um leopardo.

Depois disse ingenuamente:

- Deixe-me adivinhar, sra. Bannock. Seu marido gostava de atirar e arrastava a senhora junto. É isso, não é?

O riso foi espontâneo e contagiante e, após alguns instantes, Hazel foi forçada a acompanhar. Era a primeira vez que ria desde que perdera Cayla. Foi catártico.
Sentiu parte da dor debilitante ser expurgada da alma.

Antes que o riso cessasse, Hector bateu palmas e gritou:

- Certo, meninos e meninas! São apenas onze quilômetros de volta ao terminal. O último a chegar paga as bebidas.

O solo arenoso dificultava a caminhada. Quando passaram pelo portão na cerca de arame farpado do perímetro do terminal, Hector estava alguns passos atrás de Hazel.
Ela estava correndo em um ritmo forte e suave, mas as costas de sua camiseta estavam escurecidas pelo suor. Hector sorriu.

"Duvido que a madame vá ter muita dificuldade em pegar no sono hoje à noite", pensou.


Uthmann ouviu a explosão e viu a coluna de fumaça preta subindo acima dos telhados dos edifícios à frente dele. Logo soube que era um carro-bomba, e saiu correndo
em disparada para a casa do irmão, que ficava nas proximidades da explosão. Virou a esquina e olhou para a rua estreita e sinuosa abaixo. Até mesmo para um veterano
escaldado como Uthmann, a carnificina era horrível. Um homem veio correndo na direção dele com o corpo de uma criança ensopada em sangue apertado contra o peito.
O olhar vazio sequer focalizou em Uthmann quando ele passou correndo. A fachada de três edifícios havia sido destruída. O interior estava exposto como o de uma casa
de bonecas. Móveis e pertences pessoais estavam dependurados nos aposentos abertos ou caíam em cascata na rua. No meio da via, estavam os destroços enegrecidos e
contorcidos do carro que carregara a bomba.

- Você não é um mártir! - Uthmann gritou ao passar correndo pelas ferragens fumegantes e os restos vaporizados do motorista. - Você é um assassino xiita!

Então ele viu que a casa de Ali, seu irmão, mais ao final da rua, estava intacta. A mulher de Ali veio até a porta. Ela estava chorando e embalando dois dos filhos
nos braços.

- Onde está o Ali? - gritou.

- Foi trabalhar no hotel - ela soluçava.

- Todas as crianças estão com você?

Ela assentiu em meio às lágrimas.

- Que o nome de Alá seja louvado! - Uthmann gritou e a levou de volta para dentro.

A mulher e os três filhos do próprio Uthmann não tiveram tanta sorte quanto a família do irmão. Três anos antes, Lailah estava no mercado local com os meninos quando
uma bomba explodiu a trinta passos deles. Uthmann pegou o menininho dos braços da cunhada e o embalou até que parasse de choramingar. Ao se lembrar do calor do corpinho
do filho em seus braços, sentiu as lágrimas subirem aos olhos. Ele virou o rosto para que não vissem.

O irmão Ali chegou do trabalho uma hora depois. Devido à bomba, o gerente geral do hotel havia autorizado que ele saísse mais cedo. O alívio do homem ao ver que
a família estava em segurança foi doloroso de assistir para Uthmann. Somente no dia seguinte Uthmann conseguiu ter uma discussão séria com ele. Para começar, Uthmann
tocou no assunto da captura do iate e da jovem herdeira da fortuna da Bannock Oil.

- Essa foi a notícia mais excitante que ouvimos em anos - Ali logo respondeu. - O mundo muçulmano inteiro está em expectativa desde o anúncio dos camaradas no Al
Jazeera. Que planejamento cauteloso e que senso de dever para fazer que tal operação florescesse! É uma das nossas maiores vitórias desde os ataques em Nova Iorque.
Os norte-americanos estão atordoados. O prestígio deles sofreu mais um ataque mortal - Ali estava extasiado.

No dia a dia, ele era o gerente do Airport Hotel, mas na realidade sua ocupação principal era a de coordenador dos Combatentes Sunitas que estavam perseguindo a
Jihad contra o Grande Satã. Estava claro para ambos os irmãos que Ali era o alvo principal da bomba xiita que havia causado tamanha devastação na rua da casa onde
se encontravam.

- Tenho certeza de que os nossos líderes vão exigir um pagamento de resgate enorme pela princesa norte-americana capturada - Ali disse com seriedade. - O suficiente
para financiar a Jihad contra os Estados Unidos por outros dez anos ou mais.

- Então, qual dos nossos grupos foi o responsável por essa conquista? - Uthmann perguntou. - Nunca ouvi falar desse "Flores do Islã" até que o nome fosse usado pelo
Al Jazeera.

- Irmão, você sabe que não deve fazer essa pergunta. Embora você tenha provado a sua lealdade centena de vezes, eu jamais poderia respondê-la, mesmo que soubesse
a resposta, e eu não sei - Ali hesitou e depois prosseguiu. - Mas posso dizer que logo você talvez seja um dos que precisem saber.

- Minha conexão com a Bannock Oil? - Uthmann sorriu para ele, mas Ali fez um gesto de negativa com as mãos.

- Chega, não posso dizer mais nada.

- Então parto amanhã e retorno a Abu Zara...

- Não! - Ali o interrompeu. - Foi a mão de Alá que trouxe você aqui hoje. Fique comigo por pelo menos mais um mês. Inshallah! Talvez possa dizer algo a você nessa
altura.

Uthmann assentiu.

- Mashallah! Ficarei, irmão.

- Seja bem-vindo sob o meu teto, irmão.


No palácio na encosta acima do Oásis do Milagre, um outro grupo de homens tomava café em minúsculas xícaras de prata, conversando seriamente em voz baixa. Estavam
sentados em círculo ao redor da mesa incrustada com mármore e madrepérola. O único item sobre a mesa era o bule prateado de café. Não havia nenhum material escrito
na sala. Nada era anotado. Todas as decisões eram anunciadas pelo xeique Khan Tippoo Tip em pessoa e memorizadas por seus ouvintes.

- Meu neto Adam enviará a primeira exigência para o resgate - olhou para Adam que, ainda sentado na almofada de seda, fez uma mesura até a testa encostar nas lajotas.

- Ouvir seu comando é obedecê-lo - murmurou.

O xeique Khan gracejou:

- A quantidade de exigências será tão grande que até mesmo na terra doentia e amaldiçoada do Grande Satã não haverá ninguém rico o suficiente para cumpri-las - quando
sorriu, seus olhos desapareceram detrás das pálpebras enrugadas. - Não existe quantia de dinheiro capaz de quitar a dívida de sangue que esse homem chamado Cross
tem comigo. Somente o sangue pode pagar por sangue.

Eles bebericaram das xícaras de prata em silêncio, esperando que o xeique continuasse a falar.

- O infiel pérfido matou três dos meus filhos - ergueu um dos dedos contorcidos pela artrite. - O primeiro era meu filho e o pai do meu neto Saladin Gamel.

Adam se curvou mais uma vez, e o xeique Khan prosseguiu:

- Ele era um verdadeiro guerreiro de Alá. Foi assassinado por Cross em uma rua de Bagdá sete anos atrás.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros homens na roda murmuraram.

- A segunda dívida de sangue é o meu filho Gafour. Foi enviado para honrar a dívida de sangue de seu irmão mais velho, Saladin, mas Cross o matou também quando atacou
o dhow em que Gafour velejava a Abu Zara para cumprir a tarefa de que fora incumbido por mim.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros entonaram novamente.

- O terceiro dos meus filhos que morreu nas mãos desse infiel adorador do Cristo foi Anwar. Também tinha sido enviado em uma missão de honra.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - repetiram em coro pela terceira vez.

- Essa dívida de sangue se tornou um fardo em minha consciência. A vida dos meus três filhos foi tirada por esse idólatra tolo, servo de um falso deus. Para mim
não basta mais apenas tirar a sua vida. Uma vida não pode pagar por três. Tenho de capturá-lo e entregá-lo vivo às mães e às mulheres dos homens que matou. As mulheres
são altamente treinadas no assunto. Sob suas mãos e as lâminas afiadas das facas de esfola ele terá vários dias de tormento até passar ao ventre do inferno e os
braços de Satã.

- Seu comando é uma ordem, poderoso Khan, que assim seja - murmuraram de acordo.

- Está me escutando, meu neto? - o xeique Khan indagou.

Adam fez mais uma mesura, devotada, reverente.

- Estou escutando, venerado avô.

- Deposito a dívida da dívida de sangue diretamente nos seus ombros. Você tem de recolher o pagamento pelos seus dois tios e pelo seu próprio pai. Que você não conheça
paz nem descanso até que a dívida seja completamente quitada.

- Escuto o que diz, meu avô. É um voto de confiança sagrado.

- Quando você trouxer o suíno infiel vivo até mim, vou colocá-lo no pedestal mais alto da sua tribo. Você ganhará um lugar em meu coração juntamente com as memórias
do seu pai e dos seus tios assassinados. Quando eu morrer, você assumirá o meu lugar como líder do nosso clã.

- Reconheço esse dever passado a mim como sagrado, meu avô. Entregarei o homem e a mulher para que enfrentem sua ira e seu julgamento, conforme seu comando.


A espera é sempre a parte mais difícil, Hector lhe dissera no início. Gradualmente ela descobriu o quanto ele estava certo. Todos os dias, passava horas em teleconferências
no Skype conduzindo os negócios da Bannock Oil pelo mundo. No restante do tempo, ela treinava com os homens de Hector. Correndo, pulando e atirando até estar tão
em forma física e mentalmente concentrada quanto na ocasião em que entrou na quadra de Flinders Park naquele dia de glória longínquo.
Mas as noites, aquelas terríveis noites, passavam em agonia espiritual. Ela dormia pouco, mas quando dormia, sonhava com Cayla - Cayla galopando com ela em seu cavalo
dourado de crina branca pelos altos prados do rancho. Cayla gritando de excitação ao abrir o presente extravagante que Hazel lhe dera quando completara 18 anos.
Cayla adormecendo no ombro de Hazel enquanto assistiam juntas a filmes antigos tarde da noite na TV a cabo. E então homens, mascarados e com armas nas mãos, surgiam
e o terror que sentia era infinito. Cayla! Cayla! O nome dela ressoando sem parar em sua mente, atormentando-a e deixando-a à beira da loucura.
Falava todos os dias com Chris Bessel e o coronel Roberts nos Estados Unidos, mas eles ofereciam pouco conforto. Todas as noites, sozinha em seu quarto, rezava como
quando era uma menininha, de joelhos e chorando. Mas as pistas haviam cessado. Nem todo o poder de suas orações, tampouco o da CIA, eram capazes de fazer com que
surgisse algum traço de Cayla ou das Flores do Islã. Passava várias horas do dia com Hector Cross, extraindo forças de sua companhia.

- Mas não temos notícias há quase um mês, Cross! - dizia isso pelo menos uma vez ao dia.

- Eles brincam de gato e rato com uma habilidade sem limites. Têm anos de prática - respondeu. - Não estão com pressa. Temos de esperar. Mas, lembre-se, Cayla ainda
está viva. Apegue-se a esse pensamento como algo positivo.

- Mas e Tariq e Uthmann? Com certeza eles já devem ter descoberto alguma coisa.

- É um jogo extremamente lento - enfatizou. - Se Tariq e Uthmann cometerem um único deslize, morrerão de uma morte pouco invejável. Estão profundamente infiltrados,
vivendo, comendo e dormindo com a Besta. Não podemos apressá-los; na verdade, não posso nem mesmo entrar em contato. Se tentar, o resultado será o mesmo do que levar
um tiro na cabeça.

- Queria que houvesse algo que pudéssemos fazer - ela lamentou.

- Há uma coisa que a senhora pode fazer, sra. Bannock.

- O que é, Cross? - perguntou com avidez. - Farei qualquer coisa que você sugerir.

- Então eu sugiro que pare de enviar e-mails para a Besta no celular da Cayla.

- Como...? - a voz dela abrandou, e a seguir ela balançou a cabeça e admitiu. - Estava apenas repetindo a mensagem que você me fez mandar antes. Dizendo que estamos
esperando. Mas como você... - ela interrompeu a frase de novo.

- Como soube o que andava fazendo? - ele concluiu a pergunta por ela. - Às vezes você não é tão esperta quanto pensa, Hazel Bannock.

- E você, Hector Cross, é o imbecil mais esperto do mundo inteiro - ela explodiu.

- Faz bem desabafar de vez em quando, não é, Hazel?

- Não ouse me chamar de Hazel, seu filho da puta arrogante!

- Ótimo, sra. Bannock! Seu jeito de falar melhora a cada dia. Logo estará dentro dos meus elevados padrões.

- Odeio você, Hector Cross! De verdade.

- Não, não odeia de verdade. A senhora é astuta demais para isso. Guarde seu ódio para quando ele for necessário - ele riu.

A risada dele foi suave e contagiante, amena e compreensiva, e, mesmo sem querer, ela riu com ele, mas o riso dela tinha um quê de histérico.

- Você é incorrigível! - disse em meio ao riso.

- Agora que me entende, pode me chamar de Hector ou de Heck, se quiser.

- Obrigada - ela tentou abafar o riso. - Mas não quero merda nenhuma.

 

-O que os forçará a vir aqui e tentar libertar a garota? - xeique Khan encarou o neto, esperando a resposta.

Adam pensou bem antes de responder.

- Primeiro, ele têm de saber onde ela está.

O avô assentiu.

- A seguir, pedirão a ajuda dos amigos em Washington. Sabemos que a mãe é amiga do presidente norte-americano. Eles enviarão multidões de cruzados para nos assolar.

O xeique Khan penteou a barba com os dedos, observando os olhos do neto, à espera do momento em que o rapaz veria o caminho adiante tão claramente quanto o próprio
xeique Khan.

- Levará várias semanas, ou até meses, até que os norte-americanos preparem um ataque contra nós. Podemos nos mudar deste lugar e, em poucas horas, desaparecermos
no deserto. Hector Cross, o assassino dos meus filhos, sabe disso. Ele e a mãe da menina querem esperar o exército norte-americano se mexer?

- Sim! - disse Adam com certeza. - A menos que... - xeique Khan viu a solução surgir nos olhos do neto, e seu coração se encheu de orgulho.

- Sim, Adam! - encorajou o neto a falar.

- A menos que possamos convencê-los de que a menina está sob perigo de morrer, ou um perigo pior do que a própria morte - disse Adam, e o avô sorriu até que os olhos
quase desaparecessem nas pregas das pálpebras. - Desse modo, eles virão atrás de nós, sem medo nem hesitação, virão atrás de nós.

- Onde é melhor? - o xeique Khan murmurou alegremente.

Adam respondeu sem hesitar:

- Não aqui, em uma cela de pedra da fortaleza. Tem de ser em um lugar onde a beleza do cenário contraste com o horror do ato.

Pensou por um momento e em seguida disse:

- O lago das vitórias-régias, no Oásis do Milagre!

- Mostramos primeiro o perigo e depois deixamos que descubram onde estamos? Ou eles ficam sabendo primeiro qual é o local e depois testemunham o ato? - O xeique
Khan fingiu que estava ponderando a questão, mas Adam falou de novo.

- Primeiro, têm de ver o que a garota está sofrendo, pois quando finalmente descobrirem o local, virão correndo sem hesitar nem parar para pensar.

- Estou orgulhoso de você - disse o xeique Khan. - Você será um grande general e um guerreiro implacável de Alá - Adam fez uma mesura reconhecendo o elogio.

Em seguida, acenou para um dos guardas de confiança que estava posicionado na porta de braços cruzados. O guarda foi depressa para o lado dele e se abaixou sobre
um dos joelhos para receber suas ordens.

- Mande uma mensagem para o fotógrafo - Adam disse em voz baixa. - Diga para ficar à espera nos portões principais do palácio após as orações matinais. Peça para
trazer a filmadora.


As escravas foram buscar Cayla na cela apertada em que fora mantida prisioneira desde que havia sido levada para o Oásis do Milagre. De novo, banharam-na com jarras
d'água e depois a vestiram em roupas limpas - uma toga negra até os pés e um xale negro enrolado modestamente ao redor do rosto e dos cabelos. Em seguida, ela foi
conduzida até as portas principais do palácio, onde quatro homens com rifles automáticos esperavam para acompanhá-la até a encosta do oásis.

Em contraste com o cheiro mofado da cela de seu confinamento, o ar do deserto era puro e quente. Ela o respirou com alívio. Havia muito que perdera o interesse no
que lhe aconteceria a seguir. Tinha se retraído em um estado entorpecido de resignação. No meio do percurso pela trilha da montanha, ela reparou na multidão reunida
ao lado de uma das lagoas nos jardins luxuriantes logo abaixo. Pareciam dispostos em uma espécie de ordem, em semicírculo. Todos eram homens. Ao se aproximar mais,
viu que no centro do círculo aberto estava um homem sentado de pernas cruzadas sobre vários tapetes de lã. Vestia as tradicionais calças brancas folgadas, um colete
e um turbante pretos, mas mesmo com o lenço que cobria o rosto dele, ela reconheceu Adam. Sentiu uma lufada de ânimo. Não o via desde o dia em que, fazia quase um
mês, ela fora fotografada segurando um exemplar do International Herald Tribune. Queria correr até ele. No meio daquela multidão cruel e selvagem, ele era a única
pessoa em que podia confiar. Sabia que ele era seu protetor. Ele era a luz na escuridão de seu desespero. Ela começou a avançar com mais rapidez, mas os homens ao
seu lado a detiveram, e continuaram a descer o morro a uma velocidade moderada. De repente, outro homem surgiu na sua frente. Caminhava para trás, segurando uma
filmadora profissional com a lente focalizada no rosto dela.

- Sorria, senhorita, por favor - suplicou. - Olhe o passarinho, senhorita, por favor - o inglês dele era quase ininteligível.

- Vá embora! - gritou para ele com a última centelha que sobrara de seu temperamento fogoso. - Deixe-me em paz.

Ela arremeteu contra ele, que se desviou, ficando a uma distância segura. Os guardas a agarraram pelos braços e a puxaram para trás. O cinegrafista continuou a filmar.
Eles entraram no semi-círculo de homens armados e mascarados e Cayla gritou para Adam, apelando de uma maneira patética:

- Por favor! Por favor, Adam! Faça-os parar de me atormentar!

Adam deu uma ordem. Os guardas a empurraram e forçaram-na a sentar-se ao lado dele no tapete estampado de cores vibrantes. A seguir, o cinegrafista foi ajoelhar-se
diante deles. Ele havia encaixado a câmera em um tripé. Curvou-se para a frente para focalizar no rosto de Adam, e a câmera fez um ruído suave. Adam retirou o lenço
que cobria seu rosto e olhou diretamente para a lente da câmera.

- Cayla - disse Adam em seu inglês quase perfeito, tingido apenas ligeiramente pelo sotaque francês -, eles estão fazendo esta filmagem para mandar para sua mãe,
para mostrar que estamos cuidando bem de você. Pode enviar a mensagem que quiser. Fale para a câmera. Diga que eles logo farão um pedido de pagamento de resgate.
Você precisa pedir a ela que pague imediatamente. Assim que receberem o dinheiro, essa situação desagradável terminará. Você será libertada e enviada de volta para
sua mãe de novo. Compreende?

Ela assentiu calada.

- Remova o véu - Adam ordenou gentilmente. - Deixe sua mãe ver seu rosto.

Lentamente, como se estivesse em transe, Cayla ergueu o lenço e o deixou cair sobre os ombros. - Agora, olhe para a câmera. Isso, ótimo! Agora, fale com sua mãe.
Diga o que está sentindo.

Estremecendo, Cayla respirou fundo e disse:

- Oi, mamãe. Sou eu, Cayla - ela interrompeu e balançou a cabeça. - Desculpe. Isso é uma coisa imbecil de dizer. É claro que você sabe quem eu sou - ela se recompôs
de novo. - Estas pessoas estão me mantendo presa neste lugar horrível. Estou com tanto medo. Sei que alguma coisa terrível vai acontecer comigo. Eles querem que
você mande dinheiro. Eles prometeram que vão me soltar quando você fizer isso. Mamãe, por favor, me ajude, não deixe que façam isso comigo - ela começou a soluçar
e abaixou a cabeça, pousando-a nas mãos em concha, a voz dela abafada pelos dedos e a força do terror e da dor que sentia. - Por favor, minha mãe querida. Você é
a única pessoa no mundo que pode me salvar - os soluços se intensificaram, e as palavras dela perderam a forma e o sentido.

Adam esticou um dos braços e acariciou os cabelos dela carinhosamente. Depois, olhou diretamente para a câmera.

- Sra. Bannock, quero dizer que sinto muito que isto esteja acontecendo com sua filha. Cayla é uma jovem adorável. É trágico que ela tenha sido envolvida nisto.
Sinto muito mesmo. Queria que houvesse algo que eu pudesse fazer. No entanto, não sou responsável pelos atos destes homens. Eles seguem sua própria lei. A senhora
é a única pessoa que pode colocar um fim neste horror. Faça o que Cayla pediu. Pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora.

Ele se levantou e saiu da frente da câmera. O lugar dele foi tomado por quatro homens mascarados. Tinham colocado as armas de lado. Colocaram Cayla de pé e viraram
o rosto dela para a câmera. Um deles a pegou pelas costas, agarrando um punhado de seus cabelos loiros e a puxou para trás. Um outro mascarado entrou em cena pela
direita, e então extraiu um punhal de cabo de chifre de rinoceronte e lâmina de dez polegadas da cintura. A lâmina era incrustada com dizeres árabes em dourado.
Posicionou a ponta do punhal sob o queixo de Cayla, quase encostando na pele aveludada de sua garganta.

- Não! Por favor! - falou desesperada.

O grupo não se mexeu por um minuto. A seguir, ele desceu a lâmina lentamente até apontar para o seio esquerdo dela, os contornos revelados pelo algodão preto do
vestido. O homem cobriu o seio direito com a mão livre. Tomou-o nas mãos e começou a sacudi-lo quase como se estivesse brincando com ele. Cayla começou a se debater
ainda mais, e os homens que a seguravam começaram a rir sob as máscaras. O barulho era como o de uma hiena gargalhando ao sentir o cheiro de sangue no vento.

O homem de punhal enganchou um dos dedos no colarinho do vestido e o abriu. A seguir, percorreu o espaço entre o tecido preto e a pele de Cayla com a lâmina. Ela
sentiu a frieza do metal e ficou paralisada, olhando para a faca que descia pelos seus seios. O tecido arrebentou e um dos seios saltou para fora. A pele era branquíssima,
mas o mamilo era vermelho como um rubi. O homem embainhou novamente o punhal e alcançou o interior do vestido aberto. Tirou ambos os seios, um em cada mão, e os
apertou com tanta brutalidade que os mamilos delicados se projetaram, e Cayla gritou de dor. Ele soltou os seios e enganchou um dos indicadores no corte feito no
tecido fino e o rasgou até os calcanhares. Ela estava nua sob o vestido. O fotógrafo percorreu o corpo dela lentamente com a câmera, registrando cada detalhe, detendo-se
nos seios e então descendo até os pêlos púbicos dourados e macios.

Cayla permaneceu docilmente imóvel. Não ofereceu mais nenhuma resistência quando os quatro homens que a seguravam a colocaram no chão e a seguraram de pernas abertas
sobre o tapete. Cada um segurava um braço pelos pulsos. Os outros dois prendiam os tornozelos. Afastaram bem as pernas dela. O fotógrafo mudou o foco da lente, passando
para uma imagem de alta definição em close-up dos lábios rosados da genitália. Cayla rolava a cabeça de um lado para o outro.

- Por favor, não faça isto - choramingou. - Por favor...

O homem que estava sobre ela desfez o cinto e deixou as calças largas caírem pelos tornozelos. Olhou para o sexo de Cayla e cuspiu na palma da mão direita. Espalhou
o cuspe sobre a cabeça do pênis para lubrificá-lo. A câmera acompanhou todos os movimentos. O pênis dele endureceu, estendendo-se adiante do emaranhado de pelos
púbicos negros. Era enorme. As veias grossas e azuis se contorciam ao redor da haste como abomináveis ramos de uma videira. Cayla olhou para cima, de olhos arregalados
e muda de pavor. Ele se ajoelhou entre os joelhos dela e se abaixou até Cayla. Ela tentou afastá-lo com chutes, mas o homem segurou as pernas dela abertas. As nádegas
do homem sobre ela eram musculosas e cobertas por uma densa camada de pelos pretos e animalescos. Elas se contraíram e moveram para baixo. Cayla soltou um berro
agudo, e seu corpo inteiro se convulsionou. Enquanto ele se movia em vaivém sobre ela, os outros homens do círculo que observavam colocaram as armas de lado e se
adiantaram formando uma fila, abaixaram as calças e começaram a se masturbar, preparando-se para a sua vez.

Quando um terminava e se levantava, outro o substituía imediatamente. Após o quarto estupro, Cayla permaneceu imóvel, parou de gritar e de se debater. Após o sexto,
ela começou a sangrar, sangrar muito, o vermelho vivo se destacando contra as coxas pálidas. Quando o décimo homem se levantou sorrindo e subindo as calças, a câmera
se afastou para focalizar no rosto de Adam, que assistia a tudo impassível. Ele se virou para a lente.

- Sinto muito que a senhora tivesse que testemunhar isto, sra. Bannock - disse suavemente. - Não acho que sua filha vá aguentar muito mais. A senhora e eu podemos
dar um fim definitivo a isto tudo. Tudo o que tem a fazer é realizar uma transferência bancária para Hong Kong na quantia de dez bilhões de dólares norte-americanos.
A senhora sabe como entrar em contato com as pessoas que estão fazendo isto com Cayla. Receberá os dados bancários assim que avisá-los que está pronta para enviar
o dinheiro.


Durante o dia, Hazel carregava o BlackBerry sob a blusa, pendurado em uma corda ao redor do pescoço. Tinha prendido o aparelho entre os seios com fita adesiva para,
mesmo quando estivesse correndo, saltando de paraquedas e treinando com os homens, poder atender antes do segundo toque. À noite, mantinha-o debaixo do travesseiro
e frequentemente acordava com ele na mão. Era o mais perto que conseguia chegar de Cayla.
Quando ele finalmente tocou, estava sentada à mesa com Hector Cross, na reunião diária que fazia com seus agentes seniores, na sala de situação. As obrigações da
Cross Bow em relação à segurança tinham de continuar a ser cumpridas com toda eficiência. Hector estava bastante consciente de que o inimigo poderia se aproveitar
do caos causado pelo sequestro de Cayla e, a qualquer hora, lançar outro ataque surpresa. A reunião foi encerrada, e Hector olhou ao redor da mesa.

- Alguma pergunta? Ótimo! Não vou mais segurá-los... - a frase foi interrompida pelo toque do BlackBerry sob a camisa safari cáqui de Hazel.

- Meu Deus! - murmurou e, abrindo rapidamente os botões da blusa, retirou o aparelho.

- Deixem-nos a sós! - Hector ordenou de supetão aos homens. - Saiam! Agora!

Eles obedeceram imediatamente, e Paddy O'Quinn os conduziu pela porta, fechando-a atrás de si. Hazel já estava com o telefone ao ouvido e gritando no bocal:

- Alô? Quem é? Fale comigo. Por favor, fale comigo! - Hector alcançou os ombros dela e os sacudiu de leve.

- Hazel, não é uma chamada telefônica. Ou é uma mensagem de texto, ou um arquivo.

Por causa do nervosismo, ela não tinha reconhecido a diferença dos toques. Com uma pressa desesperada, localizou o conteúdo da mensagem.

- Você está certo - falou de súbito. - É um arquivo. Parece ser uma foto ou um vídeo. Sim, é um vídeo! Longo... doze megabytes.

- Espere! Não abra ainda! - Hector tentou detê-la. Teve um pressentimento do mal que avizinhava. Tentou prepará-la. Mas ela não pareceu escutar. Já estava passando
o vídeo na pequena tela do aparelho.

- É a Cayla! - exclamou com alegria. - Ela ainda está viva. Graças a Deus! Venha ver, Cross!

Ele deu a volta ao redor da mesa e ficou do lado dela.

- Coitada da minha bebé, está com uma aparência tão bonita, mas tão trágica.

Na tela, Cayla caminhava em direção aos homens sentados no tapete no círculo de árabes mascarados e armados. O rosto do homem também estava coberto com um xale de
cabeça. Mas a câmera focalizou nele até que apenas a cabeça e os ombros ficassem enquadrados. O homem removeu o xale que escondia o rosto.

- Quem é esse homem, Cross? Você o conhece? - Hazel perguntou com nervosismo.

- Não, nunca o vi antes. Mas a partir de agora jamais irei esquecê-lo - Hector disse em voz baixa. Adam fez seu breve pronunciamento, e ambos escutaram em silêncio,
olhando para a tela fixamente como se estivessem diante de um réptil venenoso.

- ... pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora - Adam finalizou em voz baixa.

- Pagarei - Hazel suspirou. - Pagarei o que for para tê-la de volta.

- Sinto muito, sra. Bannock - o tom de Hector foi gentil -, mas ele está mentindo para a senhora. Tudo o que ele diz é mentira. Trata-se da Besta, e a Besta é mestre
em mentir.

A imagem na tela mudou, e o árabe com a faca avançou sobre Cayla.

- Ele não vai feri-la. Não, ele não pode feri-la. Pagarei o que for. Qualquer coisa para não machucarem mais a minha bebé - o tom de voz dela subiu, histérico.

- Seja corajosa, pela Cayla, seja corajosa.

- Com certeza esses indivíduos são seres humanos, não animais - ela disse. - Não vão machucar uma menina inocente que não lhes fez mal algum.

- Não, eles não são animais. Os animais mais selvagens são nobres e bons em comparação a essas criaturas.

O árabe na tela ficou de pé diante de Cayla e expôs o sexo grotesco. Hazel soluçou e segurou uma das mãos de Hector. Depois, ficou em silêncio enquanto o cenário
de horror começou a se desdobrar. Mas ela tremia como se estivesse ardendo de febre.

- Desligue! - Hector ordenou, mas ela balançou a cabeça e apertou o braço de Hector como se tivesse garras de aço.

Ele mal conseguia acreditar na força. Não se esforçou para se desvencilhar da mão dela; embora a dor tivesse enchido seus olhos d'água, não podia negar qualquer
tipo de conforto que pudesse oferecer. Os múltiplos estupros de Cayla pareceram, para ambos, durar uma eternidade. Hector sentiu a raiva subir pelo sangue como nunca
havia sentido. Quando a imagem de Adam surgiu novamente na tela, Hector encontrou um foco para seu ódio. Encarou o rosto como se quisesse esculpir os traços indelevelmente
na memória. Finalmente o terrível vídeo chegou ao fim, e a tela ficou em branco. Nenhum dos dois se mexeu ou falou por um longo tempo. Continuaram a encarar a tela
vazia.

- Eu pagaria se pudesse - Hazel suspirou.

- A senhora não possui a quantia que eles estão exigindo. Dez bilhões de dólares - disse Hector, mais em tom de declaração do que de pergunta.

Ela balançou a cabeça e soltou a mão dele.

- A Bannock não me pertence. Pertence aos acionistas. Setenta e três por cento do capital social pertence ao fundo do Henry. Eu possuo uma procuração que me confere
poder de voto em relação às ações, mas não posso me livrar delas. Tenho apenas dois e meio por cento do capital integralizado das ações da empresa registrado em
meu nome. Se vender essas ações e o restante do meu patrimônio, é capaz que consiga arrecadar cinco bilhões, ou talvez cinco bilhões e meio. Talvez possa negociar
com eles.

- Nem pense nisso! - Hector disse. - Mesmo que tivesse vinte bilhões, não bastaria. Não é isso que eles querem da senhora.

- O que mais podemos fazer?

- Precisamos detê-los até Uthmann e Tariq voltarem. Diga-lhes que está levantando a quantia, mas que vai demorar. Diga qualquer coisa. Revide as mentiras deles com
as suas.

- E então o quê?

- Não sei - admitiu. - Nesta altura, é a única coisa que sei com certeza.

Hazel se virou na direção dele pela primeira vez desde que o vídeo começara. Era como se nunca o tivesse visto. O rosto dele parecia esculpido a partir de um mármore
pálido e indestrutível. Havia sido expurgado de qualquer emoção humana que não fosse ódio. Os olhos verdes faiscavam. O rosto era como a máscara de Nêmesis.

- Do que você tem certeza?

- De que vou tirar aquela menina dali, e vou matar qualquer um que tentar me deter.

Sentiu uma estranha emoção crescer dentro dela, como uma maré em ascensão. Ele era um homem, o primeiro que conhecera desde que Henry Bannock fora tirado dela. É
por ele que eu estava esperando. Eu o quero, pensou, preciso dele. Tanto eu como a Cayla precisamos dele. Meu Deus, como precisamos.


- Finalmente recebemos um pedido de pagamento de resgate - Hector disse aos homens reunidos na sala de comunicações. Observaram o rosto dele com atenção.

- Quanto? - perguntou Paddy O'Quinn em voz baixa.

- Não importa - Hector respondeu. - Não podemos pagar. Não vamos pagar.

Paddy assentiu.

- Vocês seriam loucos de pedra se pagassem. Mas o que vão fazer?

- Extração a quente - Hector respondeu. - Vamos tirar a menina de lá.

- Você sabe onde ela está? - todos se aproximaram avidamente, como cães de caça ao farejarem o cheiro da presa.

- Não! - recostaram-se nos assentos e não conseguiram disfarçar a decepção. Paddy falou em nome de todos.

- Então parece que temos um pequeno problema.

- Tariq e Uthmann vão voltar logo. Vão ter descoberto onde eles a estão mantendo.

- Tem certeza disso? - Paddy perguntou.

- Alguma vez eles fracassaram?

Ninguém respondeu por alguns momentos. Paddy comentou a seguir:

- Tem sempre uma primeira vez.

- Escute, Zé Pessimista, digo a você que a probabilidade é de dez para um se você apostar cem libras. Aguente ou fique calado.

- Onde eu vou arranjar essa quantia com o que você me paga?

- Certo! Quando Tariq e Uthmann voltarem, temos de estar preparados para partir imediatamente. Onde quer que formos, há apenas um modo de entrar. Saltamos à noite
de uma grande altitude.

Eles assentiram concordando.

- Não muitos, um grupo de dez homens. Todos os nossos falantes de árabe que puderem se passar por nativos.

- Em vez de chegar de pará-quedas, por que não usar o helicóptero da empresa? - Hazel perguntou.

- Eles nos ouviriam chegar. Uma aterrissagem noturna, ainda mais em um helicóptero? Não, obrigado - Hector recusou a oferta dela bruscamente, mas ela não demonstrou
estar ressentida.

- Ok, podem usar o meu jato.

- Nunca saltei de um Gulfstream antes - o olhar de Hector percorreu a sala. - Alguém já fez isso?

Eles balançaram a cabeça, e ele olhou novamente para Hazel.

- Não acho que seja uma boa ideia. Existe o problema da pressurização da fuselagem e da localização da porta, em frente à asa. A asa pode decapitar você quando saltar.
E, também, a velocidade do avião... Não, acho que teremos de escolher algo menos exótico.

- Que tal o Bernie Vosloo? - Paddy sugeriu.

- Estava pensando justamente nisso - Hector assentiu e se virou para Hazel. - Ele e a mulher operam uma aeronave de transporte, um Hércules C-130 antigo, levando
carregamentos pesados pela África e pelo o Oriente Médio. Não são frescos quanto ao que transportam, e sabem como manter o bico bem fechado. Já utilizei os serviços
deles várias vezes. O Hércules tem uma fuselagem parcialmente pressurizada e pode chegar a uma altitude de 6.400 metros se levar um chute no traseiro. A essa altura,
o barulho para quem está embaixo não será muito maior do que o de um gato mijando num pedaço de veludo.

Hazel nunca tinha ouvido a expressão antes e tentou manter o rosto elaboradamente sério enquanto tentava reprimir um sorriso, mas os olhos dela cintilaram como luzes
de Natal. Olhos absolutamente maravilhosos, pensou Hector, mas me distraem. Ele desviou o olhar dela para os homens.

- No entanto, não queremos saltar de 6.400 metros, portanto o Bernie vai acelerar bem menos para manter o nível de ruído baixo, e poderemos descer até três mil metros.
Nesse nível, ele pode despressurizar a cabine, e nós podemos pular. Como sempre, nos manteremos próximos durante a queda para atingirmos o chão em conjunto, e vamos
estar completamente equipados para lidar com um comitê hostil de boas-vindas.

- O que vem depois? - Dave Imbiss perguntou.

- Não se preocupe com isso, David, meu filho. Você não vai estar presente, nem você nem seu rostinho rosado de bebÉ - Hector respondeu e prosseguiu. - Essa é a parte
fácil. A difícil será a viagem de volta. Como sempre, há três possíveis saídas: terra, mar e ar. A passagem de primeira classe será para o helicóptero da empresa
- acenou com a cabeça para Hans Lategan, que estava sentado na fileira do fundo. - Hans estará à espera no helicóptero, na fronteira com o país civilizado mais próximo,
preparado para captar o nosso sinal de chamada e ir nos buscar. Isso deve ser suficiente - fez uma pausa -, mas todos estamos cientes do que pode acontecer aos planos
dos ratos e dos homens, portanto, vamos cobrir as outras duas rotas de saída. Tenho certeza de que eles estão mantendo a srta. Bannock prisioneira ou na Puntlândia
ou no Iêmen. Os sujeitos são piratas, portanto, nunca ficam muito longe do litoral.

Hector projetou o mapa no telão da parede e moveu o cursor sobre a área para demonstrar o que estava dizendo.

- Independente do que aconteça, Ronnie Wells vai estar nos esperando em seu torpedeiro na zona marítima - olhou para Ronnie na fileira do fundo, sentado ao lado
de Hans. - Que velocidade pode alcançar naquela banheira velha?

- Com meus novos tanques auxiliares no convés, pode chegar a mais de mil milhas náuticas - Ronnie respondeu. - E agradeço se você lembrar que ela não é uma "banheira
velha". Se eu acelerar, pode chegar aos quarenta nós.

- Desculpe pela escolha infeliz de palavras, Ronnie - disse Hector com um sorriso. - Portanto, o Ronnie vai estar esperando para proporcionar a todos vocês que conseguirem
chegar até a praia um cruzeiro de lazer pelo Mar Vermelho no caminho para casa.

- E se nem Hans nem Ronnie conseguirem cumprir o combinado, o que acontece, então?

Ah! É aí que você entra, Paddy. Você vai estar esperando na primeira fronteira em terra firme com uma coluna de caminhões. Se o alvo for o Iêmen, você ficará ou
na fronteira da Arábia Saudita, ou do Omã. Se o alvo for a Puntlândia, ficará na Etiópia esperando para ir nos buscar. Bernie Vosloo e a mulher podem levar você
e os caminhões até o local de avião, assim que soubermos aonde vamos. A propósito: não se esqueça de jeito nenhum de levar o médico junto. Com certeza alguém sairá
ferido se formos pela rota etíope - Hector olhou para o círculo de rostos ao redor. - Então, todo mundo tem trabalho a fazer. Quero estar pronto para partir dentro
de 24 horas assim que tomarmos conhecimento do alvo, isso pode acontecer a qualquer hora. Vamos nos mexer!

Assim que os demais saíram da sala, Hector ligou para Bernie Vosloo do telefone via satélite. Hazel estava escutando na extensão.

- Bernie, é Hector Cross. Onde você e a sua encantadora patroa estão?

- Oi, Heck. Estou em Nairóbi, mas não por muito tempo. Ainda está vivo? Aqueles caras bronzeados são ruins de alvo, não são?

- A pontaria deles é boa, eu é que aprendi a desviar. Escute, Bernie, tenho um trabalho para você.

Bernie deu uma risadinha.

- Você e o resto da África, Heck. Nella e eu temos pilotado sem parar, dia e noite. Amanhã nos mandamos para a República Democrática do Congo, aquela fossa de país
de nome irônico.

- Venha para Abu Zara. O clima e a cerveja são excelentes aqui.

- Desculpe, Heck. Tenho um contrato a cumprir. Um cliente importante. Não posso deixá-lo na mão.

- Qual é o valor do contrato?

- Cinquenta mil - Hector cobriu o bocal com uma das mãos e olhou para Hazel no outro lado.

- Qual é o meu limite? - suspirou.

- Com quem você está falando? - Bernie indagou com rispidez.

- Com a adorável senhora para quem trabalho. Aguarde um pouco, Bernie.

- O necessário para conseguir contratá-lo - Hazel suspirou em resposta e escreveu "um milhão de dólares" no bloco de anotações à sua frente, virando-o na direção
dele para que pudesse ver.

- Isso é loucura! - Hector balançou a cabeça e falou no bocal - Pagamos 250 mil dólares.

Bernie permaneceu calado por alguns momentos e disse a seguir:

- Adoraria ajudar. Desculpe, Heck. Mas é a minha reputação em jogo.

- Nella está aí?

- Sim, mas...

- Mas nada! Coloque-a ao telefone - o forte sotaque africaans de Nella surgiu na linha.

- Ja, Hector Cross. Qual é a enrolação desta vez, cara?

- Só liguei para dizer que amo você.

- Beije a minha bunda, Cross!

- Nada me daria mais prazer, Nella. Mas você tem de se divorciar do cretino do seu marido primeiro. Sabe o que ele acabou de fazer? Recusou a minha oferta de meio
milhão por dez dias de trabalho.

- Quanto? - Nella perguntou pensativa.

- Meio milhão.

- De dólares? Não de dinheiro africano do Banco Imobiliário?

- Dólares - confirmou -, adoráveis verdinhas norte-americanas.

- Onde você está?

- Em Sidi el Razig, Abu Zara.

- Chegaremos depois de amanhã para o café da manhã. E amo você também, Hector Cross.


Hector, Hazel e quatro agentes da Cross Bow estavam esperando na pista quando o monstruoso quadrimotor de transporte deu a volta e iniciou o procedimento de aproximação,
descendo num ângulo bastante inclinado.

- Nella está operando os controles - Hector disse com convicção.

- Como você sabe? - indagou Hazel.

- Bernie pilota como uma velha donzela. Nella é a personificação da cowgirl de rodeio de Germiston, a cidade que teria de ser entubada se alguém quisesse causar
um enema no mundo.

- Não seja grosseiro. Meu avô por parte de pai nasceu em Germiston.

- Aposto que, em outros aspectos, ele era um sujeito esplêndido.

O Hércules C-130 tocou o solo, foi desacelerando pela pista e manobrou para o lado para estacionar próximo de onde eles estavam, as hélices contra-rotativas espalhando
uma nuvem de areia pinicante sobre eles. Nella desligou os motores e estendeu a rampa pela porta traseira da fuselagem. Ela e Bernie desceram da aeronave. Nella
era uma loira robusta de rostinho de bebé. Vestia um macacão de camuflagem. As mangas haviam sido cortadas, o que revelava uma tatuagem de um anjo em voo no carnudo
braço direito. Era mais alta do que o marido.

- Ok, Heck, o que quer que a gente faça por meio milhão? Se conheço bem você, aposto que não vai ser moleza - disse ao trocarem um aperto de mão.

- Como sempre, acertou em cheio.

- Apresente-nos para sua namorada - Nella lançou um olhar penetrante sobre Hazel, tentando não demonstrar ciúmes.

- Quanto ao nosso relacionamento, Nella, meu amor, acho que você cometeu um pequeno engano. Esta é a sra. Bannock, minha chefe e sua. Portanto, um pouco de respeito
é recomendável. Venham, vamos até o terminal, onde podemos conversar.

Eles foram amontoados em duas caminhonetes Humvee. Sentaram-se à mesa comprida da sala de situação, e Hector explicou o problema aos Vosloos. Quando terminou, ficaram
todos em silêncio por alguns momentos, e então Nella olhou para Hazel.

- Também tenho uma filha. Graças a Deus, arrumou um homem bom na Austrália. Mas sei como deve estar se sentindo - disse, esticando um dos braços até Hazel no outro
lado da mesa e cobrindo a mão sedosa de Hazel com sua enorme pata encardida de óleo de motor e sujeira. As unhas eram curtas e quebradas.

- Levaria a senhora de graça se me pedisse, sra. Bannock.

- Obrigada, Nella. Você é uma boa pessoa. Dá para ver.

- Pelo amor de Deus, mulheres. Chega. Vão me levar às lágrimas se não pararem - Hector interrompeu. - Há apenas um problema. Não temos certeza de onde ou quando
estamos indo. Mas será para perto e logo.

- Logo quando? - Bernie Vosloo perguntou. - Não podemos passar semanas aqui esperando. Cada dia que passamos no chão nos custa dinheiro.

- Controle essa boca, Bernie Vosloo! - Nella sussurrou para ele. - Não ouviu eu dar a minha palavra para a senhora?

- Ele está certo! - disse Hazel. - É claro que pagarei pelo tempo parado. Vinte mil pelo primeiro dia, acrescidos de mais dez mil por cada dia que permanecerem em
terra.

- A senhora não precisa fazer, isso sra. Bannock - Nella parecia constrangida.

- Sim, preciso - Hazel replicou. - Agora vamos ouvir o que o sr. Cross tem a dizer.


Foram necessários quatro dias, mas estavam todos preparados. Ronnie Wells e três de seus homens desceram no torpedeiro até o Golfo e ao redor de Ras el Mandeb. Estava
ancorado em uma angra deserta na costa saudita, bem ao norte da fronteira com o Iêmen e do outro lado do estreito da Puntlândia. Ronnie usou as latas que carregava
no convés para reabastecer os tanques de combustível e estava em total e constante contato com Sidi el Razig.

O Hércules permaneceu na borda da pista atrás do minúsculo terminal do aeroporto. A aeronave continha três das caminhonetes GM de longa distância da Cross Bow fixados
no porão e um pequeno tanque de duas rodas de 750 galões à gasolina, que poderia ser acoplado à traseira de um dos outros veículos. As caminhonetes estavam lotadas
de equipamento e cada uma carregava um par de metralhadoras pesadas Browning, calibre .50, escondidas sob o oleado. Podiam ser montadas em alguns minutos, e seu
poder de fogo era devastador.

Hector havia ensaiado o procedimento de queda com Bernie e Nella. Assim que obtivessem o alvo, decolariam ao anoitecer e o sobrevoariam. Bernie e Nella tinham realizado
dezenas de saltos de paraquedas. Eram peritos. Assim que o grupo de Hector saltasse, o Hércules voaria até o aeródromo da fronteira em questão. Chegando lá, pousaria
e Paddy e Dave descarregariam as caminhonetes e se colocariam em posição de escuta e espera o mais perto da base do inimigo que fosse seguro e viável. Quando recebessem
o chamado de Hector pelo rádio, iriam em disparada até a fronteira em direção ao encontro combinado.

Esses dois veículos eram os menos desejáveis para a retirada. Hector estava contando fortemente com Hans Lategan e o grande helicóptero russo MIL-26 da Bannock Oil
para uma retirada organizada e rápida. A pintura vermelha e branca, nas cores da Bannock Oil, já havia recebido uma camada de spray nas cores verde e marrom de camuflagem.
Ficaria de prontidão na fronteira mais próxima, completamente abastecido.

Hazel tinha enviado uma resposta ao pedido de resgate, garantindo à Besta que estava fazendo tudo o que podia para arrecadar a quantia exigida, mas declarando que,
levando em conta o valor em questão, iria levar tempo. Esperava ter a quantia total pronta para ser enviada, de acordo com instruções, dentro de vinte dias. Não
recebeu um retorno, o que a deixava incessantemente aflita. Não restava nada a fazer a não ser esperar, mas Hazel Bannock não era boa de espera. Após o final da
conferência diária com o seu pessoal em Houston e de falar com o coronel Roberts, sobravam ainda dezoito horas a serem preenchidas.

Todas as manhãs Hector a levava para verificarem a chegada do voo local de passageiros de Ash-Alman, a capital de Abu Zara. Escaneavam os rostos de todos que desembarcavam,
mas Uthmann e Tariq nunca estavam entre eles. Até mesmo alguém como Hazel tinha um limite de resistência atlética, portanto eles não podiam passar mais do que sete
ou oito horas diárias correndo pelas dunas, ou praticando mergulho livre no paraíso de corais da enseada. Felizmente, não era difícil falar com ela agora que havia
começado a confiar um pouco em Hector e a baixar a guarda alguns centímetros. Quando discutiam política, ele começou a detectar uma tendência para a direita em relação
à sua instância original. No entanto, ela se opunha veementemente à pena de morte e acreditava na santidade da vida humana.

- Você está dizendo que não existe um único troglodita horrível neste mundo, não importa o quanto ele seja ruim, que não mereça morrer? - Hector indagou.

- A decisão permanece nas mãos de Deus. Não conosco.

- O velho lá em cima suspirou vezes suficientes nos meus ouvidos quando tenho um troglodita na minha frente, "destrua-o, Hector, meu camarada!". Quando o Senhor
chama, Hector Cross obedece.

- Você é totalmente pagão - ela mal conseguia esconder o sorriso.

Ele descobriu que ela era religiosa à moda antiga, que acreditava sublimemente na onipresença e onipotência de Jesus Cristo.

- Então, você acredita que, todas as vezes que ajoelha para rezar, J.C. está sintonizado na frequência do seu chamado? - ele perguntou.

- Espere para ver, Cross. É tudo o que tem a fazer.

- Dá para ver que a senhora tem batido papo com ele recentemente - ele acusou, e ela sorriu como a esfinge.

Essas discussões, e outras semelhantes, eram boas para passar o tempo. E, certo dia, após o jantar, ela reparou no jogo de xadrez barato em uma prateleira atrás
do bar do refeitório, e o desafiou para uma partida. Ele não jogava desde que tinha terminado a faculdade. Sentaram-se frente a frente com o tabuleiro no meio, e
ele logo descobriu que ela não se importava muito com a defesa, e que confiava em atacar agressivamente com a rainha. Uma vez que suas torres unissem forças, era
quase impossível contê-la. Porém, duas vezes ele conseguiu encurralar o rei e a rainha de Hazel com o cavalo. Após uma série de partidas disputadas, acabaram praticamente
em pé de igualdade.

E então, após o quinto dia desde a chegada de Bernie e Nella a Sidi el Razig, Hector disse:

- Sra. Bannock, vou levá-la para jantar hoje à noite, quer a senhora goste ou não.

- Continue assim e talvez consiga me convencer - ela disse. - Devo me vestir para a ocasião?

- Para mim, a senhora está bem como está.

Ele a levou de carro até uma faixa praiana cinco quilômetros adiante na costa. Ela ficou observando enquanto ele montava a churrasqueira.

- Ok, você sabe fazer fogo como um escoteiro mediano, mas qual é o cardápio?

- Venha, temos de ir às compras.

Restava apenas uma hora até o sol se pôr, mas eles nadaram por algumas centenas de metros até o recife de corais secreto de Hector. Após três mergulhos, ele conseguiu
pegar dois bodiões vermelhos como morangos, de quase três quilos cada, e duas lagostas grandes. Ela se sentou em uma toalha de piquenique com as pernas encolhidas
sob o corpo e uma taça de Burgundy em punho, enquanto assistia a Hector cozinhar.

- O jantar está servido - anunciou finalmente, e eles comeram com as mãos, arrancando a carne branca e suculenta da espinha do bodião e chupando a carne das pernas
encapadas das lagostas. Jogaram as sobras no fogo e observaram enquanto queimavam até esturricar. Depois, Hazel se levantou.

- Aonde você vai? - ele perguntou em um tom preguiçoso.

- Nadar - ela respondeu. - Pode vir junto se tiver vontade.

Ela levou as mãos para trás e abriu o fecho da parte de cima do biquíni. A seguir, colocou os polegares dentro do elástico da calcinha e se desvencilhou dela, que
caiu pelos tornozelos. Ela chutou a bela peça para o ar e ficou ali por um instante, de frente para ele. Ele ficou sem ar, chocado de prazer. O corpo dela era o
de uma mulher no auge absoluto - tonificado e com os seios firmes, o abdômen liso e rígido, os quadris se projetando com orgulho da linhas perfeitas da cintura,
como um vaso etrusco. Era uma mulher natural, não se depilava como era a moda hoje em dia, no estilo vedete pornô. Ela riu da cara dele, de um jeito provocante e
malicioso, e depois virou de costas e correu pela praia para mergulhar em uma pequena onda e nadar até águas mais profundas com braçadas poderosas. Lá, boiou de
costas e, ainda rindo, observou-o pulando em um pé só na areia antes de se desvencilhar da sunga.

- Vou pegar você, sua raposa! - gritou para esquentar o clima e saiu correndo pela praia.

Ela se encolheu de medo, deliciada, fazendo a água espumar ao nadar para longe dele. Hector a alcançou, e ela virou o rosto para ele, que procurou a boca de Hazel
com a própria. Ela colocou as mãos nos ombros dele de maneira submissa, até que os lábios dele estivessem a poucos centímetros. Então, Hazel se ergueu bem acima
dele, fazendo-o afundar. Quando ele emergiu cuspindo água, ela estava dez metros adiante. Hector disparou atrás dela, mas ao esticar o braço para agarrá-la, ela
suspendeu ambas as pernas no ar, tombou o corpo em L e mergulhou fundo nas águas escuras. Ele a perdeu de vista e boiou, virando-se devagar para vê-la emergir novamente.
Ela surgiu mais próxima à praia, e ele foi nadando na mesma direção, girando os braços e batendo os pés, deixando uma trilha de espuma para trás. Ela mergulhou de
novo, como um corvo-marinho pescador. Estava, vagarosa e desonestamente, atraindo-o de volta ao raso.

De repente, Hazel se levantou, com a água pela cintura. Ela esperou por ele e então correu ao seu encontro. Eles se encaixaram, respiração e ventre. Ela o sentiu
contra o corpo, rígido e enorme, tão pronto quanto ela. Ela lançou os braços ao redor do pescoço de Hector e prendeu os quadris dele com ambas as pernas. Foram necessários
alguns momentos de manobras frenéticas de ambas as partes antes que eles pudessem se alinhar perfeitamente, e então ele deslizou para dentro dela. Ela teve a impressão
de que ele chegaria até o coração.

- Meu Deus. Era o que eu estava esperando, por tanto tempo - ela respirou e se entregou a ele sem perguntas nem reservas.


Passava da meia-noite quando eles retornaram aos edifícios doterminal. Ele a acompanhou até o quarto e teria se despedido na porta com apenas um beijo demorado.

- Não seja bobo - ela disse, mantendo a porta aberta. - Entre.

- O que as pessoas vão pensar?

- Usando a sua terminologia erudita, eu não estou nem aí! - Hazel respondeu.

- Que grande ideia! Vamos lá - ele riu e a seguiu pela porta, fechando-a atrás de si.

Eles tomaram banho juntos, sem inibições, deliciando-se com o corpo um do outro enquanto enxaguavam a areia da praia e o sal. A seguir, foram para a cama.

- Hemingway chamava a cama dele de pátria - Hector comentou quando os dois deslizaram para baixo dos lençóis.

- O velho Ernie tem o meu voto - ela riu ao chegar pelo outro lado, encontrando-o no meio da cama.

Fizeram amor com alegria e carinho, mas a sombra da tragédia continuava a tingir a felicidade dos dois. Quando se cansaram momentaneamente, ela deitou nos braços
dele com o rosto encostado no peito nu e chorou baixo, mas com amargura. Ele acariciou o cabelo dela, compartilhando a agonia.

- Eu vou junto quando você for buscar a Cayla - ela disse. - Não consigo ficar aqui sozinha. Só aguentei até agora por sua causa. Sou tão durona quanto qualquer
um dos seus homens. Posso cuidar de mim durante uma crise, você sabe disso. Você tem de me levar junto.

- Você sabia que tem os olhos mais azuis e bonitos do mundo? - ele disse.

Ela se sentou e olhou para ele furiosa.

- Você está fazendo suas piadinhas idiotas numa hora destas?

- Não, minha querida. Estou dizendo que você não pode vir comigo.

Ela balançou a cabeça sem compreender, e ele prosseguiu:

- É possível que as coisas não corram conforme o planejado. Podemos ficar encurralados e ter de nos misturar à população local e cavar o caminho da saída. Os árabes
chamam olhos como os seus de "olhos do demônio". O primeiro inimigo que olhar para o seu rosto saberá o que você é. Se eu levá-la comigo, isso diminui as chances
de um resgate seguro de Cayla pela metade.

Hazel olhou fixamente para ele por um longo tempo, em seguida, abaixou os ombros e escondeu o rosto no peito dele novamente.

- Esse é o único motivo que me faria ficar - ela suspirou. - Não faria nada que reduzisse as chances de resgatá-la. Você vai tirá-la de lá, Hector? Vai trazê-la
de volta para mim?

- Sim, vou.

- E você? Vai voltar para mim? Acabei de encontrá-lo. Não posso perder você agora.

- Eu vou voltar, prometo, com Cayla ao meu lado.

- E eu acredito em você - ela disse.

Ela permaneceu agarrada a ele. Hector mal podia ouvir a respiração dela. Tomou cuidado para não se mexer e incomodá-la. Ela acordou assim que a luz da aurora se
infiltrou pelas cortinas.

- Essa foi a primeira noite em que dormi direto desde que Cayla... - ela não terminou a frase. - Estou morrendo de fome. Vamos tomar o café da manhã.

A grande Nella chegou ao refeitório antes deles, e tinha uma enorme travessa com ovos mexidos, bacon e linguiça diante dela. Ela ergueu o olhar até Hazel, e um flash
de entendimento intuitivo passou entre as duas. Nella baixou os olhos até o prato e sorriu.

- Mazel tov! - ela disse aos ovos, e Hazel corou.

Hector jamais teria acreditado que ela fosse capaz de tal coisa, e o fenômeno o deixou espantado - para ele, era algo mais encantador do que o pôr do sol. Após comerem,
ele levou Hazel até o Humvee no lado de fora. Ela se sentou ao lado dele no banco da frente, e Hector encostava na perna dela todas vezes que trocava a marcha, o
que a fazia sorrir modestamente. Ele estacionou o Humvee à sombra sob a asa do Hércules, pois mesmo a essa hora o sol já estava desconfortavelmente quente. Agora
podiam ficar de mãos dadas. O Fokker F-27 Friendship estava apenas meia hora atrasado.

- Em termos de Abu Zara Airways, está quase adiantado - Hector disse a ela enquanto observavam a aeronave taxiar em frente ao edifício do terminal e desligar os
motores. Os cerca de vinte passageiros começaram a desembarcar, e Hector os observou sem grandes expectativas. Eram quase todos árabes em trajes tradicionais, carregando
seus pertences em trouxas e pacotes. De repente, Hector se contraiu e apertou a mão dela com força.

- Filhos da mãe! São eles! - praguejou em voz baixa.

- Onde? - Hazel se endireitou no assento. - Para mim, parecem todos iguais.

- Os dois últimos. Posso reconhecê-los a um quilômetro de distância só pelo andar.

Deu uma buzinada curta e ligou a ignição do Humvee. Os dois árabes olharam para eles, caminhando em sua direção. Subiram no banco de trás.

- Que a paz esteja com vocês! - Hector os saudou.

- Em paz, você esteja - responderam em uníssono.

Hector dirigiu por um quilômetro e meio ao longo da pista acima da praia antes de estacionar.

Hazel se virou no assento para olhar para os dois homens na parte de trás.

- Isso está me enlouquecendo! - disse de supetão. - Eu preciso saber! Descobriram onde minha filha está, Uthmann?

- Sim, sra. Bannock. Descobrimos. Eu estava hospedado na casa do meu irmão Ali em Bagdá. Ele me pareceu diferente. Acredita que o único caminho a ser seguido pela
nossa nação é a rota da Jihad. Ele é um combatente mujahid e está fortemente aliado à Al-Qaeda. Sabe que não concordo com o ponto de vista dele, mas somos irmãos
e unidos pelo sangue. Jamais revelaria qualquer coisa relativa às atividades dele na jihad, mas após essas últimas semanas que passei na casa do meu irmão, o comportamento
dele se tornou mais relaxado e menos sigiloso. Ele normalmente usa um celular e nunca faz telefonemas de negócios de casa. Há alguns dias, cometeu o erro de pensar
que eu tinha saído com a mulher dele para vistar uns amigos, mas eu estava no andar de cima da casa quando Ali usou a linha fixa para falar com um dos seus colegas
na Al Qaeda. Escutei a conversa pela extensão. Estavam discutindo a captura e o aprisionamento da sua filha, e um deles mencionou que ela tinha sido levada por membros
do clã do xeique Khan Tippoo Tip.

- Tippoo Tip! É o mesmo nome do camareiro que estava a bordo do Golfinho. Mas quem é esse xeique? - Hazel indagou, e Uthmann respondeu.

- É um senhor da guerra, e o chefe de um dos clãs mais poderosos da Puntlândia.

Hector tocou os ombros dele.

- Como sempre, você provou seu valor, meu velho amigo - disse.

- Espere! Tenho mais coisas para contar - Uthmann balançou a cabeça demonstrando tristeza. - Você se lembra dos homens que matou a tiros em Bagdá há muitos anos?

Hector assentiu.

- Os três jihadistas que detonaram a bomba na beira da estrada - olhou de lado para Tariq. - É claro que Tariq e eu nos lembramos deles.

- Sabe como se chamavam?

- Não - Hector admitiu -, aparentemente, estavam todos usando codinomes. Nem mesmo o Departamento de Inteligência Militar conseguiu identificá-los. O que você descobriu,
Uthmann?

- O homem que você matou se chamava Saladin Gamel Tippoo Tip. Era filho do xeique Tippoo Tip e pai de Adam Tippoo Tip. O xeique declarou uma rixa de sangue a você
- Hector olhou para ele sem dizer nada, e Uthmann prosseguiu. - O dhow que você e Ronnie Wells destruíram tinha cinco homens a bordo. Haviam sido enviados pelo xeique
Khan para se vingar da morte do filho mais velho. Entre os que morreram, estava Gafour Tippoo Tip, o quinto filho do xeique. A dívida de sangue foi então dobrada.
O xeique enviou um terceiro filho para encontrá-lo e vingar os irmãos...

- O que se chamava Anwar! - Hector exclamou. - Meu Deus! Jamais irei esquecê-lo. Em seu último suspiro de vida, ele zombou de mim, dizendo: "O meu nome é Anwar.
Lembre disso, Cross, seu grande porco. A dívida não foi sanada. A Disputa Sangrenta continua. Outros virão".

Tariq assentiu.

- É exatamente o que está dizendo, Hector.

- Onde podemos encontrar essa criatura chamada xeique Tippoo Tip? - Hector perguntou.

Tariq respondeu sem hesitar:

- Eu o conheço. A fortaleza dele fica na Puntlândia.

- Puntlândia! Esse nome vive surgindo - Hazel interveio.

- É uma província rebelde da Somália. A Puntlândia é território do Tariq - Hector explicou, olhando novamente para Tariq. - É o que estávamos esperando. O que tem
a nos dizer sobre esse troglodita?

- Apenas o que todo mundo na Puntlândia sabe: que a fortaleza de Tippoo Tip se situa na região noroeste do país, em um lugar chamado "Oásis do Milagre". Fica no
sul da principal rodovia da província, perto do pequeno vilarejo de Ameera.

- Você conhece a área? - Hector indagou, mas Tariq balançou a cabeça.

Hector o conhecia tão bem que não teve dúvidas de que ele estava mentindo ou, pelo menos, contando apenas parte da verdade.

- Ok - Hector não precisava de outra confirmação. - Precisamos descobrir tudo o que pudermos a respeito de Tippoo Tip e da fortaleza. Precisamos de mapas da área.
Tenho de retornar ao terminal e botar todo mundo para trabalhar.

Quando se encontravam reunidos novamente ao redor da mesa, Hector olhou para todos antes de falar.

- Bem, nós agora sabemos para onde vamos. Alguém aqui além do Tariq conhece um lugar na Puntlândia chamado Oásis do Milagre, ou o vilarejo de Ameera? Esses são os
nossos alvos.

Todos pareciam surpresos. Hector se dirigiu a Dave Imbiss.

- Dave, entre no site do Google Earth. Tariq vai apontar os alvos no mapa. Quero cópias das fotos de satélite da área. Quero saber a distância de avião. Quero saber
qual é a pista mais próxima na Etiópia, e a distância de carro de lá até o nosso alvo - fez uma pausa e olhou para Bernie e Nella. - Ou vocês dois têm alguma ideia
a respeito disso? Conhecem uma pista de pouso adequada?

- Jig Jig! - disse Nella, que soltou uma gargalhada histérica e deu um cutucão com um dos cotovelos nas costelas de Bernie, fazendo-o se encolher.

- Um terreno de pouso com um nome desses? - Hector levantou uma das sobrancelhas. - Interessante!

- Foi Nella quem deu o nome, não eu - Bernie protestou enquanto se endireitava e esfregava as costelas. - Não sei qual é o nome verdadeiro, provavelmente não tem.
É uma antiga faixa militar italiana abandonada da Segunda Guerra Mundial. Está em condições deploráveis, mas o Hércules não se importa com terrenos acidentados.

- Fizemos um pouso de emergência lá, certa vez - Nella ainda estava rindo esfuziantemente. - Fui acometida de um fogo incontrolável e nós aterrissamos para o Bernie
sossegar o meu facho. Foi maravilhoso. Um dos seus melhores desempenhos de todos os tempos. Nunca esquecerei.

Bernie manteve a postura sóbria, apesar das explosões de riso e da frivolidade em si.

- Está situada em um local perfeito, a menos de cinquenta quilômetros da fronteira da Puntlândia, mas o melhor de tudo é: não há nenhum oficial presente, nem polícia,
nem imigração - disse Bernie.

- Soa como se tivesse sido feita para nós. Mostre ao Dave a localização no mapa. Nella, você acha que consegue se conter quando aterrissar lá de novo? Chega de transas
indiscriminadas! - ele se virou para Paddy. - Paddy, contate Ronnie Wells pelo rádio e diga a ele para atravessar com o torpedeiro para o litoral da Puntlândia e
encontrar um ancoradouro seguro o mais próximo possível do alvo. Avise-nos quando ele chegar lá.

Durante todo o tempo em que estava distribuindo as ordens, estava ciente que Tariq o observava dissimuladamente. Finalmente, lançou um olhar direto para ele, e Tariq
sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente, levantando-se a seguir e saindo da sala. Hector aguardou um minuto e disse para Paddy O'Quinn.

- Continue a reunião. Não vou demorar.

Saiu à procura de Tariq e, após alguns minutos, avistou-o atrás de uma das caminhonetes estacionadas. Estava fumando um cigarro, desprezando a placa na lateral do
veículo que dizia "Proibido Fumar". Quando viu Hector se aproximar, esmagou o cigarro sob a sola do sapato e saiu andando ao longo do oleoduto. Hector o seguiu e
o encontrou agachado atrás de uma das estações de bombeamento.

- Fale comigo, amado do Profeta - Hector pediu ao se agachar ao lado dele.

- Não podia falar na frente dos outros - Tariq explicou.

- Nem mesmo do Uthmann?

Tariq deu de ombros.

- Você acha mesmo que Uthmann conseguiu reunir todas aquelas informações sobre o clã Tippoo Tip simplesmente porque escutou sem querer uma conversa do irmão ao telefone?
Meu receio é em relação à minha família, mestre. Não posso correr riscos.

- Há uma certa verdade no que você diz, Tariq - Hector assentiu pensativo.

Apesar do profundo afeto que sentia por Uthmann, sentiu os vermes da traição se movimentando nos intestinos.

Tariq respirou fundo e disse:

- Minha tia se casou com um homem do vilarejo de Ameera, bem perto do Oásis do Milagre. Quando eu era criança, passava vários meses lá todos os anos. Conduzia os
rebanhos com meus primos. Vi a fortaleza de Tippoo Tip muitas vezes, mas apenas a distância. Mas isso foi há muito tempo, e talvez a minha tia esteja morta agora.

- Mas talvez não esteja. Talvez ainda trabalhe na fortaleza. Talvez saiba onde estão mantendo a menina. Talvez ainda o ame o bastante para mostrar como entrar na
fortaleza e onde encontrar a menina.

- Talvez - Tariq sorriu e acariciou a barba. - Talvez todas essas coisas sejam verdade.

- Talvez você devesse visitar sua tia e descobrir.

- Talvez - Tariq assentiu.

- Talvez você deva partir hoje à noite. Vamos lançá-lo do Hércules próximo a Ameera. Vou dar um dos telefones de satélite para você. Ligue para mim assim que fizer
contato com sua família. E isso não é talvez.

- Como sempre, ouvi-lo é obedecê-lo, Hector - Tariq assentiu, e seu sorriso se tornou mais largo.

Hector deu um soco de brincadeira em seu ombro e começou a se levantar, mas Tariq colocou a mão em um de seus braços.

- Espere, tenho mais uma coisa para contar - Hector se agachou novamente ao lado dele. - Se conseguirmos pegar a menina, vários homens virão no nosso encalço. Vão
estar em caminhonetes quatro por quatro. Vamos estar a pé com a menina. É capaz que ela esteja fraca e doente depois do que fizeram com ela. Talvez tenhamos de carregá-la.

- Diga o que sugere.

Ao norte da fortaleza, há uma ravina funda e rochosa. Estende-se, de leste a oeste, por 112 quilômetros. Podemos atravessá-la a pé, mas até mesmo um veículo de tração
nas quatro rodas não conseguirá nos seguir. Terão que se deslocar por cerca de cinquenta ou sessenta e cinco quilômetros na direção leste para atravessarem o wadi,
o vale. Assim que atravessarmos o vale, teremos uma dianteira de duas ou três horas, ou até mais.

- Você merece ser recompensado com uma centena de virgens! - Hector disse sorrindo.

- Ficarei contente com uma - disse Tariq retribuindo o sorriso -, mas uma das boas.

Hector o deixou agachado à sombra da casa de bombeamento enrolando mais um cigarro.

Assim que Hector entrou na sala de situação, Dave se dirigiu a ele.

- Essas são as fotos de satélite do Google Earth da área, chefe - ele tamborilou os dedos sobre os mapas estendidos na mesa à sua frente. - O vilarejo de Ameera
está sinalizado, mas não consigo encontrar nada em relação ao Oásis do Milagre.

- Vamos dar uma olhada - Hector estudou a fotografia em alta resolução e depois bateu com um dos indicadores sobre ela. - Aqui está! - exclamou. - Mo'jiza. O milagre.
Passe as coordenadas, Dave.

Enquanto Dave fazia os cálculos, Hector continuou a analisar o mapa. Agora que sabia o que e onde procurar, encontrou o vale imediatamente. Pegou a lupa de Dave
e examinou o wadi cuidadosamente. A informação fornecida por Tariq se confirmou - nenhuma estrada ou trilha atravessava o vale.

Endireitou as costas e foi até onde se encontravam Bernie e Nella, no lado de fora, tragando seus cigarros. Hector falou com eles em voz baixa:

- Hoje à noite, quero que vocês deixem o Tariq o mais próximo possível do vilarejo de Ameera. Ele está sendo infiltrado para fazer um reconhecimento da área. Depois
disso, vão prosseguir diretamente até a pista de Jig Jig com o Paddy e a gangue dele, que vão estar a bordo. Vão descarregá-los e as caminhonetes e depois voltar
aqui para Sidi el Razig - através da abertura da porta, ele olhou para Hazel, que tinha saído da sala de situação e ido atrás dele. Sabia que não era sensato, tampouco
educado, deixá-la de braços cruzados em Sidi el Razig, sem nada para ocupá-la.

- A sra. Bannock e eu vamos acompanhar vocês no passeio até Ameera e Jig Jig.

Hazel assentiu em concordância, e Hector se virou novamente para Bernie.

- Calcule o tempo de voo de cada estágio da viagem. Temos que chegar a Jig Jig enquanto ainda estiver claro o suficiente para aterrissar. Não queremos ficar dando
voltas na área por muito tempo e chamar atenção. Acha que conseguimos encontrar a pista de primeira?

- Pergunta estúpida - Nella respondeu. - Já fomos lá antes, lembra?

Ela colocou um par de óculos de leitura, de armação de plástico laranja, sobre o nariz e ela e Bernie foram trabalhar na calculadora. Em poucos minutos, Nella olhou
para cima:

- Ok, a decolagem daqui será às vinte horas em ponto. Quem não estiver a bordo fica para trás.

 

Hector e Hazel ficaram na cabine de voo do Hércules e, por sobre a cabeça dos pilotos, assistiram ao anoitecer africano. Hazel se recostou levemente nele. Os últimos
raios de sol iluminavam as cristas das montanhas adiante, colorindo-as em tons de bronze e de ouro recém-cunhado. Simultaneamente, a terra lá embaixo deles já havia
sido apagada pela escuridão, e apenas minúsculos pontinhos de luz assinalavam o posicionamento dos vilarejos e aldeias da Puntlândia, espalhados por todo seu território.

- É tão bonito - Hazel suspirou. - Mas não consigo enxergar a beleza devido ao horror. Cayla está lá embaixo, em algum lugar.

A noite os envolveu completamente, e as estrelas se espalhavam, esplendorosas, sobre eles. Nella se virou no banco e retirou os fones dos ouvidos.

- Estou iniciando a descida agora. São vinte minutos até a zona de salto, Hector. Diga para os seus homens ficarem com o equipamento em ordem e de prontidão.

Hector foi até a cabine principal. A maioria dos homens de Paddy tinha subido nas caminhonetes e encontrado um lugar confortável para dormir. Mas Tariq estava esperando
por Hector próximo à saída traseira. Estava vestido como um camponês somali, com os pertences em uma bolsa de pele de cabra amarrada ao redor da cintura e sandálias
de couro cru nos pés. Enquanto Hector o ajudava a afivelar o paraquedas, repassou rapidamente os sinais de contato e reconhecimento que haviam combinado.

- Dez minutos até a zona de salto - a voz de Nella chegou pelos alto-falantes.

Hazel foi apertar a mão de Tariq.

- Não é a primeira vez que está arriscando sua vida por mim, Tariq. Vou encontrar uma maneira de retribuir.

- Não exijo pagamento, sra. Bannock.

- Então rezarei para que Alá o abençoe e proteja - disse e, em seguida, a voz de Nella nos alto-falantes foi ouvida mais uma vez.

- Cinco minutos até a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora. Verifique se as correias de segurança estão enganchadas.

A rampa abaixou pesadamente, e o frio ar noturno chicoteou em volta das cabeças, dando puxões nas roupas.

- Consigo enxergar as luzes de Ameera logo adiante - Nella cantou. - Um minuto para saltar.

Em seguida, começou a contagem regressiva:

- Cinco, quatro, três, dois e já! Já! Já!

Tariq correu para a frente e colocou primeiro a cabeça para fora da rampa. O vento o puxou instantaneamente pela escuridão. Nella fechou a rampa traseira e aumentou
gradualmente a potência dos motores. Prosseguiram rumo a Jig Jig.

Rodearam a pista ao amanhecer. Havia um edifício em ruínas, destelhado e com as paredes restantes caindo aos pedaços. Mesmo após oitenta anos, a pista abandonada
ainda era sinalizada pelos pequenos montes de pedras caiadas. O único sinal de vida estava na encosta do morro acima da pista, onde um menino enrolado em um cobertor
vermelho se aquecia diante de uma pequena fogueira fumegante, enquanto suas cabras pastavam ao redor. A fumaça revelou a direção do vento para Nella. Ao ouvir o
ruído retumbante do Hércules que voava baixo sobre eles, o menino e seu rebanho se dispersaram em pânico. Nella aterrissou a grande máquina tão suavemente quanto
uma borboleta pousando em uma rosa. A seguir, a aeronave foi aos solavancos e chacoalhando sobre o piso marcado, estacionando bem antes do final da pista. Nella
abriu a porta traseira, e Paddy conduziu o comboio de três caminhonetes rampa abaixo e, com um último aceno da mão enluvada, arrancou em direção à fronteira somali.
Nella usou os motores para acelerar o Hércules em uma volta de 180 graus, e eles estavam novamente no ar cinco minutos depois de terem pousado.
- Cinco horas e meia de voo de volta - Hector disse ao colocar um dos braços ao redor dos ombros de Hazel. - Não tenho a menor ideia de como vamos passar o tempo.

- Este porão de carga é todo nosso - Hazel comentou. - Posso fazer uma sugestão?

- Li sua mente e acho a sugestão excelente. Sra. Bannock, a senhora é um gênio.


Tariq encontrou um buraco de tamanduá africano, onde enfiou os paraquedas e o capacete de proteção. Enrolou o turbante ao redor da cabeça e pendurou a bolsa de pele
de cabra atravessada sobre o ombro. Durante a descida, havia memorizado cautelosamente a direção do vilarejo. Havia apenas duas ou três luzinhas acesas, e ele ficou
impressionado com a precisão da vista de Nella Vosloo, que fora capaz de distingui-las a três mil metros de altura. Ele se colocou a caminho de Ameera e, após oitocentos
metros, sentiu o cheiro da fumaça dos fogões a lenha e o forte odor das cabras e dos homens. Ao se aproximar do vilarejo, um cão latiu e outro se juntou a ele, mas
todos estavam adormecidos. Haviam se passado dez anos desde sua última visita, mas a lua quase cheia fornecia iluminação suficiente para que ele se orientasse enquanto
se movia silenciosamente entre as cabanas de teto de palha. A casa de sua tia era a terceira após o poço. Ele bateu na porta e, após um intervalo, a voz baixa de
uma mulher disse do outro lado:

- Quem é? O que você quer a esta hora da noite? Sou uma mulher decente. Vá embora!

- É o Tariq Hakam, venho à procura da irmã de minha mãe, Taheera.

- Espere! - gritou a mulher que não podia ser vista.

Ele ouviu ela se movimentar pela cabana e o riscar de um fósforo. A luz suave e amarelada de uma lâmpada de querosene podia ser vista através das frestas nas paredes
de barro. Finalmente a porta se abriu, e a mulher estava olhando para ele.

- É você mesmo, Tariq Hakam? - ela perguntou e segurou a lâmpada de modo que iluminasse o rosto dele. - Sim - suspirou timidamente -, é você mesmo.

De forma despojada, afastou o véu do rosto.

- Quem é você? - ele a encarou.

Ela era jovem e muito bonita. Os traços eram vagamente familiares.

- Fico triste que não tenha me reconhecido, Tariq. Sou a sua prima Daliyah.

- Daliyah! Mas você está tão crescida!

Ela deu uma risadinha modesta e puxou o véu novamente sobre a boca e o nariz. Havia apenas dez anos, ela era como um ouriço que não saía do pé dele, comportando-se
da maneira mais irritante possível, vestindo saias curtas e encardidas, com os cabelos emaranhados e moscas caminhando sobre o ranho ressequido debaixo do nariz.

- Minha tia está, Daliyah?

- Minha mãe está morta, Tariq, que Alá conserve a sua alma. Retornei a Ameera para viver meu luto.

- Que ela encontre a felicidade no Paraíso - disse em voz baixa. - Não sabia que tinha morrido.

- Ficou doente por um longo tempo.

- E você, Daliyah? Tem um protetor? Seu pai, seus irmãos?

- Meu pai morreu há cinco anos. Meus irmãos partiram. Foram para Mogadíscio lutar pelo exército de Alá. Estou sozinha aqui - fez uma pausa antes de prosseguir. -
Há homens aqui, homens rústicos e grosseiros. Infelizmente. Por isso hesitei em abrir a porta para você.

- O que vai ser de você?

- Antes de morrer, a minha mãe cuidou para que eu fosse trabalhar como serviçal na fortaleza no Oásis do Milagre. Voltei para cá apenas para enterrá-la e viver o
meu luto. Agora que os dias de luto se passaram, voltarei para o meu trabalho na fortaleza.

Ela o tinha conduzido até à cozinha, em uma extensão no fundo da cabana. Abaixou a lanterna e virou-se para ele:

- Você está com fome, primo? Tenho algumas tâmaras e pão sem fermento. Tenho também coalhada de leite de cabra - estava ávida para agradá-lo.

- Obrigado, Daliyah. Trouxe um pouco de comida comigo. Podemos compartilhar.

Ele abriu a bolsa de couro e retirou um pacote de rações militares. Os olhos dela se acenderam. Ele imaginara que ela não andava se alimentando bem. Eles se sentaram
um de frente para o outro, de pernas cruzadas no chão seco de barro, com pequenas tigelas esmaltadas entre os dois, e ele a observou comer com prazer. Ela sabia
que estava sendo observada, e manteve os olhos modestamente abaixados, mas de vez em quando sorria um pouco para si mesma. Quando finalmente terminaram, ela enxaguou
as tigelas e voltou a se sentar diante dele.

- Você diz que trabalha na fortaleza? - perguntou, e ela assentiu em confirmação. - Tenho negócios a tratar na fortaleza - Tariq disse, e ela olhou para ele com
um ligeiro interesse.

- É o que o traz aqui? - ele inclinou a cabeça e ela continuou - O que está procurando, primo?

- Uma menina. Uma jovem branca de cabelos claros.

Daliyah engasgou e cobriu a boca com uma das mãos. Os olhos dela estavam escuros de choque e de medo.

- Você a conhece! - disse com convicção.

Ela não respondeu, e em vez disso abaixou a cabeça com os olhos fixos no chão entre eles.

- Vim buscá-la para levá-la de volta à família.

Ela balançou a cabeça com tristeza.

- Cuidado, Tariq Hakam. É perigoso falar assim livremente. Temo por você.

Ficaram calados por um longo período, e ele a viu tremer.

- Vai me ajudar, Daliyah?

Conheço essa menina, ela é jovem como eu. Mesmo assim, foi dada aos homens para brincarem com ela - a voz era quase inaudível. - Ela está doente. Está doente por
causa dos ferimentos que sofreu. Está doente de medo e solidão.

- Leve-me até ela, Daliyah. Ou pelo menos me mostre o caminho.

Ela demorou um pouco a responder e então disse:

- Se eu fizer o que me pede, eles vão saber que fui eu quem levou você até ela. Vão fazer comigo o que fizeram com ela. Se eu levá-lo até ela, não posso permanecer
neste lugar. Você me levará junto quando partir, Tariq? Vai me proteger da ira deles?

- Sim, Daliyah. Levarei você comigo, com prazer.

- Então vou ajudar, Tariq Hakam, meu primo - deu um sorriso tímido, e seus olhos escuros brilharam à luz da lanterna.


Tariq ficou agachado sob a saliência de uma rocha voltada para o leste. Estava ali fazia uma hora, desde o anoitecer. Estava pensando na prima Daliyah. Ainda pensando
sobre a transformação dela de menina em mulher. Pensar nela o fazia se sentir feliz. Na manhã em que se despediu dele para caminhar os mais de seis quilômetros até
o Oásis do Milagre, ela havia tocado o braço dele e dito:

- Estarei à sua espera quando vier.

Ele esfregou o braço no local em que ela o tocou e sorriu.

Os pensamentos dele foram distraídos pelo leve tremor de um som no céu. Olhou para cima, mas não havia nada além de estrelas. Inclinou a cabeça para o lado e escutou.
O som se intensificou. Ele levantou e pegou a velha lata de querosene com a tampa cortada que Daliyah havia lhe dado e a levou para fora. Fez uma pilha com as pedras
que havia juntado anteriormente ao redor da lata para apoiá-la com firmeza. Ficou de novo na escuta - dessa vez não havia dúvidas. A vibração de múltiplos motores
de aeronaves era inconfundível. Tirou o sinalizador naval de socorro da bolsa e puxou a fita de ignição, jogando-o dentro da lata. Deu um passo para trás. As chamas
irromperam, e a fumaça sulfurosa borbulhou para fora da lata. O brilho avermelhado foi refletido no sentido vertical. O barulho dos motores aumentou até ficar logo
acima da cabeça dele.


A voz de Nella retumbou dos alto-falantes:

- A chama do marcador vermelho está no meu campo de visão. Dois minutos para a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora.

Hector tinha dividido os homens em dois grupos de cinco. Saltaria primeiro com o grupo dele, e Uthmann o seguiria imediatamente com seus quatro homens. Estavam todos
vestidos em trajes tradicionais, com lenços pretos cobrindo grande parte do rosto, mas por cima usavam coletes à prova de balas e capacetes de batalha, e carregavam
kits de sobrevivência, dez pentes de munição para os rifles de assalto nos cintos e uma faca de trincheira embainhada. As facas haviam sido afiadas pelo armeiro
da Cross Bow até que estivessem boas o suficiente para barbear.

- Primeiro grupo de pé! - Hector comandou, e eles se ergueram e caminharam com passos arrastados até a porta aberta.

- Acendam as suas luzes de sinalização!

Cada um deles tinha uma luz fosforescente minúscula afixada à frente do capacete com um elástico. Eles ergueram os braços e as acenderam. As lâmpadas eram azuis,
e a luz que emanavam era tão tênue que seria pouco possível que um observador hostil em terra pudesse captá-la, mas os pontinhos luminosos serviriam para que pudessem
localizar uns aos outros durante a queda livre. Hazel, que estava sentada no banco ao lado de Hector, se levantou e colocou os braços ao redor do pescoço dele.

- Amo você! - suspirou, ele era o primeiro homem para quem dizia aquilo em muito tempo. - Volte. Volte para mim.

Nos alto-falantes, a voz de Nella havia iniciado a contagem regressiva para a queda.

- Amo você mais do que posso expressar - Hector disse e a beijou, deixando um borrão de tinta de camuflagem na bochecha de Hazel, que ele limpou carinhosamente com
um dos polegares. - Quando voltar, trarei Cayla comigo.

Ela se virou de costas para ele rapidamente e correu em direção à entrada da cabine de pilotagem. Não queria que a visse chorar. Antes que alcançasse a cabine, Nella
deu o comando de salto pelos alto-falantes.

- Grupo número um! Já! Já! Já! - Hazel se virou rapidamente para ter um último vislumbre, mas ele já havia sido sugado pelo ventre sombrio da escuridão.

Hector estabilizou a queda pelo vento veloz usando a posição de estrela, com a barriga para baixo, e a primeira coisa que fez foi procurar pela chama de sinalização
de Tariq. Avistou-a três mil metros abaixo, a um ângulo inferior de cerca de 45 graus. Em seguida, procurou as luzes azuis dos homens no espaço ao redor. Assim que
localizou todos, fez uma manobra com movimentos sutis dos membros e do corpo para se colocar na frente da formação. Seus quatro companheiros estavam todos próximos
quando caíram na direção da chama vermelha. Ele checou o altímetro e o cronômetro. Estavam em queda livre havia um pouco mais de um minuto. Já tinham alcançado a
velocidade terminal, e a terra se aproximava rapidamente. Estavam a menos de 450 metros acima do chão quando ele fez um sinal com a mão para que ativassem e abrissem
os paraquedas. Agora, ficava mais fácil manobrar, e eles deslizaram pela pequena brisa para pousarem, como um bando de garças-azuis, a cerca de vinte passos da chama
vermelha, aterrissando quase simultaneamente e ficando de pé enquanto esvaziavam o ar dos paraquedas. De imediato, formaram um círculo defensivo com as armas apontadas.

- Tariq! - Hector chamou discretamente. - Apareça!

- Sou eu, Tariq Hakam - levantou-se detrás de uma pilha de pedras quebradas. - Não atirem!

Correu ao encontro de Hector, e eles trocaram um breve aperto de mão duplo.

- Está tudo bem? - Hector indagou. - Onde está a tal menina, sua prima?

Tariq havia falado brevemente sobre ela de manhã no telefonema via satélite.

- Ela está dentro da fortaleza. Vai nos levar até onde estão mantendo a menina Bannock.

- Pode confiar nela? - Hector perguntou. Contar com alguém dentro da fortaleza era um incrível golpe de sorte, e ele sempre desconfiava quando a sorte era muita.

- Ela é sangue do meu sangue - Tariq respondeu e quase adicionou "e mora em meu coração". Mas não queria tentar Iblis, o Demônio.

- Ok. Vou aceitar sua palavra - Hector entregou a ele o rifle e o kit sobressalentes que estava carregando.

Nesse momento, Uthmann e seus quatro homens caíram do céu escuro e aterrissaram próximo a eles. Tariq chutou a lata e pilha de pedras sobre a chama ardente. Os outros
estavam enrolando e enterrando os paraquedas.

- Tariq, lidere! Avante, já!

Seguiram Tariq a intervalos cuidadosamente determinados. Com as armas à mão, avançaram a passos rápidos, em ritmo acelerado ao longo de um caminho acidentado formado
pelo pastar das cabras. Alcançaram as primeiras palmeiras do oásis em 45 minutos e formaram novamente um círculo defensivo, deitando de bruços no chão e de cabeça
erguida. Tariq fez um sinal indicando que o terreno adiante estava livre, e Hector gesticulou para que avançasse. Tariq desapareceu entre as árvores. Uthmann engatinhava
ao lado de Hector.

- Aonde ele está indo? - suspirou. - Por que paramos aqui?

- Tariq tem uma pessoa infiltrada na fortaleza. Foi fazer contato para depois nos guiar através de um dos portões laterais.

- Eu não sabia disso. Quem é o informante? Homem ou mulher? É algum parente do Tariq?

- Qual é a importância disso? - Hector sentiu um pequeno mal-estar. Uthmann estava insistindo demais.

- Você não me contou, Hector.

- Você não precisava saber até este momento - Hector respondeu, e Uthmann desviou o olhar.

A posição da cabeça e do corpo de Uthmann mostravam que ele estava zangado. Estaria exibindo ressentimento por Hector não ter confiado nele? Não era o estilo habitual
de Uthmann. Hector ficou pensando se não estaria ficando velho demais para o esporte. Estaria perdendo a coragem? Hector não conseguia pensar em possibilidade mais
sombria. De repente, tomou uma decisão e tocou um dos braços de Uthmann, forçando-o a se virar para ele.

- Uthmann, você precisa ficar aqui com seu grupo na retaguarda. Se nos complicarmos dentro da fortaleza, vamos sair correndo. Quero que nos dê cobertura, entendeu?

- Sempre fiquei ao seu lado - Uthmann disse com amargura. O comportamento grosseiro dele era exagerado e reforçou a decisão de Hector de não levá-lo junto para o
covil da Besta.

- Não desta vez, meu velho amigo - disse e, sem dizer uma palavra, Uthmann virou o rosto e engatinhou de volta à sua posição com o segundo grupo.

Hector desviou o pensamento dele e fixou o olhar nas palmeiras do oásis. Viu uma sombra, como uma mariposa esvoaçante, em movimento, e assoviou baixo em dois tons
como sinal de reconhecimento. A resposta foi imediata, e Tariq se materializou silenciosamente detrás das árvores. Estava acompanhado de alguém, uma figura esguia
vestindo uma longa túnica negra.

- Esta é a minha prima Daliyah - disse, e os dois se abaixaram ao lado de Hector. - As novidades que traz são preocupantes. Diz que os homens de Khan andam alvoroçados
demais. Praticamente todos os homens da guarnição foram mandados para a ala norte, atrás da mesquita.

- Por quê? - Hector perguntou à moça.

- Não sei - a voz dela era bastante suave.

Hector ponderou por um momento.

- Existe um portão na ala norte para a qual os homens foram enviados? - perguntou.

- Há um portão - Daliyah confirmou -, mas não é o principal.

- Você tinha a intenção de nos conduzir para dentro da fortaleza por esse portão?

- Não! - ela balançou a cabeça. - No muro da ala leste, atrás da cozinha, existe uma outra entrada. É uma abertura bem pequena, apenas um homem de cada vez pode
passar por ela. Quase nunca é usada, e poucas pessoas sequer sabem que existe. Era como eu tinha planejado guiá-los.

- Está trancada?

- Está, mas eu tenho uma das chaves. Tirei do bolso de um dos cozinheiros esta manhã. Ele não sentiu falta.

- Guardas? O portão é vigiado?

- Nunca vi guardas ali. Usei-o hoje à noite. A passagem estava aberta, e o lugar, deserto.

- Tariq, parece que sua prima é uma mulher corajosa e inteligente - Hector olhou para ela, mas não conseguiu enxergar nada através do véu.

- Disso eu sei - Tariq disse num tom grave.

- Ela é casada?

- Ainda não - Tariq respondeu. - Mas talvez se case logo.

Daliyah abaixou a cabeça num gesto de modéstia, mas não disse nada.

- Ela nos aconselha a aguardarmos um pouco aqui antes de subir. Esperar passar a agitação na fortaleza.

- Quanto tempo ela acha que devemos esperar? - Hector perguntou, e Tariq apontou para a lua que surgia além da plantação de palmeiras. Faltavam cinco dias para que
ficasse cheia.

- Temos de esperar até que fique no mesmo nível da palmeira mais alta. A essa altura, os guardas terão relaxado e alguns poderão até mesmo estar dormindo.

- Em cerca de um hora e meia - estimou Hector, checando o relógio de pulso.

Atravessou engatinhando até onde estava Uthmann e, em poucas e sucintas palavras, explicou suas intenções. Em seguida, engatinhou novamente para a frente de seu
grupo. Eles permaneceram calados e imóveis enquanto o ponteiro luminoso dos minutos se arrastava pelo mostrador do relógio. De repente, o pesado silêncio foi interrompido
pelos uivos e guinchos de um par de chacais abaixo dos muros da fortaleza. O barulho foi imediatamente desafiado pelos latidos alvoroçados de uma matilha de cães
na parte de dentro dos muros.

- Meu Deus, quantos cães o Khan mantém lá dentro, Daliyah?

- Muitos. Gosta de sair para caçar com eles.

- O que ele caça... gazelas, órix, chacais?

- Todos esses animais, sim - Daliyah respondeu -, mas o que ele gosta mesmo de caçar são pessoas.

- Pessoas? - até mesmo Hector ficou chocado. - Quer dizer, seres humanos?

Ela assentiu, e a luz das estrelas revelou o ligeiro brilho das lágrimas nos olhos dela pela abertura do véu.

- Pois então. Homens ou mulheres que o tenham enfurecido. Alguns deles eram meus parentes ou bons amigos. Os homens dele os levam para o deserto, onde são libertados.
Depois, Khan e os filhos saem correndo atrás deles com os cães. Rejubilam-se com o esporte e riem quando os cães destroçam as vítimas. Deixam que os cães se alimentem
da carne de quem matam. O Khan acredita que isso torna os cães mais ferozes.

- Mas que velho encantador ele deve ser. Estou ansioso pelo nosso primeiro encontro - Hector murmurou.

Esperaram até que o latido dos cães se dissolvesse em silêncio, e a lua se erguesse detrás das palmeiras. Só então ele se mexeu de novo.

- Hora de partir, Tariq. Diga à Daliyah para ir na frente. Vamos manter uma boa distância atrás dela. Se ela encontrar alguém da fortaleza, diga para distraí-lo
para que possamos dar conta dele antes que faça alarde. Você vai atrás dela, e eu lidero o resto do grupo na retaguarda.

A garota se movia depressa e com confiança. Seguiram-na entre as árvores até chegarem à encosta. Hector viu claramente a fortaleza pela primeira vez. Agigantava-se
acima deles, enorme e negra. Não havia sinal de iluminação, e ela parecia tão inerte quanto a lua acima. O caminho prosseguia por uma ladeira íngreme. A garota não
diminuiu o ritmo. Agora os muros de pedra se erguiam sobre eles, tão implacavelmente malévolos quanto um monstro arcaico pronto para emboscar sua presa. De repente,
Daliyah saiu do caminho principal e virou numa trilha menos definida abaixo das muralhas. Contornaram pilhas fedorentas de lixo que tinham sido jogadas do alto dos
muros. Os chacais estavam procurando comida entre os detritos, e foram embora quando os homens se aproximavam. Finalmente, Daliyah parou ao lado de uma vala que
emergia de uma abertura em forma de arco na parte inferior da parede de pedra. A abertura estava bloqueada por grades enferrujadas. Excrementos humanos rolavam pela
arcada até a vala, e o fedor era um atentado aos sentidos. Daliyah saltou sobre a vala e virou abruptamente em outra passagem estreita entre os muros de pedra, cuja
largura não permitia mais do que um homem de cada vez. Ela desapareceu, e os outros a seguiram em fila indiana pela abertura. Subiram uma série de degraus rústicos,
Daliyah estava à espera deles no topo, do lado de fora de uma porta baixa de madeira sólida, pregada e montada com barras de ferro.

- Daqui em diante temos de nos manter bem próximos. É muito fácil se perder no lado de dentro - suspirou e retirou uma pesada chave de ferro de design antigo de
baixo da túnica. Colocou-a na fechadura e, com algum esforço, virou a chave. Encostou um dos ombros na porta, e ela se abriu. Ela teve de abaixar a cabeça para passar
sob a verga de pedra. Eles a seguiram. Daliyah fechou a porta atrás do último homem.

- Não tranque. Vamos estar com pressa quando voltarmos - Hector lhe disse em voz baixa.

A escuridão era tão dominante que parecia um peso esmagando seus ombros. Hector acendeu a luz fosforescente do capacete, e os demais seguiram o exemplo. Daliyah
os guiou através de um labirinto de passagens sinuosas e salas interligadas. Ouviram pequenos ruídos - mulheres rindo e conversando em um dos aposentos por que passaram
e, em um outro, o ronco barulhento de um homem. Finalmente, Daliyah fez um gesto para que parassem.

- Aguardem aqui - suspirou para Tariq. - Apaguem as luzes dos capacetes e fiquem em silêncio. Vou verificar se é mesmo seguro.

Ela desapareceu pelo corredor estreito. Os homens se agacharam para descansar, mas continuaram com as armas em punho. Não demorou muito, e Daliyah voltou, caminhando
silenciosa e rapidamente.

- Há dois homens de guarda em frente à porta da cela da menina. Estranho. Normalmente, são cinco ou seis. Esta noite, os outros devem ter sido mandados para o portão
da ala norte. Um dos guardas que ficaram tem a chave da cela. Não façam barulho. Sigam-me.

Hector e Tariq ficaram bem próximos a Daliyah, um de cada lado. Depois de um curto percurso, ela parou de novo e apontou para a frente. A passagem se abria de repente
em ângulos retos. Eles podiam ouvir as vozes dos homens além da curva, e a luz amarela das lamparinas se projetava no ângulo da parede lateral e no teto. Hector
escutou com atenção e percebeu que havia pelo menos dois homens recitando uma passagem da isha, a oração noturna. Depois, viu as sombras na parede lateral quando
eles se ajoelharam e levantaram de novo. Hector mostrou dois dedos, e Tariq assentiu. Hector bateu no peito dele e mostrou um dedo; em seguida, bateu no próprio
e levantou mais um.

- Um para cada um - Tariq assentiu.

Eles entregaram os rifles para os homens atrás deles e cada um desenrolou a corda de piano de arame que carregavam nos bolsos abotoados, testando-as entre dos dedos
das mãos. Hector se aproximou lentamente da quina da parede. Tariq o seguiu. Aguardaram os dois sentinelas se ajoelharem com as testas pressionadas no chão de blocos
de pedra. Então ele e Tariq se colocaram atrás deles e, quando os homens retornaram à posição sentada, Hector e Tariq passaram o laço de arame sobre as suas cabeças,
apertando-o com força sob os queixos. Os árabes de debateram, chutando e agitando os braços e as pernas. Mas não deixaram escapar um único som. Hector posicionou
um dos joelhos entre as omoplatas da vítima e aplicou a força de ambas as mãos. O homem se enrijeceu e chutou convulsivamente pela última vez, enquanto seus intestinos
se esvaziaram fazendo barulho. E então, ficou imóvel. Hector o virou para o outro lado e apalpou a túnica. Sentiu a grande chave de ferro sob o tecido e a retirou.
Daliyah estava no canto. Os olhos dela detrás do véu estavam arregalados e faiscando de terror - talvez não esperasse que fossem matar alguém.

- Que porta? - Hector perguntou. Havia três diante deles.

Mas Daliyah estava abalada demais para responder. Tariq se ergueu de um salto e a pegou pelos ombros, sacudindo-a com força.

- Que porta?

Ela se recompôs e apontou para o centro.

- Me dê cobertura - Hector disse a Tariq e foi até a porta.

Ele a destrancou com a chave que tinha tirado do sentinela e a abriu devagar e furtivamente. A cela estava às escuras, mas ele acendeu a luz do capacete. Com o feixe
de luz, viu o quanto a cela era pequena. Não possuía janelas nem ventilação. Em um canto, havia um balde que servia de privada e uma jarra d'água feita de barro.
Do balde emanava um odor pungente. No meio do chão, estava uma figura de estatura pequena, encolhida sobre um estrado com enchimento de palha. Vestia apenas uma
peça suja que mal batia na cintura, portanto não restava dúvida de que se tratava de uma mulher. Ajoelhou-se sobre ela e virou-a com delicadeza para ver o rosto.
Era o rosto da menina no vídeo brutal, a menina cuja foto Hazel lhe havia mostrado. Era Cayla, mas tão pálida e magra que a pele dele parecia quase transparente.

- Cayla! - suspirou em seu ouvido, e ela se mexeu. - Acorde, Cayla.

Ela abriu os olhos, mas por um momento não conseguiu focalizar neles.

- Acorde, Cayla. Vim buscar você e levá-la para casa.

De repente, os olhos dela se arregalaram. Eles pareciam preencher todo o rosto e estavam repletos de sombras de lembranças terríveis. Ela tentou gritar, mas ele
tapou a boca dela e suspirou num tom de urgência:

- Não tenha medo. Sou seu amigo. Sua mãe me enviou para levá-la para casa.

Ela estava surda de medo, sem compreender as palavras, debatendo-se contra ele com toda a força escassa que possuía.

- Sua mãe me disse que você tem um Bugatti Veyron chamado Mister Tartaruga. Sua mãe é Hazel Bannock. Ela ama você, Cayla. Lembra-se da potra que ela deu de presente
a você em seu último aniversário? Você a chamou de Chocolate ao Leite.

Ela parou de se debater e olhou para ele com os olhos arregalados.

- Vou tirar a mão da sua boca agora. Prometa que não vai gritar.

Ela assentiu, e ele retirou a mão.

- Não é Chocolate ao Leite - sussurrou. - Chocolate, só chocolate.

Ela começou a chorar, soluços silenciosos sacudiam todo o seu corpo. Hector a pegou no colo. Era leve como um pássaro, mas estava queimando de febre.

- Venha, Cayla. Vou levar você para casa. Sua mãe está esperando.

Tariq estava na porta dando cobertura. Hector acenou com a cabeça na direção dos cadáveres dos dois árabes.

- Tranque-os na cela.

Eles arrastaram os corpos segurando-os pelos pés, as cabeças rolavam aos solavancos no chão de pedra, e os jogaram no meio da cela. Hector trancou a porta e colocou
a chave no bolso.

- Agora! Diga à sua prima para nos tirar deste lugar fedorento, Tariq.

Daliyah os conduziu pelo mesmo caminho da ida. A todo momento, Hector esperava uma confrontação ou uma saraivada de balas.

- Está sendo fácil demais. Não era para ser tão fácil. Há uma tempestade de merda se formando, consigo pressentir, disse a si mesmo desgostoso. Mas, finalmente,
ele saiu pela porta na passagem estreita e saboreou o ar noturno do deserto.

- Puro como um beijo virginal - sussurrou e encheu os pulmões.

Cayla tremeu em seus braços. Ele a carregou pela abertura da passagem, onde havia uma rota de fuga desobstruída encosta abaixo. Ele a sentou gentilmente no chão
de pedra e se ajoelhou sobre ela. Hazel havia empacotado um macacão de camuflagem limpo, um par de tênis lona e uma calcinha para Cayla. Hector retirou as roupas
do bolso lateral da mochila e, como se ela fosse um bebê, a vestiu. Ele desviou os olhos ao puxar a calcinha para cima. Sentia uma estranha afeição paternal por
ela. Mas teve dificuldade de reconhecer a emoção em um primeiro momento. Não tinha filhos, nunca quis tê-los. A vida dele estava preenchida por outras coisas. Não
havia lugar para filhos. Agora, pensava que a sensação de ter um filho devia ser como aquela. Essa era a bebé de Hazel, portanto, de um modo estranho, era dele também.
Essa criaturinha doente revirava sentimentos profundos que ele nunca suspeitara que existiam. Encontrou a água na mochila, e forçou Cayla a engolir três tabletes
de antibióticos de amplo espectro com um grande gole da garrafa que ele segurava próxima aos lábios dela.

- Você consegue caminhar? - perguntou carinhosamente.

- Sim, é claro! - ela se levantou, deu dois passos cambaleantes e desabou.

- Boa tentativa - ele disse -, mas você ainda precisa de um pouco de prática.

Ele a pegou no colo de novo e saiu correndo. Tariq e Daliyah estavam posicionados, e o resto do grupo lhe deu cobertura. Na trilha acidentada, eles contornaram os
muros até chegarem ao caminho principal, virando diretamente na descida da encosta. A noite estava silenciosa como se toda a criação estivesse com a respiração em
suspenso. Diminuíram o ritmo ao alcançarem o oásis e caminharam entre as palmeiras na direção em que haviam deixado Uthmann e seu grupo.

"Silencioso demais", Hector pensou. "Muito silencioso, demais. O lugar inteiro exala o fedor da Besta."

De repente, à frente dele, Tariq e Daliyah foram ao chão. Tariq a puxou para baixo com ele e os dois desapareceram de vista, como se tivessem caído em uma armadilha.
Hector caiu quase no mesmo instante, aninhando Cayla nos braços para protegê-la do impacto ao atingirem o chão.

Ela choramingou, e ele sussurrou:

- Quietinha, querida, quietinha - disse e olhou adiante, retirando cuidadosamente o rifle do ombro.

Hector olhou pelo visor noturno do rifle, mas não conseguiu enxergar nada que pudesse ter alarmado Tariq. Em seguida, viu Tariq erguer a cabeça cautelosamente. Após
cinco minutos completos, deu o assovio suave de reconhecimento. Não houve resposta. Virou-se para trás devagar e olhou para Hector, à espera de uma ordem.

- Fique aqui e não se mexa! - Hector disse à garota.

- Estou com medo, por favor, não me deixe sozinha.

- Eu vou voltar. Prometo - ele ficou de pé e saiu correndo.

Deixou-se cair ao lado de Tariq e rolou duas vezes para o lado para sair da mira do inimigo. O silêncio era pesado e carregado.

- Onde? - perguntou.

- Depois daquela palmeira. Há um homem deitado ali, mas não está se mexendo.

Hector avistou a silhueta escura e a observou por um momento. A figura permanecia imóvel.

- Me dê cobertura - Hector disparou adiante de novo.

Nem mesmo o colete de proteção seria capaz de deter a bala de um rifle a tal distância. Alcançou o vulto humano e caiu ao lado dele. O rosto estava virado para Hector,
que viu que se tratava de Khaleel, um dos seus melhores homens.

- Khaleel! - suspirou, mas não houve resposta.

Esticou um dos braços para verificar a artéria carótida. A pele de Khaleel ainda estava morna, mas ele não tinha pulso. E então Hector sentiu algo molhado nos dedos.
Sabia o que era - durante sua vida, tinha provavelmente visto tanto sangue quanto um cirurgião. Procurou a ferida com as pontas dos dedos. Encontrou-a exatamente
onde achara que estaria - na parte de trás da mandíbula, logo abaixo do ouvido. Um furo minúsculo; uma lâmina fina e bastante afiada trespassada do ouvido até o
cérebro. Hector sentiu que iria vomitar. Não queria que fosse verdade. Conhecia apenas um homem que poderia matar com tanta precisão. Chamou Tariq para junto dele
com um aceno. Ele foi correndo se juntar a Hector. Logo viu o sangue nos dedos de Hector. Depois se virou para o corpo de Khaleel e tocou no ferimento atrás da orelha.
Não disse nada.

- Encontre os outros - Hector mandou.

Três corpos estavam estirados em um círculo defensivo, olhando para frente. Deviam confiar no assassino para tê-lo deixado chegar tão perto. Todos tinham morrido
instantaneamente. Todos tinham um ferimento quase idêntico.

- Onde está o Uthmann? - a pergunta era redundante, mas Hector tinha de fazê-la.

- Não está aqui. Foi aonde o coração dele pertence - Tariq olhou para a fortaleza maciça acima deles.

- Você sabia, Tariq. Por que não me preveniu a respeito dele?

- Sabia com meu coração, mas não com a cabeça. Você teria acreditado em mim? - Tariq perguntou.

Hector deu um sorriso amargo.

- Uthmann era meu irmão. Como poderia acreditar em você? - Hector disse, mas Tariq virou o rosto.

- E agora temos de sair deste lugar, antes que o seu querido irmão retorne - disse Tariq. - Com os outros irmãos dele, os que ele ama de verdade, mas que não amam
você, Hector Cross.


Uthmann observou Hector e Tariq se afastarem das palmeiras com a mulher, Daliyah, e o resto de seu grupo. Estava bravo e frustrado. Hector Cross tinha feito seus
planos, tão cuidadosamente esboçados, irem por água abaixo. Agora tinha de reavaliar sua posição com rapidez. O xeique Tippoo Tip e seu neto, Adam, estavam esperando
por ele com a maioria dos homens no Portão Norte. Era onde Uthmann havia prometido a Adam que entregaria Hector Cross. Mas, primeiro e mais importante, tinha de
fazer a mensagem chegar a Adam, avisando que Hector não iria cair na armadilha conforme o planejado, que tinha entrado por outro portão. Eles teriam de fechar todos
os portões e procurá-lo por todos os milímetros da fortaleza. Encontrá-lo antes que conseguisse se esgueirar pela saída e fugir para a amplitude do deserto. Havia
um único jeito de mandar o aviso a Adam - teria de entregá-lo pessoalmente. Mas, primeiro, tinha que dar um jeito nos quatro homens de seu grupo. Verificou o punhal
na bainha que estava presa em um dos antebraços. Tinha feito a lâmina a partir da mola dianteira de um caminhão GM. Foram necessárias várias horas de lixamento,
aquecimento, forjamento, tempero e moldagem para alcançar a perfeição. O cabo tinha uma tira de couro órix que se encaixava na mão. O equilíbrio era maravilhoso.
Um golpe sutil era o que bastava para que a lâmina afiada cortasse até o osso, e a ponta podia perfurar a carne humana sob o seu próprio peso. Esperou dez minutos
para que o grupo de Hector se afastasse e então engatinhou até o seu homem mais próximo.

- Khaleel, tudo tranquilo aqui? - perguntou. - Não, não olhe para mim. Continue olhando para a frente.

Khaleel virou o rosto obedientemente. O lóbulo de sua orelha direita estava visível sob a borda do capacete. Uthmann percorreu o canal do ouvido até o cérebro com
a ponta da lâmina. Khaleel suspirou suavemente, e a cabeça pendeu sobre a coronha do rifle que segurava. Uthmann limpou a lâmina meticulosamente em uma das mangas
de Khaleel antes de engatinhar até o próximo homem no círculo.

- Fique atento, Faisil - sussurrou enquanto se colocava ao lado do homem, e então o matou rapidamente. Os outros homens estavam deitados a menos de trinta passos
de distância e não ouviram nada. Uthmann se arrastou na direção deles. Quando os quatro estavam mortos, Uthmann ficou de pé e se virou no sentido da fortaleza. Começou
a correr. Escalou o caminho da encosta. Só tinha estado ali uma única vez, mas virou à esquerda sob o muro e correu ao longo dele até o Portão Norte. Quando faltavam
ainda uns cem passos para chegar, ele começou a gritar para avisar os homens que, sabia, estavam esperando no topo das muralhas.

- Não atirem! Sou eu, Uthmann. Sou um dos homens de Khan. Preciso falar com Adam.

Não houve resposta, e ele correu no sentido do portão, gritando a mesma advertência. Quando estava a cinquenta metros do portão, de repente, um feixe de luz branca
cegante, com toda intensidade, incidiu sobre ele. Ele parou e jogou as mãos para o alto para proteger os olhos. Uma voz chamou por ele do alto das muralhas.

- Jogue a arma no chão. Mãos ao alto! Caminhe devagar até o portão. Vamos atirar se tentar escapar.

Uthmann se aproximou do portão, e ele se abriu momentos antes dele alcançá-lo, mas os olhos dele ainda estavam ofuscados pelo feixe de luz e não conseguiam enxergar
nada na escuridão além da abertura. Ele hesitou ao alcançar o limiar, mas a voz o chamou de cima:

- Continue andando. Não pare!

Ele entrou e imediatamente um bando de homens veio correndo da escuridão e começou a bater nele até que ficasse de joelhos.

- Sou um dos homens de Khan - Uthmann cobriu a cabeça com ambos os braços. - Trago uma mensagem importante. Vocês têm de me levar até ele.

Ele teriam continuado a bater, mas nesse momento um comando autoritário os deixou paralisados.

- Deixem-no em paz! Conheço esse homem. Ele é um dos nossos agentes de confiança.

Uthmann se levantou e se curvou até o chão em reverência ao homem que surgiu das sombras e caminhava até ele.

- Que a paz esteja com você, Adam. Bençãos e paz para o seu ilustre avô, xeique Khan Tippoo Tip!

- Qual é problema, Uthmann? O plano era você guiar o infiel até aqui. Onde está Cross, aquele assassino blasfemo?

- Cross tem o instinto de sobrevivência de um animal selvagem. No último momento, decidiu que não me seguiria. Encontrou uma mulher que conhece bem a fortaleza.
Ordenou que eu ficasse enquanto a acompanhava por um caminho secreto para entrar nas muralhas.


Adam o encarou.

- Onde está Cross agora?

- Sem dúvida, já está dentro da fortaleza.

- Por que não nos avisou antes? - Adam levantou a voz, agitado.

- Porque eu mesmo não sabia até pouco tempo - Uthmann respondeu. - Não perca tempo e mande fechar todos os portões, depois envie mais homens para vigiar cela da
prisioneira e outros mais para vasculhar a citadela e encontrar o Cross.

- Venha comigo! - Adam rosnou para ele. - Vamos até o meu avô. No entanto, se você deixou o infiel escapar com a nossa refém, as coisas vão se complicar bastante
para seu lado, já aviso.

Adam levantou a túnica e correu, mas quando alcançaram a sala do conselho do xeique, estava exageradamente ofegante.

"Esse descendente do Profeta é tão mole quanto as mamas caídas de uma velha", pensou Uthmann com desprezo ao seguir Adam até a sala e se prostrar aos pés do Khan,
desfiando elogios exuberantes e votos de vida eterna ao velho homem.

- Chega! - xeique Khan se ergueu das almofadas e se agigantou sobre Uthmann. - Por que está tremendo? Está com febre? Ou quebrou nosso voto de confiança? Trouxe
o meu inimigo até mim para que eu possa liquidar a dívida de sangue e ir em paz para o túmulo, ou deixou que ele escapasse da minha vingança? Responda, sua poça
de estrume de porco doente. O filho de uma puta cristã é seu prisioneiro? Ou não?

- Bendito seja o tormento dos infiéis, não sei.

- Não sabe? Então vou fazê-lo saber - disse e açoitou as costas de Uthmann com o chicote de couro de hipopótamo.

A jaqueta à prova de balas absorveu o golpe, mas Uthmann gritou e se retorceu enquanto despejava o relatório. Após meia dúzia de golpes, o braço velho do Khan se
cansou, e ele deu um passo para trás.

- Mande os homens imediatamente para a cela da puta cristã! Traga-a até mim. Vou acorrentá-la ao meu lado onde posso eu mesmo vigiá-la. Já! Depressa!

Os homens enviados para buscar Cayla retornaram logo e se jogaram aos pés dele. Estavam balbuciando de terror e a audição do Khan era ruim, mas por fim ele entendeu
o que diziam.

- A porca infiel desapareceu e os guardas foram estrangulados? São esses os desvarios de macacos e lunáticos? - ofegava de raiva, e seus traços enrugados estavam
inchados e arroxeados.

- Temos de trancar os portões para evitar que fujam, e revirar o lugar e encontrar a menina e esses infiéis que violaram a nossa fortaleza.

Adam também tinha se prostrado. Sabia bem como se desviar da raiva do avô.

- Fechem os portões! - esbravejou o Khan. - Revirem todos os aposentos do palácio. Encontre-os e tragam-nos até mim - a seguir, virou-se para Adam. - Não podemos
deixá-lo escapar agora.

- Estamos desperdiçando tempo aqui, avô. Cross não está no palácio. Quanto mais o senhor demora, mais longe ele fica do nosso alcance. Cross tem apenas cinco homens
com ele. Uthmann matou os outros. Me dê seus cachorros, um número suficiente de homens e caminhões, e eu o trarei para o senhor.

- Há apenas um caminhão aqui, mas está com dois pneus furados que ainda não foram trocados. Mandei as outras caminhonetes e a maioria dos homens para o seu tio Kamal
na Baía de Gandanga para tripular os barcos de ataque.

O Khan prosseguiu:

- Mas podemos levar minha caminhonete particular de caça. Assim que os pneus do caminhão maior forem trocados, ele irá atrás de nós com o restante dos homens. Vamos
levar meus cães também, eu vou com você. Quero presenciar o exato momento em que os aniquilar. Quero vê-los sangrar e ouvir os gritos agonizantes.


Antes de deixarmos o oásis, tenho de ligar para Hans Lategan vir nos buscar de helicóptero - Hector disse a Tariq e puxou o telefone por satélite da mochila.

Estendeu a antena e ligou o aparelho. Hans atendeu ao primeiro toque. Hector sorriu. Devia estar esperando com o polegar no botão.

- Aqui é o Kudu - Hans forneceu seu indicativo de chamada.

- Queijo Stilton! - Hector respondeu.

Esse era o código que haviam combinado usar quando saíssem da fortaleza com Cayla e estivessem a caminho do ponto de encontro. Hector havia considerado a ideia de
ter um helicóptero pairando por perto. Mas o barulho dos motores teria alertado o inimigo de sua presença.

- Positivo! A Duquesa está extasiada.

"Maldito Hans por essa parte adicional da conversa", Hector pensou com raiva. Duquesa era o codinome de Hazel Bannock. Ela estava esperando em Sidi el Razig - como
poderia saber que Cayla já havia sido resgatada da fortaleza? Ele deixou o pensamento de lado. O ponto de encontro combinado ficava na extremidade mais distante
da ravina ao norte. Hans viria da pista de Jig Jig e sobrevoaria a ravina até avistar o sinal de reconhecimento - mais um sinalizador luminoso de socorro. Hans tinha
calculado que levaria cerca de duas horas e dez minutos de voo de Jig Jig. Hector calculara que a distância até o aterro sul da ravina seria de aproximadamente seis
quilômetros e meio, ou talvez um pouco menos. Os perseguidores estariam dirigindo caminhonetes quatro por quatro. Embora o terreno fosse acidentado e cruzado por
afloramentos rochosos e vales, as caminhonetes seriam pelo menos duas vezes mais velozes do que seu pequeno grupo. Por estar doente e malnutrida, Cayla pesava cerca
de 45 quilos. Sabia que, em condições ideais, seus homens provavelmente conseguiriam chegar à ravina em aproximadamente uma hora e cinquenta minutos. Mas não na
escuridão, não sobre aquele tipo de terreno, não tendo que carregar Cayla. "E se eles soltarem os cães?", perguntou a si mesmo e então respondeu: "Que se danem os
cães!".

Tariq observava o rosto dele, e Hector falou em voz alta:

- Sei o que quer me perguntar, se eu contei para o Uthmann que iríamos para o norte em direção à ravina. A resposta é: não, não disse. Embora ele saiba qual é o
nosso exato ponto de partida, não sabe para qual direção correremos. No escuro, não vai achar fácil nos rastrear - não queria sequer mencionar os cães. - Portanto,
não vamos perder mais tempo.

- Vocês todos bebam o máximo de água que puderem agora. Não vamos parar de novo até ouvir o helicóptero a caminho.

Enquanto conversavam, Hector tinha afivelado três cintos juntos para criar uma tipóia para carregar Cayla. Ele a colocou de pé.

- Serviços de Mudança e Transporte Heck ao seu dispôr, srta. Bannock.

- Esse é o seu nome verdadeiro? Heck? - a voz dela estava fraca e ofegante.

- Claro - ele a ajudou a se acomodar no assento improvisado da tipoia e a ergueu até que estivesse na altura dos quadris dela, com ambas as pernas balançando para
trás.

- Coloque os braços ao redor do meu pescoço e segure forte.

Ela obedeceu docilmente, e ele correu com ela, começando com uma velocidade inferior à sua máxima e ajustando o ritmo para percorrer toda a distância. Tariq enviou
dois de seus homens adiante para encontrar a rota mais fácil, e mais dois para segui-los e tentar apagar qualquer sinal óbvio que deixassem na areia do deserto.
Cobriram o primeiro quilômetro e meio, e Hector encontrou sua segunda levada de fôlego. Alargou os passos.

- Você disse que seu nome era Heck. É apelido de Hector? Minha mãe falou sobre você. Você deve ser Hector Cross.

- Espero que tenha dito coisas boas sobre mim.

- Na verdade, não. Disse que você era arrogante e pretensioso e que iria demiti-lo na primeira oportunidade. Mas não se preocupe, vou falar com ela.

- Cayla Bannock, minha protetora.

- Pode me chamar de Cay. É como todos os meus amigos me chamam.

Ele sorriu, e ela se segurou a ele pelo pescoço com mais força. Sempre pensara que quando esse momento chegasse, que seria um menino.

"Que se dane, uma filha está de bom tamanho", resolveu. Eles correram por mais quarenta minutos até que ele parou e olhou para trás. Agora tinha certeza. O sinal
era tênue, mas inconfundível.

- O que foi, Heck? - Cayla estava tremendo novamente, a voz repleta de pânico. - Acho que estou ouvindo o latido de cães.

- Ah, não é nada com que se preocupar. Há vários cães sem dono aqui.

E então se dirigiu a Tariq:

- Consegue ouvir?

- Consigo. Estão trazendo cães e pelo menos um caminhão. Vão nos alcançar antes da ravina.

- Não não, não - Hector retorquiu. - Agora vamos começar a correr de verdade.

- Do que você está falando? Não entendo - estavam falando em árabe, e Cayla ficava cada vez mais agitada. - Estou com medo, Heck.

- Você não tem do que sentir medo. Você toma conta de mim, e eu de você. Combinado?

Ele fixou a atenção na estrela polar logo acima do horizonte e correu. Correu com todo o ar que tinha nos pulmões e a batida de seu coração ressoando nos ouvidos
como um tambor de guerra. Quando as pernas começaram a vacilar, ele deixou a mochila e o rifle para trás e continuou a correr. As pernas se estabilizaram, e ele
encontrou reservas de forças que nunca soube que tinha. Correu por mais um quilômetro e então outro. Agora finalmente ele tinha certeza de que estava esgotado, que
não conseguiria dar mais um passo sequer. Mas as pernas dele continuavam a pulsar. Tariq e Daliyah corriam ao seu lado. Daliyah carregava o rifle que Hector deixara
cair e Tariq, a mochila.

- Deixe eu carregar a menina para você - Tariq apelou.

Hector balançou a cabeça. Tariq era um homem baixo e magro, mas não tinha os músculos exigidos para aquele tipo de carga. Hector sabia que se parasse de correr por
um único segundo, que não seria capaz de começar de novo. Cobriu mais um quilômetro e meio e então soube que não dava mais, que não dava mais de jeito algum.

"Eu vou morrer aqui", pensou, "e eu nem sequer tenho um rifle. A vida é uma merda."

Ele parou e colocou Cayla no chão. Estava cambaleante. O latido dos cães ficava mais próximo, mais alto. Ele ainda tinha a pistola no cinto.

- Não posso deixar que levem Cayla, não posso deixar que ela caia de novo nas garras deles. Quando não houver mais jeito, vamos compartilhar a pistola, uma bala
para cada um.

Era a decisão mais triste e difícil que já havia tomado. Ela entorpeceu sua mente, por isso quando ouviu os homens gritando o nome dele, não conseguiu entender o
que estavam dizendo. Tudo o que conseguia escutar eram os cães. "No deserto, o som se propaga por longas distâncias", tranquilizou a si mesmo, "eles não estão tão
perto quanto parecem."

- Chegamos à ravina, Hector! - Tariq estava gritando, e por fim as palavras penetraram a sua exaustão e tristeza. - Vamos, Hector. Você conseguiu chegar até aqui.
A borda da ravina fica apenas vinte metros adiante. Venha, meu amigo!

Hector já não pensava mais logicamente. O cérebro lhe dizia que fora derrotado e que não podia prosseguir. Mas ele pegou Cayla no colo e correu. Parou apenas quando
a terra sumiu sob seus pés, e ele caiu, deslizando e rolando pela primeira ladeira íngreme da ravina. Estava rindo, e Cayla se sentou ao lado dele. Estava toda empoeirada
e tinha arranhado um cotovelo e uma das bochechas. Encarou-o espantada e começou a gargalhar.

- Você deveria ir ao médico, Hector. Você é louco, cara. Quero dizer: louco de pedra. Mas a loucura fica bem em você.

Ainda rindo, Hector usou a parede da ravina para se levantar com dificuldade.

- Tariq! - gritou. - Não podemos deixar os cães nos pegarem aqui. Precisamos chegar ao norte deste cânion, onde o Hans possa nos pegar. Reúna os seus rapazes - em
seguida, virou-se para Cayla. - Vamos, Cay. Não falta muito agora.

- Você me faz sentir que qualquer coisa é possível. De agora diante, vou caminhar sozinha.

Ela começou a descer o morro. Tropeçou e quase caiu, mas então se equilibrou e continuou andando. Hector a alcançou e, com umas das mãos no ombro dela, foi conduzindo-a,
escorregando e deslizando morro abaixo.

- Você vai conseguir - disse para encorajá-la. - Seus genes são bons, Cayla Bannock.

Tariq veio escorregando atrás dele, mantendo-se firme sobre os pés como um corredor de downhill. Os homens o seguiam. Quando alcançou Hector, devolveu o rifle e
a mochila.

- Você deixou cair isto aqui, Hector.

- Descuido meu - Hector pendurou a mochila e o rifle nas costas e conduziu todos até o estreito da ravina. Chegaram ao fundo e ficaram de frente para a parede norte.
Cayla não conseguia falar de tão ofegante que estava, mas ele não podia deixá-la descansar. Agarrou-a pela mão e subiu arrastando-a pela extremidade oposta da ravina.
A subida era íngreme e árdua, mas finalmente chegaram cambaleando à borda plana. Olhou para trás e para o outro lado. Começava a clarear a leste. Não havia sinal
do inimigo, mas era possível ouvir claramente o alvoroço da matilha de cães.

- Tariq, temos de encontrar um local para nos posicionar até que o helicóptero chegue - ele focalizou adiante e, com seu olhar de soldado, escolheu o lugar.

- Está vendo aquele afloramento rochoso à esquerda? Parece ser um bom lugar. Venha, Cay.

Eles correram em direção às rochas, o instinto de Hector estava correto. Era um lugar onde teriam uma pequena vantagem. Havia uma boa área de caça na borda da ravina
que os cães e Uthmann teriam de atravessar para chegar até eles, mas estava coberta de pedregulhos grandes. Sabia que os cães eram treinados para caçar gente. Agiriam
em bando. Mas eles se separariam quando tivessem de contornar os obstáculos, e não seriam capazes de investir contra os homens em um ataque concentrado. Hector mandou
Cayla engatinhar para baixo do abrigo proporcionado pela rocha maior e sentar com as costas na parede de pedra. Colocou a mochila no chão ao lado dela e lhe entregou
a pistola.

- Sabe atirar?

Cayla assentiu. "Pergunta imbecil, Cross", sorriu para si mesmo. Ela é filha de Henry e Hazel Bannock. É claro que sabe atirar.

- Há uma bala no cano. Sem trava de segurança. Não vou pedir muito. Apenas que mate aqueles malditos animais se avançarem em você.

Ele foi se posicionar ao lado de Tariq. Ambos olharam para o céu. O amanhecer estava a caminho.

- Deixei um homem na borda da ravina - Tariq apontou adiante. O homem estava agachado atrás de uma pedra no horizonte. - Ele vai nos avisar quando avistar os cães.

- Ótimo. O sol vai nascer dentro de mais ou menos dez minutos - disse Hector. - O Hans deve chegar por volta da mesma hora. Precisamos mantê-los afastados apenas
até o helicóptero nos alcançar.

Aguardaram e a claridade ficou mais forte. Então, o vigia gritou em árabe:

- Os cães estão chegando. Muitos cães - abandonou a posição e foi em disparada na direção deles.

- Viu se havia homens com eles? - Hector gritou.

- Não, apenas cães. Muitos, muitos cães.

O homem se juntou a eles. O coro da matilha de cães caçadores mudou de intensidade, tornando-se um latido feroz.


Uthmann estava ao volante do grande caminhão Mercedes. Adam, no banco ao seu lado, e o xeique Khan, sentado no banco de caça traseiro, mais alto do que o deles.
Tinha um guarda-costas de cada lado, para evitar que fosse jogado violentamente de um lado para outro pelos solavancos do caminhão sobre a escuridão do chão acidentado.
Mais quatro homens armados estavam amontoados na caçamba aberta na traseira. Uthmann dirigia velozmente. Tinham perdido a matilha de vista havia algum tempo, mas
seguiam seu coro de caça.

- Estão seguindo na direção do vale ao norte. Como sabiam disso? - Adam gritou sobre a vibração do motor do caminhão. - Você contou a eles, Uthmann?

- Não, mas um dos homens de Cross conhece bem o distrito. Tem família aqui - Uthmann respondeu.

- Se chegarem até lá, não seremos capazes de segui-los. Vamos ter de dar a volta. É um desvio de mais de oitenta quilômetros. Vão conseguir fugir - lamentou o velho
xeique. - Não pode deixar que isso aconteça, meu neto.

- Há um helicóptero a caminho para buscá-los - Uthmann disse.

- Tem certeza?

- Eu estava presente nas sessões de planejamento, tenho absoluta certeza, Grande xeique.

Agora os cães estavam tão na dianteira que antes de saberem se estavam na trilha certa, Uthmann teve de parar o caminhão e desligar os motores para tentar escutá-los.
Depois, deu partida novamente, e eles saíram rasgando a escuridão.

- Como o helicóptero vai encontrá-los? - Adam insistiu.

- Vão fazer uma telefonema via satélite e marcar a posição exata com sinalizadores luminosos.

De repente, Uthmann pisou no breque, e o caminhão derrapou antes de parar. A cabeça de Adam bateu no para-brisas dobrado, e os homens na caçamba foram lançados para
fora do caminhão.

- Por que fez isso? - Adam gritou furioso, segurando a ponta do seu lenço de cabeça para conter o sangramento da ferida que tinha na testa. - Você quase nos matou!

Em resposta, Uthmann apontou adiante.

- Chegamos à parede sul do vale. Mais alguns metros e teríamos caído da borda e morrido todos.

Uthmann saltou do banco do motorista e correu até a borda do precipício. Permaneceu na escuta por um minuto e depois voltou correndo ao caminhão.

- Os cães continuam a seguir a pista. Consigo ouvi-los claramente agora. Precisamos deixar o caminhão aqui e prosseguir a pé.

Correu até os homens que tinham sido jogados do caminhão e chutou os corpos espalhados no chão. Um deles estava provavelmente morto, a cabeça dele pendia do pescoço
quebrado. Outros dois estavam fora da jogada - um com o cotovelo direito destroçado, e o outro com ambas pernas fraturadas. O quarto homem se levantou cambaleante,
mas estava tonto e com uma concussão.

- Nenhum destes porcos tem nenhuma serventia para mim - Uthmann rosnou.

Ele apontou para os homens sentados ao lado do xeique.

- Vocês dois! Desçam e me sigam!

- Não! - Adam gritou de volta. - Eles são os guarda-costas do meu avô. Permanecem o tempo todo ao lado dele. Não podemos deixá-lo aqui desprotegido. Há trinta homens
da fortaleza nos seguindo a pé. Podemos esperá-los chegar antes de avançar.

- Quando chegarem aqui, Cross e a menina já estarão no helicóptero e fora de alcance. Se você não tem estômago para vir comigo agora, espere aqui o quanto quiser.

- A coragem e a honra do meu neto são imaculadas. Irá com você e mostrará o caminho - o xeique Khan interveio.

Adam se prostrou no chão, ainda agarrando o tecido ensanguentado na testa.

- Está pronto para lutar? - Uthmann perguntou.

- Mais preparado do que você jamais estará - Adam rosnou para ele e pegou o rifle do suporte atrás do banco.

- Você tem de agradecer Alá por ele ter lhe dado uma cabeça de pedra - Uthmann riu dele ao correr para trás do caminhão.

Entre a pilha de armas e de equipamento que tinha se deslocado com a brecada de emergência, ele selecionou uma RPG de fabricação russa e um estojo de lona contendo
duas bombas para a arma. Pendurou-os nas costas e deu a volta até a frente do caminhão. Olhou para o xeique Khan no banco elevado.

- Onde vamos nos encontrar, Lorde Khan? - perguntou ao velho.

- Vou levar o caminhão pela beira do vale até encontrarmos a estrada que o atravessa. Assim que cruzarmos o wadi, vamos retomar este caminho e procurá-los no outro
lado - o xeique apontou para o outro lado da sombria extensão de terra ao norte. - A essa altura, o sol já vai ter nascido, e poderemos procurar os rastros ou ouvir
o barulho dos cães.

- Quando nos encontrarmos de novo, depositarei a cabeça do infiel que matou o meu pai e os meus tios aos seus pés - Adam lhe disse. - Agora, peço sua benção, avô.

- Você tem a minha benção, Adam. Que Alá o acompanhe, e que mantenha a jihad forte em seu coração.

Adam teve de correr para alcançar Uthmann antes que ele desaparecesse ravina abaixo. Desceram pelo declive quase vertical, escorregando e deslizando em pedras soltas
e xistos. Adam foi aos poucos ficando para trás de Uthmann.

- Espere por mim - ele ofegava. A camisa dele já estava coberta de suor.

- Depressa! O helicóptero já deve estar vindo buscá-los - Uthmann gritou sem parar de correr. - O infiel irá escapar da ira legítima de Alá e do seu avô.

Adam sentia como se as pernas estivessem se transformando em manteiga. Ele escorregou e caiu de barriga. Ficou de pé, tossindo e engasgando no pó que levantara.
Depois, retomou a descida, mas estava mancando e cambaleando. Uthmann chegou ao fundo e parou pela primeira vez para olhar para trás.

"Porquinho de corpo mole! É bom apenas para estuprar mulheres e assassinar prisioneiros", Uthmann pensou sem demonstrar o seu desprezo.

- Está indo bem. Não falta muito - gritou, mas Adam perdeu o equilíbrio mais uma vez.

Dessa vez, caiu de frente e atingiu o chão rochoso com força. Rolou pelo desfiladeiro nos últimos seis metros. Tentou se colocar de pé, mas o tornozelo direito estava
machucado e não podia com o peso de seu corpo. Ele caiu de joelhos.

- Me ajude! - gritou.

Uthmann deu meia-volta e o pôs de pé. Adam deu alguns passos mancando e depois parou.

- Meu tornozelo! Não consigo pisar com este pé.

- Você deve tê-lo torcido. Não há nada que eu possa fazer para ajudar - Uthmann disse. - Siga-me na melhor velocidade que puder.

Ele abandonou Adam e começou a subir pela parede oposta do vale.

- Não pode me deixar aqui - Adam gritou, mas Uthmann não olhou para trás.


-Escute os cães. Farejaram nosso rastro doce e quente - Hector gritou. - Preparem as armas!

As travas das culatras dos rifles estalaram. Seis rifles, cada um com trinta balas no pente. Eles seriam capazes de lançar praticamente uma parede sólida de disparos.
O campo de visão adiante era de noventa metros. Todos os homens eram exímios atiradores. Nenhum dos cães iria alcançá-los. Mas, se fosse esse o caso, usariam as
baionetas.

- Montem as baionetas! - Hector ordenou, e os homens alcançaram e desdobraram as baionetas debaixo da boca dos rifles. - Tariq, acenda os sinalizadores para o helicóptero
agora!

As chamas durariam vinte minutos, e a essa altura Hans com certeza já teria chegado e sido guiado até o posicionamento deles. Cada um dos homens tinha um sinalizador
na mochila. Tariq deu a ordem gritando, e eles acenderam e atiraram os sinalizadores. Hector percebeu tarde demais que deveria ter deixado claro que tinham de jogá-los
para trás, não adiante do posicionamento. A brisa do amanhecer batia no rosto dos homens e enviava a densa nuvem de fumaça sobre eles, embaçando completamente a
sua visão. Antes que Hector conseguisse mandar um dos homens remover os sinalizadores, os cães surgiram em meio a fumaça. Estavam apenas 15 metros adiante da fileira
dos homens quando se tornaram visíveis. Corriam juntos a toda a velocidade. Numerosos demais para Hector contar. Silhuetas de lobos através da fumaça, clamando por
sangue. Tinham corrido muito e espuma jorrava das mandíbulas abertas, espirrando sobre os flancos.

- Atirem! - Hector berrou. - Atirem!

Ele fez apenas três disparos, matando um animal com cada bala. Os homens ao lado dele disparavam na mesma velocidade. Os cachorros gritavam e iam ao chão, mas outros
atacavam através da fumaça em espiral. Ao lado de Hector, Tariq foi derrubado para trás pelo peso de um enorme cão preto que esmagava o seu peito. Hector se virou
e, antes que o animal conseguisse cravar os caninos na garganta de Tariq, ele o golpeou no pescoço com toda a extensão da baioneta. Ele uivou e virou com as pernas
para cima, chutando. Mas, nesse momento, um outro cão atingiu Hector por trás, desequilibrando-o e fazendo com que se esparramasse no chão. O cão estava sobre ele.
O rifle não servia para nada nessa proximidade de embate. Hector deixou que ele caísse e segurou o cão pela garganta com a mão esquerda; com a direita, alcançou
a faca de trincheira no cinto. Antes que conseguisse erguê-la, outros dois cães estavam sobre ele. Rosnando e tentando morder, lutavam para enterrar os dentes nele.
Um o agarrava pelo ombro da jaqueta e, pressionando com as pernas dianteiras dobradas, o mantinha com as costas no chão. O terceiro prendeu o braço que segurava
a faca pelo cotovelo e o lacerava com sacudidas violentas da cabeça. O primeiro animal ainda estava em cima dele, a mandíbula escancarada a poucos centímetros de
seus olhos, espumando saliva soprada pelo hálito fétido no rosto de Hector. Ele se contorcia e puxava a mão de Hector com tanta violência que não seria possível
aguentar por muito tempo mais.

Um tiro de pistola foi disparado a apenas trinta centímetros de seu ouvido direito, e a explosão quase o deixou surdo. O cão o soltou e desabou sobre ele, o sangue
espirrava do ferimento na cabeça. O estalo de mais dois tiros foi ouvido em rápida sucessão, e os outros cães que o atacavam caíram para o lado. Hector sentou e
limpou o sangue do animal com a manga, cuspindo-o também da boca. Quando conseguiu enxergar melhor, olhou espantado para Cayla. Ela tinha engatinhado do abrigo seguro
sob a rocha e agora estava ajoelhada ao lado dele, segurando a pistola com as duas mãos, o braço direito estendido de modo profissional, balançando-o de um lado
para o outro em busca do próximo alvo.

- Sua linda! - ele falou ofegante. - Sua coisinha linda. Você é com certeza a filha da sua mãe!

Ele agarrou o rifle e ficou de pé de um salto, mas a briga dos cães estava quase encerrada. O terreno estava inundado de cadáveres caninos, e os homens estavam dando
cabo dos poucos animais feridos que ainda perambulavam aterrorizados e com dor. Então, olhou para o horizonte acima e viu um grande helicóptero MIL-26 russo a menos
de um quilômetro e meio de distância, sobrevoando rente à crista na direção deles.

- Lá vem o Hans - explodiu em uma gargalhada. - Está terminado. Filés e uma garrafa de Richebourg para o jantar em Sidi el Razig hoje à noite.

Ele puxou Cayla para que ficasse de pé e colocou um dos braços de forma paternal sobre seus ombros. Observavam a grande máquina acelerando em direção a eles. De
vez em quando ficava escondida pelas nuvens de fumaça dos sinalizadores, mas cada vez que a brisa afastava a fumaça para o lado, o helicóptero se aproximava mais
e mais, e o som dos motores se intensificava. Finalmente, estava pairando diante deles a uma altura de apenas quinze metros, e era possível enxergar Hans de trás
da capota olhando para eles. Ele sorriu, saudou-os e depois rodou o helicóptero até se posicionar paralelamente em relação a eles. A porta principal da fuselagem
estava aberta e duas figuras estavam de pé na abertura. Uma era o engenheiro de voo, mas a outra deixou Hector boquiaberto.

- Mulher louca! - sussurrou.

Ele tinha mandado que ela voltasse pra Sidi el Razig após a viagem até Jig Jig, mas deveria ter considerado que Hazel Bannock não era boa em acatar ordens. Dá-las,
sim, mas não recebê-las.

- Mamãe! Mamãe! - Cayla berrou, histérica.

Ela pulava para cima e para baixo e acenava com a pistola acima da cabeça. Da porta, Hazel acenava com a mesma energia. Hans desceu com o MIL-26 até eles e, assim
que o trem de pouso tocou o solo, Hazel desceu de um salto da abertura, aterrissou com elegância e saiu correndo como louca em direção à filha. Cayla se desvencilhou
do braço protetor de Hector e saiu tropeçando ao encontro da mãe.

- Isso é o que eu chamo de uma cena bonita! - disse Hector com um sorriso, enquanto observava as duas mulheres correrem uma para os braços da outra, dando gritinhos
e chorando de alegria. Sentiu as lágrimas ardendo nos próprios olhos e balançou a cabeça.
- Abrindo o berreiro como um bebé. Você está amolecendo, Cross - Hazel olhou para ele por sobre os ombros de Cayla enquanto abraçava a filha. As lágrimas jorravam
pelo rosto dela, pingando pelo queixo. Ela não fez menção de enxugá-las. Não precisava dizer nada, a maneira como olhava para ele era eloquente o suficiente.

- E eu amo você também, Hazel Bannock! - gritou para que o mundo inteiro ouvisse.

Em seguida, voltou a se concentrar no que estava acontecendo e acenou para que Daliyah e os homens de seu grupo prosseguissem e embarcassem no helicóptero. Eles
pularam e saíram correndo em bando pelo terreno descampado.

- Hazel! Coloque a Cayla a bordo! - ele foi correndo na direção das mulheres.

Hazel escutou o que ele disse e agarrou Cayla pelo pulso, arrastando-a no sentido da aeronave. Em seguida, um outro tom de voz atravessou a alegria exultante de
Hector como o corte de um sabre.

- Na beira da ravina, Hector! - era Tariq.

Ele apontava para além do helicóptero, e o olhar de Hector girou naquela direção. Havia um homem ali, e apesar de estar a quase duzentos metros de distância e apenas
a cabeça estar visível acima da borda, Hector o reconheceu instantaneamente.

- Uthmann Waddah! - o choque paralisou sua mente.

Tariq não tinha como atirar diretamente no antigo camarada de onde estava. Os homens do grupo e as duas mulheres correndo o bloqueavam. Apenas Hector estava em posição
de lidar com o traidor. Mas, por algumas frações vitais de segundo, ele ficou paralisado. Em qualquer outra circunstância, se fosse qualquer outra pessoa e não Uthmann,
a reação dele teria sido instantânea, mas Hazel e Cayla haviam usurpado toda a sua atenção. Ele finalmente se mexeu, mas foi como se estivesse tentando nadar numa
banheira de mel grudento. Observou Uthmann pular da ravina, correr três passadas adiante e se abaixar apoiado em um dos joelhos. Viu ele erguer um longo tubo de
metal e colocá-lo sobre o ombro direito.

- RPG! - mesmo àquela distância, Hector sabia exatamente do que se tratava.

A granada-foguete, a arma predileta do insurgente, podia arrebentar a armadura de um tanque de batalha como se fosse uma camisinha barata. Uthmann estava mirando
fixa e deliberadamente o helicóptero.

A essa altura, Hector já estava com a Beretta apoiada no ombro. Inconscientemente, notara que Uthmann ainda estava vestindo o colete à prova de balas. Era uma edição
da Bannock e da melhor qualidade, feita de Kevlar com enxertos de placas de cerâmica. Àquela distância, a bala de 5.56 mm da OTAN era famosa pelo péssimo desempenho
contra essa espécie de armadura corporal. Originalmente projetada para atingir esquilos e cães de pradaria - não seres humanos -, a bala provavelmente rolaria pelo
chão com o impacto e não penetraria a carne, mas seria suficiente para derrubar Uthmann. Um instante antes de Hector atirar, Uthmann disparou o RPG.

Hector viu a explosão de retorno após o disparo do projétil atrás de Uthmann, assim como o rastro de fumaça da granada ao ser lançada no sentido do MIL-26. Antes
que ele atingisse o alvo, Uthmann saiu rodopiando após a bala de Hector explodir contra o painel frontal de sua jaqueta, e ele foi arremessado ao chão rochoso com
uma força brutal. Antes de Uthmann atingir o chão, a granada atingiu a frente do helicóptero e explodiu. Hector cambaleou quando a onda da explosão o alcançou, mas
permaneceu de pé. A alguns metros de distância da aeronave, Hazel e Cayla caíram agarradas uma a outra. Daliyah e os homens que a acompanhavam estavam mais próximos
da explosão. Todos foram derrubados e Hector sabia que alguns provavelmente tinham se ferido gravemente ou mesmo morrido. O engenheiro de voo que estava na porta
foi destroçado. Hector viu a cabeça e um dos braços rodopiando pelo ar.

O nariz e a parte frontal da fuselagem foram arrancados. A cabine do piloto e a capota tinham desparecido deixando um buraco em seu lugar, e não havia sobrado nada
que pudesse ser reconhecido como o corpo de Hans Lategan. Ele tinha recebido o impacto mais pesado da explosão. Fora de controle, a máquina gigante caiu para o lado,
os rotores rodopiando açoitando a terra endurecida, torcidos em formatos extraordinários antes dos motores cessarem, e um manto de poeira e fumaça pairava sobre
os destroços.

Por um momento, reinou o silêncio. Em seguida, Tariq gritou:

- O Uthmann está de pé. Atire nele, Hector. Em nome de Alá, atire de novo nele.

A visão de Hector agora estava parcialmente obstruída pela fumaça e a poeira, mas ele atirou na silhueta nebulosa cambaleando de costas para a borda da ravina. Hector
não tinha certeza se tinha atingido Uthmann ou se ele tinha simplesmente caído da beirada. Tariq saiu correndo na direção dele.

- Volte, Tariq! - Hector gritou. - Deixe-o em paz! Os homens dele provavelmente vêm seguindo logo atrás. Temos de sair daqui. Vá ver como estão os outros. Vá ver
como está a Daliyah.

Tariq deu meia-volta, e Hector correu até onde Hazel e Cayla estavam caídas. Estava desesperado de medo e de preocupação. Elas estavam bem dentro da zona de perigo,
e podiam facilmente ter sido atingidas pelos estilhaços da granada ou por pedaços voadores de metal da fuselagem. Ele caiu de joelhos ao lado delas. Hazel estava
sobre Cayla com os braços estendidos sobre a filha para protegê-la. Com medo que estivessem sangrando, Hector alcançou uma das mãos de Hazel. Ela girou a cabeça
e olhou para cima com uma expressão confusa no rosto, e então se sentou rapidamente e estendeu os braços para ele.

- Hector! - ela o beijou de boca aberta, e em seguida ambos voltaram a atenção completamente para Cayla. Os dois a ajudaram a se levantar.

- Você se machucou, bebé? - Hazel indagou ansiosamente.

- Não, mamãe. Não se preocupe comigo, estou bem.

- Ótima notícia - disse Hector -, porque temos de nos mexer imediatamente. Hazel, essa sua filha está fraca como um recém-nascido, mas é forte como um molho de pimenta.
Ela simplesmente não desiste. Vou mandar alguém ajudar você a mantê-la de pé.

Ele correu até onde Daliyah e os demais estavam se reagrupando. Alguns haviam sido atingidos por fragmentos que voaram com a explosão, mas embora tivessem cortes
e hematomas, ninguém estava incapacitado de prosseguir. Daliyah parecia ter saído ilesa.

- A menina precisa da sua ajuda - Hector disse, e ela correu até Hazel e Cayla.

Ele se virou para os homens e ordenou:

- Arrumem o equipamento, vamos partir já.

- Que direção vamos seguir, Hector? - Tariq perguntou.

- Vamos atravessar de novo a ravina.

Todos olharam para ele espantados, e ele logo esclareceu.

Se prosseguirmos para o leste, não vamos encontrar muita coisa além de deserto e mais deserto. Agora que eles perderam os cães, o inimigo não vai saber com certeza
que rota seguimos, mas provavelmente esperam que sigamos para o leste em direção à costa - ele se virou e apontou para o sentido de onde tinham vindo. - Porém, a
estrada norte-sul principal passa perto do Oásis do Milagre e da fortaleza. Correto, Tariq?

- Correto, fica a cerca de 16 quilômetros a oeste da fortaleza. Tem bastante tráfego - Tariq confirmou.

- Se conseguirmos chegar lá, vamos nos apoderar do primeiro ônibus ou caminhão conveniente que aparecer.

Os homens começaram a se reanimar imediatamente. A derrubada do helicóptero os tinha deixado mudos de desespero, mas Hector havia oferecido um plano e um vislumbre
de esperança. Em poucos minutos, estavam prontos para partir.

Eles formavam uma pequena e estranha caravana - três mulheres de diferentes idades e tons de pele e seis homens em trajes de camuflagem rasgados e ensanguentados.
Todos cobertos de sujeira e poeira. Hector tomou a dianteira, e Tariq seguiu por último com dois homens ajudando a apagar os rastros deixados pelo grupo em fila.
Cayla estava no meio, apoiada pela mãe em um lado e por Daliyah do outro. Formaram uma fila na beira da ravina e começaram a longa descida até o fundo. Quando começaram
a escalar a parede oposta, a maioria estava próxima da exaustão, e o ritmo diminuiu inexoravelmente. Hector ia de uma ponta à outra da fila, tentando incentivá-los
com falsas garantias e piadinhas grosseiras que, por sorte, Hazel e Cayla não entenderam. Os homens que tinham se ferido na explosão da bomba RPG sofriam bastante
agora, e novamente as pernas de Cayla começaram a fraquejar. Hector a carregou nas costas na última subida íngreme até o alto do vale. Ao chegarem ao topo, os demais
se jogaram sob a primeira sombra que encontraram, e permaneceram ali arfando como cães. As garrafas d'água estavam praticamente secas.

Hector se sentou com Hazel e Cayla, e as fez compartilhar os últimos goles que restavam em sua garrafa. Deu mais um tablete de antibiótico a Cayla. Ele tinha certeza
de que a medicação estava tendo um efeito benéfico. A cor do rosto dela estava melhor, e o espírito, fortalecido. Ele a tocou na testa, e a temperatura pareceu próxima
do normal.

- Mostre a língua! - ordenou.

- Com todo o prazer - ela tentou parecer arrogante, esticando a língua até o máximo. A penugem branca que a cobria estava se dissipando.

Ele se aproximou mais e examinou o hálito de Cayla. Não tinha mais o fedor de uma infecção.

- Coloque para dentro - ele disse -, você não vai querer deixar essa coisa para fora para as pessoas saírem tropeçando sobre ela.

Cayla alongou as costas e fechou os olhos. Hazel suspirou e se apoiou no ombro de Hector. Ele acariciou levemente os cabelos delas ensopados de suor, afastando-os
dos olhos dela ao mesmo tempo que murmurava palavras carinhosas e de encorajamento.

Estavam tão entretidos um com o outro que não perceberam que Cayla os observava através dos cílios, até que ela arregalou os olhos e perguntou:

- Quer dizer que mudamos de ideia quanto a despedir Heck, não é, mamãe?

Hazel pareceu espantada por um momento e depois se sentou com as costas retas e, sem olhar para Hector, ficou com o rosto completamente vermelho. Hector a observava
com prazer.

"Meu Deus, adoro quando ela faz isso", pensou.

- Tudo bem, mamãe. Eu já estava maquinando um jeito de aproximar vocês dois. Parece que eu não precisava ter me preocupado tanto.

- Muito bem, garotas, de pé! Hora de partir.

Hector esperou Hazel se recompôr e se levantou. Ele olhou adiante. Aos primeiros raios solares do amanhecer, o deserto parecia dotado de um austero esplendor. Não
havia o menor sinal de vegetação, mas a areia cintilava como um tesouro de diamantes quando o sol atingia os grãos de sílica, e os pequenos morros rochosos eram
tão majestosos como esculturas de Rodin. Ele conseguia sentir o calor aumentando. Tinha dado toda a água que possuía às mulheres. A boca dele estava seca e, ao tocar
os lábios, viu que estavam ásperos como uma lixa. Havia passado vários anos de sua vida em locais desérticos, portanto ao conduzir o grupo adiante, procurava ao
mesmo tempo por sinais de água na superfície e por inimigos escondidos. Não demorou para que todos estivessem com problemas de desidratação, erodindo suas últimas
reservas de forças, e ele teve de permitir que descansassem de novo. Pegou duas pedras de quartzo e deu uma para Hazel e outra para Cayla.

- Chupem! - ordenou. - Isso vai evitar que a boca de vocês resseque completamente. Respirem pelo nariz e falem apenas se for necessário. Vocês precisam economizar
fluidos corporais.

O olhar de Hector se desviou delas para os homens. Um estava encolhido e com o rosto agoniado, lutando contra cólicas. O resto não parecia que iria se sair bem numa
briga. Uma pequena nuvem passou sobre o brilho do sol, e o alívio foi imediato, ainda que temporário. Olhou para cima e viu pássaros em silhueta contra a nuvem cinza.
Havia cinco deles, grandes e ligeiros batendo as asas velozmente. Ele se levantou e protegeu os olhos. Ambas as mulheres o observavam.

- O que você viu? - Cayla indagou.

- Columba guinea para os ornitologistas - respondeu -, mas para mim e você, simplesmente os velhos pombos da guiné.

- Ah! - Cayla não tentou esconder a decepção. - Nem consigo dizer como isso é fascinante, Heck.

O bando de pombos começou a descer e, voando em círculos ao sol, exibiam a bela tonalidade de azul de suas penas, os pescoços cor de vinho e os contornos brancos
ao redor dos olhos.

- Quando voam assim em bando a esta hora do dia, estão indo beber água.

- Água? - as duas mulheres perguntaram ao mesmo tempo.

- Quando aterrissam assim, é porque a encontraram - disse. - Não é que isso é mesmo fascinante, Cay?

- Às vezes você me faz sentir como se eu fosse retardada - ela respondeu num tom arrependido.

- Pode ter certeza, Cay, que você age como uma só de vez em quando. De pé, senhoras, vamos dar uma olhada.

Ele havia memorizado o ponto para onde o bando havia se dirigido e o estabelecido a cerca de 400 metros. Ao se aproximarem, as características geográficas se tornaram
mais claras. Havia um pequeno vale do outro lado da trilha, uma ramificação do desfiladeiro principal, que atravessava um série de estratificações de formações rochosas.
A faixa do aquífero calcário estava claramente visível, sobreposta pelo xisto laranja. De repente, o bando de pombos surgiu da parede do vale batendo as asas ruidosamente.
Haviam se escondido numa fissura horizontal formada pela erosão do calcário mais macio sob a impenetrável parede rochosa e íngreme.

- Bingo! - gritou Hector com um sorriso enquanto os conduzia para o pé da parede do wadi. Enquanto todos desabavam agradecidos sob a sombra, ele a escalou até alcançar
a fissura sob a camada de calcário. Quando espiou pela abertura escura, pôde sentir o cheiro de água. A largura da fenda permitia apenas que ele engatinhasse. A
água se encontrava em uma poça rasa mais ao fundo da caverna rebaixada. Ele apanhou um punhado com a mão e experimentou.

- Merda! - ele disse. - Literalmente! Merda de pombo! Mas o que não mata engorda!

Ele gritou para Tariq levar as garrafas d'água. Ele coou a água na camisa e, apesar do gosto nojento, todos esvaziaram as garrafas. Hector as encheu de novo. Quando
finalmente todos mataram a sede, Hector encheu as garrafas pela terceira vez. Ao descer pela parede, olhou para o pequeno grupo lá embaixo. A mudança era quase mágica.
Os homens estavam sorrindo e conversando em voz baixa. Hazel estava sentada ao lado de Cayla, cantarolando baixinho enquanto penteava e trançava o cabelo da filha.

- Mulheres! - Hector murmurou carinhosamente, balançando a cabeça. - Onde ela foi encontrar um pente?

Em seguida, gritou:

- Não fiquem muito à vontade, pessoal, estamos partindo neste exato minuto.

Eles se organizaram em grupo novamente e escalaram para fora do wadi. Rumo ao oeste, Hector se manteve na parte mais elevada possível, vigiando o território ao redor
com muita atenção. Em uma hora, teve um bom motivo para ficar satisfeito com essa vigilância. Cerca de três quilômetros para o sul, avistou uma minúscula penugem
de poeira subindo pelo céu incandescente em tons de bronze. Ela se movia lentamente na direção deles, e Hector desejou ter levado os binóculos, mas tinha se preocupado
em cortar ao máximo o peso das mochilas. Após um breve momento de observação, ficou claro que a poeira estava sendo levantada por um veículo qualquer em velocidade
reduzida.

- O que quer que seja está bom para mim - ele se levantou e chamou Tariq.

Sem perder tempo, deu ordens para que dois homens vigiassem as mulheres, enquanto ele e o resto corriam ao encontro do veículo que se aproximava. Logo se tornou
evidente que ele estava acompanhando um antigo leito de rio ressecado e arenoso que percorria a extensão de um vale raso, onde o piso não era tão rachado e acidentado.
Quando alcançou um ponto do rio onde as margens eram mais rasas, Hector pode enxergá-lo com clareza pela primeira vez. Reconheceu de imediato o caminhão Mercedes
com tração nas quatro rodas, de porte mediano. O para-brisas estava dobrado, e havia um motorista, com outros três homens sentados em um banco mais elevado atrás
dele. Os quatro estavam armados e usavam trajes tradicionais - túnicas e turbantes. Hector esperou até que o caminhão fosse encoberto novamente pela margem do leito
do rio.

- Sigam-me! - Hector se levantou de um salto e, com seus homens logo atrás, desceu correndo pela encosta até caírem estendidos no chão da beira da margem, adiante
do caminhão. O Mercedes surgiu próximo da curva a cerca de duzentos metros adiante deles. Hector deixou que o veículo prosseguisse até ficar quase rente ao seu posicionamento
e, em seguida, ele e Tariq pularam no leito abaixo, bloqueando o caminho com os rifles apontados para os ocupantes do veículo.

- Não encostem nas armas ou mato vocês! - Hector gritou em árabe. - Desligue o motor. Coloquem as mãos acima da cabeça.

O motorista e dois dos homens atrás dele obedeceram com rapidez, mas o terceiro que estava sentado mais próximo à traseira do veículo, ficou de pé. Era muito alto,
mas também muito velho. O rosto dele era inacreditavelmente enrugado, e a ponta da barba branca e comprida havia sido pintada com hena. Na mão esquerda, segurava
um rifle de assalto AK-47. Encarou Hector com o olhar hipnótico e selvagem de um profeta bíblico e ergueu a mão direita para apontar para ele com um dedo com artrite
que era como a garra de um animal.

- Você é o assassino dos meus três filhos. Você é Cross, o infiel porco e imundo a quem declarei uma dívida de sangue. Amaldiçoo você com todo o poder de Alá. Que
você nunca encontre a paz mesmo depois de ser morto por mim.

- É o xeique Tippoo Tip - Tariq gritou alertando-o.

Hector manteve a pontaria no centro do peito do xeique.

- Abaixe esse rifle! - gritou com rispidez. - Desça do caminhão, senhor! Não me force a matá-lo.

O xeique era como um homem surdo. Sem tirar os olhos de Hector, começou a erguer o AK-47. As mãos contorcidas tremiam com a força do ódio que sentia.

- Não faça isso! - Hector avisou, mas o xeique ignorou a ameaça do rifle apontado para o seu peito.

Ele acomodou a coronha do AK-47 em um dos ombros e mirou por sobre do cano trêmulo.

- Deus me perdoe! - Hector sussurrou e atirou no meio do peito do homem. Tippoo Tip deixou o rifle cair, mas se agarrou à grade de proteção.

- Amaldiçoo você e seus descendentes. Amaldiçoo você com as chamas do inferno e as garras e os dentes dos anjos negros... - antes que Hector conseguisse evitar,
Tariq atirou no xeique mais uma vez, dessa vez na cabeça.

O xeique foi jogado para trás, do caminhão para o chão arenoso do leito do rio. Os dois guarda-costas rosnaram de fúria e agarraram as armas, mas antes que conseguissem
atirar uma única bala, Hector disparou rajadas curtas de três tiros em ambos. Os guardas foram derrubados dos assentos. Tariq disparou uma saraivada no motorista
atrás do volante assim que ele apontou uma pistola, matando-o instantaneamente. Em seguida, foi até o caminhão e puxou o motorista do assento para o wadi. Olhando
os corpos de cima, bem de perto, deu um tiro de misericórdia em cada um. No entanto, quando foi até o corpo do xeique, Hector o deteve.

- Não, Tariq! Chega. Não faça nada com o velho desgraçado.

Tariq olhou para ele levemente surpreso, e nem mesmo Hector conseguiu entender os próprios escrúpulos, pois o homem era velho. Sabia que Tippoo Tip era um monstro
cruel e perigoso, mas era velho. Tinha sido inevitável, mas mesmo assim havia deixado um gosto amargo na boca. Graças a Deus, Hazel não precisou testemunhar aquilo.

Ele foi até o caminhão e subiu no assento do motorista. Ligou a ignição e o motor deu partida.

- Parece estar em ordem - Hector verificou o indicador de combustível. - Um pouco mais de três quartos do tanque.

Mas viu que havia tanques de combustível para longas distâncias em ambos os lados do veículo.

- Uns 450 litros em cada um - calculou com satisfação. - Não teremos problemas por uns 1600 quilômetros ou mais.

Havia também um tanque de água potável encaixado atrás do bancos dianteiros, e ele bateu na lateral com os nós dos dedos.

- Cheio! - disse, mas havia sido perfurado por uma das balas e a água vazava do buraco. Hector rasgou uma tira da cauda do pano que usava na cabeça e estancou o
vazamento.

Em seguida, Hector acenou para os homens e, enquanto eles subiam no veículo, vasculhou o conteúdo do compartimento entre os assentos. Encontrou um mapa em escala
ampliada da área, com todas as rodovias e vilarejos indicados por nome e local. Isso foi um prêmio, mas o melhor de tudo foi o par de poderosos binóculos Nikon,
ainda guardado em seu saco de lona verde.

- Sou como uma criança em uma manhã de Natal! - disse com uma risadinha.

Pendurou os binóculos no pescoço, verificou se todos os homens estavam a bordo e dirigiu até onde tinha deixado o restante do grupo, escondidos entre as rochas com
as armas de prontidão. Então Hazel o reconheceu e desceu correndo ao encontro do caminhão.

- Você está bem? Ouvimos disparos.

- Como pode ver, éramos nós atirando. Agora podemos partir novamente com conforto. Hazel, você vai comigo na frente - a seguir, apontou para trás com um dos polegares.
- Cay, quero você na caçamba, mantendo a cabeça bem abaixada caso nos deparemos com mais tiroteios.

Cayla escalou a lateral metálica do caminhão e se deteve enojada.

- Que nojo! Há sangue por todos os lados. Não vou. Quero sentar perto da minha mãe no banco da frente.

- Cayla Bannock, pare de bancar a madame comigo. Comporte-se. Coloque seu fundamento já neste caminhão!

- Mas eu não quero...

- Escute, menininha. As pessoas estão sangrando e morrendo por sua causa. De agora em diante, você vai fazer o que eu mandar.

- Nunca fiz nada de errado... - começou de novo.

- Sim, você fez. Convidou Rogier Marcel Moreau, vulgo Adam Tippoo Tip, a bordo do iate da sua mãe.

- Como soube disso? - olhou para ele com uma expressão desolada.

- Se não sabe, deve ser mesmo uma idiota. Agora, suba no caminhão.

Sem dizer mais uma palavra, Cayla escalou pela lateral e se sentou ao lado de Daliyah na caçamba.

Hector engatou a marcha e foi embora. Ao lado dele, Hazel permanecia calada e imóvel. Não queria olhar para ela, mas podia sentir sua raiva. Sabia o quanto era protetora
em relação a Cayla. Dirigiu em alta velocidade, descendo de novo até o leito do rio. O piso arenoso dificultava a locomoção, mas era mais veloz e macio do que o
chão pedregoso e rachado e as cristas. Estavam havia pouco tempo na estrada quando, de repente, ele sentiu uma mão em sua coxa e deu um sobressalto de surpresa.
Olhou de soslaio para Hazel, cujos olhos cintilavam. Ela se reclinou na direção dele até que ficasse a poucos centímetros de seu ouvido.

- Você sabe lidar maravilhosamente bem com crianças, não é mesmo, Hector Cross? - ela sussurrou, roçando o rosto áspero de Hector com os lábios. - Você não sabe
quantas vezes eu quis fazer exatamente aquilo. Quando a mademoiselle Cayla começa a dar chilique, pode ser uma verdadeira megera.

A admissão surpreendeu Hector. Ele cobriu a mão em sua perna com a sua, muito maior, e a apertou.

- Espero que seja um sinal de que está melhorando. Entendo o seu problema, Hazel. Há muito tempo que Cay está órfã de pai, e você não se sente à vontade para ser
severa demais com ela.

Dessa vez, foi ela quem ficou espantada com o entendimento dele. Depois, se recompôs.

- Eu tenho uma pessoa em mente para assumir o papel paterno - ela disse em voz baixa.

- Sorte dele - ele sorriu e continuou a dirigir.

Em uma hora, eles deixaram o leito do rio e subiram até um terreno mais elevado. Hector brecou e desligou o motor.

- O que foi agora? - Hazel perguntou com ansiedade.

- Quero fazer alguns telefonemas via satélite. O sinal deve ser bom aqui.

Ele desceu do veículo e, enquanto abria o mapa recém-adquirido sobre o capô do motor e ligava o telefone, disse a Tariq:

- Dê uma caneca cheia d'água para todo mundo. Deixe que estiquem as pernas e tirem água dos joelhos.

Ele estendeu a antena do telefone e assentiu para Hazel.

- Bom sinal! Dave haver um satélite bem acima das nossas cabeças.

- Para quem você está ligando?

- Para o Ronnie Wells no MTB - ele discou o número e, após alguns toques, a voz de Ronnie surgiu na linha.

- Onde você está? - perguntou Hector.

- Estou ancorado na pequena enseada de uma ilhota rochosa a cerca de oito quilômetros da costa... - ele passou as coordenadas para Hector, que as verificou no mapa.

- Ok. Sei onde você está. Fique aí até eu ligar de novo. Hans Lategan não sobreviveu. O helicóptero caiu. Estamos em fuga, mas adquirimos um veículo. Dependendo
do que está adiante, vai demorar oito horas ou mais até chegar à praia em frente ao seu posicionamento.

- Boa sorte, Heck! Estarei à sua espera.

Ambos desligaram.

- Por que não vamos ao encontro do Paddy e dos homens dele em terra em vez do MTB? - Hazel perguntou.

- Boa pergunta - ele assentiu em reconhecimento. - É uma decisão ponderada. A fronteira etíope, onde Paddy está à nossa espera, fica 160 quilômetros mais longe do
que a costa onde Ronnie está.

- Mas as estradas não são melhores? Se fomos para o leste em direção ao litoral, vamos viajar por estradas secundárias.

- Exatamente - concordou, apertando mais números no telefone. - O país nas terras altas do interior é muito mais fértil e densamente povoado e, a esta altura, é
um ninho de vespas em alvoroço com a milícia de Tippoo Tip. Com quase toda a certeza, as estradas estarão bloqueadas em todos os entrocamentos. Mas vou ligar para
o Paddy agora para avisá-lo sobre o que pretendemos fazer.

Paddy atendeu quase imediatamente.

- Onde você está? - Hector perguntou.

- Estou sentado no topo de uma montanha na fronteira etíope, admirando a vista pitoresca do interior somali. Onde diabos você está?

- Estamos a cerca de 32 quilômetros a leste do oásis. Uthmann Waddah é um traidor. Passou definitivamente para o outro lado.

- Filho da mãe! Uthmann, um traidor? Não consigo acreditar.

- Ele deu a dica. Estavam nos esperando. O próprio Uthmann atingiu o helicóptero do Hans Lategan com uma RPG. Hans está morto, e o MIL, destroçado. Consegui capturar
um veículo e estamos a caminho da costa para encontrar o Ronnie.

Paddy soltou um assovio.

- Você matou o Uthmann, aquele desgraçado de coração de pedra?

- Tentei atirar nele, mas ainda estava usando o colete à prova de balas. Eu o atingi, mas não acho que esteja morto. A armadura provavelmente conteve a bala.

- Uma grande pena! - Paddy grunhiu. - Sabia que havia alguma coisa no ar. De onde estou, posso ver que todas as estradas do seu lado da fronteira estão inundadas
de veículos. Estou com os meus binóculos focados em um dos caminhões do inimigo neste exato momento. Deve haver pelo menos uns vinte homens na caçamba. Todos armados
até os dentes.

- Ok, Paddy. Fique onde está e espere pela minha próxima ligação. Se não conseguirmos nos juntar ao Ronnie, seremos forçados a ir até você. Esteja preparado para
atravessar a fronteira e nos buscar - ele desligou e olhou para Hazel.

- Ouviu o que ele disse?

Ela assentiu.

- Você está certo, é a nossa última opção. Mas vamos levar mesmo oito horas para chegar ao litoral?

- Se tivermos sorte - ele respondeu e viu que ela ergueu uma das sobrancelhas. Olhou ao redor e viu que Cayla tinha se aproximado dele em silêncio e estava ao seu
lado.

- Vim me desculpar, Heck - disse humildemente. - Às vezes um demônio toma conta de mim e não consigo me conter. Podemos ser amigos de novo? - ela estendeu uma das
mãos, e ele a segurou.

- Nunca deixamos de ser amigos, Cay. E espero que seja assim para sempre. Mas você deve uma desculpa à sua mãe mais do que a mim.

Cayla se virou para Hazel.

- Sinto tanto, mamãe. Hector estava certo. Eu trouxe Rogier a bordo do Golfinho e subornei Georgie Porgie para empregá-lo.

Hazel piscou. Até aquele momento, não quisera acreditar, mas agora tinha de encarar o fato. A bebé dela não era mais um bebé. Então, lembrou que Cayla tinha dezenove
anos, que era bem mais velha do que a própria Hazel naquela noite memorável no banco traseiro do velho Ford do seu treinador, quando havia-se tornado mulher. Ela
se recompôs e estendeu os braços para Cayla.

- Todos nós cometemos erros, bebé. O truque é jamais cometer o mesmo erro.

Cayla olhou novamente para Hector.

- O que é esse tal de fundamento que você vive me dizendo para colocar nos lugares?

- É um jeito sofisticado de se referir ao seu traseiro - Hazel explicou, e Cayla riu.

- Bom, está certo! Concordo. Fundamento soa muito mais classudo. Muito melhor do que a outra opção.


Uthmann desceu com dificuldade pela encosta íngreme da face norte do wadi. Dar um passo era trabalhoso e respirar, uma agonia. Tinha deixado a RPG para trás e agarrava
o peito com as duas mãos, no local onde a bala de Hector havia-se chocado com o painel frontal do colete à prova de balas. Em um primeiro momento, esperou que Hector
e seus homens o seguissem, mas depois percebeu que deveriam estar tentando se reagrupar após a destruição do helicóptero. Ele parou por alguns minutos para descartar
o pesado colete e examinar o ferimento. Embora a bala não tivesse penetrado, o hematoma e o inchaço no local do impacto eram enormes. Com cautela, sondou a área
e sentiu a ponta afiada de uma costela quebrada sob a pele. A possibilidade dos pulmões terem sido perfurados o preocupava. Embora a dor fosse praticamente insuportável,
respirou fundo. Os pulmões não pareciam ter sido afetados, e ele tomou fôlego e desceu cambaleante até o ponto onde deixara Adam, no fundo do vale. Ele não estava
mais lá. Provavelmente tinha escalado de volta à borda da margem onde tinham se despedido do xeique e de seus homens. Uthmann subiu pelo mesmo caminho e encontrou
Adam no topo do wadi, sentado em uma rocha colocando uma atadura feita com tiras de camisa no tornozelo.

- O que aconteceu? - perguntou assim que viu Uthmann. - Ouvi tiros e uma grande explosão.

Entre respiradas cautelosas, Uthmann descreveu o que tinha feito, e Adam ficou extasiado.

- Então, eles não escaparam! Agora estão encurralados e na palma da minha mão.

- Sim, nós os encurralamos por agora. Mas como expliquei a você e ao seu avô, Cross tem planos de contingência para outras rotas de fuga. Agora ele provavelmente
está seguindo em direção à costa, onde há um barco de prontidão para levá-los até a Arábia Saudita. Onde está seu avô? Precisamos do caminhão para persegui-los.

- Ele deve ter atravessado o wadi mais adiante, como tínhamos combinado com ele.

- Ambos estamos feridos. Jamais conseguiremos alcançar seu avô ou Cross a pé. Precisamos esperar a outra caminhonete da fortaleza. Deveriam ter chegado há séculos.

- Provavelmente perderam nosso rastro na escuridão - disse Adam com o cenho franzido. - Ou isso ou a caminhonete quebrou de novo.

Mais uma hora se passou até que ouvissem o motor de um veículo se aproximando, e ele surgisse no campo de visão acima da crista. Havia dois homens na cabine e mais
uma dúzia na caçamba. Uthmann reservou alguns minutos para enfaixar o tornozelo de Adam e o próprio peito, usando o kit de primeiros socorros da caminhonete; depois
subiram a bordo e seguiram os rastros deixados pelo veículo de caça do xeique. De uma distância de cerca de um quilômetro e meio, viram as aves de rapina voando
em círculo no céu adiante, e Adam mandou o motorista se apressar até que chegaram ao cenário onde seu avô havia sido assassinado. O corpo jazia sobre a areia do
leito ressequido do rio. Metade do rosto do velho havia sido rasgado e devorado pelos pássaros, mas a barba saíra ilesa. Com dor, Adam desceu até a areia, e foi
mancando até se ajoelhar ao lado do corpo. Outros animais carniceiros, provavelmente um bando de chacais, tinham rasgado a barriga do xeique, e as entranhas já estavam
apodrecendo devido ao calor. O fedor era nauseante.

De maneira respeitosa, Adam pronunciou as orações tradicionais para os mortos, mas seu coração estava em júbilo. Os anos da tirania do avô haviam chegado ao fim,
e agora ele era indisputavelmente o xeique do clã Tippoo Tip. Fazia apenas quatro dias que o velho o tinha nomeado formalmente como seu sucessor na mesquita, na
presença do mullah e dos filhos. De agora em diante, ninguém ousaria questionar a reivindicação da chefia do clã por parte de Adam.

Quando encerrou as preces, ele se levantou e ordenou que os homens enrolassem o avô na lona e o colocassem na caçamba. Enxergou a veneração dirigida a ele nos olhos
e no comportamento dos homens que se apressaram em atender ao seu comando. Até mesmo a atitude de Uthmann havia mudado consideravelmente em razão da subida na hierarquia
e do grau de autoridade.

Uthmann havia revistado a área com cuidado enquanto Adam rezava. Encontrara os rastros deixados por Hector e o grupo de emboscada. Foi até onde Adam se encontrava
e explicou como era provável que os infiéis tivessem retornado do outro lado do wadi após a destruição do helicóptero e que, por uma infelicidade do destino, tinham
se deparado com o caminhão que levava o xeique a bordo. Tinham assassinado o velho e se apoderado do veículo.

- Quais são suas ordens, meu xeique? - perguntou.

A pronúncia do título foi um bálsamo para a alma de Adam, como um cachimbo de haxixe.

- Temos de seguir o veículo roubado do meu avô até termos certeza da direção seguida pelos infiéis. Somente então poderemos decidir o que tem de ser feito.

Uthmann arriscou repetir a sua opinião.

- Como já expliquei, conheço esse homem, Cross, bem o bastante para adivinhar o que ele vai fazer. Agora que roubou o veículo de caça, com certeza tentará alcançar
a costa, onde há um barco à espera dele.

- O que ele irá fazer se não conseguir escapar de barco? - Adam perguntou.

- Daí, a única rota de fuga disponível será a fronteira com a Etiópia.

- Vamos ver se você está certo. Mande os homens montarem no caminhão e irem atrás dele.

Deixaram os corpos dos guarda-costas para os chacais e os pássaros e seguiram os rastros do veículo menor. Logo encontraram o local onde Hector Cross havia parado.
Viram as pegadas do grupo onde haviam desembarcado. Apesar do peito ferido, Uthmann desceu para examinar os rastros e depois retornou para dar as informações a Adam.

- São nove pessoas, seis homens e três mulheres.

- Três mulheres? - Adam indagou. - Uma é minha prisioneira que escapou, mas quem são as outras duas?

- Acho que uma delas é a conhecida de Tariq que mostrou a Cross como entrar na fortaleza. A terceira e última chegou no helicóptero. Eu a vi apenas por alguns segundos
antes de disparar contra o RPG. O vislumbre que tive foi à distância e parcialmente obstruído pela fuselagem, por isso não posso ter certeza absoluta, mas acho que
a terceira mulher é a mãe da sua cativa. Eu a vi várias vezes em Sidi el Razig e estou quase certo de que é ela.

- Hazel Bannock! - Adam o encarou sem conseguir acreditar no tamanho de sua sorte. Ele agora não somente era o xeique do clã, como tinha uma das mulheres mais ricas
do mundo ao alcance da mão. Assim que conseguisse fisgá-la, ela o transformaria em um dos homens mais poderosos da Arábia e da África.

"Dezenas de bilhões de dólares e meu próprio exército me protegendo. Não existe nada que eu deseje que não seja capaz de obter." A imaginação dele se expandiu diante
de tal magnitude. "Assim que receber a quantia do resgate, vou proporcionar mortes extraordinárias a Hazel Bannock e à filha. Deixarei que todos os meus homens se
divirtam com elas. Elas serão curradas pelos dois orifícios, mil vezes pela frente e por trás. Se não conseguirem matá-las com seus paus, poderão usar as baionetas
nos mesmos buracos para liquidar o assunto. Vai ser divertido assistir. Vamos compartilhar tal deleite com o assassino, Hector Cross. Depois, vou ter de pensar em
algo original para ele. Vou acabar passando-o às velhas da tribo com suas faquinhas, mas, para começo de história, vários dos meus homens irão saboreá-lo por trás.
O ânus vai esticar até que seja possível andar a cavalo dentro dele. Para um homem como ele, a humilhação será maior do que a dor física." Adam esfregou as mãos
de contentamento. "Vou conseguir o pagamento e também liquidar a dívida de sangue da minha família." Ele falou em voz alta para o motorista:

- Retorne ao oásis!

E depois explicou a Uthmann:

- Tenho de enterrar o meu avô com todo o respeito que ele merece. Vou mandar uma mensagem pelo rádio ao meu tio Kamal para avisá-lo que os fugitivos tentarão escapar
de barco. No entanto, se Cross conseguir se safar de novo, irá com certeza tentar alcançar a fronteira etíope, e é lá que estaremos à sua espera.


CONTINUA

Na manhã seguinte, Hector foi à procura de Hazel e a encontrou tomando o café da manhã no minúsculo refeitório da empresa. Ao chegar perto dela, olhou para baixo
e viu uma tigela de cereal e uma xícara de café preto na mesa. Não era de se espantar que estivesse em boa forma, ele pensou.

- Bom dia, sra. Bannock. Espero que tenha dormido bem.

- Tentando fazer uma piadinha irônica, Cross? É claro que não dormi bem.

- O dia vai ser longo. É pouco provável que algo aconteça por enquanto. Vou levar alguns dos meus rapazes para um treino de paraquedas antes do grande show. Alguns
não saltam há mais de um ano. Precisam dar uma desenferrujada.

- Tem um paraquedas para mim? - ela perguntou.

Ele piscou. Pensara que talvez ela quisesse assistir para se distrair das próprias preocupações. Não tinha imaginado que gostaria de participar. Ficou pensando qual
seria seu nível de experiência.

- Já saltou da paraquedas? - perguntou com tato.

- Meu marido adorava e costumava me levar junto. Fizemos vários saltos de base juntos nos fiordes noruegueses em Trollstigen.

Hector olhou para ela boquiaberto antes de conseguir falar de novo.

- Esse é o suprassumo - admitiu. - Não há nada mais radical do que saltar de uma montanha para um abismo de 600 metros de altura.

- Não me diga que já saltou daqueles fiordes? - perguntou ligeiramente interessada.

- Sou corajoso, mas não louco - ele balançou a cabeça. - Sra. Bannock, a senhora tem a minha admiração e ficarei honrado se juntar-se a nós hoje pela manhã.

Hector havia reunido quinze dos seus melhores homens, incluindo Dave Imbiss e Paddy O'Quinn. Saltaram três vezes do helicóptero. O primeiro salto foi a três mil
metros de altitude; o segundo e o último, em um nível mais baixo, a 120 metros, apenas o suficiente para que o paraquedas se abrisse antes que tocassem os pés no
chão. Essa técnica daria pouca chance ao inimigo de acertá-los se estivesse atirando do chão enquanto eles caíam, vulneráveis. Após o terceiro salto, todos os homens
estavam claramente maravilhados com Hazel. Nem mesmo Paddy O'Quinn conseguiu disfarçar a admiração.

Comeram sanduíches de queijo e presunto e tomaram café de uma garrafa térmica sentados na lateral de uma duna de areia. Depois disso, Hector empurrou um pneu velho
de caminhão duna abaixo, e enquanto ele descia quicando pelo morro íngreme, os homens, alternadamente, atiraram com seus rifles de assalto Beretta SC 70/90 no alvo
de papelão encaixado na parte de dentro. Hazel foi a última a atirar. Pegou a arma de Hector emprestada e verificou a munição e a estabilidade com um ar competente
e sagaz. Em seguida, foi até a linha e acertou o alvo com um estilo elegante, oscilando ligeiramente antes de disparar contra o pneu, como um atirador munido de
uma espingarda de calibre .12 se posicionando para atirar em um faisão em movimento. Dave resgatou o pneu da base da duna, todos se reuniram em volta dele, olhando
para os buracos de bala perfurados no alvo de papelão. Ninguém falou muito.

- Por que estão todos tão surpresos? - Hector gracejou. - Ela é uma atleta de gabarito internacional. É claro que é bastante competitiva e tem a coordenação visomotora
de um leopardo.

Depois disse ingenuamente:

- Deixe-me adivinhar, sra. Bannock. Seu marido gostava de atirar e arrastava a senhora junto. É isso, não é?

O riso foi espontâneo e contagiante e, após alguns instantes, Hazel foi forçada a acompanhar. Era a primeira vez que ria desde que perdera Cayla. Foi catártico.
Sentiu parte da dor debilitante ser expurgada da alma.

Antes que o riso cessasse, Hector bateu palmas e gritou:

- Certo, meninos e meninas! São apenas onze quilômetros de volta ao terminal. O último a chegar paga as bebidas.

O solo arenoso dificultava a caminhada. Quando passaram pelo portão na cerca de arame farpado do perímetro do terminal, Hector estava alguns passos atrás de Hazel.
Ela estava correndo em um ritmo forte e suave, mas as costas de sua camiseta estavam escurecidas pelo suor. Hector sorriu.

"Duvido que a madame vá ter muita dificuldade em pegar no sono hoje à noite", pensou.


Uthmann ouviu a explosão e viu a coluna de fumaça preta subindo acima dos telhados dos edifícios à frente dele. Logo soube que era um carro-bomba, e saiu correndo
em disparada para a casa do irmão, que ficava nas proximidades da explosão. Virou a esquina e olhou para a rua estreita e sinuosa abaixo. Até mesmo para um veterano
escaldado como Uthmann, a carnificina era horrível. Um homem veio correndo na direção dele com o corpo de uma criança ensopada em sangue apertado contra o peito.
O olhar vazio sequer focalizou em Uthmann quando ele passou correndo. A fachada de três edifícios havia sido destruída. O interior estava exposto como o de uma casa
de bonecas. Móveis e pertences pessoais estavam dependurados nos aposentos abertos ou caíam em cascata na rua. No meio da via, estavam os destroços enegrecidos e
contorcidos do carro que carregara a bomba.

- Você não é um mártir! - Uthmann gritou ao passar correndo pelas ferragens fumegantes e os restos vaporizados do motorista. - Você é um assassino xiita!

Então ele viu que a casa de Ali, seu irmão, mais ao final da rua, estava intacta. A mulher de Ali veio até a porta. Ela estava chorando e embalando dois dos filhos
nos braços.

- Onde está o Ali? - gritou.

- Foi trabalhar no hotel - ela soluçava.

- Todas as crianças estão com você?

Ela assentiu em meio às lágrimas.

- Que o nome de Alá seja louvado! - Uthmann gritou e a levou de volta para dentro.

A mulher e os três filhos do próprio Uthmann não tiveram tanta sorte quanto a família do irmão. Três anos antes, Lailah estava no mercado local com os meninos quando
uma bomba explodiu a trinta passos deles. Uthmann pegou o menininho dos braços da cunhada e o embalou até que parasse de choramingar. Ao se lembrar do calor do corpinho
do filho em seus braços, sentiu as lágrimas subirem aos olhos. Ele virou o rosto para que não vissem.

O irmão Ali chegou do trabalho uma hora depois. Devido à bomba, o gerente geral do hotel havia autorizado que ele saísse mais cedo. O alívio do homem ao ver que
a família estava em segurança foi doloroso de assistir para Uthmann. Somente no dia seguinte Uthmann conseguiu ter uma discussão séria com ele. Para começar, Uthmann
tocou no assunto da captura do iate e da jovem herdeira da fortuna da Bannock Oil.

- Essa foi a notícia mais excitante que ouvimos em anos - Ali logo respondeu. - O mundo muçulmano inteiro está em expectativa desde o anúncio dos camaradas no Al
Jazeera. Que planejamento cauteloso e que senso de dever para fazer que tal operação florescesse! É uma das nossas maiores vitórias desde os ataques em Nova Iorque.
Os norte-americanos estão atordoados. O prestígio deles sofreu mais um ataque mortal - Ali estava extasiado.

No dia a dia, ele era o gerente do Airport Hotel, mas na realidade sua ocupação principal era a de coordenador dos Combatentes Sunitas que estavam perseguindo a
Jihad contra o Grande Satã. Estava claro para ambos os irmãos que Ali era o alvo principal da bomba xiita que havia causado tamanha devastação na rua da casa onde
se encontravam.

- Tenho certeza de que os nossos líderes vão exigir um pagamento de resgate enorme pela princesa norte-americana capturada - Ali disse com seriedade. - O suficiente
para financiar a Jihad contra os Estados Unidos por outros dez anos ou mais.

- Então, qual dos nossos grupos foi o responsável por essa conquista? - Uthmann perguntou. - Nunca ouvi falar desse "Flores do Islã" até que o nome fosse usado pelo
Al Jazeera.

- Irmão, você sabe que não deve fazer essa pergunta. Embora você tenha provado a sua lealdade centena de vezes, eu jamais poderia respondê-la, mesmo que soubesse
a resposta, e eu não sei - Ali hesitou e depois prosseguiu. - Mas posso dizer que logo você talvez seja um dos que precisem saber.

- Minha conexão com a Bannock Oil? - Uthmann sorriu para ele, mas Ali fez um gesto de negativa com as mãos.

- Chega, não posso dizer mais nada.

- Então parto amanhã e retorno a Abu Zara...

- Não! - Ali o interrompeu. - Foi a mão de Alá que trouxe você aqui hoje. Fique comigo por pelo menos mais um mês. Inshallah! Talvez possa dizer algo a você nessa
altura.

Uthmann assentiu.

- Mashallah! Ficarei, irmão.

- Seja bem-vindo sob o meu teto, irmão.


No palácio na encosta acima do Oásis do Milagre, um outro grupo de homens tomava café em minúsculas xícaras de prata, conversando seriamente em voz baixa. Estavam
sentados em círculo ao redor da mesa incrustada com mármore e madrepérola. O único item sobre a mesa era o bule prateado de café. Não havia nenhum material escrito
na sala. Nada era anotado. Todas as decisões eram anunciadas pelo xeique Khan Tippoo Tip em pessoa e memorizadas por seus ouvintes.

- Meu neto Adam enviará a primeira exigência para o resgate - olhou para Adam que, ainda sentado na almofada de seda, fez uma mesura até a testa encostar nas lajotas.

- Ouvir seu comando é obedecê-lo - murmurou.

O xeique Khan gracejou:

- A quantidade de exigências será tão grande que até mesmo na terra doentia e amaldiçoada do Grande Satã não haverá ninguém rico o suficiente para cumpri-las - quando
sorriu, seus olhos desapareceram detrás das pálpebras enrugadas. - Não existe quantia de dinheiro capaz de quitar a dívida de sangue que esse homem chamado Cross
tem comigo. Somente o sangue pode pagar por sangue.

Eles bebericaram das xícaras de prata em silêncio, esperando que o xeique continuasse a falar.

- O infiel pérfido matou três dos meus filhos - ergueu um dos dedos contorcidos pela artrite. - O primeiro era meu filho e o pai do meu neto Saladin Gamel.

Adam se curvou mais uma vez, e o xeique Khan prosseguiu:

- Ele era um verdadeiro guerreiro de Alá. Foi assassinado por Cross em uma rua de Bagdá sete anos atrás.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros homens na roda murmuraram.

- A segunda dívida de sangue é o meu filho Gafour. Foi enviado para honrar a dívida de sangue de seu irmão mais velho, Saladin, mas Cross o matou também quando atacou
o dhow em que Gafour velejava a Abu Zara para cumprir a tarefa de que fora incumbido por mim.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - os outros entonaram novamente.

- O terceiro dos meus filhos que morreu nas mãos desse infiel adorador do Cristo foi Anwar. Também tinha sido enviado em uma missão de honra.

- Que Alá o receba nos Jardins do Paraíso - repetiram em coro pela terceira vez.

- Essa dívida de sangue se tornou um fardo em minha consciência. A vida dos meus três filhos foi tirada por esse idólatra tolo, servo de um falso deus. Para mim
não basta mais apenas tirar a sua vida. Uma vida não pode pagar por três. Tenho de capturá-lo e entregá-lo vivo às mães e às mulheres dos homens que matou. As mulheres
são altamente treinadas no assunto. Sob suas mãos e as lâminas afiadas das facas de esfola ele terá vários dias de tormento até passar ao ventre do inferno e os
braços de Satã.

- Seu comando é uma ordem, poderoso Khan, que assim seja - murmuraram de acordo.

- Está me escutando, meu neto? - o xeique Khan indagou.

Adam fez mais uma mesura, devotada, reverente.

- Estou escutando, venerado avô.

- Deposito a dívida da dívida de sangue diretamente nos seus ombros. Você tem de recolher o pagamento pelos seus dois tios e pelo seu próprio pai. Que você não conheça
paz nem descanso até que a dívida seja completamente quitada.

- Escuto o que diz, meu avô. É um voto de confiança sagrado.

- Quando você trouxer o suíno infiel vivo até mim, vou colocá-lo no pedestal mais alto da sua tribo. Você ganhará um lugar em meu coração juntamente com as memórias
do seu pai e dos seus tios assassinados. Quando eu morrer, você assumirá o meu lugar como líder do nosso clã.

- Reconheço esse dever passado a mim como sagrado, meu avô. Entregarei o homem e a mulher para que enfrentem sua ira e seu julgamento, conforme seu comando.


A espera é sempre a parte mais difícil, Hector lhe dissera no início. Gradualmente ela descobriu o quanto ele estava certo. Todos os dias, passava horas em teleconferências
no Skype conduzindo os negócios da Bannock Oil pelo mundo. No restante do tempo, ela treinava com os homens de Hector. Correndo, pulando e atirando até estar tão
em forma física e mentalmente concentrada quanto na ocasião em que entrou na quadra de Flinders Park naquele dia de glória longínquo.
Mas as noites, aquelas terríveis noites, passavam em agonia espiritual. Ela dormia pouco, mas quando dormia, sonhava com Cayla - Cayla galopando com ela em seu cavalo
dourado de crina branca pelos altos prados do rancho. Cayla gritando de excitação ao abrir o presente extravagante que Hazel lhe dera quando completara 18 anos.
Cayla adormecendo no ombro de Hazel enquanto assistiam juntas a filmes antigos tarde da noite na TV a cabo. E então homens, mascarados e com armas nas mãos, surgiam
e o terror que sentia era infinito. Cayla! Cayla! O nome dela ressoando sem parar em sua mente, atormentando-a e deixando-a à beira da loucura.
Falava todos os dias com Chris Bessel e o coronel Roberts nos Estados Unidos, mas eles ofereciam pouco conforto. Todas as noites, sozinha em seu quarto, rezava como
quando era uma menininha, de joelhos e chorando. Mas as pistas haviam cessado. Nem todo o poder de suas orações, tampouco o da CIA, eram capazes de fazer com que
surgisse algum traço de Cayla ou das Flores do Islã. Passava várias horas do dia com Hector Cross, extraindo forças de sua companhia.

- Mas não temos notícias há quase um mês, Cross! - dizia isso pelo menos uma vez ao dia.

- Eles brincam de gato e rato com uma habilidade sem limites. Têm anos de prática - respondeu. - Não estão com pressa. Temos de esperar. Mas, lembre-se, Cayla ainda
está viva. Apegue-se a esse pensamento como algo positivo.

- Mas e Tariq e Uthmann? Com certeza eles já devem ter descoberto alguma coisa.

- É um jogo extremamente lento - enfatizou. - Se Tariq e Uthmann cometerem um único deslize, morrerão de uma morte pouco invejável. Estão profundamente infiltrados,
vivendo, comendo e dormindo com a Besta. Não podemos apressá-los; na verdade, não posso nem mesmo entrar em contato. Se tentar, o resultado será o mesmo do que levar
um tiro na cabeça.

- Queria que houvesse algo que pudéssemos fazer - ela lamentou.

- Há uma coisa que a senhora pode fazer, sra. Bannock.

- O que é, Cross? - perguntou com avidez. - Farei qualquer coisa que você sugerir.

- Então eu sugiro que pare de enviar e-mails para a Besta no celular da Cayla.

- Como...? - a voz dela abrandou, e a seguir ela balançou a cabeça e admitiu. - Estava apenas repetindo a mensagem que você me fez mandar antes. Dizendo que estamos
esperando. Mas como você... - ela interrompeu a frase de novo.

- Como soube o que andava fazendo? - ele concluiu a pergunta por ela. - Às vezes você não é tão esperta quanto pensa, Hazel Bannock.

- E você, Hector Cross, é o imbecil mais esperto do mundo inteiro - ela explodiu.

- Faz bem desabafar de vez em quando, não é, Hazel?

- Não ouse me chamar de Hazel, seu filho da puta arrogante!

- Ótimo, sra. Bannock! Seu jeito de falar melhora a cada dia. Logo estará dentro dos meus elevados padrões.

- Odeio você, Hector Cross! De verdade.

- Não, não odeia de verdade. A senhora é astuta demais para isso. Guarde seu ódio para quando ele for necessário - ele riu.

A risada dele foi suave e contagiante, amena e compreensiva, e, mesmo sem querer, ela riu com ele, mas o riso dela tinha um quê de histérico.

- Você é incorrigível! - disse em meio ao riso.

- Agora que me entende, pode me chamar de Hector ou de Heck, se quiser.

- Obrigada - ela tentou abafar o riso. - Mas não quero merda nenhuma.

 

-O que os forçará a vir aqui e tentar libertar a garota? - xeique Khan encarou o neto, esperando a resposta.

Adam pensou bem antes de responder.

- Primeiro, ele têm de saber onde ela está.

O avô assentiu.

- A seguir, pedirão a ajuda dos amigos em Washington. Sabemos que a mãe é amiga do presidente norte-americano. Eles enviarão multidões de cruzados para nos assolar.

O xeique Khan penteou a barba com os dedos, observando os olhos do neto, à espera do momento em que o rapaz veria o caminho adiante tão claramente quanto o próprio
xeique Khan.

- Levará várias semanas, ou até meses, até que os norte-americanos preparem um ataque contra nós. Podemos nos mudar deste lugar e, em poucas horas, desaparecermos
no deserto. Hector Cross, o assassino dos meus filhos, sabe disso. Ele e a mãe da menina querem esperar o exército norte-americano se mexer?

- Sim! - disse Adam com certeza. - A menos que... - xeique Khan viu a solução surgir nos olhos do neto, e seu coração se encheu de orgulho.

- Sim, Adam! - encorajou o neto a falar.

- A menos que possamos convencê-los de que a menina está sob perigo de morrer, ou um perigo pior do que a própria morte - disse Adam, e o avô sorriu até que os olhos
quase desaparecessem nas pregas das pálpebras. - Desse modo, eles virão atrás de nós, sem medo nem hesitação, virão atrás de nós.

- Onde é melhor? - o xeique Khan murmurou alegremente.

Adam respondeu sem hesitar:

- Não aqui, em uma cela de pedra da fortaleza. Tem de ser em um lugar onde a beleza do cenário contraste com o horror do ato.

Pensou por um momento e em seguida disse:

- O lago das vitórias-régias, no Oásis do Milagre!

- Mostramos primeiro o perigo e depois deixamos que descubram onde estamos? Ou eles ficam sabendo primeiro qual é o local e depois testemunham o ato? - O xeique
Khan fingiu que estava ponderando a questão, mas Adam falou de novo.

- Primeiro, têm de ver o que a garota está sofrendo, pois quando finalmente descobrirem o local, virão correndo sem hesitar nem parar para pensar.

- Estou orgulhoso de você - disse o xeique Khan. - Você será um grande general e um guerreiro implacável de Alá - Adam fez uma mesura reconhecendo o elogio.

Em seguida, acenou para um dos guardas de confiança que estava posicionado na porta de braços cruzados. O guarda foi depressa para o lado dele e se abaixou sobre
um dos joelhos para receber suas ordens.

- Mande uma mensagem para o fotógrafo - Adam disse em voz baixa. - Diga para ficar à espera nos portões principais do palácio após as orações matinais. Peça para
trazer a filmadora.


As escravas foram buscar Cayla na cela apertada em que fora mantida prisioneira desde que havia sido levada para o Oásis do Milagre. De novo, banharam-na com jarras
d'água e depois a vestiram em roupas limpas - uma toga negra até os pés e um xale negro enrolado modestamente ao redor do rosto e dos cabelos. Em seguida, ela foi
conduzida até as portas principais do palácio, onde quatro homens com rifles automáticos esperavam para acompanhá-la até a encosta do oásis.

Em contraste com o cheiro mofado da cela de seu confinamento, o ar do deserto era puro e quente. Ela o respirou com alívio. Havia muito que perdera o interesse no
que lhe aconteceria a seguir. Tinha se retraído em um estado entorpecido de resignação. No meio do percurso pela trilha da montanha, ela reparou na multidão reunida
ao lado de uma das lagoas nos jardins luxuriantes logo abaixo. Pareciam dispostos em uma espécie de ordem, em semicírculo. Todos eram homens. Ao se aproximar mais,
viu que no centro do círculo aberto estava um homem sentado de pernas cruzadas sobre vários tapetes de lã. Vestia as tradicionais calças brancas folgadas, um colete
e um turbante pretos, mas mesmo com o lenço que cobria o rosto dele, ela reconheceu Adam. Sentiu uma lufada de ânimo. Não o via desde o dia em que, fazia quase um
mês, ela fora fotografada segurando um exemplar do International Herald Tribune. Queria correr até ele. No meio daquela multidão cruel e selvagem, ele era a única
pessoa em que podia confiar. Sabia que ele era seu protetor. Ele era a luz na escuridão de seu desespero. Ela começou a avançar com mais rapidez, mas os homens ao
seu lado a detiveram, e continuaram a descer o morro a uma velocidade moderada. De repente, outro homem surgiu na sua frente. Caminhava para trás, segurando uma
filmadora profissional com a lente focalizada no rosto dela.

- Sorria, senhorita, por favor - suplicou. - Olhe o passarinho, senhorita, por favor - o inglês dele era quase ininteligível.

- Vá embora! - gritou para ele com a última centelha que sobrara de seu temperamento fogoso. - Deixe-me em paz.

Ela arremeteu contra ele, que se desviou, ficando a uma distância segura. Os guardas a agarraram pelos braços e a puxaram para trás. O cinegrafista continuou a filmar.
Eles entraram no semi-círculo de homens armados e mascarados e Cayla gritou para Adam, apelando de uma maneira patética:

- Por favor! Por favor, Adam! Faça-os parar de me atormentar!

Adam deu uma ordem. Os guardas a empurraram e forçaram-na a sentar-se ao lado dele no tapete estampado de cores vibrantes. A seguir, o cinegrafista foi ajoelhar-se
diante deles. Ele havia encaixado a câmera em um tripé. Curvou-se para a frente para focalizar no rosto de Adam, e a câmera fez um ruído suave. Adam retirou o lenço
que cobria seu rosto e olhou diretamente para a lente da câmera.

- Cayla - disse Adam em seu inglês quase perfeito, tingido apenas ligeiramente pelo sotaque francês -, eles estão fazendo esta filmagem para mandar para sua mãe,
para mostrar que estamos cuidando bem de você. Pode enviar a mensagem que quiser. Fale para a câmera. Diga que eles logo farão um pedido de pagamento de resgate.
Você precisa pedir a ela que pague imediatamente. Assim que receberem o dinheiro, essa situação desagradável terminará. Você será libertada e enviada de volta para
sua mãe de novo. Compreende?

Ela assentiu calada.

- Remova o véu - Adam ordenou gentilmente. - Deixe sua mãe ver seu rosto.

Lentamente, como se estivesse em transe, Cayla ergueu o lenço e o deixou cair sobre os ombros. - Agora, olhe para a câmera. Isso, ótimo! Agora, fale com sua mãe.
Diga o que está sentindo.

Estremecendo, Cayla respirou fundo e disse:

- Oi, mamãe. Sou eu, Cayla - ela interrompeu e balançou a cabeça. - Desculpe. Isso é uma coisa imbecil de dizer. É claro que você sabe quem eu sou - ela se recompôs
de novo. - Estas pessoas estão me mantendo presa neste lugar horrível. Estou com tanto medo. Sei que alguma coisa terrível vai acontecer comigo. Eles querem que
você mande dinheiro. Eles prometeram que vão me soltar quando você fizer isso. Mamãe, por favor, me ajude, não deixe que façam isso comigo - ela começou a soluçar
e abaixou a cabeça, pousando-a nas mãos em concha, a voz dela abafada pelos dedos e a força do terror e da dor que sentia. - Por favor, minha mãe querida. Você é
a única pessoa no mundo que pode me salvar - os soluços se intensificaram, e as palavras dela perderam a forma e o sentido.

Adam esticou um dos braços e acariciou os cabelos dela carinhosamente. Depois, olhou diretamente para a câmera.

- Sra. Bannock, quero dizer que sinto muito que isto esteja acontecendo com sua filha. Cayla é uma jovem adorável. É trágico que ela tenha sido envolvida nisto.
Sinto muito mesmo. Queria que houvesse algo que eu pudesse fazer. No entanto, não sou responsável pelos atos destes homens. Eles seguem sua própria lei. A senhora
é a única pessoa que pode colocar um fim neste horror. Faça o que Cayla pediu. Pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora.

Ele se levantou e saiu da frente da câmera. O lugar dele foi tomado por quatro homens mascarados. Tinham colocado as armas de lado. Colocaram Cayla de pé e viraram
o rosto dela para a câmera. Um deles a pegou pelas costas, agarrando um punhado de seus cabelos loiros e a puxou para trás. Um outro mascarado entrou em cena pela
direita, e então extraiu um punhal de cabo de chifre de rinoceronte e lâmina de dez polegadas da cintura. A lâmina era incrustada com dizeres árabes em dourado.
Posicionou a ponta do punhal sob o queixo de Cayla, quase encostando na pele aveludada de sua garganta.

- Não! Por favor! - falou desesperada.

O grupo não se mexeu por um minuto. A seguir, ele desceu a lâmina lentamente até apontar para o seio esquerdo dela, os contornos revelados pelo algodão preto do
vestido. O homem cobriu o seio direito com a mão livre. Tomou-o nas mãos e começou a sacudi-lo quase como se estivesse brincando com ele. Cayla começou a se debater
ainda mais, e os homens que a seguravam começaram a rir sob as máscaras. O barulho era como o de uma hiena gargalhando ao sentir o cheiro de sangue no vento.

O homem de punhal enganchou um dos dedos no colarinho do vestido e o abriu. A seguir, percorreu o espaço entre o tecido preto e a pele de Cayla com a lâmina. Ela
sentiu a frieza do metal e ficou paralisada, olhando para a faca que descia pelos seus seios. O tecido arrebentou e um dos seios saltou para fora. A pele era branquíssima,
mas o mamilo era vermelho como um rubi. O homem embainhou novamente o punhal e alcançou o interior do vestido aberto. Tirou ambos os seios, um em cada mão, e os
apertou com tanta brutalidade que os mamilos delicados se projetaram, e Cayla gritou de dor. Ele soltou os seios e enganchou um dos indicadores no corte feito no
tecido fino e o rasgou até os calcanhares. Ela estava nua sob o vestido. O fotógrafo percorreu o corpo dela lentamente com a câmera, registrando cada detalhe, detendo-se
nos seios e então descendo até os pêlos púbicos dourados e macios.

Cayla permaneceu docilmente imóvel. Não ofereceu mais nenhuma resistência quando os quatro homens que a seguravam a colocaram no chão e a seguraram de pernas abertas
sobre o tapete. Cada um segurava um braço pelos pulsos. Os outros dois prendiam os tornozelos. Afastaram bem as pernas dela. O fotógrafo mudou o foco da lente, passando
para uma imagem de alta definição em close-up dos lábios rosados da genitália. Cayla rolava a cabeça de um lado para o outro.

- Por favor, não faça isto - choramingou. - Por favor...

O homem que estava sobre ela desfez o cinto e deixou as calças largas caírem pelos tornozelos. Olhou para o sexo de Cayla e cuspiu na palma da mão direita. Espalhou
o cuspe sobre a cabeça do pênis para lubrificá-lo. A câmera acompanhou todos os movimentos. O pênis dele endureceu, estendendo-se adiante do emaranhado de pelos
púbicos negros. Era enorme. As veias grossas e azuis se contorciam ao redor da haste como abomináveis ramos de uma videira. Cayla olhou para cima, de olhos arregalados
e muda de pavor. Ele se ajoelhou entre os joelhos dela e se abaixou até Cayla. Ela tentou afastá-lo com chutes, mas o homem segurou as pernas dela abertas. As nádegas
do homem sobre ela eram musculosas e cobertas por uma densa camada de pelos pretos e animalescos. Elas se contraíram e moveram para baixo. Cayla soltou um berro
agudo, e seu corpo inteiro se convulsionou. Enquanto ele se movia em vaivém sobre ela, os outros homens do círculo que observavam colocaram as armas de lado e se
adiantaram formando uma fila, abaixaram as calças e começaram a se masturbar, preparando-se para a sua vez.

Quando um terminava e se levantava, outro o substituía imediatamente. Após o quarto estupro, Cayla permaneceu imóvel, parou de gritar e de se debater. Após o sexto,
ela começou a sangrar, sangrar muito, o vermelho vivo se destacando contra as coxas pálidas. Quando o décimo homem se levantou sorrindo e subindo as calças, a câmera
se afastou para focalizar no rosto de Adam, que assistia a tudo impassível. Ele se virou para a lente.

- Sinto muito que a senhora tivesse que testemunhar isto, sra. Bannock - disse suavemente. - Não acho que sua filha vá aguentar muito mais. A senhora e eu podemos
dar um fim definitivo a isto tudo. Tudo o que tem a fazer é realizar uma transferência bancária para Hong Kong na quantia de dez bilhões de dólares norte-americanos.
A senhora sabe como entrar em contato com as pessoas que estão fazendo isto com Cayla. Receberá os dados bancários assim que avisá-los que está pronta para enviar
o dinheiro.


Durante o dia, Hazel carregava o BlackBerry sob a blusa, pendurado em uma corda ao redor do pescoço. Tinha prendido o aparelho entre os seios com fita adesiva para,
mesmo quando estivesse correndo, saltando de paraquedas e treinando com os homens, poder atender antes do segundo toque. À noite, mantinha-o debaixo do travesseiro
e frequentemente acordava com ele na mão. Era o mais perto que conseguia chegar de Cayla.
Quando ele finalmente tocou, estava sentada à mesa com Hector Cross, na reunião diária que fazia com seus agentes seniores, na sala de situação. As obrigações da
Cross Bow em relação à segurança tinham de continuar a ser cumpridas com toda eficiência. Hector estava bastante consciente de que o inimigo poderia se aproveitar
do caos causado pelo sequestro de Cayla e, a qualquer hora, lançar outro ataque surpresa. A reunião foi encerrada, e Hector olhou ao redor da mesa.

- Alguma pergunta? Ótimo! Não vou mais segurá-los... - a frase foi interrompida pelo toque do BlackBerry sob a camisa safari cáqui de Hazel.

- Meu Deus! - murmurou e, abrindo rapidamente os botões da blusa, retirou o aparelho.

- Deixem-nos a sós! - Hector ordenou de supetão aos homens. - Saiam! Agora!

Eles obedeceram imediatamente, e Paddy O'Quinn os conduziu pela porta, fechando-a atrás de si. Hazel já estava com o telefone ao ouvido e gritando no bocal:

- Alô? Quem é? Fale comigo. Por favor, fale comigo! - Hector alcançou os ombros dela e os sacudiu de leve.

- Hazel, não é uma chamada telefônica. Ou é uma mensagem de texto, ou um arquivo.

Por causa do nervosismo, ela não tinha reconhecido a diferença dos toques. Com uma pressa desesperada, localizou o conteúdo da mensagem.

- Você está certo - falou de súbito. - É um arquivo. Parece ser uma foto ou um vídeo. Sim, é um vídeo! Longo... doze megabytes.

- Espere! Não abra ainda! - Hector tentou detê-la. Teve um pressentimento do mal que avizinhava. Tentou prepará-la. Mas ela não pareceu escutar. Já estava passando
o vídeo na pequena tela do aparelho.

- É a Cayla! - exclamou com alegria. - Ela ainda está viva. Graças a Deus! Venha ver, Cross!

Ele deu a volta ao redor da mesa e ficou do lado dela.

- Coitada da minha bebé, está com uma aparência tão bonita, mas tão trágica.

Na tela, Cayla caminhava em direção aos homens sentados no tapete no círculo de árabes mascarados e armados. O rosto do homem também estava coberto com um xale de
cabeça. Mas a câmera focalizou nele até que apenas a cabeça e os ombros ficassem enquadrados. O homem removeu o xale que escondia o rosto.

- Quem é esse homem, Cross? Você o conhece? - Hazel perguntou com nervosismo.

- Não, nunca o vi antes. Mas a partir de agora jamais irei esquecê-lo - Hector disse em voz baixa. Adam fez seu breve pronunciamento, e ambos escutaram em silêncio,
olhando para a tela fixamente como se estivessem diante de um réptil venenoso.

- ... pague a quantia do resgate e sua linda filha será devolvida imediatamente à senhora - Adam finalizou em voz baixa.

- Pagarei - Hazel suspirou. - Pagarei o que for para tê-la de volta.

- Sinto muito, sra. Bannock - o tom de Hector foi gentil -, mas ele está mentindo para a senhora. Tudo o que ele diz é mentira. Trata-se da Besta, e a Besta é mestre
em mentir.

A imagem na tela mudou, e o árabe com a faca avançou sobre Cayla.

- Ele não vai feri-la. Não, ele não pode feri-la. Pagarei o que for. Qualquer coisa para não machucarem mais a minha bebé - o tom de voz dela subiu, histérico.

- Seja corajosa, pela Cayla, seja corajosa.

- Com certeza esses indivíduos são seres humanos, não animais - ela disse. - Não vão machucar uma menina inocente que não lhes fez mal algum.

- Não, eles não são animais. Os animais mais selvagens são nobres e bons em comparação a essas criaturas.

O árabe na tela ficou de pé diante de Cayla e expôs o sexo grotesco. Hazel soluçou e segurou uma das mãos de Hector. Depois, ficou em silêncio enquanto o cenário
de horror começou a se desdobrar. Mas ela tremia como se estivesse ardendo de febre.

- Desligue! - Hector ordenou, mas ela balançou a cabeça e apertou o braço de Hector como se tivesse garras de aço.

Ele mal conseguia acreditar na força. Não se esforçou para se desvencilhar da mão dela; embora a dor tivesse enchido seus olhos d'água, não podia negar qualquer
tipo de conforto que pudesse oferecer. Os múltiplos estupros de Cayla pareceram, para ambos, durar uma eternidade. Hector sentiu a raiva subir pelo sangue como nunca
havia sentido. Quando a imagem de Adam surgiu novamente na tela, Hector encontrou um foco para seu ódio. Encarou o rosto como se quisesse esculpir os traços indelevelmente
na memória. Finalmente o terrível vídeo chegou ao fim, e a tela ficou em branco. Nenhum dos dois se mexeu ou falou por um longo tempo. Continuaram a encarar a tela
vazia.

- Eu pagaria se pudesse - Hazel suspirou.

- A senhora não possui a quantia que eles estão exigindo. Dez bilhões de dólares - disse Hector, mais em tom de declaração do que de pergunta.

Ela balançou a cabeça e soltou a mão dele.

- A Bannock não me pertence. Pertence aos acionistas. Setenta e três por cento do capital social pertence ao fundo do Henry. Eu possuo uma procuração que me confere
poder de voto em relação às ações, mas não posso me livrar delas. Tenho apenas dois e meio por cento do capital integralizado das ações da empresa registrado em
meu nome. Se vender essas ações e o restante do meu patrimônio, é capaz que consiga arrecadar cinco bilhões, ou talvez cinco bilhões e meio. Talvez possa negociar
com eles.

- Nem pense nisso! - Hector disse. - Mesmo que tivesse vinte bilhões, não bastaria. Não é isso que eles querem da senhora.

- O que mais podemos fazer?

- Precisamos detê-los até Uthmann e Tariq voltarem. Diga-lhes que está levantando a quantia, mas que vai demorar. Diga qualquer coisa. Revide as mentiras deles com
as suas.

- E então o quê?

- Não sei - admitiu. - Nesta altura, é a única coisa que sei com certeza.

Hazel se virou na direção dele pela primeira vez desde que o vídeo começara. Era como se nunca o tivesse visto. O rosto dele parecia esculpido a partir de um mármore
pálido e indestrutível. Havia sido expurgado de qualquer emoção humana que não fosse ódio. Os olhos verdes faiscavam. O rosto era como a máscara de Nêmesis.

- Do que você tem certeza?

- De que vou tirar aquela menina dali, e vou matar qualquer um que tentar me deter.

Sentiu uma estranha emoção crescer dentro dela, como uma maré em ascensão. Ele era um homem, o primeiro que conhecera desde que Henry Bannock fora tirado dela. É
por ele que eu estava esperando. Eu o quero, pensou, preciso dele. Tanto eu como a Cayla precisamos dele. Meu Deus, como precisamos.


- Finalmente recebemos um pedido de pagamento de resgate - Hector disse aos homens reunidos na sala de comunicações. Observaram o rosto dele com atenção.

- Quanto? - perguntou Paddy O'Quinn em voz baixa.

- Não importa - Hector respondeu. - Não podemos pagar. Não vamos pagar.

Paddy assentiu.

- Vocês seriam loucos de pedra se pagassem. Mas o que vão fazer?

- Extração a quente - Hector respondeu. - Vamos tirar a menina de lá.

- Você sabe onde ela está? - todos se aproximaram avidamente, como cães de caça ao farejarem o cheiro da presa.

- Não! - recostaram-se nos assentos e não conseguiram disfarçar a decepção. Paddy falou em nome de todos.

- Então parece que temos um pequeno problema.

- Tariq e Uthmann vão voltar logo. Vão ter descoberto onde eles a estão mantendo.

- Tem certeza disso? - Paddy perguntou.

- Alguma vez eles fracassaram?

Ninguém respondeu por alguns momentos. Paddy comentou a seguir:

- Tem sempre uma primeira vez.

- Escute, Zé Pessimista, digo a você que a probabilidade é de dez para um se você apostar cem libras. Aguente ou fique calado.

- Onde eu vou arranjar essa quantia com o que você me paga?

- Certo! Quando Tariq e Uthmann voltarem, temos de estar preparados para partir imediatamente. Onde quer que formos, há apenas um modo de entrar. Saltamos à noite
de uma grande altitude.

Eles assentiram concordando.

- Não muitos, um grupo de dez homens. Todos os nossos falantes de árabe que puderem se passar por nativos.

- Em vez de chegar de pará-quedas, por que não usar o helicóptero da empresa? - Hazel perguntou.

- Eles nos ouviriam chegar. Uma aterrissagem noturna, ainda mais em um helicóptero? Não, obrigado - Hector recusou a oferta dela bruscamente, mas ela não demonstrou
estar ressentida.

- Ok, podem usar o meu jato.

- Nunca saltei de um Gulfstream antes - o olhar de Hector percorreu a sala. - Alguém já fez isso?

Eles balançaram a cabeça, e ele olhou novamente para Hazel.

- Não acho que seja uma boa ideia. Existe o problema da pressurização da fuselagem e da localização da porta, em frente à asa. A asa pode decapitar você quando saltar.
E, também, a velocidade do avião... Não, acho que teremos de escolher algo menos exótico.

- Que tal o Bernie Vosloo? - Paddy sugeriu.

- Estava pensando justamente nisso - Hector assentiu e se virou para Hazel. - Ele e a mulher operam uma aeronave de transporte, um Hércules C-130 antigo, levando
carregamentos pesados pela África e pelo o Oriente Médio. Não são frescos quanto ao que transportam, e sabem como manter o bico bem fechado. Já utilizei os serviços
deles várias vezes. O Hércules tem uma fuselagem parcialmente pressurizada e pode chegar a uma altitude de 6.400 metros se levar um chute no traseiro. A essa altura,
o barulho para quem está embaixo não será muito maior do que o de um gato mijando num pedaço de veludo.

Hazel nunca tinha ouvido a expressão antes e tentou manter o rosto elaboradamente sério enquanto tentava reprimir um sorriso, mas os olhos dela cintilaram como luzes
de Natal. Olhos absolutamente maravilhosos, pensou Hector, mas me distraem. Ele desviou o olhar dela para os homens.

- No entanto, não queremos saltar de 6.400 metros, portanto o Bernie vai acelerar bem menos para manter o nível de ruído baixo, e poderemos descer até três mil metros.
Nesse nível, ele pode despressurizar a cabine, e nós podemos pular. Como sempre, nos manteremos próximos durante a queda para atingirmos o chão em conjunto, e vamos
estar completamente equipados para lidar com um comitê hostil de boas-vindas.

- O que vem depois? - Dave Imbiss perguntou.

- Não se preocupe com isso, David, meu filho. Você não vai estar presente, nem você nem seu rostinho rosado de bebÉ - Hector respondeu e prosseguiu. - Essa é a parte
fácil. A difícil será a viagem de volta. Como sempre, há três possíveis saídas: terra, mar e ar. A passagem de primeira classe será para o helicóptero da empresa
- acenou com a cabeça para Hans Lategan, que estava sentado na fileira do fundo. - Hans estará à espera no helicóptero, na fronteira com o país civilizado mais próximo,
preparado para captar o nosso sinal de chamada e ir nos buscar. Isso deve ser suficiente - fez uma pausa -, mas todos estamos cientes do que pode acontecer aos planos
dos ratos e dos homens, portanto, vamos cobrir as outras duas rotas de saída. Tenho certeza de que eles estão mantendo a srta. Bannock prisioneira ou na Puntlândia
ou no Iêmen. Os sujeitos são piratas, portanto, nunca ficam muito longe do litoral.

Hector projetou o mapa no telão da parede e moveu o cursor sobre a área para demonstrar o que estava dizendo.

- Independente do que aconteça, Ronnie Wells vai estar nos esperando em seu torpedeiro na zona marítima - olhou para Ronnie na fileira do fundo, sentado ao lado
de Hans. - Que velocidade pode alcançar naquela banheira velha?

- Com meus novos tanques auxiliares no convés, pode chegar a mais de mil milhas náuticas - Ronnie respondeu. - E agradeço se você lembrar que ela não é uma "banheira
velha". Se eu acelerar, pode chegar aos quarenta nós.

- Desculpe pela escolha infeliz de palavras, Ronnie - disse Hector com um sorriso. - Portanto, o Ronnie vai estar esperando para proporcionar a todos vocês que conseguirem
chegar até a praia um cruzeiro de lazer pelo Mar Vermelho no caminho para casa.

- E se nem Hans nem Ronnie conseguirem cumprir o combinado, o que acontece, então?

Ah! É aí que você entra, Paddy. Você vai estar esperando na primeira fronteira em terra firme com uma coluna de caminhões. Se o alvo for o Iêmen, você ficará ou
na fronteira da Arábia Saudita, ou do Omã. Se o alvo for a Puntlândia, ficará na Etiópia esperando para ir nos buscar. Bernie Vosloo e a mulher podem levar você
e os caminhões até o local de avião, assim que soubermos aonde vamos. A propósito: não se esqueça de jeito nenhum de levar o médico junto. Com certeza alguém sairá
ferido se formos pela rota etíope - Hector olhou para o círculo de rostos ao redor. - Então, todo mundo tem trabalho a fazer. Quero estar pronto para partir dentro
de 24 horas assim que tomarmos conhecimento do alvo, isso pode acontecer a qualquer hora. Vamos nos mexer!

Assim que os demais saíram da sala, Hector ligou para Bernie Vosloo do telefone via satélite. Hazel estava escutando na extensão.

- Bernie, é Hector Cross. Onde você e a sua encantadora patroa estão?

- Oi, Heck. Estou em Nairóbi, mas não por muito tempo. Ainda está vivo? Aqueles caras bronzeados são ruins de alvo, não são?

- A pontaria deles é boa, eu é que aprendi a desviar. Escute, Bernie, tenho um trabalho para você.

Bernie deu uma risadinha.

- Você e o resto da África, Heck. Nella e eu temos pilotado sem parar, dia e noite. Amanhã nos mandamos para a República Democrática do Congo, aquela fossa de país
de nome irônico.

- Venha para Abu Zara. O clima e a cerveja são excelentes aqui.

- Desculpe, Heck. Tenho um contrato a cumprir. Um cliente importante. Não posso deixá-lo na mão.

- Qual é o valor do contrato?

- Cinquenta mil - Hector cobriu o bocal com uma das mãos e olhou para Hazel no outro lado.

- Qual é o meu limite? - suspirou.

- Com quem você está falando? - Bernie indagou com rispidez.

- Com a adorável senhora para quem trabalho. Aguarde um pouco, Bernie.

- O necessário para conseguir contratá-lo - Hazel suspirou em resposta e escreveu "um milhão de dólares" no bloco de anotações à sua frente, virando-o na direção
dele para que pudesse ver.

- Isso é loucura! - Hector balançou a cabeça e falou no bocal - Pagamos 250 mil dólares.

Bernie permaneceu calado por alguns momentos e disse a seguir:

- Adoraria ajudar. Desculpe, Heck. Mas é a minha reputação em jogo.

- Nella está aí?

- Sim, mas...

- Mas nada! Coloque-a ao telefone - o forte sotaque africaans de Nella surgiu na linha.

- Ja, Hector Cross. Qual é a enrolação desta vez, cara?

- Só liguei para dizer que amo você.

- Beije a minha bunda, Cross!

- Nada me daria mais prazer, Nella. Mas você tem de se divorciar do cretino do seu marido primeiro. Sabe o que ele acabou de fazer? Recusou a minha oferta de meio
milhão por dez dias de trabalho.

- Quanto? - Nella perguntou pensativa.

- Meio milhão.

- De dólares? Não de dinheiro africano do Banco Imobiliário?

- Dólares - confirmou -, adoráveis verdinhas norte-americanas.

- Onde você está?

- Em Sidi el Razig, Abu Zara.

- Chegaremos depois de amanhã para o café da manhã. E amo você também, Hector Cross.


Hector, Hazel e quatro agentes da Cross Bow estavam esperando na pista quando o monstruoso quadrimotor de transporte deu a volta e iniciou o procedimento de aproximação,
descendo num ângulo bastante inclinado.

- Nella está operando os controles - Hector disse com convicção.

- Como você sabe? - indagou Hazel.

- Bernie pilota como uma velha donzela. Nella é a personificação da cowgirl de rodeio de Germiston, a cidade que teria de ser entubada se alguém quisesse causar
um enema no mundo.

- Não seja grosseiro. Meu avô por parte de pai nasceu em Germiston.

- Aposto que, em outros aspectos, ele era um sujeito esplêndido.

O Hércules C-130 tocou o solo, foi desacelerando pela pista e manobrou para o lado para estacionar próximo de onde eles estavam, as hélices contra-rotativas espalhando
uma nuvem de areia pinicante sobre eles. Nella desligou os motores e estendeu a rampa pela porta traseira da fuselagem. Ela e Bernie desceram da aeronave. Nella
era uma loira robusta de rostinho de bebé. Vestia um macacão de camuflagem. As mangas haviam sido cortadas, o que revelava uma tatuagem de um anjo em voo no carnudo
braço direito. Era mais alta do que o marido.

- Ok, Heck, o que quer que a gente faça por meio milhão? Se conheço bem você, aposto que não vai ser moleza - disse ao trocarem um aperto de mão.

- Como sempre, acertou em cheio.

- Apresente-nos para sua namorada - Nella lançou um olhar penetrante sobre Hazel, tentando não demonstrar ciúmes.

- Quanto ao nosso relacionamento, Nella, meu amor, acho que você cometeu um pequeno engano. Esta é a sra. Bannock, minha chefe e sua. Portanto, um pouco de respeito
é recomendável. Venham, vamos até o terminal, onde podemos conversar.

Eles foram amontoados em duas caminhonetes Humvee. Sentaram-se à mesa comprida da sala de situação, e Hector explicou o problema aos Vosloos. Quando terminou, ficaram
todos em silêncio por alguns momentos, e então Nella olhou para Hazel.

- Também tenho uma filha. Graças a Deus, arrumou um homem bom na Austrália. Mas sei como deve estar se sentindo - disse, esticando um dos braços até Hazel no outro
lado da mesa e cobrindo a mão sedosa de Hazel com sua enorme pata encardida de óleo de motor e sujeira. As unhas eram curtas e quebradas.

- Levaria a senhora de graça se me pedisse, sra. Bannock.

- Obrigada, Nella. Você é uma boa pessoa. Dá para ver.

- Pelo amor de Deus, mulheres. Chega. Vão me levar às lágrimas se não pararem - Hector interrompeu. - Há apenas um problema. Não temos certeza de onde ou quando
estamos indo. Mas será para perto e logo.

- Logo quando? - Bernie Vosloo perguntou. - Não podemos passar semanas aqui esperando. Cada dia que passamos no chão nos custa dinheiro.

- Controle essa boca, Bernie Vosloo! - Nella sussurrou para ele. - Não ouviu eu dar a minha palavra para a senhora?

- Ele está certo! - disse Hazel. - É claro que pagarei pelo tempo parado. Vinte mil pelo primeiro dia, acrescidos de mais dez mil por cada dia que permanecerem em
terra.

- A senhora não precisa fazer, isso sra. Bannock - Nella parecia constrangida.

- Sim, preciso - Hazel replicou. - Agora vamos ouvir o que o sr. Cross tem a dizer.


Foram necessários quatro dias, mas estavam todos preparados. Ronnie Wells e três de seus homens desceram no torpedeiro até o Golfo e ao redor de Ras el Mandeb. Estava
ancorado em uma angra deserta na costa saudita, bem ao norte da fronteira com o Iêmen e do outro lado do estreito da Puntlândia. Ronnie usou as latas que carregava
no convés para reabastecer os tanques de combustível e estava em total e constante contato com Sidi el Razig.

O Hércules permaneceu na borda da pista atrás do minúsculo terminal do aeroporto. A aeronave continha três das caminhonetes GM de longa distância da Cross Bow fixados
no porão e um pequeno tanque de duas rodas de 750 galões à gasolina, que poderia ser acoplado à traseira de um dos outros veículos. As caminhonetes estavam lotadas
de equipamento e cada uma carregava um par de metralhadoras pesadas Browning, calibre .50, escondidas sob o oleado. Podiam ser montadas em alguns minutos, e seu
poder de fogo era devastador.

Hector havia ensaiado o procedimento de queda com Bernie e Nella. Assim que obtivessem o alvo, decolariam ao anoitecer e o sobrevoariam. Bernie e Nella tinham realizado
dezenas de saltos de paraquedas. Eram peritos. Assim que o grupo de Hector saltasse, o Hércules voaria até o aeródromo da fronteira em questão. Chegando lá, pousaria
e Paddy e Dave descarregariam as caminhonetes e se colocariam em posição de escuta e espera o mais perto da base do inimigo que fosse seguro e viável. Quando recebessem
o chamado de Hector pelo rádio, iriam em disparada até a fronteira em direção ao encontro combinado.

Esses dois veículos eram os menos desejáveis para a retirada. Hector estava contando fortemente com Hans Lategan e o grande helicóptero russo MIL-26 da Bannock Oil
para uma retirada organizada e rápida. A pintura vermelha e branca, nas cores da Bannock Oil, já havia recebido uma camada de spray nas cores verde e marrom de camuflagem.
Ficaria de prontidão na fronteira mais próxima, completamente abastecido.

Hazel tinha enviado uma resposta ao pedido de resgate, garantindo à Besta que estava fazendo tudo o que podia para arrecadar a quantia exigida, mas declarando que,
levando em conta o valor em questão, iria levar tempo. Esperava ter a quantia total pronta para ser enviada, de acordo com instruções, dentro de vinte dias. Não
recebeu um retorno, o que a deixava incessantemente aflita. Não restava nada a fazer a não ser esperar, mas Hazel Bannock não era boa de espera. Após o final da
conferência diária com o seu pessoal em Houston e de falar com o coronel Roberts, sobravam ainda dezoito horas a serem preenchidas.

Todas as manhãs Hector a levava para verificarem a chegada do voo local de passageiros de Ash-Alman, a capital de Abu Zara. Escaneavam os rostos de todos que desembarcavam,
mas Uthmann e Tariq nunca estavam entre eles. Até mesmo alguém como Hazel tinha um limite de resistência atlética, portanto eles não podiam passar mais do que sete
ou oito horas diárias correndo pelas dunas, ou praticando mergulho livre no paraíso de corais da enseada. Felizmente, não era difícil falar com ela agora que havia
começado a confiar um pouco em Hector e a baixar a guarda alguns centímetros. Quando discutiam política, ele começou a detectar uma tendência para a direita em relação
à sua instância original. No entanto, ela se opunha veementemente à pena de morte e acreditava na santidade da vida humana.

- Você está dizendo que não existe um único troglodita horrível neste mundo, não importa o quanto ele seja ruim, que não mereça morrer? - Hector indagou.

- A decisão permanece nas mãos de Deus. Não conosco.

- O velho lá em cima suspirou vezes suficientes nos meus ouvidos quando tenho um troglodita na minha frente, "destrua-o, Hector, meu camarada!". Quando o Senhor
chama, Hector Cross obedece.

- Você é totalmente pagão - ela mal conseguia esconder o sorriso.

Ele descobriu que ela era religiosa à moda antiga, que acreditava sublimemente na onipresença e onipotência de Jesus Cristo.

- Então, você acredita que, todas as vezes que ajoelha para rezar, J.C. está sintonizado na frequência do seu chamado? - ele perguntou.

- Espere para ver, Cross. É tudo o que tem a fazer.

- Dá para ver que a senhora tem batido papo com ele recentemente - ele acusou, e ela sorriu como a esfinge.

Essas discussões, e outras semelhantes, eram boas para passar o tempo. E, certo dia, após o jantar, ela reparou no jogo de xadrez barato em uma prateleira atrás
do bar do refeitório, e o desafiou para uma partida. Ele não jogava desde que tinha terminado a faculdade. Sentaram-se frente a frente com o tabuleiro no meio, e
ele logo descobriu que ela não se importava muito com a defesa, e que confiava em atacar agressivamente com a rainha. Uma vez que suas torres unissem forças, era
quase impossível contê-la. Porém, duas vezes ele conseguiu encurralar o rei e a rainha de Hazel com o cavalo. Após uma série de partidas disputadas, acabaram praticamente
em pé de igualdade.

E então, após o quinto dia desde a chegada de Bernie e Nella a Sidi el Razig, Hector disse:

- Sra. Bannock, vou levá-la para jantar hoje à noite, quer a senhora goste ou não.

- Continue assim e talvez consiga me convencer - ela disse. - Devo me vestir para a ocasião?

- Para mim, a senhora está bem como está.

Ele a levou de carro até uma faixa praiana cinco quilômetros adiante na costa. Ela ficou observando enquanto ele montava a churrasqueira.

- Ok, você sabe fazer fogo como um escoteiro mediano, mas qual é o cardápio?

- Venha, temos de ir às compras.

Restava apenas uma hora até o sol se pôr, mas eles nadaram por algumas centenas de metros até o recife de corais secreto de Hector. Após três mergulhos, ele conseguiu
pegar dois bodiões vermelhos como morangos, de quase três quilos cada, e duas lagostas grandes. Ela se sentou em uma toalha de piquenique com as pernas encolhidas
sob o corpo e uma taça de Burgundy em punho, enquanto assistia a Hector cozinhar.

- O jantar está servido - anunciou finalmente, e eles comeram com as mãos, arrancando a carne branca e suculenta da espinha do bodião e chupando a carne das pernas
encapadas das lagostas. Jogaram as sobras no fogo e observaram enquanto queimavam até esturricar. Depois, Hazel se levantou.

- Aonde você vai? - ele perguntou em um tom preguiçoso.

- Nadar - ela respondeu. - Pode vir junto se tiver vontade.

Ela levou as mãos para trás e abriu o fecho da parte de cima do biquíni. A seguir, colocou os polegares dentro do elástico da calcinha e se desvencilhou dela, que
caiu pelos tornozelos. Ela chutou a bela peça para o ar e ficou ali por um instante, de frente para ele. Ele ficou sem ar, chocado de prazer. O corpo dela era o
de uma mulher no auge absoluto - tonificado e com os seios firmes, o abdômen liso e rígido, os quadris se projetando com orgulho da linhas perfeitas da cintura,
como um vaso etrusco. Era uma mulher natural, não se depilava como era a moda hoje em dia, no estilo vedete pornô. Ela riu da cara dele, de um jeito provocante e
malicioso, e depois virou de costas e correu pela praia para mergulhar em uma pequena onda e nadar até águas mais profundas com braçadas poderosas. Lá, boiou de
costas e, ainda rindo, observou-o pulando em um pé só na areia antes de se desvencilhar da sunga.

- Vou pegar você, sua raposa! - gritou para esquentar o clima e saiu correndo pela praia.

Ela se encolheu de medo, deliciada, fazendo a água espumar ao nadar para longe dele. Hector a alcançou, e ela virou o rosto para ele, que procurou a boca de Hazel
com a própria. Ela colocou as mãos nos ombros dele de maneira submissa, até que os lábios dele estivessem a poucos centímetros. Então, Hazel se ergueu bem acima
dele, fazendo-o afundar. Quando ele emergiu cuspindo água, ela estava dez metros adiante. Hector disparou atrás dela, mas ao esticar o braço para agarrá-la, ela
suspendeu ambas as pernas no ar, tombou o corpo em L e mergulhou fundo nas águas escuras. Ele a perdeu de vista e boiou, virando-se devagar para vê-la emergir novamente.
Ela surgiu mais próxima à praia, e ele foi nadando na mesma direção, girando os braços e batendo os pés, deixando uma trilha de espuma para trás. Ela mergulhou de
novo, como um corvo-marinho pescador. Estava, vagarosa e desonestamente, atraindo-o de volta ao raso.

De repente, Hazel se levantou, com a água pela cintura. Ela esperou por ele e então correu ao seu encontro. Eles se encaixaram, respiração e ventre. Ela o sentiu
contra o corpo, rígido e enorme, tão pronto quanto ela. Ela lançou os braços ao redor do pescoço de Hector e prendeu os quadris dele com ambas as pernas. Foram necessários
alguns momentos de manobras frenéticas de ambas as partes antes que eles pudessem se alinhar perfeitamente, e então ele deslizou para dentro dela. Ela teve a impressão
de que ele chegaria até o coração.

- Meu Deus. Era o que eu estava esperando, por tanto tempo - ela respirou e se entregou a ele sem perguntas nem reservas.


Passava da meia-noite quando eles retornaram aos edifícios doterminal. Ele a acompanhou até o quarto e teria se despedido na porta com apenas um beijo demorado.

- Não seja bobo - ela disse, mantendo a porta aberta. - Entre.

- O que as pessoas vão pensar?

- Usando a sua terminologia erudita, eu não estou nem aí! - Hazel respondeu.

- Que grande ideia! Vamos lá - ele riu e a seguiu pela porta, fechando-a atrás de si.

Eles tomaram banho juntos, sem inibições, deliciando-se com o corpo um do outro enquanto enxaguavam a areia da praia e o sal. A seguir, foram para a cama.

- Hemingway chamava a cama dele de pátria - Hector comentou quando os dois deslizaram para baixo dos lençóis.

- O velho Ernie tem o meu voto - ela riu ao chegar pelo outro lado, encontrando-o no meio da cama.

Fizeram amor com alegria e carinho, mas a sombra da tragédia continuava a tingir a felicidade dos dois. Quando se cansaram momentaneamente, ela deitou nos braços
dele com o rosto encostado no peito nu e chorou baixo, mas com amargura. Ele acariciou o cabelo dela, compartilhando a agonia.

- Eu vou junto quando você for buscar a Cayla - ela disse. - Não consigo ficar aqui sozinha. Só aguentei até agora por sua causa. Sou tão durona quanto qualquer
um dos seus homens. Posso cuidar de mim durante uma crise, você sabe disso. Você tem de me levar junto.

- Você sabia que tem os olhos mais azuis e bonitos do mundo? - ele disse.

Ela se sentou e olhou para ele furiosa.

- Você está fazendo suas piadinhas idiotas numa hora destas?

- Não, minha querida. Estou dizendo que você não pode vir comigo.

Ela balançou a cabeça sem compreender, e ele prosseguiu:

- É possível que as coisas não corram conforme o planejado. Podemos ficar encurralados e ter de nos misturar à população local e cavar o caminho da saída. Os árabes
chamam olhos como os seus de "olhos do demônio". O primeiro inimigo que olhar para o seu rosto saberá o que você é. Se eu levá-la comigo, isso diminui as chances
de um resgate seguro de Cayla pela metade.

Hazel olhou fixamente para ele por um longo tempo, em seguida, abaixou os ombros e escondeu o rosto no peito dele novamente.

- Esse é o único motivo que me faria ficar - ela suspirou. - Não faria nada que reduzisse as chances de resgatá-la. Você vai tirá-la de lá, Hector? Vai trazê-la
de volta para mim?

- Sim, vou.

- E você? Vai voltar para mim? Acabei de encontrá-lo. Não posso perder você agora.

- Eu vou voltar, prometo, com Cayla ao meu lado.

- E eu acredito em você - ela disse.

Ela permaneceu agarrada a ele. Hector mal podia ouvir a respiração dela. Tomou cuidado para não se mexer e incomodá-la. Ela acordou assim que a luz da aurora se
infiltrou pelas cortinas.

- Essa foi a primeira noite em que dormi direto desde que Cayla... - ela não terminou a frase. - Estou morrendo de fome. Vamos tomar o café da manhã.

A grande Nella chegou ao refeitório antes deles, e tinha uma enorme travessa com ovos mexidos, bacon e linguiça diante dela. Ela ergueu o olhar até Hazel, e um flash
de entendimento intuitivo passou entre as duas. Nella baixou os olhos até o prato e sorriu.

- Mazel tov! - ela disse aos ovos, e Hazel corou.

Hector jamais teria acreditado que ela fosse capaz de tal coisa, e o fenômeno o deixou espantado - para ele, era algo mais encantador do que o pôr do sol. Após comerem,
ele levou Hazel até o Humvee no lado de fora. Ela se sentou ao lado dele no banco da frente, e Hector encostava na perna dela todas vezes que trocava a marcha, o
que a fazia sorrir modestamente. Ele estacionou o Humvee à sombra sob a asa do Hércules, pois mesmo a essa hora o sol já estava desconfortavelmente quente. Agora
podiam ficar de mãos dadas. O Fokker F-27 Friendship estava apenas meia hora atrasado.

- Em termos de Abu Zara Airways, está quase adiantado - Hector disse a ela enquanto observavam a aeronave taxiar em frente ao edifício do terminal e desligar os
motores. Os cerca de vinte passageiros começaram a desembarcar, e Hector os observou sem grandes expectativas. Eram quase todos árabes em trajes tradicionais, carregando
seus pertences em trouxas e pacotes. De repente, Hector se contraiu e apertou a mão dela com força.

- Filhos da mãe! São eles! - praguejou em voz baixa.

- Onde? - Hazel se endireitou no assento. - Para mim, parecem todos iguais.

- Os dois últimos. Posso reconhecê-los a um quilômetro de distância só pelo andar.

Deu uma buzinada curta e ligou a ignição do Humvee. Os dois árabes olharam para eles, caminhando em sua direção. Subiram no banco de trás.

- Que a paz esteja com vocês! - Hector os saudou.

- Em paz, você esteja - responderam em uníssono.

Hector dirigiu por um quilômetro e meio ao longo da pista acima da praia antes de estacionar.

Hazel se virou no assento para olhar para os dois homens na parte de trás.

- Isso está me enlouquecendo! - disse de supetão. - Eu preciso saber! Descobriram onde minha filha está, Uthmann?

- Sim, sra. Bannock. Descobrimos. Eu estava hospedado na casa do meu irmão Ali em Bagdá. Ele me pareceu diferente. Acredita que o único caminho a ser seguido pela
nossa nação é a rota da Jihad. Ele é um combatente mujahid e está fortemente aliado à Al-Qaeda. Sabe que não concordo com o ponto de vista dele, mas somos irmãos
e unidos pelo sangue. Jamais revelaria qualquer coisa relativa às atividades dele na jihad, mas após essas últimas semanas que passei na casa do meu irmão, o comportamento
dele se tornou mais relaxado e menos sigiloso. Ele normalmente usa um celular e nunca faz telefonemas de negócios de casa. Há alguns dias, cometeu o erro de pensar
que eu tinha saído com a mulher dele para vistar uns amigos, mas eu estava no andar de cima da casa quando Ali usou a linha fixa para falar com um dos seus colegas
na Al Qaeda. Escutei a conversa pela extensão. Estavam discutindo a captura e o aprisionamento da sua filha, e um deles mencionou que ela tinha sido levada por membros
do clã do xeique Khan Tippoo Tip.

- Tippoo Tip! É o mesmo nome do camareiro que estava a bordo do Golfinho. Mas quem é esse xeique? - Hazel indagou, e Uthmann respondeu.

- É um senhor da guerra, e o chefe de um dos clãs mais poderosos da Puntlândia.

Hector tocou os ombros dele.

- Como sempre, você provou seu valor, meu velho amigo - disse.

- Espere! Tenho mais coisas para contar - Uthmann balançou a cabeça demonstrando tristeza. - Você se lembra dos homens que matou a tiros em Bagdá há muitos anos?

Hector assentiu.

- Os três jihadistas que detonaram a bomba na beira da estrada - olhou de lado para Tariq. - É claro que Tariq e eu nos lembramos deles.

- Sabe como se chamavam?

- Não - Hector admitiu -, aparentemente, estavam todos usando codinomes. Nem mesmo o Departamento de Inteligência Militar conseguiu identificá-los. O que você descobriu,
Uthmann?

- O homem que você matou se chamava Saladin Gamel Tippoo Tip. Era filho do xeique Tippoo Tip e pai de Adam Tippoo Tip. O xeique declarou uma rixa de sangue a você
- Hector olhou para ele sem dizer nada, e Uthmann prosseguiu. - O dhow que você e Ronnie Wells destruíram tinha cinco homens a bordo. Haviam sido enviados pelo xeique
Khan para se vingar da morte do filho mais velho. Entre os que morreram, estava Gafour Tippoo Tip, o quinto filho do xeique. A dívida de sangue foi então dobrada.
O xeique enviou um terceiro filho para encontrá-lo e vingar os irmãos...

- O que se chamava Anwar! - Hector exclamou. - Meu Deus! Jamais irei esquecê-lo. Em seu último suspiro de vida, ele zombou de mim, dizendo: "O meu nome é Anwar.
Lembre disso, Cross, seu grande porco. A dívida não foi sanada. A Disputa Sangrenta continua. Outros virão".

Tariq assentiu.

- É exatamente o que está dizendo, Hector.

- Onde podemos encontrar essa criatura chamada xeique Tippoo Tip? - Hector perguntou.

Tariq respondeu sem hesitar:

- Eu o conheço. A fortaleza dele fica na Puntlândia.

- Puntlândia! Esse nome vive surgindo - Hazel interveio.

- É uma província rebelde da Somália. A Puntlândia é território do Tariq - Hector explicou, olhando novamente para Tariq. - É o que estávamos esperando. O que tem
a nos dizer sobre esse troglodita?

- Apenas o que todo mundo na Puntlândia sabe: que a fortaleza de Tippoo Tip se situa na região noroeste do país, em um lugar chamado "Oásis do Milagre". Fica no
sul da principal rodovia da província, perto do pequeno vilarejo de Ameera.

- Você conhece a área? - Hector indagou, mas Tariq balançou a cabeça.

Hector o conhecia tão bem que não teve dúvidas de que ele estava mentindo ou, pelo menos, contando apenas parte da verdade.

- Ok - Hector não precisava de outra confirmação. - Precisamos descobrir tudo o que pudermos a respeito de Tippoo Tip e da fortaleza. Precisamos de mapas da área.
Tenho de retornar ao terminal e botar todo mundo para trabalhar.

Quando se encontravam reunidos novamente ao redor da mesa, Hector olhou para todos antes de falar.

- Bem, nós agora sabemos para onde vamos. Alguém aqui além do Tariq conhece um lugar na Puntlândia chamado Oásis do Milagre, ou o vilarejo de Ameera? Esses são os
nossos alvos.

Todos pareciam surpresos. Hector se dirigiu a Dave Imbiss.

- Dave, entre no site do Google Earth. Tariq vai apontar os alvos no mapa. Quero cópias das fotos de satélite da área. Quero saber a distância de avião. Quero saber
qual é a pista mais próxima na Etiópia, e a distância de carro de lá até o nosso alvo - fez uma pausa e olhou para Bernie e Nella. - Ou vocês dois têm alguma ideia
a respeito disso? Conhecem uma pista de pouso adequada?

- Jig Jig! - disse Nella, que soltou uma gargalhada histérica e deu um cutucão com um dos cotovelos nas costelas de Bernie, fazendo-o se encolher.

- Um terreno de pouso com um nome desses? - Hector levantou uma das sobrancelhas. - Interessante!

- Foi Nella quem deu o nome, não eu - Bernie protestou enquanto se endireitava e esfregava as costelas. - Não sei qual é o nome verdadeiro, provavelmente não tem.
É uma antiga faixa militar italiana abandonada da Segunda Guerra Mundial. Está em condições deploráveis, mas o Hércules não se importa com terrenos acidentados.

- Fizemos um pouso de emergência lá, certa vez - Nella ainda estava rindo esfuziantemente. - Fui acometida de um fogo incontrolável e nós aterrissamos para o Bernie
sossegar o meu facho. Foi maravilhoso. Um dos seus melhores desempenhos de todos os tempos. Nunca esquecerei.

Bernie manteve a postura sóbria, apesar das explosões de riso e da frivolidade em si.

- Está situada em um local perfeito, a menos de cinquenta quilômetros da fronteira da Puntlândia, mas o melhor de tudo é: não há nenhum oficial presente, nem polícia,
nem imigração - disse Bernie.

- Soa como se tivesse sido feita para nós. Mostre ao Dave a localização no mapa. Nella, você acha que consegue se conter quando aterrissar lá de novo? Chega de transas
indiscriminadas! - ele se virou para Paddy. - Paddy, contate Ronnie Wells pelo rádio e diga a ele para atravessar com o torpedeiro para o litoral da Puntlândia e
encontrar um ancoradouro seguro o mais próximo possível do alvo. Avise-nos quando ele chegar lá.

Durante todo o tempo em que estava distribuindo as ordens, estava ciente que Tariq o observava dissimuladamente. Finalmente, lançou um olhar direto para ele, e Tariq
sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente, levantando-se a seguir e saindo da sala. Hector aguardou um minuto e disse para Paddy O'Quinn.

- Continue a reunião. Não vou demorar.

Saiu à procura de Tariq e, após alguns minutos, avistou-o atrás de uma das caminhonetes estacionadas. Estava fumando um cigarro, desprezando a placa na lateral do
veículo que dizia "Proibido Fumar". Quando viu Hector se aproximar, esmagou o cigarro sob a sola do sapato e saiu andando ao longo do oleoduto. Hector o seguiu e
o encontrou agachado atrás de uma das estações de bombeamento.

- Fale comigo, amado do Profeta - Hector pediu ao se agachar ao lado dele.

- Não podia falar na frente dos outros - Tariq explicou.

- Nem mesmo do Uthmann?

Tariq deu de ombros.

- Você acha mesmo que Uthmann conseguiu reunir todas aquelas informações sobre o clã Tippoo Tip simplesmente porque escutou sem querer uma conversa do irmão ao telefone?
Meu receio é em relação à minha família, mestre. Não posso correr riscos.

- Há uma certa verdade no que você diz, Tariq - Hector assentiu pensativo.

Apesar do profundo afeto que sentia por Uthmann, sentiu os vermes da traição se movimentando nos intestinos.

Tariq respirou fundo e disse:

- Minha tia se casou com um homem do vilarejo de Ameera, bem perto do Oásis do Milagre. Quando eu era criança, passava vários meses lá todos os anos. Conduzia os
rebanhos com meus primos. Vi a fortaleza de Tippoo Tip muitas vezes, mas apenas a distância. Mas isso foi há muito tempo, e talvez a minha tia esteja morta agora.

- Mas talvez não esteja. Talvez ainda trabalhe na fortaleza. Talvez saiba onde estão mantendo a menina. Talvez ainda o ame o bastante para mostrar como entrar na
fortaleza e onde encontrar a menina.

- Talvez - Tariq sorriu e acariciou a barba. - Talvez todas essas coisas sejam verdade.

- Talvez você devesse visitar sua tia e descobrir.

- Talvez - Tariq assentiu.

- Talvez você deva partir hoje à noite. Vamos lançá-lo do Hércules próximo a Ameera. Vou dar um dos telefones de satélite para você. Ligue para mim assim que fizer
contato com sua família. E isso não é talvez.

- Como sempre, ouvi-lo é obedecê-lo, Hector - Tariq assentiu, e seu sorriso se tornou mais largo.

Hector deu um soco de brincadeira em seu ombro e começou a se levantar, mas Tariq colocou a mão em um de seus braços.

- Espere, tenho mais uma coisa para contar - Hector se agachou novamente ao lado dele. - Se conseguirmos pegar a menina, vários homens virão no nosso encalço. Vão
estar em caminhonetes quatro por quatro. Vamos estar a pé com a menina. É capaz que ela esteja fraca e doente depois do que fizeram com ela. Talvez tenhamos de carregá-la.

- Diga o que sugere.

Ao norte da fortaleza, há uma ravina funda e rochosa. Estende-se, de leste a oeste, por 112 quilômetros. Podemos atravessá-la a pé, mas até mesmo um veículo de tração
nas quatro rodas não conseguirá nos seguir. Terão que se deslocar por cerca de cinquenta ou sessenta e cinco quilômetros na direção leste para atravessarem o wadi,
o vale. Assim que atravessarmos o vale, teremos uma dianteira de duas ou três horas, ou até mais.

- Você merece ser recompensado com uma centena de virgens! - Hector disse sorrindo.

- Ficarei contente com uma - disse Tariq retribuindo o sorriso -, mas uma das boas.

Hector o deixou agachado à sombra da casa de bombeamento enrolando mais um cigarro.

Assim que Hector entrou na sala de situação, Dave se dirigiu a ele.

- Essas são as fotos de satélite do Google Earth da área, chefe - ele tamborilou os dedos sobre os mapas estendidos na mesa à sua frente. - O vilarejo de Ameera
está sinalizado, mas não consigo encontrar nada em relação ao Oásis do Milagre.

- Vamos dar uma olhada - Hector estudou a fotografia em alta resolução e depois bateu com um dos indicadores sobre ela. - Aqui está! - exclamou. - Mo'jiza. O milagre.
Passe as coordenadas, Dave.

Enquanto Dave fazia os cálculos, Hector continuou a analisar o mapa. Agora que sabia o que e onde procurar, encontrou o vale imediatamente. Pegou a lupa de Dave
e examinou o wadi cuidadosamente. A informação fornecida por Tariq se confirmou - nenhuma estrada ou trilha atravessava o vale.

Endireitou as costas e foi até onde se encontravam Bernie e Nella, no lado de fora, tragando seus cigarros. Hector falou com eles em voz baixa:

- Hoje à noite, quero que vocês deixem o Tariq o mais próximo possível do vilarejo de Ameera. Ele está sendo infiltrado para fazer um reconhecimento da área. Depois
disso, vão prosseguir diretamente até a pista de Jig Jig com o Paddy e a gangue dele, que vão estar a bordo. Vão descarregá-los e as caminhonetes e depois voltar
aqui para Sidi el Razig - através da abertura da porta, ele olhou para Hazel, que tinha saído da sala de situação e ido atrás dele. Sabia que não era sensato, tampouco
educado, deixá-la de braços cruzados em Sidi el Razig, sem nada para ocupá-la.

- A sra. Bannock e eu vamos acompanhar vocês no passeio até Ameera e Jig Jig.

Hazel assentiu em concordância, e Hector se virou novamente para Bernie.

- Calcule o tempo de voo de cada estágio da viagem. Temos que chegar a Jig Jig enquanto ainda estiver claro o suficiente para aterrissar. Não queremos ficar dando
voltas na área por muito tempo e chamar atenção. Acha que conseguimos encontrar a pista de primeira?

- Pergunta estúpida - Nella respondeu. - Já fomos lá antes, lembra?

Ela colocou um par de óculos de leitura, de armação de plástico laranja, sobre o nariz e ela e Bernie foram trabalhar na calculadora. Em poucos minutos, Nella olhou
para cima:

- Ok, a decolagem daqui será às vinte horas em ponto. Quem não estiver a bordo fica para trás.

 

Hector e Hazel ficaram na cabine de voo do Hércules e, por sobre a cabeça dos pilotos, assistiram ao anoitecer africano. Hazel se recostou levemente nele. Os últimos
raios de sol iluminavam as cristas das montanhas adiante, colorindo-as em tons de bronze e de ouro recém-cunhado. Simultaneamente, a terra lá embaixo deles já havia
sido apagada pela escuridão, e apenas minúsculos pontinhos de luz assinalavam o posicionamento dos vilarejos e aldeias da Puntlândia, espalhados por todo seu território.

- É tão bonito - Hazel suspirou. - Mas não consigo enxergar a beleza devido ao horror. Cayla está lá embaixo, em algum lugar.

A noite os envolveu completamente, e as estrelas se espalhavam, esplendorosas, sobre eles. Nella se virou no banco e retirou os fones dos ouvidos.

- Estou iniciando a descida agora. São vinte minutos até a zona de salto, Hector. Diga para os seus homens ficarem com o equipamento em ordem e de prontidão.

Hector foi até a cabine principal. A maioria dos homens de Paddy tinha subido nas caminhonetes e encontrado um lugar confortável para dormir. Mas Tariq estava esperando
por Hector próximo à saída traseira. Estava vestido como um camponês somali, com os pertences em uma bolsa de pele de cabra amarrada ao redor da cintura e sandálias
de couro cru nos pés. Enquanto Hector o ajudava a afivelar o paraquedas, repassou rapidamente os sinais de contato e reconhecimento que haviam combinado.

- Dez minutos até a zona de salto - a voz de Nella chegou pelos alto-falantes.

Hazel foi apertar a mão de Tariq.

- Não é a primeira vez que está arriscando sua vida por mim, Tariq. Vou encontrar uma maneira de retribuir.

- Não exijo pagamento, sra. Bannock.

- Então rezarei para que Alá o abençoe e proteja - disse e, em seguida, a voz de Nella nos alto-falantes foi ouvida mais uma vez.

- Cinco minutos até a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora. Verifique se as correias de segurança estão enganchadas.

A rampa abaixou pesadamente, e o frio ar noturno chicoteou em volta das cabeças, dando puxões nas roupas.

- Consigo enxergar as luzes de Ameera logo adiante - Nella cantou. - Um minuto para saltar.

Em seguida, começou a contagem regressiva:

- Cinco, quatro, três, dois e já! Já! Já!

Tariq correu para a frente e colocou primeiro a cabeça para fora da rampa. O vento o puxou instantaneamente pela escuridão. Nella fechou a rampa traseira e aumentou
gradualmente a potência dos motores. Prosseguiram rumo a Jig Jig.

Rodearam a pista ao amanhecer. Havia um edifício em ruínas, destelhado e com as paredes restantes caindo aos pedaços. Mesmo após oitenta anos, a pista abandonada
ainda era sinalizada pelos pequenos montes de pedras caiadas. O único sinal de vida estava na encosta do morro acima da pista, onde um menino enrolado em um cobertor
vermelho se aquecia diante de uma pequena fogueira fumegante, enquanto suas cabras pastavam ao redor. A fumaça revelou a direção do vento para Nella. Ao ouvir o
ruído retumbante do Hércules que voava baixo sobre eles, o menino e seu rebanho se dispersaram em pânico. Nella aterrissou a grande máquina tão suavemente quanto
uma borboleta pousando em uma rosa. A seguir, a aeronave foi aos solavancos e chacoalhando sobre o piso marcado, estacionando bem antes do final da pista. Nella
abriu a porta traseira, e Paddy conduziu o comboio de três caminhonetes rampa abaixo e, com um último aceno da mão enluvada, arrancou em direção à fronteira somali.
Nella usou os motores para acelerar o Hércules em uma volta de 180 graus, e eles estavam novamente no ar cinco minutos depois de terem pousado.
- Cinco horas e meia de voo de volta - Hector disse ao colocar um dos braços ao redor dos ombros de Hazel. - Não tenho a menor ideia de como vamos passar o tempo.

- Este porão de carga é todo nosso - Hazel comentou. - Posso fazer uma sugestão?

- Li sua mente e acho a sugestão excelente. Sra. Bannock, a senhora é um gênio.


Tariq encontrou um buraco de tamanduá africano, onde enfiou os paraquedas e o capacete de proteção. Enrolou o turbante ao redor da cabeça e pendurou a bolsa de pele
de cabra atravessada sobre o ombro. Durante a descida, havia memorizado cautelosamente a direção do vilarejo. Havia apenas duas ou três luzinhas acesas, e ele ficou
impressionado com a precisão da vista de Nella Vosloo, que fora capaz de distingui-las a três mil metros de altura. Ele se colocou a caminho de Ameera e, após oitocentos
metros, sentiu o cheiro da fumaça dos fogões a lenha e o forte odor das cabras e dos homens. Ao se aproximar do vilarejo, um cão latiu e outro se juntou a ele, mas
todos estavam adormecidos. Haviam se passado dez anos desde sua última visita, mas a lua quase cheia fornecia iluminação suficiente para que ele se orientasse enquanto
se movia silenciosamente entre as cabanas de teto de palha. A casa de sua tia era a terceira após o poço. Ele bateu na porta e, após um intervalo, a voz baixa de
uma mulher disse do outro lado:

- Quem é? O que você quer a esta hora da noite? Sou uma mulher decente. Vá embora!

- É o Tariq Hakam, venho à procura da irmã de minha mãe, Taheera.

- Espere! - gritou a mulher que não podia ser vista.

Ele ouviu ela se movimentar pela cabana e o riscar de um fósforo. A luz suave e amarelada de uma lâmpada de querosene podia ser vista através das frestas nas paredes
de barro. Finalmente a porta se abriu, e a mulher estava olhando para ele.

- É você mesmo, Tariq Hakam? - ela perguntou e segurou a lâmpada de modo que iluminasse o rosto dele. - Sim - suspirou timidamente -, é você mesmo.

De forma despojada, afastou o véu do rosto.

- Quem é você? - ele a encarou.

Ela era jovem e muito bonita. Os traços eram vagamente familiares.

- Fico triste que não tenha me reconhecido, Tariq. Sou a sua prima Daliyah.

- Daliyah! Mas você está tão crescida!

Ela deu uma risadinha modesta e puxou o véu novamente sobre a boca e o nariz. Havia apenas dez anos, ela era como um ouriço que não saía do pé dele, comportando-se
da maneira mais irritante possível, vestindo saias curtas e encardidas, com os cabelos emaranhados e moscas caminhando sobre o ranho ressequido debaixo do nariz.

- Minha tia está, Daliyah?

- Minha mãe está morta, Tariq, que Alá conserve a sua alma. Retornei a Ameera para viver meu luto.

- Que ela encontre a felicidade no Paraíso - disse em voz baixa. - Não sabia que tinha morrido.

- Ficou doente por um longo tempo.

- E você, Daliyah? Tem um protetor? Seu pai, seus irmãos?

- Meu pai morreu há cinco anos. Meus irmãos partiram. Foram para Mogadíscio lutar pelo exército de Alá. Estou sozinha aqui - fez uma pausa antes de prosseguir. -
Há homens aqui, homens rústicos e grosseiros. Infelizmente. Por isso hesitei em abrir a porta para você.

- O que vai ser de você?

- Antes de morrer, a minha mãe cuidou para que eu fosse trabalhar como serviçal na fortaleza no Oásis do Milagre. Voltei para cá apenas para enterrá-la e viver o
meu luto. Agora que os dias de luto se passaram, voltarei para o meu trabalho na fortaleza.

Ela o tinha conduzido até à cozinha, em uma extensão no fundo da cabana. Abaixou a lanterna e virou-se para ele:

- Você está com fome, primo? Tenho algumas tâmaras e pão sem fermento. Tenho também coalhada de leite de cabra - estava ávida para agradá-lo.

- Obrigado, Daliyah. Trouxe um pouco de comida comigo. Podemos compartilhar.

Ele abriu a bolsa de couro e retirou um pacote de rações militares. Os olhos dela se acenderam. Ele imaginara que ela não andava se alimentando bem. Eles se sentaram
um de frente para o outro, de pernas cruzadas no chão seco de barro, com pequenas tigelas esmaltadas entre os dois, e ele a observou comer com prazer. Ela sabia
que estava sendo observada, e manteve os olhos modestamente abaixados, mas de vez em quando sorria um pouco para si mesma. Quando finalmente terminaram, ela enxaguou
as tigelas e voltou a se sentar diante dele.

- Você diz que trabalha na fortaleza? - perguntou, e ela assentiu em confirmação. - Tenho negócios a tratar na fortaleza - Tariq disse, e ela olhou para ele com
um ligeiro interesse.

- É o que o traz aqui? - ele inclinou a cabeça e ela continuou - O que está procurando, primo?

- Uma menina. Uma jovem branca de cabelos claros.

Daliyah engasgou e cobriu a boca com uma das mãos. Os olhos dela estavam escuros de choque e de medo.

- Você a conhece! - disse com convicção.

Ela não respondeu, e em vez disso abaixou a cabeça com os olhos fixos no chão entre eles.

- Vim buscá-la para levá-la de volta à família.

Ela balançou a cabeça com tristeza.

- Cuidado, Tariq Hakam. É perigoso falar assim livremente. Temo por você.

Ficaram calados por um longo período, e ele a viu tremer.

- Vai me ajudar, Daliyah?

Conheço essa menina, ela é jovem como eu. Mesmo assim, foi dada aos homens para brincarem com ela - a voz era quase inaudível. - Ela está doente. Está doente por
causa dos ferimentos que sofreu. Está doente de medo e solidão.

- Leve-me até ela, Daliyah. Ou pelo menos me mostre o caminho.

Ela demorou um pouco a responder e então disse:

- Se eu fizer o que me pede, eles vão saber que fui eu quem levou você até ela. Vão fazer comigo o que fizeram com ela. Se eu levá-lo até ela, não posso permanecer
neste lugar. Você me levará junto quando partir, Tariq? Vai me proteger da ira deles?

- Sim, Daliyah. Levarei você comigo, com prazer.

- Então vou ajudar, Tariq Hakam, meu primo - deu um sorriso tímido, e seus olhos escuros brilharam à luz da lanterna.


Tariq ficou agachado sob a saliência de uma rocha voltada para o leste. Estava ali fazia uma hora, desde o anoitecer. Estava pensando na prima Daliyah. Ainda pensando
sobre a transformação dela de menina em mulher. Pensar nela o fazia se sentir feliz. Na manhã em que se despediu dele para caminhar os mais de seis quilômetros até
o Oásis do Milagre, ela havia tocado o braço dele e dito:

- Estarei à sua espera quando vier.

Ele esfregou o braço no local em que ela o tocou e sorriu.

Os pensamentos dele foram distraídos pelo leve tremor de um som no céu. Olhou para cima, mas não havia nada além de estrelas. Inclinou a cabeça para o lado e escutou.
O som se intensificou. Ele levantou e pegou a velha lata de querosene com a tampa cortada que Daliyah havia lhe dado e a levou para fora. Fez uma pilha com as pedras
que havia juntado anteriormente ao redor da lata para apoiá-la com firmeza. Ficou de novo na escuta - dessa vez não havia dúvidas. A vibração de múltiplos motores
de aeronaves era inconfundível. Tirou o sinalizador naval de socorro da bolsa e puxou a fita de ignição, jogando-o dentro da lata. Deu um passo para trás. As chamas
irromperam, e a fumaça sulfurosa borbulhou para fora da lata. O brilho avermelhado foi refletido no sentido vertical. O barulho dos motores aumentou até ficar logo
acima da cabeça dele.


A voz de Nella retumbou dos alto-falantes:

- A chama do marcador vermelho está no meu campo de visão. Dois minutos para a zona de salto. Vou abrir a porta traseira agora.

Hector tinha dividido os homens em dois grupos de cinco. Saltaria primeiro com o grupo dele, e Uthmann o seguiria imediatamente com seus quatro homens. Estavam todos
vestidos em trajes tradicionais, com lenços pretos cobrindo grande parte do rosto, mas por cima usavam coletes à prova de balas e capacetes de batalha, e carregavam
kits de sobrevivência, dez pentes de munição para os rifles de assalto nos cintos e uma faca de trincheira embainhada. As facas haviam sido afiadas pelo armeiro
da Cross Bow até que estivessem boas o suficiente para barbear.

- Primeiro grupo de pé! - Hector comandou, e eles se ergueram e caminharam com passos arrastados até a porta aberta.

- Acendam as suas luzes de sinalização!

Cada um deles tinha uma luz fosforescente minúscula afixada à frente do capacete com um elástico. Eles ergueram os braços e as acenderam. As lâmpadas eram azuis,
e a luz que emanavam era tão tênue que seria pouco possível que um observador hostil em terra pudesse captá-la, mas os pontinhos luminosos serviriam para que pudessem
localizar uns aos outros durante a queda livre. Hazel, que estava sentada no banco ao lado de Hector, se levantou e colocou os braços ao redor do pescoço dele.

- Amo você! - suspirou, ele era o primeiro homem para quem dizia aquilo em muito tempo. - Volte. Volte para mim.

Nos alto-falantes, a voz de Nella havia iniciado a contagem regressiva para a queda.

- Amo você mais do que posso expressar - Hector disse e a beijou, deixando um borrão de tinta de camuflagem na bochecha de Hazel, que ele limpou carinhosamente com
um dos polegares. - Quando voltar, trarei Cayla comigo.

Ela se virou de costas para ele rapidamente e correu em direção à entrada da cabine de pilotagem. Não queria que a visse chorar. Antes que alcançasse a cabine, Nella
deu o comando de salto pelos alto-falantes.

- Grupo número um! Já! Já! Já! - Hazel se virou rapidamente para ter um último vislumbre, mas ele já havia sido sugado pelo ventre sombrio da escuridão.

Hector estabilizou a queda pelo vento veloz usando a posição de estrela, com a barriga para baixo, e a primeira coisa que fez foi procurar pela chama de sinalização
de Tariq. Avistou-a três mil metros abaixo, a um ângulo inferior de cerca de 45 graus. Em seguida, procurou as luzes azuis dos homens no espaço ao redor. Assim que
localizou todos, fez uma manobra com movimentos sutis dos membros e do corpo para se colocar na frente da formação. Seus quatro companheiros estavam todos próximos
quando caíram na direção da chama vermelha. Ele checou o altímetro e o cronômetro. Estavam em queda livre havia um pouco mais de um minuto. Já tinham alcançado a
velocidade terminal, e a terra se aproximava rapidamente. Estavam a menos de 450 metros acima do chão quando ele fez um sinal com a mão para que ativassem e abrissem
os paraquedas. Agora, ficava mais fácil manobrar, e eles deslizaram pela pequena brisa para pousarem, como um bando de garças-azuis, a cerca de vinte passos da chama
vermelha, aterrissando quase simultaneamente e ficando de pé enquanto esvaziavam o ar dos paraquedas. De imediato, formaram um círculo defensivo com as armas apontadas.

- Tariq! - Hector chamou discretamente. - Apareça!

- Sou eu, Tariq Hakam - levantou-se detrás de uma pilha de pedras quebradas. - Não atirem!

Correu ao encontro de Hector, e eles trocaram um breve aperto de mão duplo.

- Está tudo bem? - Hector indagou. - Onde está a tal menina, sua prima?

Tariq havia falado brevemente sobre ela de manhã no telefonema via satélite.

- Ela está dentro da fortaleza. Vai nos levar até onde estão mantendo a menina Bannock.

- Pode confiar nela? - Hector perguntou. Contar com alguém dentro da fortaleza era um incrível golpe de sorte, e ele sempre desconfiava quando a sorte era muita.

- Ela é sangue do meu sangue - Tariq respondeu e quase adicionou "e mora em meu coração". Mas não queria tentar Iblis, o Demônio.

- Ok. Vou aceitar sua palavra - Hector entregou a ele o rifle e o kit sobressalentes que estava carregando.

Nesse momento, Uthmann e seus quatro homens caíram do céu escuro e aterrissaram próximo a eles. Tariq chutou a lata e pilha de pedras sobre a chama ardente. Os outros
estavam enrolando e enterrando os paraquedas.

- Tariq, lidere! Avante, já!

Seguiram Tariq a intervalos cuidadosamente determinados. Com as armas à mão, avançaram a passos rápidos, em ritmo acelerado ao longo de um caminho acidentado formado
pelo pastar das cabras. Alcançaram as primeiras palmeiras do oásis em 45 minutos e formaram novamente um círculo defensivo, deitando de bruços no chão e de cabeça
erguida. Tariq fez um sinal indicando que o terreno adiante estava livre, e Hector gesticulou para que avançasse. Tariq desapareceu entre as árvores. Uthmann engatinhava
ao lado de Hector.

- Aonde ele está indo? - suspirou. - Por que paramos aqui?

- Tariq tem uma pessoa infiltrada na fortaleza. Foi fazer contato para depois nos guiar através de um dos portões laterais.

- Eu não sabia disso. Quem é o informante? Homem ou mulher? É algum parente do Tariq?

- Qual é a importância disso? - Hector sentiu um pequeno mal-estar. Uthmann estava insistindo demais.

- Você não me contou, Hector.

- Você não precisava saber até este momento - Hector respondeu, e Uthmann desviou o olhar.

A posição da cabeça e do corpo de Uthmann mostravam que ele estava zangado. Estaria exibindo ressentimento por Hector não ter confiado nele? Não era o estilo habitual
de Uthmann. Hector ficou pensando se não estaria ficando velho demais para o esporte. Estaria perdendo a coragem? Hector não conseguia pensar em possibilidade mais
sombria. De repente, tomou uma decisão e tocou um dos braços de Uthmann, forçando-o a se virar para ele.

- Uthmann, você precisa ficar aqui com seu grupo na retaguarda. Se nos complicarmos dentro da fortaleza, vamos sair correndo. Quero que nos dê cobertura, entendeu?

- Sempre fiquei ao seu lado - Uthmann disse com amargura. O comportamento grosseiro dele era exagerado e reforçou a decisão de Hector de não levá-lo junto para o
covil da Besta.

- Não desta vez, meu velho amigo - disse e, sem dizer uma palavra, Uthmann virou o rosto e engatinhou de volta à sua posição com o segundo grupo.

Hector desviou o pensamento dele e fixou o olhar nas palmeiras do oásis. Viu uma sombra, como uma mariposa esvoaçante, em movimento, e assoviou baixo em dois tons
como sinal de reconhecimento. A resposta foi imediata, e Tariq se materializou silenciosamente detrás das árvores. Estava acompanhado de alguém, uma figura esguia
vestindo uma longa túnica negra.

- Esta é a minha prima Daliyah - disse, e os dois se abaixaram ao lado de Hector. - As novidades que traz são preocupantes. Diz que os homens de Khan andam alvoroçados
demais. Praticamente todos os homens da guarnição foram mandados para a ala norte, atrás da mesquita.

- Por quê? - Hector perguntou à moça.

- Não sei - a voz dela era bastante suave.

Hector ponderou por um momento.

- Existe um portão na ala norte para a qual os homens foram enviados? - perguntou.

- Há um portão - Daliyah confirmou -, mas não é o principal.

- Você tinha a intenção de nos conduzir para dentro da fortaleza por esse portão?

- Não! - ela balançou a cabeça. - No muro da ala leste, atrás da cozinha, existe uma outra entrada. É uma abertura bem pequena, apenas um homem de cada vez pode
passar por ela. Quase nunca é usada, e poucas pessoas sequer sabem que existe. Era como eu tinha planejado guiá-los.

- Está trancada?

- Está, mas eu tenho uma das chaves. Tirei do bolso de um dos cozinheiros esta manhã. Ele não sentiu falta.

- Guardas? O portão é vigiado?

- Nunca vi guardas ali. Usei-o hoje à noite. A passagem estava aberta, e o lugar, deserto.

- Tariq, parece que sua prima é uma mulher corajosa e inteligente - Hector olhou para ela, mas não conseguiu enxergar nada através do véu.

- Disso eu sei - Tariq disse num tom grave.

- Ela é casada?

- Ainda não - Tariq respondeu. - Mas talvez se case logo.

Daliyah abaixou a cabeça num gesto de modéstia, mas não disse nada.

- Ela nos aconselha a aguardarmos um pouco aqui antes de subir. Esperar passar a agitação na fortaleza.

- Quanto tempo ela acha que devemos esperar? - Hector perguntou, e Tariq apontou para a lua que surgia além da plantação de palmeiras. Faltavam cinco dias para que
ficasse cheia.

- Temos de esperar até que fique no mesmo nível da palmeira mais alta. A essa altura, os guardas terão relaxado e alguns poderão até mesmo estar dormindo.

- Em cerca de um hora e meia - estimou Hector, checando o relógio de pulso.

Atravessou engatinhando até onde estava Uthmann e, em poucas e sucintas palavras, explicou suas intenções. Em seguida, engatinhou novamente para a frente de seu
grupo. Eles permaneceram calados e imóveis enquanto o ponteiro luminoso dos minutos se arrastava pelo mostrador do relógio. De repente, o pesado silêncio foi interrompido
pelos uivos e guinchos de um par de chacais abaixo dos muros da fortaleza. O barulho foi imediatamente desafiado pelos latidos alvoroçados de uma matilha de cães
na parte de dentro dos muros.

- Meu Deus, quantos cães o Khan mantém lá dentro, Daliyah?

- Muitos. Gosta de sair para caçar com eles.

- O que ele caça... gazelas, órix, chacais?

- Todos esses animais, sim - Daliyah respondeu -, mas o que ele gosta mesmo de caçar são pessoas.

- Pessoas? - até mesmo Hector ficou chocado. - Quer dizer, seres humanos?

Ela assentiu, e a luz das estrelas revelou o ligeiro brilho das lágrimas nos olhos dela pela abertura do véu.

- Pois então. Homens ou mulheres que o tenham enfurecido. Alguns deles eram meus parentes ou bons amigos. Os homens dele os levam para o deserto, onde são libertados.
Depois, Khan e os filhos saem correndo atrás deles com os cães. Rejubilam-se com o esporte e riem quando os cães destroçam as vítimas. Deixam que os cães se alimentem
da carne de quem matam. O Khan acredita que isso torna os cães mais ferozes.

- Mas que velho encantador ele deve ser. Estou ansioso pelo nosso primeiro encontro - Hector murmurou.

Esperaram até que o latido dos cães se dissolvesse em silêncio, e a lua se erguesse detrás das palmeiras. Só então ele se mexeu de novo.

- Hora de partir, Tariq. Diga à Daliyah para ir na frente. Vamos manter uma boa distância atrás dela. Se ela encontrar alguém da fortaleza, diga para distraí-lo
para que possamos dar conta dele antes que faça alarde. Você vai atrás dela, e eu lidero o resto do grupo na retaguarda.

A garota se movia depressa e com confiança. Seguiram-na entre as árvores até chegarem à encosta. Hector viu claramente a fortaleza pela primeira vez. Agigantava-se
acima deles, enorme e negra. Não havia sinal de iluminação, e ela parecia tão inerte quanto a lua acima. O caminho prosseguia por uma ladeira íngreme. A garota não
diminuiu o ritmo. Agora os muros de pedra se erguiam sobre eles, tão implacavelmente malévolos quanto um monstro arcaico pronto para emboscar sua presa. De repente,
Daliyah saiu do caminho principal e virou numa trilha menos definida abaixo das muralhas. Contornaram pilhas fedorentas de lixo que tinham sido jogadas do alto dos
muros. Os chacais estavam procurando comida entre os detritos, e foram embora quando os homens se aproximavam. Finalmente, Daliyah parou ao lado de uma vala que
emergia de uma abertura em forma de arco na parte inferior da parede de pedra. A abertura estava bloqueada por grades enferrujadas. Excrementos humanos rolavam pela
arcada até a vala, e o fedor era um atentado aos sentidos. Daliyah saltou sobre a vala e virou abruptamente em outra passagem estreita entre os muros de pedra, cuja
largura não permitia mais do que um homem de cada vez. Ela desapareceu, e os outros a seguiram em fila indiana pela abertura. Subiram uma série de degraus rústicos,
Daliyah estava à espera deles no topo, do lado de fora de uma porta baixa de madeira sólida, pregada e montada com barras de ferro.

- Daqui em diante temos de nos manter bem próximos. É muito fácil se perder no lado de dentro - suspirou e retirou uma pesada chave de ferro de design antigo de
baixo da túnica. Colocou-a na fechadura e, com algum esforço, virou a chave. Encostou um dos ombros na porta, e ela se abriu. Ela teve de abaixar a cabeça para passar
sob a verga de pedra. Eles a seguiram. Daliyah fechou a porta atrás do último homem.

- Não tranque. Vamos estar com pressa quando voltarmos - Hector lhe disse em voz baixa.

A escuridão era tão dominante que parecia um peso esmagando seus ombros. Hector acendeu a luz fosforescente do capacete, e os demais seguiram o exemplo. Daliyah
os guiou através de um labirinto de passagens sinuosas e salas interligadas. Ouviram pequenos ruídos - mulheres rindo e conversando em um dos aposentos por que passaram
e, em um outro, o ronco barulhento de um homem. Finalmente, Daliyah fez um gesto para que parassem.

- Aguardem aqui - suspirou para Tariq. - Apaguem as luzes dos capacetes e fiquem em silêncio. Vou verificar se é mesmo seguro.

Ela desapareceu pelo corredor estreito. Os homens se agacharam para descansar, mas continuaram com as armas em punho. Não demorou muito, e Daliyah voltou, caminhando
silenciosa e rapidamente.

- Há dois homens de guarda em frente à porta da cela da menina. Estranho. Normalmente, são cinco ou seis. Esta noite, os outros devem ter sido mandados para o portão
da ala norte. Um dos guardas que ficaram tem a chave da cela. Não façam barulho. Sigam-me.

Hector e Tariq ficaram bem próximos a Daliyah, um de cada lado. Depois de um curto percurso, ela parou de novo e apontou para a frente. A passagem se abria de repente
em ângulos retos. Eles podiam ouvir as vozes dos homens além da curva, e a luz amarela das lamparinas se projetava no ângulo da parede lateral e no teto. Hector
escutou com atenção e percebeu que havia pelo menos dois homens recitando uma passagem da isha, a oração noturna. Depois, viu as sombras na parede lateral quando
eles se ajoelharam e levantaram de novo. Hector mostrou dois dedos, e Tariq assentiu. Hector bateu no peito dele e mostrou um dedo; em seguida, bateu no próprio
e levantou mais um.

- Um para cada um - Tariq assentiu.

Eles entregaram os rifles para os homens atrás deles e cada um desenrolou a corda de piano de arame que carregavam nos bolsos abotoados, testando-as entre dos dedos
das mãos. Hector se aproximou lentamente da quina da parede. Tariq o seguiu. Aguardaram os dois sentinelas se ajoelharem com as testas pressionadas no chão de blocos
de pedra. Então ele e Tariq se colocaram atrás deles e, quando os homens retornaram à posição sentada, Hector e Tariq passaram o laço de arame sobre as suas cabeças,
apertando-o com força sob os queixos. Os árabes de debateram, chutando e agitando os braços e as pernas. Mas não deixaram escapar um único som. Hector posicionou
um dos joelhos entre as omoplatas da vítima e aplicou a força de ambas as mãos. O homem se enrijeceu e chutou convulsivamente pela última vez, enquanto seus intestinos
se esvaziaram fazendo barulho. E então, ficou imóvel. Hector o virou para o outro lado e apalpou a túnica. Sentiu a grande chave de ferro sob o tecido e a retirou.
Daliyah estava no canto. Os olhos dela detrás do véu estavam arregalados e faiscando de terror - talvez não esperasse que fossem matar alguém.

- Que porta? - Hector perguntou. Havia três diante deles.

Mas Daliyah estava abalada demais para responder. Tariq se ergueu de um salto e a pegou pelos ombros, sacudindo-a com força.

- Que porta?

Ela se recompôs e apontou para o centro.

- Me dê cobertura - Hector disse a Tariq e foi até a porta.

Ele a destrancou com a chave que tinha tirado do sentinela e a abriu devagar e furtivamente. A cela estava às escuras, mas ele acendeu a luz do capacete. Com o feixe
de luz, viu o quanto a cela era pequena. Não possuía janelas nem ventilação. Em um canto, havia um balde que servia de privada e uma jarra d'água feita de barro.
Do balde emanava um odor pungente. No meio do chão, estava uma figura de estatura pequena, encolhida sobre um estrado com enchimento de palha. Vestia apenas uma
peça suja que mal batia na cintura, portanto não restava dúvida de que se tratava de uma mulher. Ajoelhou-se sobre ela e virou-a com delicadeza para ver o rosto.
Era o rosto da menina no vídeo brutal, a menina cuja foto Hazel lhe havia mostrado. Era Cayla, mas tão pálida e magra que a pele dele parecia quase transparente.

- Cayla! - suspirou em seu ouvido, e ela se mexeu. - Acorde, Cayla.

Ela abriu os olhos, mas por um momento não conseguiu focalizar neles.

- Acorde, Cayla. Vim buscar você e levá-la para casa.

De repente, os olhos dela se arregalaram. Eles pareciam preencher todo o rosto e estavam repletos de sombras de lembranças terríveis. Ela tentou gritar, mas ele
tapou a boca dela e suspirou num tom de urgência:

- Não tenha medo. Sou seu amigo. Sua mãe me enviou para levá-la para casa.

Ela estava surda de medo, sem compreender as palavras, debatendo-se contra ele com toda a força escassa que possuía.

- Sua mãe me disse que você tem um Bugatti Veyron chamado Mister Tartaruga. Sua mãe é Hazel Bannock. Ela ama você, Cayla. Lembra-se da potra que ela deu de presente
a você em seu último aniversário? Você a chamou de Chocolate ao Leite.

Ela parou de se debater e olhou para ele com os olhos arregalados.

- Vou tirar a mão da sua boca agora. Prometa que não vai gritar.

Ela assentiu, e ele retirou a mão.

- Não é Chocolate ao Leite - sussurrou. - Chocolate, só chocolate.

Ela começou a chorar, soluços silenciosos sacudiam todo o seu corpo. Hector a pegou no colo. Era leve como um pássaro, mas estava queimando de febre.

- Venha, Cayla. Vou levar você para casa. Sua mãe está esperando.

Tariq estava na porta dando cobertura. Hector acenou com a cabeça na direção dos cadáveres dos dois árabes.

- Tranque-os na cela.

Eles arrastaram os corpos segurando-os pelos pés, as cabeças rolavam aos solavancos no chão de pedra, e os jogaram no meio da cela. Hector trancou a porta e colocou
a chave no bolso.

- Agora! Diga à sua prima para nos tirar deste lugar fedorento, Tariq.

Daliyah os conduziu pelo mesmo caminho da ida. A todo momento, Hector esperava uma confrontação ou uma saraivada de balas.

- Está sendo fácil demais. Não era para ser tão fácil. Há uma tempestade de merda se formando, consigo pressentir, disse a si mesmo desgostoso. Mas, finalmente,
ele saiu pela porta na passagem estreita e saboreou o ar noturno do deserto.

- Puro como um beijo virginal - sussurrou e encheu os pulmões.

Cayla tremeu em seus braços. Ele a carregou pela abertura da passagem, onde havia uma rota de fuga desobstruída encosta abaixo. Ele a sentou gentilmente no chão
de pedra e se ajoelhou sobre ela. Hazel havia empacotado um macacão de camuflagem limpo, um par de tênis lona e uma calcinha para Cayla. Hector retirou as roupas
do bolso lateral da mochila e, como se ela fosse um bebê, a vestiu. Ele desviou os olhos ao puxar a calcinha para cima. Sentia uma estranha afeição paternal por
ela. Mas teve dificuldade de reconhecer a emoção em um primeiro momento. Não tinha filhos, nunca quis tê-los. A vida dele estava preenchida por outras coisas. Não
havia lugar para filhos. Agora, pensava que a sensação de ter um filho devia ser como aquela. Essa era a bebé de Hazel, portanto, de um modo estranho, era dele também.
Essa criaturinha doente revirava sentimentos profundos que ele nunca suspeitara que existiam. Encontrou a água na mochila, e forçou Cayla a engolir três tabletes
de antibióticos de amplo espectro com um grande gole da garrafa que ele segurava próxima aos lábios dela.

- Você consegue caminhar? - perguntou carinhosamente.

- Sim, é claro! - ela se levantou, deu dois passos cambaleantes e desabou.

- Boa tentativa - ele disse -, mas você ainda precisa de um pouco de prática.

Ele a pegou no colo de novo e saiu correndo. Tariq e Daliyah estavam posicionados, e o resto do grupo lhe deu cobertura. Na trilha acidentada, eles contornaram os
muros até chegarem ao caminho principal, virando diretamente na descida da encosta. A noite estava silenciosa como se toda a criação estivesse com a respiração em
suspenso. Diminuíram o ritmo ao alcançarem o oásis e caminharam entre as palmeiras na direção em que haviam deixado Uthmann e seu grupo.

"Silencioso demais", Hector pensou. "Muito silencioso, demais. O lugar inteiro exala o fedor da Besta."

De repente, à frente dele, Tariq e Daliyah foram ao chão. Tariq a puxou para baixo com ele e os dois desapareceram de vista, como se tivessem caído em uma armadilha.
Hector caiu quase no mesmo instante, aninhando Cayla nos braços para protegê-la do impacto ao atingirem o chão.

Ela choramingou, e ele sussurrou:

- Quietinha, querida, quietinha - disse e olhou adiante, retirando cuidadosamente o rifle do ombro.

Hector olhou pelo visor noturno do rifle, mas não conseguiu enxergar nada que pudesse ter alarmado Tariq. Em seguida, viu Tariq erguer a cabeça cautelosamente. Após
cinco minutos completos, deu o assovio suave de reconhecimento. Não houve resposta. Virou-se para trás devagar e olhou para Hector, à espera de uma ordem.

- Fique aqui e não se mexa! - Hector disse à garota.

- Estou com medo, por favor, não me deixe sozinha.

- Eu vou voltar. Prometo - ele ficou de pé e saiu correndo.

Deixou-se cair ao lado de Tariq e rolou duas vezes para o lado para sair da mira do inimigo. O silêncio era pesado e carregado.

- Onde? - perguntou.

- Depois daquela palmeira. Há um homem deitado ali, mas não está se mexendo.

Hector avistou a silhueta escura e a observou por um momento. A figura permanecia imóvel.

- Me dê cobertura - Hector disparou adiante de novo.

Nem mesmo o colete de proteção seria capaz de deter a bala de um rifle a tal distância. Alcançou o vulto humano e caiu ao lado dele. O rosto estava virado para Hector,
que viu que se tratava de Khaleel, um dos seus melhores homens.

- Khaleel! - suspirou, mas não houve resposta.

Esticou um dos braços para verificar a artéria carótida. A pele de Khaleel ainda estava morna, mas ele não tinha pulso. E então Hector sentiu algo molhado nos dedos.
Sabia o que era - durante sua vida, tinha provavelmente visto tanto sangue quanto um cirurgião. Procurou a ferida com as pontas dos dedos. Encontrou-a exatamente
onde achara que estaria - na parte de trás da mandíbula, logo abaixo do ouvido. Um furo minúsculo; uma lâmina fina e bastante afiada trespassada do ouvido até o
cérebro. Hector sentiu que iria vomitar. Não queria que fosse verdade. Conhecia apenas um homem que poderia matar com tanta precisão. Chamou Tariq para junto dele
com um aceno. Ele foi correndo se juntar a Hector. Logo viu o sangue nos dedos de Hector. Depois se virou para o corpo de Khaleel e tocou no ferimento atrás da orelha.
Não disse nada.

- Encontre os outros - Hector mandou.

Três corpos estavam estirados em um círculo defensivo, olhando para frente. Deviam confiar no assassino para tê-lo deixado chegar tão perto. Todos tinham morrido
instantaneamente. Todos tinham um ferimento quase idêntico.

- Onde está o Uthmann? - a pergunta era redundante, mas Hector tinha de fazê-la.

- Não está aqui. Foi aonde o coração dele pertence - Tariq olhou para a fortaleza maciça acima deles.

- Você sabia, Tariq. Por que não me preveniu a respeito dele?

- Sabia com meu coração, mas não com a cabeça. Você teria acreditado em mim? - Tariq perguntou.

Hector deu um sorriso amargo.

- Uthmann era meu irmão. Como poderia acreditar em você? - Hector disse, mas Tariq virou o rosto.

- E agora temos de sair deste lugar, antes que o seu querido irmão retorne - disse Tariq. - Com os outros irmãos dele, os que ele ama de verdade, mas que não amam
você, Hector Cross.


Uthmann observou Hector e Tariq se afastarem das palmeiras com a mulher, Daliyah, e o resto de seu grupo. Estava bravo e frustrado. Hector Cross tinha feito seus
planos, tão cuidadosamente esboçados, irem por água abaixo. Agora tinha de reavaliar sua posição com rapidez. O xeique Tippoo Tip e seu neto, Adam, estavam esperando
por ele com a maioria dos homens no Portão Norte. Era onde Uthmann havia prometido a Adam que entregaria Hector Cross. Mas, primeiro e mais importante, tinha de
fazer a mensagem chegar a Adam, avisando que Hector não iria cair na armadilha conforme o planejado, que tinha entrado por outro portão. Eles teriam de fechar todos
os portões e procurá-lo por todos os milímetros da fortaleza. Encontrá-lo antes que conseguisse se esgueirar pela saída e fugir para a amplitude do deserto. Havia
um único jeito de mandar o aviso a Adam - teria de entregá-lo pessoalmente. Mas, primeiro, tinha que dar um jeito nos quatro homens de seu grupo. Verificou o punhal
na bainha que estava presa em um dos antebraços. Tinha feito a lâmina a partir da mola dianteira de um caminhão GM. Foram necessárias várias horas de lixamento,
aquecimento, forjamento, tempero e moldagem para alcançar a perfeição. O cabo tinha uma tira de couro órix que se encaixava na mão. O equilíbrio era maravilhoso.
Um golpe sutil era o que bastava para que a lâmina afiada cortasse até o osso, e a ponta podia perfurar a carne humana sob o seu próprio peso. Esperou dez minutos
para que o grupo de Hector se afastasse e então engatinhou até o seu homem mais próximo.

- Khaleel, tudo tranquilo aqui? - perguntou. - Não, não olhe para mim. Continue olhando para a frente.

Khaleel virou o rosto obedientemente. O lóbulo de sua orelha direita estava visível sob a borda do capacete. Uthmann percorreu o canal do ouvido até o cérebro com
a ponta da lâmina. Khaleel suspirou suavemente, e a cabeça pendeu sobre a coronha do rifle que segurava. Uthmann limpou a lâmina meticulosamente em uma das mangas
de Khaleel antes de engatinhar até o próximo homem no círculo.

- Fique atento, Faisil - sussurrou enquanto se colocava ao lado do homem, e então o matou rapidamente. Os outros homens estavam deitados a menos de trinta passos
de distância e não ouviram nada. Uthmann se arrastou na direção deles. Quando os quatro estavam mortos, Uthmann ficou de pé e se virou no sentido da fortaleza. Começou
a correr. Escalou o caminho da encosta. Só tinha estado ali uma única vez, mas virou à esquerda sob o muro e correu ao longo dele até o Portão Norte. Quando faltavam
ainda uns cem passos para chegar, ele começou a gritar para avisar os homens que, sabia, estavam esperando no topo das muralhas.

- Não atirem! Sou eu, Uthmann. Sou um dos homens de Khan. Preciso falar com Adam.

Não houve resposta, e ele correu no sentido do portão, gritando a mesma advertência. Quando estava a cinquenta metros do portão, de repente, um feixe de luz branca
cegante, com toda intensidade, incidiu sobre ele. Ele parou e jogou as mãos para o alto para proteger os olhos. Uma voz chamou por ele do alto das muralhas.

- Jogue a arma no chão. Mãos ao alto! Caminhe devagar até o portão. Vamos atirar se tentar escapar.

Uthmann se aproximou do portão, e ele se abriu momentos antes dele alcançá-lo, mas os olhos dele ainda estavam ofuscados pelo feixe de luz e não conseguiam enxergar
nada na escuridão além da abertura. Ele hesitou ao alcançar o limiar, mas a voz o chamou de cima:

- Continue andando. Não pare!

Ele entrou e imediatamente um bando de homens veio correndo da escuridão e começou a bater nele até que ficasse de joelhos.

- Sou um dos homens de Khan - Uthmann cobriu a cabeça com ambos os braços. - Trago uma mensagem importante. Vocês têm de me levar até ele.

Ele teriam continuado a bater, mas nesse momento um comando autoritário os deixou paralisados.

- Deixem-no em paz! Conheço esse homem. Ele é um dos nossos agentes de confiança.

Uthmann se levantou e se curvou até o chão em reverência ao homem que surgiu das sombras e caminhava até ele.

- Que a paz esteja com você, Adam. Bençãos e paz para o seu ilustre avô, xeique Khan Tippoo Tip!

- Qual é problema, Uthmann? O plano era você guiar o infiel até aqui. Onde está Cross, aquele assassino blasfemo?

- Cross tem o instinto de sobrevivência de um animal selvagem. No último momento, decidiu que não me seguiria. Encontrou uma mulher que conhece bem a fortaleza.
Ordenou que eu ficasse enquanto a acompanhava por um caminho secreto para entrar nas muralhas.


Adam o encarou.

- Onde está Cross agora?

- Sem dúvida, já está dentro da fortaleza.

- Por que não nos avisou antes? - Adam levantou a voz, agitado.

- Porque eu mesmo não sabia até pouco tempo - Uthmann respondeu. - Não perca tempo e mande fechar todos os portões, depois envie mais homens para vigiar cela da
prisioneira e outros mais para vasculhar a citadela e encontrar o Cross.

- Venha comigo! - Adam rosnou para ele. - Vamos até o meu avô. No entanto, se você deixou o infiel escapar com a nossa refém, as coisas vão se complicar bastante
para seu lado, já aviso.

Adam levantou a túnica e correu, mas quando alcançaram a sala do conselho do xeique, estava exageradamente ofegante.

"Esse descendente do Profeta é tão mole quanto as mamas caídas de uma velha", pensou Uthmann com desprezo ao seguir Adam até a sala e se prostrar aos pés do Khan,
desfiando elogios exuberantes e votos de vida eterna ao velho homem.

- Chega! - xeique Khan se ergueu das almofadas e se agigantou sobre Uthmann. - Por que está tremendo? Está com febre? Ou quebrou nosso voto de confiança? Trouxe
o meu inimigo até mim para que eu possa liquidar a dívida de sangue e ir em paz para o túmulo, ou deixou que ele escapasse da minha vingança? Responda, sua poça
de estrume de porco doente. O filho de uma puta cristã é seu prisioneiro? Ou não?

- Bendito seja o tormento dos infiéis, não sei.

- Não sabe? Então vou fazê-lo saber - disse e açoitou as costas de Uthmann com o chicote de couro de hipopótamo.

A jaqueta à prova de balas absorveu o golpe, mas Uthmann gritou e se retorceu enquanto despejava o relatório. Após meia dúzia de golpes, o braço velho do Khan se
cansou, e ele deu um passo para trás.

- Mande os homens imediatamente para a cela da puta cristã! Traga-a até mim. Vou acorrentá-la ao meu lado onde posso eu mesmo vigiá-la. Já! Depressa!

Os homens enviados para buscar Cayla retornaram logo e se jogaram aos pés dele. Estavam balbuciando de terror e a audição do Khan era ruim, mas por fim ele entendeu
o que diziam.

- A porca infiel desapareceu e os guardas foram estrangulados? São esses os desvarios de macacos e lunáticos? - ofegava de raiva, e seus traços enrugados estavam
inchados e arroxeados.

- Temos de trancar os portões para evitar que fujam, e revirar o lugar e encontrar a menina e esses infiéis que violaram a nossa fortaleza.

Adam também tinha se prostrado. Sabia bem como se desviar da raiva do avô.

- Fechem os portões! - esbravejou o Khan. - Revirem todos os aposentos do palácio. Encontre-os e tragam-nos até mim - a seguir, virou-se para Adam. - Não podemos
deixá-lo escapar agora.

- Estamos desperdiçando tempo aqui, avô. Cross não está no palácio. Quanto mais o senhor demora, mais longe ele fica do nosso alcance. Cross tem apenas cinco homens
com ele. Uthmann matou os outros. Me dê seus cachorros, um número suficiente de homens e caminhões, e eu o trarei para o senhor.

- Há apenas um caminhão aqui, mas está com dois pneus furados que ainda não foram trocados. Mandei as outras caminhonetes e a maioria dos homens para o seu tio Kamal
na Baía de Gandanga para tripular os barcos de ataque.

O Khan prosseguiu:

- Mas podemos levar minha caminhonete particular de caça. Assim que os pneus do caminhão maior forem trocados, ele irá atrás de nós com o restante dos homens. Vamos
levar meus cães também, eu vou com você. Quero presenciar o exato momento em que os aniquilar. Quero vê-los sangrar e ouvir os gritos agonizantes.


Antes de deixarmos o oásis, tenho de ligar para Hans Lategan vir nos buscar de helicóptero - Hector disse a Tariq e puxou o telefone por satélite da mochila.

Estendeu a antena e ligou o aparelho. Hans atendeu ao primeiro toque. Hector sorriu. Devia estar esperando com o polegar no botão.

- Aqui é o Kudu - Hans forneceu seu indicativo de chamada.

- Queijo Stilton! - Hector respondeu.

Esse era o código que haviam combinado usar quando saíssem da fortaleza com Cayla e estivessem a caminho do ponto de encontro. Hector havia considerado a ideia de
ter um helicóptero pairando por perto. Mas o barulho dos motores teria alertado o inimigo de sua presença.

- Positivo! A Duquesa está extasiada.

"Maldito Hans por essa parte adicional da conversa", Hector pensou com raiva. Duquesa era o codinome de Hazel Bannock. Ela estava esperando em Sidi el Razig - como
poderia saber que Cayla já havia sido resgatada da fortaleza? Ele deixou o pensamento de lado. O ponto de encontro combinado ficava na extremidade mais distante
da ravina ao norte. Hans viria da pista de Jig Jig e sobrevoaria a ravina até avistar o sinal de reconhecimento - mais um sinalizador luminoso de socorro. Hans tinha
calculado que levaria cerca de duas horas e dez minutos de voo de Jig Jig. Hector calculara que a distância até o aterro sul da ravina seria de aproximadamente seis
quilômetros e meio, ou talvez um pouco menos. Os perseguidores estariam dirigindo caminhonetes quatro por quatro. Embora o terreno fosse acidentado e cruzado por
afloramentos rochosos e vales, as caminhonetes seriam pelo menos duas vezes mais velozes do que seu pequeno grupo. Por estar doente e malnutrida, Cayla pesava cerca
de 45 quilos. Sabia que, em condições ideais, seus homens provavelmente conseguiriam chegar à ravina em aproximadamente uma hora e cinquenta minutos. Mas não na
escuridão, não sobre aquele tipo de terreno, não tendo que carregar Cayla. "E se eles soltarem os cães?", perguntou a si mesmo e então respondeu: "Que se danem os
cães!".

Tariq observava o rosto dele, e Hector falou em voz alta:

- Sei o que quer me perguntar, se eu contei para o Uthmann que iríamos para o norte em direção à ravina. A resposta é: não, não disse. Embora ele saiba qual é o
nosso exato ponto de partida, não sabe para qual direção correremos. No escuro, não vai achar fácil nos rastrear - não queria sequer mencionar os cães. - Portanto,
não vamos perder mais tempo.

- Vocês todos bebam o máximo de água que puderem agora. Não vamos parar de novo até ouvir o helicóptero a caminho.

Enquanto conversavam, Hector tinha afivelado três cintos juntos para criar uma tipóia para carregar Cayla. Ele a colocou de pé.

- Serviços de Mudança e Transporte Heck ao seu dispôr, srta. Bannock.

- Esse é o seu nome verdadeiro? Heck? - a voz dela estava fraca e ofegante.

- Claro - ele a ajudou a se acomodar no assento improvisado da tipoia e a ergueu até que estivesse na altura dos quadris dela, com ambas as pernas balançando para
trás.

- Coloque os braços ao redor do meu pescoço e segure forte.

Ela obedeceu docilmente, e ele correu com ela, começando com uma velocidade inferior à sua máxima e ajustando o ritmo para percorrer toda a distância. Tariq enviou
dois de seus homens adiante para encontrar a rota mais fácil, e mais dois para segui-los e tentar apagar qualquer sinal óbvio que deixassem na areia do deserto.
Cobriram o primeiro quilômetro e meio, e Hector encontrou sua segunda levada de fôlego. Alargou os passos.

- Você disse que seu nome era Heck. É apelido de Hector? Minha mãe falou sobre você. Você deve ser Hector Cross.

- Espero que tenha dito coisas boas sobre mim.

- Na verdade, não. Disse que você era arrogante e pretensioso e que iria demiti-lo na primeira oportunidade. Mas não se preocupe, vou falar com ela.

- Cayla Bannock, minha protetora.

- Pode me chamar de Cay. É como todos os meus amigos me chamam.

Ele sorriu, e ela se segurou a ele pelo pescoço com mais força. Sempre pensara que quando esse momento chegasse, que seria um menino.

"Que se dane, uma filha está de bom tamanho", resolveu. Eles correram por mais quarenta minutos até que ele parou e olhou para trás. Agora tinha certeza. O sinal
era tênue, mas inconfundível.

- O que foi, Heck? - Cayla estava tremendo novamente, a voz repleta de pânico. - Acho que estou ouvindo o latido de cães.

- Ah, não é nada com que se preocupar. Há vários cães sem dono aqui.

E então se dirigiu a Tariq:

- Consegue ouvir?

- Consigo. Estão trazendo cães e pelo menos um caminhão. Vão nos alcançar antes da ravina.

- Não não, não - Hector retorquiu. - Agora vamos começar a correr de verdade.

- Do que você está falando? Não entendo - estavam falando em árabe, e Cayla ficava cada vez mais agitada. - Estou com medo, Heck.

- Você não tem do que sentir medo. Você toma conta de mim, e eu de você. Combinado?

Ele fixou a atenção na estrela polar logo acima do horizonte e correu. Correu com todo o ar que tinha nos pulmões e a batida de seu coração ressoando nos ouvidos
como um tambor de guerra. Quando as pernas começaram a vacilar, ele deixou a mochila e o rifle para trás e continuou a correr. As pernas se estabilizaram, e ele
encontrou reservas de forças que nunca soube que tinha. Correu por mais um quilômetro e então outro. Agora finalmente ele tinha certeza de que estava esgotado, que
não conseguiria dar mais um passo sequer. Mas as pernas dele continuavam a pulsar. Tariq e Daliyah corriam ao seu lado. Daliyah carregava o rifle que Hector deixara
cair e Tariq, a mochila.

- Deixe eu carregar a menina para você - Tariq apelou.

Hector balançou a cabeça. Tariq era um homem baixo e magro, mas não tinha os músculos exigidos para aquele tipo de carga. Hector sabia que se parasse de correr por
um único segundo, que não seria capaz de começar de novo. Cobriu mais um quilômetro e meio e então soube que não dava mais, que não dava mais de jeito algum.

"Eu vou morrer aqui", pensou, "e eu nem sequer tenho um rifle. A vida é uma merda."

Ele parou e colocou Cayla no chão. Estava cambaleante. O latido dos cães ficava mais próximo, mais alto. Ele ainda tinha a pistola no cinto.

- Não posso deixar que levem Cayla, não posso deixar que ela caia de novo nas garras deles. Quando não houver mais jeito, vamos compartilhar a pistola, uma bala
para cada um.

Era a decisão mais triste e difícil que já havia tomado. Ela entorpeceu sua mente, por isso quando ouviu os homens gritando o nome dele, não conseguiu entender o
que estavam dizendo. Tudo o que conseguia escutar eram os cães. "No deserto, o som se propaga por longas distâncias", tranquilizou a si mesmo, "eles não estão tão
perto quanto parecem."

- Chegamos à ravina, Hector! - Tariq estava gritando, e por fim as palavras penetraram a sua exaustão e tristeza. - Vamos, Hector. Você conseguiu chegar até aqui.
A borda da ravina fica apenas vinte metros adiante. Venha, meu amigo!

Hector já não pensava mais logicamente. O cérebro lhe dizia que fora derrotado e que não podia prosseguir. Mas ele pegou Cayla no colo e correu. Parou apenas quando
a terra sumiu sob seus pés, e ele caiu, deslizando e rolando pela primeira ladeira íngreme da ravina. Estava rindo, e Cayla se sentou ao lado dele. Estava toda empoeirada
e tinha arranhado um cotovelo e uma das bochechas. Encarou-o espantada e começou a gargalhar.

- Você deveria ir ao médico, Hector. Você é louco, cara. Quero dizer: louco de pedra. Mas a loucura fica bem em você.

Ainda rindo, Hector usou a parede da ravina para se levantar com dificuldade.

- Tariq! - gritou. - Não podemos deixar os cães nos pegarem aqui. Precisamos chegar ao norte deste cânion, onde o Hans possa nos pegar. Reúna os seus rapazes - em
seguida, virou-se para Cayla. - Vamos, Cay. Não falta muito agora.

- Você me faz sentir que qualquer coisa é possível. De agora diante, vou caminhar sozinha.

Ela começou a descer o morro. Tropeçou e quase caiu, mas então se equilibrou e continuou andando. Hector a alcançou e, com umas das mãos no ombro dela, foi conduzindo-a,
escorregando e deslizando morro abaixo.

- Você vai conseguir - disse para encorajá-la. - Seus genes são bons, Cayla Bannock.

Tariq veio escorregando atrás dele, mantendo-se firme sobre os pés como um corredor de downhill. Os homens o seguiam. Quando alcançou Hector, devolveu o rifle e
a mochila.

- Você deixou cair isto aqui, Hector.

- Descuido meu - Hector pendurou a mochila e o rifle nas costas e conduziu todos até o estreito da ravina. Chegaram ao fundo e ficaram de frente para a parede norte.
Cayla não conseguia falar de tão ofegante que estava, mas ele não podia deixá-la descansar. Agarrou-a pela mão e subiu arrastando-a pela extremidade oposta da ravina.
A subida era íngreme e árdua, mas finalmente chegaram cambaleando à borda plana. Olhou para trás e para o outro lado. Começava a clarear a leste. Não havia sinal
do inimigo, mas era possível ouvir claramente o alvoroço da matilha de cães.

- Tariq, temos de encontrar um local para nos posicionar até que o helicóptero chegue - ele focalizou adiante e, com seu olhar de soldado, escolheu o lugar.

- Está vendo aquele afloramento rochoso à esquerda? Parece ser um bom lugar. Venha, Cay.

Eles correram em direção às rochas, o instinto de Hector estava correto. Era um lugar onde teriam uma pequena vantagem. Havia uma boa área de caça na borda da ravina
que os cães e Uthmann teriam de atravessar para chegar até eles, mas estava coberta de pedregulhos grandes. Sabia que os cães eram treinados para caçar gente. Agiriam
em bando. Mas eles se separariam quando tivessem de contornar os obstáculos, e não seriam capazes de investir contra os homens em um ataque concentrado. Hector mandou
Cayla engatinhar para baixo do abrigo proporcionado pela rocha maior e sentar com as costas na parede de pedra. Colocou a mochila no chão ao lado dela e lhe entregou
a pistola.

- Sabe atirar?

Cayla assentiu. "Pergunta imbecil, Cross", sorriu para si mesmo. Ela é filha de Henry e Hazel Bannock. É claro que sabe atirar.

- Há uma bala no cano. Sem trava de segurança. Não vou pedir muito. Apenas que mate aqueles malditos animais se avançarem em você.

Ele foi se posicionar ao lado de Tariq. Ambos olharam para o céu. O amanhecer estava a caminho.

- Deixei um homem na borda da ravina - Tariq apontou adiante. O homem estava agachado atrás de uma pedra no horizonte. - Ele vai nos avisar quando avistar os cães.

- Ótimo. O sol vai nascer dentro de mais ou menos dez minutos - disse Hector. - O Hans deve chegar por volta da mesma hora. Precisamos mantê-los afastados apenas
até o helicóptero nos alcançar.

Aguardaram e a claridade ficou mais forte. Então, o vigia gritou em árabe:

- Os cães estão chegando. Muitos cães - abandonou a posição e foi em disparada na direção deles.

- Viu se havia homens com eles? - Hector gritou.

- Não, apenas cães. Muitos, muitos cães.

O homem se juntou a eles. O coro da matilha de cães caçadores mudou de intensidade, tornando-se um latido feroz.


Uthmann estava ao volante do grande caminhão Mercedes. Adam, no banco ao seu lado, e o xeique Khan, sentado no banco de caça traseiro, mais alto do que o deles.
Tinha um guarda-costas de cada lado, para evitar que fosse jogado violentamente de um lado para outro pelos solavancos do caminhão sobre a escuridão do chão acidentado.
Mais quatro homens armados estavam amontoados na caçamba aberta na traseira. Uthmann dirigia velozmente. Tinham perdido a matilha de vista havia algum tempo, mas
seguiam seu coro de caça.

- Estão seguindo na direção do vale ao norte. Como sabiam disso? - Adam gritou sobre a vibração do motor do caminhão. - Você contou a eles, Uthmann?

- Não, mas um dos homens de Cross conhece bem o distrito. Tem família aqui - Uthmann respondeu.

- Se chegarem até lá, não seremos capazes de segui-los. Vamos ter de dar a volta. É um desvio de mais de oitenta quilômetros. Vão conseguir fugir - lamentou o velho
xeique. - Não pode deixar que isso aconteça, meu neto.

- Há um helicóptero a caminho para buscá-los - Uthmann disse.

- Tem certeza?

- Eu estava presente nas sessões de planejamento, tenho absoluta certeza, Grande xeique.

Agora os cães estavam tão na dianteira que antes de saberem se estavam na trilha certa, Uthmann teve de parar o caminhão e desligar os motores para tentar escutá-los.
Depois, deu partida novamente, e eles saíram rasgando a escuridão.

- Como o helicóptero vai encontrá-los? - Adam insistiu.

- Vão fazer uma telefonema via satélite e marcar a posição exata com sinalizadores luminosos.

De repente, Uthmann pisou no breque, e o caminhão derrapou antes de parar. A cabeça de Adam bateu no para-brisas dobrado, e os homens na caçamba foram lançados para
fora do caminhão.

- Por que fez isso? - Adam gritou furioso, segurando a ponta do seu lenço de cabeça para conter o sangramento da ferida que tinha na testa. - Você quase nos matou!

Em resposta, Uthmann apontou adiante.

- Chegamos à parede sul do vale. Mais alguns metros e teríamos caído da borda e morrido todos.

Uthmann saltou do banco do motorista e correu até a borda do precipício. Permaneceu na escuta por um minuto e depois voltou correndo ao caminhão.

- Os cães continuam a seguir a pista. Consigo ouvi-los claramente agora. Precisamos deixar o caminhão aqui e prosseguir a pé.

Correu até os homens que tinham sido jogados do caminhão e chutou os corpos espalhados no chão. Um deles estava provavelmente morto, a cabeça dele pendia do pescoço
quebrado. Outros dois estavam fora da jogada - um com o cotovelo direito destroçado, e o outro com ambas pernas fraturadas. O quarto homem se levantou cambaleante,
mas estava tonto e com uma concussão.

- Nenhum destes porcos tem nenhuma serventia para mim - Uthmann rosnou.

Ele apontou para os homens sentados ao lado do xeique.

- Vocês dois! Desçam e me sigam!

- Não! - Adam gritou de volta. - Eles são os guarda-costas do meu avô. Permanecem o tempo todo ao lado dele. Não podemos deixá-lo aqui desprotegido. Há trinta homens
da fortaleza nos seguindo a pé. Podemos esperá-los chegar antes de avançar.

- Quando chegarem aqui, Cross e a menina já estarão no helicóptero e fora de alcance. Se você não tem estômago para vir comigo agora, espere aqui o quanto quiser.

- A coragem e a honra do meu neto são imaculadas. Irá com você e mostrará o caminho - o xeique Khan interveio.

Adam se prostrou no chão, ainda agarrando o tecido ensanguentado na testa.

- Está pronto para lutar? - Uthmann perguntou.

- Mais preparado do que você jamais estará - Adam rosnou para ele e pegou o rifle do suporte atrás do banco.

- Você tem de agradecer Alá por ele ter lhe dado uma cabeça de pedra - Uthmann riu dele ao correr para trás do caminhão.

Entre a pilha de armas e de equipamento que tinha se deslocado com a brecada de emergência, ele selecionou uma RPG de fabricação russa e um estojo de lona contendo
duas bombas para a arma. Pendurou-os nas costas e deu a volta até a frente do caminhão. Olhou para o xeique Khan no banco elevado.

- Onde vamos nos encontrar, Lorde Khan? - perguntou ao velho.

- Vou levar o caminhão pela beira do vale até encontrarmos a estrada que o atravessa. Assim que cruzarmos o wadi, vamos retomar este caminho e procurá-los no outro
lado - o xeique apontou para o outro lado da sombria extensão de terra ao norte. - A essa altura, o sol já vai ter nascido, e poderemos procurar os rastros ou ouvir
o barulho dos cães.

- Quando nos encontrarmos de novo, depositarei a cabeça do infiel que matou o meu pai e os meus tios aos seus pés - Adam lhe disse. - Agora, peço sua benção, avô.

- Você tem a minha benção, Adam. Que Alá o acompanhe, e que mantenha a jihad forte em seu coração.

Adam teve de correr para alcançar Uthmann antes que ele desaparecesse ravina abaixo. Desceram pelo declive quase vertical, escorregando e deslizando em pedras soltas
e xistos. Adam foi aos poucos ficando para trás de Uthmann.

- Espere por mim - ele ofegava. A camisa dele já estava coberta de suor.

- Depressa! O helicóptero já deve estar vindo buscá-los - Uthmann gritou sem parar de correr. - O infiel irá escapar da ira legítima de Alá e do seu avô.

Adam sentia como se as pernas estivessem se transformando em manteiga. Ele escorregou e caiu de barriga. Ficou de pé, tossindo e engasgando no pó que levantara.
Depois, retomou a descida, mas estava mancando e cambaleando. Uthmann chegou ao fundo e parou pela primeira vez para olhar para trás.

"Porquinho de corpo mole! É bom apenas para estuprar mulheres e assassinar prisioneiros", Uthmann pensou sem demonstrar o seu desprezo.

- Está indo bem. Não falta muito - gritou, mas Adam perdeu o equilíbrio mais uma vez.

Dessa vez, caiu de frente e atingiu o chão rochoso com força. Rolou pelo desfiladeiro nos últimos seis metros. Tentou se colocar de pé, mas o tornozelo direito estava
machucado e não podia com o peso de seu corpo. Ele caiu de joelhos.

- Me ajude! - gritou.

Uthmann deu meia-volta e o pôs de pé. Adam deu alguns passos mancando e depois parou.

- Meu tornozelo! Não consigo pisar com este pé.

- Você deve tê-lo torcido. Não há nada que eu possa fazer para ajudar - Uthmann disse. - Siga-me na melhor velocidade que puder.

Ele abandonou Adam e começou a subir pela parede oposta do vale.

- Não pode me deixar aqui - Adam gritou, mas Uthmann não olhou para trás.


-Escute os cães. Farejaram nosso rastro doce e quente - Hector gritou. - Preparem as armas!

As travas das culatras dos rifles estalaram. Seis rifles, cada um com trinta balas no pente. Eles seriam capazes de lançar praticamente uma parede sólida de disparos.
O campo de visão adiante era de noventa metros. Todos os homens eram exímios atiradores. Nenhum dos cães iria alcançá-los. Mas, se fosse esse o caso, usariam as
baionetas.

- Montem as baionetas! - Hector ordenou, e os homens alcançaram e desdobraram as baionetas debaixo da boca dos rifles. - Tariq, acenda os sinalizadores para o helicóptero
agora!

As chamas durariam vinte minutos, e a essa altura Hans com certeza já teria chegado e sido guiado até o posicionamento deles. Cada um dos homens tinha um sinalizador
na mochila. Tariq deu a ordem gritando, e eles acenderam e atiraram os sinalizadores. Hector percebeu tarde demais que deveria ter deixado claro que tinham de jogá-los
para trás, não adiante do posicionamento. A brisa do amanhecer batia no rosto dos homens e enviava a densa nuvem de fumaça sobre eles, embaçando completamente a
sua visão. Antes que Hector conseguisse mandar um dos homens remover os sinalizadores, os cães surgiram em meio a fumaça. Estavam apenas 15 metros adiante da fileira
dos homens quando se tornaram visíveis. Corriam juntos a toda a velocidade. Numerosos demais para Hector contar. Silhuetas de lobos através da fumaça, clamando por
sangue. Tinham corrido muito e espuma jorrava das mandíbulas abertas, espirrando sobre os flancos.

- Atirem! - Hector berrou. - Atirem!

Ele fez apenas três disparos, matando um animal com cada bala. Os homens ao lado dele disparavam na mesma velocidade. Os cachorros gritavam e iam ao chão, mas outros
atacavam através da fumaça em espiral. Ao lado de Hector, Tariq foi derrubado para trás pelo peso de um enorme cão preto que esmagava o seu peito. Hector se virou
e, antes que o animal conseguisse cravar os caninos na garganta de Tariq, ele o golpeou no pescoço com toda a extensão da baioneta. Ele uivou e virou com as pernas
para cima, chutando. Mas, nesse momento, um outro cão atingiu Hector por trás, desequilibrando-o e fazendo com que se esparramasse no chão. O cão estava sobre ele.
O rifle não servia para nada nessa proximidade de embate. Hector deixou que ele caísse e segurou o cão pela garganta com a mão esquerda; com a direita, alcançou
a faca de trincheira no cinto. Antes que conseguisse erguê-la, outros dois cães estavam sobre ele. Rosnando e tentando morder, lutavam para enterrar os dentes nele.
Um o agarrava pelo ombro da jaqueta e, pressionando com as pernas dianteiras dobradas, o mantinha com as costas no chão. O terceiro prendeu o braço que segurava
a faca pelo cotovelo e o lacerava com sacudidas violentas da cabeça. O primeiro animal ainda estava em cima dele, a mandíbula escancarada a poucos centímetros de
seus olhos, espumando saliva soprada pelo hálito fétido no rosto de Hector. Ele se contorcia e puxava a mão de Hector com tanta violência que não seria possível
aguentar por muito tempo mais.

Um tiro de pistola foi disparado a apenas trinta centímetros de seu ouvido direito, e a explosão quase o deixou surdo. O cão o soltou e desabou sobre ele, o sangue
espirrava do ferimento na cabeça. O estalo de mais dois tiros foi ouvido em rápida sucessão, e os outros cães que o atacavam caíram para o lado. Hector sentou e
limpou o sangue do animal com a manga, cuspindo-o também da boca. Quando conseguiu enxergar melhor, olhou espantado para Cayla. Ela tinha engatinhado do abrigo seguro
sob a rocha e agora estava ajoelhada ao lado dele, segurando a pistola com as duas mãos, o braço direito estendido de modo profissional, balançando-o de um lado
para o outro em busca do próximo alvo.

- Sua linda! - ele falou ofegante. - Sua coisinha linda. Você é com certeza a filha da sua mãe!

Ele agarrou o rifle e ficou de pé de um salto, mas a briga dos cães estava quase encerrada. O terreno estava inundado de cadáveres caninos, e os homens estavam dando
cabo dos poucos animais feridos que ainda perambulavam aterrorizados e com dor. Então, olhou para o horizonte acima e viu um grande helicóptero MIL-26 russo a menos
de um quilômetro e meio de distância, sobrevoando rente à crista na direção deles.

- Lá vem o Hans - explodiu em uma gargalhada. - Está terminado. Filés e uma garrafa de Richebourg para o jantar em Sidi el Razig hoje à noite.

Ele puxou Cayla para que ficasse de pé e colocou um dos braços de forma paternal sobre seus ombros. Observavam a grande máquina acelerando em direção a eles. De
vez em quando ficava escondida pelas nuvens de fumaça dos sinalizadores, mas cada vez que a brisa afastava a fumaça para o lado, o helicóptero se aproximava mais
e mais, e o som dos motores se intensificava. Finalmente, estava pairando diante deles a uma altura de apenas quinze metros, e era possível enxergar Hans de trás
da capota olhando para eles. Ele sorriu, saudou-os e depois rodou o helicóptero até se posicionar paralelamente em relação a eles. A porta principal da fuselagem
estava aberta e duas figuras estavam de pé na abertura. Uma era o engenheiro de voo, mas a outra deixou Hector boquiaberto.

- Mulher louca! - sussurrou.

Ele tinha mandado que ela voltasse pra Sidi el Razig após a viagem até Jig Jig, mas deveria ter considerado que Hazel Bannock não era boa em acatar ordens. Dá-las,
sim, mas não recebê-las.

- Mamãe! Mamãe! - Cayla berrou, histérica.

Ela pulava para cima e para baixo e acenava com a pistola acima da cabeça. Da porta, Hazel acenava com a mesma energia. Hans desceu com o MIL-26 até eles e, assim
que o trem de pouso tocou o solo, Hazel desceu de um salto da abertura, aterrissou com elegância e saiu correndo como louca em direção à filha. Cayla se desvencilhou
do braço protetor de Hector e saiu tropeçando ao encontro da mãe.

- Isso é o que eu chamo de uma cena bonita! - disse Hector com um sorriso, enquanto observava as duas mulheres correrem uma para os braços da outra, dando gritinhos
e chorando de alegria. Sentiu as lágrimas ardendo nos próprios olhos e balançou a cabeça.
- Abrindo o berreiro como um bebé. Você está amolecendo, Cross - Hazel olhou para ele por sobre os ombros de Cayla enquanto abraçava a filha. As lágrimas jorravam
pelo rosto dela, pingando pelo queixo. Ela não fez menção de enxugá-las. Não precisava dizer nada, a maneira como olhava para ele era eloquente o suficiente.

- E eu amo você também, Hazel Bannock! - gritou para que o mundo inteiro ouvisse.

Em seguida, voltou a se concentrar no que estava acontecendo e acenou para que Daliyah e os homens de seu grupo prosseguissem e embarcassem no helicóptero. Eles
pularam e saíram correndo em bando pelo terreno descampado.

- Hazel! Coloque a Cayla a bordo! - ele foi correndo na direção das mulheres.

Hazel escutou o que ele disse e agarrou Cayla pelo pulso, arrastando-a no sentido da aeronave. Em seguida, um outro tom de voz atravessou a alegria exultante de
Hector como o corte de um sabre.

- Na beira da ravina, Hector! - era Tariq.

Ele apontava para além do helicóptero, e o olhar de Hector girou naquela direção. Havia um homem ali, e apesar de estar a quase duzentos metros de distância e apenas
a cabeça estar visível acima da borda, Hector o reconheceu instantaneamente.

- Uthmann Waddah! - o choque paralisou sua mente.

Tariq não tinha como atirar diretamente no antigo camarada de onde estava. Os homens do grupo e as duas mulheres correndo o bloqueavam. Apenas Hector estava em posição
de lidar com o traidor. Mas, por algumas frações vitais de segundo, ele ficou paralisado. Em qualquer outra circunstância, se fosse qualquer outra pessoa e não Uthmann,
a reação dele teria sido instantânea, mas Hazel e Cayla haviam usurpado toda a sua atenção. Ele finalmente se mexeu, mas foi como se estivesse tentando nadar numa
banheira de mel grudento. Observou Uthmann pular da ravina, correr três passadas adiante e se abaixar apoiado em um dos joelhos. Viu ele erguer um longo tubo de
metal e colocá-lo sobre o ombro direito.

- RPG! - mesmo àquela distância, Hector sabia exatamente do que se tratava.

A granada-foguete, a arma predileta do insurgente, podia arrebentar a armadura de um tanque de batalha como se fosse uma camisinha barata. Uthmann estava mirando
fixa e deliberadamente o helicóptero.

A essa altura, Hector já estava com a Beretta apoiada no ombro. Inconscientemente, notara que Uthmann ainda estava vestindo o colete à prova de balas. Era uma edição
da Bannock e da melhor qualidade, feita de Kevlar com enxertos de placas de cerâmica. Àquela distância, a bala de 5.56 mm da OTAN era famosa pelo péssimo desempenho
contra essa espécie de armadura corporal. Originalmente projetada para atingir esquilos e cães de pradaria - não seres humanos -, a bala provavelmente rolaria pelo
chão com o impacto e não penetraria a carne, mas seria suficiente para derrubar Uthmann. Um instante antes de Hector atirar, Uthmann disparou o RPG.

Hector viu a explosão de retorno após o disparo do projétil atrás de Uthmann, assim como o rastro de fumaça da granada ao ser lançada no sentido do MIL-26. Antes
que ele atingisse o alvo, Uthmann saiu rodopiando após a bala de Hector explodir contra o painel frontal de sua jaqueta, e ele foi arremessado ao chão rochoso com
uma força brutal. Antes de Uthmann atingir o chão, a granada atingiu a frente do helicóptero e explodiu. Hector cambaleou quando a onda da explosão o alcançou, mas
permaneceu de pé. A alguns metros de distância da aeronave, Hazel e Cayla caíram agarradas uma a outra. Daliyah e os homens que a acompanhavam estavam mais próximos
da explosão. Todos foram derrubados e Hector sabia que alguns provavelmente tinham se ferido gravemente ou mesmo morrido. O engenheiro de voo que estava na porta
foi destroçado. Hector viu a cabeça e um dos braços rodopiando pelo ar.

O nariz e a parte frontal da fuselagem foram arrancados. A cabine do piloto e a capota tinham desparecido deixando um buraco em seu lugar, e não havia sobrado nada
que pudesse ser reconhecido como o corpo de Hans Lategan. Ele tinha recebido o impacto mais pesado da explosão. Fora de controle, a máquina gigante caiu para o lado,
os rotores rodopiando açoitando a terra endurecida, torcidos em formatos extraordinários antes dos motores cessarem, e um manto de poeira e fumaça pairava sobre
os destroços.

Por um momento, reinou o silêncio. Em seguida, Tariq gritou:

- O Uthmann está de pé. Atire nele, Hector. Em nome de Alá, atire de novo nele.

A visão de Hector agora estava parcialmente obstruída pela fumaça e a poeira, mas ele atirou na silhueta nebulosa cambaleando de costas para a borda da ravina. Hector
não tinha certeza se tinha atingido Uthmann ou se ele tinha simplesmente caído da beirada. Tariq saiu correndo na direção dele.

- Volte, Tariq! - Hector gritou. - Deixe-o em paz! Os homens dele provavelmente vêm seguindo logo atrás. Temos de sair daqui. Vá ver como estão os outros. Vá ver
como está a Daliyah.

Tariq deu meia-volta, e Hector correu até onde Hazel e Cayla estavam caídas. Estava desesperado de medo e de preocupação. Elas estavam bem dentro da zona de perigo,
e podiam facilmente ter sido atingidas pelos estilhaços da granada ou por pedaços voadores de metal da fuselagem. Ele caiu de joelhos ao lado delas. Hazel estava
sobre Cayla com os braços estendidos sobre a filha para protegê-la. Com medo que estivessem sangrando, Hector alcançou uma das mãos de Hazel. Ela girou a cabeça
e olhou para cima com uma expressão confusa no rosto, e então se sentou rapidamente e estendeu os braços para ele.

- Hector! - ela o beijou de boca aberta, e em seguida ambos voltaram a atenção completamente para Cayla. Os dois a ajudaram a se levantar.

- Você se machucou, bebé? - Hazel indagou ansiosamente.

- Não, mamãe. Não se preocupe comigo, estou bem.

- Ótima notícia - disse Hector -, porque temos de nos mexer imediatamente. Hazel, essa sua filha está fraca como um recém-nascido, mas é forte como um molho de pimenta.
Ela simplesmente não desiste. Vou mandar alguém ajudar você a mantê-la de pé.

Ele correu até onde Daliyah e os demais estavam se reagrupando. Alguns haviam sido atingidos por fragmentos que voaram com a explosão, mas embora tivessem cortes
e hematomas, ninguém estava incapacitado de prosseguir. Daliyah parecia ter saído ilesa.

- A menina precisa da sua ajuda - Hector disse, e ela correu até Hazel e Cayla.

Ele se virou para os homens e ordenou:

- Arrumem o equipamento, vamos partir já.

- Que direção vamos seguir, Hector? - Tariq perguntou.

- Vamos atravessar de novo a ravina.

Todos olharam para ele espantados, e ele logo esclareceu.

Se prosseguirmos para o leste, não vamos encontrar muita coisa além de deserto e mais deserto. Agora que eles perderam os cães, o inimigo não vai saber com certeza
que rota seguimos, mas provavelmente esperam que sigamos para o leste em direção à costa - ele se virou e apontou para o sentido de onde tinham vindo. - Porém, a
estrada norte-sul principal passa perto do Oásis do Milagre e da fortaleza. Correto, Tariq?

- Correto, fica a cerca de 16 quilômetros a oeste da fortaleza. Tem bastante tráfego - Tariq confirmou.

- Se conseguirmos chegar lá, vamos nos apoderar do primeiro ônibus ou caminhão conveniente que aparecer.

Os homens começaram a se reanimar imediatamente. A derrubada do helicóptero os tinha deixado mudos de desespero, mas Hector havia oferecido um plano e um vislumbre
de esperança. Em poucos minutos, estavam prontos para partir.

Eles formavam uma pequena e estranha caravana - três mulheres de diferentes idades e tons de pele e seis homens em trajes de camuflagem rasgados e ensanguentados.
Todos cobertos de sujeira e poeira. Hector tomou a dianteira, e Tariq seguiu por último com dois homens ajudando a apagar os rastros deixados pelo grupo em fila.
Cayla estava no meio, apoiada pela mãe em um lado e por Daliyah do outro. Formaram uma fila na beira da ravina e começaram a longa descida até o fundo. Quando começaram
a escalar a parede oposta, a maioria estava próxima da exaustão, e o ritmo diminuiu inexoravelmente. Hector ia de uma ponta à outra da fila, tentando incentivá-los
com falsas garantias e piadinhas grosseiras que, por sorte, Hazel e Cayla não entenderam. Os homens que tinham se ferido na explosão da bomba RPG sofriam bastante
agora, e novamente as pernas de Cayla começaram a fraquejar. Hector a carregou nas costas na última subida íngreme até o alto do vale. Ao chegarem ao topo, os demais
se jogaram sob a primeira sombra que encontraram, e permaneceram ali arfando como cães. As garrafas d'água estavam praticamente secas.

Hector se sentou com Hazel e Cayla, e as fez compartilhar os últimos goles que restavam em sua garrafa. Deu mais um tablete de antibiótico a Cayla. Ele tinha certeza
de que a medicação estava tendo um efeito benéfico. A cor do rosto dela estava melhor, e o espírito, fortalecido. Ele a tocou na testa, e a temperatura pareceu próxima
do normal.

- Mostre a língua! - ordenou.

- Com todo o prazer - ela tentou parecer arrogante, esticando a língua até o máximo. A penugem branca que a cobria estava se dissipando.

Ele se aproximou mais e examinou o hálito de Cayla. Não tinha mais o fedor de uma infecção.

- Coloque para dentro - ele disse -, você não vai querer deixar essa coisa para fora para as pessoas saírem tropeçando sobre ela.

Cayla alongou as costas e fechou os olhos. Hazel suspirou e se apoiou no ombro de Hector. Ele acariciou levemente os cabelos delas ensopados de suor, afastando-os
dos olhos dela ao mesmo tempo que murmurava palavras carinhosas e de encorajamento.

Estavam tão entretidos um com o outro que não perceberam que Cayla os observava através dos cílios, até que ela arregalou os olhos e perguntou:

- Quer dizer que mudamos de ideia quanto a despedir Heck, não é, mamãe?

Hazel pareceu espantada por um momento e depois se sentou com as costas retas e, sem olhar para Hector, ficou com o rosto completamente vermelho. Hector a observava
com prazer.

"Meu Deus, adoro quando ela faz isso", pensou.

- Tudo bem, mamãe. Eu já estava maquinando um jeito de aproximar vocês dois. Parece que eu não precisava ter me preocupado tanto.

- Muito bem, garotas, de pé! Hora de partir.

Hector esperou Hazel se recompôr e se levantou. Ele olhou adiante. Aos primeiros raios solares do amanhecer, o deserto parecia dotado de um austero esplendor. Não
havia o menor sinal de vegetação, mas a areia cintilava como um tesouro de diamantes quando o sol atingia os grãos de sílica, e os pequenos morros rochosos eram
tão majestosos como esculturas de Rodin. Ele conseguia sentir o calor aumentando. Tinha dado toda a água que possuía às mulheres. A boca dele estava seca e, ao tocar
os lábios, viu que estavam ásperos como uma lixa. Havia passado vários anos de sua vida em locais desérticos, portanto ao conduzir o grupo adiante, procurava ao
mesmo tempo por sinais de água na superfície e por inimigos escondidos. Não demorou para que todos estivessem com problemas de desidratação, erodindo suas últimas
reservas de forças, e ele teve de permitir que descansassem de novo. Pegou duas pedras de quartzo e deu uma para Hazel e outra para Cayla.

- Chupem! - ordenou. - Isso vai evitar que a boca de vocês resseque completamente. Respirem pelo nariz e falem apenas se for necessário. Vocês precisam economizar
fluidos corporais.

O olhar de Hector se desviou delas para os homens. Um estava encolhido e com o rosto agoniado, lutando contra cólicas. O resto não parecia que iria se sair bem numa
briga. Uma pequena nuvem passou sobre o brilho do sol, e o alívio foi imediato, ainda que temporário. Olhou para cima e viu pássaros em silhueta contra a nuvem cinza.
Havia cinco deles, grandes e ligeiros batendo as asas velozmente. Ele se levantou e protegeu os olhos. Ambas as mulheres o observavam.

- O que você viu? - Cayla indagou.

- Columba guinea para os ornitologistas - respondeu -, mas para mim e você, simplesmente os velhos pombos da guiné.

- Ah! - Cayla não tentou esconder a decepção. - Nem consigo dizer como isso é fascinante, Heck.

O bando de pombos começou a descer e, voando em círculos ao sol, exibiam a bela tonalidade de azul de suas penas, os pescoços cor de vinho e os contornos brancos
ao redor dos olhos.

- Quando voam assim em bando a esta hora do dia, estão indo beber água.

- Água? - as duas mulheres perguntaram ao mesmo tempo.

- Quando aterrissam assim, é porque a encontraram - disse. - Não é que isso é mesmo fascinante, Cay?

- Às vezes você me faz sentir como se eu fosse retardada - ela respondeu num tom arrependido.

- Pode ter certeza, Cay, que você age como uma só de vez em quando. De pé, senhoras, vamos dar uma olhada.

Ele havia memorizado o ponto para onde o bando havia se dirigido e o estabelecido a cerca de 400 metros. Ao se aproximarem, as características geográficas se tornaram
mais claras. Havia um pequeno vale do outro lado da trilha, uma ramificação do desfiladeiro principal, que atravessava um série de estratificações de formações rochosas.
A faixa do aquífero calcário estava claramente visível, sobreposta pelo xisto laranja. De repente, o bando de pombos surgiu da parede do vale batendo as asas ruidosamente.
Haviam se escondido numa fissura horizontal formada pela erosão do calcário mais macio sob a impenetrável parede rochosa e íngreme.

- Bingo! - gritou Hector com um sorriso enquanto os conduzia para o pé da parede do wadi. Enquanto todos desabavam agradecidos sob a sombra, ele a escalou até alcançar
a fissura sob a camada de calcário. Quando espiou pela abertura escura, pôde sentir o cheiro de água. A largura da fenda permitia apenas que ele engatinhasse. A
água se encontrava em uma poça rasa mais ao fundo da caverna rebaixada. Ele apanhou um punhado com a mão e experimentou.

- Merda! - ele disse. - Literalmente! Merda de pombo! Mas o que não mata engorda!

Ele gritou para Tariq levar as garrafas d'água. Ele coou a água na camisa e, apesar do gosto nojento, todos esvaziaram as garrafas. Hector as encheu de novo. Quando
finalmente todos mataram a sede, Hector encheu as garrafas pela terceira vez. Ao descer pela parede, olhou para o pequeno grupo lá embaixo. A mudança era quase mágica.
Os homens estavam sorrindo e conversando em voz baixa. Hazel estava sentada ao lado de Cayla, cantarolando baixinho enquanto penteava e trançava o cabelo da filha.

- Mulheres! - Hector murmurou carinhosamente, balançando a cabeça. - Onde ela foi encontrar um pente?

Em seguida, gritou:

- Não fiquem muito à vontade, pessoal, estamos partindo neste exato minuto.

Eles se organizaram em grupo novamente e escalaram para fora do wadi. Rumo ao oeste, Hector se manteve na parte mais elevada possível, vigiando o território ao redor
com muita atenção. Em uma hora, teve um bom motivo para ficar satisfeito com essa vigilância. Cerca de três quilômetros para o sul, avistou uma minúscula penugem
de poeira subindo pelo céu incandescente em tons de bronze. Ela se movia lentamente na direção deles, e Hector desejou ter levado os binóculos, mas tinha se preocupado
em cortar ao máximo o peso das mochilas. Após um breve momento de observação, ficou claro que a poeira estava sendo levantada por um veículo qualquer em velocidade
reduzida.

- O que quer que seja está bom para mim - ele se levantou e chamou Tariq.

Sem perder tempo, deu ordens para que dois homens vigiassem as mulheres, enquanto ele e o resto corriam ao encontro do veículo que se aproximava. Logo se tornou
evidente que ele estava acompanhando um antigo leito de rio ressecado e arenoso que percorria a extensão de um vale raso, onde o piso não era tão rachado e acidentado.
Quando alcançou um ponto do rio onde as margens eram mais rasas, Hector pode enxergá-lo com clareza pela primeira vez. Reconheceu de imediato o caminhão Mercedes
com tração nas quatro rodas, de porte mediano. O para-brisas estava dobrado, e havia um motorista, com outros três homens sentados em um banco mais elevado atrás
dele. Os quatro estavam armados e usavam trajes tradicionais - túnicas e turbantes. Hector esperou até que o caminhão fosse encoberto novamente pela margem do leito
do rio.

- Sigam-me! - Hector se levantou de um salto e, com seus homens logo atrás, desceu correndo pela encosta até caírem estendidos no chão da beira da margem, adiante
do caminhão. O Mercedes surgiu próximo da curva a cerca de duzentos metros adiante deles. Hector deixou que o veículo prosseguisse até ficar quase rente ao seu posicionamento
e, em seguida, ele e Tariq pularam no leito abaixo, bloqueando o caminho com os rifles apontados para os ocupantes do veículo.

- Não encostem nas armas ou mato vocês! - Hector gritou em árabe. - Desligue o motor. Coloquem as mãos acima da cabeça.

O motorista e dois dos homens atrás dele obedeceram com rapidez, mas o terceiro que estava sentado mais próximo à traseira do veículo, ficou de pé. Era muito alto,
mas também muito velho. O rosto dele era inacreditavelmente enrugado, e a ponta da barba branca e comprida havia sido pintada com hena. Na mão esquerda, segurava
um rifle de assalto AK-47. Encarou Hector com o olhar hipnótico e selvagem de um profeta bíblico e ergueu a mão direita para apontar para ele com um dedo com artrite
que era como a garra de um animal.

- Você é o assassino dos meus três filhos. Você é Cross, o infiel porco e imundo a quem declarei uma dívida de sangue. Amaldiçoo você com todo o poder de Alá. Que
você nunca encontre a paz mesmo depois de ser morto por mim.

- É o xeique Tippoo Tip - Tariq gritou alertando-o.

Hector manteve a pontaria no centro do peito do xeique.

- Abaixe esse rifle! - gritou com rispidez. - Desça do caminhão, senhor! Não me force a matá-lo.

O xeique era como um homem surdo. Sem tirar os olhos de Hector, começou a erguer o AK-47. As mãos contorcidas tremiam com a força do ódio que sentia.

- Não faça isso! - Hector avisou, mas o xeique ignorou a ameaça do rifle apontado para o seu peito.

Ele acomodou a coronha do AK-47 em um dos ombros e mirou por sobre do cano trêmulo.

- Deus me perdoe! - Hector sussurrou e atirou no meio do peito do homem. Tippoo Tip deixou o rifle cair, mas se agarrou à grade de proteção.

- Amaldiçoo você e seus descendentes. Amaldiçoo você com as chamas do inferno e as garras e os dentes dos anjos negros... - antes que Hector conseguisse evitar,
Tariq atirou no xeique mais uma vez, dessa vez na cabeça.

O xeique foi jogado para trás, do caminhão para o chão arenoso do leito do rio. Os dois guarda-costas rosnaram de fúria e agarraram as armas, mas antes que conseguissem
atirar uma única bala, Hector disparou rajadas curtas de três tiros em ambos. Os guardas foram derrubados dos assentos. Tariq disparou uma saraivada no motorista
atrás do volante assim que ele apontou uma pistola, matando-o instantaneamente. Em seguida, foi até o caminhão e puxou o motorista do assento para o wadi. Olhando
os corpos de cima, bem de perto, deu um tiro de misericórdia em cada um. No entanto, quando foi até o corpo do xeique, Hector o deteve.

- Não, Tariq! Chega. Não faça nada com o velho desgraçado.

Tariq olhou para ele levemente surpreso, e nem mesmo Hector conseguiu entender os próprios escrúpulos, pois o homem era velho. Sabia que Tippoo Tip era um monstro
cruel e perigoso, mas era velho. Tinha sido inevitável, mas mesmo assim havia deixado um gosto amargo na boca. Graças a Deus, Hazel não precisou testemunhar aquilo.

Ele foi até o caminhão e subiu no assento do motorista. Ligou a ignição e o motor deu partida.

- Parece estar em ordem - Hector verificou o indicador de combustível. - Um pouco mais de três quartos do tanque.

Mas viu que havia tanques de combustível para longas distâncias em ambos os lados do veículo.

- Uns 450 litros em cada um - calculou com satisfação. - Não teremos problemas por uns 1600 quilômetros ou mais.

Havia também um tanque de água potável encaixado atrás do bancos dianteiros, e ele bateu na lateral com os nós dos dedos.

- Cheio! - disse, mas havia sido perfurado por uma das balas e a água vazava do buraco. Hector rasgou uma tira da cauda do pano que usava na cabeça e estancou o
vazamento.

Em seguida, Hector acenou para os homens e, enquanto eles subiam no veículo, vasculhou o conteúdo do compartimento entre os assentos. Encontrou um mapa em escala
ampliada da área, com todas as rodovias e vilarejos indicados por nome e local. Isso foi um prêmio, mas o melhor de tudo foi o par de poderosos binóculos Nikon,
ainda guardado em seu saco de lona verde.

- Sou como uma criança em uma manhã de Natal! - disse com uma risadinha.

Pendurou os binóculos no pescoço, verificou se todos os homens estavam a bordo e dirigiu até onde tinha deixado o restante do grupo, escondidos entre as rochas com
as armas de prontidão. Então Hazel o reconheceu e desceu correndo ao encontro do caminhão.

- Você está bem? Ouvimos disparos.

- Como pode ver, éramos nós atirando. Agora podemos partir novamente com conforto. Hazel, você vai comigo na frente - a seguir, apontou para trás com um dos polegares.
- Cay, quero você na caçamba, mantendo a cabeça bem abaixada caso nos deparemos com mais tiroteios.

Cayla escalou a lateral metálica do caminhão e se deteve enojada.

- Que nojo! Há sangue por todos os lados. Não vou. Quero sentar perto da minha mãe no banco da frente.

- Cayla Bannock, pare de bancar a madame comigo. Comporte-se. Coloque seu fundamento já neste caminhão!

- Mas eu não quero...

- Escute, menininha. As pessoas estão sangrando e morrendo por sua causa. De agora em diante, você vai fazer o que eu mandar.

- Nunca fiz nada de errado... - começou de novo.

- Sim, você fez. Convidou Rogier Marcel Moreau, vulgo Adam Tippoo Tip, a bordo do iate da sua mãe.

- Como soube disso? - olhou para ele com uma expressão desolada.

- Se não sabe, deve ser mesmo uma idiota. Agora, suba no caminhão.

Sem dizer mais uma palavra, Cayla escalou pela lateral e se sentou ao lado de Daliyah na caçamba.

Hector engatou a marcha e foi embora. Ao lado dele, Hazel permanecia calada e imóvel. Não queria olhar para ela, mas podia sentir sua raiva. Sabia o quanto era protetora
em relação a Cayla. Dirigiu em alta velocidade, descendo de novo até o leito do rio. O piso arenoso dificultava a locomoção, mas era mais veloz e macio do que o
chão pedregoso e rachado e as cristas. Estavam havia pouco tempo na estrada quando, de repente, ele sentiu uma mão em sua coxa e deu um sobressalto de surpresa.
Olhou de soslaio para Hazel, cujos olhos cintilavam. Ela se reclinou na direção dele até que ficasse a poucos centímetros de seu ouvido.

- Você sabe lidar maravilhosamente bem com crianças, não é mesmo, Hector Cross? - ela sussurrou, roçando o rosto áspero de Hector com os lábios. - Você não sabe
quantas vezes eu quis fazer exatamente aquilo. Quando a mademoiselle Cayla começa a dar chilique, pode ser uma verdadeira megera.

A admissão surpreendeu Hector. Ele cobriu a mão em sua perna com a sua, muito maior, e a apertou.

- Espero que seja um sinal de que está melhorando. Entendo o seu problema, Hazel. Há muito tempo que Cay está órfã de pai, e você não se sente à vontade para ser
severa demais com ela.

Dessa vez, foi ela quem ficou espantada com o entendimento dele. Depois, se recompôs.

- Eu tenho uma pessoa em mente para assumir o papel paterno - ela disse em voz baixa.

- Sorte dele - ele sorriu e continuou a dirigir.

Em uma hora, eles deixaram o leito do rio e subiram até um terreno mais elevado. Hector brecou e desligou o motor.

- O que foi agora? - Hazel perguntou com ansiedade.

- Quero fazer alguns telefonemas via satélite. O sinal deve ser bom aqui.

Ele desceu do veículo e, enquanto abria o mapa recém-adquirido sobre o capô do motor e ligava o telefone, disse a Tariq:

- Dê uma caneca cheia d'água para todo mundo. Deixe que estiquem as pernas e tirem água dos joelhos.

Ele estendeu a antena do telefone e assentiu para Hazel.

- Bom sinal! Dave haver um satélite bem acima das nossas cabeças.

- Para quem você está ligando?

- Para o Ronnie Wells no MTB - ele discou o número e, após alguns toques, a voz de Ronnie surgiu na linha.

- Onde você está? - perguntou Hector.

- Estou ancorado na pequena enseada de uma ilhota rochosa a cerca de oito quilômetros da costa... - ele passou as coordenadas para Hector, que as verificou no mapa.

- Ok. Sei onde você está. Fique aí até eu ligar de novo. Hans Lategan não sobreviveu. O helicóptero caiu. Estamos em fuga, mas adquirimos um veículo. Dependendo
do que está adiante, vai demorar oito horas ou mais até chegar à praia em frente ao seu posicionamento.

- Boa sorte, Heck! Estarei à sua espera.

Ambos desligaram.

- Por que não vamos ao encontro do Paddy e dos homens dele em terra em vez do MTB? - Hazel perguntou.

- Boa pergunta - ele assentiu em reconhecimento. - É uma decisão ponderada. A fronteira etíope, onde Paddy está à nossa espera, fica 160 quilômetros mais longe do
que a costa onde Ronnie está.

- Mas as estradas não são melhores? Se fomos para o leste em direção ao litoral, vamos viajar por estradas secundárias.

- Exatamente - concordou, apertando mais números no telefone. - O país nas terras altas do interior é muito mais fértil e densamente povoado e, a esta altura, é
um ninho de vespas em alvoroço com a milícia de Tippoo Tip. Com quase toda a certeza, as estradas estarão bloqueadas em todos os entrocamentos. Mas vou ligar para
o Paddy agora para avisá-lo sobre o que pretendemos fazer.

Paddy atendeu quase imediatamente.

- Onde você está? - Hector perguntou.

- Estou sentado no topo de uma montanha na fronteira etíope, admirando a vista pitoresca do interior somali. Onde diabos você está?

- Estamos a cerca de 32 quilômetros a leste do oásis. Uthmann Waddah é um traidor. Passou definitivamente para o outro lado.

- Filho da mãe! Uthmann, um traidor? Não consigo acreditar.

- Ele deu a dica. Estavam nos esperando. O próprio Uthmann atingiu o helicóptero do Hans Lategan com uma RPG. Hans está morto, e o MIL, destroçado. Consegui capturar
um veículo e estamos a caminho da costa para encontrar o Ronnie.

Paddy soltou um assovio.

- Você matou o Uthmann, aquele desgraçado de coração de pedra?

- Tentei atirar nele, mas ainda estava usando o colete à prova de balas. Eu o atingi, mas não acho que esteja morto. A armadura provavelmente conteve a bala.

- Uma grande pena! - Paddy grunhiu. - Sabia que havia alguma coisa no ar. De onde estou, posso ver que todas as estradas do seu lado da fronteira estão inundadas
de veículos. Estou com os meus binóculos focados em um dos caminhões do inimigo neste exato momento. Deve haver pelo menos uns vinte homens na caçamba. Todos armados
até os dentes.

- Ok, Paddy. Fique onde está e espere pela minha próxima ligação. Se não conseguirmos nos juntar ao Ronnie, seremos forçados a ir até você. Esteja preparado para
atravessar a fronteira e nos buscar - ele desligou e olhou para Hazel.

- Ouviu o que ele disse?

Ela assentiu.

- Você está certo, é a nossa última opção. Mas vamos levar mesmo oito horas para chegar ao litoral?

- Se tivermos sorte - ele respondeu e viu que ela ergueu uma das sobrancelhas. Olhou ao redor e viu que Cayla tinha se aproximado dele em silêncio e estava ao seu
lado.

- Vim me desculpar, Heck - disse humildemente. - Às vezes um demônio toma conta de mim e não consigo me conter. Podemos ser amigos de novo? - ela estendeu uma das
mãos, e ele a segurou.

- Nunca deixamos de ser amigos, Cay. E espero que seja assim para sempre. Mas você deve uma desculpa à sua mãe mais do que a mim.

Cayla se virou para Hazel.

- Sinto tanto, mamãe. Hector estava certo. Eu trouxe Rogier a bordo do Golfinho e subornei Georgie Porgie para empregá-lo.

Hazel piscou. Até aquele momento, não quisera acreditar, mas agora tinha de encarar o fato. A bebé dela não era mais um bebé. Então, lembrou que Cayla tinha dezenove
anos, que era bem mais velha do que a própria Hazel naquela noite memorável no banco traseiro do velho Ford do seu treinador, quando havia-se tornado mulher. Ela
se recompôs e estendeu os braços para Cayla.

- Todos nós cometemos erros, bebé. O truque é jamais cometer o mesmo erro.

Cayla olhou novamente para Hector.

- O que é esse tal de fundamento que você vive me dizendo para colocar nos lugares?

- É um jeito sofisticado de se referir ao seu traseiro - Hazel explicou, e Cayla riu.

- Bom, está certo! Concordo. Fundamento soa muito mais classudo. Muito melhor do que a outra opção.


Uthmann desceu com dificuldade pela encosta íngreme da face norte do wadi. Dar um passo era trabalhoso e respirar, uma agonia. Tinha deixado a RPG para trás e agarrava
o peito com as duas mãos, no local onde a bala de Hector havia-se chocado com o painel frontal do colete à prova de balas. Em um primeiro momento, esperou que Hector
e seus homens o seguissem, mas depois percebeu que deveriam estar tentando se reagrupar após a destruição do helicóptero. Ele parou por alguns minutos para descartar
o pesado colete e examinar o ferimento. Embora a bala não tivesse penetrado, o hematoma e o inchaço no local do impacto eram enormes. Com cautela, sondou a área
e sentiu a ponta afiada de uma costela quebrada sob a pele. A possibilidade dos pulmões terem sido perfurados o preocupava. Embora a dor fosse praticamente insuportável,
respirou fundo. Os pulmões não pareciam ter sido afetados, e ele tomou fôlego e desceu cambaleante até o ponto onde deixara Adam, no fundo do vale. Ele não estava
mais lá. Provavelmente tinha escalado de volta à borda da margem onde tinham se despedido do xeique e de seus homens. Uthmann subiu pelo mesmo caminho e encontrou
Adam no topo do wadi, sentado em uma rocha colocando uma atadura feita com tiras de camisa no tornozelo.

- O que aconteceu? - perguntou assim que viu Uthmann. - Ouvi tiros e uma grande explosão.

Entre respiradas cautelosas, Uthmann descreveu o que tinha feito, e Adam ficou extasiado.

- Então, eles não escaparam! Agora estão encurralados e na palma da minha mão.

- Sim, nós os encurralamos por agora. Mas como expliquei a você e ao seu avô, Cross tem planos de contingência para outras rotas de fuga. Agora ele provavelmente
está seguindo em direção à costa, onde há um barco de prontidão para levá-los até a Arábia Saudita. Onde está seu avô? Precisamos do caminhão para persegui-los.

- Ele deve ter atravessado o wadi mais adiante, como tínhamos combinado com ele.

- Ambos estamos feridos. Jamais conseguiremos alcançar seu avô ou Cross a pé. Precisamos esperar a outra caminhonete da fortaleza. Deveriam ter chegado há séculos.

- Provavelmente perderam nosso rastro na escuridão - disse Adam com o cenho franzido. - Ou isso ou a caminhonete quebrou de novo.

Mais uma hora se passou até que ouvissem o motor de um veículo se aproximando, e ele surgisse no campo de visão acima da crista. Havia dois homens na cabine e mais
uma dúzia na caçamba. Uthmann reservou alguns minutos para enfaixar o tornozelo de Adam e o próprio peito, usando o kit de primeiros socorros da caminhonete; depois
subiram a bordo e seguiram os rastros deixados pelo veículo de caça do xeique. De uma distância de cerca de um quilômetro e meio, viram as aves de rapina voando
em círculo no céu adiante, e Adam mandou o motorista se apressar até que chegaram ao cenário onde seu avô havia sido assassinado. O corpo jazia sobre a areia do
leito ressequido do rio. Metade do rosto do velho havia sido rasgado e devorado pelos pássaros, mas a barba saíra ilesa. Com dor, Adam desceu até a areia, e foi
mancando até se ajoelhar ao lado do corpo. Outros animais carniceiros, provavelmente um bando de chacais, tinham rasgado a barriga do xeique, e as entranhas já estavam
apodrecendo devido ao calor. O fedor era nauseante.

De maneira respeitosa, Adam pronunciou as orações tradicionais para os mortos, mas seu coração estava em júbilo. Os anos da tirania do avô haviam chegado ao fim,
e agora ele era indisputavelmente o xeique do clã Tippoo Tip. Fazia apenas quatro dias que o velho o tinha nomeado formalmente como seu sucessor na mesquita, na
presença do mullah e dos filhos. De agora em diante, ninguém ousaria questionar a reivindicação da chefia do clã por parte de Adam.

Quando encerrou as preces, ele se levantou e ordenou que os homens enrolassem o avô na lona e o colocassem na caçamba. Enxergou a veneração dirigida a ele nos olhos
e no comportamento dos homens que se apressaram em atender ao seu comando. Até mesmo a atitude de Uthmann havia mudado consideravelmente em razão da subida na hierarquia
e do grau de autoridade.

Uthmann havia revistado a área com cuidado enquanto Adam rezava. Encontrara os rastros deixados por Hector e o grupo de emboscada. Foi até onde Adam se encontrava
e explicou como era provável que os infiéis tivessem retornado do outro lado do wadi após a destruição do helicóptero e que, por uma infelicidade do destino, tinham
se deparado com o caminhão que levava o xeique a bordo. Tinham assassinado o velho e se apoderado do veículo.

- Quais são suas ordens, meu xeique? - perguntou.

A pronúncia do título foi um bálsamo para a alma de Adam, como um cachimbo de haxixe.

- Temos de seguir o veículo roubado do meu avô até termos certeza da direção seguida pelos infiéis. Somente então poderemos decidir o que tem de ser feito.

Uthmann arriscou repetir a sua opinião.

- Como já expliquei, conheço esse homem, Cross, bem o bastante para adivinhar o que ele vai fazer. Agora que roubou o veículo de caça, com certeza tentará alcançar
a costa, onde há um barco à espera dele.

- O que ele irá fazer se não conseguir escapar de barco? - Adam perguntou.

- Daí, a única rota de fuga disponível será a fronteira com a Etiópia.

- Vamos ver se você está certo. Mande os homens montarem no caminhão e irem atrás dele.

Deixaram os corpos dos guarda-costas para os chacais e os pássaros e seguiram os rastros do veículo menor. Logo encontraram o local onde Hector Cross havia parado.
Viram as pegadas do grupo onde haviam desembarcado. Apesar do peito ferido, Uthmann desceu para examinar os rastros e depois retornou para dar as informações a Adam.

- São nove pessoas, seis homens e três mulheres.

- Três mulheres? - Adam indagou. - Uma é minha prisioneira que escapou, mas quem são as outras duas?

- Acho que uma delas é a conhecida de Tariq que mostrou a Cross como entrar na fortaleza. A terceira e última chegou no helicóptero. Eu a vi apenas por alguns segundos
antes de disparar contra o RPG. O vislumbre que tive foi à distância e parcialmente obstruído pela fuselagem, por isso não posso ter certeza absoluta, mas acho que
a terceira mulher é a mãe da sua cativa. Eu a vi várias vezes em Sidi el Razig e estou quase certo de que é ela.

- Hazel Bannock! - Adam o encarou sem conseguir acreditar no tamanho de sua sorte. Ele agora não somente era o xeique do clã, como tinha uma das mulheres mais ricas
do mundo ao alcance da mão. Assim que conseguisse fisgá-la, ela o transformaria em um dos homens mais poderosos da Arábia e da África.

"Dezenas de bilhões de dólares e meu próprio exército me protegendo. Não existe nada que eu deseje que não seja capaz de obter." A imaginação dele se expandiu diante
de tal magnitude. "Assim que receber a quantia do resgate, vou proporcionar mortes extraordinárias a Hazel Bannock e à filha. Deixarei que todos os meus homens se
divirtam com elas. Elas serão curradas pelos dois orifícios, mil vezes pela frente e por trás. Se não conseguirem matá-las com seus paus, poderão usar as baionetas
nos mesmos buracos para liquidar o assunto. Vai ser divertido assistir. Vamos compartilhar tal deleite com o assassino, Hector Cross. Depois, vou ter de pensar em
algo original para ele. Vou acabar passando-o às velhas da tribo com suas faquinhas, mas, para começo de história, vários dos meus homens irão saboreá-lo por trás.
O ânus vai esticar até que seja possível andar a cavalo dentro dele. Para um homem como ele, a humilhação será maior do que a dor física." Adam esfregou as mãos
de contentamento. "Vou conseguir o pagamento e também liquidar a dívida de sangue da minha família." Ele falou em voz alta para o motorista:

- Retorne ao oásis!

E depois explicou a Uthmann:

- Tenho de enterrar o meu avô com todo o respeito que ele merece. Vou mandar uma mensagem pelo rádio ao meu tio Kamal para avisá-lo que os fugitivos tentarão escapar
de barco. No entanto, se Cross conseguir se safar de novo, irá com certeza tentar alcançar a fronteira etíope, e é lá que estaremos à sua espera.

 

 


CONTINUA