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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EM ALTO MAR
EM ALTO MAR

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Durante o restante do dia, eles seguiram para o leste. O percurso era difícil. Três vezes Hector se viu em um beco sem saída de ravinas intransponíveis, e eles tiveram
de retornar por vários quilômetros em busca de uma rota alternativa. Ao cair da noite, Hector não ousou acender os faróis, por medo de revelar seu posicionamento
a quaisquer perseguidores. Tiveram de esperar até que a lua estivesse alta no céu até que pudessem continuar a tatear o caminho em direção ao leste.

Hector calculava que ainda estavam a cerca de 32 quilômetros das praias do Golfo de Adem quando a sorte deles mudou dramaticamente para melhor. Chegaram a uma planície
de sal cuja superfície lisa se estendia, suave e cintilante ao luar, até onde a vista alcançava. Quando Hector começou a dirigir sobre ela, conseguiu diminuir a
velocidade pela primeira vez desde que tinham sequestrado o Mercedes. Partiram, com o velocímetro registrando 65 quilômetros por hora, em direção ao grande disco
prateado da lua, suspenso no céu diante deles. Tinham coberto pelo menos dezesseis quilômetros quando, sem o menor aviso, a crosta de sal que percorriam cedeu, e
o caminhão atolou até os eixos no lamaçal amarelo da traiçoeira areia movediça sob a superfície. Hector precisou de três horas de trabalho árduo para soltá-lo, usando
o macaco para suspender as rodas o suficiente para conseguir enfiar tufos de planta sal seca sob elas. Depois, enterrou um dos estepes preso à ponta do cabo de reboque,
para funcionar como âncora, e assim conseguiram guinchar o Mercedes, libertando-o das garras das areias movediças.

Foi apenas ao amanhecer do segundo dia, do alto dos morros acima da faixa costeira, que eles avistaram as águas azuladas do Golfo de Adem. Estavam no grande Chifre
da África, que parecia praticamente voltado para o Iêmen ao norte. Abaixo da cumeeira onde tinham estacionado, havia uma estrada de mão única, paralela ao mar. Logo
abaixo, estava a praia estreita de areias avermelhadas. As águas eram rasas e cristalinas como vidro, e Hector pode ver que um recife de corais formava uma barreira
a cem metros da praia. Teriam de avançar aquela distância para ir ao encontro do MTB. Estariam numa posição bastante vulnerável o tempo todo.

Enquanto olhavam para baixo, um único veículo passou ao longo da estrada costeira - um dos onipresentes ônibus africanos que cobriam todos os quilômetros das rodovias
que cruzavam o continente inteiro. O ônibus estava tão empoeirado que não havia nenhum sinal visível da pintura original. A montanha de bagagens dos passageiros,
incluindo cestos de galinhas vivas e diversos cocos, estava amarrada ao texto. O ruído do motor e das trocas de embreagem, do sacolejar da carroceria e do chassi
sobre a estrada cheia de sulcos, chegava claramente até eles, enquanto observavam do topo. Não houve nenhum tráfego em seguida, e Hector não conseguiu encontrar
evidências da presença inimiga. Ele acionou o telefone via satélite e ligou para Ronnie Wells.

- Estamos de frente para a praia, do outro lado das coordenadas que me passou. A que distância você está da costa?

- De acordo com o meu gráfico, estamos a quatro milhas náuticas da praia.

Hector usou os novos binóculos Nikon para examinar a extensão de mar aberto no posicionamento fornecido por Ronnie e de imediato avistou o conglomerado de ilhotas,
escuras como um bando de baleias, aproximadamente à distância e no local corretos.

- Câmbio, Ronnie! Acho que encontrei vocês. Quero que você lance um foguete de fumaça amarela para confirmar que estou olhando para o lugar certo.

- Ok, Heck. Espere um pouco. Vou precisar de alguns minutos para acionar o foguete.

Quando subiu, o foguete deixou um breve rastro amarelo no horizonte, que se dissipou quase imediatamente com o vento. Durou tão pouco que apenas um observador atento
teria visto. Hector sabia que tinha se arriscado, mas precisava ter certeza absoluta da localização antes de expôr seu grupo.

- Câmbio, Ronnie! A localização de vocês fica a quinze graus da nossa. Aproximem-se da praia em rumo recíproco.

- Você consegue avistar algum tipo de tráfego nos meus arredores, Heck?

- Há alguns pequenos barcos locais de pesca espalhados perto da costa onde você se encontra, mas todos parecem estar ancorados. Fora isso, consigo enxergar um grande
navio contêiner no horizonte, a vários quilômetros de distância de você. Nada fora do normal.

- Ok, Heck. Vou à velocidade máxima. Estejam preparados para embarcar depressa. Não queremos ficar enrolando na praia.

- Tenho de avisá-lo de mais uma coisa, Ronnie. Temos um traidor entre nós. Uthmann Waddah é um agente inimigo. Sabia do nosso encontro aqui. Ao primeiro sinal de
problemas, aborte a missão e fuja.

- Uthmann Waddah! É duro. Sei o que sente em relação a ele.

- O que eu sentia em relação a ele, Ronnie - passado. Vou matá-lo na próxima vez que nos encontrarmos. Já tentei uma vez, mas da próxima não vou errar.

- Positivo! Vejo você na praia.


Assim que foi avisado por Uthmann Waddah que Hector Cross poderia tentar escapar por mar, Kamal tirou todos os seus barcos de ataque do porto e os enviou para o
norte, onde foram estacionados em fila ao longo da faixa costeira mais próxima do Oásis do Milagre e da fortaleza. Essa era a via de fuga da Puntlândia que mais
provavelmente seria usada pelo infiel. Os barcos estavam ancorados a um quilômetro e meio da praia, e perfilados de modo que podiam enxergar uns aos outros, formando
uma corrente de observação de quase oitenta quilômetros de comprimento. Kamal tinha-se posicionado no centro da corrente, e foi ele quem avistou a efêmera trilha
de fumaça amarela no céu ao leste. Antes que a fumaça evaporasse, contatou a frota inteira de 23 barcos de ataque pelo rádio de ondas curtas e mandou que se agrupassem
próximos dele.

Na angra arenosa, três milhas náuticas mais distante da praia do que a emboscada de Kamal, Ronnie ordenou que a tripulação levantasse âncora de onde tinham permanecido
nas últimas 72 horas. Foi para a dianteira retirar a cobertura de lona das duas pesadas metralhadoras Browning, calibre .50, montadas na proa. Carregou as armas
e as moveu no sentido do bombordo e do estibordo para se certificar de que os suportes estavam desimpedidos. A seguir, voltou correndo para a cabina do MTB e ligou
os motores. Eles deram partida suavemente, e Ronnie acelerou até três mil rpm, desacelerando em seguida e voltando ao ponto morto, deixando a agulha do termômetro
dos motores chegar ao extremo do arco verde. Ele acenou para a tripulação no convés dianteiro, o gancho da âncora rangeu, com a corrente movendo sem problemas, e
a âncora veio a bordo, sendo depositada no convés de maneira segura. Marcus, o contramestre, fez um sinal de positivo, e Ronnie engatou a marcha à ré, manobrando
o barco até que ficasse com a proa voltada para a entrada da angra. Depois, acelerou ambos os motores, e eles partiram em direção ao mar aberto, virando rumo à praia
distante. Pelos binóculos, Hector pôde ver o rastro brilhante dos motores Rolls-Royce seguindo diretamente ao encontro dele.

- Lá vem o Ronnie! - disse a Hazel assim que teve certeza.

- Sorte na segunda vez - ela disse, e ele assentiu.

- Não podia ser diferente - concordou, mas as palavras causaram um certo alarme em sua mente.

"A primeira é a pior, a segunda não é melhor; a terceira, a melhor de todas." Tirou o ditado da cabeça e gritou para Tariq colocar todo mundo dentro do Mercedes.
Todos correram para obedecê-lo, e Hector foi para trás do volante e ligou a ignição. Olhou para o mar pela última vez para se certificar de que tudo estava correndo
bem e o que viu fez sua alma gelar. Hazel percebeu que a expressão dele havia mudado.

- O que foi, Hector? - perguntou alarmada.

- Nós desafiamos o destino, e o destino estava nos escutando - disse baixinho para não alarmar Cayla.

Apontou para o mar com o queixo. Ela viu imediatamente.

- Santa Maria, mãe de Deus! - sussurrou e segurou a mão dele em busca de conforto. O que eles pensaram que fossem pequenos barcos pesqueiros não eram nada disso.
A superfície do mar, que minutos antes fora perturbada apenas por uma leve brisa que vinha da praia, agora borbulhava como um caldeirão de sopa. O rastro prateado
das numerosas pequenas embarcações velozes desenhavam laços na superfície, cruzando-se em todas as direções, como os raios de uma roda convergindo em seu ponto central.
Movendo-se a uma velocidade menor, mas com as hélices muito mais turbinadas do que os demais, o MTB de Ronnie Wells era o ponto central de toda essa atividade violenta.
Hector desligou o motor do Mercedes e agarrou o telefone via satélite. O telefonou tocou uma vez no MTB, e Ronnie atendeu imediatamente.

- Hector? - indagou.

- Ronnie! Abortar missão! Abortar missão! - Hector gritou para ele. - Há barcos piratas vindo de todas as direções. É uma emboscada. É claro, Uthmann armou para
você. Saia daí! Está me escutando?

- Positivo! Prepare-se para meu famoso número de desaparecimento.

- Deixe a conexão do telefone aberta - Hector ordenou.

Ronnie deixou o receptor do aparelho cair sobre a mesa de navegação sem desligar. Agora Hector seria capaz de ouvir tudo que estivesse acontecendo a bordo do MTB.

- Segurem-se! - Ronnie gritou para a tripulação e virou o leme com toda a força. O grande barco girou violentamente no sentido contrário, desenhando um revés de
180 graus. Um dos homens estava despreparado e foi lançado de cabeça na braçola da escotilha. O crânio dele se partiu ruidosamente, e ele foi abatido como se tivesse
levado um tiro de revólver Magnum calibre .44 na cabeça.

Ronnie o ignorou e gritou para o contramestre:

- Marcus, vá para a frente e assuma as Brownings. Assim que tivermos um alvo, vou colocar você na direção dele. Atire em qualquer outro barco que vir. São todos
bandidos!

Ronnie estava olhando por sobre a esteira deixada pelo barco. Não conseguia enxergar nada, mas sabia que estavam ali, a um nível tão baixo na água que não eram visíveis
em meio as ondas, a não ser que estivessem a poucos metros de proximidade. Do gabinete embaixo da mesa de navegação, retirou uma submetralhadora Uzi e verificou
o pente antes de colocá-la no assento na altura de seus joelhos. Do mesmo armário, pegou algumas granadas M.67 de fósforo branco e colocou-as ao lado da Uzi SMG.

Olhou por sobre a popa e viu a cabeça e os ombros de um homem surgirem acima das ondas. Não conseguia enxergar o casco do barco abaixo dele, mas sabia que se tratava
do condutor do primeiro barco de ataque atrás dos controles, enquanto o resto da tripulação permanecia agachada na estiva. A distância entre os dois barcos se encurtava
a uma velocidade surpreendente. Ronnie pegou o telefone via satélite.

- Não vou conseguir escapar desta, Hector. Eles estão em vantagem - disse. - Preciso dar meia-volta e lutar. Vou pegá-los de surpresa.

- Foi para isso que você foi feito, seu velho cão marinho - Hector respondeu com leveza, mas o coração dele pesava no peito. - Infernize a vida deles, Ronnie!

- É uma pena que você não esteja aqui para participar da diversão - Ronnie soltou o telefone de novo, e Hector o escutou gritar para Marcus, que estava atrás das
duas metralhadoras. - Preparar!

Marcus indicou que estava preparado movendo o punho direito para cima e para baixo, e Ronnie virou completamente o leme. O MTB girou em seu eixo e retornou acelerando
à velocidade máxima. Os dois barcos corriam a uma velocidade conjunta de quase 160 quilômetros por hora. O barco árabe foi pego totalmente de surpresa. Antes que
a tripulação pudesse emergir do esconderijo sob a amurada, os projéteis luminosos das metralhadoras do MTB reduziram o casco do barco a farpas e raspas de madeira.
O barco perdeu o controle quase imediatamente e mergulhou de bico na onda seguinte.

- Que coisa agradável de assistir! - Ronnie riu, mas outros três barcos de ataque surgiram detrás das ondas e, ao se aproximarem mais, os tripulantes começaram a
disparar incessantemente no MTB com rifles de assalto.

A maioria dos disparos ou passava voando ou perfurava as ondas à frente do casco. Mas alguns estavam rasgando o MTB. O para-brisas de Ronnie se estilhaçou, e um
caco de vidro voou para a sua testa, fazendo o sangue escorrer até os olhos, mas ele se virou para ficar proa a proa com o barco mais próximo. Confiando em suas
dimensões maiores, tentou bater nele, mas o barco de ataque se desviou, e eles aceleraram lado a lado com apenas uma estreita faixa d'água separando-os. Ao passarem
um pelo outro, Ronnie atirou uma granada de fósforo no barco de ataque e se abaixou quando ele explodiu em um lençol ofuscante de chamas brancas. Dois dos tripulantes
árabes foram jogados para fora da embarcação, e o homem ao leme simplesmente desapareceu em meio à fumaça e a explosão.

Ronnie estava consumido pela adrenalina enlouquecedora da batalha, por um sentimento de euforia que não pode ser induzido por uma droga qualquer. Ele foi atrás do
barco seguinte e trombou nele com toda a força. A colisão destruiu a proa do MTB, mas ele esmagou o barco embaixo do dele derramando a tripulação no mar, onde eles
se debateram e afogaram.

Os barcos de ataque agora convergiam de todas as direções. Os tripulantes árabes gritavam "Allahu Akbar!" varriam o MTB com disparos automáticos a curta distância.
Marcus foi morto imediatamente pela rajada de uma AK e desabou sobre as Brownings, os dois canos girando aleatoriamente e cacos do rastreador jorrando pelo céu.
Um outro barco se chocou com a lateral, e um árabe barbudo de túnica arremessou um arpéu no convés - os ganchos se prenderam na amurada de madeira. Em alguns minutos,
outros seguiram o exemplo, e Ronnie estava arrastando uma míni flotilha atrás dele. Olhou ao redor e descobriu que era o único da tripulação que ainda estava vivo,
os corpos dos seus homens jaziam em posição de abandono em poças do próprio sangue. Miraculosamente, Ronnie saíra ileso à tempestade de disparos. Quando olhou para
trás, viu que uma gangue de árabes estava usando as cordas dos arpéus para puxar os barcos de ataque até a popa do MTB, e que se preparavam para subir ao convés.
Ele esvaziou a câmara da Uzi sobre eles, derrubando dois. Quando a câmara se esvaziou, soltou a arma e, travando o leme à direita, agarrou uma granada em cada mão.
Puxou os pinos das granadas com os dentes e começou a caminhar para a traseira para arremessá-las nos barcos de ataque na esteira do MTB. Mas, logo no segundo passo,
foi atingido na parte inferior do abdômen pela bala de uma AK. Ela atravessou os intestinos e saiu pela espinha, destroçando duas vértebras inferiores. Ele desabou
sobre as pernas, esparramando-se no convés. As pernas estavam paralisadas, mas ele usou os cotovelos para arrastar o corpo mutilado até o tanque auxiliar de combustível,
encostando-se encolhido contra ele, ainda agarrando as granadas contra o peito. Ele sentiu o baque dos cascos de meia dúzia de barcos de ataque atingindo as laterais
do MTB e ouviu o barulho dos diversos pés descalços da horda de piratas despejada a bordo, gritando e ululando em triunfo, os homens empurrando e se acotovelando
para serem os primeiros a tomar posse do prêmio. Um deles avistou Ronnie encolhido ao lado do tanque de combustível. Correu e se colocou diante dele, puxando a sua
cabeça para trás para cortar a garganta com uma adaga árabe. O golpe foi desajeitado e não acertou a jugular, mas escancarou a traqueia. Antes que o homem conseguisse
cortar a garganta mais uma vez, Ronnie rolou para o lado e segurou as duas granadas ao alto. O restante dos piratas avançava aos empurrões, rindo e gritando, mas
quando viram as granadas, recuaram consternados. Ronnie não estava sentindo dor, apenas uma grande injeção de adrenalina que o fazia sentir-se flutuar como um tapete
mágico. Compreendeu, de maneira vaga, que aquilo era o que sempre quisera - morrer com uma arma nas mãos e um inimigo o confrontando, não na enfermaria do Royal
Hospital em Chelsea. Riu deles, e o ar foi soprado para fora da traqueia dilacerada em uma névoa fina e cor-de-rosa. Queria fazer um comentário sarcástico a respeito
de chegar primeiro ao Paraíso e privá-los de suas setenta virgens, mas as cordas vocais estavam rompidas e ele não pôde pronunciar as palavras. Abriu as mãos e deixou
que as alavancas percussoras se soltassem.

O bando de piratas se dispersou e correu, uivando de terror, mas nenhum deles conseguiu alcançar os barcos ao lado antes que a explosão os consumisse em chamas.
Ronnie ainda estava rindo quando foi pego na dupla explosão e, logo depois, o tanque de combustível em que estava encostado explodiu e um pilar de chamas e fumaça
negra subiu pelos céus.

Hector, que estava observando pelos binóculos, sentiu a onda da explosão eriçar os seus cabelos e viu a torre de fumaça e o esplendor do fósforo incandescente, mais
brilhante que o sol sobre as ondas. Simultaneamente, o telefone via satélite em um dos bolsos de sua calça de sarja ficou mudo. Continuou a olhar pelas lentes por
mais alguns minutos até se recompor. A seguir, sentiu a mão de Hazel tocando seu braço.

- Sinto tanto, meu querido - era a primeira vez que ela usava esse termo carinhoso.

Ele abaixou os binóculos e se virou para ela.

- Obrigado pela sua compreensão. Mas aconteceu como Ronnie queria. Neste exato momento, ele provavelmente está zombando do destino - sacudiu de leve a cabeça, colocando
a tristeza de lado e gritando para Tariq. - Mande todo mundo voltar para o caminhão.

A seguir, virou-se para Hazel.

- Aquele foguete de fumaça foi um erro meu. Agora eles têm certeza de que estamos aqui e de que Ronnie estava nos enviando um sinal. Temos de nos mexer depressa.

Com todos a bordo do Mercedes, Hector virou na estrada costeira e acelerou ao longo da direção oposta ao covil dos piratas na Baía de Gandanga. Cobriram um percurso
de quase 25 quilômetros antes que Hector avistasse a poeira de um veículo desconhecido se aproximando, proveniente do norte. Rapidamente, saiu da estrada e estacionou
atrás de uma massa de espinheiros entortados pelo vento. Mandou que todos descessem e se sentassem atrás do caminhão camuflado pela camada espessa de poeira e de
areia movediça seca. Ele se agachou atrás do tronco de um dos espinheiros e observou um outro ônibus de viagem seguindo barulhento rumo ao sul, apagando os rastros
deles com eficácia, com os pneus duplos. Assim que sumiu de vista, tanto ele quanto Tariq cortaram um ramo de uma das árvores e retornaram ao local onde haviam deixado
a estrada. Voltaram ao caminhão estacionado, andando de costas e apagando cuidadosamente todos os vestígios de sua passagem sobre a superfície dura e ressecada pelo
calor, endireitando as folhas da grama áspera e amarronzada que tinham sido achatadas pelos pneus do caminhão.

Contentes por terem feito tudo o que podiam para se livrar da perseguição dos piratas que viriam procurá-los pela estrada, ele mandou que todos ocupassem seus assentos
no veículo e depois retornou pelo deserto, pelo mesmo caminho da ida, na direção do Oásis do Milagre e da fronteira etíope. Quando a escuridão desceu sobre eles
e não era mais seguro prosseguir, por receio de baterem em uma rocha ou em um dos wadis, Hector estacionou o Mercedes. Fizeram café sobre uma fogueira de mato seco,
cuidadosamente protegida, e beberam-no puro e sem açúcar, acompanhando as rações desidratadas de sobrevivência do exército. Todos estavam exaustos, então Hector
foi o primeiro a ficar de guarda. Todos os demais se jogaram no chão duro e dormiram quase imediatamente. Até mesmo Hazel, que era uma das mais duronas e determinadas
entre eles, sucumbiu afinal. Deitou-se com Cayla aninhada nos braços, ambas imóveis e silenciosas como estátuas. Quando o ar noturno se tornou mais frio, Hector
as cobriu com sua jaqueta - nenhuma das duas se mexeu um milímetro. Deixou que todos dormissem por uma hora após o nascer da lua. Quando finalmente os despertou
e despachou de volta para o caminhão, passou o volante a Tariq e deixou o vaivém e as sacudidelas do Mercedes sobre o terreno acidentado embalarem seu sono. Ele
dormiu sentado com as costas eretas no banco de caça, com os rifles carregados sobre o colo presos pela alça, pronto para uma resposta instantânea a qualquer ameaça.
Foi acordado por uma mudança no movimento do caminhão que, de repente, tornou-se mais suave, quando Tariq engatou uma marcha mais rápida, mudando o tom do motor.
Hector abriu os olhos e viu que estavam dirigindo mais depressa sobre uma trilha mais ou menos demarcada, mas fora das rodovias principais. Olhou para as estrelas
para se orientar. Orion caçava na porção oeste do céu com Sirius, seu cão, correndo na frente dele. A lua estava alta no céu. Ainda seguiam rumo ao oeste com os
faróis desligados, contando com a lua e o brilho da Via Láctea para iluminar o caminho. Verificou o relógio. Tinha dormido por quase três horas. Deviam estar se
aproximando das áreas mais férteis e populosas ao longo da rodovia principal. Inclinou-se para a frente e encostou no ombro de Tariq.

- Hora do intervalo - anunciou.

Tariq brecou, e todos desceram. As mulheres foram para trás do caminhão, os homens, para a frente. Ficando ombro a ombro com Tariq, disse a ele:

- Precisamos nos livrar deste veículo. Todos os homens, mulheres e crianças na Puntlândia estarão procurando por ele. Vamos solicitar outro. Depois, temos de encontrar
roupas apropriadas para podermos nos misturar com a população local. Você e a Daliyah são os únicos adequadamente vestidos.

Enquanto os dois conversavam, Cayla e Hazel vieram de trás do caminhão para se juntar a eles. Escutaram a conversa em árabe por um tempo, até que Hazel perdeu a
paciência.

- Do que se trata?

- Precisamos de outro meio de transporte. Tariq e eu estamos planejando sequestrar outro caminhão e depois arrumar disfarces apropriados, especialmente para você
e a Cayla.

- Sequestrar? - Hazel perguntou. - Isso significa matar mais inocentes desconhecidos?

- Se for preciso - Hector concordou.

- Isso não é muito humano nem discreto. Por que não envia Tariq e Daliyah até a cidade mais próxima para comprar um caminhão e o equipamento correto?

- Boa ideia - o luar revelou o sorriso de Hector. - Espere só um minuto enquanto roubo um banco.

- Você pode ser bastante obtuso às vezes, Hector Cross.

- A última pessoa que se dirigiu assim a mim foi meu professor de matemática no ensino secundário.

- Ele devia ser bastante perceptivo. Venha comigo.

Ela o levou até a parte de trás do caminhão e, assim que ficaram fora do alcance da vista dos outros, ela começou a desabotoar a camisa.

- Sra. Bannock, em qualquer outra ocasião essa seria uma ideia esplêndida.

Sem se deixar perturbar, Hazel tirou as pontas da camisa enfiadas de dentro da calça e ele viu a doleira amarrada ao redor da cintura dela, encostada confortavelmente
na barriga lisa. Ela desprendeu o fecho de velcro e entregou a doleira a Hector. Iluminou-a com a lanterna e depois pegou um dos maços de notas verdes de dólares
e o folheou rapidamente.

- Quanto você tem aqui? - perguntou em um tom espantado.

- Cerca de trinta mil. Às vezes acabam sendo bastante úteis.

- Hazel Bannock, você é uma maravilha!

- Até que enfim você percebeu. Talvez não seja tão obtuso quanto eu suspeitava - disse, e ele a agarrou e a beijou. - E está ficando cada vez mais esperto - a voz
dela era rouca. - Continuamos mais tarde, certo?

- Não podia estar mais correto.

Seguiram viagem, ainda sem acender os faróis, mais com cuidado conforme a claridade aumentava. Por fim, estavam percorrendo campos cultivados com milharais e, em
uma ocasião, passaram por alguns casebres escuros ao lado da trilha. Não havia sinal de vida a não ser pela fumaça de fogão a lenha que se insinuava para fora do
buraco em um dos tetos dos casebres. Logo depois disso, subiram por uma elevação e viram as luzes de um grande povoado no horizonte diante deles. Parte da iluminação
parecia elétrica em vez de gerada por lenha ou querosene, o que era sinal de uma civilização menos rudimentar. Eles pararam, e Hector protegeu o feixe da lanterna
com uma das mãos enquanto examinava o mapa.

- Esta cidade só pode ser Lascanood - ele apontou no mapa para Tariq. - Pergunte à Daliyah se ela conhece.

- Conheço. Já estive aqui antes com meu pai. Ele tem alguns parentes na cidade - Daliyah confirmou. - É a maior cidade da província de Nugaal.

- Qual é a distância até a Etiópia? - Hector perguntou, e ela pareceu envergonhada. Ela era uma garota simplória do interior, a resposta estava além de suas capacidades.

- Certo. Fica perto da sua casa, a um dia de caminhada?

- A dois, não, um - disse com convicção. Era óbvio que já tinha feito a viagem.

- Sabe se existe uma estrada nesta cidade para a Etiópia?

- Ouvi dizer que há uma estrada, mas que ninguém a utiliza no momento, não desde os problemas que tivemos com o país.

- Obrigado, Daliyah - ele se virou para Hazel. - Ela conhece a cidade e diz que há uma estrada para a fronteira, embora eu não tenha visto indicação no mapa. Aparentemente,
caiu em desuso, o que é ótimo para nós.

- O que vamos fazer agora, então? - Hazel perguntou.

- Encontramos um esconderijo durante o dia, e mando Tariq e Daliyah para a cidade comprar um ônibus, ou um caminhão, e as outras coisas de que precisamos - Hector
olhou novamente para Daliyah. - Você sabe se existe um wadi ou qualquer outro lugar nas proximidades onde possamos esconder o caminhão enquanto você e Tariq vão
até a cidade?

Ela pensou por um momento e então assentiu.

- Conheço um lugar - afirmou.

Ela estava sentada ao lado de Tariq, obviamente transbordando de orgulho por ter sido escolhida por Hector como guia, e apontou para o caminho com um ar de autoridade.
Momentos antes do amanhecer, eles desviaram da trilha em que estavam e seguiram por uma curta distância até uma conglomerado esparso de arbustos de acácia espinhosa.
No centro, havia um olho d'água, uma depressão rasa agora ressecada - no fundo, a lama endurecida pelo calor tinha rachaduras retangulares, onduladas nas extremidades.
As acácias formavam uma barreira ao redor por todos os lados.

- Aqui é onde eu e meu pai costumávamos acampar - disse Daliyah, apontando para as cinzas enegrecidas de uma fogueira na extremidade da clareira.

Todos desembarcaram, Tariq estacionou o caminhão embaixo das árvores, e eles cortaram alguns ramos para cobri-lo, ocultando-o de eventuais observadores. Hazel chamou
Hector para o lado, enquanto Tariq e Daliyah se preparavam para caminhar até a cidade.

- Devo dar o dinheiro para Tariq comprar o que precisamos?

- Dê cem dólares. É o suficiente para comprar os trajes típicos locais e comida. Estou cansado de rações desidratadas.

- E o transporte para chegarmos à fronteira? - Hazel perguntou. - Vai precisar de alguns milhares de dólares, não vai?

- Não. É tentação demais.

- Não confia nele?

- Depois do pequeno truque que o Uthmann aplicou em mim, não confio em ninguém. Tariq pode encontrar o transporte e até pechinchar o valor com o vendedor, mas eu
farei o pagamento.

Hector foi novamente até Tariq e entregou a ele os cem dólares em notas de pequeno valor. A seguir, Tariq e Daliyah partiram rumo à cidade. Daliyah permaneceu vinte
passos atrás dele, como uma boa esposa muçulmana. Assim que sumiram de vista, o restante do grupo se acomodou sob a proteção esparsa das árvores, à espera. Hector
acionou o telefone via satélite e, após duas ou três tentativas, finalmente fez contato com Paddy O'Quinn.

- Ronnie não sobreviveu - disse a Paddy. - Estavam à espera dele. Lutou bastante, mas no final ele foi desta para melhor.

- Queria colocar as mãos naquele animal do Uthmann Waddah - Paddy grunhiu. O momento não era para luto nem sentimentos.

- Entre na fila - Hector concordou.

- Onde você está agora, Heck?

- A caminho de onde você está. Estamos fazendo progresso, Paddy - disse. - Estamos escondidos perto de uma cidade chamada Lascanood. Está no seu mapa?

Houve uma breve pausa enquanto Paddy verificava.

- Certo. Encontrei. Porém, parece ficar a cerca de 110, 130 quilômetros de distância da fronteira.

- Consegue ver se há uma estrada sinalizada que o traria da sua localização para as nossas redondezas? - Hector perguntou.

Espere um minutinho. Ok, há uma rota indicada por uma linha pontilhada em vermelho, o que não é bom sinal. Normalmente significa que a existência da estrada está
sujeita a conjecturas e não fatos. De acordo com o mapa, junta-se à rodovia principal a 15 ou 25 quilômetros ao norte de Lascanood.

- Paddy, comece a seguir na nossa direção. Não, e eu vou repetir, não me ligue. É possível que eu esteja rodeado pelos caras do mal. Ligo de novo assim que estivermos
prontos.

- Positivo - Paddy concordou, e eles desligaram.


Faltavam duas horas para o meio-dia quando Tariq e Daliyah retornaram da cidade. Mais uma vez Daliyah o seguia a uma distância discreta, equilibrando uma enorme
trouxa na cabeça. Ao chegarem ao bosque das acácias, Tariq a ajudou a colocar a trouxa no chão, e todos se aglomeraram ao redor para ver o que Daliyah havia trazido.

Um grande punhado de espigas de milho e três carcaças raquíticas de frango receberam a prioridade. Foram imediatamente para o fogo. Enquanto grelhavam, os homens
tiraram os uniformes e equipamentos da Cross Bow, escolheram e vestiram as peças do traje típico de um jihadista - calças folgadas, colete preto e uma camisa branca
suja e amassada. Em seguida, enrolaram os turbantes pretos frouxamente na cabeça, provocando uma mudança imediata e convincente até mesmo em Hector Cross. Ele levou
Tariq para um canto e perguntou o que ele tinha descoberto no vilarejo.

- Hoje é sexta-feira, portanto há muita gente na cidade para ir à mesquita e assistir aos castigos públicos - Tariq disse.

- Claro. Tinha esquecido que dia era hoje. Mas isso não é ruim. Vamos passar mais despercebidos em uma grande multidão.

- Escutei um grupo de homens discutir a morte do xeique e a luta do deserto. O novo xeique é Adam Tippoo Tip, e ele estabeleceu uma recompensa de cinco mil dólares
pelas nossas cabeças.

Hector grunhiu. Era uma enorme quantia de dinheiro naquela parte do mundo, e ele se consciencizou de que haveria milhares de olhos à procura deles, na esperança
de recebê-la.

Enquanto conversavam, Daliyah levou Hazel e Cayla para trás do caminhão e mostrou a elas como vestir a abaya e a burca que as cobririam dos pés à cabeça. A mulher
ficava completamente coberta e via o mundo através de uma tela rendada. Daliyah fez Hazel e Cayla descartarem seus inconfundíveis sapatos ocidentais. Ambas calçaram
as sandálias de couro que ela havia comprado. Os homens ainda estava agachados em círculos, completamente concentrados no que estavam discutindo, então, assim que
terminaram de se vistir, Daliyah mostrou como pintar as mãos e os pés com hena vermelha. Isso obedecia os costumes locais e cobriria a pele clara das duas. Na roda
dos homens, Hector perguntou a Tariq se ele tinha conseguido encontrar um meio de transporte.

- Sim, encontrei um homem disposto a vender um ônibus com lotação para quarenta passageiros. Disse que está em boas condições, mas quer quinhentos dólares por ele.

- Isso é promissor. Se tivesse pedido cinquenta, ficaria um tanto preocupado. Ele deixou você ver o veículo?

Tariq balançou a cabeça.

- Daliyah o conhece e acha que ele é honesto. Ele diz que o filho vai levar o ônibus para a cidade esta tarde. Ele também tem tantas AK-47 quanto precisarmos e bastante
munição. Está pedindo cinquenta dólares por cada. Disse que precisávamos de seis - Tariq sorriu. - Acho que vai aceitar trezentos dólares pelo ônibus, mais duzentos
pelas armas e quinhentos em munição. De qualquer maneira, provavelmente não são russas, mas fabricadas aqui.

- E os canos manufaturados habilmente para explodir ao primeiro disparo e mandar a cabeça do orgulhoso dono pelos ares - Hector disse com um grunhido. - Mas não
podemos andar por aí carregando Berettas SC 70/90 com tecnologia de ponta, como estas - ele bateu na coronha do rifle que tinha no colo. - Temos de deixá-las enterradas
como contingência, e abandoná-las junto com o Mercedes quando formos embora.

Enquanto os homens conversavam, Daliyah deu um curso rápido para as duas mulheres sobre comportamento feminino diante da presença de estranhos, e Hector fez um resumo
para Hazel e Cayla antes de partirem rumo ao vilarejo.

- Caminhem pelo menos dez passos atrás do seu acompanhante masculino. Mantenham os rostos cobertos e o olhar voltado para baixo. Não falem. Finjam que simplesmente
não existem - sorriu para Cayla. - Exatamente como você sempre se comporta, srta. Bannock.

Ela levantou o capuz da burca e mostrou a língua. Hazel ficou admirada com a relação que os dois tinham estabelecido em tão pouco tempo. Era óbvio que Cayla já o
enxergava como uma figura paterna e, ao mesmo tempo, havia uma amizade verdadeira e tranquila crescendo entre eles.

"Mordo minha língua se ele não conseguir lidar com ela como ninguém conseguiu antes", ela ponderou. "Este homem é uma criatura de várias aptidões e virtudes." Observou
ambos com ternura, até que Hector voltou a atenção para ela.

- Hazel, não há muitas senhoras aqui no mato que usam relógios de ouro Patek Philippe. Esconda-o, por favor.

- Você está usando um Rolex Submariner - ela o desafiou.

Aqui no mato, qualquer homem que se preze tem um genuíno Rolex falso feito em Bangladesh, vendido a vinte e cinco dólares no bazar mais próximo. Impossível distingui-los
dos originais. Como você mesma comentou, eu me adapto com facilidade.

Quando partiram para a cidade, Tariq assumiu a liderança e os outros homens o seguiram de perto. Hector caminhava no meio do grupo para não atrair uma atenção indesejada
sobre ele. Tinha usado um pedaço de carvão para escurecer a barba, mas ainda mantinha a parte inferior do rosto coberta. As três mulheres os seguiam em uma atitude
de decoro. A periferia do vilarejo estava quase deserta a não ser por alguns vira-latas deitados na sombra e criancinhas de pele escura brincando nas montanhas de
lixo que entupiam as ruas estreitas. Mas quando se aproximaram do centro, as multidões começaram a se aglomerar ao redor deles, que caminhavam trombando e empurrando
uns aos outros. Não demorou e se viram sendo levados pela turba, e Hector ficou preocupado que as mulheres se separassem dele ou umas das outras. Olhou para trás
discretamente e ficou aliviado ao ver que Hazel os tinha feito dar as mãos para o grupo permanecer unido. Alcançaram a entrada para uma ruela lateral, e Hector suspirou
para Tariq seguir essa rota e diminuir a pressão sobre eles. Mas quando tentaram abandonar a torrente humana, foram quase imediatamente bloqueados por homens de
milícia de rifles em punho, que gritaram e os empurraram de volta à multidão.

- Castigos públicos na praça em frente à mesquita. Todos têm de estar presentes para testemunhar.

- Não esperava por isso - Hector ficou horrorizado quando se conscientizou do efeito que aquilo podia ter sobre Hazel e Cayla, caso fossem forçadas a assistir aos
horrores da extremista lei Sharia na prática. - Tenho de avisá-las.

Ele abriu caminho através da turba até que estivesse alguns passos atrás de Hazel. Diminuiu o tom da voz, esperando que os murmúrios das conversas em árabe que os
rodeavam por todos os lados encobrisse o fato de que ele estava falando em inglês.

- Não se vire para olhar para mim, meu amor. Confirme com um aceno de cabeça se me entender.

Ela assentiu.

- Vamos ser forçados a assistir algo tão horrível que não pode ser descrito em palavras. Você tem de ser forte. Tome conta da Cayla. Ela tem de se esforçar para
não mostrar nenhum sinal de angústia. Não deve gritar em protesto nem atrair qualquer tipo de atenção. Mande-a fechar os olhos e cobrir o rosto com o véu, mas tem
de permanecer quieta e parada. Entendeu? - Hazel assentiu de novo, mas com menos convicção.

Ele queria abraçá-la, ou pelo menos apertar a sua mão, mas foi embora para se juntar aos seus homens.

A multidão desembocava em uma praça cheia de pó, em frente a uma mesquita pintada de verde, sem dúvida, o maior edifício da cidade. Ao adentrar a praça, os religiosos
guardiães armados separaram os homens das mulheres. Os homens se agacharam nas fileiras da frente, voltadas para o chão esturricado do pátio central. As mulheres
foram conduzidas para as fileiras do fundo, onde se ajoelharam e, cuidadosamente, cobriram os rostos. Um jihadista robusto e barrigudo, de barba preta encaracolada,
desfilava para cima e para baixo na frente deles, e os incitava com discursos bombásticos através de um megafone. A voz dele retumbava e ecoava dos muros, o que
a tornava quase ininteligível. A poeira vermelha era levantada pelo vaivém das sandálias, e os prédios ao redor impediam que o calor se dissipasse. Enormes moscas
varejeiras pousavam em tudo, caminhando sobre os rostos e tentando invadir a bocas e os olhos da multidão. Uma mulher em estágio avançado de gravidez, caminhando
logo adiante de Hector, cambaleou, desmaiou e caiu. Os guardiães a arrastaram e a recostaram na parede mais próxima, entre as mulheres. Não iriam permitir que ela
incomodasse o marido e que ele fosse até as fileiras de mulheres sentadas em seu socorro.

Agrupar a população inteira da cidade e do distrito ao redor nas fileiras segregadas levou quase duas horas, e somente então a aplicação dos castigos pôde ser iniciada.
Afinal, acompanhado de quatro sacerdotes de menor escalão, o mullah emergiu da mesquita e assumiu o megafone do jihadista principal, dirigindo-se aos espectadores
a altos brados.

- Em nome de Alá, o Mais Gracioso, o Mais Misericordioso - declamou, a voz amplificada retumbando por toda a praça. - Todos os louvores e agradecimentos Lhe são
devidos, e a paz e as bênçãos recaem sobre o seu Mensageiro. Meus irmãos no Islã, estamos reunidos aqui para testemunhar os castigos aplicados em nome de Alá, e
pelo poder das leis sagradas da Sharia. Que todos os possuidores da virtude estejam cientes de Sua justiça e misericórdia, que os pecadores fiquem atentos.

O primeiro criminoso foi arrastado para a frente por dois jihadistas. Era um menino faminto de cerca de oito anos de idade, vestindo apenas um pano em torno dos
quadris. Os membros dele eram finos como uma espiga de milho, e as costelas se destacavam contra a pele empoeirada. Estava soluçando e tentava se desvencilhar dos
guardas. As lágrimas eram como riachos abrindo caminho sobre o pó e a sujeira que lhe cobriam o rosto. O mullah o apresentou à multidão.

- Este patife roubou um pão de uma das barracas do mercado. O Corão nos instruiu que a punição para quem rouba é a amputação dos braços.

A multidão demonstrou aprovação com gritos de "Deus é grande!" e "Não existe nenhum outro deus a não ser Deus!".

O mullah ergueu a mão para silenciá-los e então prosseguiu com a diatribe:

- Alá, em sua sabedoria e compaixão, decretou que o castigo da amputação pode ser mitigado em certas circunstâncias. Após um elucidativo debate com meus companheiros,
decidimos que, neste caso, os braços não devem ser cortados completamente.

Ele gritou uma ordem para os sentinelas da mesquita e, após uma certa demora, um deles dirigiu um basculante de quatro toneladas até a praça. O veículo estava carregado
com uma grande pilha de pedras cinzentas, cada uma do tamanho de uma bola de beisebol. Ao vê-lo, a criança soltou um lamento estridente e, fazendo um grande barulho,
defecou no pano já imundo. A multidão urrou às gargalhadas ao ver a extensão do seu terror.

Os guardas deitaram o menino, que se debatia, de barriga para baixo, e dois deles o prenderam ao chão enquanto um terceiro deu um nó com tiras de couro cru em torno
de seus pulsos, puxando ambos os braços para a frente, esticando-o. O mullah fez um sinal para o motorista do caminhão, e ele deslizou o veículo devagar na direção
da figura prostrada do menino. Um outro jihadista gesticulou para orientar o motorista, até que a roda da frente desimpedida ficou alinhada com os cotovelos dos
braços esticados do menino, e o motorista moveu o veículo adiante.

O corpo inteiro do menino se convulsionou, e ele guinchou como um leitão ao ter a garganta cortada, mas o som de sua agonia não pôde abafar o barulho dos ossos se
quebrando quando ambos os braços foram esmagados pelo pneu do pesado caminhão. Os guardiães o soltaram, mas a criança permaneceu deitada, torturada pelas convulsões
que contorciam seu corpo inteiro. Um dos homens o levantou e o empurrou em direção a uma ruela lateral. O menino não tinha mais o controle dos braços, e eles balançavam
ao longo do corpo. Ao sair cambaleando no sentido da ruela, os membros do menino se mostraram grotescamente alongados, uma vez que os músculos não estavam mais ligados
pelos ossos estendidos e os dedos pareciam quase se arrastar pelo chão.

- Alá, em sua sabedoria e misericórdia, poupou os braços do ladrão - o mullah entoou em voz alta.

Os espectadores gritaram em coro:

- Alá é misericordioso! Alá é grande!

Os próximos criminosos foram conduzidos à praça de braços amarrados para trás com cordas de couro cru. Eram dois homens, um deles de meia-idade, mas o outro era
um jovem de beleza sem igual, de andar gracioso e afeminado. Um carrasco caminhava atrás de cada um dos prisioneiros. Carregavam cimitarras árabes de lâminas curvas
empunhadas para a frente.

- Estas criaturas inferiores são culpadas do crime mais perverso e antinatural contra Deus e todos os seus devotos seguidores - gritou o mullah. - Cometeram o vil
pecado de Ló, unindo-se como homem e mulher, um com o outro. Quatro testemunhas de respeito e confiança confirmaram o pecado cometido. A sentença deste tribunal
de Sharia é que ambos sejam mortos por decapitação.

A multidão que assistia gritou em aprovação e louvou Alá por sua sabedoria e por protegê-los do mal.

No centro da praça, os dois prisioneiros foram forçados a se ajoelhar frente a frente para que pudessem olhar um para o rosto do outro para que neles reconhecessem
a culpa. A multidão estava imóvel e tensa de ansiedade. Olhando para o rosto do amante, o jovem gritou em voz alta, ecoando pela praça:

- Meu amor por você supera meu amor por Alá!

O mullah gritou como um touro ferido:

- Golpeie! Golpeie a cabeça do blasfemador!

O carrasco diante dele ergueu a cimitarra com ambas as mãos e, seguindo a trajetória de um arco, desferiu um golpe fulgurante. A cabeça do jovem foi arrancada dos
ombros e, por um momento, uma fonte escarlate jorrou do pescoço cortado. A seguir, o corpo sem cabeça caiu para a frente. O homem mais velho uivou de dor e se jogou
sobre o corpo do amante. Dois guardiães o seguraram pelos ombros e o ergueram, deixando-o de novo de joelhos.

- Acerte-o! - gritou o mullah.

O carrasco fez um movimento giratório com a lâmina, e o homem decapitado caiu de frente sobre o outro corpo, unido na morte a seu amante. Os espectadores gritaram
animados e exaltaram o nome de Alá e de seu Mensageiro. Algumas mulheres sucumbiram ao calor e às fortes emoções causadas pela violência, desmaiando onde estavam
sentadas. Teriam de se recompôr sem o socorro ou a intervenção de nenhum membro da multidão. Hector olhou em volta e viu que Cayla estava entre aquelas que pareciam
não ter resistido. Ele desconfiava que Hazel tinha mandado a filha fingir que estava desacordada para poupá-la de presenciar ainda mais horrores.

A última pessoa a entrar na arena das punições foi uma mulher. Devido à longa abaya e ao véu negro, ficava difícil imaginar quanto anos teria, porém, sob a túnica,
ela se movia como uma menina, ágil e flexível. Ela se ajoelhou diante do mullah e abaixou a cabeça numa postura de total resignação.

- Esta mulher casada é acusada pelo marido, e por mais quatro testemunhas confiáveis, do pecado mortal do adultério. Seu cúmplice admitiu a culpa e já foi açoitado
cem vezes com uma vara pesada. O tribunal da Sharia, em sua sabedoria infalível, conferida aos seus membros por Alá e o seu Mensageiro, condenou esta mulher à morte
por apedrejamento.

O mullah gesticulou para que um dos guardiães da mesquita e, de novo, o basculante, se aproximassem. O veículo dirigiu devagar ao longo do perímetro da praça, parando
quatro vezes para suspender a plataforma de carga e depositar uma pilha de pedras na frente da multidão. As pedras haviam sido cuidadosamente escolhidas de acordo
com os ditames da lei da Sharia. Não podiam ser pedregulhos, incapazes de infligir ferimentos graves; tampouco grandes demais e assim matarem a culpada com um único
golpe na cabeça. Lutando pela melhor posição, os homens avançaram com entusiasmo das fileiras da frente para escolherem seus mísseis, jogando-os para cima e para
baixo nas palmas das mãos para avaliar o peso e equilíbrio. Por questões de costume, Hector foi forçado a participar, mas sentiu o vômito na garganta ao se abaixar
para pegar um par de pedras. No centro da praça, um buraco já havia sido cavado, largo o suficiente para receber os quadris da mulher, e profundo o bastante para
acomodar o corpo até a altura da cintura. A terra que fora removida estava empilhada ao lado do buraco. Quando todos os preparativos para a execução foram completados,
os guardiães forçaram a acusada a se deitar com o rosto no chão. Em seguida, trouxeram um grande rolo de algodão branco do caminhão e, começando pelos pés, enrolaram-na
no pano como se fosse um corpo numa mortalha. Ao terminarem, ela foi coberta das solas dos pés até o topo da cabeça. Dois guardiães a levantaram e carregaram até
o buraco e, juntos, começando pelos pés, baixaram a mulher até o fundo. Ela agora estava de pé em posição ereta, com a parte superior do corpo exposta. Os guardiães
se apoderaram das pás que estavam enfiadas na pilha ao lado com o cabo para cima, e jogaram terra no buraco, ao redor da parte inferior do corpo da mulher, batendo
nela com os pés para que ficasse firme. A mulher agora estava quase completamente imobilizada. Podia girar o torso de um lado para o outro e reclinar a cabeça enfaixada
para a frente, mas seus movimentos se limitavam a isso.

Enquanto esperavam pelo sinal do mullah, os homens acariciavam as pedras, rindo e conversando com os companheiros, apostando quem seria o primeiro a acertar a cabeça
da condenada. O mullah recitou uma breve oração, pedindo a bênção de Alá para a empreitada, e citando novamente a culpa comprovada da mulher.

O marido da acusada veio à frente para reivindicar a honra de arremessar a primeira pedra na esposa indefesa. O mullah deu sua bênção ao homem e o confiou à aprovação
de Alá, gritando a seguir através do megafone:

- Cumpram seu dever perante à lei.

O marido se colocou a postos e fez a pontaria com a pedra na mão direita, arremessando-a a seguir com o impulso tomado com o braço e o corpo inteiro. Acertou um
dos ombros da mulher, que deu um grito estridente e angustiado. Os homens atrás dele gritaram e ulularam de prazer; depois, cada um lançou a pedra que tinha em mãos
e, antes mesmo de acertar ou errar o alvo, abaixavam-se para pegar a próxima da pilha. O ar foi preenchido por pedras voadoras e, a princípio, a maioria não atingiu
o alvo. Uma ou duas acertaram o corpo da mulher, fazendo-a berrar devido ao impacto e à dor, fazendo movimentos cegos e vãos na tentativa de se desviar dos projéteis
afiados. Finalmente um deles atingiu a cabeça. O golpe atingiu a testa dela em cheio, a força fazendo a cabeça ser lançada para trás. Quase imediatamente o vermelho
vivo do sangue se derramou no algodão branco. A cabeça da mulher se dobrou para a frente, sobre o pescoço, como uma flor murcha em seu caule. Ela foi atingida novamente,
dessa vez nas têmporas, e a cabeça caiu para o outro lado. Logo já não havia mais sinal de vida, mas as pedras voadoras continuavam a bater e golpear o corpo inerte
da mulher.

Por fim, o mullah fez os agradecimentos a Alá por tê-los guiado em seus deveres sagrados, e ele e os outros sacerdotes se recolheram à mesquita verde. Os homens
atiraram as últimas pedras que ainda carregavam, e a multidão começou a dispersar-se e, solitariamente ou em pequenos grupos, a afastar-se em meio a conversas animadas.
Alguns moleques travessos se agruparam ao redor do corpo semienterrado da mulher e, de frente, atiraram mais pedras na cabeça destroçada, dando gargalhadas histéricas
toda vez que um deles conseguia atingi-la.

- Podemos ir agora - Hector disse a Tariq em voz baixa, eles se levantaram e se juntaram aos espectadores que se afastavam da praça. Hector olhou para trás uma única
vez, para se certificar de que Hazel e as outras mulheres os seguiam. Tariq os conduziu através do bazar em que os comerciantes estavam mais uma vez espalhando suas
mercadorias sobre a terra empoeirada. Após a distração oferecida pelas punições, a cidade retornava à vida normal como se nada fora do comum tivesse acontecido.
No lado oposto ao bazar, estava o imenso espaço aberto que servia tanto de rodoviária para ônibus de viagem e caminhões, como de caravançará para os passageiros
e viajantes. Eles estavam acampados ao ar livre, reunidos ao redor de dezenas de fogueiras fumegantes onde cozinhavam, ou dos poços cavados no centro.

Tariq comprou um feixe de lenha de um dos vendedores, e uma cabeça e algumas canelas de carneiro ensanguentadas. Daliyah ficou com as demais mulheres na fila para
recolher água do poço. Eles se reuniram em círculo ao redor do fogo assim que ele começou a arder, e observaram os ossos de carneiro serem grelhados. Como não se
tratava de uma reunião pública, mas sim de família, Hazel e Cayla podiam se sentar logo atrás de Hector, vestindo as burcas. Estavam caladas e desanimadas pela apresentação
grotesca que tinham sido forçadas a testemunhar. Hazel foi a primeira a falar.

- Disse à Cayla para não olhar. Graças a Deus outras mulheres também sucumbiram, o que a fez não chamar atenção. Queria não ter assistido. É algo que jamais vou
esquecer. Aquelas pessoas não são humanas. Nem mesmo em meus piores pesadelos eu conseguiria imaginar coisas tão terríveis como a que fizeram com Cayla e aqueles
outros pobres coitados. Pensei que o Islã fosse uma religião de gentileza, amor e perdão. Jamais essa orgia monstruosa de intolerância e brutalidade que testemunhamos
hoje.

- O cristianismo medieval era também selvagem e barbárico - Hector apontou. - Basta olhar para as cruzadas e a inquisição espanhola, ou para as várias guerras e
perseguições perpetradas em nome de Jesus Cristo.

- Mas as coisas não são mais assim - Hazel protestou.

- Algumas seitas cristãs ainda são bastante reacionárias no modo como pensam, mas, em grande parte, você está certa. O cristianismo moderno em geral evoluiu para
algo muito mais suave e humano, próximo ao judaísmo, budismo e xintoísmo. Do mesmo modo, a maioria dos muçulmanos racionais adaptaram e moderaram a sua filosofia.
Hoje em dia, tanto o cristianismo como o Islã são religiões nobres e decentes.

- Então, como é que aberrações do tipo que testemunhamos hoje podem ainda ser perpetradas? - Hector pôde ver que os olhos de Hazel estavam marejados e que ela piscava
para afastar as lágrimas.

- Se um punhado de padres da Sagrada Igreja Católica usa o seu poder para sodomizar crianças pequenas, isso torna o cristianismo um mal? - ele perguntou. - Se alguns
poucos imbecis, cegamente fanáticos como o mullah que orquestrou a selvageria de hoje, permanecem presos à filosofia e aos ensinamentos brutais do século VI, isso
faz do Islã um mal? É claro que não.

- Não, tenho de concordar com você. Mas esses poucos extremistas são capazes de influenciar as massas ingênuas e criar uma atmosfera de tamanha brutalidade que o
tipo de horrores que vimos hoje, e de tratamento a que Cayla foi submetida, se tornam lugar-comum - a voz de Hazel estremeceu, e Hector a interrompeu.

- Querida, nem todos os muçulmanos são terroristas.

- Eu sei. Mas eu me oporei a essa extrema lei da Sharia com todo meu poder e até minha última gota de sangue.

- Assim como eu e todos os homens e mulheres iluminados de qualquer raça e religião, incluindo o Islã. Mas você tem consciência, meu amor, de que talvez tenha de
rever parte do código e da doutrina que expressou durante nosso primeiro encontro?

- Você quer dizer a parte em que o chamei de racista sanguinolento? - ela perguntou, e ele sabia, pelo tom de voz detrás daquele véu, que ela estava sorrindo em
meio às lágrimas, provavelmente pela primeira vez desde que tinham entrado no vilarejo.

- Isso já seria um bom começo - ele retribuiu o sorriso.

- Você está atrasado, Cross. Aquela opinião foi revista já faz algum tempo.

Nesse momento, Tariq retornou e se agachou ao lado de Hector.

- O homem sobre o qual falamos trouxe o ônibus e as armas para você dar uma olhada.


O ônibus estava estacionado em meio a dezenas de outros no outro lado do acampamento. Era um robusto TATA, fabricado na Índia muitos anos antes. Era praticamente
indistinguível de qualquer outro ônibus estacionado ao redor, exceto por não estar abarrotado de bens e pertences de passageiros. Tariq apresentou Hector ao dono.
Após cumprirem o elaborado ritual de saudação, Hector andou ao redor do ônibus. Faltava uma janela, e três estavam com os vidros quebrados. Hector se ajoelhou para
olhar embaixo do motor. Óleo escuro pingava da árvore de manivelas, mas não em quantidades copiosas. O capô do motor estava preso com arames de aço. Hector o abriu
e verificou os níveis de óleo com a sonda. Estava quase cheio, assim como o radiador - claramente reabastecido por causa dele. Ele subiu no banco do motorista e
destravou o bloqueador de injeção de combustível. Em seguida, girou a chave de ignição para que esquentasse e esperou que a luz se acendesse no painel, para depois
dar partida. O motor engasgou preguiçosamente, mas não funcionou. O dono o tinha seguido até a cabine do motorista.

- Se me permite, mestre?

Hector ofereceu o assento a ele. O dono deu início a uma rotina ensaiada com o acelerador e a chave de ignição. O motor finalmente deu partida, perdeu a força e
soltou fumaça antes de morrer de novo. Sem se perturbar, o dono repetiu o procedimento e, afinal, o motor deu partida de um jeito mais convincente, quase morreu,
perdeu a força de novo, e então funcionou e roncou com força. O dono deu um sorriso triunfante. Hector o cumprimentou e deu mais uma volta ao redor do veículo. Uma
fumaça azul saía do escapamento, e água pingava do mesmo cano.

"Roldana rachada", Hector pensou, e quando abriu o capô de novo, houve um estalo barulhento em um dos cilindros. "Para um ônibus africano, está quase em condições
impecáveis. Deve dar ainda para algumas centenas de quilômetros, que é tudo de que preciso."

A seguir, fitou o dono nos olhos e perguntou:

- Quanto?

- Quinhentos dólares americanos - o homem respondeu com gentileza.

- Duzentos e cinquenta - Hector replicou, e o homem se lamentou e franziu o cenho como se Hector tivesse insultado seu pai e sua mãe.

- Quinhentos - insistiu, e então permitiu ser vencido lentamente até chegarem ao valor de trezentos dólares que ambos tinham em mente desde o princípio. Eles cuspiram
nas palmas e bateram uma mão na mão do outro para selar o contrato. Depois, subiram no ônibus e andaram pelo corredor entre os assentos até um compartimento de madeira
na traseira. O dono abriu a tampa e, com um floreio, apresentou o conteúdo: seis rifles de assalto AK-47 e quinhentas balas. As coronhas de madeira dos rifles estavam
lascadas e arranhadas, e o tom azulado tinha descascado de todos os relevos do metal, e quando Hector olhou para dentro do tubo de uma das câmaras, viu que estava
tão desgastada que não permitiria um disparo preciso a qualquer distância superior a cinquenta metros. Hector e o homem concordaram que cada um sairia por 25 dólares.
Depois de se despedirem com sinceras demonstrações de mais profundo respeito, o vendedor entregou a documentação do ônibus e mencionou, quase como um pensamento
de última hora, que a milícia jihadista local estava à procura de uma gangue de criminosos infiéis que tinham assassinado o velho xeique e roubado um de seus veículos.
Ele deu a impressão de que não lamentava muito o falecimento do velho xeique. Ele prosseguiu acrescentando que havia poucas horas o veículo roubado tinha sido encontrado
não muito longe da cidade. O novo xeique, que Alá lhe concedesse longevidade e sabedoria, declarara o toque de recolher e emitido um alerta dizendo que qualquer
tráfego nas rodovias entre o pôr do sol e o amanhecer, ou que se negasse a parar diante de um bloqueio na estrada, seria metralhado.

- Achei que devia avisá-lo - o homem deu de ombros com um ar de indiferença.

- Obrigado, irmão - Hector disse, e adicionou uma nota de cem dólares ao maço de dinheiro que tinha trocado de mãos. Assim que o homem foi embora, ele se virou para
Tariq.

- Agora precisamos de passageiros para encher o ônibus. Se não houver bagagens empilhadas no teto e apenas nove de nós sentados como se estivéssemos viajando de
primeira classe, ninguém vai acreditar por um momento sequer que somos peregrinos rumo a Meca.


A essa altura, o sol havia se posto, e Tariq saiu perambulando pelo acampamento na tentativa de conseguir lotar o ônibus de passageiros, oferecendo tarifas a grandes
descontos até Bebera no litoral. As três mulheres e todos os homens de Hector subiram a bordo e dormiram em seus assentos para assim reservá-los. Os outros foram
preenchidos rapidamente, e uma hora antes do amanhecer, havia lugares de pé apenas no interior, com meia dúzia de passageiros tardios se agarrando precariamente
à montanha de bagagens amarradas ao bagageiro do teto. A suspensão do ônibus estava bastante abaixada devido ao peso da carga. Hazel, Cayla e Daliyah estavam espremidas
no banco no fundo do ônibus. Cayla tinha seu lugar na janela sem vidro. Daliyah se sentou entre elas para dar conta de quaisquer perguntas que pudessem ser dirigidas
a elas quando chegassem aos bloqueios nas estradas.

Cayla se inclinou por sobre Daliyah para sussurrar à mãe:

- Pelo menos vou respirar um pouco de ar puro. O fedor aqui é de chorar.

Hazel estava metade submersa sob o volume esparramado de uma senhora extremamente gorda que ocupava o assento ao lado, equilibrando uma cesta de peixe seco no colo
abundante. O peixe era apenas semicurado, e o cheiro competia fortemente com os odores corporais da própria senhora. Hector se sentou no chão de pernas cruzadas
no meio do corredor, com uma pilha de bagagens à sua frente e o antigo rifle AK atravessado no colo. Qualquer um que tentasse ir até onde as mulheres estavam sentadas,
seria forçado a escalar tanto Hector como a bagagem. Tariq era o motorista. Se fosse interrogado em um dos bloqueios na estrada, exibiria o autêntico sotaque da
Puntlândia. Os quatro agentes restantes da Cross Bow tinham sido estrategicamente posicionados por Hector para se, caso houvesse uma emergência, pudessem cobrir
e defender todo o interior do veículo.

Com o amanhecer e o surgimento do domo avermelhado do sol detrás das montanhas, os catorze ônibus que tinham sido forçados a obedecer o toque de recolher e passar
a noite no acampamento ligaram os motores e começaram a buzinar para reunir seus passageiros. Formaram um longo comboio e, com os ocupantes recitando preces e suplicando
em voz alta que Alá os protegesse, seguiram viagem pela rodovia principal em direção ao norte. Tariq tinha conseguido empurrar o ônibus para o meio da fila.

- Não queremos ser os primeiros nem os últimos - sugeriu a Hector. - Esses irão receber uma atenção redobrada.

Um quilômetro e meio depois de deixarem a cidade, depararam-se com o primeiro bloqueio, formado por dez jihadistas. O comboio ficou parado enquanto o motorista e
os passageiros do primeiro ônibus foram forçados, com armas apontadas, a descer e descarregar a bagagem na estrada. Hector foi para a frente e se agachou para observar
o procedimento de revista. Demorou quase meia hora até que o primeiro caminhão tivesse permissão de prosseguir. O segundo levou metade do tempo. Alguns homens eram
obrigados a descer, e um deles, sem motivo aparente, levou uma coronhada de rifle e perdeu a consciência, sendo jogado na traseira do caminhão estacionado à beira
da estrada. Quando chegou a vez do quinto ônibus, os homens da milícia tinham obviamente perdido o interesse no negócio. Três dos homens subiram a bordo, e o restante
contornou o ônibus, espiando os passageiros amedrontados através das janelas.

- Aquele é o líder - Hector apontou com a cabeça para um homem alto com uma barba enorme, descendo do ônibus enquanto enfiava alguma coisa para dentro da faixa ao
redor da cintura, para depois acenar para que o motorista seguisse em frente.

- Quanto, você acha?

- Dez dólares? - Tariq tentou adivinhar.

- Deve ser o suficiente. Tente com essa quantia.

Tariq assentiu, e Hector voltou a se sentar no chão atrás da barreira do bagageiro. Eles afinal foram chamados pelos jihadistas, que brandiram habilmente as armas
e gritaram de maneira ameaçadora. O chefe do grupo de revista, novamente o primeiro a bordo, se debruçou sobre Tariq. De onde estava, Hector foi capaz de sentir
o hálito de arak. A entrega da nota de dez dólares foi tão discreta quanto um truque de mágica, e o jihadista endireitou as costas e foi até onde Hector estava bloqueando
o corredor. Ele apontou o rifle para o rosto de Hector.

- Quem é você e para onde está indo? - perguntou.

- Sou Suleiman Baghdadi. Vou até Berbera pegar a balsa até Jedá para fazer a peregrinação até Meca.

- Você fala como um porco saudita - o insulto do homem foi gratuito, mas sem rancor, e ele olhou para trás, para a senhora robusta no banco do fundo. Ele balançou
a cabeça e riu dela sem motivo. Ele então virou e caminhou ao longo do corredor até a porta e saltou para fora. Ele gritou para Tariq, que saiu dirigindo. Foram
parados duas vezes mais antes de cobrirem os 25 quilômetros até um minúsculo conjunto disperso de cabanas à beira da estrada. Na curva da estrada, havia algumas
mulheres idosas agachadas sob um anteparo de palha vendendo amendoins, inhame e cachos de banana da terra aos viajantes de passagem. Tariq parou o ônibus, e a maioria
dos passageiros desceu para comprar os produtos das mulheres idosas. Tariq comprou uma porção de amendoim torrado e deu uma gorjeta de um dólar para a vendedora,
o que conquistou imediatamente sua afeição. Os dois conversaram animadamente por cinco minutos antes de Tariq retornar ao seu lugar, e Hector foi mais uma vez para
a frente e se agachou atrás dele. Tariq ofereceu a tigela de amendoins, e Hector pegou um punhado.

- E então? O que você descobriu? - perguntou enquanto mastigava.

- O caminho até a estrada velha que vai para as montanhas não fica longe, logo depois do primeiro wadi ressecado que temos de atravessar. A mulher disse que poucas
pessoas sabem que ele existe, somente os velhos como ela. Ninguém mais o utiliza. Ela não sabe nem se ainda é possível atravessá-lo.

- Ela sabe se há mais bloqueios adiante?

- Ela acha que não - Hector pensou a respeito disso apenas por alguns minutos e então tomou sua decisão.

- Certo, Tariq. Aqui é onde nos despedimos dos nossos passageiros. Você sabe o que dizer a eles.

Tariq desceu do ônibus e mandou os passageiros fazerem o mesmo. Em seguida, comunicou a triste notícia.

- Há um vazamento de combustível no motor e um grande risco de incêndio, que irá matá-los ou pelo menos destruir todos os seus pertences. Não é seguro levá-los adiante.

Houve gritos de alarme e de raiva entre os passageiros, e então a voz da senhora robusta da cesta de peixe foi ouvida acima do rebuliço.

- E o dinheiro que pagamos a vocês? - perguntou.

- Vamos devolver o dinheiro e dar mais dez dólares para todos comprarem uma passagem em outro ônibus.

Os gritos de indignação cessaram imediatamente, os passageiros ficaram conversando alegremente entre si até que a mulher falou novamente:

- Prometer é fácil. Mostre o dinheiro ou não vai precisar do vazamento de combustível. Nós incendiaremos o ônibus para você - ela afastou o niqab que cobria seu
rosto para tornar a ameaça mais convincente e o encarou.

- A senhora será a primeira a ser paga, velha mãe - Tariq garantiu, e depositou a quantia nota a nota na pata rechonchuda. Toda a agressividade se esvaiu dela. A
mulher grunhiu de satisfação como um bebê gorducho a quem é oferecido o seio da mãe. Os demais se aglomeraram à frente e, assim que receberam o pagamento, descarregaram
todas as bagagens no chão poeirento. A seguir, despediram-se com acenos animados para o ônibus, agora muito mais leve, que seguiu viagem. O restante dos passageiros
também estava em clima de comemoração.

- Não acho que teria conseguido aguentar aquele fedor por muito mais tempo - disse Cayla, removendo o capuz da burca e colocando a cabeça para fora da janela sem
vidro. Ela inalou profundamente e sacudiu os cabelos suados para secarem ao vento.

- Chamamos esse perfume de L'Eau d'Afrique - disse Hector solidário. - Se o engarrafasse e vendesse na rue Fabourg Saint-Honoré, você teria poucas chances de fazer
uma fortuna.

Cayla franziu o nariz diante da ideia.

- Acho que o wadi que estamos procurando fica logo adiante - disse Tariq apontando pelo para-brisas empoeirado.

- Vamos ficar todos atentos! - Hector gritou em tom de urgência. - Há mais dois caminhões da milícia estacionados deste lado. Cubra a cabeça e coloque-a para dentro,
Cayla.

Ela obedeceu de imediato, Hazel a abraçou, e ambas se abaixaram de cócoras no assento. Os homens puxaram os lenços para cobrir a parte inferior do rosto. Tariq dirigia
a uma velocidade regular.

Havia vários grupos de homens de uniforme jihadista de pé ao lado dos dois caminhões estacionados, mas pararam de conversar e concentraram a atenção no ônibus que
se aproximava. Um deles foi para o meio da estrada, retirando o rifle dos ombros. Ele ergueu uma das mãos, e Tariq brecou obedientemente. O homem foi até a janela
do motorista.

- Onde você está indo?

- Berbera.

- Por que tão poucos passageiros?

O ônibus quebrou em Lascanood. A maioria não quis esperar e foi embora - Tariq explicou e o homem grunhiu.

- Estamos com sede - ele disse.

Tariq alcançou a parte de baixo do banco e retirou uma garrafa de arak, que ele havia comprado em Lascanood caso a situação exigisse. O homem arrancou a rolha com
os dentes e cheirou o conteúdo ardente da garrafa, depois deu um passo para trás e gesticulou para que prosseguissem. Todos relaxaram, e Cayla removeu o capuz da
burca e colocou a cabeça para fora da janela novamente.

O ônibus percorreu a margem mais próxima do wadi, atravessou o trecho de areia do leito seco do rio com dificuldade e, relutantemente, escalou a parede oposta. Eles
se depararam inesperadamente com outro veículo estacionado no topo da margem. Era um Toyota Hilux esbranquiçado. Havia um homem atrás do volante e mais dois de pé
na caçamba. Ambos estavam com os binóculos apontados para a fronteira etíope a oeste. Um dos homens abaixou os binóculos e olhou para o ônibus.

- Merda! - Hector disse com um sibilo. - É o Uthmann Waddah. Mantenham os rostos cobertos - ordenou aos homens.

Olhou para as mulheres no fundo do ônibus. Uthmann jamais havia posto os olhos em Daliyah ou Cayla. Cayla havia colocado a cabeça para dentro assim que viu o caminhão,
mas os cabelos e o rosto estavam expostos. Com um movimento rápido, puxou uma das dobras da túnica sobre os cabelos, e virou o rosto para esconder a tez clara. Hazel
não tinha removido o capuz da burca. Os únicos que Uthmann poderia reconhecer eram Hector e um dos seus antigos companheiros de batalha. Quando o ônibus ficou no
mesmo nível do Hilux, o segundo homem na caçamba deixou os binóculos caírem sobre o peito, pendurados pela alça. Ele colocou as mãos nos quadris e olhou para os
rostos à janela no ônibus acima. Ele era mais jovem do que Uthmann e de uma beleza marcante. Seus traços pareciam ter sido cravados em ébano polido. Olhou para o
rosto de Hector. Subitamente, Hector o reconheceu como sendo o personagem central da violação de Cayla. Antes que Hector pudesse emitir qualquer alerta, viu o olhar
do homem se desviar para as janelas traseiras do ônibus. Sua expressão indiferente mudou no mesmo instante, tornando-se selvagem e feroz. Cayla não conseguira resistir
à tentação de virar a cabeça para uma rápida olhadela. Fitou Adam diretamente nos olhos.

- É ela! A prostituta infiel! - Adam gritou em árabe.

Cayla gritou de terror simultaneamente.

- Adam! - ela se atirou no chão do ônibus e cobriu o rosto com as mãos. Tremia como se estivesse sofrendo uma violenta crise de malária. Hector deu um tapa nas costas
de Tariq.

- Dirija como um possuído por demônio! Fomos descobertos.

Tariq engatou a marcha e forçou a velocidade do ônibus até o máximo. Hector correu até a janela traseira e, com a coronha de sua AK, quebrou um dos vidros.

- Tome conta da Cayla - disse a Hazel sem olhar para ela. - Mantenha sua filha abaixada. Vai haver um tiroteio.

Hector estava olhando para fora da janela de trás. Viu que Uthmann permanecia de pé na caçamba do Hilux, mas que Adam tinha descido para a cabina, e o caminhão tinha
manobrado para a estrada e saído em disparada atrás do ônibus. Devido à partida auspiciosa, o ônibus havia ganho uma vantagem de pelo menos cem metros de dianteira
sobre o Hilux. Mas Hector sabia que o veículo menor era muito mais veloz. Adam estava debruçado para fora da janela e com o rifle apontado para eles. A distância
ainda era grande. A primeira saraivada de tiros tinha errado o alvo de tal modo que Hector não pode determinar o que as balas haviam atingido. Muito mais experiente,
Uthmann aguardava o momento certo de atirar. Mesmo àquela distância, ele e Hector estudaram um ao outro. Conheciam-se muito bem. Ambos sabiam que o outro não possuía
fraquezas óbvias. Ambos eram velozes e mortais. Uthmann se mantinha equilibrado agarrando a alça de apoio no teto do Toyota com a mão direita. Segurava o rifle com
facilidade na mão esquerda, mas Hector sabia que ele era ambidestro e que podia atirar com rapidez e precisão de qualquer um dos ombros. Hector viu que Uthmann ainda
carregava a nova Beretta criada especialmente para a Bannock Oil, a arma de infantaria mais sofisticada já fabricada. Hector possuía uma AK-47 antiga e gasta que
nunca havia disparado antes. Uthmann tinha o privilégio da mira ótica grande-angular e, de uma plataforma estável, podia atirar com uma margem de cerca de um centímetro
do ponto de mira e a uma distância de cerca de duzentos metros. Ele certamente era um dos melhores atiradores que Hector já havia conhecido.

"Descontando você, é claro, e o fato de a caçamba de um caminhão a alta velocidade não ser uma plataforma estável nem mesmo para Uthmann", Hector se consolou. "O
aço deste velho TATA deve ser capaz de rebater as balas leves de 5.56 mm da OTAN." Por outro lado, o visor da arma de Hector era antiquado e de ferro pesado. O buraco
da AK estava terrivelmente desgastado, e as balas provavelmente chacoalhariam pelo cano quando fossem disparadas. Somente o bom Deus sabia onde é que iriam parar.

"Melhor experimentar", resolveu, e apontou para fora da janela para um dos pneus frontais do Toyota, de modo a ter uma base de marcação dos pontos atingidos pelas
balas. Disparou uma rajada de três tiros e viu as balas levantarem poeira da superfície da estrada cerca de dois metros à esquerda do pneu em que tinha mirado. Imaginou
o sorriso irônico no rosto de Uthmann diante da qualidade de sua pontaria. Olhou rapidamente para trás e gritou para Hazel:

- Vá para a frente e deite no chão. Vamos ficar sob fogo cruzado a qualquer momento.

Ela obedeceu imediatamente, arrastando Cayla; Daliyah as seguiu. Os quatro homens restantes engatinharam até o fundo e se agacharam em ambos os lados de Hector com
as armas de prontidão.

- Não atirem nos homens - comandou -, atirem nos pneus da frente. São o alvo mais fácil. Preparados? Uma rajada ligeira e se abaixem de novo. Vocês todos conhecem
Uthmann. Não fiquem na mira dele. Ele não erra.

Eles agarraram as armas, ainda agachados embaixo do peitoril da janela traseira.

- Levantem e atirem! - Hector gritou.

Todos se ergueram de um salto e abriram fogo. As balas espirraram por toda a estrada, mas ele viu que nenhuma tinha atingido as rodas da frente. Da caçamba do Toyota,
Uthmann suspendeu a Beretta com um movimento ágil e tranquilo. Fez dois disparos em uma sucessão tão rápida, que os estampidos se amalgamaram em um único som de
explosão. A primeira bala atingiu o homem ao lado de Hector na cabeça, matando-o instantaneamente. Ele capotou sobre as costas do banco. A segunda bala de Uthmann
repuxou uma das dobras do turbante de Hector, e ele sentiu a ardência como se ela tivesse arrancado um pedaço do lóbulo da orelha direita. Ele se abaixou e tampou
o ouvido com a palma da mão. Quando viu o sangue nas mãos, ficou muito, muito zangado.

- Desgraçado! - exclamou. - Traidor desgraçado!

No entanto, mesmo com a raiva, reconheceu que se tratava de um dom mágico para atirar. Dois tiros na cabeça com dois disparos. Ele levantou a cabeça de novo e viu
que o Toyota estava muito mais próximo. Ele se abaixou instantaneamente, e a bala de Uthmann passou sibilando sobre a sua cabeça. Escapou por um triz. Mudou de posição
e se levantou rapidamente, soltando uma rajada de três tiros, e se abaixou um momento antes de Uthmann responder com um disparo quase certeiro. O Toyota agora estava
tão perto que ele conseguia ouvir o som dos motores acima dos do TATA. O homem da Cross Bow que estava mais distante de Hector se ergueu de um salto com a AK apontada,
mas Uthmann o matou antes que conseguisse desperdiçar um único disparo.

Usando o breve intervalo de tempo necessário ao realinhamento de Uthmann após o disparo mortal, Hector se levantou de novo. Descobriu que o Toyota tinha acelerado
e que agora estava a cerca de quarenta metros da traseira do ônibus, uma distância que proporcionaria um pontaria direta até mesmo para a velha e desastrosa AK.
Hector atirou de novo no pneu dianteiro, levando em conta o desvio para a esquerda em relação ao que enxergava no visor de ferro. Sabia que era um golpe de sorte
quando viu o pneu dianteiro explodir. Fora de controle, o Toyota girou violentamente pela estrada, e bateu no dique de drenagem ao lado. Uthmann havia disparado
um instante após Hector, mas havia sido jogado para fora do caminhão que derrapava sob ele, e a bala errou o alvo. O Toyota capotou em uma nuvem de poeira e pedregulhos.
Hector não conseguiu enxergar o que tinha acontecido a nenhum dos ocupantes, e pensou por um momento que essa era a única chance de matar Uthmann, enquanto estava
tonto ou incapacitado. A seguir, viu a poeira levantada pelas outras duas caminhonetes jihadistas que vinham a alta velocidade pela estrada, atrás dos destroços
do Toyota. Deviam ter escutado o tiroteio e vindo correndo para se juntar ao combate.

- Não pare! - Hector gritou para Tariq. - Dirija o mais rápido que puder.

Caminhou ao longo do corredor do ônibus, mas se deteve ao lado de Hazel e Cayla. Cayla estava em um estado de desespero. Mortalmente pálida, tremendo e chorando.
Ergueu o olhar até ele.

- Você o matou, Heck?

- Sinto muito, querida. Mas acho que não. Vou liquidá-lo da próxima vez, por você.

Cayla irrompeu em soluços dolorosos e enterrou o rosto no ombro da mãe. Tinha sido tão forte e tão convincentemente corajosa e bem-humorada até aquele momento que
Hector tinha acreditado - ou melhor, tinha querido acreditar - que ela tinha passado por toda aquela provação sem muitos danos psicológicos. Mas agora sabia que
era uma ilusão. O estrago era tão profundo que tinha destruído as bases do ser de Cayla. A recuperação seria longa. Sabia que ela iria precisar de todo o amor e
carinho que Hazel fosse capaz de lhe dar.

"Esse momento vai chegar", disse a si mesmo. "Mas o meu primeiro dever é tirá-las da mandíbula da Besta."

Ele deixou as duas para trás e correu até Tariq.

- Não podemos perder a ramificação para a estrada velha - disse em voz baixa, mas em um tom de urgência.

- A velha me disse que a placa havia desaparecido, mas que o poste ainda estava lá. Deve ser aquele logo ali - apontou para um pedaço de cano de aço avermelhado
pela ferrugem, de pé entre um trecho de ervas-daninhas no lado esquerdo da estrada diante deles. Ele pisou no breque e desacelerou para virar.

- Não consigo enxergar nenhuma estrada.

- Ali! Entre as duas rochas. Devem ser os marcos originais.

O ônibus deu um solavanco ao passar sobre a beira da estrada e seguir acelerando entre as duas grandes rochas sem sequer olhar para trás.

- Ali! Agora dá para ver as marcas da estrada velha.

Hector guiou Tariq até o local e, assim que se afastaram das ervas-daninhas da estrada, o caminho ficou ainda mais claro. Hector estava de olho na poeira dos caminhões
que os perseguiam, mas ao mesmo tempo direcionou Tariq no sentido de um grupo de grandes rochas logo adiante. Era óbvio que os caminhões jihadistas tinham parado
para prestar auxílio ao Toyota capotado, pois não estavam mais à vista. Demorou um pouco mais antes de surgirem na estrada principal. A essa altura, Hector tinha
ocultado o ônibus atrás das rochas. Os perseguidores passaram correndo pela ramificação e seguiram pela estrada sem hesitar nem olhar para trás. Hector os observou
pelos binóculos e reconheceu tanto Uthmann quanto Adam na caçamba do veículo dianteiro. Tinham sobrevivido ao acidente, o que era uma pena.

Assim que desapareceram em meio à poeira e à distância, Hector disse a Tariq:

- Não vamos enganá-los por muito tempo. Prossiga, depressa!

Eles manobraram de volta ao caminho rudimentar e aceleraram. Em alguns trechos, as chuvas de verão e enxurradas súbitas haviam apagado a trilha perigosamente, e
Tariq teve de seguir aos solavancos sobre o terreno acidentado e o matagal baixo para contornar os piores pontos. Seguiam por um aclive progressivo, e havia muito
pouca cobertura. Hector olhou para trás ansiosamente. Sabia que quando Uthmann percebesse que tinham conseguido enganá-los, que voltaria correndo para descobrir
onde o TATA havia deixado a estrada. Avistariam o ônibus imediatamente na encosta aberta. Lentamente, o ônibus subiu em direção à crista da ladeira, e as montanhas
azuis da Etiópia estavam logo adiante. Enquanto se aproximavam da crista, Hector foi até o final do corredor e espiou pela janela traseira.

- Inferno! - resmungou.

Conseguia enxergar a poeira dos veículos jihadistas retornando do norte ao longo da estrada. Olhou para a frente e viu que ainda estavam na encosta e bem longe da
crista da montanha.

- Não vamos conseguir! - chiou por entre os dentes.

De nada serviria apressar Tariq, ele estava dirigindo na mais alta velocidade possível sobre o terreno acidentado. Os veículos dos perseguidores agora estavam completamente
à vista. De repente, a caminhonete dianteira parou. Ainda estavam muito longe para que Hector reconhecesse os homens na caçamba, a imagem de Uthmann de pé e com
os binóculos voltados para o TATA lhe veio à mente. A seguir, tão abruptamente quanto tinham parado, as duas caminhonetes aceleraram de novo. Elas chegaram ao ponto
onde o TATA abandonara a estrada principal e desaceleraram, ficando a uma velocidade quase de caminhada, e então ambas viraram na velha estrada atrás deles.

- Lá vêm eles! - Hector lamentou. - E não temos nem um quilômetro e meio de vantagem.

Hector os observou subindo pela encosta atrás deles. No entanto, foram forçados a lidar com o mesmo terreno acidentado. Sua velocidade superior não estava garantindo
muita vantagem. O TATA alcançou o topo da montanha. Adiante, o caminho descia até mais outro vale raso, mais ou menos a um quilômetro e meio distante do lado em
que a rota iniciava a subida final em direção ao sopé das montanhas da cordilheira. O ônibus desceu sacolejando até o vale, perdendo os perseguidores de vista. O
chão era mais liso no fundo do vale, e eles alcançaram uma velocidade maior.

Hector espiou por sobre o ombro de Tariq para verificar a situação adiante. O sólido baluarte de encostas que os confrontava pareceu intransponível até que ele avistou
a abertura da passagem estreita entre os penhascos sombrios. Ele se debruçou para fora da janela lateral e olhou para trás exatamente no momento em que a primeira
caminhonete do inimigo surgiu no horizonte atrás deles. Ela parou apenas por um breve momento, enquanto Uthmann se localizava, e depois começou a descer o vale no
encalço deles. A segunda caminhonete veio logo atrás da primeira. Hector sabia que agora elas estavam em posição de tirar uma maior vantagem do terreno liso do fundo
do vale do que eles, no velho ônibus, conseguiriam. A sorte tinha retornado com toda a força para o lado de Uthmann. Hector olhou adiante para a entrada da passagem.
Teriam uma margem pequena de tempo para chegar até ela antes que as duas caminhonetes os alcançassem. Hazel e Cayla o observavam, e ele sorriu de maneira encorajadora.

- Vou contatar o Paddy O'Quinn pelo telefone via satélite. Não pode estar muito longe de nós.

Ele pôde ver pela expressão de Hazel que ela sabia que se tratava de uma mentira leve. Havia pelo menos uma dúzia de motivos para Paddy não estar na primeira curva
logo após a passagem, vestindo sua armadura branca reluzente, pronto para correr ao auxílio deles. No entanto, Cayla se animou um pouco e enxugou as lágrimas com
as costas de uma das mãos. Ele não conseguia encarar o olhar dela e ver o brilho de uma falsa esperança. Hector retornou à janela traseira e observou as caminhonetes
a caminho enquanto ligava o telefone e esperava a conexão com o satélite acima mais próximo. Observou a pequena tela com avidez, mas ela mostrou um contato tênue
demais, que brilhou brevemente e então desapareceu quase imediatamente.

- As montanhas estão nos bloqueando - ele disse preocupado.

Com base em uma remota possibilidade, discou o número de Paddy e ouviu o toque fraco e intermitente surgir e desaparecer. Então, de repente, escutou uma voz distante
e distorcida que poderia ser de Paddy ou de qualquer outra pessoa.

- Se for você, Paddy, a ligação está péssima. Se consegue me ouvir, eis a situação. Estamos na estrada velha em direção às montanhas, mas os trogloditas estão no
nosso encalço. Não acho que vamos conseguir escapar deles. Vamos ser forçados a nos defender e lutar. Temos muito menos homens e muito menos armas. O Uthmann está
na liderança. Você é a nossa última esperança. Venha se puder.

Ele repetiu a mesma mensagem devagar com todas as letras, e quando desligou, olhou para cima e viu que tanto Hazel quanto Cayla haviam escutado tudo o que tinha
dito, mesmo com o barulho do motor de fundo. Não conseguiu encará-las de frente e olhou através da janela traseira sem vidro. As caminhonetes se aproximavam deles.
Ela já conseguia reconhecer a figura altaneira de Uthmann na caçamba da caminhonete da frente e podia ouvir as vozes dos homens ao redor dele gritando em triunfo
e brandindo suas armas. Olhou adiante e viu que a entrada da passagem, com suas imponentes paredes de rocha cor de cobre em ambos os lados, não estava muito longe.
Ele pegou as armas e os cintos de munição dos dois homens que tinham sido mortos por Uthmann e os entregou às mulheres.

Sabia que Hazel era uma atiradora de rifle exímia, portanto, falou para Cayla:

- Sei que você é o máximo com uma pistola na mão, srta. Bannock. Mas você sabe dar um tiro que preste com uma AK?

Ela ainda estava muito abalada e angustiada para conseguir falar, mas balançou a cabeça e deu um sorriso inseguro. Ele tirou a pistola Beretta debaixo da túnica
e a entregou para ela juntamente com dois pentes de balas adicionais.

- Peça para a sua mãe mostrar como recarregar os pentes da AK. Você pode ajudar a nos manter munidos quando a merda atingir o ventilador.

No mínimo, recarregar as câmaras era algo para distraí-las da ameaça que se aproximava sorrateiramente pelas costas. Ele olhou para os portais rochosos adiante que
guardavam a entrada da passagem.

- Bem, senhoras, vamos conseguir entrar pela passagem, ah, se vamos - disse com animação, e voltou para o fundo para manter o inimigo sob vigilância através da janela
traseira. Nesse momento, todos se abaixaram quando uma explosão de disparos automáticos fez a lataria do TATA vibrar e sacolejar, e uma única bala chegou pela janela
traseira, atravessou a extensão do ônibus e então estilhaçou o para-brisas em frente a Tariq.

- Eles estão ficando um pouco impacientes - Hector comentou com um sorriso tranquilizador para Cayla.

Ele alcançou a janela traseira e espiou para fora. A caminhonete dianteira estava a poucas centenas de metros atrás deles, e ele agora podia ouvir os gritos do inimigo
claramente, mas ainda estavam longe demais para ele atacá-los com a velha AK. Os jihadistas atiravam indiscriminadamente, levantando a poeira na estrada atrás deles.
Ele agora conseguia enxergar Uthmann debruçado para fora da cabina da caminhonete com o rifle a postos, aguardando a oportunidade de um outro tiro desimpedido. Ele
tinha um arranhão vermelho em uma das laterais do rosto e sangue na camisa, provavelmente onde tinha atingido o chão ao ser arremessado quando o Hilux capotou. Hector
sentiu prazer em ver que ele não havia saído ileso do acidente.

Momentos antes de alcançarem a entrada da passagem, mais uma saraivada de tiros automáticos atingiu a traseira do ônibus, acertando uma das rodas. O pneu fez um
barulho enorme ao explodir, e o ônibus balançou a traseira como uma mulher dançando o hula-hula. Um instante depois, eles adentraram a passagem. As paredes de pedra
os protegeriam momentaneamente de mais disparos.

Agora Hector seria forçado a tomar uma decisão rápida. O velho ônibus se arrastava em seus últimos suspiros. Ele podia ouvir o pneu arruinado esbofetear o chão a
cada giro da roda, e a velocidade deles diminuía rapidamente. Não conseguiriam prosseguir por muito mais tempo. Teriam de escolher um local para se posicionarem.
O formato da passagem deu uma leve pontada de esperança a Hector. Em espaços confinados, Uthmann teria pouco terreno para realizar um cerco ou manobras. Teria de
vir até eles de frente. Hector colocou a cabeça para fora da janela lateral e viu que a passagem adiante não era muito larga. Talvez conseguisse usar a lataria do
ônibus para bloqueá-la, e o chassis de aço talvez servisse como uma forte posição detrás da qual poderiam se defender.


Olhou para o alto das paredes de pedra avermelhadas que se erguiam em ambos os lados. Daquele ângulo, não era possível adivinhar a sua altura. As paredes haviam
sido esculpidas ao longo das eras pela água das enchentes, até que se tornaram lisas e côncavas. Elas se projetavam acima da passagem nos dois lados, como os tetos
de duas varandas voltadas uma para a outra. Uthmann teria dificuldade em mandar os homens para o topo para atirar em quem estivesse na passagem. Em vez disso, é
claro que eles podiam simplesmente arremessar algumas granadas de mão para baixo. Isso avivaria consideravelmente os acontecimentos, mas fazer o quê? Tudo na vida
tem os seus pequenos problemas.

Olhou adiante e viu que se aproximavam de uma curva da passagem. Olhou para trás. O inimigo ainda não estava à vista. O velho ônibus alcançou a curva e a contornou
chacoalhando. Hector olhou para a frente consternado. Não muito distante de onde estavam, o caminho estava completamente bloqueado. O paredão do penhasco avermelhado
à direita havia desabado sobre a passagem, bloqueando-a de ponta a ponta com uma barreira intransponível de pedras caídas. Algumas das placas de pedra eram do mesmo
tamanho do próprio ônibus, ou até maiores. A mente dele funcionava a todo vapor enquanto inspecionava o obstáculo. Então, de repente, ele percebeu que, em vez de
uma armadilha mortal, aquilo poderia ser um abrigo seguro. Se conseguissem escalar o paredão e alcançar o topo antes da chegada de Uthmann e Adam, tudo mudaria.
A pilha de pedras se tornaria um reduto formidável. Adam e seus trogloditas seriam forçados a abandonar as caminhonetes e subir para alcançá-los, ficando expostos
em cada passo do percurso.

Tariq! Chegue o mais perto possível das rochas - gritou, e então se dirigiu às três mulheres num tom de urgência, fazendo a tradução para Daliyah ao mesmo tempo.

- Agora é a vez de vocês escutarem. Hazel! Você e a Daliyah vão primeiro, e levam a Cayla junto. Consegue ver aquela fenda mais baixa à esquerda, entre dois pedaços
grandes de pedras caídas? Vocês têm de passar entre elas. Não fica muito longe. Não parem até chegar ao topo. O restante de nós estará logo atrás. Cada um dos homens
carrega a própria arma, eu levarei o estojo de munição.

Eram quase cinquenta quilos de peso morto, e ele era o único entre eles forte o bastante para carregá-los com sem dificuldade.

Derrapando, Tariq estacionou o ônibus de lado ao pé do paredão, e eles todos desceram de uma vez e iniciaram a escalada. O barulho das caminhonetes jihadistas se
aproximando a toda velocidade era amplificado pelas paredes que os rodeavam, reverberando no ar quente e abafado, aumentando a cada segundo. O ruído contínuo e galopante
os estimulava a seguir em frente. Cayla caiu quando estavam quase chegando à fenda entre as duas grandes rochas. Levou tanto Hazel como Daliyah junto. Hector soltou
o estojo de munição, arrastou Hazel e a pôs de pé, e colocou Cayla sobre os ombros. Subiu correndo até o o outro lado da barreira rochosa e a deixou ali. Hazel e
Daliyah chegaram logo depois. Sem fazer uma pausa, Hector deu meia-volta e escorregou pelo declive até onde tinha deixado a munição.

- Não, não! - Hazel gritou para ele. - Deixe isso de lado. Volte.

Hector a ignorou e pegou o estojo. Era o único entre eles ainda na face exposta do paredão. Suspendeu o estojo sobre os ombros e começou a subir de novo. O volume
do ronco dos motores das caminhonetes, ecoando nas paredes, aumentava ainda mais. Ele escutou gritos atrás dele e, a seguir, o estalido e o zunido de disparos de
rifle. Sentiu uma bala se chocar contra o estojo de madeira em seus ombros. Isso o fez perder o equilíbrio, e ele caiu sobre o topo do paredão direto nos braços
de Hazel.

- Meu Deus, achei que fosse perder você - a voz dela era um soluço.

- Desculpe - ele a abraçou brevemente. - Não vai ser tão fácil se livrar de mim.

Ele se virou depressa para conduzir a defesa. Viu que a caminhonete de Uthmann tinha sido forçada a brecar tão violentamente que ficara atravessada na passagem abaixo
dele. A segunda caminhonete tinha batido na traseira da primeira. Os jihadistas estavam despencando para fora de ambos veículos e correndo para a frente, disparando
contra Hector e seus homens. Mas Uthmann ainda não havia recuperado um firme controle sobre eles. Hector, Tariq e os dois agentes da Cross Bow que tinham sobrevivido
jogaram-se de barriga no chão e dispararam uma rajada automática de tiros para baixo. A fuzilada derrubou alguns dos homens. O ataque se dispersou; desorganizados,
bateram em retirada. Deixaram vários dos companheiros jogados no chão da passagem. Àquela distância, até mesmo as decrépitas AK-47 eram eficazes.

Alguns dos sobreviventes se abaixaram atrás das duas caminhonetes. O restante correu para trás, contornando a curva da passagem. Apressadamente, os motoristas das
caminhonetes retomaram os veículos, executando uma série de manobras até que conseguiram partir em disparada pelo mesmo caminho da ida, com balas das AKs se chocando
contra a lataria. Quando ambas as caminhonetes desapareceram, Hector viu que o inimigo havia deixado seis corpos para trás. Dois ainda se mexiam. Um deles gritava
para que os companheiros o socorressem, e o outro se arrastava para trás, com ambas as pernas inutilizadas. Os homens no paredão abriram fogo com gosto. Antes que
Hector pudesse detê-los, ambos os jihadistas atingidos estavam mortos.

"Uma atitude não muito aceitável, mas até aí, ninguém estabeleceu as regras do jogo." Ele não tinha a menor simpatia pelos homens mortos. Sabia que podia esperar
pela mesma quantidade de gentileza e compaixão se os papéis fossem trocados, o que poderia muito bem acontecer em um futuro muito próximo.

Tariq, mande um dos homens recolher os pentes vazios e passe-os às mulheres para serem recarregados. Uthmann vai voltar logo, pode contar com isso.

Duas vezes mais durante a hora seguinte, Uthmann tentou ultrapassar a barreira de escombros. Ambas tentativas custaram caro, e agora havia catorze corpos estendidos
à frente do posicionamento de Hector.

O silêncio subsequente à represália do segundo ataque foi abruptamente destruído pelo roncar de várias outras caminhonetes que chegavam à entrada da passagem.

- Adam solicitou reforços pelo rádio. Ele provavelmente agora tem uns duzentos homens lá embaixo - Hector disse a Hazel. - Quanta munição temos ainda?

- Cerca de trezentas balas no estojo que trouxe aqui para cima. Você está acabando com elas bem depressa.

Após uma pausa, ela perguntou:

- Por que você não para de olhar para os penhascos?

- Estou tentando descobrir o que o Uthmann fará em seguida, agora que reforçou seu grupo.

- O que ele vai fazer?

- Vai mandar trinta ou quarenta homens aqui para cima, de onde possam atirar em nós. Assim que se posicionarem, vão nos manter de cabeça abaixada, e então Uthmann
lançará um outro ataque direto na barreira. Dessa vez, não conseguiremos repeli-los.

- Então, o que vamos fazer? - ela perguntou.

- Podemos ir para baixo do beiral do penhasco e assim os homens não vão poder atirar diretamente de cima - explicou. - Depois vamos construir uma espécie de parapeito
de pedra, atrás do qual poderemos nos proteger do fogo.

As três mulheres se mantiveram vigilantes no topo da barreira, enquanto Hector e os demais montavam um parapeito de pedra sob o beiral. Trabalharam depressa, empilhando
as pedras grosseiramente. Quando terminaram, retornaram aos postos originais atrás das mulheres à espera de um novo ataque frontal.

Hazel repassou os preparativos em silêncio por um tempo e, então, disse em voz baixa, para Cayla não escutar.

- Isso não vai dar certo, vai?

- Não - ele admitiu -, não por muito tempo.

- O que faremos depois?

- Você é boa de reza? Estou totalmente enferrujado.

- Você pode tentar entrar em contato novamente com Paddy O'Quinn - ela sugeriu.

- Mal não fará. Pelo menos ajuda a passar o tempo - ele concordou e ligou o telefone via satélite.

- Enquanto isso, quero que você leve as outras mulheres para baixo do abrigo atrás do parapeito, antes que eles comecem a atirar lá de cima.

Ele observou o movimento delas enquanto andava para cima e para baixo da barreira, tentando encontrar um lugar de onde o telefone pudesse contatar um satélite. No
final, desistiu.

- É como estar no fundo de um poço - murmurou para si mesmo.

Ele desceu até onde as mulheres estavam, atrás do recém-ereto parapeito, e sentou-se ao lado de Hazel.

- A calmaria antes da tempestade - disse em voz baixa.

- Vamos aproveitar cada segundo. Me abrace.

- A sensação é boa - ele disse.

- Não é? Mas, sabe, vai ser um terrível desperdício se tudo terminar aqui, desse jeito. Eu tinha tantos planos maravilhosos.

- Eu também.

- Se tentar me beijar agora, encontrará pouquíssima resistência - ela admitiu.

- Cayla está nos observando.

Ambos sorriram para Cayla, e ela retribuiu com um sorriso incerto.

- A senhorita se importa se eu beijar sua mãe, srta. Bannock? - Hector perguntou e, dessa vez, Cayla balançou a cabeça e riu.

- Vocês dois são tão safados!

Observou o beijo com interesse. Ele se demorou por algum tempo, mas foi interrompido no final pelo barulho de vozes masculinas ecoando dos precipícios acima deles.
Os três olharam para cima.

- Não saia daqui - Hector sussurrou para Hazel. - Voltarei para continuarmos de onde paramos.

Ele levantou e alcançou o rifle. Viu que Tariq e os homens já estavam observando o topo do precipício acima deles, à espera de que o primeiro inimigo surgisse. Hazel
e Cayla ficaram agachadas aos pés dele atrás do parapeito, ambas olhando trêmulas para o topo do precipício. O cano da AK de Hazel jazia sobre o topo do paredão,
a coronha, sobre o seu ombro, e Cayla estava com a pistola Beretta no colo, segurando-a com as duas mãos. Daliyah estava agachada atrás delas.

- Você sabe usar uma arma, Daliyah? - Hector perguntou.

Ela balançou a cabeça e abaixou o olhar.

- Então, tome conta da Cayla - disse, e ela assentiu e sorriu, ainda sem olhar para ele.

Ele as deixou para trás e escalou até o topo do paredão, agachando-se ao lado de Tariq. Agora eram capazes de ouvir as vozes dos homens se agrupando ao redor da
curva na passagem lá embaixo. As paredes de pedra estavam agindo como caixas de ressonância, então Hector reconheceu a voz de Uthmann Waddah, gritando com os homens,
mandando que subissem até o posicionamento de batalha.

Hector sabia que os homens no precipício acima deles surgiriam primeiro, portanto, foi onde concentrou a atenção. Viu um movimento furtivo sob o azul do céu e aguardou.
O movimento se repetiu, e ele ergueu o rifle e montou a coronha no ombro. Viu uma cabeça masculina espiar para baixo da beira do precipício e disparou uma sequência
de três tiros. Lascas de pedra voaram do topo do precipício, e a cabeça se abaixou, sumindo de vista. Hector pensou que havia errado o alvo. Esperou alguns segundos,
pronto para o próximo alvo, e então um rifle avulso deslizou da borda rochosa e caiu sobre a passagem, despencando ruidosamente sobre as pedras perto de onde Hector
se encontrava. Segundos depois, um corpo humano sem vida desceu escorregando do mesmo local. Caiu com a túnica branca sacudindo como se fosse uma bandeira ao vento
e aterrissou sobre o rifle. O homem morto jazia deitado de costas, o olhar caolho fixado no céu e uma expressão de surpresa no rosto. O outro olho havia sido arrancado
pela bala de Hector.

Hector foi até o corpo e o rolou para o lado do rifle. Pegou a arma e a pesou nas mãos com uma onda de prazer. Era uma Beretta SC 70/90. Por um momento, ficou pensando
de onde teria vindo; então, lembrou-se dos homens que Uthmann havia assassinado no oásis. Claramente aquela era uma de suas armas. O corpo caolho tinha um cinto
de munição amarrado em torno da cintura. Hector o arrancou. Verificou os cartucheiros e descobriu que havia cinco pentes de balas, cada um carregado com trinta unidades
de munição. Pendurou a bandoleira em um dos ombros.

Sem perder tempo, verificou se o visor ótico do rifle tinha sido danificado pela queda. Antes que pudesse concluir se estava ou não intacto, houve mais um movimento
acima no penhasco. Instintivamente, girou o rifle para cima e, na lente de aumento, a imagem de uma cabeça inimiga surgiu diante de seus olhos com os fios de retículo
perfeitamente alinhados. Ele atirou. A bala acertou o ponto exato em que havia mirado. O jihadista despencou da beira do precipício e caiu sem vida nas rochas sob
os pés de Hector.

O prazer que Hector sentiu ao ter um rifle de verdade nas mãos novamente durou pouco. Quase imediatamente dezenas de outras cabeças de turbante começaram a surgir
acima da beira do precipício, e as balas batiam nas rochas ao redor deles como uma chuva tropical. Os gritos de batalha do inimigo ressoavam das paredes. Vinham
das forças de ataque que Uthmann estava reunindo na passagem abaixo.

- Venham - Hector gritou para Tariq e os dois homens sobreviventes. - Não podemos ficar aqui e sermos pegos como pulgas da barriga de um cachorro. Precisamos ir
para baixo do beiral!

Eles se ergueram de um salto e começaram a descer pelo lado contrário da barreira. Quase imediatamente um dos homens foi atingido por uma bala vinda de cima. Ele
desabou com a moleza típica de uma boneca de pano, que Hector sabia significar morte. Mesmo assim, ele parou em meio à saraivada de tiros para verificar se nada
podia mesmo ser feito para ajudar o homem. A seguir, ficou de pé novamente e saiu correndo atrás dos outros dois. Antes de alcançarem o fundo da barreira e se colocarem
debaixo do beiral, Tariq foi atingido e caiu esparramado no chão. Hector viu o sangue vermelho vivo surgir nas costas da túnica, e uma sombra escura pareceu passar
diante dos olhos de Hector.

- Tariq, não. Por favor, Deus, ele não - disse, passou o rifle para a mão esquerda e, sem olhar para trás, pegou Tariq no colo de onde ele havia caído.

Tariq não era um homem de constituição pesada, e Hector o carregou sem dificuldade, depositando-o atrás do parapeito de pedra.

- Faça o que puder por ele - disse a Hazel.

Estava de novo furioso, levantou-se e varreu a face do penhasco acima dele com uma longa rajada de tiros. Três inimigos despencaram da beirada e caíram aos solavancos
sobre as pedras. As outras cabeças inimigas abaixaram, escondendo-se de novo. Hazel e Daliyah já estavam cuidando de Tariq. Ele viu que Daliyah estava chorando e,
mesmo com a gravidade da situação, ficou surpreso.

- Por que ela abriu o berreiro? - soltou.

- Pergunta estúpida. Ela o ama, é claro - Hazel respondeu sem erguer a cabeça.

- Meu Deus! Todo mundo está na mesma onda - Hector deu um sorriso sem pensar, consumido pela loucura da batalha que fervia em seu sangue. - Qual é a gravidade do
ferimento?

Ele atirou duas vezes nas cabeças que surgiram no outro lado da passagem, matando mais um homem.

- Não sei. Foi nas costas. Mas não há bolhas no sangue, portanto é possível que o pulmão não tenha sido perfurado.

- Faça uma compressa na ferida. Tente estancar o sangramento. É tudo o que podemos fazer por enquanto. Mas em nome de tudo que é mais sagrado, mantenha a cabeça
abaixada. Você também, Cayla. Você não pode acertá-los com essa pistola.

Ele pontuou a fala com disparos individuais de rifle.

Uma rajada de balas do inimigo respingou na extensão do parapeito, fazendo poeira e lascas de pedra cair sobre eles. Hector se abaixou e cuspiu um pedaço de pedra.
Depois, ergueu a cabeça e ficou na escuta. Gritos de guerra islâmicos estridentes vinham da direção da entrada da passagem. Os homens de Uthmann estavam escalando
o lado oposto da barreira de pedras, e chegando ao topo sem enfrentar nenhuma resistência. Hector se ajeitou sobre a barriga embaixo do parapeito até ficar em posição
para atirar para o topo da barreira ao alto, sem deixar a cabeça à mostra para os homens no precipício. Estava preparado quando o primeiro homem ergueu a cabeça
acima do topo da barreira, mas se deteve e resolveu esperar que outros mais surgissem. A primeira cabeça se abaixou de novo e, na ausência de disparos, se ergueu
novamente. Hector esperou que se descuidassem. Três deles ficaram completamente de pé e entoaram:

- Allahu Akbar!

Hector mirou e atirou cinco vezes com tanta velocidade que os disparos pareciam ter sido feitos automaticamente. Homens caíram e se jogaram, gritando de surpresa
ou guinchando de dor. Era difícil ter certeza em meio ao tumulto, mas Hector achava que tinha acertado os três.

"Não estou tão enferrujado", cumprimentou a si mesmo em voz baixa. "Não perdemos completamente o jeito."

O restante dos inimigos reagiu violentamente e, tanto do topo do precipício como da barreira, despejaram uma torrente de disparos automáticos no beiral. As balas
arrancaram pedaços do penhasco, preenchendo o ar com uma névoa de poeira esbranquiçada e sibilando em ricochetes. Hector colocou um dos braços ao redor de Hazel
e o outro em torno de Cayla, e as fez agachar no chão rochoso. O rosto de todos estava empoado de branco devido à fina poeira rochosa. Em meio ao caos do tiroteio
e dos gritos de guerra, Hector distinguiu o ronco progressivo, ainda que distante, de vários motores de caminhão.

"Qual é o truque do Uthmann agora?", perguntou-se. "Ele não vai ser maluco o suficiente para tentar atravessar por sobre a barreira com seus veículos, por mais que
eu pagasse para ver isso." Mas a vibração dos motores ficou mais alta, quase afogando os gritos jihadistas. De repente, Hector percebeu que o ronco dos motores não
estava vindo do outro lado da barreira de pedras, mas ecoando pela abertura da passagem, vindo detrás de onde estavam posicionados. Os disparos árabes começaram
a diminuir e minguar. Hector rolou para o outro lado e, mantendo as mulheres pressionadas contra o chão e as protegendo com o próprio corpo, olhou da abertura da
passagem para a curva das paredes de pedra atrás deles.

Nesse momento, uma coluna de três caminhões GM enormes surgiu em seu campo de visão, descendo pela passagem na direção deles. As laterais dos veículos estavam adornadas
com o logotipo da Cross Bow e, na frente de cada um deles, havia um par de metralhadoras Browning calibre .50. Atrás das armas do primeiro caminhão, estava Paddy
O'Quinn. Tinha um sorriso de contentamento no rosto quando agarrou os cabos de disparo e girou os canos duplos na direção dos jihadistas que ainda inundavam o topo
da barreira de pedras que bloqueava a passagem. No caminhão atrás dele, David Imbiss estava reclinado e apontando as pesadas Brownings para os penhascos.

- Agora, Paddy O'Quinn e sua banda de rock vão tocar sua música mais famosa para nós - disse Hector, rindo e abraçando as duas mulheres.

As armas dispararam com um estrondo turbulento que preencheu a passagem de som. As granadas tracejantes de Paddy arrancaram o topo da barricada de pedra e encheram
o ar de poeira. Árabes em fuga, tentando chegar ao topo da pilha, desapareceram na tempestade de disparos, detidos antes de alcançá-la. No segundo caminhão, Dave
abriu fogo varrendo os topos dos precipícios. Choviam corpos humanos na passagem, como frutas maduras sendo derrubadas por uma ventania no pomar. Em segundos, todos
os alvos visíveis foram destruídos, e as armas se silenciaram. Paddy olhou em volta e os avistou amontoados atrás do parapeito sob o beiral, e acenou alegremente.

- Muito bom dia para você, Hector. Que surpresa mais agradável encontrá-lo em tão boa forma. Aceitaria uma carona até em casa?

- Ficaria encantado, com certeza - Hector gritou em resposta. - Eu nunca apreciei de verdade o brilho solar em seu sorriso até este exato momento.

Com cuidado, pegou Tariq no colo.

- Como você está, meu irmão? - perguntou ao carregá-lo até o caminhão dianteiro.

- Estarei ao seu lado por muitos anos mais. Nós ainda temos de matar aquele filho de Shaitan, Uthmann Waddah - respondeu Tariq.

A voz dele era fraca, mas pelo menos não havia sangue em sua boca. Hector sabia que ele iria sobreviver. Ele deitou Tariq na parte de trás do caminhão, e as mulheres
subiram ao lado dele.

- Tomem conta dele - disse a Hazel.

Era mais um apelo do que uma ordem.

- Não se preocupe, Hector - Hazel respondeu. - Daliyah e eu não vamos deixar nada de ruim acontecer a ele.

- Onde estão os outros? - Paddy perguntou despreocupadamente quando Hector se sentou ao lado dele.

- O que sobrou está na sua frente - disse Hector com tristeza. - Não há outros, não mais.

Paddy parou de sorrir e deixou que o próximo comentário irreverente morresse antes de alcançar seus lábios.

- Deus salve suas almas - disse com sobriedade.

- Amém.

- Mas vejo que conseguiu resgatar a menina.

- Ela não terá sido resgatada até chegarmos em casa. Vamos embora, Paddy!


Eles subiram de volta pela passagem na direção da fronteira etíope. Logo se tornou aparente que Uthmann não tinha conseguido ultrapassar nem contornar a barreira
de pedras caídas com seus veículos, pois não houve perseguição. Pararam apenas uma vez para que o médico da Bannock Oil, que Paddy havia trazido, pudesse socorrer
Tariq. Ele o colocou no soro, aplicou injeções de antibióticos e analgésicos e enfaixou o ferimento. Em seguida, eles seguiram viagem, fazendo um bom progresso mesmo
nos locais em que a trilha havia sido apagada pelas águas. Na pressa, durante o trajeto, os homens de Paddy as tinham reconstruído o melhor que podiam. Eles alcançaram
as cristas dos vales e desembocaram num labirinto de passagens entre montanhas e vales, através das quais a velha estrada prosseguia. Seguiram rumo ao oeste durante
o restante do dia, subindo gradualmente até as montanhas mais altas. Até então, não tinham avistado sinais de habitação humana, portanto arriscaram usar os faróis
dos caminhões e continuaram dirigindo depois do anoitecer. Paddy estava usando o sistema GPS de navegação do veículo. Quatro horas após o anoitecer, anunciou que
haviam chegado à Etiópia. No entanto, não havia nenhum tipo de marco indicando a fronteira. Interromperam o comboio brevemente para celebrar com uma xícara de chá
quente. Enquanto a cantina preparava a bebida, Hector acionou o telefone via satélite. Daquela altura, a recepção era cristalina, e ele falou com Nella Vosloo em
Sidi el Razig como se estivessem sentados lado a lado.

- Chegaremos a Jig Jig antes de amanhecer. Venha nos buscar, minha querida.

- Bernie e eu estaremos lá, confie em mim! - Nella disse.

Eles continuaram a dirigir durante a noite. Hector permaneceu ao lado de Paddy na cabine aberta em que as armas estavam montadas, ambos vigilantes e despertos. Mas
as montanhas sombrias que percorreram estavam desertas. Duas horas antes do amanhecer, alcançaram a pista de Jig Jig sem ter encontrado um único ser vivo no caminho.

Formaram um círculo defensivo com os veículos no final da pista, e as mulheres prepararam o café da manhã. Na caixa de mantimentos do caminhão, Paddy tinha duas
dúzias de ovos frescos, uma peça de bacon e quatro pacotes de pão de forma mofados. Prepararam as torradas sobre o fogo de carvão e as besuntaram com manteiga neozelandesa
enlatada enquanto ainda estavam quentes. Com o auxílio de Daliyah, até mesmo Tariq foi capaz de se sentar e, mesmo sendo um muçulmano devoto, devorou um naco de
bacon. Ainda estavam bebendo chá preto em canecas fumegantes quando ouviram o barulho dos motores do Hércules se aproximando. Paddy mandou dois caminhões estacionarem
um em cada extremidade da pista e ligarem os faróis. Nella aterrissou a aeronave colossal com suavidade entre os caminhões e, assim que abaixou a rampa traseira
de carga, Paddy conduziu os três caminhões até o compartimento e os amarrou seguramente. O Hércules estava no ar novamente apenas 12 minutos após ter pousado.

O médico trocou o curativo do ferimento de Tariq e deu sua opinião:

- Ele é sortudo. Parece que a bala não atingiu nenhum órgão vital. Ele é tão forte quanto saudável e logo vai estar de pé novamente.

Daliyah chorou desconsoladamente quando Hector traduziu a mensagem para ela em árabe. A seguir, a pedido de Hazel, o médico voltou sua atenção para Cayla. Ele a
levou até a minúscula cabine atrás da de pilotagem e fez um exame cuidadoso.

- Fisicamente, ela está razoavelmente bem - declarou. - Os antibióticos dados pelo sr. Cross parecem ter dado cabo da intoxicação alimentar. Porém, assim que levá-la
de volta à civilização, tem de cuidar para que ela faça um teste para ver se está com alguma infecção. É claro, ela ainda está fraca, mas após a provação por que
passou, é de se esperar. O estado psicológico dela parece muito mais precário. É claro, essa não é a minha área, porém, só posso pedir que a leve a um ótimo especialista
assim que for possível.

- É exatamente o que pretendo fazer - Hazel concordou. - Meu jato deve estar a postos em Sidi el Razig. No momento, vou cuidar para que ela durma um pouco - ela
se virou para Hector. - Você também! Você não dorme há três dias.

- Não precisa fazer estardalhaço - ele protestou enquanto ela o enfiava dentro de um dos sacos de dormir que encontrou no bagageiro sobre o beliche.

- Estardalhaço é uma das coisas que eu sei fazer melhor. Você tem dado as ordens até agora, Hector Cross. De agora em diante, estou fazendo você provar do próprio
remédio. Pare de discutir e vá dormir.

Ela apagou a luz. Tanto Hector como Cayla ainda dormiam profundamente quando Nella aterrissou o Hércules em Sidi el Razig.


A partir do momento que aterrissaram, Hector foi transferido para os bastidores da situação. Ele não viu Hazel novamente pelo resto do dia. Ela se enfiou nos escritórios
executivos da sede da Bannock, onde ficou trancada em reuniões com Bert Simpson ou em teleconferências com o escritório central em Houston. Todas as vezes que Hector
olhava para fora da janela do próprio escritório, se conscientizava do grande jato Gulfstream à espera na pista, com toda a bagagem dela já a bordo e os pilotos
e tripulação preparados para, a qualquer momento, levar Hazel e Cayla embora para o outro lado do mundo.

As emoções que estava sentido não eram familiares. No decorrer dos anos, inúmeras mulheres tinham entrado e saído de sua vida, mas essas entradas e saídas haviam
sido orquestradas pelo próprio Hector. Pensara nelas apenas brevemente após cada partida. Agora, encontrava-se mortalmente amedrontado. Percebeu como sabia pouco
sobre a verdadeira Hazel Bannock. Estava completamente ciente que de ela não era uma mulher comum. Sabia que ela podia ser totalmente implacável - se não fosse esse
o caso, jamais teria chegado até a posição de destaque que ocupava agora. Havia múltiplas camadas e profundezas escondidas na personalidade dela, coisas que ele
só podia imaginar. Até aquele momento, estivera completamente cego em relação a quaisquer defeitos nessas profundezas. Agora, percebia que estava muito mais vulnerável
do que já estivera. Sentia-se nu e desprotegido. Pela primeira vez, não tinha o controle completo do relacionamento. Estava pendurado na corda que Hazel Bannock
tinha nas mãos, corda esse que ela podia cortar tão despreocupadamente quanto ele havia se livrado das outras mulheres. Os papéis haviam sido trocados, e ele não
estava gostando da sensação.

- Então isso é o que é estar realmente apaixonado - pensou sombriamente. - Para mim, parece um passatempo altamente superestimado.

Hazel não reapareceu para almoçar na cantina da empresa. Portanto, Hector foi até o quarto de Cayla e a convidou para se juntar a ele. Ela tentou recusar, mas ele
insistiu:

- Não vou permitir que você se tranque nesse quarto deprimente e fique se corroendo.

Eles dividiram a mesa com Paddy O'Quinn, Dave Imbiss e o jovem médico da empresa. Havia meses que os três jovens não viam uma menina bonita, e eles estavam competindo
para ver que conseguia impressioná-la mais.

A ideia de passar o resto do dia no próprio escritório, à espera do chamado de Hazel ou de algum outro sinal que mostrasse que ela se lembrava da presença dele na
face da Terra, desagradava Hector. Ele deixou uma mensagem com a secretária de Bert Simpson, para ser transmitida a Hazel quando ela estivesse livre. Trocou as botas
pesadas por outras mais leves, depois, saiu para o deserto e começou a correr. Quatro horas e meia mas tarde, retornou ao quartel-general ensopado no próprio suor.
Havia corrido uma distância equivalente a uma maratona, mas não conseguiu se livrar de seus demônios pessoais e deixá-los na areia. Detrás da janela, a secretária
o procurava com o olhar e correu ao encontro dele assim que Hector entrou no edifício.

- A sra. Bannock está à sua procura. Deseja vê-lo no escritório do sr. Simpson assim que for conveniente para o senhor, sr. Cross - a fraseologia da mensagem não
era muito animadora.

- Por favor, diga à sra. Bannock que irei vê-la imediatamente.

Hector correu para a própria suíte, tomou uma chuveirada fria de menos de um minuto e se secou tão depressa que a camisa limpa que vestiu ficou úmida na parte de
baixo das costas. Ele penteou o cabelo ainda molhado, escovou os dentes com mais pasta que o normal. Não teria tempo para se barbear, portanto se dirigiu imediatamente
ao escritório de Bert Simpson. Percebeu que estava correndo e se forçou a desacelerar e a seguir num ritmo mais digno. Bateu na porta do escritório, e a voz dela
mandou que entrasse. Sem querer, respirou fundo, como se estivesse se preparando para saltar de um trampolim na água fria, e abriu a porta. Ela estava sozinha na
sala, sentada atrás da mesa. Ergueu o olhar da pilha de documentos que estava examinando até ele. O olhar era tranquilo, mas indecifrável. Ela se levantou sem sorrir.

- Não podemos continuar assim - ela disse.

Ele sentiu o chão oscilar sob seus pés como se estivessem num terremoto. Era tão ruim quanto tinha imaginado. Sabia que estava prestes a ser jogado na lata de lixo.
Com um grande esforço, assumiu uma expressão mais dura no rosto.

- Eu entendo - ele respondeu.

- Acho que não - ela disse com firmeza. - Você sabe que tenho de levar Cayla de volta a Houston amanhã cedo. Ela precisa de cuidados profissionais imediatamente.
Não vi você o dia inteiro. Foi bastante ruim. E agora tenho de partir sem você. Vai ser como arrancar um pedaço da minha alma. Não podemos continuar assim. Preciso
de você ao meu lado, dia e noite, para sempre.

Hector sentiu a alegria invadi-lo, preenchendo o espaço vazio e frio dentro dele. Não conseguia encontrar palavras que não o fizessem parecer um idiota. Estendeu
as mãos para ela, que foi ao encontro dele. Eles se abraçaram com um fervor não muito dessemelhante ao desespero.

- Hector! - ela sussurrou. - Quanta crueldade ter deixado que eu existisse sem você por todos esses anos solitários.

- Estive procurando por você todo esse tempo, mas você foi tão absurdamente elusiva - Hector replicou.

Após um momento, ela o conduziu até o sofá de couro sob as janelas. Ele colocou um dos braços ao redor dela, que pressionou o corpo contra o dele.

- Certo, agora vamos falar sério. Temos de fazer planos antes que eu seja forçada a deixá-lo - ela disse. - Preciso partir imediatamente, mas não posso nos negar
a alegria de mais uma noite juntos. Cayla e eu iremos embora amanhã cedo. Pensei em pedir que viesse conosco. Mas você tem coisas a organizar aqui - ela fez uma
pausa, dando uma gargalhada. - Estou me adiantando um pouco. Tenho uma proposta que gostaria que considerasse. Quer ouvi-la?

- Estou à disposição dos seus doces lábios - ele respondeu.

- Gostaria muito de comprar a Cross Bow Security. O preço na mesa é 45 milhões de dólares em dinheiro na ocasião da assinatura do contrato. Mas isso é negociável
- ela acrescentou, e Hector riu.

- Uau, você não perde tempo! Mas por que iria querer me dar todo esse dinheiro?

- Não saio com pobretões. Gosto que meus homens sejam capazes de pagar um drinque ou de me levar para jantar.

Ele riu de novo e insistiu:

- Você sabe que a Cross Bow foi avaliada em 35 milhões. O que seus acionistas diriam se soubessem que você gastou dez milhões a mais do que o preço de mercado?

- Primeiramente, eu fiz os cálculos. Trinta e cinco desvalorizam a empresa. Ela vale cada dólar dos 45 milhões. Em segundo lugar, é a Hazel Bannock e não a Bannock
Oil que está comprando a Cross Bow. Negócio fechado? - ela estendeu uma das mãos.

- Negócio fechado com certeza - ele balançou a cabeça admirado e pegou a mão dela.

- Quero que o Paddy O'Quinn assuma o seu lugar na Cross Bow. Quero que transfira as responsabilidades para ele, assim que seja possível fazê-lo de maneira organizada.
É por isso que serei forçada a abandoná-lo por enquanto - ela não mencionou que tinha de fazer planos de boas-vindas para recebê-lo no novo lar deles em Houston.

- Você levou em consideração que isso vai me deixar desempregado, morrendo de fome, tendo de viver dos seus míseros 45 milhões? - ele perguntou.

- Claro que levei. Acontece que há uma vaga para vice-presidente sênior da Bannock Oil. Talvez você queira pensar no assunto. O salário ficaria na casa dos cinco
milhões por ano, mais bônus e benefícios.

- Eu por acaso trabalharia próximo à diretora executiva?

- Trabalharia diretamente abaixo dela durante o dia, e diretamente em cima dela durante a noite - ela respondeu com uma expressão oblíqua e maliciosa nos olhos.

- Cayla está certa. Você é mesmo pervertida - ele riu, mas ficou sério de repente. - Mas eu não sou qualificado para o emprego que está me oferecendo.

- Você é um menino esperto, e eu vou ensiná-lo. Você aprende depressa.

- De novo, você vai ter de perguntar aos seus acionistas o que é que acham da minha promoção. Será que não vão criar um alvoroço? - ele insistiu.

- O meu poder de voto está ancorado nos 70% de ações pagas que me pertencem. As pessoas tendem a fazer o que eu mando sem criar um alvoroço. Você quer a vaga?

- Eu certamente não vou ser um dos que vai criar confusão. Quero a vaga.

- Ótimo! Tudo resolvido então - ela segurou as mãos dele e o fitou profundamente nos olhos. - Deus nos fez um para o outro.

- Aleluia! Finalmente me tornei religioso!

- Estamos deixando todos os horrores para trás. Cayla vai ficar bem, e você e eu vamos nos divertir, Hector Cross.

- Pode ter certeza de que é isso exatamente que vamos fazer, Hazel Bannock.


O cozinheiro providenciou que o jantar dos dois fosse servido no terraço com vista para a baía. A lua crescente e as estrelas estavam magníficas, mas Hector e Hazel
mal tiraram os olhos um do outro para admirá-las. O vinho era excelente, mas eles mal o provaram. Havia tantas coisas a dizer que deixaram grande parte das codornas
do deserto grelhadas no foie gras no prato quando foram para o quarto, bem antes da meia-noite. Primeiro, fizeram amor com uma pressa feroz. Foi maravilhoso, mas
não tão bom quanto as próximas vezes. Finalmente, presos nos braços um do outro, mergulharam em um sono tão profundo que os terríveis gritos lancinantes demoraram
a trazê-los de volta do lugar remoto em que se encontravam. Hector despertou totalmente alguns segundos antes de Hazel. Ele ficou de pé e agarrou a pistola Beretta
que estava sobre a mesa de cabeceira.

- É Cayla - disse enquanto introduzia uma bala na culatra da pistola e se encaminhava à porta da divisória que separava os dois quartos.

Hazel o seguiu de perto. Para não perder tempo, em vez de usar maçaneta, abriu a porta com um golpe de ombro que arrancou a fechadura. Ele irrompeu no quarto de
Cayla. Os gritos angustiados o incitaram a agir com mais pressa ainda. Com a pistola apontada e pronta para mirar em qualquer alvo, ele se certificou de que não
havia ninguém no quarto antes de acender a luz do teto.

Cayla estava em posição fetal no meio da cama, segurando os joelhos com os dois braços. Mas quando ergueu o rosto na direção dele, estava tão pálida quanto os lençóis
em que se deitara. Os olhos dela estavam arregalados de terror. Os gritos que escaparam de sua garganta eram tão agudos quanto o ruído de um vapor a alta pressão
escapando da rachadura de uma caldeira. Hector correu até as janelas e verificou rapidamente se nenhum intruso tinha entrado por elas. A seguir, escancararam as
portas dos armários e olharam embaixo da cama. Hazel pegou Cayla nos braços, tentando acalmá-la e confortá-la. Mas a menina estava se debatendo tão violentamente
que Hazel não conseguia segurá-la e se desvencilhou. Gradualmente, os gritos se tornaram mais coerentes.

- Não! Não! Por favor, não deixe que ele me machuque de novo!

Hector colocou a arma na mesa de cabeceira e a segurou pelos ombros. Sacudiu Cayla, olhando-a diretamente no rosto.

- Acorde, Cayla. Sou eu, Heck. Você está tendo um pesadelo. Acorde!

Os olhos dela ganharam foco. Ela estremeceu, e os gritos cessaram abruptamente.

- Heck! Graças a Deus. É você mesmo? - a seguir, olhou ao redor, aterrorizada. - Ele está aqui. Adam está aqui.

- Não, Cayla. É um pesadelo.

- Estou dizendo: ele está aqui. Você precisa acreditar em mim. Estava tão perto que pude sentir o hálito dele. Foi horrível.

Foram necessários os esforços de Hector e Hazel para acalmá-la. Então, ainda segurando a filha com força, Hazel deslizou para baixo dos lençóis com ela, embalando-a
como se fosse uma criança, cantarolando baixinho. Ao pé da cama, Hector de repente se conscientizou que estava completamente nu, e se afastou em direção à porta.
Imediatamente, Cayla se ergueu de um salto e levantou a voz de novo, num tom histérico.

- Você não pode ir. É a única pessoa que pode nos proteger. Fique conosco, Heck. Ele vai voltar se você for embora. Por favor, não nos deixe sozinhas nunca mais.

Ele agarrou o lençol que Cayla havia jogado para o lado e o enrolou em torno da própria nudez, como se fosse uma toga romana. Então, sentou-se no fundo da cama.
Cayla se acalmou lentamente e fechou os olhos. Assim que achou que ela tinha adormecido, ele levantou para apagar a luz. Cayla deu um pulo e ficou sentada.

- Não! Não apague a luz. Ele vai voltar se você fizer isso.

- Não se preocupe, querida - ele a tranquilizou. - As luzes vão ficar acesas, e eu não vou a lugar nenhum.

Finalmente, tanto Hazel quanto Cayla adormeceram, agarrando-se uma a outra com a cabeça no mesmo travesseiro. Hector ficou de vigília pelo resto da noite. Ficou
observando os dois rostos encantadores e escutando as respirações misturadas, e isso trouxe um sentimento de plenitude que jamais havia conhecido antes.

Ao amanhecer, caminhou com elas até o Gulfstream, que esquentava os motores com os dois pilotos a postos detrás dos controles. Subiu com elas pela escada.

- Queria que você viesse conosco, Heck - disse Cayla.

- Vou me juntar logo a vocês.

- Quando? - ela perguntou, e Hector olhou para Hazel em busca da resposta. Ela tinha uma pronta.

- Heck estará conosco antes do final do mês que vem.

- É uma promessa, mamãe?

- É uma promessa, bebé Agora, por que você não vai conversar com os pilotos para descobrir o tempo de voo até Houston? - ela sugeriu, mas Cayla revirou os olhos.

- Não é seguro deixar vocês sozinhos, seus sem-vergonha. Não dá para confiar.

- Vá! - disse Hazel.

- Calma! Já vou.

Hector ficou sozinho e observou a aeronave esguia taxiar até o final da pista, depois virar e, com o guinchar dos motores, acelerar de volta na direção dele, erguendo-se
no céu acima dele. Emoldurada por uma das janelas ovais da fuselagem, Cayla acenava um lenço cor-de-rosa para ele e, na outra janela atrás dela, Hazel mandou um
beijo com as duas mãos. E então, elas partiram.


Nas semanas seguintes, Hazel telefonou para ele sempre que pôde. A primeira ligação foi quatro dias após ter deixado Sidi el Razig.

- Cayla e eu já fomos a uma consulta com a doutora Henderson - disse a Hector. - É uma mulher encantadora. A melhor que existe. Ela me colocou de volta nos eixos
após a morte do Henry. Ela levou a Cayla para a clínica, onde pode vê-la quantas vezes forem necessárias durante o dia. Enquanto estiver lá, Cayla vai fazer um check-up
completo, e eu reservarei pelo menos duas horas diárias para ficar com ela. O que você tem aprontado, garotão?

Cada vez que se falavam, as notícias eram melhores. Cayla estava se recuperando de maneira excelente, mas certas coisas Hazel só contaria quando se encontrassem.
Estavam separados fazia quase um mês, e Hector não aguentava mais. Ela ligou para ele naquela noite.

- Paddy e eu voltamos de Ash-Alman esta manhã. Passamos umas duas horas com o emir e o príncipe Mohammed. Estavam preocupados com a minha partida da Cross Bow, mas
quando ficaram sabendo que eu iria para a Bannock Oil, ficaram mais animados. É claro que conhecem o Paddy e gostam dele. Portanto, estamos todos resolvidos em Abu
Zara.

- Qual será a sua próxima escala?

- Queria discutir isso com você. Estou planejando ir com Paddy para os estaleiros em Osaka. O que você acha?

O estaleiro Sanoyasu, em Osaka, estava construindo um novo navio-tanque gigante para a Bannock Cargoes Inc. O design era completamente revolucionário e, quando fosse
lançado, seria o maior navio graneleiro flutuante. O projeto inteiro contava com um orçamento de quase um bilhão de dólares. A construção estava sendo realizada
com uma quantidade enorme de precauções de segurança, pelas quais a Cross Bow era responsável.

- Boa ideia, Hector.

- Tive mais uma ideia rara. Que tal você visitar Osaka ao mesmo tempo? Com certeza você pode dar uma escapadinha até o outro lado do Pacífico por alguns dias, não
pode?

- Você e suas tentações, Hector Cross.

- Que tal? Não nos vemos há meses.

- Semanas - ela o corrigiu.

- Para mim, parecem meses.

Ela ficou quieta.

- Não está sentindo minha falta? - ele sondou.

- Como se tivesse perdido as pernas e os braços.

- Então, venha!

- Tenho certeza de que vão cuidar bem da Cayla na clínica. Mas tenho de verificar com a Doutora Henderson se é possível - ponderou. - Dou a resposta amanhã de manhã.

Na noite seguinte, a voz dela ao telefone foi melódica:

- A doutora Henderson disse que não há problema. Cayla disse para eu levar um caixa cheia do amor dela para você em Osaka. Vejo você na quinta-feira.

- Quatro dias de espera - Hector lamentou. - Não sei se vou sobreviver.

Eles passaram cinco dias juntos em Osaka transferindo as rédeas da operação da Cross Bow no Japão para Paddy. No dia seguinte, Hazel fretou um helicóptero, e eles
deixaram Paddy sozinho no comando dos negócios, enquanto fugiam para um templo xintoísta ao pé do Monte Fujiyama para ver as cerejeiras em flor. Perambulando pelo
arvoredo, depararam-se com um tronco maravilhosamente contorcido. Hazel segurou a mão de Hector e o levou para baixo dos ramos estendidos. Ela se recostou no tronco
e olhou rapidamente à volta para ter certeza de que ninguém estava olhando e, sem tirar os olhos dele, levantou a saia branca de pregas acima da cintura e, ao mesmo
tempo, afastou a calcinha para o lado, revelando o ninho de caracóis dourados e brilhantes. Com dois dedos, afastou os pêlos para o lado e exibiu os lábios rosados
de seu sexo.

- Isto é o que eu tenho, garotão - disse com a voz rouca. - Agora mostre o seu.

Ela olhou para ele.

- Meu Deus! Fica maior cada vez que o vejo. O que você dá para ele comer?

- Neste exato momento, ele está contemplando seu lanche preferido com água na boca.

Completamente vestidos e de pé, eles fizeram amor, ambos excitados pelo risco de serem pegos no ato por um dos sacerdotes do templo. A cerejeira sacudia com o movimento
oscilante dos dois contra o tronco, e pétalas brancas caíam como uma chuva de confete, prendendo-se às mechas douradas do cabelo de Hazel. Hector sabia que se lembraria
de todos detalhes daquela linda imagem, dela arrebatada pelo êxtase do orgasmo, até o último dia de sua vida.

Naquela noite, jantaram sashimi de atum azul e beberam saquê quente em tigelas antigas de porcelana na pitoresca pensãozinha, administrada pelos seculares sacerdotes,
do terreno do templo. Depois, retiraram-se para os aposentos privados, onde fizeram amor no futon de seda com a serenata do tilintar da fonte do pátio de fundo.
Durante os breves intervalos entre as sessões de sexo, conversaram. Tinham tanto a dizer um para o outro e pouco tempo para dizer tudo. O assunto que mais os absorveu
foi o progresso da recuperação de Cayla.

- Não sabia como contar isso antes, é tão horrível. Mas a minha menininha foi rasgada por dentro por aqueles porcos imundos. Você sabe o que é uma fístula vaginal?

Ele ficou tão chocado que não conseguia falar, em vez disso, apertou a mão dela e assentiu.

- Os médicos fizeram uma reconstrução cirúrgica - ela prosseguiu -, mas durante a operação, descobriram que ela estava nos primeiros estágios da gravidez.

- Meu Deus! Coitadinha.

- Deram um jeito nisso também. Cayla estava sob anestesia geral e não sabe nada sobre essa parte. Não podemos jamais contar a ela.

Ele a puxou para mais perto de si, tentando confortá-la com o contato. Ela soluçou baixinho encostada ao peito dele, abraçando-o com toda força. Ficaram em silêncio
por um longo tempo, e então ela se mexeu e se afastou um pouco.

- Mas vai tudo ficar bem agora. Os primeiros testes mostraram que ela não foi infectada pelo HIV nem qualquer outra doença sexualmente transmissível, e está se recuperando
bem da cirurgia. Thelma Henderson está ministrando um de seus milagres especiais. A Cayla confia nela. Além dos terríveis acontecimentos traumáticos pelos quais
minha filha passou, ela também está consumida pela culpa. De acordo com Thelma, Cayla acredita que traiu tanto a minha confiança quanto a memória do pai. Acha que
é a culpa é totalmente dela por se ter deixado seduzir por aquele monstro horrível. No entanto, a Thelma tem feito progressos significativos. Há algum tempo já que
ela não tem pesadelos. Ela diz que a Cayla logo estará boa o suficiente para ir conosco para o rancho no Colorado. Sempre foi o lugar favorito dela no mundo. O meu
também. Cayla quer visitar o mausoléu do Henry e, claro, todos os cavalos dela estão no rancho.

Ela se apoiou em um dos cotovelos e Hector pôde sentir os olhos dela próximos a ele na escuridão.

- Acredito que é muito importante você passar um tempo com ela - prosseguiu. - Você sabe que tem jeito para lidar com ela, que ela o adora. Em grande medida, você
preencheu a enorme lacuna deixada pelo Henry quando ele morreu. Você se tornou um verdadeiro pai para ela, querido. Entende, as duas garotas Bannock precisam de
você.

- É claro, há a possibilidade de retornar a Houston com você agora e deixar que o Paddy descubra sozinho como funcionam as operações da Cross Bow na Nigéria e no
Chile.

- Você sabe que eu jamais poderia concordar com isso - ela balançou a cabeça. - As medidas relativas à segurança da empresa são de importância primordial. Não, eu
volto para os Estados Unidos num voo comercial amanhã, e deixo o Gulfstream ao seu dispôr para acelerar o processo de transferência de poderes ao Paddy. Quero que
você esteja em Houston no dia 25 deste mês. Lembra que prometemos para Cayla? Além disso, a diretoria fará uma reunião geral, em sessão extraordinária, na segunda-feira
seguinte para confirmar seu nome no cargo. Tenho uma estranha premonição de que vão aprová-lo. Você tem amigos no tribunal - ela sorriu pela primeira vez. - Depois
disso, nós três podemos viajar juntos para o rancho.

Três semanas depois, tanto Hazel quanto Cayla estavam à espera de Hector quando o Gulfstream aterrissou no aeroporto William P. Hobby em Houston.

- Meu Deus, como senti sua falta - Hazel sussurrou enquanto o abraçava.

- Não tanto quanto senti a sua.

- Quando você encerrar seu assunto com ele, mamãe, posso ficar um pouquinho com o que sobrar? - Cayla perguntou com doçura.

Hector olhou para ela pela primeira vez.

- Uau! Você está com uma aparência ótima, Cay.

Ele mentiu. A verdade é que ela ainda estava pálida e frágil, mas ele a beijou nos dois lados do rosto. A seguir, com uma mulher enganchada em cada braço, saiu e
usou a entrada VIP para o estacionamento, onde um chofer uniformizado segurou a porta aberta do Cadillac para eles.

Hector esperava que a casa de Hazel em Houston fosse majestosa e pretensiosa. Errou feio. Ela ficava no perímetro rural da cidade no que ainda era, obviamente, um
rancho de criação de gado. Para chegar até lá, dirigiram por exuberantes campos de alfafa em que pastavam rebanhos de vacas de cabeça branca. Depois, passaram pelos
estábulos e edifícios anexos antes de chegaram à casa dela.

- Parece a casa do JR em Dallas - Hector comentou.

- Estamos em Houston, Heck - Cayla o fez lembrar. - Não gostamos de mencionar cidades de segunda classe aqui. Espere até ver a suíte principal. A mamãe fez uma reforma
completa, especialmente para você.

- Cayla! - Hazel disse com severidade.

- Ops! - ela levou os dedos até os lábios. - Não era para eu contar.

O tom dela era alegre e não demostrava arrependimento, e Cayla piscou para ele de um jeito conspiratório.

- Qualquer coisa que queira saber sobre essas bandas, é só perguntar à sua velha amiga Cay Bannock.


A reunião da diretoria estava planejada para durar uma hora e meia. No final, Hector manteve os diretores entretidos por quase quatro horas. Hazel nunca o tinha
visto falar em público, e até mesmo ela foi pega de surpresa. Sentia o coração se aquecer de orgulho enquanto o escutava. Ele era tão bonito e confiante. A compreensão
que tinha das coisas era sólida e abrangente. Ele apresentava as ideias de maneira clara e lógica e, ao mesmo tempo, as palavras que escolhia eram fascinantes e
instigantes. Ele lidou com todas as perguntas com maestria, e suas respostas deixaram todos assentindo em aprovação. É claro que John Bigelow, o senador aposentado
do Texas, do Partido Democrata, tentou fazê-lo tropeçar. Mas Hazel o tinha alertado sobre ele, e Hector reverteu a situação em seu favor tão habilmente que os outros
irromperam num aplauso espontâneo. Conforme Hazel havia previsto, a eleição de Hector para a diretoria foi uma escolha unânime. Eles se amontoaram para parabenizá-lo.

Sem querer parecer que estava com pressa, Hazel o libertou do círculo dos diretores e dirigiu com ele de volta ao rancho em seu Maserati.

- É terrível! - ela lamentou assim que estavam na estrada. - Parece impossível falar com você a sós. Nem cheguei a contar sobre a minha viagem a Washington. Estive
com o presidente. Disse a ele que paguei o resgate pela libertação da Cayla. Ele me passou um sermão de desaprovação sobre como não lidar com terroristas, blá, blá.
Depois, disse o quanto estava feliz por mim e Cayla. Ele obviamente estava feliz por eu sair do pé dele.

- Ele não quis saber quem eram os vilões?

- É claro. Roberts e uma gangue de pesos pesados da CIA me interrogaram. Mas eu disse que as negociações haviam sido feitas por telefone. O pagamento foi feito eletronicamente.
Não fiquei sabendo de nada.

- Eles acreditaram em você?

- Provavelmente não. Mas não me torturaram para extrair a verdade.

- Eles são corajosos, não estúpidos. Sabem quando estão diante de alguém de fibra - Hector riu.

Quando estacionaram na garagem subterrânea, ela consultou o relógio.

- A reunião passou da hora. Temos apenas uma hora e quarenta minutos antes de ir para o country club - ela avisou. - Quero apresentar você a algumas pessoas do Texas
realmente importantes.

- Então, ainda temos algum tempo para um pouco de amor e carinho. O que você acha? - perguntou com seriedade.

- Você é realmente terrível, Hector Cross - respondeu um tom severo. - Bem, ok então. Acho que sempre é possível encontrar tempo para isso.

Ela o agarrou pela mão e eles correram até o elevador privado que os levou até a ala da suíte. Uma hora depois, ele estava esperando na sala de estar quando ela
emergiu do closet. Eles estavam nas extremidades opostas da sala e se olharam com admiração.

- Nada mau - ela finalmente expressou sua opinião. - Nada mau mesmo.

- Vire-se - ordenou, e ela rodopiou para ele, as saias do vestido de baile se inflando em volta das pernas atléticas.

Nos pés, ela calçava pantufas de veludo preto incrustadas com diamantes.

- Estou tentando encontrar as palavras para descrever sua beleza - ele disse -, mas é inefável. Tudo o que consigo dizer é que você é a mulher mais encantadora do
planeta.

- Vou aceitar essa - ela disse, rindo.

- Mas, espere! - a expressão dele mudou. - Os diamantes que está usando não são os da Barbara Hutton? - ela assentiu e riu de novo.

- É claro, meu querido. Para o meu homem, somente o melhor.

Ele parecia espantado.

- Mas... mas... - ele protestou -, você perdeu o colar quando o Golfinho Amoroso afundou.

Ela balançou a cabeça, ainda sorrindo diante da confusão dele.

- Aquele colar era uma réplica.

- Uma réplica? - ele estava chocado. - E esse que você está usando? É o original?

- É claro que não. O original está no cofre de um banco na Suíça. Você tem alguma ideia de quanto custariam os prêmios do seguro se eu usasse o original todas as
vezes em que fosse fazer compras no shopping ou dançar no clube?

Os olhos dele se desviaram do rosto dela e dispararam para o quadro de Gauguin na parede às costas de Hazel. Era uma magnífica paisagem taitiana, em que mulheres
nuas da ilha apareciam em primeiro plano, nadando na piscina azul de um rio.

- Qual é o prêmio do seguro desse quadro? - ela se virou para ver o que ele estava olhando e sorriu de novo.

- Ah, não vale a pena colocar isso no seguro.

- É mais uma cópia falsa?

- "Falsa" é uma palavra muito pejorativa. Vamos dizer que é uma representação do original, que está em um cofre seguro em Londres, no qual a temperatura, umidade
e exposição à luz são estritamente controladas.

- E aqueles quadros que desapareceram junto com o Golfinho Amoroso...?

- De fato. Também eram réplicas. Sem contar o risco de roubo, imagine o estrago que uma mudança constante de clima marítimo causaria em obras tão frágeis. Todas
as minhas cópias são feitas por um casal em Tel Aviv, cujo trabalho é quase indistinguível dos originais. Assim que tiver uma oportunidade, quero que você veja os
originais. Você será o único a ter esse privilégio, além do Henry e de mim.

Ele explodiu numa gargalhada de prazer.

- Você é uma raposa esperta, Hazel, meu amor!

- Você não sabe da metade. Mas chega de conversa por agora. Leve-me para dançar, por favor - ela fez uma pausa e depois disse timidamente. - Achei que deveríamos
levar Cayla. Não quero deixá-la sozinha ainda.

- Que ideia mais esplêndida. Estarei acompanhando nada menos do que as duas garotas mais encantadoras do Texas.


Sábado à noite e o clube estava lotado, todos os lugares ao bar e nas mesas, tomados. Hazel conhecia todo mundo. Ao lado dela, Hector se movia com facilidade pela
multidão, encantando senhoras de todas as idades e impressionando os homens com modos diretos e um jeito de conversar sensato e sem rodeios. Ele e Hazel nunca haviam
dançado juntos antes, mas ambos eram atletas natos e se ajustaram um ao outro sem dificuldade. A maioria dos olhares recaiu sobre eles enquanto rodopiavam pelo salão.

Um pouco antes da meia-noite, ela conduziu Hector até o terraço.

- Querido, Cayla não dançou a noite inteira. Alguns dos garotos mais interessantes do Texas estão aqui. Ela não olhou para nenhum deles. Quero conversar com a Sarah
Longworth. Seja um cavalheiro e leve Cayla para a pista de dança, certo? Tente fazê-la se divertir.

- Certo, vou ver o que consigo fazer.

Cayla aceitou o convite para dançar com entusiasmo.

- Obrigada por salvar a minha vida de novo, Heck. Estava mofando de tédio.

Uma vez na pista, ele descobriu que ela era tão maleável e que tinha os pés tão leves quanto a mãe, mas ela ainda estava tão magra que os ossos da clavícula ficavam
sobressalentes, e ele podia sentir as costelas dela sob o corpete do vestido Tom Ford. Mesmo a maquiagem profissionalmente aplicada não era capaz de disfarçar a
palidez do rosto. Ele conseguia enxergar os tons azuis de dor em seus olhos adoráveis.

- Há alguns meninos bonitos aqui hoje à noite. Vi mais de um tentar seduzi-la para dançar. Qual é o problema? - ele perguntou.

- Estou enjoada de meninos. De todos exceto você, é claro, Heck. Só entre eu e você: estou considerando a ideia de me tornar lésbica, mas não sei como começar.

- Não espere que eu vá ensiná-la - ele riu. - Soa divertido, mas nunca experimentei.

- Você não ficou chocado com a ideia? Esperei que ficasse.

- Sei que é o que você esperava. Mas não funcionou. Estou aprendendo a conhecer muito bem as suas artimanhas.

- Então, que tal deixarmos o assunto da minha orientação sexual de lado? Você sabia que a mamãe tinha prometido nos levar para o rancho do Colorado no próximo fim
de semana?

- Estou ansioso para ir.

- Sei que você vai amar. Temos cavalos nos cercados, alces e ursos na floresta e trutas arco-íris enormes no lago. É claro, o melhor de tudo é que é onde o papai
está.

Ela falava do pai como se ainda estivesse vivo. Ele não tinha certeza se isso era saudável, mas não adicionou nada ao comentário.

- Fale mais sobre a pesca da truta. É pegar e soltar?

- Meu Deus, não! - ela ficou chocada. - Nós comemos os peixes. A mamãe e eu somos verdadeiras caçadoras-colhedoras.

- Mas vocês praticam a pesca com mosca?

- É claro que sim, não somos totais selvagens. Eu sou a campeã da família. E você? Você sabe arremessar uma linha?

- Não tenho muita ideia de como fazer isso - Hector admitiu. - Você vai ter que me dar algumas aulas.


No voo até o aeroporto de Steam Boat Springs, eles fizeram um desvio para sobrevoar o Rancho Bannock. Os três se aglomeraram na mesma janela para olhar a natureza
magnífica das montanhas com picos de neve, florestas, rios e lagos resplandescentes. Hazel apontou para os perímetros do rancho.

- A extensão é de 1.800 hectares. Aquele é o Lago da Guitarra. Dá para ver como o formato deu origem ao nome. Está tudo dentro da nossa propriedade, e a casa fica
na ponta do braço da guitarra.

A casa parecia uma construção grande e irregular, com um telhado de placas de sequoia vermelhas e vários planos e inclinações. Numerosas chaminés se erguiam sobre
ela, a maioria exalando fumaça das lareiras. Havia meia-dúzia de barcos de pesca amarrados em frente ao amplo deck de madeira, e fileiras de estábulos e edifícios
anexos ao longo da extremidade da floresta.

- Olhe o topo da Montanha da Lupa, Heck - Cayla apontou animada para o edifício reluzente de mármore branco empoleirado sobre a ponta do cume da montanha, com vista
para a propriedade. As portas duplas e imponentes eram guardadas por uma coluna coríntia de cada lado, que apoiavam o telhado neoclássico em V. - É o mausoléu do
papai. Não é magnífico? Espero um dia ser enterrada ao lado dele.

- Não seja tão mórbida, bebé - Hazel a repreendeu. - O dia está bonito demais, e você é muito jovem e linda para pensar na morte e em morrer.

Quando aterrissaram, Dickie Munro, o administrador da fazenda, estava no aeroporto para recepcioná-los de Chevy Suburban, para carregar toda a bagagem das mulheres
Bannock. Já estava ficando tarde quando chegaram ao rancho. Restava apenas uma hora antes do pôr do sol, e eles teriam de correr até a doca com as varas de pesca.
Dickie tinha espalhado iscas sobre a água e, onde quer que eles olhassem, trutas grandes subiam à superfície.

- Como convidado de honra, gostaríamos que fizesse o primeiro arremesso, Heck - Cayla fez uma pequena mesura graciosa.

Ele caminhou até a beira da doca, desenrolou cerca de trinta metros de linha da carretilha e depois a arremessou em um laço fechado, que gentilmente a desenrolou
inteira sobre a superfície da água. A mosca assentou na superfície como uma teia de aranha. Permaneceu ali por apenas alguns segundos até que um intenso torvelinho
veio de baixo, e a vara de bambu se curvou quase ao meio quando um truta de quase cinco quilos rompeu a superfície.

- Meu Deus! Meu Deus! - Hector gritou. - Parece que há alguma coisa na ponta da linha. O que tenho de fazer para soltá-lo?

- Você deveria dizer a verdade de vez em quando. Acreditei mesmo quando disse que não tinha a menor ideia - Cayla balançou a cabeça como se lamentasse.

Às cinco e meia da manhã seguinte, Cayla bateu na porta do quarto deles e gritou através da fechadura:

- Vamos, seus dois preguiçosos! Vou levá-los para dar uma volta a cavalo antes do café da manhã. Encontro os dois nos estábulos em vinte minutos. Não se atrasem.

Hazel grunhiu ao se sentar na grande cama e, com um movimento da cabeça, afastou o cabelo do rosto.

- Criança medonha! Que tal levá-la até o lago e afogá-la?

Ao lado dela, Hector rolou até ficar deitado de costas, bocejou e esfregou os olhos.

- Essa é uma morte fácil demais para uma pequena bárbara que viola a santidade da pátria.

Cayla já estava montada em seu garanhão dourado quando, quarenta minutos depois, Hector e Hazel seguiram o caminho até os estábulos. Ela conduzia o cavalo ao redor
dos obstáculos no cercado principal. Embora parecesse minúscula sobre as costas do grande animal, ela se fundia tão perfeitamente com ele que cavalo e cavaleira
pareciam se mover como se fossem uma única entidade. A expressão no rosto dela era de deleite, arrebatada por um êxtase quase palpável. As bochechas dela estavam
coradas. As mãos sobre as rédeas eram ligeiras e fortes. Seu corpo maltratado parecia novamente inteiro.

- Ela está totalmente transformada - Hector sussurrou. - Olhe para ela, Hazel, essa será a salvação da Cayla.

- Descobri que tenho sido cega. Agora estou enxergando pelos olhos dela pela primeira vez - Hazel disse em voz baixa. - Eu tinha a minha opinião sobre o que seria
bom para ela e tentei forçá-la a entrar em um molde em que não se encaixava.

Nesse momento, Cayla olhou para o outro lado do cercado e os viu.

- Vocês finalmente conseguiram se arrastar para fora da cama - gritou para eles. - Dickie pôs sela nos cavalos para vocês. Vamos!

Eles cavalgaram juntos ao redor do lago, e Cayla disse a Hector:

- Você é bom de montaria, mas não tanto como na pesca com mosca. Onde aprendeu todas essas coisas?

- Fui criado numa fazenda de gado no Quênia. Fazíamos todas as nossas tarefas a cavalo, e havia trutas num córrego nas montanhas.

Galoparam de volta ao longo do caminho da floresta, assustando um grande alce que estava deitado, fazendo-o fugir encosta acima em pânico, locomovendo-se com dificuldade.

- Heck, vou levar você para conhecer o papai - Cayla gritou para ele.

Sem esperar que a mãe a detivesse, ela os conduziu galopando pela subida sinuosa. De repente, saíram da floresta. O mausoléu se erguia acima deles bem no topo da
montanha, e o sol cintilava nas paredes de mármore. Era menor do que Hector esperava quando o tinha visto do alto, mas as linhas elegantes conferiam à construção
uma aparência grandiosa e imponente. Havia um negro idoso de cabelos grisalhos e lustrosos à espera deles em frente às altaneiras portas duplas. Ele se aproximou
para saudar Hazel e Cayla e segurou a cabeça dos cavalos enquanto elas desmontavam.

- Este é o Tom. Ele é leal à nossa família - Hazel disse a Hector. - Era o chofer do Henry, mas agora é o guardião de sua tumba. Olhe como ele mantém tudo bonito!

Sorrindo diante do elogio, Tom abriu as portas, e Cayla os levou pelas mãos até o saguão do jazigo. O assoalho era xadrez, composto de lajotas de mármore pretas
e brancas. No centro, havia uma plataforma de mármore elevada e, sobre ela, um enorme sarcófago de granito vermelho. Hector viu imediatamente que havia sido copiada
da tumba de Napoleão no Les Invalides em Paris. Hazel deu um passo adiante e se ajoelhou na almofada de veludo azul que Tom havia colocado ao pé do sarcófago. Ela
abaixou a cabeça em silêncio. Cayla e Hector aguardaram do lado de dentro da porta até que ela erguesse a cabeça de novo e se levantasse. A seguir, Cayla correu
para frente e subiu na tampa do sarcófago. Abriu os braços sobre ele e beijou o granito polido.

- Oi, papai. Senti tanto a sua falta.

Em seguida, ela sentou e se empoleirou de pernas cruzadas no topo do sarcófago. Ela pediu para que Hector se aproximasse.

- Papai, trouxe uma visita para você - ela disse. - Este é o Heck. Foi ele que salvou minha vida, aquele de quem falei. Sei que vão gostar um do outro. Diga "oi"
para o meu pai, Heck!

Sem se acanhar, Hector se adiantou e colocou a mão sobre o caixão.

- Olá, Henry. Nos encontramos antes, como deve se lembrar. Você contratou minha empresa, a Cross Bow. Vou tentar tomar conta das suas meninas tão bem quanto você.

- Isso é tão gentil da sua parte, Heck - Cayla disse com seriedade. - É exatamente o que o papai gostaria de ouvir.

Eles ficaram na tumba por quase uma hora. Tom levou ramos de flores recém-cortadas, e as garotas ajudaram a arranjá-las em vasos de prata na cabeceira e ao pé do
sarcófago. Afinal, Cayla e a mãe se despediram de Henry Bannock, e Cayla prometeu que voltaria logo. A seguir, desceram os degraus para saírem para o gramado. Uma
sombra passou sobre eles, e os três olharam para cima instintivamente. Um ganso azul voava. O vento sibilou suavemente sobre as grandes asas batendo ao ar. Ele grasnou
uma vez, e Cayla dançou e acenou para o pássaro.

- É o papai! Ele gosta de você. Veio dizer que você é bem-vindo à nossa família.

Quando o ganso foi desaparecendo em direção às nuvens até se tornar um ponto distante, Hazel explicou:

- O apelido de família do Henry era Ganso. Por vinte anos, ele foi o presidente do Clube de Caçadores de Gansos do Texas. Sabe, é daí que vem a ideia da Cayla. Tenho
um ligeiro pressentimento de que ela pode estar certa, aquele pássaro podia muito bem ser a sombra do Henry vindo dar uma espiada em nós.

Eles foram até o banco de pedra do gramado com vista para o lago e a propriedade. Sentaram-se em silêncio, em reflexão, tocados pela experiência que tinham compartilhado.
Cayla por fim quebrou o silêncio:

- Mamãe, talvez esta não seja a hora certa de discutir isso com você. Acho que nunca vai haver um momento certo. Então, vou botar para fora com esperança de que
dê certo - ela respirou fundo. - Não vou voltar para a faculdade de Belas Artes. Esforcei-me bastante, mas nunca gostei muito de estudar arte e nunca fui muito boa
no assunto, não é mesmo? - ela não esperou pela resposta e prosseguiu imediatamente. - E depois de tudo que aconteceu comigo naquela cidade, eu odeio Paris.

Hector pode sentir a decepção de Hazel e apertou sua mão. Após um momento, Hazel olhou para a filha e sorriu.

- A vida é sua, bebé. Sei que interferi, sinto muito. É só me dizer o que quer fazer e farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-la.

- Já me matriculei na Universidade de Medicina Veterinária do Estado do Colorado e, mais tarde, vou me especializar em animais de grande porte.

- Cavalos? - perguntou Hector.

- O que mais poderia ser? - ela riu.

Hazel não riu com ela.

- Você já se matriculou e foi aceita? - Hazel pareceu perplexa.

Hector nunca a tinha visto tão desconcertada. Ele apertou a mão dela de novo quando Hazel abriu a boca para protestar, fechando-a a seguir. Por um momento, ela pareceu
desolada e desesperada, mas depois se recuperou e deu um sorriso vacilante.

- Ok, querida. Se eles já a aceitaram, é melhor pegarmos um voo até a cidade de Denver logo de manhã na segunda-feira.

- Mamãe, você não vai fazer uma visita ao reitor, vai?

- É claro que vou.

- Mas isso tem a ver comigo, é um assunto meu. Não sou mais um bebé. Provavelmente esta é a primeira vez na minha vida em que fiz algo que queria. Você não entende?

Hector viu que a situação estava prestes a explodir violentamente. Ele deu uma tossidinha, e ambas olharam para ele.

- Diga a ela, Heck. Ela não entende - disse Cayla.

- É claro que ela entende, Cay. Sua mãe é o ser mais perceptivo, homem ou mulher, que já conheci. Ela sabe o que é cair sozinha no mundo, exatamente como fez quando
tinha a sua idade. Assim como você agora, ela deixou tudo para trás para seguir um sonho. Ela sabe, Cay. Acredite em mim, ela sabe.

Ambas as mulheres se acalmaram visivelmente. Ele deixou que pensassem por um momento.

- Foi você quem tomou a decisão, Cay - ele prosseguiu gentilmente. - Você está absolutamente certa quanto a não ser mais bebé. Sua mãe sabe disso e agora está oferecendo
todo o seu apoio. Você não pode ser tão cruel a ponto de excluí-la completamente de sua vida, pode?

A expressão no rosto de Cayla era de profunda consternação. Ela se levantou de um pulo e correu até Hazel.

- Minha mãe querida, não era isso que eu queria, de maneira nenhuma - ela começou a chorar. - Foi tão rude da minha parte. Você sempre ocupará o espaço central da
minha vida.

- Obrigada, minha filha querida - Hazel soluçou, e as duas se abraçaram com força, chorando amargamente.

"Pois bem", Hector disse a si mesmo tentando esconder um sorriso. "Pelo menos não é mais a mamãe com o bebé. Acho que é um novo começo encorajador."

Elas tinham se esquecido da existência dele. Ele se levantou e as deixou a sós. Desceu até onde os cavalos estavam amarrados ao poste. Ele se encostou no ombro do
garanhão e acariciou seu pescoço. Ele raramente se sentia tão satisfeito consigo mesmo. As duas mulheres vieram ao encontro dele meia hora depois e estavam caminhando
de mãos dadas.

- Vamos todos à minha nova faculdade em Denver na segunda-feira de manhã para conhecer o reitor - Cayla falou alegremente. - Você também, Heck!

Ela correu até o cavalo e pulou para a sela. Desceu correndo pelo caminho da floresta, soltando uma sucessão de gritos estridentes de caubói.

Hazel foi até Hector. Ela olhou para ele e disse baixinho:

- Você é um gênio, mas suspeito de que já esteja ciente do fato.

- Sou forçado a admitir que já suspeitava também - ele disse, e Hazel o beijou.

 

Cayla foi para a faculdade de veterinária em Denver no início do primeiro semestre do ano-novo, ao mesmo tempo em que Hector assumiu sua nova função na Bannock Oil
como vice-presidente. No princípio, ele não teve uma participação ativa nos assuntos da empresa. Em vez disso, observava e escutava. Ele e Hazel ficavam acordados
até tarde quase todas as noites, estudando e discutindo a montanha de informações que cobriam as atividades da empresa nos cinco anos anteriores. As perguntas dele
eram perceptivas e instigantes. Hazel as achava tão estimulantes que viu novamente através dos olhos de Hector o que tinha feito certo, e onde o julgamento dela
havia falhado. Ela entendeu que os anos em que estivera completamente sozinha, sem uma alma amiga em quem buscar consolo e conselhos, tinham causado dano. Sem perceber,
ela havia perdido o ímpeto. Tinha sido uma corrida solitária para ela, que estava perdendo as forças. Agora, mais uma vez, tinha alguém em cujo julgamento podia
confiar, além de em si mesma, e isso era como uma descarga de eletricidade. Ela não acordava mais logo de manhã com receio do dia que tinha pela frente. De novo,
saboreava a perspectiva do conflito e do desafio, de ter de se esforçar ao máximo.

- É como o último set do Aberto da Austrália no dia em que conquistei o título. Meu Deus, voltou a ser divertido.

Para aumentar ainda mais sua alegria de viver, Hector estava finalmente pronto para se colocar ao lado dela. Por meses ele tinha se sentado tão silenciosamente à
mesa da diretoria que os outros membros tinham quase se esquecido de sua existência, mas agora ele começava a se manifestar. Quando superaram o choque inicial, começaram
a escutar o que ele tinha a dizer.

- Esse seu companheiro tem faro e instinto - John Bigelow disse num tom respeitoso. - Ele é como o Henry quando tinha a mesma idade.

Os negócios da Bannock Oil tinham andado meio parados, mas agora passavam por uma reviravolta positiva, e não inteiramente devido à subida dos preços do petróleo.
Hector pegou um voo para Abu Zara e, após cinco dias de discussões com o emir, obteve os direitos de perfuração em mar por todo o litoral dos Emirados até o Zara
número oito. O primeiro poço petrolífero produtivo começou a funcionar onze meses depois. O sucesso foi estrondoso.

Hazel e Hector viajaram juntos para Abu Zara para inaugurar o novo poço. Paddy O'Quinn, Bert Simpson e mais uma dúzia de funcionários seniores estavam na pista de
Sidi el Razig para recebê-los. Tanto Hazel quanto Hector abraçaram Paddy e trocaram apertos de mãos com os demais. E então, Hector olhou à sua volta.

- Onde está o Tariq? - ele perguntou.

Paddy olhou de lado para ele de um jeito estranho.

- Ele vai voltar em dois dias - havia algo em seu tom de voz que disparou os alarmes na mente de Hector.

- O quê? - Hector indagou.

- Mais tarde! - Paddy evitou responder.

Eles não tiveram a oportunidade de conversar de novo até alcançarem o edifício do terminal de petróleo. Ao saírem do carro, Hector deu a mão a Hazel para ajudá-la
e, ao mesmo tempo, olhou para Paddy.

- Ok, Paddy, agora me diga o que aconteceu com Tariq.

Os três estavam sozinhos, fora do campo de visão dos outros, protegidos pelo volume da caminhonete Humvee, mas ainda assim Paddy abaixou a voz.

- Tariq foi a Ash-Alman enterrar a mulher, Daliyah, e o filho, e passar pelo período de luto.

Tanto Hector como Hazel o encararam boquiabertos. Hazel quebrou o silêncio causado pelo choque.

- Daliyah? Morta? - Hazel soltou. - Não! Não posso acreditar.

- A casa deles foi incendiada. Daliyah e o bebê ficaram presos entre as chamas. Era tarde da noite e não conseguiram escapar.

- Bebé? - Hazel balançou a cabeça. - Daliyah estava casada com o Tariq? Eles tiveram um bebê?

Paddy assentiu.

- Um filho. Nasceu há seis meses.

- Não fiquei sabendo - Hector disse em voz baixa.

- Tariq me disse que escreveu para você.

- Então eu nunca recebi a carta. Nunca fiquei sabendo.

Paddy nunca tinha visto Hector tão transtornado. Ao lado dele, Hazel começou a chorar baixinho.

- Meu Deus! - ela murmurou. - Daliyah e o bebê dela, mortos. Meu Deus. É muito cruel.

Hector colocou um dos braços ao redor dos ombros dela e a conduziu para dentro do terminal.

Na manhã seguinte, quando entraram no centro de controle do terminal, Hazel ainda estava pálida, e os olhos, vermelhos. Hector estava quieto e taciturno. Bert Simpson
e Paddy se levantaram das cadeiras em frente às telas dos computadores da comprida mesa de controle do sistema.

- Tariq está aqui - disse Paddy. - Ficou sabendo que você tinha chegado e voltou de Ash-Alman hoje cedo.

- Mande-o entrar - disse Hector.

Paddy alcançou o interfone e transmitiu a ordem. Em alguns instantes, ouviram uma batida discreta na porta.

- Entre! - Hector chamou com a voz embargada de emoção.

Tariq permaneceu na entrada. A expressão no rosto dele era remota e fria. Hector foi até ele rapidamente e o abraçou.

- É difícil, velho amigo - ele disse com a voz ainda rouca.

- Sim, é difícil - Tariq concordou.

Eles se afastaram um do outro, ambos constrangidos e sem saberem o que dizer. Hazel foi até Tariq e tocou seu ombro direito.

- Meu coração está com você. Daliyah era uma mulher encantadora. Devo minha vida a ela.

- Sim - disse Tariq em voz baixa -, ela era uma boa esposa.

- E seu filho?

- Era um bom menino.

- Como uma coisa terrível dessas foi acontecer? - Hazel perguntou.

- Vocês eram amigos dela - Tariq respondeu obliquamente. - Podemos caminhar juntos em sua memória?

"Isso é assunto confidencial", Hector disse a si mesmo. "Tariq está escondendo o jogo." Ele pegou Hazel pelo braço e disse num tom gentil:

- Ficaremos honrados em caminhar com você, Tariq.

Eles saíram em direção ao resplandescente sol do Golfo. Não havia nuvens no céu e as águas refletiam o seu brilho. Parecia bonito demais diante de toda aquela tristeza.
Hazel caminhou pela praia entre os dois homens em silêncio. Por fim, não conseguiu mais se conter.

- Paddy nos contou que houve um incêndio na sua casa?

- Sim, sra. Bannock. Houve um incêndio - ele ficou calado de novo, e eles viram os olhos dele marejados brilharem de raiva à luz do sol. - Tentei escondê-los. Comprei
uma casa em um vilarejo onde ninguém nos conhecia. Usei um outro nome. Fiz o irmão ficar com ela para protegê-la quando eu não pudesse. O irmão morreu no incêndio
com eles.

- Não foi um acidente, então? - Hazel perguntou.

- Não foi acidente - Tariq confirmou. Ele olhou para Hector. - Você sabe quem fez isso.

Hector assentiu.

- Sei - disse sem emoção na voz.

Hazel o olhou nos olhos e então soube também.

- Foi o Uthmann Waddah! - Hazel murmurou. - Foi a Besta novamente, não foi?

Hector assentiu.

- Mas como você soube? - ela perguntou.

- Sra. Bannock, Hector soube com o coração, não com a cabeça. Assim como eu - Tariq explicou. - Ele e eu conhecemos Uthmann como se conhece um irmão querido e um
inimigo mortal.

- Você sabe onde Uthmann está agora? - Hector perguntou.

- Sim. Está com o xeique Adam Tippoo Tip na fortaleza do Oásis do Milagre.

- Tem certeza? - Hector perguntou, e Tariq assentiu.

- Após o funeral da minha esposa, do irmão dela e do meu filho, após três dias de luto, fui embora, em roupas de mendigo, até a Baía de Gandanga de ônibus, à procura
do assassino. Não consegui chegar até a fortaleza. Estava vigiada por guardas demais. Mas aguardei na Baía de Gandanga por doze dias. Vi várias coisas. Vi a nova
frota de barcos de ataque que o xeique Adam mandou construir desde a morte do avô, e que é comandada pelo seu tio Kamal. Vi os navios capturados por eles ancorados
na baía. Ouvi homens falando sobre Uthmann Waddah. Ouvi dizerem que ele é o braço direito de Adam e que tem grande poder abaixo de seu mestre.

- Você os viu, Tariq? - Hector perguntou em voz baixa.

- Vi os dois. No décimo segundo dia seguiram em uma comitiva numerosa até a Baía de Gandanga. Adam agora é um homem poderoso, e Uthmann é seu general. Não consegui
me aproximar dele. Estavam cercados de vários de seus homens e agindo com cautela. Talvez eu tenha de esperar anos, mas a minha hora vai chegar - Tariq concluiu
com simplicidade.

Todos permaneceram calados por um tempo, até que Hazel perguntou:

- O que você vai fazer agora, Tariq?

- É um assunto a ser resolvido na faca - Tariq respondeu. - Sangue atrai sangue. É uma dívida de honra. Minha esposa e meu filho estão irrequietos em seus túmulos.
Tenho de garantir o descanso deles.

- Você tem de fazer isso, Tariq? Já perdemos Daliyah, agora temos de correr o risco de perdê-lo?

- Explique para ela, Hector, por favor.

- Tariq não tem escolha - Hector disse. - Ele tem de fazer o que o dever e a honra exigem - ele se virou novamente para Tariq. - Pode ir, velho amigo. Se houver
qualquer coisa que eu possa fazer, sabe que pode me enviar uma mensagem pelo Paddy O'Quinn.

- Talvez leve tempo... anos até - Tariq o avisou.

- Eu sei - Hector assentiu. - Você estará na folha de pagamento da Cross Bow pelo tempo que for necessário. Volte para nós quando tiver cumprido sua missão.

- Obrigado, Hector. Obrigado, sra. Bannock.

Tariq abraçou Hector e fez uma mesura para Hazel. Em seguida, deu meia-volta e se afastou caminhando ao longo do oleoduto na direção do campo de aviação. Ele não
olhou para trás.

Hector e Hazel falaram sobre ele com frequência nos meses seguintes, mas como não tiveram notícias, a lembrança foi desaparecendo gradualmente no pano de fundo de
seus frenéticos estilos de vida. Não se esqueceram dele, mas a cada dia a lembrança se tornava menos dolorosa e urgente. Hazel a manifestou de maneira agradável
na noite em que fazia um ano que tinham visto Tariq Hakam pela última vez em Sidi el Razig. Cayla tinha passado o feriado da Páscoa com eles no rancho e retornado
à faculdade de veterinária na segunda-feira. Os dois estavam bebendo uma taça de champanhe antes de dormir. Hazel fez um brinde na direção dele.

- Graças a Deus Cayla está segura aqui nos Estados Unidos e que aqueles momentos horríveis estão tão distantes no tempo.


A pedido de Hector, a administração da Bannock começou a levar a exploração de energias alternativas mais a sério. Hector adquiriu cinco patentes de um engenheiro
jovem e inteligentíssimo de quem ninguém nunca havia ouvido falar. As patentes tinham um potencial tão grande de produzir energia eólica de maneira eficiente e a
custos baixos, que tanto a Shell como a Exxon logo entraram na concorrência pelo empreendimento. Ao final do segundo ano financeiro desde a chegada de Hector, a
Bannock conseguiu declarar um aumento de sete e meio por cento em seus dividendos. O preço das ações, que estava estagnado havia vários anos, subiu para 255 dólares.

E então, para coroar o momento de Hazel e Hector, as notas de Cayla saíram no final de seu penúltimo ano na faculdade de veterinária. Ela foi a terceira em uma classe
de 36 alunos. Thelma Henderson, psiquiatra de Cayla, declarou que ela estava completamente curada. Ela tinha engordado um pouco, e o sangue fresco e jovem tornara
sua pele radiante novamente. A felicidade de Hazel estava completa.

Mais um ano passou correndo. Veio o feriado de Ação de Graças, e Cayla viajou de Denver a Houston para celebrar em casa com eles. Ela trouxe um convidado. Ele estava
no último ano da Faculdade de Medicina da Universidade do Colorado. Seu nome era Simon Cooper. Sentaram-se lado a lado à mesa festiva, e Cayla olhava para ele com
olhos brilhando de admiração. A reação de Hazel foi previsível.

- O pai dele é um ferreiro - ela confessou com horror para Hector.

- Você é terrivelmente esnobe, minha querida - ele riu dela. - Na verdade, ele tem e opera uma rede de mais de 130 megastores de artigos elétricos e de ferragens.
Em comparação a ele, eu sou pobre.

- Não ouse se comparar a qualquer outro homem deste mundo.

- É a escolha da Cayla. Se você se opuser a ela, tudo que irá conseguir é que ela bata ainda mais o pé. Você já aprendeu a lição, não aprendeu?

Enquanto Cayla ajudava Hector a preparar o churrasco daquela noite, ela pediu a Simon que buscasse mais um saco de carvão, e assim que ele saiu, Hector perguntou:

- O que aconteceu à sua possível incursão nos prazeres sáficos do lesbianismo? Está fazendo algum progresso?

- Ah, aquilo! - ela respondeu distraidamente. - Não recebi nenhum encorajamento da sua parte, então parei de trabalhar no projeto.

Ela garfou mais uma bisteca da churrasqueira e a colocou na travessa, perguntando sem olhar para ele:

- Vi você conversando com o Simon. Então, o que acha dele?

- Para mim, parece valer a pena. Acho que devia pensar duas vezes antes de atirá-lo de volta ao lago.

- Amo você, Heck. Você tem talento impecável para julgar o caráter alheio. Mas o que a minha mãe acha dele?

- Você devia perguntar a ela, não a mim.

Cayla assentiu, e nesse momento Simon retornou com o saco de carvão. Cayla pegou a travessa de bistecas e a levou para a cozinha. Hector abriu mais duas Budweisers
e deu uma para Simon. Eles conversaram amigavelmente enquanto esperavam as mulheres voltarem. Hector descobriu que ele tinha 26 anos e que não apenas era simpático
e atraente, mas também inteligente, com interesses variados além da medicina - desde jazz, passando por história, futebol americano, pesca com mosca, até política.
Hazel e Cayla finalmente emergiram da cozinha carregando bandejas de comida. Cayla estava alguns passos atrás da mãe, e Hector lhe lançou um olhar especulativo.
Ela sorriu e piscou de volta.

Simon foi embora na manhã seguinte para passar o restante do feriado com a própria família. Hazel deu o dia de folga para os empregados da casa. De novo, eram só
os três juntos. Cayla passou o dia inteiro animada e em clima de brincadeira. Eles assistiram ao futebol americano na televisão, e Cayla foi até a cozinha, retornando
com uma tigela enorme de pipoca quente com manteiga, que foi devorada enquanto as mulheres torciam para o Texas Longhorns. Hector fingiu não entender nada das regras
do jogo.

- Meu Deus! - ele protestou. - Aquele gorilão de capacete vermelho está trapaceando. Ele está jogando a bola para frente e o juiz está deixando ele se safar!

As duas mulheres o atacaram em tom de brincadeira, e ele sorriu. A provocação surtira efeito.

- Tudo o que posso dizer é que não é cricket nem rugby.

Ele desistiu, e elas perceberam que estava brincando. Cayla acertou o braço dele em cheio com um soco.

- Não teve graça! - ela insistiu.

No final, os Longhorns venceram, e ela perdoou o sacrilégio. A paz foi restaurada.

- Então, o que queremos fazer agora? - Hazel perguntou.

- O que eu gostaria de fazer agora, mamãe, é ter uma conversa muito séria com você e o Heck - Cayla respondeu. - Acho que é uma boa hora para isso.

- Estamos prestando atenção - disse Hazel com cautela.

Cayla se virou para Hector.

- O senhor, Hector, está transformando minha mãe em uma mulher da vida. As pessoas estão falando. Não acha que chegou a hora de agir de forma decente em relação
a ela?

Hector piscou. Cayla estava brincando com fogo - ele não sabia como evitar a erupção vulcânica que com certeza estava se aproximando. Ele olhou de lado para Hazel
e, para seu espanto, viu que estava corada de vergonha. A imagem era tão esplêndida que o fez perder o fôlego por um momento, e então Hazel sorriu.

- Obrigada, Cayla. Você expressou meus sentimentos com exatidão - disse.

As duas olhavam Hector com interesse.

- E então? Vamos ouvir o que o garotão tem a dizer agora - Cayla sugeriu.

- Você quer dizer aqui e agora, desse jeito, em público?

- Preciso avisar você que não é em público. É definitivamente bem em família.

- Você quer dizer que tenho de me ajoelhar? Cumprir o ritual completo?

- Viu como é esperto, Cayla querida? Ele entende exatamente o que tem que fazer se você dá um empurrãozinho.

Hazel sorriu novamente, mas não estava mais vermelha. Hector se levantou e desligou a televisão, e então brincou com o anel sinete dourado que tinha na mão direita.

- Não é fácil tirar - explicou. - Era o anel sinete do meu pai. É tudo o que ele me deixou. O rancho ficou para o meu irmão mais novo - ele deu um sorriso pesaroso.
- "Teddy precisa de ajuda", o meu velho me disse, "você não, você vai se fazer sozinho." - ele esfregou o anel entre o polegar e o indicador ao mesmo tempo que olhava
para Hazel. - Você é a única pessoa que amei em toda a minha vida mais do que o meu velho. Faz sentido passar esse anel a você.

Ele foi até o sofá onde ela estava sentada e se ajoelhou à sua frente.

- Hazel Bannock - ele disse -, eu amo tanto você, mais do que qualquer homem já tenha amado uma mulher. Você ilumina minha alma.

A expressão no rosto dela ficou mais suave, e os olhos cintilaram.

- Você aceita se casar comigo e permanecer ao meu lado durante todos os longos e felizes anos à nossa frente?

- Definitivamente e sem a menor sombra de dúvida e hesitação, aceito! - ela respondeu.

Ele enfiou o pesado anel de ouro no dedo anelar da mão esquerda dela. O modelo era masculino e grande demais. Deslizou folgadamente em volta do dedo dela.

- É apenas provisório. Vou comprar um anel de noivado de verdade mais tarde - ele prometeu.

- Você não vai fazer nada disso! - ela apertou o anel defensivamente contra a região dos seios. - Este é o anel mais bonito que já vi. Eu amei! Amei!

- Agora você pode beijar sua noiva - Cayla ofereceu.

Ele estendeu os braços e tomou Hazel, e Cayla riu ao observá-los e disse:

- Não foi fácil, mas afinal consegui juntar os dois no curral e fechei a porta.

 

-Temos de ir até a Cidade do Cabo para contar para a minha mãe - Hazel disse. - Você vem conosco, Cayla? Afinal, você se nomeou a nossa casamenteira.

- Ah, mamãe querida, não ouso perder um dia de aula. Tenho de derrotar Soapy Williams nas provas finais do ano que vem. É inacreditável como ele tem se gabado para
cima de mim.

- Como os poderosos decaíram! Você usava toda e qualquer desculpa para faltar na escola quando estava estudando arte em Paris, até o aniversário de Edith Piaf servia,
pelo que me lembro.

Cayla tinha uma expressão vaga no rosto, como se Hazel estivesse falando mongol em vez de inglês, e mudou de assunto.

- Mande todo o meu amor para a vovó Grace - disse.

A vovó Grace estava esperando em Thunder City, o aeroporto da Cidade do Cabo, quando o Gulfstream taxiou na pista. Hazel desceu os degraus correndo para abraçá-la.
Hector esperou um ou dois minutos antes de se juntar a ela no asfalto.

- Hector, quero apresentar minha mãe, Grace Nelson. Mãe, este é...

- Sei exatamente quem ele é, Hazel - Grace interrompeu, fitando-o com olhos cujo azul era idêntico ao de Hazel e Cayla. - Bem-vindo à Cidade do Cabo, sr. Hector
Cross.

- Como você ficou sabendo? Quem contou? - Hazel perguntou, e então o rosto dela se iluminou. - Cayla! - exclamou. - Vou torcer aquele pescoço de futriqueira quando
botar as mãos nela.

- Você está sendo injusta com a minha neta. Você esqueceu que ainda não estou completamente senil. Ainda sou capaz de ler as colunas sentimentais das revistas de
fofocas. Como você bem sabe, eu assino a maioria. A senhorita e o Sr. Cross têm chamado atenção por todo o globo. Porém, admito que as informações que não pude adquirir
dessas fontes foram enviadas por e-mail pela Cayla. Minha neta tem o senhor em alta estima, Sr. Cross. Espero que seja com razão.

Grace Nelson era uma mulher alta e esguia de quase setenta anos, com um ar intimidante. O que devia ter sido uma marcante beleza jovem tinha se transformado em uma
presença escultural, se não formidável, na maturidade. Ela mantinha a pele suave e quase sem rugas. Os cabelos eram cinzentos e lustrosos, cuidadosamente arrumados.
No entanto, a mão direita que estendeu para Hector, embora bem torneada e manicurada, era salpicada de manchas de velhice. Hector a segurou e beijou. Grace sorriu
pela primeira vez desde que Hector desceu a escada.

- Parece que minha neta de certa forma tinha razão, o senhor é educado, sr. Cross.

- Este é o maior elogio que minha mãe pode fazer - Hazel murmurou de maneira quase inaudível.

- A senhora é muito gentil, sra. Nelson. Ficaria honrado se me chamasse de Hector.

Grace refletiu por um instante e sorriu novamente.

- Bem, tendo em conta que irá se tornar meu genro, suponho que seja aceitável, Hector.

O motorista de Grace dirigiu pelas montanhas e pelos vinhedos de Maybach. Eles passaram pela pequena aldeia pitoresca de Franschhoek e prosseguiram subindo pelo
vale de Hottentous Holand até atravessarem os imponentes portões caiados de Dunkle Estate, chamado assim em homenagem ao local de nascimento de Grace. Além dos portões,
havia centenas de hectares de vinhas imaculadamente aparadas e arrumadas em treliças baixas. As uvas roxas e escuras dependuradas em seus caules estavam próximas
do ponto de amadurecimento.

- Pinot noir? - Hector perguntou, e Grace olhou para ele de maneira inquisitiva antes de assentir com a cabeça.

- Então, meu jovem, você entende um pouco de vinhos e uvas?

- Hector simplesmente sabe tudo a respeito de tudo o que existe. Algumas vezes ele pode ser um constante pé no saco - Hazel explicou.

- Não seja vulgar, Hazel - Grace advertiu.

A casa se chamava Cape Dutch e fora projetada por Herbert Baker em 1910. O irmão mais novo de Grace estava à espera na varanda da frente para dar as boas-vindas.
Era um homem alto e empertigado, de sessenta e poucos anos, bronzeado, de ombros largos e sem barriga devido ao trabalho manual em suas amadas vinhas.

Hazel os apresentou:

- Este é o irmão mais novo da minha mãe, meu tio John, e este é Hector. O tio John é o vinicultor de Dunkeld.

- Bem-vindo a Dunkeld. Ouvimos falar muito de você, Hector.

- E eu de você, John. Trinta e duas medalhas de ouro pelos seus vinhos ao longo dos anos, e uma nota 98 do Robert Parker pelo seu Cabernet Sauvignon mais recente.

- Você gosta de vinhos? - John parecia imensamente satisfeito.

- Eu adoro vinhos.

- Talvez possamos descer até as adegas para fazer algumas degustações quando as senhoras nos proporcionarem alguns momentos de folga.

Hazel mal podia conter o riso ao observar Hector jogar o seu charme especial para a família dela.

No segundo dia, Grace o levou até seu jardim de cicadáceas. A coleção de plantas era considerada uma das maiores da África pela Royal Botanical Society dos Kew Gardens
na Inglaterra. Os dois passaram metade da tarde juntos no jardim e, quando retornaram à Dunkeld House, já tinham estabelecido uma sólida amizade, e Hector havia
recebido permissão para chamá-la pelo primeiro nome.

Na última noite da visita, o jantar foi servido na adega de John para a família inteira. Eles retornaram à casa grande tagarelando, com olhos brilhantes e bochechas
coradas. Grace estava apenas um pouco titubeante. No entanto, alegou estar com dor de cabeça e se retirou cedo, mas não sem antes oferecer o rosto a Hector para
receber um beijo. Na manhã seguinte, John e Grace os levaram de volta a Thunder City para se despedirem.

- Você vai ao casamento, não vai, mãe? E você também, tio John.

- Você tem minha palavra solene, Hazel, minha filha. Ambos estaremos presentes - Grace respondeu e então deixou que Hector beijasse suas duas bochechas, dizendo
a seguir:

- Bem-vindo à nossa família. Hector. Há muito tempo que a Hazel precisava de um homem como você por perto.

- Vou tratá-la bem, Grace.

- É bom ela tratar você bem, ou vai ter de me escutar.


Hazel escolheu o primeiro dia de junho para o casamento e conseguiu reduzir o número da lista de convidados para meros 2.460. Hector convidou duas pessoas: Teddy,
seu irmão mais novo, e Paddy O'Quinn. Teddy recusou o convite. Ele nunca perdoou Hector por ser o filho predileto do pai. Paddy aceitou e assumiu também o posto
de padrinho. O tio John levou a noiva ao altar, e Cayla foi a dama de honra da mãe. Na marquise do casamento, uma poltrona especial, com almofadas de veludo, foi
colocada no centro da fileira da frente para Grace Nelson, que tinha fama de, após uma ou duas taças de champanhe Louis Roederer Cristal, cambalear um pouco para
a esquerda.

A diretoria da Bannock Oil havia votado por aposentar o jato Gulfstream e substituí-lo por um BBJ - um jato boeing de negócios. Esse Boeing 737 reconfigurado podia
voar de Los Angeles a Paris, sem escalas, a uma velocidade Mach 0.78. O interior luxuoso havia sido criado por Gianni Versace. Ostentava um quarto e suítes completos
para o dono, e acomodações para mais vinte passageiros. Foi o pequeno presente de casamento que a diretoria deu a Hazel.

O presente de casamento de Hazel para Hector foi um Rolex Oyster Perpetual Day Date de diamantes e platina, onde estava gravado "De H. para H., meu amor eterno",
acompanhado de uma mensagem escrita à mão num papel com cabeçalho em relevo dourado:

Meu amado querido,

Prometo caminhar sempre dez passos atrás de você durante toda a minha vida (brincadeira!)

Da sua esposa zelosa e submissa,

Hazel

Hector deu a Hazel uma réplica do anel sinete de seu pai, que se diferenciava do original por conter um impecável diamante de cinco quilates e uma inscrição na parte
de dentro: "De H. Para H., para sempre". A mensagem que o acompanhava dizia:

Imperatriz do meu Coração,

Agora você pode guardar o anel original em seu famoso cofre suíço.

Todo o meu amor até o final da jornada,

Hector

O casamento foi um triunfo, até mesmo para os padrões texanos. Desafiando os costumes, as celebrações prosseguiram por três dias. Já passava da meia-noite do terceiro
dia quando, finalmente, eles disseram adeus ao tio John, a Grace e Cayla ao pé da escada do BBJ.

- Vocês agora estão nos conformes da lei. Nem mesmo a vovó Grace pode reprová-los - disse Cayla. - Vão com tudo, meus filhos!

- Cayla Bannock, você não é uma peixeira. Por favor, não fale como uma - disse Grace caindo no choro mais uma vez.

Por fim o noivo e a noiva embarcaram no grande jato, resplandecente em sua fuselagem branca e vermelha, levando-os para o outro lado do Oceano Atlântico a toda velocidade.
Quando pousaram no aeroporto de Farnborough, na Inglaterra, um Bentley com um chofer ao volante estava à espera na pista para levá-los a Londres. No Hotel Dorchester,
o gerente-geral os acompanhou até a suíte Oliver Messel, de onde eles não emergiram por dois dias inteiros. Um disse para o outro que precisavam se recuperar completamente
da diferença de fuso horário, mas ambos sabiam que se tratava de uma desculpa patética. Na terceira noite, eles foram ao teatro Globe assistir a uma encenação de
Como Gostais da Royal Shakespeare Company.

- Se continuarmos assim, não fazendo nada além de comer e dormir, vamos acabar nos transformando numa dupla de gordos preguiçosos - ela disse enquanto tomavam o
café da manhã na sacada privada no dia seguinte.

- Quando você fala assim, com um sorriso meigo no rosto, sei que vem algo depois. Qual é a próxima que irá aprontar para mim?

- É uma surpresa especial de lua de mel, querido. A Maratona Ramblers será disputada neste domingo. Você e eu estamos inscritos.

- Quarenta e dois quilômetros! - ele exclamou.

- Não se esqueça dos 352 metros - ela o corrigiu. - De todo jeito: do que você está reclamando? Você tem três dias para treinar.

Choveu no dia da maratona, e um vento congelante soprava vindo do norte, mas eles cruzaram a linha de chegada no Mall, no lado de fora do Palácio de Buckingham,
de mãos dadas, nas 2.112ª e 2.113ª posições de um total de trinta mil corredores.

- Todo esse exercício bastou por alguns dias - Hazel disse quando estavam sentados à mesa especial reservada em um canto discreto do Mark's Club. - Amanhã é dia
de artes e cultura.

Conforme o requerido, Hazel tinha avisado com uma semana de antecedência que faria uma visita à empresa que armazenava seus quadros. Ela e Hector se sentaram lado
a lado no sofá branco de uma sala cujas paredes estavam cobertas de cortinas bege e lisas, para que nada desviasse a atenção das pinturas. Elas eram carregadas uma
a uma, com reverência, pelos funcionários da empresa e depositadas nos cavaletes de madeira diante deles. A seguir, os homens se retiraram e os deixaram admirando,
extasiados, algumas das expressões tangíveis mais encantadoras da genialidade humana.

- Quando David Livingstone descobriu as Cataratas Vitória, disse: "Paisagens como esta devem ter sido observadas pelos anjos no céu." - Hector disse baixinho.

- Entendo como ele se sentiu - Hazel sussurrou em resposta.

 

 


CONTINUA