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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCLAUSURADO / Ian McEvan
ENCLAUSURADO / Ian McEvan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado noite e dia contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter.
Estou mergulhado em abstrações, e só as crescentes relações entre elas criam a ilusão de um mundo conhecido. Quando ouço a palavra “azul”, que nunca vi, imagino um tipo de acontecimento mental muito próximo de “verde” — que também nunca vi. Considero-me um inocente, descomprometido com lealdades e obrigações, um espírito livre, apesar do pouco espaço de que disponho. Ninguém para me contradizer ou repreender, sem nome nem endereço anterior, sem religião, sem dívidas, sem inimigos. Minha agenda, se existisse, registraria apenas meu futuro dia de nascimento. Sou, ou era, apesar do que dizem agora os geneticistas, uma lousa em branco. Mas uma lousa porosa e escorregadia, inútil para ser usada numa sala de aula ou no telhado de uma cabana, uma lousa que escreve por si mesma à medida que cresce a cada dia e se torna menos branca. Considero-me um inocente, mas tudo indica que participo de uma conspiração. Minha mãe, abençoado seja seu incansável e barulhento coração, parece estar envolvida.

 

 

 

 

 

 

Parece, Mãe? Não, está de fato. Você está. Está envolvida. Sei desde o meu começo. Deixe que eu o evoque, aquele momento de criação que chegou com meu primeiro pensamento. Faz muito tempo, muitas semanas atrás, meu circuito neural se fechou e se transformou em minha espinha, e meus muitos milhões de jovens neurônios, tão ativos quanto bichos de seda, fiaram e teceram, a partir de seus axônios em forma de cauda, o lindo tecido dourado da minha primeira ideia, uma noção tão simples que agora em parte me escapa. Era eu? Autoadmiração excessiva. Era agora? Dramática demais. Ou algo que antecedia ambas, continha ambas, uma só palavra acompanhada de um suspiro ou de um apagão mental de aceitação, de puramente ser, algo como — isto? Muito pedante. Por isso, chegando mais perto, minha ideia foi Ser. Ou, se não isso, sua variante gramatical, é. Esse foi meu conceito original, que tem na essência é. Apenas isso. Correspondendo a Es muss sein. O início da vida consciente foi o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece. Minha mãe está envolvida numa conspiração e, consequentemente, eu também estou, mesmo se meu papel consistir em fazê-la fracassar. Ou, como um tolo relutante, se me demorar demais aqui, então o de ir à forra.

Mas não me queixo diante da boa fortuna. Eu sabia desde o início, ao desembrulhar de seu tecido dourado meu presente de consciência, que poderia ter chegado a um lugar pior e em momento bem pior. Os elementos gerais já são claros, fazendo com que meus problemas domésticos sejam, ou devessem ser, insignificantes. Há muito que comemorar. Herdarei condições modernas (higiene, férias, anestésicos, lâmpadas de leitura, laranjas no inverno) e habitarei um canto privilegiado do planeta — a Europa Ocidental, bem alimentada e livre de pragas. A Velha Europa, esclerosada, relativamente bondosa, atormentada por seus fantasmas, vulnerável aos agressores, insegura de si mesma, destino preferido de milhões de infelizes. Minha vizinhança não será a próspera Noruega — minha primeira escolha por causa de seu gigantesco fundo soberano e generoso sistema de amparo social; nem minha segunda, a Itália, por causa da culinária local e da decadência ensolarada; nem mesmo minha terceira, a França, devido a seu pinot noir e jovial amor-próprio. Em vez disso, herdarei um reino em nada unido governado por uma rainha idosa e reverenciada, onde um príncipe que é também um homem de negócios, famoso por suas boas ações, seus elixires (essência de couve-flor para purificar o sangue) e intromissões inconstitucionais, aguarda com impaciência a coroa. Esse será meu lar, e vai dar para o gasto. Eu poderia ter vindo ao mundo na Coreia do Norte, onde a sucessão também é garantida, mas onde faltam liberdade e alimentos.

Como é que eu, nem mesmo jovem, nem mesmo nascido ontem, posso saber tanto ou saber o suficiente para estar errado sobre tantas coisas? Tenho minhas fontes, eu escuto. Minha mãe, Trudy, quando não está com seu amigo Claude, gosta de ouvir rádio e prefere programas de entrevistas a música. Quem, com o surgimento da internet, teria previsto o crescimento continuado do rádio ou o renascimento daquela expressão arcaica, “sem fio”? Acima da barulheira de máquina de lavar roupa que fazem estômago e intestinos, acompanho as notícias, origem de todos os pesadelos. Movido por uma compulsão que me faz mal, ouço com atenção as análises e os debates. As repetições de hora em hora e os resumos regulares a cada meia hora não me aborrecem. Tolero até o Serviço Mundial da BBC e as fanfarras pueris de clarins eletrônicos e xilofone que separam cada notícia. No meio de uma noite longa e serena, posso sapecar um bom pontapé em minha mãe. Ela acorda, perde o sono, liga o rádio. Uma maldade, eu sei, mas estamos os dois bem informados de manhã.

E ela gosta de áudios de palestras e livros de autoajuda — Conheça seu vinho em quinze partes —, biografias de dramaturgos do século XVII e de várias obras clássicas. O Ulisses de James Joyce a faz dormir, enquanto a mim entusiasma. Quando, nos primeiros dias, ela punha os fones de ouvido, eu ouvia claramente devido à eficiência com que as ondas sonoras viajam através do maxilar e da clavícula, descendo pela estrutura óssea e atravessando velozmente o nutritivo líquido amniótico. Até mesmo a televisão transmite a maior parte de sua escassa utilidade por meio de sons. Além disso, quando minha mãe e Claude se encontram, eles às vezes discutem a situação do mundo, em geral em tom de lamentação, embora planejem torná-lo ainda pior. Alojado onde estou, sem nada para fazer a não ser crescer meu corpo e minha mente, absorvo tudo, até mesmo as idiotices — que é o que não falta.

Porque Claude é um homem que gosta de se repetir. Um homem de reiterações. Ao apertar a mão de um desconhecido — ouvi isto duas vezes —, ele dirá: “Claude, como o Debussy”. Não podia estar mais errado. Esse é Claude, um incorporador de imóveis que não compõe nada, que não inventa nada. Ele aprecia uma ideia, a enuncia em voz alta, depois a repete e — por que não? — a enuncia mais uma vez. Fazer o ar vibrar uma segunda vez com seu pensamento é parte inseparável de seu prazer. Ele sabe que você sabe que ele está se repetindo. O que ele não sabe é que você não aprecia isso tanto quanto ele. Aprendi numa palestra da série Reith que isso se chama uma questão de referência.

Aqui está um exemplo tanto dos discursos de Claude e de como coleto informações. Ele e minha mãe combinaram por telefone (ouço as duas partes) se encontrarem à noite. Não me levando em consideração, como de hábito — um jantar à luz de velas para dois. Como sei sobre a iluminação? Porque, ao serem levados a seus lugares, ouço minha mãe reclamar que as velas estão acesas em todas as mesas menos na deles.

Segue-se um arquejo irritado de Claude, um estalar imperioso de dedos secos, uma espécie de murmúrio obsequioso, assim imagino, de um garçom curvado sobre a mesa, o raspar de um isqueiro sendo aceso. É o que eles desejam, um jantar à luz de velas. Só falta a comida. Mas eles têm no colo os pesados cardápios — sinto a borda inferior do cardápio de Trudy pressionando a parte de baixo de minhas costas. Agora sou obrigado a ouvir mais uma vez a dissertação de Claude sobre itens do menu, como se ele fosse a primeira pessoa a notar aqueles absurdos insignificantes. Demora-se nos comentários sobre “fritado na frigideira”. De que serve a menção a frigideira senão para tapear o cliente sobre o fato de que se trata de uma corriqueira e pouco salutar fritura? Onde mais seria possível preparar vieiras com pimenta e suco de limão? Num timer de cozinha? Antes de seguir adiante, ele repete isso com variações de ênfase. Depois, seu outro item predileto, uma importação americana, “cortada à faca”. Começo a recitar silenciosamente seus comentários antes mesmo que ele os faça, quando uma ligeira alteração em minha orientação vertical me diz que minha mãe está se inclinando para a frente a fim de pousar um dedo sobre o pulso dele e fazê-lo parar, enquanto, com voz doce, pede: “Escolha o vinho, querido. Um magnífico”.

Gosto de compartilhar uma taça com minha mãe. Você talvez nunca tenha experimentado, ou já terá esquecido, um bom Borgonha (o preferido dela) ou um bom Sancerre (também seu preferido) decantado através de uma placenta saudável. Antes mesmo que o vinho chegue — nessa noite um Jean-Max Roger Sancerre —, ao som da rolha ser retirada eu o sinto no rosto como a carícia de uma brisa de verão. Sei que o álcool reduzirá minha inteligência. Reduz a inteligência de todo mundo. Mas, ah, um pinot noir alegre e rosado ou um Sauvignon com toques de groselha me fazem dar saltos e cambalhotas em meu mar secreto, ricocheteando nas paredes de meu castelo, desse castelo elástico que é meu lar. Ou assim era quando eu tinha mais espaço. Agora usufruo meus prazeres de forma tranquila, e na segunda taça minhas especulações florescem com aquela liberdade chamada poesia. Meus pensamentos se desdobram em bem torneados pentâmetros, com as frases cabendo em cada verso ou transbordando para o verso seguinte a fim de oferecer uma variedade agradável. Mas ela nunca toma uma terceira taça, o que me deixa furioso.

“Preciso pensar no bebê”, ouço-a dizer enquanto cobre a taça com uma mão puritana. É quando sinto vontade de pegar meu cordão oleoso, como se fosse um cordão de veludo de uma mansão campestre com muitos criados, e puxar com força para ser servido. Vamos lá! Mais uma rodada para os amigos!

Mas não, ela se contém por me amar. E eu a amo — como poderia não amá-la? A mãe que ainda vou encontrar, que só conheço por dentro. Não basta! Quero ver a parte de fora. As superfícies são tudo. Sei que tem cabelo louro, “cor de palha clara”, que cai em “cachos revoltos” até seus “ombros brancos como a polpa de uma maçã”, porque meu pai leu para ela, na minha presença, um poema dele que dizia isso. Claude também se referiu ao cabelo dela, mas de forma menos engenhosa. Quando ela está disposta, faz tranças bem apertadas em volta da cabeça, segundo meu pai no estilo Yulia Tymoshenko. Também sei que minha mãe tem olhos verdes, que seu nariz “é um botão de madrepérola”, que ela gostaria que ele fosse maior, que os dois homens o adoram do jeito que ele é e que tentaram convencê-la disso. Ela já escutou muitas vezes que é bonita, mas continua cética, o que lhe confere um poder inocente sobre os homens, como meu pai lhe disse uma tarde na biblioteca. Ela respondeu que, se aquilo era verdade, era um poder que ela jamais buscara e que não desejava ter. Essa foi uma conversa incomum entre eles, e ouvi com muita atenção. Meu pai, que se chama John, disse que, se tivesse tal poder sobre ela ou sobre as mulheres em geral, não se imaginaria abrindo mão dele. Com base no movimento ondular que por um instante afastou meu ouvido da parede, deduzi que ela reagira com um enfático dar de ombros, como se dissesse que os homens eram mesmo diferentes. E daí? Além do mais, ela disse a ele em voz alta, o poder que ela supostamente tinha era apenas o que os homens lhe atribuíam em suas fantasias. Então o telefone tocou, meu pai se afastou para ir atender, e essa conversa rara e interessante sobre as pessoas que têm poder jamais foi retomada.

Mas voltemos à minha mãe, à minha infiel Trudy, cujos braços e seios cor da polpa de maçã e olhos verdes desejo profundamente conhecer, cuja inexplicável necessidade de Claude antecede meu primeiro clarão de consciência, meu primordial ser, e que frequentemente fala com ele, e ele com ela, em sussurros na cama, em sussurros nos restaurantes, em sussurros na cozinha, como se ambos suspeitassem de que úteros têm ouvidos.

Eu costumava pensar que a discrição deles se devia apenas à natural intimidade amorosa. Mas agora tenho certeza. Eles evitam usar suas cordas vocais porque estão planejando um acontecimento tétrico. Se der errado, eu os ouvi dizer, suas vidas estarão arruinadas. Acreditam que, se vão seguir em frente, devem agir depressa, logo. Dizem um ao outro para serem calmos e pacientes, lembram um ao outro do custo que o fracasso do plano representaria, de que há várias etapas, que uma deve estar ligada à anterior, que se uma única falhar todas falharão “como lâmpadas velhas de árvores de Natal” — comparação incompreensível feita por Claude, que raramente diz alguma coisa obscura. O que eles pretendem fazer os repugna e amedronta, e nunca falam da coisa diretamente. Em vez disso, envoltos em sussurros, trocam elipses, eufemismos, aporias, depois dão tossidinhas e mudam de assunto.

Numa noite quente e irrequieta da semana passada, quando achei que os dois dormiam havia muito tempo, minha mãe disse de repente na escuridão, duas horas antes de o sol nascer de acordo com o relógio do escritório de meu pai no andar de baixo, “Não podemos fazer isso”.

E de pronto Claude disse num tom de voz normal: “Podemos”. E depois de um instante de reflexão: “Podemos, sim”.


2.

Vejamos agora meu pai, John Cairncross, um homenzarrão, a outra metade de meu genoma, cujas voltas helicoidais do destino me interessam grandemente. É só em mim que meus pais se unem, doce, acremente, ao longo de estruturas separadas de açúcar e fosfato, a receita para a essência de quem eu sou. Também uno John e Trudy em meus devaneios — como toda criança com pais separados, desejo muito fazer com que voltem a se casar, formando aquele par básico em que meu genoma estará projetado nas circunstâncias externas.

Meu pai vem até nossa casa de tempos em tempos, o que me deixa muito feliz. Às vezes traz para ela vitaminas de frutas de sua loja preferida na Judd Street. Ele tem um fraco por essas bebidas viscosas que supostamente garantem uma vida mais longa. Não sei por que vem nos ver, pois sempre vai embora em meio a nuvens de infelicidade. Várias das minhas conjecturas se comprovaram erradas no passado, mas escuto com atenção e agora deduzo o seguinte: ele não sabe nada de Claude, continua amando minha mãe loucamente, tem a esperança de que voltem a ficar juntos em breve, ainda crê na história contada por ela de que a separação tem por objetivo dar a cada um deles “tempo e espaço para crescerem” e renovarem seus laços. Que ele é um poeta sem renome e, no entanto, persiste. Que é o proprietário e gerente de uma editora paupérrima que publicou as primeiras coletâneas de poetas de sucesso e grande fama, até mesmo um ganhador do prêmio Nobel. Quando a reputação deles cresce, eles vão embora como filhos adultos que se mudam para casas maiores. Que ele aceita a deslealdade dos poetas como um fato da vida e, como um santo, se deleita com os elogios de quem reconhece os serviços prestados pela Cairncross Press. Que seu fracasso na poesia o entristece mais que o amargura. Uma vez ele leu em voz alta para Trudy e para mim uma resenha crítica de seus versos, onde se dizia que seus poemas eram antiquados, excessivamente formais e demasiado “bonitos”. Mas ele vive para a poesia, ainda recita versos para minha mãe, dá aulas sobre o assunto, escreve resenhas, conspira a favor do progresso de poetas mais jovens, participa de comissões que concedem prêmios, promove a poesia em escolas, escreve ensaios para revistas menores, já falou do assunto no rádio. Trudy e eu o ouvimos uma vez de madrugada. Ele tem menos dinheiro que Trudy e muito menos que Claude. Sabe de cor mil poemas.

Essa é a minha coleção de fatos e postulados. Curvado sobre eles como um pacato filatelista, acrescentei outros itens a meu álbum. Ele sofre de um problema de pele, psoríase, que cria escamas duras e vermelhas em suas mãos. Trudy odeia a aparência dessas escamas e qualquer contato com elas, dizendo que meu pai deveria usar luvas. Ele se recusa. Alugou por seis meses um apartamento ordinário de três cômodos em Shoreditch, está endividado e acima do peso, deveria se exercitar mais. Ontem mesmo adquiri um selo muito raro, com carimbo e tudo: a casa em que minha mãe mora, e eu dentro dela, a casa que Claude visita todas as noites, é uma ruína georgiana no elegantíssimo Hamilton Terrace e onde meu pai passou a infância. Com quase trinta anos e ao deixar crescer a barba pela primeira vez, não muito depois de se casar com minha mãe, ele herdou da família essa mansão. Sua querida mãe tinha morrido fazia muito tempo. Todos concordam que a casa é uma pocilga. Só clichês podem descrevê-la: paredes prestes a desabar, pintura descascando, tudo caindo aos pedaços. No inverno, as cortinas às vezes ficam congeladas; quando chove muito, os canos, como bancos honestos, devolvem com juros tudo que receberam; no verão, como bancos desonestos, fedem. Mas, veja, aqui na minha pinça tenho o selo mais raro do mundo: mesmo podre como está, este imóvel infecto de quinhentos e sessenta metros quadrados vale sete milhões de libras esterlinas.

A maioria dos homens, das pessoas, nunca permitiria que um cônjuge as expulsasse da casa onde foram criadas. John Cairncross é diferente. Eis aqui minhas deduções razoáveis. Nascido sob a influência de um planeta prestativo, desejoso de agradar, bom demais, sério demais, ele nada tem da serena cobiça dos poetas ambiciosos. Realmente crê que escrever um poema louvando minha mãe (seus olhos, cabelo, lábios) e vir lê-lo em voz alta para agradá-la o torna bem-vindo em sua própria casa. Mas ela sabe que seus olhos nada têm a ver com “a grama de Galway” (que ele acredita “muito verde”) e, como ele não tem sangue irlandês, o verso é anêmico. Sempre que ela e eu o escutamos, sinto em seu coração de batimentos cada vez mais lentos um véu de enfado impedi-la de ver o que há de patético na cena — um homem grande e de grande coração lutando por uma causa sem esperança com uma arma tão fora de moda como um soneto.

Mil talvez seja exagero. Muitos poemas que meu pai sabe de cor são longos, como aquelas famosas criações de bancários, A cremação de Sam McGee e A terra devastada. Trudy continua a tolerar recitações ocasionais. Para ela, um monólogo é melhor que uma troca de palavras, preferível a mais um passeio pelo jardim cheio de ervas daninhas do casamento deles. Talvez ela o suporte por um sentimento de culpa ou pelo que resta dele. Meu pai recitar poesia para ela parece ter sido parte de um ritual do relacionamento amoroso deles. Estranho que Trudy não consiga lhe dizer o que ele já deve suspeitar, o que ela com certeza lhe revelará. Que não o ama mais. Que tem um amante.

Hoje, no rádio, uma mulher contou que atropelou um cachorro, um golden retriever, à noite, numa estrada deserta. Sob a luz dos faróis, agachou-se ao lado dele, segurando a pata do animal que agonizava em espasmos de dor e medo. Grandes olhos castanhos lançavam-lhe olhares de perdão o tempo todo. Com a mão livre, ela pegou uma pedra e atingiu várias vezes o crânio do pobre cão. Para se livrar de John Cairncross bastaria um único golpe, um coup de vérité. Em vez disso, quando ele começa a recitar, Trudy assume seu jeito afável de ouvir. Eu, contudo, escuto com atenção.

Geralmente vamos à biblioteca de poesia de meu pai no térreo. Sobre o console da lareira, um relógio com um balancim ruidoso emite o único som enquanto ele ocupa sua cadeira de sempre. Aqui, na presença de um poeta, permito que minhas conjecturas floresçam. Caso meu pai olhe para cima a fim de organizar os pensamentos, verá a deterioração dos adornos no teto. O estrago espalhou uma camada fina de gesso, como açúcar de confeiteiro, sobre a lombada de livros famosos. Minha mãe limpa sua cadeira com a mão antes de sentar. Sem floreios, meu pai respira fundo e começa. Recita com fluência, sem sentimento. A maioria dos poemas modernos não me mobiliza. Muito sobre o próprio autor, absoluta frieza com relação aos outros, queixas em demasia em versos curtos. Mas John Keats e Wilfred Owen são como abraçar um irmão, sinto em meus lábios a respiração deles. O beijo deles. Quem não gostaria de ter escrito “doce de maçã, marmelo, ameixa e abóbora” ou “as testas pálidas das moças serão suas mortalhas”?

Eu a visualizo do outro lado da biblioteca pelos olhos daquele que a adora. Ela está sentada numa poltrona enorme de couro que data dos tempos de Freud em Viena. A maior parte de suas pernas delgadas e sem meia está lindamente dobrada sob o corpo. Um cotovelo se firma no braço da poltrona a fim de apoiar a cabeça inclinada, os dedos da mão livre tamborilam de leve no tornozelo. Faz calor no fim de tarde, as janelas estão abertas, o tráfego de St. John’s Wood emite um zumbido ameno. A expressão dela é pensativa, o lábio inferior parece pesado. Ela o umedece com uma língua perfeita. Alguns poucos cachos dourados e ligeiramente molhados de suor colam-se ao pescoço. O vestido de algodão, suficientemente largo para me conter, é verde-claro, mais claro que seus olhos. A gravidez segue seu curso e ela está cansada, mas de uma forma branda. John Cairncross nota o rubor de verão em sua face, a encantadora linha do pescoço e do ombro, os seios intumescidos, o montinho esperançoso que sou eu, os tornozelos pálidos que não apanham sol, a sola sem rugas de um pé exposto, sua fileira de dedos inocentes que vão diminuindo de tamanho como crianças numa foto de família. Tudo nela, ele pensa, tornado perfeito por seu estado.

Ele não consegue entender que ela está esperando que ele vá embora. Que é perverso, da parte dela, insistir que ele more em outro lugar agora que a gravidez está no terceiro trimestre. Será que ele pode ser tão cúmplice de seu próprio aniquilamento? Um sujeito tão grande, pelo que ouvi dizer de um metro e noventa, um gigante com pelos negros e abundantes nos braços poderosos, um bobalhão gigantesco que acredita que é sábio oferecer à sua mulher o “espaço” que ela diz necessitar. Espaço! Ela devia é vir aqui dentro, onde ultimamente mal consigo dobrar um dedo. No linguajar de minha mãe, espaço, sua necessidade de espaço, é uma metáfora retorcida, se não um sinônimo, de ser egoísta, malvada, cruel. Mas, espere, eu a amo, ela é a minha divindade e preciso dela. Retiro tudo o que disse! Falei por me sentir angustiado. Estou tão iludido quanto meu pai. É verdade. Sua beleza, distanciamento e determinação são inseparáveis.

Acima dela, tal como o vejo, o teto em decomposição da biblioteca lança de repente uma nuvem de partículas que giram e reluzem ao atravessar um feixe de luz do sol. E como minha mãe também reluz em contraste com o couro marrom cheio de estrias na poltrona onde Hitler, Trótski ou Stálin poderiam ter se refestelado em seus dias vienenses, quando não passavam de embriões das pessoas que viriam a ser, eu entrego os pontos. Pertenço a ela. Se me ordenasse, eu também iria para Shoreditch lamber minhas feridas no exílio. Nenhuma necessidade de cordão umbilical. Meu pai e eu estamos juntos num amor sem esperança.

Apesar de todas as sinalizações — respostas bruscas, bocejos, desatenção geral —, ele vai ficando até o começo da noite, na expectativa de, quem sabe, jantar. Mas minha mãe está à espera de Claude. Por fim enxota o marido declarando que precisa descansar. Leva-o até a porta. Quem poderia ignorar a tristeza na voz dele ao fazer seus ensaios de despedida! Me dói pensar que ele se sujeita a qualquer humilhação a fim de passar mais alguns minutos na presença dela. Nada, exceto seu temperamento, o impede de fazer o que outros fariam — caminhar à frente dela até o quarto principal, ao cômodo onde ele e eu fomos concebidos, espichar-se na cama ou na banheira em meio a nuvens desafiadoras de vapor, depois convidar alguns amigos, servir vinho, ser o dono de sua casa. Em vez disso, espera obter sucesso usando de bondade, se anulando e se mostrando sensível às necessidades dela. Espero estar errado, mas acho que vai fracassar duplamente, porque ela continuará a desprezá-lo por sua fraqueza, e ele vai sofrer ainda mais do que devia. Suas visitas não terminam, elas se extinguem aos poucos. Ele deixa na biblioteca um campo vibrante de desconsolo, uma forma imaginada, um holograma de desapontamento ocupando a cadeira.

Agora estamos chegando à porta da frente enquanto ela o conduz para fora da casa. Toda essa deterioração foi discutida muitas vezes. Sei que uma dobradiça dessa porta se despregou do batente de madeira. Os carunchos transformaram a arquitrave em poeira compacta. Alguns ladrilhos do assoalho se foram, outros estão rachados — em estilo georgiano, um padrão colorido em forma de diamante, impossível de ser substituído. Ocultando essas ausências e rachaduras, sacos plásticos com garrafas vazias e comida apodrecendo. Espalhados pelo chão, os emblemas da sujeira doméstica: guimbas de cigarro, pratos de papel com ferimentos horríveis de ketchup, saquinhos balouçantes de chá parecendo sacas de cereais que camundongos ou gnomos poderiam entesourar. Trudy sabe que não compete a uma grávida levar o lixo para as latas grandes e altas de rodinhas. Poderia perfeitamente pedir a meu pai que limpasse o vestíbulo, mas não faz isso. Tarefas domésticas poderiam conferir direitos à casa. E ela é bem capaz de estar arquitetando uma história esperta sobre ter sido abandonada. Nesse sentido, Claude continua sendo um visitante, alguém de fora, mas o ouvi dizer que arrumar um canto da casa tornaria mais visível o caos no resto. Apesar da onda de calor, estou bem protegido do mau cheiro. Minha mãe reclama dele quase todo dia, mas sem vigor. Trata-se apenas de um aspecto da decadência da casa.

Talvez ela ache que uma porção de iogurte no sapato dele ou a visão de uma laranja coberta de lanugem cor de cobalto junto ao rodapé possam abreviar as despedidas de meu pai. Ela se engana. A porta está aberta, ele na soleira, ela e eu no vestíbulo. Claude deve chegar dentro de quinze minutos. Às vezes vem mais cedo. Por isso Trudy está agitada, mas decidida a parecer sonolenta. Está pisando em ovos. Um pedaço quadrado de papel gorduroso, que no passado embrulhou um tablete de manteiga sem sal comprado no campo, ficou preso debaixo da sandália dela e lambuzou seus dedos do pé. Ela em breve contará isso a Claude de maneira divertida.

Meu pai diz: “Olha, precisamos realmente conversar”.

“Tudo bem, mas não agora.”

“Ficamos sempre adiando.”

“Impossível explicar como estou cansada. Você não faz ideia do que é. Preciso mesmo me deitar.”

“Claro. Por isso é que estou pensando em voltar para cá, assim posso...”

“Por favor, John, agora não. Já falamos sobre isso. Preciso de mais tempo. Tente ter mais consideração. Estou carregando seu filho, lembra? Esse não é o momento de pensar em si mesmo.”

“Não gosto de saber que você está aqui sozinha quando eu poderia...”

“John!”

Ouço o suspiro dele enquanto lhe dá um abraço tão apertado quanto ela permite. Em seguida, sinto o braço dela se estender para pegar o pulso de John, evitando cuidadosamente, assim imagino, suas mãos detestáveis, fazê-lo se virar e, com doçura, empurrá-lo em direção à rua.

“Querido, por favor, agora vá embora...”

Mais tarde, enquanto minha mãe se reclina, irritada e exausta, eu mergulho em especulações filosóficas. Que tipo de pessoa é ele? Será que o grande John Cairncross é nosso emissário para o futuro, o tipo de homem que acaba com as guerras, com a pilhagem e a escravidão, que se põe em pé de igualdade com as mulheres do mundo e cuida delas? Ou ele será esmagado pelos bárbaros? Vamos descobrir.


3.

Quem é Claude, esse impostor que se infiltrou como um verme em minha família e em meus sonhos? Ouvi isto uma vez e tomei nota: um ignorantão. Todas as minhas perspectivas futuras estão afetadas. A existência dele se choca com o direito que tenho a uma vida feliz sob os cuidados dos meus dois pais. A menos que eu invente algum plano. Ele enfeitiçou minha mãe e expulsou meu pai. Os interesses dele não podem ser os meus. Ele vai me esmagar. A menos que, a menos que, a menos que... a sombra de uma palavra, o sinal fantasmagórico de um destino alterado, um tênue fiapo de esperança percorrem minha mente como um desses pontinhos flutuantes no humor vítreo do olho. Mera esperança.

E Claude, como um desses pontinhos, quase não é real. Nem mesmo um aproveitador notável, um patife sorridente. Em vez disso, um chato a ponto de ser brilhante, insípido até não poder mais, de uma banalidade tão extraordinária quanto os arabescos da Mesquita Azul. Trata-se de um homem que assobia o tempo todo, não melodias, e sim jingles de televisão ou toques de celular, que ilumina uma manhã com o escárnio de Tárrega produzido pela Nokia. Cujos comentários repetidos, sem graça ou razão de ser, escorrem de sua boca como baba; cujas frases indigentes morrem como pintinhos órfãos, se perdendo no vazio. Que lava suas partes íntimas na bacia onde minha mãe lava o rosto. Que só entende de roupas e carros. E que nos disse umas cem vezes que jamais compraria nem ao menos dirigiria esse ou aquele carro, nem um híbrido, nem um... nem... Que ele só compra ternos em determinada rua de Mayfair, as camisas em outra rua, as meias não consegue lembrar... Se ao menos... mas. Só ele termina uma frase com “mas”.

Aquela voz monótona, irresoluta. Durante toda a minha vida venho suportando os tormentos gêmeos de seu assobio e de sua voz. Tenho sido poupado da visão dele, mas isso mudará em breve. Em meio ao sangue na sala de parto pouco iluminada (Trudy decidiu que ele, e não meu pai, estará lá), quando eu por fim emergir para cumprimentá-lo, minhas dúvidas permanecerão, qualquer que seja sua aparência: o que minha mãe está fazendo? O que pode estar querendo? Será que invocou Claude de forma sobrenatural para ilustrar o enigma do erotismo?

Nem todo mundo sabe o que é ter o pênis do rival do seu pai a centímetros do seu nariz. A essa altura tardia, eles deviam estar se contendo por minha causa. A cortesia, senão um motivo clínico, assim exigiria. Fecho os olhos, aperto as gengivas, me apoio nas paredes uterinas. Essa turbulência sacudiria as asas de um Boeing. Minha mãe estimula seu amante, o incita com gritos dignos de um parque de diversões. Parede da Morte! Toda vez, a cada movimento do pistão, temo que ele rompa a barreira, perfure os ossos ainda moles de meu crânio e irrigue meus pensamentos com a essência dele, com o creme abundante de sua banalidade. Depois, com o cérebro afetado, vou pensar e falar como ele. Serei o filho de Claude.

Mas prefiro estar preso dentro de um Boeing sem asas mergulhando no meio do Atlântico a assistir a mais uma noite das preliminares sexuais dele. Aqui estou eu, na primeira fila, desconfortavelmente de cabeça para baixo. Trata-se de uma produção bem parcimoniosa, tristemente moderna, a duas mãos. As luzes estão todas acesas quando Claude chega. Ele pretende se despir, mas minha mãe não. Ele dobra com cuidado as roupas sobre uma cadeira. Sua nudez é tão pouco surpreendente quanto o terno escuro de um contador. Vaga pelo quarto, indo e vindo pelo palco, o corpo à vista enquanto se ouve o chuvisco incessante de seu solilóquio. O sabonete cor-de-rosa que vai dar de presente de aniversário para sua tia e que precisa levar de volta à Curzon Street, um sonho quase esquecido que teve, o preço do diesel, hoje parece terça-feira. Mas não é. Cada corajoso tópico se põe de pé gemendo, cambaleia e cai ao ceder lugar a outro. E minha mãe? Na cama, debaixo dos lençóis, parcialmente vestida, totalmente solícita, com interjeições oportunas e acenos de cabeça indulgentes. Só eu sei, sob as cobertas um indicador se dobra acima do modesto botão clitorídeo dela e penetra um doce centímetro. Esse dedo se move levemente enquanto ela concorda com tudo e oferece sua alma. Imagino que seja delicioso fazer isso. Sim, ela murmura em meio a suspiros, ela também tinha dúvidas sobre aquele sabonete, sim, seus sonhos também se apagam muito rapidamente, ela também acha que parece terça-feira. Nada sobre o diesel — uma pequena concessão.

Os joelhos dele afundam o colchão infiel que antes sustentava meu pai. Com polegares ágeis ela se livra da calcinha. Entra Claude. Às vezes ele a chama de minha ratinha, o que parece agradar Trudy, mas não há beijos, nada é tocado nem acariciado, murmurado ou prometido, nenhuma lambida generosa, nenhum devaneio brincalhão. Só o ranger cada vez mais acelerado da cama, até por fim minha mãe assumir seu lugar na Parede da Morte e começar a gritar. Você deve conhecer essa antiga atração dos parques de diversão. Quando o aparelho começa a girar cada vez mais rápido, a força centrífuga aperta você contra a parede, enquanto o chão a seus pés desaparece, deixando-o tonto. Trudy gira mais rápido, seu rosto uma mistura pouco nítida de morangos e creme, um borrão verde de angélica onde estavam seus olhos. Grita mais alto e então, depois do urro e do estremecimento finais, ouço o grunhido abrupto e estrangulado dele. Uma pausa brevíssima. Sai Claude. O colchão se recompõe e sua voz soa de novo, agora vinda do banheiro — uma reprise da Curzon Street ou do dia da semana, alguns ensaios joviais com o tema da Nokia. Um ato de no máximo três minutos, sem bis. Com frequência ela se junta a ele no banheiro e, sem se tocarem, cada qual remove de seu corpo qualquer vestígio do corpo do outro com a água quente que a tudo perdoa. Nenhuma ternura, nenhuma soneca nos braços e pernas entrelaçados dos dois amantes. Durante essa curta ablução, mentes clareadas pelo orgasmo, eles muitas vezes traçam seus planos, mas, com o eco do cômodo azulejado e as torneiras abertas, as palavras se perdem para mim.

Por isso sei tão pouco sobre os planos deles. Apenas que os excitam, baixam suas vozes, mesmo quando pensam estar a sós. Também não sei o sobrenome de Claude. Trabalha como incorporador imobiliário, embora não tão bem-sucedido como a maioria deles. Sua maior conquista profissional foi a breve e lucrativa propriedade de um edifício de apartamentos em Cardiff. Rico? Herdou uma soma de sete algarismos, agora reduzida, assim parece, ao último quarto de milhão. Sai de nossa casa cerca de dez da manhã, volta depois das seis da tarde. Eis aqui duas versões antagônicas: pela primeira, há uma personalidade mais firme escondida sob esse véu de brandura. Ser tão insípido é pouquíssimo plausível. Alguém esperto, sombrio e calculista está se escondendo ali. Como homem, ele é um artefato, um aparelho construído por si mesmo, um instrumento destinado a realizar uma fria impostura, tramando contra Trudy enquanto trama ao lado dela. Pela segunda, ele é o que parece ser, uma concha vazia, um conspirador tão honesto quanto ela, só que menos inteligente. Ela sem dúvida deve preferir não duvidar de um homem que a faz atravessar os portões do paraíso em menos de três minutos. Quanto a mim, mantenho abertas as minhas opções.

Minha esperança de descobrir mais consiste em permanecer acordado a noite inteira para flagrá-los em uma troca mais desinibida perto do amanhecer. A frase nada típica de Claude “Podemos” foi o que primeiro me fez duvidar de seu comportamento brando. Já se passaram cinco dias — e nada. Acordo minha mãe com um pontapé, mas ela não perturba seu amante. Em vez disso, põe o fone de ouvido para acompanhar alguma palestra, abrindo-se às maravilhas da internet. Escuta ao acaso. Já ouvi de tudo. Criação de vermes em Utah. Caminhadas em terrenos rochosos da Irlanda. A última cartada de Hitler nas Ardenas. A etiqueta sexual dos ianomâmis. Como Poggio Bracciolini redescobriu a obra de Lucrécio. A ciência física do tênis.

Fico acordado, escuto, aprendo. Hoje de manhã, bem cedo, menos de uma hora antes de o dia clarear, ocorreu algo mais pesado que de hábito. Através dos ossos de minha mãe dei com um pesadelo sob a forma de uma palestra formal. A situação do mundo. Uma especialista em relações internacionais, uma mulher sensata de voz grave, me informou que o mundo não vai bem. Analisou dois estados de espírito comuns: a autocomiseração e a agressividade. Cada qual uma escolha ruim para qualquer indivíduo. Combinadas, para grupos ou nações, uma mistura letal que ultimamente envenenou os russos na Ucrânia, como já havia acontecido com seus amigos, os sérvios, na parte deles do planeta. Fomos humilhados, então vamos provar quem somos. Agora que o Estado russo é o braço político do crime organizado, outra guerra na Europa está longe de ser inconcebível. Basta tirar o pó das divisões de blindados na fronteira sul da Lituânia, de onde podem alcançar as planícies ao norte da Alemanha. O mesmo veneno corrói os segmentos extremados do islamismo. A taça foi bebida até o fim, o mesmo brado se levanta: fomos humilhados, vamos nos vingar.

A palestrante mostrou uma visão sombria de nossa espécie, em que os psicopatas constituem uma fração permanente, uma constante humana. A luta armada, justa ou não, os atrai. Eles ajudam a transformar desavenças locais em conflitos mais amplos. Segundo ela, a Europa, em meio a uma crise existencial, está irascível e fragilizada porque muitas variedades de nacionalismo autoindulgente estão provando dessa mesma poção saborosa. A confusão sobre valores, a incubação do bacilo do antissemitismo, os contingentes de imigrantes apodrecendo por falta do que fazer, enfurecidos e entediados. Em outros lugares, em toda parte, novas desigualdades de riqueza, os super-ricos uma raça de donos do mundo à parte. A engenhosidade demonstrada pelas nações para desenvolver armamentos novos e brilhantes, das corporações multinacionais para evitar impostos, dos bancos que se dizem honestos para se entupir de dinheiro. A China, grande demais para precisar de amigos ou de conselhos, testando cinicamente o litoral de seus vizinhos, construindo ilhas de areia tropical, preparando-se para a guerra que sabe vir por aí. Os países com maioria de muçulmanos sofrendo os males do puritanismo religioso, da repressão sexual, da imaginação sufocada. O Oriente Médio capaz de gerar uma guerra mundial. E o inimigo conveniente que são os Estados Unidos, mal e mal ainda a esperança do mundo, culpados de praticar torturas, impotentes diante de um texto sagrado concebido numa era em que se usavam perucas com pó branco, uma constituição tão impossível de ser questionada quanto o Alcorão. Sua população está nervosa, obesa, com medo, atormentada por uma raiva que não consegue exprimir, desprezando o governo, assassinando o sono com novas armas de mão. A África ainda não descobriu o truque da democracia — a transferência pacífica do poder. Seus filhos morrendo, milhares a cada semana, por falta de coisas simples — água limpa, mosquiteiros, remédios baratos. Unindo e nivelando toda a humanidade, os velhos e tediosos fatos da mudança climática, do desaparecimento das florestas, das criaturas e das calotas polares. A agricultura rentável e perniciosa destruindo a beleza biológica. Os oceanos se transformando em bacias de ácido diluído. Bem acima do horizonte, se aproximando velozmente, o tsunami urinário dos idosos em números cada vez maiores, cancerosos e dementes, exigindo cuidados. E em breve, devido à transição demográfica, o oposto, as populações em declínio catastrófico. A liberdade de expressão suprimida, a democracia liberal não mais o porto de destino, robôs roubando empregos, os direitos civis em combate feroz com a segurança, o socialismo em desgraça, o capitalismo corrompido, destrutivo e também em desgraça, nenhuma alternativa à vista.

Em conclusão, ela disse, esses desastres são obra das nossas naturezas duplas. Inteligentes e infantis. Construímos um mundo complicado e perigoso demais para poder ser administrado com o temperamento aguerrido que temos. Em meio à desesperança, muitos veem saída no sobrenatural. Estamos no crepúsculo da segunda Idade da Razão. Éramos maravilhosos e agora estamos condenados. Vinte minutos. Clique.

Ansioso, peguei meu cordão. Serve como um fio de contas muçulmano. Embora ele ainda esteja em meu futuro, o que há de errado em ser infantil? Tendo ouvido um bom número dessas palestras, aprendi a invocar contra-argumentos. O pessimismo é fácil demais, até mesmo delicioso, o emblema e enfeite dos intelectuais em toda parte. Exime as classes pensantes de buscar soluções. Nos excitamos com pensamentos sombrios em peças teatrais, poemas, romances e filmes. E agora nas análises de especialistas. Por que confiar nesse relato, quando a humanidade nunca foi tão rica, tão saudável, tão longeva? Quando mais do que nunca há menos mortes em guerras e em partos, quando mais do que nunca a ciência disponibiliza a todos mais conhecimento e mais verdade? Quando a cada dia se vê mais simpatia e carinho por crianças, animais, religiões alternativas, estrangeiros desconhecidos e distantes? Quando centenas de milhões de seres humanos foram retirados da subsistência miserável? Quando no Ocidente até mesmo os moderadamente pobres, envoltos em música, se reclinam em bancos ao deslizarem por estradas macias a uma velocidade quatro vezes maior que a de um cavalo a galope? Quando a varíola, a poliomielite, a cólera, o sarampo, as altas taxas de mortalidade infantil, o analfabetismo, as execuções públicas e a tortura rotineira praticada pelo Estado foram banidos de tantos países? Não faz muito tempo essas pragas estavam por toda parte. Quando os painéis solares, as usinas eólicas, a energia nuclear e invenções ainda desconhecidas nos livrarão dos males do dióxido de carbono, e culturas geneticamente modificadas nos salvarão dos desastres causados por fertilizantes químicos e impedirão que os mais pobres morram de fome? Quando a migração para as cidades devolverá grandes extensões de terra a seu estado virgem, reduzirá o crescimento demográfico e libertará as mulheres de patriarcas ignorantes do interior? Que dizer dos milagres cotidianos que fariam o imperador César Augusto invejar um trabalhador braçal: tratamento dentário sem dor, luz elétrica, contato instantâneo com as pessoas que amamos, com a melhor música que o mundo conheceu, com a gastronomia de dezenas de culturas? Estamos cercados de privilégios e delícias, assim como de queixas, e os que ainda não desfrutam de tudo isso em breve desfrutarão. Quanto aos russos, o mesmo se disse da Espanha dos Reis Católicos. Esperamos os exércitos deles em nossas praias. Como a maioria das coisas, isso não aconteceu. A questão foi resolvida por alguns navios incendiários e por uma providencial tempestade que empurrou a esquadra deles para a ponta da Escócia. Sempre vamos nos preocupar com o estado das coisas — é a contrapartida do espinhoso dom da consciência.

Apenas um hino ao mundo glorioso que possuirei daqui a pouco. Aqui onde me encontro confinado tornei-me um bom conhecedor dos sonhos coletivos. Quem sabe o que é real? Não tenho condições de reunir eu mesmo as provas. Cada proposição é contestada ou anulada por alguma outra. Como todas as pessoas, vou escolher o que eu quero, o que for melhor pra mim.

Mas essas reflexões me distraíram e perdi as primeiras palavras da troca que eu havia ficado acordado para ouvir. A canção do alvorecer. O despertador estava prestes a tocar. Claude murmurou alguma coisa, minha mãe respondeu, ele falou de novo. Volto a mim. Aperto a orelha contra a parede. Sinto o colchão se movimentar. A noite foi quente. Claude deve estar se sentando, tirando a camiseta que usa para dormir. Ouço-o dizer que vai se encontrar com o irmão à tarde. Já mencionou esse irmão antes. Eu devia ter prestado mais atenção. Mas o contexto me entediou — dinheiro, contas, impostos, dívidas.

Claude diz: “Todas as esperanças dele estão depositadas nessa poeta que ele está contratando”.

Poeta? Pouca gente no mundo contrata uma poeta. Eu só conheço uma pessoa que faz isso. O irmão dele?

Minha mãe diz: “Ah, sei, essa mulher. Esqueci o nome dela. Escreve sobre corujas”.

“Corujas! Que assunto quente, corujas! Mas preciso encontrar com ele hoje à noite.”

Ela diz lentamente: “Acho que você não deveria ir. Não agora”.

“Senão ele vai voltar aqui. Não quero que fique aborrecendo você. Mas.”

Minha mãe diz: “Eu também não quero. Mas isso precisa ser feito do meu jeito. Devagar”.

Fez-se silêncio. Claude pega o celular na mesinha de cabeceira e desativa o despertador.

Por fim diz: “Se eu emprestar dinheiro ao meu irmão, vai servir para despistar”.

“Mas não muito. E não vamos conseguir receber de volta.”

Os dois riem. Em seguida, Claude e seu assobio se dirigem ao banheiro, minha mãe vira de lado e volta a dormir e eu me vejo no escuro para confrontar o fato escandaloso e refletir sobre a minha estupidez.


4.

Quando ouço o zumbido amigável dos carros que passam e uma leve aragem agita o que penso serem as folhas de um castanheiro, quando um rádio portátil embaixo de mim emite um ligeiro ruído áspero, e um lusco-fusco cor de coral, um prolongado poente tropical, ilumina vagamente meu mar mediterrâneo e o trilhão de fragmentos que boiam nele, sei que minha mãe está tomando banho de sol na varanda da biblioteca de meu pai. Sei também que a balaustrada de ferro com figuras de folhas e bolotas de carvalho se mantém de pé graças a camadas históricas de tinta preta, e que ninguém deve se debruçar sobre ela. A plataforma de concreto em desintegração onde minha mãe está sentada foi considerada insegura até mesmo por mestres de obra desinteressados em consertá-la. A varanda estreita permite que uma espreguiçadeira de lona seja colocada na transversal, quase paralela à casa. Trudy está descalça, usando o sutiã de um biquíni e shorts curtos de zuarte que mal me acomodam. Essa indumentária é complementada por óculos escuros com formato de coração e um chapéu de palha. Sei disso porque meu tio — meu tio! — pediu ao telefone que ela dissesse como estava vestida. Sedutora como é, ela acedeu.

Alguns minutos atrás o rádio nos disse que eram quatro horas. Estamos dividindo uma taça, talvez uma garrafa, de sauvignon blanc da região de Marlborough. Não seria minha primeira escolha e, para a mesma uva e um gosto menos marcado de grama, eu teria partido para um Sancerre, de preferência de Chavignol. Um toque de mineral teria mitigado o ataque brutal da luz direta do sol e o calor de forno emitido pela fachada com rachaduras de nossa casa.

Mas estamos na Nova Zelândia, ela está em nós, e me sinto mais feliz que nos dois últimos dias. Trudy resfria nosso vinho usando cubos de plástico com etanol congelado. Não tenho nada contra isso. Recebo minhas primeiras impressões de cor e forma, pois, como o abdômen de minha mãe está voltado para o sol, consigo distinguir, como na vermelhidão de um quarto escuro fotográfico, minhas mãos em frente ao rosto e o cordão que envolve amplamente minha barriga e meus joelhos. Vejo que minhas unhas precisam ser cortadas, embora eu não esteja sendo esperado nas próximas duas semanas. Gostaria de pensar que o objetivo de ela estar aqui fora é produzir vitamina D para o crescimento de meus ossos, que ela abaixou o volume do rádio para contemplar melhor minha existência, que a mão que acaricia o lugar onde ela crê que se encontra minha cabeça seja uma manifestação de ternura. Mas pode ser que ela queira só se bronzear, que esteja quente demais para ouvir no rádio o drama do imperador mogol Aurangzeb e que com a ponta dos dedos ela esteja simplesmente aliviando o desconforto causado pelo inchaço do final da gravidez. Em suma, não tenho certeza de que ela me ama.

Depois de três taças, o vinho não resolve nada, e a dor das descobertas recentes permanece. No entanto, sinto um quê agradável de afastamento: já estou satisfatoriamente distante e me vejo uns quinze metros abaixo, como um alpinista que caiu numa rocha de braços abertos e de costas. Consigo começar a entender minha posição. Consigo pensar além de sentir. Um despretensioso vinho branco do Novo Mundo pode fazer tudo isso. Vejamos. Minha mãe preferiu o irmão de meu pai, traiu seu marido, arruinou seu filho. Meu tio roubou a mulher de seu irmão, enganou o pai de seu sobrinho, insultou gravemente o filho de sua cunhada. Meu pai é indefeso por natureza, como eu sou por circunstâncias. Meu tio tem um quarto de meu genoma, aquela parte da metade que vem de meu pai, mas não se parece mais com ele do que eu com Virgílio ou Montaigne. Que parte desprezível de mim é Claude, e como poderei saber? Eu poderia ser meu próprio irmão e me enganar como ele enganou o seu. Quando eu nascer e tiver enfim permissão de ficar sozinho, há uma quarta parte de mim que vou querer arrancar com uma faca de cozinha. Mas aquele que segurará a faca será também meu tio, representado por um quarto de meu genoma. Então vamos ver como a faca não se moverá. E essa percepção é em parte também dele. Assim como esta.

Meu relacionamento amoroso com Trudy não vai bem. Pensei que eu pudesse ter como certo o seu amor. Mas ouvi biólogos debatendo de madrugada. Mulheres grávidas precisam combater os ocupantes de seus úteros. A natureza, ela própria uma mãe, ordena uma luta por recursos que podem ser necessários para nutrir meus futuros irmãos — e rivais. Minha saúde deriva de Trudy, porém ela também precisa se proteger de mim. Sendo assim, por que deveria se preocupar com meus sentimentos? Se for do interesse dela e de um bostinha ainda não concebido que eu seja subalimentado, por que ela se preocuparia que um encontro amoroso com meu tio possa me incomodar? Os biólogos também sugerem que o truque mais sábio de meu pai é fazer com que outro homem crie seu filho enquanto ele — meu pai! — reproduz símiles seus através de outras mulheres. Tão deprimente, tão carente de amor! Então estamos sozinhos, todos nós, até eu, cada um seguindo por uma estrada deserta, carregando seus estratagemas e fluxogramas numa trouxa sobre o ombro, atrás de vantagens inconscientes.

Coisa demais para suportar, macabro demais para ser verdade. Por que o mundo se organizaria de forma tão cruel? Entre muitas outras coisas, as pessoas são sociáveis e bondosas. A cobiça não é tudo. Minha mãe não é apenas minha senhoria. Meu pai não busca a mais ampla disseminação de seus genes, ele se importa com sua mulher e, sem dúvida, com seu único filho. Não creio nos sábios das ciências da vida. Ele deve me amar, quer voltar para casa, vai cuidar de mim — caso lhe seja permitido. E ela nunca me fez perder uma refeição, e esta tarde até se recusou decentemente a tomar uma terceira taça por minha causa. Não é o amor dela que está faltando. É o meu. É meu ressentimento que está nos separando. Recuso-me a dizer que a odeio. Mas abandonar um poeta, qualquer poeta, por Claude!

É duro, e também é duro que o poeta seja tão frouxo. John Cairncross, expulso da casa de sua família, comprada por seu avô, por causa de um filosófico “crescimento pessoal” — expressão tão paradoxal quanto “música fácil de ouvir”. Se separarem para poder ficar juntos, se darem as costas para poder se abraçarem, pararem de se amar para poderem se apaixonar de novo. Ele caiu nessa. Que boboca! Entre a fraqueza dele e a falsidade dela, estava o buraco fétido que espontaneamente gerou um tio Verme. E aqui estou eu agachado e circunscrito à minha vida isolada, numa penumbra duradoura e abafada, sonhando impacientemente.

O que eu poderia fazer se, em vez disso, estivesse em plena forma? Digamos daqui a vinte e oito anos. Calça jeans apertada e desbotada, barriguinha sarada, movendo-me com a agilidade de uma pantera, temporariamente imortal. Indo de táxi buscar meu pai idoso em Shoreditch, para instalá-lo, sem ouvir os protestos da matronal Trudy, na biblioteca dele, na cama dele. Pegando o tio Verme pelo cangote e atirando-o na sarjeta cheia de folhas do Hamilton Terrace. Calando minha mãe com um beijo indiferente na nuca.

Mas eis a verdade mais limitadora da vida: é sempre aqui, é sempre agora, nunca lá e depois. E agora estamos derretendo numa onda londrina de calor, aqui nesta varanda insegura. Ouço-a encher mais uma taça, o ruído da queda dos cubos de plástico, seu leve suspiro, mais de ansiedade que de contentamento. Então teremos uma quarta taça. Ela deve imaginar que estou crescidinho o suficiente para aguentar. E estou. Estamos nos embebedando porque neste exato momento seu amante está tendo uma conversa com o irmão dele no escritório sem janelas da Cairncross Press.

Para me distrair, mando meus pensamentos à frente para espioná-los. Apenas um exercício de imaginação. Nada aqui é real.

O empréstimo amigável é posto sobre a escrivaninha atravancada.

“John, ela realmente ama você, mas me pediu, como um membro de confiança da família, para convencê-lo a ficar longe por algum tempo. É a melhor chance para o casamento de vocês. Quer dizer. No fim vai dar tudo certo. Eu devia ter imaginado que o seu aluguel estava atrasado. Mas. Por favor, diga que sim, pegue o dinheiro, deixe ela ter o espaço de que precisa.”

Há entre eles, sobre a escrivaninha, cinco mil libras em notas sujas de cinquenta, cinco pilhas malcheirosas de papel-moeda avermelhado. De um lado e de outro, se acumulam desordenadamente livros de poesia e manuscritos datilografados, lápis apontados, dois cinzeiros de vidro bem cheios, uma garrafa de uísque escocês, uma do suave single malt Tomintoul com dois dedos no fundo, um copo de cristal, uma mosca morta caída de costas dentro dele, várias aspirinas em cima de um lenço de papel não usado. Sinais esquálidos de um trabalho honesto.

Meu palpite é o seguinte. Meu pai nunca entendeu seu irmão mais novo. Nunca imaginou que valia a pena se dar a esse trabalho. E John não gosta de confrontações. Seu olhar não se detém sobre o dinheiro em cima da escrivaninha. Não lhe ocorreria explicar que tudo que deseja é voltar para sua casa a fim de ficar com a mulher e o filho.

Em vez disso, diz: “Isto chegou ontem. Quer ouvir um poema sobre uma coruja?”.

Simplesmente o tipo de esquisitice que Claude odiava quando criança. Sacode a cabeça, não, por favor, me poupe, mas é tarde demais.

Meu pai segura uma única folha datilografada em sua mão escamosa.

“Fatal porteiro, sanguinolento”, ele começa.

“Então você não quer”, o irmão o interrompe mal-humorado. “Por mim tudo bem.” E, com os dedos de verme de um banqueiro, junta as pilhas, bate de leve suas beiradas contra a superfície da escrivaninha, saca não se sabe de onde um elástico, em dois segundos repõe o dinheiro num bolso interno do blazer de botões prateados e se põe de pé, dando a impressão de estar acalorado e desgostoso.

Sem se deixar apressar, meu pai lê o segundo verso: “Estranhamente nos excita uma crueldade estridente”. Então para e diz de forma suave: “Você precisa mesmo ir?”.

Nenhum observador seria capaz de decodificar as mensagens taquigráficas dos irmãos, a tristeza antiga dessa troca de palavras. As cargas, as regras tinham sido estabelecidas havia tempo demais para serem alteradas. A relativa riqueza de Claude precisava continuar não sendo admitida. Ele permanece como o irmão menor, inadequado, sufocado, furioso. Meu pai se sente intrigado com seu parente vivo mais próximo, mas só um pouco. Não se move de sua posição, de onde parece ridicularizá-lo. Mas não. É pior que ridicularizar: ele não se importa, e mal se dá conta de que não se importa. Com o aluguel, com o dinheiro ou com o oferecimento de Claude. Mas, como é um homem polido, se levanta para conduzir o visitante à porta e, feito isso, sentado de volta à escrivaninha, se esquece do dinheiro vivo que havia estado lá, assim como de Claude. O lápis está de volta numa das mãos, um cigarro na outra. Vai dar sequência ao único trabalho que importa, revisando poemas para publicação, e não erguerá os olhos antes das seis, hora de um uísque com água. Antes vai virar o copo para expulsar a mosca.

Como se eu voltasse de uma longa viagem, regresso ao útero. Nada mudou na varanda, exceto que me sinto um pouco mais bêbado. Como se para me dar as boas-vindas, Trudy derrama em sua taça tudo que ainda restava na garrafa. Os cubos não estão mais gelados, o vinho quase morno, mas ela está bem, então é melhor acabar logo com ele. Vai estragar mesmo. A brisa ainda agita os castanheiros, o tráfego da tarde aumenta. O calor cresce à medida que o sol se põe. Mas não ligo para ele. Quando chega o último gole de sauvignon blanc, me preparo para refletir. Estive fora, pulei a cerca sem uma escada ou uma corda, livre como um passarinho, deixando para trás meu aqui e agora. Minha verdade limitadora não era verdadeira; posso sair a qualquer hora, expulsar Claude de casa, visitar meu pai em seu escritório, observar tudo com carinho sem ser visto. Será que os filmes são tão bons assim? Vou descobrir. Daria para ganhar a vida montando excursões como essas. Mas a realidade, a realidade circunscrita também é cativante, e estou impaciente para que Claude volte e nos diga o que de fato aconteceu. Minha versão sem dúvida é errônea.

Minha mãe também está ansiosa para saber. Se não estivesse bebendo por dois, se eu não compartilhasse da carga, ela estaria no chão. Passados vinte minutos, entramos, atravessamos a biblioteca e subimos para o quarto. É preciso ter cuidado ao andar descalço nesta casa. Minha mãe solta um berro ao pisar em alguma coisa, oscilamos e balançamos até ela se agarrar à balaustrada. Ficamos estáveis quando se detém para inspecionar a sola do pé. Como o palavrão é resmungado com calma, deve haver sangue, mas não muito. Ela cruza o quarto mancando, talvez deixando um rastro no que sei ser um tapete sujo cor de marfim coalhado de roupas, sapatos e malas não de todo esvaziadas na volta de viagens que antecederam minha chegada.

Alcançamos o ecoante banheiro, pelo que ouvi uma enorme e imunda ruína. Ela abre uma gaveta, impacientemente sacode seu tilintante e farfalhante conteúdo, tenta outra gaveta e, na terceira, acha o esparadrapo para seu corte. Senta-se na beirada da banheira e põe o pé ferido em cima do joelho. Pequenos grunhidos e arquejos de exasperação sugerem que o corte esteja num lugar difícil de alcançar. Se eu pudesse me ajoelhar diante dela e ajudar... Embora ela seja jovem e esbelta, não é fácil inclinar-se para a frente com o obstáculo volumoso que eu represento. Melhor então, ela decide, mais estável, abrir um espaço e se sentar no chão duro de ladrilhos. Mas isso também não é fácil. Tudo culpa minha.

É lá que estamos e o que fazemos quando ouvimos a voz de Claude, um grito vindo do térreo.

“Trudy! Ah, meu Deus. Trudy!”

Ruído de passos rápidos, ele grita o nome dela outra vez. Por fim, sua respiração entrecortada no banheiro.

“Cortei o pé num caco de vidro idiota.”

“Há sangue por toda parte no quarto. Eu pensei...” Ele não fala que esperava se ver livre de mim. Em vez disso, diz: “Deixa eu fazer isso. Não deveríamos limpar antes?”.

“Vai logo.”

“Fica parada.” Agora é a vez dele de grunhir e arquejar. Em seguida: “Você andou bebendo?”.

“Não enche o saco. Põe logo isso.”

Por fim ele termina e a ajuda a se levantar. Balançamos juntos.

“Meu Deus! Quanto você bebeu?”

“Só um copo.”

Ela se senta de novo na beirada da banheira.

Ele vai até o quarto e volta um minuto depois. “Nunca vamos tirar todo esse sangue.”

“Tenta esfregar com alguma coisa.”

“Estou dizendo, não vai sair. Olha aqui uma mancha. Tenta você.”

Raras vezes vi Claude tão assertivo. Nenhuma desde o “Podemos”.

Minha mãe também nota a diferença e pergunta: “O que aconteceu?”.

Agora há um queixume na voz dele.

“Ele pegou o dinheiro e nem me agradeceu. E já avisou que não vai renovar o aluguel do apartamento de Shoreditch. Está voltando para cá. Diz que você precisa dele, por mais que diga que não.”

Os ecos do banheiro foram morrendo aos poucos. Exceto pela respiração de ambos, se faz silêncio enquanto refletem. Meu palpite é que estão se entreolhando, um longo e eloquente olhar.

“É isso aí”, ele diz, por fim, em seu modo costumeiro e vazio. Espera e acrescenta: “E então?”.

Nisso o coração de minha mãe começa a se acelerar. Não só bate mais rápido, mas também mais alto, como o som oco de encanamento quebrado. Algo também está acontecendo em suas entranhas. Os intestinos estão se soltando, com um rangido que se alonga; em algum lugar mais alto, acima de meus pés, sucos descem velozmente por tubos tortuosos rumo a destinos desconhecidos. Seu diafragma sobe e desce. Aperto mais a orelha contra a parede. Em meio a tal crescendo de ruídos, seria fácil perder algum fato essencial.

O corpo é incapaz de mentir, mas a mente é outro país, pois, quando minha mãe finalmente fala, seu tom de voz é doce, lindamente sob controle. “Concordo.”

Claude se aproxima, fala com suavidade, quase num sussurro. “Mas. O que você acha?”

Eles se beijam e ela começa a tremer. Sinto os braços dele envolverem sua cintura. Beijam-se de novo, com línguas silentes.

Ela diz: “Assustador”.

Em resposta a uma piada compartilhada pelos dois, ele retruca: “Cabeludo”.

Mas não conseguem rir. Sinto Claude apertando o ventre contra o dela. Excitados numa hora dessa! Quanto ainda tenho para aprender! Ela encontra o zíper dele, puxa para baixo, acaricia, enquanto o indicador de Claude se dobra por baixo dos shorts bem curtos dela. Sinto a pressão recorrente de seu dedo em minha testa. Vamos para a cama? Não, graças a Deus, ele insiste na pergunta.

“E então?”

“Estou com medo.”

“Pensa. Daqui a seis meses. Na minha casa, sete milhões no banco. E teremos colocado o bebê em algum lugar. Mas. Vamos fazer. Hum. O quê?”

Suas próprias perguntas práticas o acalmam, permitindo que retire o dedo. Mas o pulso dela, que vinha se estabilizando, dá um salto diante das questões dele. Sexo não, perigo sim. O sangue lateja através de mim como salvas de uma artilharia distante, e posso senti-la lutando com uma escolha. Sou um órgão de seu corpo, em nada separado de seus pensamentos. Sou parte do que ela está prestes a fazer. Quando chega afinal, sua decisão, sua ordem murmurada, sua manifestação única e traiçoeira parece provir de minha própria boca inexperiente. Ao se beijarem de novo, ela a pronuncia dentro da boca do amante. A primeira palavra do bebê.

“Veneno.”

 


                                                    CONTINUA