Biblio VT
ENCLAUSURADO / Ian McEvan
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”
CONTINUA
5.
Como o solipsismo convém a quem ainda não nasceu! Enquanto Trudy, descalça, se recupera das cinco taças dormindo no sofá da sala, e nossa casa imunda desliza para leste ao se embrenhar na noite, me concentro tanto no colocado de meu tio quanto no veneno de minha mãe. Como um DJ debruçado sobre sua plataforma, repito a frase que arranha o disco: E... nós teremos colocado o bebê em algum lugar. Com a repetição, as palavras se tornam tão nítidas quanto a verdade, e o futuro que têm em mente para mim brilha claro. Colocado não passa de um sinônimo mentiroso de abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel! Essa vai ser minha perdição, minha queda, pois só nos contos de fadas bebês indesejados melhoram de vida. A duquesa de Cambridge não vai me pegar. Meu voo solo de autocomiseração me faz aterrissar no décimo terceiro andar do brutal edifício de apartamentos que minha mãe às vezes diz contemplar com tristeza de uma janela do quarto. Ela contempla e pensa: tão perto, e no entanto tão distante quanto um vale no Paquistão. Imagine viver lá.
Sem dúvida. Criado sem livros, com jogos de computador, açúcar, gordura e tapas na cabeça. Paquistão mesmo. Nenhuma história contada na cama para alimentar a plasticidade de meu cérebro de bebê. A paupérrima paisagem mental dos camponeses modernos da Inglaterra. E as fazendas de criação de vermes em Utah? Pobre de mim, com o cabelo cortado rente ao crânio, um menino de três anos já bem gorducho e usando calça de camuflagem, perdido numa nuvem de ruídos vindos da televisão e fumaça de cigarro. Sua mãe adotiva tatuada, com os tornozelos inchados, passa cambaleando, seguida pelo cachorro fedorento de seu instável companheiro. Querido pai, me salve desse Vale da Desesperança! Me leve com você. Deixe que eu seja envenenado a seu lado em vez de colocado em algum lugar.
Autoindulgência típica do terceiro trimestre. Tudo que sei sobre os ingleses pobres me chegou pela TV e pelas resenhas de romances farsescos. Não sei nada. Mas minha suspeita plausível é de que a pobreza significa privação em todos os sentidos. Nada de aula de harpa no décimo terceiro andar. Se a hipocrisia é o único preço, vou comprar a vida burguesa e considerá-la barata. E mais, vou armazenar grãos, ser rico, ter um brasão. NON SANZ DROICT, e o meu direito é ao amor de uma mãe, sendo assim absoluto. Nego meu consentimento às maquinações de abandono dela. Não serei exilado, mas ela será. Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com o olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração. Então, coagida por um amor agressivo a cuidar de mim constantemente, sua liberdade não mais que uma costa cada vez mais distante, Trudy será minha, e não de Claude, tão capaz de me abandonar quanto de arrancar seus seios da caixa torácica e atirá-los ao mar. Também posso ser cruel.
E assim fui indo — bêbado, suponho, expansivo e irrelevante — até que ela acordou com diversos gemidos e catou a sandália debaixo do sofá. Descemos juntos, mancando, até a cozinha úmida onde, na semiobscuridade quase capaz de ocultar a imundície, ela se inclina para beber longamente na torneira de água fria. Ainda com a roupa de praia. Acende as luzes. Nenhum sinal de Claude, nenhum bilhete. Vamos até a geladeira, que ela examina com ar esperançoso. Vejo — imagino que vejo numa retina não testada — seu braço pálido e indeciso se movendo na luz fria. Amo seu lindo braço. Numa prateleira de baixo, alguma coisa que já viveu, e que agora está purulenta, parece se mexer no saco de papel, provocando nela um sobressalto reverencial e obrigando-a a fechar a porta. Então atravessamos o cômodo até o armário, onde ela acha um saquinho de nozes salgadas. Logo depois, a ouço ligar para seu amante.
“Você ainda está em casa?”
Não consigo ouvir a resposta por causa de sua mastigação.
“Muito bem”, ela diz depois de ouvir. “Traz isso pra cá. Precisamos conversar.”
Pelo modo suave como ela desliga o telefone, deduzo que ele está a caminho. Muito mal. Mas estou sentindo minha primeira dor de cabeça, bem na região da testa, uma bandana de cores berrantes, uma dor brincalhona que dança por causa do pulso dela. Se a compartilhasse comigo, ela teria tomado um analgésico. De direito, a dor lhe pertence. Mas ela está enfrentando outra vez a geladeira e encontrou, na prateleira superior da porta, num compartimento de plástico, um pedaço de vinte centímetros de queijo parmesão de tempos imemoriais, mais duro que um diamante. Se conseguir parti-lo com os dentes, nós dois vamos sofrer juntos: depois das nozes, mais uma maré de sal penetrando as fímbrias do estuário, transformando nosso sangue em lama salobra. Água, ela devia beber mais água. Minhas mãos se erguem para tocar as têmporas. Injustiça monstruosa sentir tamanha dor antes mesmo que minha vida tenha começado.
Ouvi dizer que, faz muito tempo, a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. Não apenas uma luz vermelha de alerta na mente — quem estará lá para vê-la? —, mas um acicate, uma dor, algo que machuca. A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu. E, se isso funciona, por que não sentir repugnância por fezes, temer a beira do precipício e gente estranha, relembrar insultos e favores, gostar de sexo e comida? Deus disse: Que seja feita a dor. E depois se fez a poesia.
Sendo assim, qual a utilidade de uma dor de cabeça, de um pesar no coração? De que estou sendo alertado, o que me é dito para fazer? Não deixe seu tio incestuoso e sua mãe envenenarem seu pai. Não passe seus dias na indolência, de cabeça para baixo. Nasça e aja!
Ela se acomoda numa cadeira da cozinha com um gemido de ressaca, a melodia do mal-estar que ela mesma compôs. Não há muitas opções para uma noite que se segue a uma tarde de embriaguez. Na verdade, só duas: remorso ou então mais bebida e depois remorso. Ela escolheu a primeira, mas ainda é cedo. O queijo está em cima da mesa, já esquecido. Claude está voltando de onde minha mãe irá morar, tão distante de mim como compete a uma milionária. Ele atravessará Londres de táxi porque nunca aprendeu a dirigir.
Tento vê-la como ela está, como deve estar, uma mulher grávida e madura de vinte e oito anos, uma jovem derreada sobre a mesa, loura e de cabelo trançado como o de uma guerreira saxônica, bonita muito além do que o realismo alcança, esbelta não fosse por mim, quase nua, braços vermelhos de sol, abrindo espaço na mesa da cozinha para seus cotovelos em meio a pratos manchados com gema de ovo de um mês atrás, farelos de torrada e grãos de açúcar em que as moscas regurgitam todos os dias, embalagens fétidas e colheres gordurosas, líquidos ressecados formando crostas nos envelopes de correspondência com propaganda. Tento vê-la e amá-la como devo, imaginando seus problemas: o vilão que pegou como amante, o santo que está deixando para trás, o ato com o qual concordou, o filho querido que largará nas mãos de estranhos. Amá-la ainda? Se não, foi porque você nunca amou. Mas eu amei, amei, sim. Amo.
Ela se lembra do queijo, alcança o utensílio mais próximo e crava nele um golpe respeitável. Um pedaço se solta e é levado à sua boca, uma pedra seca que ela chupa enquanto reflete sobre sua situação. Passam-se alguns minutos. Sua situação não é nada boa, eu acho, embora nosso sangue não vá engrossar, afinal de contas, pois ela vai precisar do sal que está consumindo para seus olhos, para suas bochechas. A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar. Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas. Sunt lacrimae rerum. Uma choradeira infantil não tem nada a ver. O jeito é esperar. E pensar!
Ela já se recuperou quando ouvimos seu amante no vestíbulo, praguejando ao perturbar o lixo com o enorme borzeguim que ela gosta que ele use. (Claude tem sua própria chave. É meu pai quem precisa tocar a campainha.) Claude desce até a cozinha, que fica no andar de baixo. O som farfalhante vem de uma sacola de plástico que contém alimentos ou instrumentos letais, ou as duas coisas.
Ele repara de imediato no estado alterado dela e diz: “Você andou chorando”.
Não por solicitude, mas por mera constatação. Ela dá de ombros e afasta o olhar. Ele tira da sacola uma garrafa e a pousa com força onde Trudy possa ver o rótulo.
“Um Cuvée Les Caillotes Sancerre Jean-Max Roger de 2010. Lembra? O pai dele morreu num desastre de avião.”
Ele fala sobre a morte de pais.
“Se for frio e branco, vou querer.”
Ela esqueceu. O restaurante onde o garçom demorou a acender as velas. Ela gostou do vinho naquela noite, e eu mais ainda. Agora a rolha foi tirada, o barulhinho das taças — espero que estejam limpas — e Claude está servindo. Não posso recusar.
“Saúde!” O tom de voz dela abrandou-se rapidamente.
Mais vinho servido e então ele diz: “Me conte o que aconteceu”.
Quando ela começa a falar, sua garganta se contrai. “Eu estava pensando no nosso gato. Eu tinha quinze anos. Ele se chamava Hector, muito carinhoso e velhinho, querido da família, tinha dois anos a mais que eu. Todo preto, com patinhas e peito brancos. Um dia cheguei da escola muito chateada. Ele estava em cima da mesa da cozinha, onde não deveria estar. Procurando comida. Dei-lhe um tapa que o fez sair voando. Seus ossos velhos bateram no chão com um barulho de coisa quebrada. Depois disso, desapareceu por vários dias. Penduramos cartazes em árvores e postes. Então alguém o encontrou deitado em cima de um montinho de folhas, junto a um muro, até onde tinha se arrastado para morrer. Coitadinho do Hector, duro como uma pedra. Eu nunca disse, nunca ousei dizer, mas sei que fui eu quem o matou.”
Ou seja, não pelo empreendimento maléfico dela, não por sua inocência perdida, não pela criança que vai dar para alguém. Volta a chorar, mais forte que antes.
“A hora dele já estava chegando”, diz Claude. “Você não sabe se foi por sua causa mesmo.”
Agora soluçando: “Sei que foi, eu sei. Fui eu! Ah, meu Deus!”.
Eu sei, eu sei. Onde ouvi isto? Ele mata a mãe, mas não consegue usar calça cinza. Porém, sejamos generosos. Uma jovem mulher, com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela — e o fantasma de um gato velho chega com suas patinhas brancas sem fazer barulho, exigindo vingança pela vida que também lhe foi roubada.
Mesmo assim. A mulher que está arquitetando friamente a... chorando por causa de... Desnecessário especificar.
“Os gatos podem ser um transtorno”, diz Claude com ar de quem quer ajudar. “Afiando as garras nos móveis. Mas.”
Ele não tem nada adversativo para acrescentar. Esperamos até as lágrimas dela secarem. Hora então de encher de novo as taças. Por que não? Alguns goles, uma pausa neutralizante, depois ele volta a remexer na sacola, um néctar diferente em suas mãos. Um ruído mais suave ao pousar o objeto na mesa. A garrafa é de plástico.
Dessa vez Trudy lê o rótulo, mas não em voz alta. “No verão?”
“O anticongelante contém etilenoglicol, coisa muito boa. Já cuidei de um cachorro do vizinho com isso, um alsaciano enorme, estava me enlouquecendo, latia dia e noite. De qualquer modo. Incolor, inodoro, gosto agradável, bastante doce, perfeito numa vitamina. Hum. Arrebenta com os rins, uma dor lancinante. Pequenos cristais afiados cortam as células. Ele vai cambalear e pronunciar mal as palavras, como um bêbado, mas sem nenhum cheiro de álcool. Náusea, vômitos, respiração ofegante, convulsões, ataque do coração, coma, falência do fígado. Cortina. Leva algum tempo, desde que ninguém complique as coisas com um tratamento.”
“Deixa vestígios?”
“Tudo deixa vestígio. Você tem que pensar nas vantagens. Fácil de comprar, mesmo no verão. Um limpador de tapetes faz o mesmo serviço, mas não tem um gosto tão bom. Um prazer de administrar. Desce como refresco. Só precisamos dissociar você do momento em que for bebido.”
“Eu? E você?”
“Não se preocupe. Eu vou estar dissociado.”
Não foi isso que minha mãe perguntou, mas ela deixou passar.
6.
Trudy e eu estamos nos embebedando de novo e nos sentindo melhor, enquanto Claude, que começou depois e que tem uma massa corporal maior, ainda não nos alcançou. Ela e eu dividimos duas taças de Sancerre, ele toma o resto e depois volta à sacola de plástico em busca de um Borgonha. O recipiente cinzento de glicol ao lado da garrafa de vinho, sentinela da nossa festança. Ou memento mori. Depois de um branco penetrante, um pinot noir é como a carícia calmante de uma mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão. Como ninguém parece disposto a ler o rótulo, sou forçado a dar um palpite: um Échezeaux Gran Cru. Se encostassem na minha cabeça o pênis de Claude (ou, menos estressante, um revólver) para eu nomear o domaine, eu diria Romanée-Conti devido apenas aos toques picantes de cassis e cereja-preta. A sugestão de violetas e taninos suaves remete ao verão clemente e preguiçoso de 2005, a salvo de ondas de calor, embora um aroma intrigante e algo remoto de café moca, assim como o mais próximo sabor de banana madura, evoquem o domaine de Jean Grivot em 2009. Mas nunca saberei. Enquanto o solene conjunto de sabores, formado no auge da civilização, chega a mim, passa através de mim, encontro-me em meio ao horror, o espírito mergulhado em pensamentos.
Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória. Conceda-me todo o poder que o corpo humano pode suportar, recupere meus jovens músculos esculpidos de pantera e o olhar penetrante e duro, conduza este ser à mais extrema medida — matar o tio para salvar o pai. Entregue uma arma em suas mãos, um pé de cabra, um pernil de cordeiro congelado, faça-o se pôr atrás da cadeira do tio, de onde pode ver o anticongelante, e ficar fortemente motivado. Pergunte-se, pode ele — posso eu — fazer isto, destroçar esse aglomerado de ossos coberto de cabelo e espalhar seu conteúdo cinzento por cima da sujeira da mesa? Depois matar sua mãe, como única testemunha, livrar-se dos dois corpos numa cozinha de porão, tarefa só realizada em sonhos? E mais tarde limpar esta cozinha — outra tarefa impossível? Acrescente a possibilidade da prisão, do tédio enlouquecedor e do inferno que são as outras pessoas, e nem de longe as melhores pessoas. Seu companheiro de cela, mais forte que você, deseja ver televisão o dia inteiro durante trinta anos. Interessado em contrariá-lo? Então o veja encher uma fronha amarelada com pedras e olhar lentamente em sua direção, para o seu próprio aglomerado de ossos.
Ou imagine o pior: o ato ocorreu — as últimas células do fígado de meu pai foram dilaceradas por um cristal venenoso. Ele expeliu seus pulmões e seu coração. Agonia, coma, enfim a morte. Que tal a vingança? Meu avatar dá de ombros e pega seu casaco, murmurando ao sair que crime de honra não tem lugar na sociedade moderna. Que ele fale por si próprio.
“Fazer a lei com as próprias mãos — isso é coisa do passado, típica de velhos albaneses com rixas de família e subdivisões do Islã tribal. A vingança está morta. Hobbes tinha razão, meu jovem. O Estado precisa deter o monopólio da violência, um poder centralizado que inspire em todos nós um temor reverencial.”
“Então, meu querido avatar, telefone agora para o Leviatã, chame a polícia, faça com que ela investigue.”
“O que exatamente? O humor negro de Claude e Trudy?”
Inspetor: “E esse glicol na mesa, minha senhora?”.
“Um encanador sugeriu que eu comprasse, senhor inspetor, para evitar que nossos velhos radiadores congelem no inverno.”
“Então, caro futuro melhor de mim, vá até Shoreditch, alerte meu pai, conte a ele tudo que você sabe.”
“Ele nunca acreditaria em mim. A mulher que ele ama e venera planejando matá-lo? Como obtive tal informação? Participei de alguma conversa na cama, estava escondido debaixo dela?”
Isso dito pela forma ideal de um ser poderoso e competente. Quais são então minhas chances, as de um quase bebê cego e de pernas para cima, vivendo ainda num espaço fechado, ligado à futura assassina por tubos de sangue venoso e arterial?
Silêncio! Os conspiradores estão conversando.
“Não é ruim que ele queira voltar para casa”, diz Claude. “Faça um show de resistência e depois deixe ele vir.”
“Ah, sim”, ela diz, fria e sarcástica. “E preparo uma vitamina de boas-vindas.”
“Eu não disse isso. Mas.”
Só que eu acho que ele quase disse.
Fazem uma pausa para reflexão. Minha mãe estende a mão para pegar a taça de vinho. Sua epiglote se levanta e abaixa viscosamente ao beber e o líquido desce por seus vales naturais, passando — como tantas outras coisas — perto da sola de meus pés, fazendo a curva para dentro, vindo em minha direção. Como não gostar dela?
Ela pousa a taça e diz: “Ele não pode morrer aqui”.
Com que facilidade Trudy fala sobre a morte dele!
“Você tem razão. Shoreditch é melhor. Você podia ir visitá-lo.”
“E levar uma garrafa de anticongelante de uma safra especial para comemorarmos os bons tempos!”
“Leve um lanche. Salmão defumado, salada de repolho, palitos de chocolate. E... o negócio.”
“Blááááááá!” Difícil reproduzir o som do ceticismo explosivo de minha mãe. “Eu o abandono, o ponho para fora de casa, arranjo um amante e aí levo um lanche para ele!”
Até eu gosto como meu tio se ofende com “arranjo um amante”, insinuando que ainda haveria muitos por vir. É o que dizem “arranjo” e “um”. Pobre-diabo. Só está tentando ajudar. Sentado diante de uma jovem e bela mulher de tranças douradas, sutiã de biquíni e shorts curtos numa cozinha sufocante, ela é um fruto inchado e adorável, um troféu que ele não pode se permitir perder.
“Não”, ele diz com muito cuidado. A afronta à sua autoestima faz sua voz ficar mais aguda. “É uma reconciliação. Você está se penitenciando. Chamando-o de volta. Para ficarem juntos. Uma espécie de pedido de paz, um momento para ser festejado, toalha estendida na mesa. Fique feliz!”
O silêncio de Trudy é a recompensa dele. Ela está pensando. Assim como eu. Na mesma e velha pergunta. O quanto Claude é realmente idiota?
Encorajado, ele acrescenta: “Uma salada de frutas pode ser uma opção”.
Há poesia em sua insipidez, uma forma de niilismo que dá vida ao lugar-comum. Ou, pelo contrário, a banalidade desarmando uma ideia mais repugnante. Só ele seria capaz de se superar, e o faz depois de cinco segundos de reflexão.
“Sorvete está fora de questão.”
Bom senso. Pertinente. Quem iria ou poderia fazer sorvete com um anticongelante?
Trudy suspira. Sussurra: “Você sabe, Claude, eu já amei esse homem”.
Será que ele a vê como eu a imagino? O olhar verde está se nublando e, de novo, uma lágrima precoce cruza suavemente seu osso malar. Uma fina camada de suor cobre a pele rosada, cabelos finos libertados das tranças se transformam em filamentos reluzentes sob as lâmpadas do teto.
“Nós éramos bem jovens quando nos conhecemos. Quer dizer, nos conhecemos cedo demais. Numa pista de atletismo. Ele lançava dardos e quebrou algum recorde local. Eu ficava de joelhos bambos quando o via correr, carregando aquela lança. Parecia um deus grego. Uma semana depois ele me levou a Dubrovnik. Nem tínhamos uma varanda. Dizem que é uma cidade bonita.”
Ouço o estalar desagradável de uma cadeira de cozinha. Claude vê as bandejas do serviço de quarto empilhadas do lado de fora da porta do hotelzinho, as roupas de cama romanticamente amarfanhadas, a jovem quase nua de dezenove anos sentada diante de uma penteadeira de madeira compensada, suas costas perfeitas, uma toalha muito gasta no colo — uma pequena concessão à decência. John Cairncross, ciumentamente excluído, foi deixado fora da imagem, mas é grande e também está nu.
Sem se importar com o silêncio de seu amante, Trudy segue rápido, em tom mais alto, antes que a garganta se contraia e a emudeça. “Tentando ter um filho estes anos todos. E aí exatamente quando... exatamente quando...”
Exatamente quando! Um balangandã adverbial sem nenhum valor! Quando ela se cansou de meu pai e de sua poesia, eu já estava muito bem alojado para ser posto para fora. Ela chora agora por John como o fez pelo gato Hector. Talvez a natureza de minha mãe não vá suportar um segundo assassinato.
“Hã”, diz Claude por fim, oferecendo sua migalha. “Leite derramado...”
Leite, algo repelente para um ser ainda não nascido e nutrido através do sangue, especialmente depois do vinho, mas que de qualquer maneira está no meu futuro.
Ele espera pacientemente para apresentar sua ideia de um lanche. De nada ajuda ficar ouvindo seu rival ser pranteado. Ou talvez ajude a concentrar seus pensamentos. Tamborila de leve os dedos na mesa, uma dessas coisas que ele costuma fazer. De pé, costuma chacoalhar as chaves da casa no bolso da calça ou ficar limpando inutilmente a garganta. Esses gestos vazios, inconscientes, são sinistros. Claude exala um leve cheiro de enxofre. Mas por um momento nos encontramos juntos, porque também estou esperando, perturbado pela fascinação doentia de conhecer o estratagema, como as pessoas desejam saber o final de uma peça de teatro. Ele não consegue expor suas ideias enquanto ela chora.
Um minuto depois, ela assoa o nariz e diz com voz rouca: “Seja como for, agora eu odeio aquele homem”.
“Ele te fez muito infeliz.”
Trudy concorda com a cabeça e assoa o nariz de novo. Agora o ouvimos apresentar seu opúsculo verbal. Seu estilo era o do evangelizador que bate à porta da casa dela para auxiliá-la a alcançar uma vida melhor. Essencial, ele nos diz, que minha mãe e eu o visitemos ao menos uma vez em Shoreditch antes da última e fatal visita. Impossível ocultar da Justiça que ela foi lá. Útil estabelecer que ela e John estavam de novo se dando bem.
A coisa, ele diz, tem que parecer suicídio, como se Cairncross tivesse preparado um coquetel para melhorar o gosto do veneno. Assim, na última visita, ela deixará lá as garrafas vazias de glicol e da vitamina comprada numa loja. Esses recipientes não devem conter nenhum vestígio de suas digitais. Ela vai precisar passar cera na ponta dos dedos. Ele tem o produto. E dos melhores. Antes de sair do apartamento de John, ela guardará os restos do lanche na geladeira. Suas digitais também não poderão aparecer em nenhuma embalagem nem nos papéis de embrulho. Deve parecer que ele comeu sozinho. Como beneficiária da herança de Claude, ela será investigada como suspeita de alguma conspiração. Por isso, todos os vestígios de Claude, em especial no quarto e no banheiro, devem ser eliminados, totalmente limpos, sem sobrar nem mesmo um fio de cabelo ou escama de pele. E, sinto que ela está pensando, nem uma cauda nem uma cabeça, agora imóveis, do último espermatozoide. Isso pode levar algum tempo.
Claude continua. Nada de ocultar os telefonemas que ela fez para ele. A companhia telefônica terá um registro de todos.
“Mas lembre. Não passo de um amigo.”
É difícil para ele dizer estas últimas palavras, sobretudo quando minha mãe as repete como no catecismo. As palavras, estou começando a entender, criam verdades.
“Você não passa de um amigo.”
“Isso. Eu telefonava de vez em quando. Para conversar. Cunhado. Ajudando você. Nada mais.”
Sua apresentação foi feita em tom neutro, como se todos os dias ele matasse irmãos e maridos para ganhar a vida, um açougueiro honesto e bem conceituado cujo avental ensanguentado é posto junto com as roupas de cama e de banho na máquina de lavar da família.
Trudy começa a dizer: “Mas escute...”, quando Claude a interrompe com um pensamento que lhe ocorreu de repente.
“Você viu? Uma casa na nossa rua, do mesmo tamanho, no mesmo estado? À venda por oito milhões!”
Minha mãe absorve isso em silêncio. Está assimilando o “nossa”.
Interessante. Ganhamos mais um milhão por não termos matado meu pai antes. Como se costuma dizer, cada um constrói a própria sorte. Mas. (Como Claude diria.) Ainda não sei muito sobre assassinatos. No entanto, o plano dele está mais para um padeiro do que para um açougueiro. Cozido pela metade. A ausência de digitais na garrafa de glicol levantará suspeitas. Quando meu pai começar a se sentir mal, o que o impedirá de apelar para os serviços de emergência? Vão bombear seu estômago. Ele vai ficar bom. E então?
“Não me interessa o preço das casas”, diz Trudy. “Isso fica para depois. A questão principal é a seguinte. Onde está o seu risco, que perigo você está correndo por querer uma parte do dinheiro? Se alguma coisa der errado e eu for apanhada, onde você vai estar depois que eu tiver eliminado qualquer vestígio seu no quarto?”
A franqueza dela me surpreende. Não chego a sentir alegria, mas a expectativa de uma alegria, um alívio nas entranhas. Uma dissensão entre os vilões, a trama, já de si inútil, agora arruinada, meu pai salvo.
“Trudy, vou estar a seu lado o tempo todo.”
“Vai estar é seguro em sua casa. Álibis preparados. Capacidade total de negar tudo.”
Ela estava pensando nisso. Pensando sem eu saber. Ela é uma tigresa.
Claude diz: “O negócio é que...”.
“O que eu quero”, minha mãe diz com uma veemência que endurece as paredes a meu redor, “é que você esteja envolvido nisso, e envolvido até o pescoço. Se eu for pega, você vai ser pego também. Se eu...”
A campainha da porta toca uma, duas, três vezes, e nós ficamos imóveis. De acordo com a minha experiência, ninguém nunca bateu tão tarde à nossa porta. O plano de Claude é tão furado que já fracassou, e aqui está a polícia. Ninguém mais toca uma campainha com essa insistência tão obstinada. Um aparelho de escuta havia sido instalado havia muito tempo na cozinha, eles tinham ouvido tudo. Trudy tem razão — nós todos vamos ser apanhados juntos. Bebês atrás das grades foi um documentário longo demais que ouvi uma tarde no rádio sem prestar muita atenção. Assassinas nos Estados Unidos, mães com filhos pequenos, tinham permissão de criá-los em suas celas. Isso foi apresentado como um louvável desenvolvimento. Mas me lembro de ter pensado que aqueles bebês não haviam feito nada de errado. Tratem de libertá-los! Ah, bom. Só nos Estados Unidos.
“Eu vou.”
Ele se levanta e atravessa o cômodo até o interfone com vídeo preso à parede junto à porta da cozinha. Examina a telinha.
“É o seu marido”, diz sem ênfase.
“Meu Deus.” Minha mãe faz uma pausa para pensar. “Não adianta eu fingir que não estou aqui. Melhor você se esconder em algum lugar. Na lavanderia. Ele nunca...”
“Tem alguém com ele. Uma mulher. Uma garota. Bem bonita, aliás.”
Outro silêncio. A campainha toca de novo. Mais demoradamente.
A voz de minha mãe soa controlada, embora tensa. “Nesse caso, vá lá e deixe eles entrarem. Mas, Claude, meu querido. Faça o favor de guardar essa garrafa.”