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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCLAUSURADO
ENCLAUSURADO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

ENCLAUSURADO / Ian McEvan

 

 

 

 

 

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.


CONTINUA

13.

À zombaria de Claude segue-se um silêncio que não consigo entender. Ele pode estar arrependido de seu sarcasmo ou aborrecido por ter sido arrancado de seu delicioso platô de euforia. Ela também pode estar aborrecida ou desejando ser de novo a ratinha dele. Estou sopesando essas possibilidades enquanto ele se afasta dela. Senta-se na extremidade da cama desarrumada, digitando no celular. Ela permanece junto à janela, de costas para o quarto, diante de sua área de Londres, o trânsito que se reduz à noite, alguns pássaros cantando, losangos de nuvens de verão e o caos dos telhados.

Quando por fim ela fala, é num tom mal-humorado e sem vida. “Não estou vendendo esta casa só para você ficar rico.”

A resposta dele é imediata. A mesma voz provocativa, cheia de escárnio. “Não, não. Vamos ficar ricos juntos. Ou, se preferir, pobres em prisões separadas.”

Bem posto como ameaça. Será que ela pode acreditar nele, que Claude levaria os dois para o buraco? Altruísmo negativo. Prejudicar-se para prejudicar o outro. Qual deveria ser a resposta dela? Tenho tempo para pensar, porque ela ainda não respondeu. Um pouco chocada com essa sugestão de chantagem, eu diria. Logicamente, ela deveria retrucar de forma idêntica. Em teoria, cada um tem igual poder sobre o outro. Saia desta casa. Não volte nunca mais. Senão chamo a polícia para prender nós dois. Mas até eu sei que o amor não se deixa guiar pela lógica nem o poder é distribuído igualmente. Os amantes chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem. Fracassos anteriores não são bem registrados pela memória. As infâncias reluzem através da pele do adulto, de modo favorável ou não. O mesmo se dá com o que se herda das famílias, cujas leis determinam nossa personalidade. Os amantes ignoram o fato de não existir livre-arbítrio. Não ouvi um número suficiente de novelas de rádio para saber mais do que isso, embora a música popular tenha me ensinado que eles não sentem em dezembro o que sentiam em maio e que ter um útero pode ser incompreensível para aqueles que não têm, sendo o oposto também verdadeiro.

Trudy se volta para dentro do quarto. Sua voz débil e distante me deixa congelado. “Estou apavorada.”

Ela já vê como os planos deram errado, apesar dos primeiros sinais de êxito. Está tremendo. Afinal, declarar sua inocência não é viável. A perspectiva de uma briga com Claude lhe mostrou como seria solitária sua independência. O gosto dele pelo sarcasmo é novo para ela, a amedronta, a desorienta. E ela o quer, embora a voz dele, seu toque e seus beijos estejam corrompidos pelo que fizeram. A morte de meu pai não ficará confinada, ela se desprendeu da laje mortuária ou da gaveta de aço inoxidável e flutuou pelo ar noturno, cruzando a North Circular e sobrevoando os telhados do norte de Londres. Encontra-se agora no quarto, no cabelo dela, em suas mãos e no rosto de Claude — uma máscara iluminada que olha sem expressão para o celular.

“Ouça só isto”, ele diz como se estivessem tomando o café da manhã de domingo. “De um jornal daqui da região. Corpo de um homem encontrado perto do encostamento da M1 entre as saídas tal e tal, mil e duzentos telefonemas para os serviços de emergência feitos por motoristas que passavam pelo local etc. Homem declarado morto ao chegar ao hospital, confirma a porta-voz da polícia etc. Nome ainda desconhecido... E aqui o importante: ‘No momento, a polícia não está tratando a morte como crime’.”

“No momento”, ela murmura. Depois fala mais alto. “Mas você não entende o que estou tentando dizer...”

“Que é...?”

“Ele está morto. Morto! É isso... E...” Agora ela começa a chorar. “E isso dói.”

Claude está sendo apenas racional. “O que eu entendo é que você o queria morto, e agora...”

“Ah, John!”, ela exclama.

“Por isso vamos ter a coragem de enfrentar a porra que vier. E seguir em frente com...”

“Fizemos... uma coisa terrível”, ela diz, sem levar em conta que está negando sua inocência.

“Pessoas comuns não teriam o peito de fazer o que fizemos. Por isso, aqui está outro. Luton Herald e Post. ‘Na manhã de ontem...’”

“Não! Por favor, não.”

“Está bem, está bem. De qualquer modo, era a mesma coisa.”

Agora ela está indignada. “Eles escrevem ‘homem morto’, e isso não quer dizer nada para eles. Só palavras. Impressas. Não têm ideia do que significa.”

“Mas eles estão certos. Disso eu sei. Em todo o mundo, morrem cento e cinco pessoas por minuto. Quase duas por segundo. Só para você ter uma ideia.”

Uma pausa de dois segundos enquanto ela absorve a informação. Em seguida começa a rir, um riso indesejado e sem alegria. Um riso que se transforma em soluços, através dos quais ela consegue por fim dizer: “Eu odeio você”.

Ele se aproxima, pousa a mão no braço dela e sussurra: “Odeia? Assim você me excita de novo”.

E ela conseguiu. Em meio aos beijos dele e a suas lágrimas, Trudy diz: “Por favor. Não. Claude”.

Ela não se afasta nem o empurra. Os dedos dele estão abaixo da minha cabeça, movendo-se lentamente.

“Ah, não”, ela murmura, aproximando-se dele. “Ah, não.”

Pesar e sexo? Só posso teorizar. Defesas fracas, tecidos moles tornados mais moles, a resistência emocional cedendo lugar à confiança infantil num picante abandono. Espero nunca descobrir.

Ele a puxou para a cama, tirou sua sandália, o vestido leve de algodão, a chamou outra vez de ratinha, embora só uma vez. A empurra para que deite de costas. O consentimento tem seu lado brutal. Será que uma mulher enlutada o concede quando levanta a bunda para que tirem sua calcinha? Eu diria que não. Ela se deixou cair de lado — sua única iniciativa. Enquanto isso, estou trabalhando num plano, num último recurso. Minha derradeira tentativa.

Ele está ajoelhado ao lado dela, provavelmente nu. Nessa hora, o que poderia ser pior? Claude dá a resposta de imediato: o sério risco clínico, neste estágio da gravidez, da posição papai e mamãe. Balbuciando uma ordem — como ele é encantador! —, a faz se deitar de barriga para cima, separa suas pernas com um toque indiferente das costas da mão e se apresta, assim me diz o colchão, para pressionar seu corpo contra o meu.

Meu plano? Claude está cavando um túnel em minha direção e preciso ser rápido. Estamos balançando, estalando, sob grande pressão. Um som eletrônico agudo ataca meus ouvidos, meus olhos se esbugalham e ardem. Preciso usar meus braços, minhas mãos, mas há tão pouco espaço! Vou dizer bem rápido: vou me matar. A morte de um bebê, na verdade um homicídio por causa do ataque irresponsável de meu tio a uma mulher no nono mês de gravidez. Sua prisão, julgamento, sentença, detenção. A morte de meu pai vingada em parte. Em parte porque os homicidas não são enforcados na amável Grã-Bretanha. Darei a Claude uma lição adequada sobre a arte do altruísmo negativo. Para me suicidar, vou necessitar do cordão, três voltas em torno do meu pescoço num laço mortífero. Ouço de longe os suspiros de minha mãe. A ficção do suicídio de meu pai servirá de inspiração para minha própria tentativa. A vida imitando a arte. Ser um natimorto — termo tranquilo, depurado de qualquer elemento trágico — exerce uma atração simples. Agora vem o martelar contra meu crânio. Claude está acelerando, agora a galope, respirando asperamente. Meu mundo está sendo sacudido, mas o laço se encontra no lugar, minhas mãos agarram o cordão, puxo forte para baixo, as costas encurvadas, com a devoção de um tocador de sinos. Que fácil! Alguma coisa viscosa apertando minha carótida, um canal vital adorado pelos cortadores de gargantas. Posso fazer isso. Mais forte! A sensação de queda vertiginosa, do som se transformando em gosto, o toque se transformando em som. Um negror crescente, mais negro do que jamais vi e minha mãe murmurando suas despedidas.

Mas, óbvio, matar o cérebro é matar a vontade de matar o cérebro. Tão logo começo a perder a consciência, minhas mãos enfraquecem e a vida ressurge. De imediato, ouço sinais de uma vida robusta — sons íntimos, como se atravessassem as paredes de um hotel vagabundo. Depois mais altos, e ainda mais altos. É minha mãe. Lá vai ela, embarcada num de seus perigosos êxtases gozosos.

Mas minha própria parede da morte é alta demais. Caio de volta no chão da existência corriqueira.

Por fim, Claude retira seu peso repugnante — saúdo sua tosca brevidade —, e meu espaço é restaurado, embora as pernas formiguem. Agora estou me recuperando. Enquanto Trudy continua deitada, bamba e exausta, com todo o arrependimento de praxe.

Não são os parques temáticos do Paradiso e do Inferno que eu mais temo — brinquedos celestiais, multidões diabólicas —, e poderia viver com o insulto do esquecimento eterno. Nem me interessa saber se será uma coisa ou outra. O que temo é ficar de fora. Desejo saudável ou mera cobiça, em primeiro lugar quero minha vida, o que me é devido, minha fração infinitesimal de eternidade e uma chance confiável de me tornar consciente. Tenho direito a um punhado de décadas para tentar a sorte num planeta que gira sem o menor controle. Esse é o meu brinquedo — a parede da vida. Quero dar uma volta. Quero vir a ser. Em outras palavras, há um livro que desejo, ainda inédito, ainda não escrito, embora já tenha um início. Quero ler até o final a Minha história do século XXI. Quero estar lá, na última página, com oitenta e poucos anos, debilitado mas cheio de vigor, dançando uma música ligeira na noite de 31 de dezembro de 2099.

Pode ser que tudo acabe antes dessa data, sendo assim uma espécie de história de suspense, violenta, espetacular, altamente comercial. Um compêndio de sonhos, com elementos de horror. Mas está fadada a ser também uma história de amor e uma narrativa heroica de invenções brilhantes. Para sentir o gostinho, veja o volume anterior, de cem anos antes. Uma leitura lúgubre, pelo menos até a metade, mas irresistível. Alguns capítulos que a redimem, digamos, sobre Einstein e Stravinsky. No novo livro, uma das muitas tramas não resolvidas é a seguinte: será que os nove bilhões de personagens vão conseguir escapar de um conflito nuclear? Pense nisso como um esporte de contato físico. Alinhe as equipes. Índia contra Paquistão, Irã contra Arábia Saudita, Israel contra Irã, Estados Unidos contra China, Rússia contra Estados Unidos e Otan, Coreia do Norte contra o resto. A fim de aumentar as chances de gol, acrescente outras equipes: jogadores que não representam nações vão chegar.

O quanto nossos protagonistas estão decididos a superaquecer seus lares? Um ameno 1,6 grau, projeção ou esperança de alguns poucos céticos, criará montanhas de trigo na tundra, tavernas na beira das praias do Báltico, borboletas coloridas em territórios ao norte do Canadá. Na ponta mais sombria e pessimista, um aumento de quatro graus, caracterizado por fortes ventanias, provoca calamidades de inundação e seca, com o consequente agravamento do clima político. Mais tensão narrativa em subtramas de interesse regional: o Oriente Médio permanecerá num estado de violenta agitação, se derramará sobre a Europa e a modificará de forma substancial? Será que o Islã vai mergulhar sua extremidade febril no laguinho refrescante da reforma? Poderá Israel conceder alguns centímetros de deserto àqueles que deslocou? Os sonhos seculares de união da Europa podem se dissolver diante dos velhos ódios, do nacionalismo em pequena escala, do desastre financeiro, da discórdia. Ou pode manter seu curso. Preciso saber. Os Estados Unidos declinarão tranquilamente? Improvável. A China se tornará consciente? A Rússia? Ou as instituições financeiras e corporações de âmbito global? Tratemos depois de introduzir as sedutoras constantes humanas: sexo e arte, vinho e ciência, catedrais, paisagens, a magnífica busca pelo saber. Por fim, o oceano particular de desejos — o meu, de caminhar descalço numa praia em volta de uma fogueira, peixe assado, suco de limão, música, a companhia de amigos, alguém, não Trudy, que me ame. Meus direitos hereditários num livro.

Por isso, me envergonho da minha tentativa, sinto alívio por ter fracassado. Claude (agora cantarolando bem alto no ecoante banheiro) precisa ser atingido por outros meios.

Menos de quinze minutos se passaram desde que ele despiu minha mãe. Sinto que estamos entrando em uma nova fase da noite. Em meio ao som de torneiras abertas, ele diz que está com fome. Vencido o episódio degradante e com a pulsação se estabilizando, creio que minha mãe voltará ao tema da inocência. Para ela, a conversa de Claude sobre o jantar vai parecer imprópria. Até mesmo insensível. Ela senta, põe o vestido, encontra a meia entre os lençóis, calça a sandália e caminha até o espelho da penteadeira. Começa a fazer as tranças no cabelo, que, solto, pende em cachos louros que seu marido um dia celebrou num poema. Isso lhe dá tempo para se recuperar e pensar. Vai usar o banheiro depois que Claude sair. A ideia de estar perto dele agora a repugna.

A repulsa restaura seu senso de pureza e propósito. Horas antes ela estava no comando. Poderá estar de novo se resistir a outra entrega doentia e submissa. No momento está bem, renovada, saciada, imune, mas a coisa espera por ela, o animalzinho pode se transformar outra vez num monstro, distorcer seus pensamentos, puxá-la para baixo — e ela pertencerá a Claude. Entretanto, para assumir o controle... Penso em suas reflexões enquanto ela inclina o lindo rosto diante do espelho para torcer e trançar outra mecha. Dar ordens como fez de manhã na cozinha, arquitetar o novo passo significará admitir o crime. Se ela pudesse apenas se limitar à dor inocente de uma pobre viúva!

Agora há tarefas práticas a enfrentar. Tudo que foi tocado — utensílios, copos plásticos e até o liquidificador — precisa ser jogado fora bem longe de casa. Todos os vestígios da cozinha também terão de ser removidos. Só as canecas de café devem permanecer na mesa sem ser lavadas. Essas tarefas tediosas deverão manter o horror à distância por uma hora. Talvez por isso ela pousa uma mão tranquilizadora na protuberância que me contém, perto da parte de baixo das minhas costas. Um gesto de esperança amorosa para o nosso futuro. Como ela poderia pensar em me dar para alguém? Vai precisar de mim. Vou iluminar a penumbra de inocência e compaixão que ela vai desejar manter a seu redor. Mãe e filho — uma grande religião teceu suas melhores histórias em torno desse símbolo potente. Sentado em seu colo, apontando para o céu, vou torná-la imune a acusações. Por outro lado — como odeio esta frase —, nenhuma preparação foi feita para minha chegada, nenhuma roupa, mobília, nada de arrumar compulsivamente o ninho. Não me recordo de haver entrado numa loja com minha mãe. Um futuro amoroso é fantasia.

Claude sai do banheiro e vai até o telefone. Está pensando em comida, em algum prato indiano entregue em casa, é o que ele murmura. Ela contorna Claude e vai fazer suas próprias abluções. Quando voltamos, ele ainda está ao telefone. Trocou a comida indiana por dinamarquesa — sanduíches abertos, arenque em conserva, carnes cozidas. Está encomendando coisas demais, um impulso natural depois de um assassinato. Quando termina, Trudy está pronta, cabelo trançado, lavada, roupa de baixo limpa, outro vestido, sapato em vez de sandália, um toque de perfume. Vai assumir o comando.

“Há uma mala velha de lona no depósito embaixo da escada.”

“Vou comer primeiro. Estou faminto.”

“Vá agora. Eles podem voltar a qualquer momento.”

“Vou fazer do meu jeito.”

“Vai fazer do jeito que eu...”

Será que ela ia mesmo dizer “mandar”? Que distância ela viajou, tratando-o como criança, quando agora há pouco era o animal de estimação dele. Claude poderia ter ignorado as palavras dela. Poderia ter havido uma briga. Mas o que ele está fazendo neste instante é atender o telefone. Não é o pessoal da loja de sanduíches dinamarqueses confirmando o pedido nem é o mesmo telefone. Minha mãe se postou atrás dele para ver. Não é a linha fixa, e sim o interfone da porta da frente. Estão olhando fixamente para a telinha, pasmos. A voz chega, distorcida, sem os registros graves, uma súplica débil e penetrante.

“Por favor, preciso ver vocês agora!”

“Ah, meu Deus”, minha mãe diz com evidente asco. “Agora não.”

Mas Claude, ainda irritado por estar recebendo ordens, tem boas razões para afirmar sua autonomia. Aperta o botão, repõe o fone, há um instante de silêncio. Nada têm a se dizer. Ou coisas demais.

Em seguida todos nós descemos para receber a poeta das corujas.


14.

Tenho tempo, enquanto descemos a escada, para refletir mais sobre minha bem-aventurada falta de determinação na tentativa de me autoestrangular. Algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Franz Reichelt, o Alfaiate Voador, saltou para a morte da torre Eiffel em 1912 usando uma roupa larga que deveria servir como paraquedas, certo de que seu invento salvaria a vida de aviadores. Ficou parado por quarenta segundos antes de saltar. Quando por fim se inclinou para a frente e pisou no vazio, a corrente de ar ascendente enrolou o tecido bem apertado em volta de seu corpo e ele caiu como uma pedra. Os fatos, a matemática, estavam contra ele. Ao pé da torre ele abriu uma cova rasa, de quinze centímetros de profundidade, no chão gelado de Paris.

O que, quando Trudy faz uma lenta meia-volta no primeiro patamar, me leva, através da morte, à questão da vingança. Está se tornando mais claro, e fico aliviado. Vingança: o impulso é instintivo, poderoso — e desculpável. Insultado, enganado, ferido, ninguém pode resistir à atração de um pensamento vingativo. E aqui, nesta extremidade onde me encontro, um ente querido assassinado, as fantasias são incandescentes. Somos animais sociais, no passado mantínhamos distância entre nós por meio da violência ou de sua ameaça, como cães numa matilha. Nascemos com essa expectativa deliciosa. De que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas? A vingança pode ser executada cem vezes ao longo de uma noite insone. O impulso, a intenção sonhadora são humanos, normais, e devíamos nos perdoar.

Mas a mão erguida, a execução violenta, essa é amaldiçoada. A matemática diz isso. Não há volta ao status quo ante, nenhum refrigério, nenhum doce alívio — ou algum que dure. Só um segundo crime. Antes de embarcar numa viagem de vingança, cave duas sepulturas, disse Confúcio. A vingança desfaz as costuras de uma civilização. É um retrocesso rumo ao medo visceral e constante. Veja os pobres albaneses, cronicamente intimidados pelo kanun, o culto imbecil das rixas de família.

Por isso, quando chegamos diante da preciosa biblioteca de meu pai, me absolvi, não pelos pensamentos, mas pelas ações de vingar sua morte nesta vida ou na que virá depois do nascimento. E estou me absolvendo da covardia. A eliminação de Claude não vai trazer meu pai de volta. Estou estendendo os quarenta segundos de Reichelt pelo resto da vida. Não às ações impetuosas! Se eu tivesse tido êxito com o cordão, então ele, e não Claude, teria sido a causa observada por qualquer patologista. Um acidente infeliz, ele registraria, nem mesmo incomum. Minha mãe e meu tio sentiriam algum alívio imerecido.

Se a escada permite tantas reflexões, é porque Trudy desce com a velocidade do mais lento primata. Coisa rara, agarra firme o corrimão. Um degrau de cada vez, detém-se em alguns, pondera, suspira. Entendo o que acontece. A visitante vai atrasar as tarefas domésticas essenciais. A polícia pode voltar. O estado de espírito de Trudy não favorece uma batalha ciumenta. Há a questão da precedência. Foi-lhe roubada a identificação do corpo — isso incomoda. Elodia não passa de uma amante recente. Ou não tão recente. Pode haver chegado antes da mudança para Shoreditch. Outra ferida aberta para ser cuidada. Mas por que vir aqui? Não para receber ou prestar consolo. Pode saber ou possuir alguma coisinha ameaçadora. Pode jogar Trudy e Claude aos cães. Ou então é chantagem. Questões relativas ao funeral para serem discutidas. Nada disso. Não, não! Para minha mãe, o esforço de negação é muito grande. Além de tudo (ressaca, assassinato, sexo enervante, gravidez avançada), que cansaço para minha mãe ser obrigada a exercer sua força de vontade e oferecer todo o seu ódio a uma visitante!

Mas ela está decidida. As tranças escondem cuidadosamente seus pensamentos de todos, menos de mim, enquanto as roupas de baixo — algodão e não seda, me parece — e um vestido curto estampado, corretamente largo mas não volumoso, foram trocados há pouco tempo e a fazem se sentir confortável. Braços e pernas nus e rosados, unhas dos pés pintadas de roxo, sua beleza vigorosa e indiscutível — tudo exposto de forma intimidadora. Ela parece um navio de guerra antigo com as velas relutantemente enfunadas, as escotilhas de canhão abertas. Uma belonave, da qual eu sou uma orgulhosa figura de proa. Desce flutuando, embora com movimentos intermitentes. Vai encarar o que quer que venha a seu encontro.

Quando chegamos ao vestíbulo, já começou. E mal. A porta da frente foi aberta e fechada. Elodia entrou e está nos braços de Claude.

“Sim, sim. Calma, calma”, ele murmura em meio à sucessão de frases chorosas e entrecortadas que ela pronuncia.

“Eu não devia. Está errado. Mas eu. Ah, desculpe. O que deve estar sendo. Para você. Não posso. Seu irmão. Não consigo evitar.”

Minha mãe permanece ao pé da escada, enrijecendo-se com a desconfiança, e não apenas da visitante. Tristeza poética.

Elodia ainda não reparou em nós. Seu rosto deve estar voltado para a porta. A informação que deseja dar vem junto com os soluços, em staccato. “Amanhã à noite. Cinquenta poetas. De toda parte. Ah, como nós o amávamos! Leitura na biblioteca de Bethnal Green. Ou do lado de fora. Velas. Um poema cada um. Queríamos tanto que vocês fossem.”

Pausa para assoar o nariz. Com isso, se afasta de Claude e vê Trudy.

“Cinquenta poetas”, ele repete sem se conter. Que ideia poderia ser mais repugnante para ele? “É um bocado de gente.”

Os soluços estão quase sob controle, mas o impacto emocional das palavras dela os traz de volta. “Ah. Oi, Trudy. Sinto muito. Se você ou. Pudesse dizer algumas. Mas compreendemos. Se você. Se você não puder. Como é difícil.”

Nós a perdemos para seu pesar, cujo tom sobe e se transforma quase numa espécie de arrulho. Ela tenta se desculpar, e por fim ouvimos: “Comparado com o que vocês. Sinto muito! Não é o meu lugar”.

Ela tem razão, no entender de Trudy. Mais uma vez roubada. Um pesar maior, um choro maior — ela continua impassível junto à escada. Aqui no vestíbulo, onde ainda deve perdurar um resto do mau cheiro, estamos num limbo social. Escutamos Elodia, os segundos escoam. E agora? Claude tem a resposta.

“Vamos descer. Tem um Pouilly-Fumé na geladeira.”

“Não quero. Só vim para.”

“Por aqui.”

Enquanto Claude a conduz ao passar por minha mãe, eles certamente trocaram olhares, isto é, o brilho de repreensão dela deve ter sido recebido com um dar de ombros despreocupado dele. As duas mulheres não se abraçam, não se tocam nem se falam, embora estejam a centímetros uma da outra. Trudy deixa que eles sigam à frente antes de descer para a cozinha, onde os dois acusadores, Glicol e Vitamina da Judd Street, se ocultam em meio ao caos.

“Se quiser”, diz minha mãe ao pisar no assoalho pegajoso, “tenho certeza que Claude pode fazer um sanduíche para você.”

Esse oferecimento ingênuo esconde muitas farpas: é inadequado para a ocasião; Claude nunca fez um sanduíche em toda a sua vida; não há pão em casa; nada para pôr entre duas fatias a não ser fragmentos de nozes salgadas. E quem comeria em segurança um sanduíche saído daquela cozinha? De propósito, ela não se oferece para fazer o sanduíche; de propósito, ela põe Elodia e Claude juntos, separados dela. É uma acusação, uma rejeição, um frio afastamento envolto num gesto hospitaleiro. Embora eu desaprove, fico impressionado. Não se aprendem tais refinamentos nos podcasts.

A hostilidade de Trudy tem um efeito benéfico na sintaxe de Elodia. “Eu não conseguiria comer nada, muito obrigada.”

“Beba alguma coisa então”, diz Claude.

“Isso sim.”

Ouve-se a sequência conhecida de sons — porta da geladeira, tilintar descuidado do saca-rolhas ao tocar na garrafa, a retirada sonora da rolha, as taças de ontem enxaguadas na pia. Pouilly. Do outro lado do rio, em frente a Sancerre. Por que não? São quase sete e meia. As pequenas uvas, com seu colorido cinza-enevoado, devem cair bem em outra noite quente e abafada de Londres. Mas quero mais. Tenho a impressão de que Trudy e eu não comemos há uma semana. Estimulado pelo pedido telefônico de Claude, desejo como acompanhamento um prato tradicional e pouco conhecido, harengs pommes à l’huile. Arenque defumado e escorregadio, batatas macias, azeite obtido na primeira prensagem a frio das melhores azeitonas, cebola, salsa picada — anseio por tal entrée. Um Pouilly-Fumé combinaria de forma muito elegante. Mas como persuadir minha mãe? Mais fácil cortar a garganta de meu tio. O país encantador que seria minha terceira opção nunca pareceu tão longínquo.

Todos agora estamos sentados à mesa. Claude serve, as taças são erguidas numa homenagem solene ao morto.

Rompendo o silêncio, Elodia diz num sussurro de surpresa: “Mas suicídio? Parece uma coisa tão... tão diferente dele”.

“Ah, bem”, diz Trudy, deixando a frase pendurada no ar. Viu ali uma oportunidade: “Há quanto tempo você o conhecia?”.

“Dois anos. Quando ele deu aula...”

“Então você não saberia nada sobre as depressões.”

A voz tranquila de minha mãe toca meu coração. Que consolo para ela ter fé numa história coerente de doença mental e suicídio.

“A vida do meu irmão não foi o que se pode chamar de um caminho florido.”

Claude, eu começo a entender, não é um mentiroso de primeira categoria.

“Eu não sabia”, diz Elodia baixinho. “Ele foi sempre tão generoso. Especialmente conosco, a geração mais jovem que...”

“Era um outro lado dele”, declara Trudy com firmeza. “Fico feliz que os alunos nunca tenham visto essa parte.”

“Mesmo quando criança”, diz Claude. “Uma vez ele levou um martelo para a nossa...”

“Não é hora de contar essa história.” Trudy a tornou mais interessante com a interrupção.

“Você tem razão”, ele diz. “Mesmo assim nós o amávamos.”

Sinto que a mão de minha mãe sobe para o rosto a fim de cobri-lo ou afastar uma lágrima. “Mas ele nunca quis se tratar. Não aceitava o fato de estar doente.”

Há um protesto ou queixa na voz de Elodia de que minha mãe e meu tio não vão gostar. “Não faz sentido. Ele estava indo para Luton pagar a gráfica. Com dinheiro vivo. Estava muito feliz por quitar uma dívida. E ia fazer uma leitura hoje à noite. Na Sociedade de Poesia do King’s College. Três de nós éramos, vocês sabem, como a banda que abre o show.”

“Ele amava os poemas que compunha”, diz Claude.

O tom de voz de Elodia se eleva junto com sua angústia. “Por que ele iria parar no acostamento e...? Sem mais nem menos. Quando tinha acabado um livro. E tinha sido selecionado para disputar o prêmio Auden.”

“A depressão é um animal feroz.” Claude me surpreende com essa percepção. “Todas as coisas boas da vida desaparecem do seu...”

Minha mãe interrompe. Voz dura. Basta para ela. “Sei que você é mais nova do que eu. Mas será que preciso soletrar? Empresa endividada. Dívidas pessoais. Infeliz com sua obra. Filho que não desejava a caminho. Sua mulher fodendo com seu irmão. Problema crônico de pele. E depressão. Chega isso? Não acha que já é bem ruim sem sua dramaticidade, sem suas leituras poéticas e prêmios? E você ainda vem me dizer que não faz sentido? Você deitou na cama dele. Considere-se uma pessoa de sorte.”

Trudy é interrompida. Por um grito e o baque de uma cadeira que cai de costas no chão.

Noto, a esta altura, que meu pai recuou. Como uma partícula na física, ele foge a uma definição ao se distanciar de nós; o poeta-professor-editor afirmativo e exitoso, calmamente decidido a retomar sua casa, a casa de seu pai; ou o patético e desprezado corno, o bobalhão mal adaptado ao mundo, pressionado por dívidas, pelo sofrimento físico, pela falta de talento. Quanto mais ouço falar de um deles, menos acredito no outro.

O primeiro som emitido por Elodia é tanto uma palavra quanto um soluço: “Nunca!”.

Silêncio, em meio ao qual sinto que Claude e depois minha mãe pegam suas taças.

“Eu não fazia ideia do que ele ia dizer ontem à noite. Tudo mentira! Ele queria você de volta. Estava tentando fazer você ficar com ciúme. Jamais iria expulsá-la desta casa.”

Sua voz fica mais baixa ao se curvar para endireitar a cadeira. “Por isso eu vim aqui. Para lhe dizer, e é melhor que você entenda bem. Nada! Nunca houve nada entre nós. John Cairncross era meu editor, amigo e professor. Me ajudou a ser uma escritora. Entendeu?”

Insensível, mantenho minhas suspeitas, porém eles acreditam nela. O fato de não ter sido amante de meu pai deve ser libertador para eles, mas acho que suscita outras possibilidades. Uma mulher inconveniente que serve como testemunha sobre todas as razões que meu pai tinha para viver. Bem desagradável.

“Sente-se”, diz Trudy calmamente. “Acredito em você. Chega de gritos, por favor.”

Claude torna a encher as taças. O Pouilly-Fumé me parece pouco encorpado, penetrante demais. Talvez demasiado jovem, impróprio para a ocasião. Sem levar em conta o calor da noite de verão, um robusto Pomerol nos serviria melhor, quando fortes emoções estão em jogo. Se ao menos houvesse uma adega, se eu pudesse descer até lá agora e, na penumbra empoeirada, pegar uma garrafa nas estantes... Tomá-la nas mãos por alguns segundos, examinar o rótulo apertando as pálpebras, cumprimentar a mim mesmo pela boa escolha ao levá-la para cima. Vida de adulto, um oásis distante. Nem mesmo uma miragem.

Imagino os braços nus de minha mãe dobrados sobre a mesa, olhos imperturbáveis e claros. Ninguém adivinharia seu tormento. John amava apenas a ela. A recordação de Dubrovnik tinha sido sincera, sua declaração de ódio, seus sonhos de estrangulá-la, seu amor por Elodia — não passavam de mentiras esperançosas. Mas ela não pode se entregar, precisa se manter firme. Está assumindo um estado de espírito de séria introspecção, aparentemente não inamistoso.

“Você identificou o corpo.”

Elodia também está mais calma. “Tentaram entrar em contato com você. Nenhuma resposta. Tinham o telefone dele, viram chamadas para mim. Sobre a leitura desta noite — nada mais. Pedi ao meu noivo que fosse comigo, estava muito assustada.”

“Qual era a aparência dele?”

“Ela está perguntando sobre a aparência do John”, diz Claude.

“Fiquei surpresa. Parecia em paz. A não ser...” Ela de repente respira fundo. “A não ser pela boca. Estava muito comprida, ia quase de orelha a orelha, como se ele estivesse dando um sorriso enlouquecido. Mas estava fechada. Felizmente.”

A meu redor, nas paredes e através das câmaras carmesins que ficam mais além delas, sinto minha mãe tremer. Mais um detalhe físico como este a fará perder o controle.


15.

Bem cedo na minha vida consciente, um dos dedos, que à época eu não controlava, tocou de passagem numa protuberância entre minhas pernas semelhante a um camarão. Embora guardassem distâncias diferentes de meu cérebro, o camarão e a ponta do dedo reagiram simultaneamente, uma curiosa questão que a neurociência chama de problema de ligação. Dias depois aconteceu de novo com outro dedo. Algum tempo se passou, fui me desenvolvendo, e então entendi as implicações. A biologia é o destino, e o destino é digital, nesse caso binário. Era bastante simples. A questão estranhamente fundamental sobre qualquer nascimento estava resolvida. É isto ou aquilo. Nada mais. No momento da deslumbrante chegada ao mundo, ninguém exclama: É uma pessoa! Em vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul — um avanço mínimo em comparação com a oferta feita por Henry Ford de carros de qualquer cor desde que fossem pretos. Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades? Me enfureci, mas depois, como todo mundo, aceitei a realidade e aproveitei ao máximo minha herança. Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento. Até então, contudo, meu plano era chegar como cidadão britânico livre, uma criatura pertencente ao pós-Iluminismo inglês, escocês e francês. Minha personalidade seria esculpida por prazer, conflito, experiência, ideias e opiniões próprias, assim como as árvores e as pedras ganham forma com a chuva, o vento e o tempo. Além disso, em meu confinamento eu tinha outras preocupações: meu problema com a bebida, aborrecimentos de família, futuro incerto em que estava defrontado com uma possível sentença de prisão ou uma vida aos “cuidados” do descuidado Leviatã, que providenciaria tudo para eu ir morar no décimo terceiro andar.

Mas ultimamente, enquanto acompanho a cambiante relação de minha mãe com seu crime, lembrei-me de rumores sobre um novo arranjo em matéria de azul e rosa. Cuidado com o que deseja. Há uma nova orientação na vida universitária. Essa digressão pode parecer insignificante, no entanto pretendo iniciar meus estudos superiores logo que puder. Física, língua gaélica, qualquer coisa. Por isso é inevitável que me interesse. Um curioso estado de espírito tomou conta dos jovens. Eles se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher. Talvez o declínio do Ocidente sob novo disfarce. Ou a exaltação e liberação do eu. Uma rede social chamou atenção ao propor setenta e uma opções de gênero — neutro, dois espíritos, bigênero... a cor que se desejar, sr. Ford. A biologia, afinal de contas, não determina o destino, e isso é algo a ser comemorado. Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. Posso me declarar incapaz, ou incapaz em determinado contexto. Se me identifico como crente, sou facilmente ferido, a carne sangra diante de qualquer questionamento de minha fé. Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras. Ah, a vida intelectual! Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência ao se aproximarem demais, resfolegando junto ao meu rosto, ao meu cérebro, como cães indesejáveis.

Sentirei, logo serei. Vou ser um ativista das emoções, fazer campanhas barulhentas e lutar com lágrimas e suspiros, a fim de moldar as instituições que circundam meu eu vulnerável. Minha identidade será minha única, preciosa e verdadeira posse, meu acesso à verdade singular. O mundo deve amá-la, nutri-la e protegê-la como eu faço. Se minha universidade não me abençoar, não me validar e não me der o que claramente necessito, vou encostar o rosto no peito do vice-reitor e chorar. Depois exigir que ele peça demissão.

O útero, ou este útero, não é um lugar tão ruim, assemelha-se a um túmulo, “agradável e privado”, de acordo com um dos poemas prediletos de meu pai. Vou fazer uma versão de útero para meus dias de estudante, deixar de lado o Iluminismo de ingleses, escoceses e franceses. Abaixo o real, os fatos tediosos, o fingimento odioso da objetividade. Os sentimentos reinam como uma rainha. A não ser que queiram se identificar como rei.

Eu sei. O sarcasmo não cai bem num ser não nascido. E por que a digressão? Porque minha mãe está sintonizada com os novos tempos. Talvez ela ainda não saiba, mas marcha com o movimento. Sua condição de assassina é um fato, um item no mundo externo a ela. Mas isso pelo modo antigo de pensar. Ela se afirma, se identifica como inocente. Mesmo enquanto se esforça para limpar os vestígios na cozinha, ela se sente livre de culpa e, portanto, é — quase. Seu pesar, suas lágrimas são provas de retidão. Está começando a se convencer da sua história de depressão e suicídio. Pode quase acreditar nas pistas falsas deixadas no carro. Basta que convença a si mesma para conseguir enganar com facilidade e consistência. As mentiras serão sua verdade. Mas sua construção é nova e frágil. O sorriso horrendo de meu pai poderia derrubá-la, aquele esgar de quem sabe de tudo se estendendo com frieza pelo rosto de um cadáver. Por isso é necessário que Elodia valide o eu inocente de minha mãe. E também é por isso que ela agora se inclina para a frente, me levando com ela, para ouvir com ternura as palavras titubeantes da poeta. Pois Elodia em breve será interrogada pela polícia. Suas convicções, que lhe afetarão diretamente a memória e a ordem do relato, precisam ser convenientemente moldadas.

Claude, ao contrário de Trudy, admite seu crime. Trata-se de um homem da Renascença, um Maquiavel, um vilão da velha escola que crê ser possível escapar depois de cometer um homicídio. O mundo não lhe vem através da névoa da subjetividade; chega refratado pela ignorância e pela cobiça, distorcido como por um vidro ou pela água, projetado numa tela diante do olho interior, uma mentira tão nítida e brilhante quanto a verdade. Claude não sabe que é um imbecil. Se você é um imbecil, como pode saber? Pode vir tropeçando ao longo de um matagal de lugares-comuns, mas compreende o que fez e por quê. Vai desabrochar, sem nem uma olhadinha para trás, a menos que seja apanhado e punido, então nunca se culpará, apenas admitirá a má sorte em meio a fatos aleatórios. Pode exigir sua herança, seu direito como ser racional. Os inimigos do Iluminismo dirão que ele é a corporificação de seu espírito. Bobagem!

Mas sei o que eles desejariam dizer com isso.


16.

Elodia me elude, me escapa como uma canção de que só lembramos um trecho — na verdade, uma melodia inacabada. Quando passou raspando por nós no vestíbulo, quando ainda era em nossos pensamentos a namorada de meu pai, me esforcei para ouvir o ranger atraente do couro. Mas não, acho que hoje ela está vestida num estilo mais suave, mais colorido. Teria sido uma figura impressionante à noite no evento de poesia. No auge da crise de choro, sua voz era pura. Mas, ao relatar a visita ao necrotério agarrada ao pulso do noivo, trouxe de volta, à medida que cada frase chegava ao fim, a tal pronúncia urbana gutural, seu elegante rosnado. Agora, quando minha mãe estica o braço sobre a mesa da cozinha para pegar a mão da visitante, vejo que nas vogais foi restaurado o grasnido do pato. Elodia está relaxando ao calor da confiança de minha mãe enquanto, como poetisa, elogia os poemas de meu pai. É dos sonetos que ela mais gosta.

“Ele os escreveu no estilo de quem conversa, mas densos de significado, e tão musicais!”

Seu uso do tempo verbal é correto mas insultuoso. Ela fala como se a morte de John Cairncross tivesse sido confirmada, absorvida, reconhecida publicamente, historicamente tão a salvo da tristeza como o saque de Roma. Trudy vai se importar com isso mais do que eu. Fui condicionado a acreditar que a poesia dele era uma droga. Hoje tudo está aberto à reavaliação.

Com a voz grave por causa da hipocrisia, Trudy diz: “Levará muito tempo até termos a noção exata da qualidade dele como poeta”.

“Ah, sim, isso mesmo! Mas já temos uma boa ideia. Acima de Hughes. Lá no topo com Fenton, Heaney e Plath.”

“Nomes de respeito”, diz Claude.

Esse é meu problema com Elodia. O que ela está fazendo aqui? Dança como um coribante tresloucado, entrando e saindo de foco. Elogiar meu pai em excesso pode ser uma forma de consolar minha mãe. Nesse caso, mal concebida. Ou a tristeza distorce sua capacidade de julgamento. Isso é perdoável. Ou sua autoimportância está ligada à do mestre. Não está. Ou veio descobrir quem matou seu amante. Isso é interessante.

Devo gostar ou desconfiar dela?

Minha mãe a adora e não larga sua mão. “Você sabe disso melhor do que eu. Um talento daquela dimensão tem um custo. Não apenas para si mesmo. Generoso com todo mundo. Até com estranhos. As pessoas dizendo: ‘Quase tão generoso quanto Heaney’. Não que eu o tenha conhecido ou lido. Mas logo abaixo da superfície John vivia uma agonia...”

“Não!”

“Dúvidas sobre si mesmo. Uma constante dor mental. Vociferava contra aqueles que amava. Mas era ainda mais cruel consigo próprio. Depois o poema enfim era escrito...”

“E o sol brilhava.” Claude captou a linha da cunhada.

Trudy diz em voz alta enquanto ainda soam as palavras dele: “Aquele estilo de conversação? Uma longa batalha para arrancá-lo de sua alma...”.

“Ah!”

“Vida pessoal destruída. E agora...”

Ela fica sufocada ao pronunciar a pequena palavra que contém o presente fatídico. Num dia como este de reavaliação eu poderia estar errado. Mas sempre achei que meu pai compunha depressa, com uma facilidade criticável. Isso foi dito contra ele na resenha que um dia nos leu em voz alta para provar sua indiferença. Eu o ouvi dizer a minha mãe numa de suas tristes visitas: se não vem logo, não devia vir. Há um encanto especial na facilidade. Toda arte aspira à condição de Mozart. Depois riu de sua própria presunção. Trudy não vai se lembrar disso. E nunca saberá que, mesmo enquanto mentia sobre a saúde mental de meu pai, a poesia dele elevava o nível da linguagem dela. Vociferava? Arrancá-lo? Alma? Roupas emprestadas!

Mas elas causaram forte impressão. Mãe fria, ela sabe o que está fazendo.

Elodia sussurra: “Eu nunca soube”.

Outro silêncio. Trudy aguarda intensamente, como um pescador que posicionou a isca num bom lugar. Claude inicia uma palavra, uma mera vogal, cortada, creio eu, por um olhar dela.

Nossa visitante começa de forma dramática. “Todas as instruções de John estão gravadas em meu coração. Quando quebrar um verso. ‘Nunca à toa. Mantenha o leme. Faça sentido, uma unidade de sentido. Decida, decida, decida.’ E aprenda a escandir ‘de modo a romper o ritmo com consciência’. Depois, ‘a forma não é uma prisão. É um velho amigo que você só finge estar abandonando’. E sobre os sentimentos. Ele costumava dizer: ‘Não exponha seu coração. Um detalhe conta toda a verdade’. E ainda: ‘Escreva para a voz, não para a página, escreva para a noite barulhenta no hall da paróquia’. Nos fez ler James Fenton sobre a genialidade do troqueu. Mais tarde passou uma tarefa para a semana seguinte: um poema de quatro estrofes em tetrâmetros trocaicos catalécticos. Rimos dessa definição esdrúxula. Mas ele nos fez recitar um exemplo simplório: ‘Quem avisa amigo é’. Depois declamou de cor a ‘Canção do outono’, de Auden. “As folhas tombam bem depressa agora,/ Nem o copo-de-leite se demora.” Por que a supressão da última sílaba do verso é tão importante? Não soubemos responder. Depois um verso com a sílaba fraca restaurada. ‘Paz e amor são coisas belas.’ Por isso, para a tarefa que ele havia passado, compus meu primeiro poema sobre corujas — usando a mesma métrica da ‘Canção do outono’.

“Nos obrigou a decorar nossos melhores poemas. Assim, podíamos ser audaciosos em nossa primeira leitura pública, nos plantarmos no palco sem levar as páginas. Essa ideia quase me fez desmaiar. Olhe só eu falando em troqueus!”

Essa conversa sobre escansão só interessa a mim. Sinto a impaciência de minha mãe. Isso se estendeu demais. Se eu pudesse prender a respiração, prenderia agora.

“Ele nos comprava drinques, emprestava dinheiro que nunca devolvíamos, escutava nossas histórias sobre brigas com namorados e problemas com pais, sobre o chamado bloqueio do escritor. Pagou a fiança de um candidato a poeta do grupo que foi preso por estar bêbado. Escreveu cartas para nos ajudar a conseguir bolsas de estudo ou empregos modestos em revistas literárias. Amávamos os poetas que ele amava, as opiniões dele se tornavam as nossas. Ouvíamos suas palestras no rádio, comparecíamos às leituras que ele nos indicava. E íamos às dele. Conhecíamos seus poemas, suas historinhas, suas frases prediletas. Pensávamos que o conhecíamos. Nunca passou pela cabeça de ninguém que John, o adulto, o sacerdote-mor, também tivesse problemas. Ou que duvidasse de sua poesia tanto quanto nós duvidávamos das nossas. Em geral, só nos preocupávamos com sexo e dinheiro. Nunca com a agonia dele. Se ao menos tivéssemos sabido.”

A isca foi mordida, a linha cada vez menor está retesada e vibrando, agora o peixe caiu na rede. Sinto minha mãe relaxar.

Aquela misteriosa partícula, meu pai, está ganhando massa, crescendo em seriedade e integridade. Fico dividido entre o orgulho e a culpa.

Num tom de voz corajoso e simpático, Trudy diz: “Não faria a menor diferença. Você não deve se culpar. Sabíamos de tudo, Claude e eu. Tentamos tudo”.

Claude, movido pelo som de seu nome, limpa a garganta. “Nenhuma ajuda foi possível. Ele era seu pior inimigo.”

“Antes de você ir”, diz Trudy, “quero lhe dar uma coisa.”

Subimos a escada até o vestíbulo e depois até o segundo andar, minha mãe e eu nos movendo lugubremente, Elodia logo atrás. Com certeza o objetivo é permitir que Claude junte as coisas que precisa jogar fora. Agora estamos na biblioteca. Ouço a jovem poeta inalando o ar ao se ver cercada por três paredes de poesia.

“Me desculpe este cheiro todo de mofo.”

Já de luto. Os livros, o próprio ar da biblioteca.

“Gostaria que você ficasse com um deles.”

“Ah, não posso. Você não deveria manter todos juntos?”

“Quero que você leve um. Ele também ia querer isso.”

Esperamos enquanto ela decide.

Elodia está sem jeito e por isso se apressa. Volta-se para mostrar sua escolha.

“John pôs seu nome nele. Peter Porter. O custo da seriedade. Tem o poema ‘As exéquias’. Mais uma vez tetrâmetros. Os mais lindos.”

“Ah, sei. Ele veio jantar aqui uma noite. Acho.”

Quando ela acaba de dizer isso, a campainha toca. Mais alto e mais longamente que de costume. Minha mãe fica tensa, seu coração começa a bater forte. O que ela teme? “Sei que você vai receber muitas visitas. Muito obrigada...”

“Shhh!”

Descemos a escada em silêncio. Trudy se apoia cautelosamente no corrimão. Cuidado agora. Ouvimos Claude falar ao longe no videofone, depois passos subindo da cozinha.

“Ah, inferno”, minha mãe sussurra.

“Você está bem? Precisa se sentar?”

“Acho que sim.”

Recuamos a fim de sairmos da linha de visão da porta da frente. Elodia ajuda minha mãe a se sentar na poltrona de couro rachado na qual costumava se perder em devaneios enquanto o marido recitava para ela.

Ouvimos a porta sendo aberta, murmúrio de vozes, a porta sendo fechada. Depois apenas os passos de uma pessoa caminhando pelo vestíbulo. Obviamente a entrega da comida dinamarquesa, os sanduíches abertos, meu sonho de arenque prestes a ser realizado — em parte.

Trudy também se dá conta de tudo isso. “Vou levá-la até a porta.”

No andar de baixo, justamente quando está saindo, Elodia se volta para Trudy e diz: “Estão me esperando na delegacia amanhã de manhã, às nove”.

“Sinto muito. Vai ser duro para você. Simplesmente conte tudo que sabe.”

“Vou fazer isso. Obrigada. E obrigada por este livro.”

As duas se abraçam e se beijam, e ela vai embora. Meu palpite é que ela conseguiu o que veio buscar.

Voltamos para a cozinha. Estou me sentindo estranho. Faminto. Exausto. Desesperado. Minha preocupação é que Trudy diga a Claude que não consegue nem pensar em comer. Não depois de a campainha ter tocado. O medo é um emético. Vou nascer morto por inanição. Mas ela, eu e a fome formamos um sistema e, como era de esperar, as embalagens de papel-alumínio são rasgadas. Ela e Claude comem rápido, de pé junto à mesa da cozinha, onde ainda devem estar as canecas de café de ontem.

Ele diz de boca cheia: “Malas feitas, tudo pronto?”.

Arenque no vinagre, pepininho de conserva, uma fatia de limão no pão preto. Não levam muito tempo até chegar a mim. Fico bem alerta depressa sob o açoite de uma essência penetrante e mais salgada que o sangue, com o sabor forte de espuma do oceano onde solitários cardumes de arenque rumam para o norte em águas limpas, escuras e gélidas. Vem vindo, uma brisa glacial fustigando meu rosto, como se eu estivesse corajosamente postado à proa de um navio indômito a caminho das amplidões árticas. Isto é, Trudy come um sanduíche aberto depois do outro, sem parar até dar a primeira mordida no último deles e o jogar no chão. Sente-se tonta, necessita de uma cadeira.

Geme. “Estava ótimo! Olhe, lágrimas, estou chorando de prazer.”

“Estou indo”, diz Claude. “E você pode chorar sozinha.”

Há muito tempo estou bem grande para este lugar. Agora estou grande demais. Meus membros estão dobrados e pressionando fortemente o peito, minha cabeça está enfiada na única saída. Uso minha mãe como um capacete bem justo. Minhas costas doem, estou deformado, as unhas precisam ser cortadas, estou cansado de me demorar aqui nesta penumbra onde o torpor não anula o pensamento, mas o libera. Fome, depois sono. A primeira precisa ser saciada, o segundo a substitui. Ad infinitum, até que as necessidades se transformam em meros caprichos, em luxos. Tudo isso faz parte de nossa condição. Mas para os outros. Estou conservado em vinagre, os arenques me levam para longe, sou carregado nos ombros de um gigantesco cardume que ruma para o norte e, ao chegar, não ouvirei a música das focas e do gelo que geme, e sim das provas que estão desaparecendo, das torneiras abertas, das bolhas de detergente que estouram, de coisas sendo lavadas e secadas, das panelas que se entrechocam à meia-noite, das cadeiras postas em cima da mesa para revelar o chão e sua carga de restos de comida, cabelos humanos e cocô de rato. Sim, eu estava lá quando ele a induziu a voltar para a cama, a chamou de ratinha, apertou com força os mamilos dela, cobriu seu rosto com seu bafo de mentiroso e a língua cheia de clichês.

E eu não fiz nada.


17.

Acordo num quase silêncio para descobrir que me encontro na horizontal. Como sempre, ouço atentamente. Além do tiquetaquear paciente do coração de Trudy, além dos suspiros de sua respiração e dos estalidos muito tênues da caixa torácica, percebo os murmúrios e gotejamentos de um corpo sustentado por redes ocultas de manutenção e regulação, como uma cidade eficiente nas altas horas da madrugada. Mais além das paredes, a comoção rítmica dos roncos de meu tio, menos ruidosos que de costume. Mais além do quarto, nenhum som de tráfego. Em outros tempos, eu me viraria da melhor maneira possível e mergulharia de novo num vazio sem sonhos. Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono. Depois tudo, todo mundo, o pequeno e entusiasmado elenco, entra através do rasgão. Quem vem primeiro? Meu pai sorridente, o novo e difícil rumor de sua decência e talento. A mãe a quem estou ligado e fadado a amar e odiar. O priápico e satânico Claude. Elodia, a poetisa que sabe escandir, dátilo digno de confiança. E eu, que covardemente me absolvi de buscar vingança, que me absolvi de tudo menos de pensar. Esses cinco personagens se exibem diante de mim, desempenhando seus papéis nos fatos tal como se passaram, e depois como poderiam ter se passado e ainda podem se passar. Não tenho autoridade para dirigir a ação. Só posso assistir. As horas correm.

Mais tarde sou acordado por vozes. Encontro-me num declive, sugerindo que minha mãe está sentada na cama e apoiada nos travesseiros. O tráfego lá fora não atingiu a intensidade das horas de maior movimento. Meu palpite é que são seis da manhã. Minha primeira preocupação é que façamos uma visita matinal à Parede da Morte. Mas não, eles nem se tocam. Apenas conversam. Tiveram suficiente prazer para durar no mínimo até meio-dia, o que abre oportunidade para o rancor, ou para a razão, ou até mesmo para o remorso. Escolheram o primeiro. Minha mãe está falando com o tom de voz monótono que reserva para suas queixas. A primeira frase completa que entendo é esta:

“Se você não tivesse entrado na minha vida, John estaria vivo.”

Claude reflete. “Eu diria o mesmo se você não tivesse entrado na minha.”

Segue-se um silêncio a essa manobra de bloqueio. Trudy tenta de novo: “Você transformou uma diversão boba em outra coisa, quando trouxe aquele troço aqui para casa”.

“O troço que você fez ele beber.”

“Se você não tivesse...”

“Escuta. Queridinha.”

A palavra carinhosa soa mais como ameaça. Ele respira fundo e reflete mais uma vez. Sabe que precisa ser gentil. Mas gentileza sem desejo, sem a promessa de uma recompensa erótica, é difícil para ele. A tensão se revela em sua garganta. “Está ótimo. Não é uma questão criminal. Vamos indo numa boa. A garota vai dizer tudo certinho.”

“Graças a mim.”

“Isso mesmo, graças a você. Atestado de óbito, certo. Testamento, certo. Cremação e todos os babados, certo. Bebê e a casa à venda, certo...”

“Mas só quatro milhões e meio...”

“Está ótimo. Na pior das hipóteses, plano B... ótimo.”

Só a sintaxe pode fazer alguém pensar que estou à venda. Mas ficarei livre no momento do parto. Ou não valerei nada.

Trudy repete com desprezo: “Quatro milhões e meio”.

“Rapidinho. Sem perguntas.”

Um catecismo de amantes, que já devem ter recitado antes. Nem sempre estou escutando. Ela diz: “Por que a pressa?”. Ele diz: “Para o caso das coisas darem errado”. Ela diz: “Por que devo confiar em você?”. Ele diz: “Não há escolha”.

Será que os documentos de venda da casa já chegaram? Ela assinou? Não sei. Às vezes cochilo e não ouço tudo. E não me importo. Como nada possuo, a propriedade não me interessa. Arranha-céus, barracões de zinco, todas as pontes e templos no meio deles. Que façam bom proveito. Meu interesse é estritamente post partum, a marca dos cascos deixada na pedra ao partir, o cordeirinho sangrando rumo aos céus. Sempre para cima. Ar quente sem balão. Me leve consigo, jogue fora o lastro. Quero minha chance, a vida que me espera, paraíso na Terra, mesmo que um inferno, um décimo terceiro andar. Posso aguentar. Acredito na vida após o nascimento, embora saiba como é difícil separar a esperança dos fatos. Qualquer coisa mais curta que a eternidade vai servir. Setenta? Embrulhe, vou levar. Na esperança — tenho ouvido sobre as mais recentes carnificinas dos que sonham com a vida no Além. Massacre neste mundo, beatitude no próximo. Jovens barbudos com pele boa e armas longas no Boulevard Voltaire olhando no fundo dos olhos bonitos e incrédulos de gente de sua própria geração. Não foi o ódio que matou os inocentes, mas a fé, esse fantasma faminto ainda reverenciado mesmo por gente de bem. Muito tempo atrás, alguém declarou que a certeza infundada era uma virtude. Agora até pessoas mais cultas dizem isso. Escutei as mensagens radiofônicas transmitidas de catedrais nas manhãs de domingo. Os fantasmas mais virtuosos da Europa — religião e, quando ela tropeçou, utopias ateias prenhes de provas científicas — arrasaram tudo em seu caminho do décimo ao vigésimo séculos. Agora estão de volta, levantando-se a leste, perseguindo seu milênio, ensinando criancinhas a cortarem o pescoço de ursos de pelúcia. E aqui estou eu, com minha fé doméstica numa vida mais além. Sei que é mais do que um programa de rádio. As vozes que escuto não estão, ou não apenas, dentro da minha cabeça. Creio que minha hora chegará. Também sou virtuoso.

A manhã corre sem novidades. A troca de palavras acrimoniosas em voz baixa entre Trudy e Claude vai cedendo lugar a horas de sono, depois do que ela o deixa na cama e vai tomar banho. Em meio ao calor, ao tamborilar monótono das gotas de água e ao som do cantarolar afinado de minha mãe, sou invadido por um inexplicável sentimento de alegria e excitação. Não posso evitar, não tenho como manter a felicidade à distância. Será por causa dos hormônios tomados por empréstimo? Não importa. Vejo o mundo como algo dourado, embora isso também não seja mais que um nome. Sei que, ao longo da escala, ele fica perto do amarelo, também apenas uma palavra. Mas dourado soa bem, sinto isso quando a água quente corre veloz na parte de trás do meu crânio. Não me lembro de um prazer tão radioso. Estou pronto, estou chegando, o mundo me acolherá, porque não pode resistir a mim. Vinho tomado na taça e não através da placenta, livros sob um abajur, música de Bach, caminhadas na praia, beijos ao luar. Tudo que aprendi até agora me diz que essas delícias são acessíveis, alcançáveis, que elas me aguardam. Mesmo quando o barulho da água cessa, quando damos um passo adiante para enfrentar o ar mais frio e sou sacudido violentamente pela toalha de Trudy, tenho a impressão de ouvir cânticos em minha mente. Coros de anjos!

Outro dia quente, outra roupa esvoaçante de algodão estampado, imagino, a sandália de ontem, nenhum perfume porque, se usou o sabonete que Claude lhe deu, está cheirando a gardênia e patchuli. Hoje ela não faz as tranças. Em vez disso, dois prendedores de plástico, acima de cada orelha e sem dúvida muito coloridos, prendem seu cabelo de um lado e de outro. Sinto minha euforia desinflar à medida que descemos a escada. Ter esquecido agora há pouco de meu pai por alguns minutos! Entramos numa cozinha limpa, cuja ordem incomum é o tributo noturno de minha mãe a ele. As exéquias compostas por ela. A acústica se alterou, o assoalho não gruda mais na sola da sandália. As moscas se mudaram para outros céus. Quando ela vai até a máquina de café, deve estar pensando, tanto quanto eu, que a esta altura o interrogatório de Elodia já terminou. Os homens da lei estão confirmando ou abandonando suas primeiras impressões. De fato, neste momento, as duas são verdadeiras para nós. À nossa frente o caminho parece se abrir em dois, mas já se bifurcou. De qualquer modo haverá uma visita.

Ela pega numa prateleira a lata de pó de café e os filtros de papel, abre a torneira de água fria, enche uma jarra, apanha uma colher. As canecas já estão limpas. Ela põe duas na mesa. Há algo de comovente nessa rotina bem conhecida, no som dos objetos domésticos tocando as diferentes superfícies. Assim como no pequeno suspiro que ela solta ao virar ou curvar ligeiramente nossa forma pesada. Já é claro para mim quanto da vida é esquecido mesmo enquanto acontece. Quase tudo. O presente irrelevante se desenrolando para longe de nós, a queda discreta dos pensamentos corriqueiros, o milagre tão negligenciado da existência. Quando ela já não tiver vinte e oito anos, quando já não estiver grávida nem for mais bonita, ou até mesmo livre, não vai se lembrar do modo como pousou a colher e do som que ela fez contra a pedra, do vestido que usou hoje, do contato da tira de couro da sandália entre os dedos dos pés, do calor do verão, do barulho da cidade mais além das paredes da casa, do breve canto do passarinho perto de uma janela fechada. Todos já se foram.

Mas hoje é especial. Se ela esquece o presente, é porque seu coração está no futuro, que se aproxima veloz. Está pensando nas mentiras que precisará contar, como elas devem estar interligadas e ser consistentes com as de Claude. Isso representa uma pressão, é a sensação que costumava ter antes de uma prova. Um friozinho na barriga, os joelhos fraquejando, a tendência a bocejar. Ela precisa relembrar suas falas. O custo do fracasso sendo maior, mais interessante que o de um exame rotineiro da escola. Poderia tentar uma velha forma que desde a infância usava para se tranquilizar — ninguém vai morrer por causa disso. Agora não serve. Tenho pena dela. Eu a amo.

Um sentimento de proteção me invade. Não consigo descartar de todo a noção inútil de que pessoas muito bonitas deveriam viver segundo códigos diferentes. Para um rosto como imagino ser o dela, deveria haver um respeito especial. Seria um ultraje aprisioná-la. Atentado contra a natureza. Já há um toque de nostalgia neste momento doméstico. Trata-se de um tesouro, de uma joia a ser guardada na lembrança. Tenho minha mãe só para mim aqui nesta cozinha arrumada, num dia de sol e paz enquanto Claude dorme durante toda a manhã. Deveríamos ser muito próximos, ela e eu, mais próximos que dois amantes. Há alguma coisa que deveríamos estar sussurrando um para o outro.

Quem sabe adeus.

 


                                                          CONTINUA