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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCLAUSURADO
ENCLAUSURADO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

ENCLAUSURADO / Ian McEvan

 

 

 

 

 

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?


CONTINUA

10.

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão. Aquelas admiráveis palestras no rádio e boletins de notícias, os excelentes podcasts que me sensibilizavam, parecem na melhor das hipóteses um bafo quente e, na pior, um vapor fétido. A gloriosa sociedade à qual em breve me reunirei, a nobre congregação de seres humanos, seus costumes, deuses e anjos, suas ideias ardentes e brilhante fermentação intelectual, já não me excitam. Há um peso sobre o dossel que envolve meu pequeno corpo. O que existe de mim mal basta para formar um animalzinho, muito menos para configurar um homem. No meu estado de espírito, me inclino pela esterilidade do natimorto, depois as cinzas.

Esses pensamentos elevados e deprimentes, que eu adoraria declamar a sós em algum lugar, voltam para me oprimir quando Claude desaparece escada acima e meus pais permanecem sentados em silêncio. Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar. Esforço-me em vão para escutar Claude abrir a porta do carro do irmão. Trudy se inclina de novo para a frente e John pega a mão dela. A ligeira elevação de nossa pressão sanguínea sugere que os dedos psoríacos dele pressionam a palma dela. Trudy pronuncia o nome dele baixinho, num tom cadente de repreensão. Ele não diz nada, mas meu palpite é que está balançando a cabeça, comprimindo os lábios num sorrisinho fraco, como se dissesse: “Muito bem. Olha o que foi feito de nós”.

Ela diz calorosamente: “Você tem razão, tudo acabou. Mas podemos fazer isso de um jeito delicado”.

“Sim, é melhor”, meu pai concorda com sua voz grave e sonora. “Mas, Trudy. Só para lembrar os bons tempos. Posso recitar um poema para você?”

A negativa dela balançando a cabeça, enfática e infantilmente, me sacode de leve entre minhas amarras, mas eu sei, tanto quanto ela, que para John Cairncross, na poesia, o não significa sim.

“Por favor, John, pelo amor de Deus, não.”

Mas ele já está respirando fundo. Já ouvi esse poema, mas foi menos relevante na época.

“Como nada mais há a fazer, nos beijemos antes de partir...”

Desnecessário, eu acho, que ele declamasse certas frases com tamanha alegria. “Você não mais me terá...”, “tão plenamente me libertar...”, “nem um vestígio do antigo amor reter.” E, no final, quando a paixão está no leito de morte, havendo uma chance em mil de que ela possa se recuperar caso Trudy quisesse, meu pai nega tudo recitando com uma entonação espirituosa e sarcástica.

Mas ela também não quer, e diz enquanto meu pai ainda declama os últimos versos: “Nunca mais quero ouvir um poema pelo resto da minha vida”.

“Não vai ouvir”, diz meu pai afavelmente. “Não com Claude.”

Nessa sensata troca de palavras entre as partes, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos. Mas tenho idade suficiente para ser responsável por mim mesmo e tentar ser o senhor de meu destino. Como o gato de um avarento, guardo em segredo alguma comida, meu pedacinho de poder. Já o usei de madrugada para causar insônia e obter uma palestra no rádio. Dois golpes secos e bem espaçados contra a parede, usando meu calcanhar em vez dos dedos dos pés quase sem ossos. Sinto isso como uma solitária manifestação de carência, só para ouvir alguma menção a mim.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai. “Digamos duas semanas para você sair da casa?”

Faço um aceno para ele, por assim dizer, e o que recebo em troca? Então, portanto, nesse caso, e assim... ele está indo embora.

“Dois meses. Mas espere um pouquinho até Claude voltar.”

“Só se ele andar rápido.”

Um avião, alguns milhares de metros acima de nossas cabeças, desce num glissando etéreo rumo a Heathrow, um som para mim sempre ameaçador. John Cairncross pode estar pensando em um último poema. Como costumava fazer antes de viajar, ele poderia declamar “Uma despedida: proibido chorar por mim”. Aqueles tetrâmetros tranquilizadores, aquele tom maduro e confortador me deixariam nostálgico pelos velhos e tristes dias de suas visitas. Em vez disso, ele tamborila no tampo da mesa, limpa a garganta e simplesmente espera.

Trudy diz: “Tomamos uma vitamina de frutas hoje de manhã, comprada lá na Judd Street. Mas acho que não sobrou nada”.

Com essas palavras, por fim a coisa começa para valer.

Uma voz inexpressiva, vinda como se dos bastidores da produção condenada ao fracasso de uma peça horrorosa, diz do alto da escada: “Eu guardei um copo para ele. John é que nos falou dessa loja. Lembra?”.

Ele desce enquanto fala. Difícil acreditar que essa entrada perfeitamente coordenada, essa fala canhestra e improvável tenham sido ensaiadas de madrugada por dois bêbados.

O copo de isopor com tampa de plástico e canudinho estão na geladeira, que agora é aberta e fechada. Claude o põe diante de meu pai com um caloroso e maternal: “Pra você”.

“Obrigado. Mas agora não estou com vontade.”

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia. Esperança? Isso mesmo, é assim que as histórias funcionam quando desde o início sabemos quem são os assassinos. Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”. E a perfeição está longe de ser uma característica humana. A bordo, as coisas vão dar errado, alguém vai tropeçar num cabo desenrolado, a embarcação vai se deslocar demais no sentido sudoeste. Trabalho duro, e tudo isso no mar.

Claude senta-se à mesa, respira fundo e ruidosamente, e joga sua melhor cartada. Conversa fiada. Ou o que ele considera ser conversa fiada.

“E esses imigrantes, hein? Que coisa! E como invejam a gente lá de Calais! Chamam o lugar de ‘selva’! Graças a Deus existe o Canal da Mancha.”

Meu pai não resiste: “Ah, Inglaterra, casada com o mar triunfante, suas costas rochosas derrotam os invasores invejosos”.

Essas palavras melhoram seu estado de espírito. Acho que o ouço puxar o copo para perto de si. Então ele diz: “Na minha opinião todos deveriam ser convidados a vir. Venham logo! Um restaurante afegão em St. John’s Wood”.

“E uma mesquita”, diz Claude. “Ou três. E homens que batem em suas mulheres ou que abusam das meninas aos milhares.”

“Já lhe contei sobre a mesquita Goharshad no Irã? Fiquei lá perplexo. Chorando. Você não imagina as cores, Claude. Cobalto, turquesa, cor de berinjela, açafrão, verde-claríssimo, branco como cristal, e todos os tons intermediários.”

Eu nunca o tinha ouvido chamar o irmão pelo nome. Meu pai foi invadido por um estranho entusiasmo. Exibindo-se para minha mãe, deixando ela ver, por comparação, o que vai perder.

Ou se libertando das pegajosas reflexões do irmão, que agora diz num tom cauteloso de conciliação: “Nunca pensei no Irã. Mas no Sharm el Sheikh, o hotel Plaza. Beleza. Tudo nos trinques. Quase quente demais para ir à praia”.

“Concordo com John”, diz minha mãe. “Sírios, eritreus, iraquianos. Até macedônios. Precisamos da juventude deles. E, querido, você pode me trazer um copo de água?”

Claude vai imediatamente para a pia. De lá diz: “Precisamos? Eu não preciso ser esfaqueado na rua. Como aconteceu em Woolwich”. Ele volta à mesa com dois copos. Um é para ele. Acho que estou vendo aonde isso vai levar.

Ele continua: “Não ando de metrô desde aqueles ataques de julho de 2005”.

Na voz que usa para ignorar Claude, meu pai diz: “Vi este cálculo em algum lugar. Se o sexo entre as raças continuar como hoje, daqui a cinco mil anos todos na Terra vão ter a mesma cor de café ralo”.

“Um brinde a isso”, diz minha mãe.

“Na verdade, também não sou contra”, diz Claude. “Saúde!”

“Ao fim das raças”, meu pai propõe em tom amistoso. Mas não creio que tenha levantado seu copo. Em vez disso, volta aos assuntos práticos. “Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

“Tudo bem, claro”, ela diz num tom de voz racional. “Vocês poderiam almoçar conosco.”

“Obrigado, mas vamos ter um dia cheio. Agora preciso ir. O trânsito está pesado.”

Som de cadeira arrastada — e como soa alto apesar dos ladrilhos engordurados, como o latido de um cachorro. John Cairncross se põe de pé. Volta a assumir um tom cordial. “Trudy, foi...”

Mas ela também está se levantando e pensando rápido. Sinto em seus tendões, nas dobras de seu peritônio. Tem uma derradeira cartada, e tudo depende do jeito suave de realizá-la. Ela o interrompe num acesso de sinceridade: “John, antes de você ir quero dizer o seguinte. Sei que sou difícil, às vezes até insuportável. Mais da metade da culpa disto tudo é minha. Eu sei disso. E me desculpe a casa estar um lixo. Mas o que você disse ontem à noite. Sobre Dubrovnik”.

“Ah”, meu pai repete. “Dubrovnik.” Mas já se afastou alguns passos.

“O que você disse estava certo. Você me fez reviver tudo, abalou meu coração. Foi uma obra-prima, John, o que nós criamos. O que aconteceu depois não diminuiu em nada tudo aquilo. Você foi muito sábio no que disse ontem. Foi bonito. Nada que venha a acontecer no futuro poderá apagar isso. E, embora eu só tenha água no meu copo, quero brindar a você, a nós, e lhe agradecer por ter me relembrado. Não interessa se o amor continua. O que interessa é que ele existe. Por isso. Ao amor. Ao nosso amor. Como ele foi. E à Elodia.”

Trudy traz o copo aos lábios. O subir e descer de sua epiglote, seu peristaltismo meândrico me ensurdecem por instantes. Desde que a conheço, nunca vi minha mãe discursar. Não é o estilo dela. Mas foi curiosamente evocatório. Do quê? Uma jovem nervosa, trêmula por dentro, impressionando, como nova líder das alunas, a diretora, as professoras, toda a escola com clichês enfáticos.

Um brinde ao amor e, portanto, à morte, a Eros e Tânatos. Parece ser comum que na vida intelectual duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são propostas. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte. E o alegremente reiterado amor e morte. Sobre este último par, e daqui onde estou, essas duas noções não poderiam ser mais mutuamente irrelevantes. Os mortos não amam ninguém, nada. Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas.

Quando meu pai fala, dá a impressão de estar mais perto. Ele está voltando à mesa.

“Bem”, ele diz de modo bastante gentil. “Essa é a ideia.”

Aposto que a taça do amor e da morte está em suas mãos.

Mais uma vez, com os dois calcanhares, chuto uma, duas vezes, lutando contra o destino dele.

“Ai, ai, toupeirinha”, diz minha mãe com voz doce e maternal. “Ele está acordando.”

“Você se esqueceu de mencionar meu irmão”, diz John Cairncross. Faz parte de sua natureza como poeta másculo estender o brinde do outro. “Aos nossos futuros amores, Claude e Elodia.”

“A todos nós então”, diz Claude.

Silêncio. O copo de minha mãe já está vazio.

Em seguida vem o longo suspiro de satisfação de meu pai. Um tanto exagerado, apenas por delicadeza. “Mais açucarado que de costume. Mas nada mal.”

O copo de isopor que ele pousa na mesa faz um som oco.

Vem à minha mente, tão claro quanto uma lâmpada de desenho animado. Um programa sobre cuidados com animais de estimação explicou os perigos enquanto Trudy escovava os dentes numa manhã chuvosa depois do café: pobre do cão que lamber o líquido verde e doce no chão da garagem. Morto em poucas horas. Exatamente como disse Claude. A química sem piedade, propósito ou remorso. A escova elétrica de minha mãe me impediu de ouvir o resto. Estamos sujeitos às mesmas regras que infernizam nossos animais queridos. A grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.

“Bem”, diz meu pai, indicando mais do que ele podia saber, “lá vou eu.”

Claude e Trudy se levantam. Essa é a excitação imprudente da arte do envenenador. A substância ingerida, o ato ainda incompleto. Num raio de três quilômetros há vários hospitais, muitas bombas para lavagem estomacal. Mas a linha da criminalidade foi ultrapassada. Não há como desfazer o ato. Eles só podem dar um passo atrás e aguardar pela antítese, que o anticongelante o deixe frio.

“Esse chapéu é seu?”, pergunta Claude.

“Ah, sim! Vou levar.”

Será esta a última vez que ouço a voz de meu pai?

Caminhamos em direção à escada, depois a subimos, o poeta à frente. Tenho pulmões, porém não ar para emitir um alerta ou chorar de vergonha pela minha impotência. Ainda sou uma criatura marítima, não um ser humano como os outros. Agora estamos passando pelo desastre que é o vestíbulo. A porta da frente está sendo aberta. Meu pai se volta para dar um beijinho no rosto de minha mãe e um tapa carinhoso no ombro de seu irmão. Talvez pela primeira vez na vida.

Ao se afastar, ele diz por cima do ombro: “Tomara que a porra desse carro pegue”.


11.

Uma planta débil e pálida semeada por bêbados na madrugada luta para alcançar a remota luz solar do sucesso. Eis o plano. Um homem é encontrado morto ao volante. No chão do carro, quase invisível no banco de trás, há um copo de isopor com o logotipo de uma loja da Judd Street, perto de Camden Town Hall. No copo, restos de uma vitamina grossa de frutas misturada com glicol. Próximo ao copo, uma garrafa vazia da substância letal. Ao lado da garrafa, o recibo abandonado da bebida, com a data daquele dia. Escondidos sob o banco do motorista, alguns extratos bancários, uns de uma pequena editora, outros de uma conta pessoal. Ambos mostram déficits de algumas dezenas de milhares de libras. Num dos extratos está escrita, com a caligrafia do falecido, a palavra “Chega!”. (O “troço” de Trudy.) Junto aos extratos, uma luva que o morto usava de vez em quando para esconder sua psoríase. Quase encoberta pela luva, uma página de jornal com a resenha hostil de um recente volume de poemas. No banco do carona, um chapéu preto.

A polícia metropolitana, com um efetivo inferior às suas necessidades, está sobrecarregada de trabalho. Os detetives mais jovens, como os mais antigos costumam reclamar, investigam na tela dos computadores, relutantes em gastar a sola do sapato. Enquanto há outros casos sanguinolentos a serem investigados, para este existe uma conclusão convenientemente disponível. Um meio incomum mas nada raro, facilmente encontrado, palatável, fatal em altas doses, um bom argumento para escritores de romances policiais. Investigações preliminares sugeriram que, além das dívidas, o casamento ia mal, a mulher vivendo agora com o irmão do falecido, que sofria de depressão havia meses. A psoríase solapava sua confiança. A luva que usava para escondê-la explicava a ausência de impressões digitais no copo e na garrafa de anticongelante. Imagens de câmeras de segurança o mostravam na loja Paraíso das Vitaminas usando seu chapéu. Ele estava a caminho de sua casa em St. John’s Wood naquela manhã. Ao que parecia, não conseguia suportar a condição de pai, a ruína de seu negócio, o fracasso como poeta nem a solidão em Shoreditch, onde vivia num apartamento alugado. Depois de uma briga com sua mulher, foi embora muito angustiado. A mulher se considera culpada. O interrogatório dela precisou ser interrompido algumas vezes. O irmão também estava presente e fez o possível para ajudar.

Será que a realidade pode ser organizada antecipadamente de forma assim tão fácil, tão minuciosa? Minha mãe, Claude e eu estamos tensos enquanto esperamos na porta da frente. Entre a execução do ato e seu desenlace, há um emaranhado de possibilidades pavorosas. Na primeira tentativa, o motor rateia e não pega. Nenhuma surpresa, esse veículo pertence a um sonetista nefelibata. Na segunda tentativa, o mesmo fracasso asmático, assim como na terceira. O motor de arranque está soando como um velho fraco demais até para conseguir limpar a garganta. Se John Cairncross morrer em nossas mãos, estamos perdidos. Como também se sobreviver em nossas mãos. Ele faz uma pausa antes de tentar de novo, reunindo toda a sua sorte. A quarta vez é mais fraca que a terceira. Eu o imagino através do para-brisa, nos fazendo a mímica cômica de um dar de ombros interrogativo, sua figura quase obliterada pelos reflexos das nuvens de verão.

“Porra”, diz Claude, um cosmopolita. “Assim ele vai afogar o carburador.”

As vísceras de minha mãe orquestram sua esperança e seu desespero. Mas, na quinta vez, uma transformação. Com pequenas explosões comicamente ofegantes, o motor inicia a combustão interna. Na frágil planta de Trudy e Claude, brota uma flor encorajadora. Quando o carro volta à rua de marcha a ré, minha mãe tem um ataque de tosse por causa do que suponho ter sido uma nuvem azulada do cano de descarga soprada em nossa direção. Entramos, a porta é fechada com estrondo.

Não estamos voltando para a cozinha, mas subindo a escada. Nada é dito, porém a qualidade do silêncio — denso como um creme — sugere que algo além do cansaço e da bebida está nos atraindo para o quarto. Uma desgraça atrás da outra. Uma injustiça cruel.

Cinco minutos depois. Este é o quarto e já começou. Claude, agachado ao lado de minha mãe, talvez já esteja nu. Ouço sua respiração junto ao pescoço dela. Ele a está despindo, até então um cume de generosidade sensual que ele jamais escalara.

“Cuidado”, diz Trudy. “Esses botões são pérolas.”

Ele grunhe em resposta. Seus dedos são inábeis, só trabalham em benefício próprio. Algo dele ou dela cai no chão. Um sapato ou uma calça com um cinto pesado. Ela se contorce de modo estranho. Impaciência. Ele ordena alguma coisa sob a forma de um segundo grunhido. Estou me encolhendo. Isso é feio, com certeza vai dar errado, muito tarde na gravidez. Venho dizendo isso há semanas. Vou sofrer.

Obedientemente, Trudy se põe de quatro. É por trás, no estilo cachorrinho, mas não para minha segurança. Como uma rã ao acasalar, ele se agarra às costas dela. Trepa em cima, agora penetra, e bem fundo. Muito pouco de minha mãe traiçoeira me separa do candidato a assassino de meu pai. Nada mais é o mesmo neste meio-dia de sábado em St. John’s Wood. Este não é o encontro breve e frenético de sempre capaz de ameaçar a integridade de um crânio novinho em folha. Pelo contrário, é um afogamento viscoso, como alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano. Membranas mucosas se tocam, deslizantes, com um tênue estalido ao mudarem de direção. Horas de maquinação lançaram os perpetradores acidentalmente à arte de fazer um amor deliberado. Mas nada é transmitido entre eles. Agitam-se mecanicamente em câmera lenta, um processo industrial anônimo a meio vapor. Tudo que buscam é alívio, um desafogo, libertar-se por alguns segundos de si mesmos. Quando o gozo vem, em rápida sucessão, minha mãe solta um arquejo de horror. Diante daquilo a que deve regressar, e que talvez ainda veja. Seu amante emite o terceiro grunhido da sessão. Separam-se, caindo de costas sobre os lençóis. Depois nós todos dormimos.

Sem parar, a tarde toda — e foi nessa longa planície de tempo que tive meu primeiro sonho, em cores vivas e com grande profundidade visual. A linha, a fronteira formal entre estar sonhando e estar acordado é indefinida. Não há cercas nem clareiras na floresta para evitar a propagação do fogo. Só algumas guaritas vazias marcam a passagem de um estado para o outro. Como cumpre a um principiante, penetro sem muita precisão nessa terra nova onde encontro uma massa informe e desordenada de objetos, pessoas e lugares ondulantes e mal iluminados que se dissolvem, vozes indistintas em espaços abobadados cantando ou falando. Enquanto caminho, sinto a dor de um remorso indefinível e inalcançável, a sensação de haver deixado alguém ou alguma coisa para trás, de haver traído um dever ou um amor. Então tudo se torna maravilhosamente claro. Um nevoeiro frio no dia de minha deserção, uma viagem a cavalo de três dias, fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas, elmos gigantescos se erguendo acima de campinas inundadas pelo Tâmisa e, por fim, a excitação e os ruídos familiares da cidade. Nas ruas, o cheiro de dejetos humanos tão sólido quanto as paredes das casas cede lugar, vencida uma esquina estreita, ao aroma de carne assada e alecrim; penetrando por uma entrada escura, vejo um jovem da minha idade, na penumbra de um cômodo com vigas grossas no teto, servindo vinho de uma jarra de barro, assim como um homem bonito que, curvado sobre a mesa de carvalho com o tampo enodoado, me retém com uma história que escreveu ou eu escrevi, e deseja uma opinião ou me dar a sua, uma correção, um comentário factual. Ou quer que eu lhe diga como prosseguir. Esse entrelaçamento de identidades é um aspecto do amor que sinto por ele, o qual quase supera a culpa de que desejo me livrar. Lá fora, na rua, um sino repica. Nos amontoamos do lado de fora para ver a passagem do cortejo fúnebre. Sabemos que se trata de uma morte importante. A procissão não aparece, mas o sino continua a tocar.

É minha mãe quem escuta a campainha. Antes que eu tenha emergido da novidade do sonho e de sua lógica própria, ela já vestiu o penhoar e estamos descendo a escada. Ao chegar ao último degrau, ela solta um grito de surpresa. Meu palpite é que o monte de lixo foi removido enquanto dormíamos. A campainha soa de novo, aguda, dura, irritada. Enquanto abre a porta, Trudy grita: “Pelo amor de Deus! Você está de porre? Desci o mais rápido que...”.

Ela hesita. Se tem fé em si mesma, não deveria estar surpresa em ver o que o medo já me fez ver, um policial, não, dois, tirando os quepes.

Uma voz agradável, paternal, diz: “Falo com a sra. Cairncross, esposa de John?”.

Ela confirma com um aceno de cabeça.

“Sargento Crowley. Sinto muito, mas trago uma notícia bem ruim. Podemos entrar?”

“Ah, meu Deus”, minha mãe se lembra de dizer.

Eles nos seguem até a sala, raramente usada e quase limpa. Se a imundície do vestíbulo não tivesse sido removida, acho que suspeitariam de imediato de minha mãe. O trabalho da polícia é intuitivo. O que resta, possivelmente, é um odor persistente, passível de ser confundido com o de uma culinária exótica.

Uma segunda voz, mais jovem e com uma solicitude fraternal, diz: “Gostaríamos que a senhora se sentasse”.

O sargento transmite a notícia. O carro do sr. Cairncross foi encontrado no acostamento da M1 Norte, a cerca de trinta quilômetros de Londres. A porta estava aberta e, não muito longe dali, num dique gramado junto à estrada, ele se achava caído de bruços. Uma ambulância o levou às pressas para o hospital, técnicas de ressuscitamento foram aplicadas, mas ele morreu no caminho.

Um soluço, como uma bolha em águas profundas, sobe através do corpo de minha mãe, passa por mim e vai estourar diante do rosto dos policiais solícitos.

“Ah, meu Deus!”, ela grita. “Tivemos uma briga horrível hoje de manhã.” Ela se curva para a frente. Sinto que cobre o rosto com as mãos e começa a tremer.

“Preciso lhe dizer”, continua o mesmo policial. Ele faz uma pausa gentil, consciente do duplo respeito que merece uma mulher grávida que sofre tamanha perda. “Tentamos contatá-la esta tarde. Uma amiga dele fez a identificação. Sinto dizer que nossa primeira impressão é de suicídio.”

Quando minha mãe endireita a coluna e solta um grito, sou tomado de um grande amor por ela, por tudo que se perdeu — Dubrovnik, a poesia, a vida cotidiana. Ela o amou no passado, assim como ele também a amou. Evocando esse fato, apagando outros, seu desempenho ganha em qualidade.

“Eu devia... devia ter falado pra ele ficar aqui. Ah, meu Deus, é tudo culpa minha.”

Que esperta, se escondendo à vista de todos por trás da verdade.

O sargento diz: “As pessoas costumam dizer isso. Mas a senhora não deveria, de forma nenhuma. É um erro se culpar”.

Uma respiração profunda, um suspiro. Ela dá a impressão de que vai falar, para, suspira de novo, se concentra. “Preciso explicar. As coisas não iam bem entre nós. Ele estava saindo com outra pessoa, se mudou aqui de casa. E eu comecei uma... o irmão dele veio morar comigo. John reagiu mal a isso. É por isso que estou dizendo...”

Ela foi a primeira a mencionar Claude, revelou o que eles estavam fadados a descobrir. Se, num arroubo chocante, ela agora dissesse “Eu o matei”, estaria segura.

Ouço um som de velcro, o folhear de um caderno de notas, o riscar de um lápis. Ela relata com voz debilitada tudo que havia ensaiado, voltando no final à sua própria culpabilidade. Ela nunca deveria ter permitido que ele fosse embora naquele estado.

O homem mais novo diz respeitosamente: “Sra. Cairncross, a senhora não tinha como saber”.

Então ela muda de direção, soando quase aborrecida. “Não sei se estou entendendo bem isso. Nem sei se acredito em vocês.”

“Isso é compreensível.” O sargento com ar paternal é quem diz. Em meio a tosses corteses, ele e seu colega se põem de pé, prontos para partir. “Há alguém que a senhora possa chamar? Alguém para lhe fazer companhia?”

Minha mãe reflete sobre a resposta. Está curvada de novo, o rosto encoberto pelas mãos. Fala através dos dedos, num tom sem ênfases. “Meu cunhado está aqui. Dormindo no andar de cima.”

Os guardiões da lei talvez estejam trocando um olhar libidinoso. Qualquer sinal de ceticismo deles me ajudaria.

“No momento oportuno também gostaríamos de conversar com ele”, diz o mais novo.

“Essa notícia vai acabar com ele.”

“Imagino que vocês queiram ficar a sós agora.”

Lá está de novo a frágil corda salva-vidas, a sugestão que sustenta minha esperança covarde de que a Força — Leviatã, não eu — se vingará.

Preciso de um momento sozinho, fora do alcance das vozes. Fiquei muito absorto, muito impressionado com a arte de Trudy de olhar para dentro do poço de minha própria dor. Mais além, o mistério de como o amor por minha mãe cresce proporcionalmente ao meu ódio por ela. Ela conseguiu se transformar em minha única progenitora. Não sobreviverei sem ela, sem o envolvente olhar verde para receber meu sorriso, sem a voz carinhosa derramando doçuras em meus ouvidos, sem suas mãos frias cuidando de minhas partes íntimas.

Os policiais vão embora. Minha mãe sobe a escada com passos pesados. A mão firme no corrimão. Um-dois, pausa, um-dois, pausa. Ela faz um som repetido numa nota cadente, exala um gemido condoído ou triste pelas narinas. Zum... zum. Eu a conheço. Alguma coisa está se formando, o prelúdio de uma avaliação geral. Ela criou uma trama, puro artifício, um conto de fadas maligno. Agora sua história fantástica a está desertando, cruzando a linha como fiz naquela tarde, mas em sentido contrário, passando pelas guaritas vazias, para se levantar contra ela e se aliar com a realidade social, com o cotidiano tedioso do mundo, com os contatos humanos, compromissos, obrigações, câmeras de vídeo, computadores com memórias inumanas. Em suma, consequências. A fantasia acabou.

Massacrada pela bebida e pela falta de sono, carregando-me escada acima, ela segue para o quarto. Nunca poderia funcionar, ela vai dizendo a si mesma. Foi só minha raiva idiota. Só sou culpada de ter cometido um erro.

O próximo passo está perto, mas ela não o dá ainda.


12.

Estamos nos aproximando de Claude em pleno sono, uma protuberância, uma corcova de sons abafados nos lençóis. Ao exalar, um gemido longo e dificultoso, enfeitado no final com sibilantes elétricas. Depois uma pausa prolongada capaz de alarmar quem o ama. Terá sido o último sopro dele? Para quem não o ama, a esperança é que sim. Finalmente, contudo, uma inalação mais curta e ávida, enfeada pelo estertor de muco ressequido e, no cume ventoso, o rom-rom triunfal do palato. O volume crescente anuncia que estamos muito próximos. Trudy pronuncia o nome dele. Sinto sua mão se estender em direção ao corpo de Claude, enquanto ele mergulha em meio às sibilantes. Ela está impaciente, precisa compartilhar o sucesso dos dois, e o toque em seu ombro nada tem de gentil. Ele meio que desperta, tossindo algumas vezes, como o carro do irmão, e demora alguns segundos para encontrar as palavras para sua pergunta.

“Que merda é essa?”

“Ele está morto.”

“Quem?”

“Meu Deus! Acorde!”

Arrancado de um sono profundo, ele precisa se sentar na beira da cama, tal como indicam os queixumes do colchão, e aguardar que seus circuitos neurais restaurem sua história de vida. Sou jovem o suficiente para não desprezar essas fiações. Pois bem, onde ele estava mesmo? Ah, certo, tentando matar o irmão. Morto de verdade? Por fim, ele volta a ser Claude.

“Porra, não brinca!”

Agora está pronto para se levantar. São seis da tarde, ele observa. Energizado, estende os braços atleticamente com estalidos de ossos e cartilagens, depois se move entre o quarto e o banheiro assobiando com alegria, num vigoroso vibrato. Com base nas músicas populares que ouvi, sei que é o tema de Êxodo. Grandioso, de um estilo romântico corrompido, de acordo com meu recém-formado aparelho auditivo; para Claude, uma poesia orquestral redentora. Ele está feliz. Enquanto isso, Trudy permanece sentada em silêncio na cama. Fermentando. Por fim, em tom monocórdio ela fala da visita, da delicadeza da polícia, da descoberta do corpo, das primeiras hipóteses sobre a causa da morte. A cada item, apresentado como uma notícia ruim, Claude exclama: “Maravilha!”. Curva-se com um gemido para dar um laço nos cadarços.

Ela diz: “O que você fez com o chapéu?”.

Refere-se ao chapéu de feltro com abas largas de meu pai.

“Você não viu? Eu dei para ele.”

“E o que ele fez com o chapéu?”

“Estava com ele na mão quando saiu. Não se preocupe. Você está preocupada.”

Ela suspira, reflete por alguns segundos. “Os policiais foram tão simpáticos.”

“Viúva, essa coisa toda.”

“Não confio neles.”

“Só fica na moita.”

“Eles vão voltar.”

“Fica... tranquila.”

Ele pronuncia essas duas palavras com ênfase e com um intervalo sinistro entre elas. Sinistro ou irritado.

Agora está de volta ao banheiro, escovando o cabelo, sem assobiar. A atmosfera está mudando.

Trudy diz: “Querem falar com você”.

“Óbvio. Irmão dele.”

“Falei sobre nós.”

Alguns momentos de silêncio, depois ele diz: “Meio besta isso”.

Trudy limpa a garganta. A língua está seca. “Não, não foi mesmo.”

“Deixe eles descobrirem. Senão vão pensar que você está escondendo alguma coisa tentando se manter um passo à frente.”

“Eu disse que John estava deprimido por nossa causa. Mais uma razão para ele...”

“Tudo bem, o.k. Nada mal. Pode até ser verdade. Mas.” Ele deixa o assunto morrer, inseguro sobre o que ele acha que ela deveria saber.

Que John Cairncross poderia se matar pelo amor que sentia por ela se Trudy não o tivesse matado antes — há um quê de sentimentalismo e de culpa nessa noção em que cada elemento sugere o outro. Acho que ela não gosta do tom casual, quase indiferente, de Claude. Só um palpite meu. Por mais perto que estejamos das pessoas, nunca se pode penetrar nelas, mesmo quando se está dentro de uma. Acho que ela está magoada. Mas ainda não diz nada. Nós dois sabemos que virá em breve.

A velha questão ressurge. Quão idiota é Claude realmente? Do espelho do banheiro ele acompanha o pensamento dela. Sabe como combater a sentimentalidade em matéria de John Cairncross. Fala de lá: “Vão querer conversar com aquela poeta”.

Evocá-la é um bálsamo. Todas as células do corpo de Trudy concedem que a morte do marido era justa. Ela odeia Elodia mais do que ama John. Elodia vai sofrer. Um bem-estar trazido pelo sangue me invade e de imediato me sinto em êxtase, surfando numa onda perfeita de perdão e amor. Um tubo enorme e inclinado, capaz de me levar a um ponto em que posso começar a pensar em Claude com simpatia. Mas resisto. Muito deprimente aceitar de segunda mão qualquer sentimento de minha mãe e me envolver ainda mais com seu crime. No entanto, é duro me separar quando preciso dela. E, naquela forte agitação emocional, a necessidade se traduz em amor, tal como o leite em manteiga.

Ela diz com voz doce e contemplativa: “Ah, sim, vão ter que falar com a Elodia”. Depois acrescenta: “Claude, você sabe que eu te amo”.

Mas ele não se sensibiliza. Já ouviu isso muitas vezes. Em vez de responder, diz: “Daria tudo para estar lá, como a proverbial mosca da parede”.

Ah, a proverbial mosca, ah, parede. Quando é que ele vai aprender a falar sem me torturar? Falar não passa de uma forma de pensar, por isso ele deve ser mesmo tão idiota quanto parece.

Emergindo dos ecos do banheiro e mudando de assunto, ele diz, alegre: “Talvez eu tenha encontrado um comprador para nós. Uma bela chance. Mas conto para você depois. Os policiais deixaram cartões? Gostaria de ver o nome deles”.

Ela não se lembra nem eu. Seu estado de espírito se modifica de novo. Acho que ela está olhando fixo para ele quando diz: “Ele está morto”.

É realmente um fato surpreendente, quase incrível, crucial, como a declaração de um início de guerra mundial, o primeiro-ministro falando à nação, famílias se abraçando e as luzes muito fracas por razões que as autoridades se recusam a revelar.

Claude está ao lado dela, com a mão em sua coxa e a puxando para mais perto de si. Beijam-se longamente, as línguas entrando bem fundo, as respirações entrelaçadas.

“Mortinho da silva”, ele murmura na boca de Trudy. Sua ereção pressiona fortemente minhas costas. Depois, sussurrando: “Fizemos. Juntos. Nós dois somos brilhantes juntos”.

“É”, ela diz entre um beijo e outro. Difícil ouvir por causa do farfalhar das roupas. O entusiasmo dela não parece igual ao de Claude.

“Eu amo você, Trudy.”

“E eu amo você.”

Há algo descompromissado nesse “e”. Quando ela avançou, ele recuou, agora o oposto. É a dança dos dois.

“Pega nele.” Não chegou a ser uma ordem, pois o tom era suplicante. Ela abre o zíper. Crime e sexo, sexo e culpa. Meras dualidades. O movimento sinuoso dos dedos dela transmite prazer. Mas não o suficiente. Ele está empurrando os ombros de Trudy, ela se ajoelha, “enfiando na boca”, como os ouvi dizer. Não consigo me imaginar querendo uma coisa igual a essa. Mas é um ônus a menos ter Claude satisfeito a uma generosa distância de mim. Preocupa-me que aquilo que ela vai engolir chegue até mim como nutriente, me fazendo um pouquinho parecido com ele. Por que outro motivo os canibais evitam comer débeis mentais?

A coisa termina depressa, quase sem nenhuma manifestação sonora. Ele recua e fecha o zíper. Minha mãe engole duas vezes. Ele não oferece nada em troca, e acho que ela nem quer. Passa por ele, atravessa o quarto, vai até a janela e se detém ali, de costas para a cama. Penso nela contemplando os blocos de apartamentos. Meu pesadelo de um futuro lá está mais próximo agora. Ela repete baixinho, mais consigo mesma, porque Claude está se lavando de novo no banheiro. “Ele está morto... morto.” Não parece convencida. Depois de alguns segundos, num murmúrio: “Ah, meu Deus”. Suas pernas tremem. Está prestes a chorar, mas não, isso é sério demais para lágrimas. Ainda precisa entender suas próprias notícias. Os fatos são imensos e ela se encontra perto demais para conseguir ver inteiramente o duplo horror: a morte dele e a parte dela nisso.

Eu a odeio, e odeio seu remorso. Como passou de John a Claude, da poesia ao lugar-comum mais boçal? Descer para o chiqueiro asqueroso a fim de rolar na imundície com seu amante debiloide, espojar-se na merda e no gozo, planejar o roubo de uma casa, infligir uma dor monstruosa e uma morte humilhante a um homem bondoso. E agora arquejar e tremer diante do que fez, como se a assassina fosse outra pessoa — alguma irmã triste fugida do sanatório com o cérebro envenenado e sem autocontrole, alguma irmã feia que fumava sem parar e tinha compulsões sinistras, desde sempre a vergonha da família, merecedora de suspiros de “Ah, meu Deus” e o sussurrar reverencial do nome de meu pai. E lá vai ela, numa passagem sem interrupção, no mesmo dia e sem corar de vergonha, da carnificina à autopiedade.

Claude aparece detrás dela. As mãos de novo sobre seu ombro são as de um homem recentemente libertado pelo orgasmo, um homem ansioso para encarar questões práticas e empreendimentos do dia a dia incompatíveis com uma ereção que anuvia o cérebro.

“Sabe de uma coisa? Eu estava lendo outro dia. Só agora me dei conta. É o que devíamos ter usado. Difenidramina. Um tipo de anti-histamínico. O pessoal está dizendo que os russos usaram isso naquele espião que foi encontrado dentro de uma sacola de equipamentos esportivos. Derramado no ouvido. Ligaram os aquecedores de ambiente antes de irem embora, para que o produto químico se dissolvesse nos tecidos dele sem deixar vestígio. Jogaram tudo dentro de uma banheira, não queriam que os fluidos vazassem para o apartamento de baixo...”

“Chega.” Ela não diz isso de forma ríspida. Mais com resignação.

“Certo. Já chega. De qualquer modo, conseguimos.” Ele inventa uma nova letra para “My Way”: “Disseram que estávamos fodidos, que trabalhamos mal, mas nos demos muito beeeeeem”. O assoalho do quarto cede sob os pés de minha mãe. Ele está dando uns passinhos de dança.

Ela não se volta para trás, mantém-se totalmente imóvel. Está odiando-o tanto quanto a odiei há pouco. Agora ele se põe ao lado dela, compartilhando a vista, tentando pegar sua mão.

“O negócio é o seguinte”, diz com ar importante. “Eles vão nos interrogar separadamente. Precisamos alinhar nossas histórias. Assim. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido.”

“Eu disse que tivemos uma briga.”

“Está bem. Quando?”

“Bem na hora que ele estava saindo.”

“Sobre o quê?”

“Ele queria que eu me mudasse.”

“Bom. É isso. Ele apareceu hoje de manhã. Para tomar café. Muito deprimido e...”

Ela suspira, como eu faria. “Olhe. Diga como tudo foi, menos sobre a vitamina, mais a briga. Não precisa de ensaio.”

“Legal. Hoje à noite. Hoje à noite vou cuidar dos copos, todos. Em três lugares. Outra coisa. Ele estava usando luva o tempo todo.”

“Eu sei.”

“E, quando limpar a cozinha, nem um átomo de vitamina para...”

“Eu sei.”

Ele se afasta dela e dá meia-volta, circulando pelo quarto. Sente o sucesso. Está impaciente, inquieto, excitado. O fato de ela não estar aumenta sua impaciência. Há coisas a fazer e, se não houvesse, coisas a planejar. Ele quer sair dali. Mas para onde? Está meio que cantarolando outra música. A velha canção “My Blue Heaven”. “... e com o bebê são três...” Não me sinto reconfortado. Ele volta para perto de nós, Trudy está rígida junto à janela, mas ele não pressente o perigo.

“Sobre a venda”, ele diz, interrompendo a canção. “Cá entre nós, sempre achei que fôssemos ter que aceitar um preço menor que o do mercado se fosse necessário fazer negócio logo...”

“Claude.”

Ela resmunga o nome dele em duas notas, a segunda mais baixa que a primeira. Um alerta.

Mas ele segue em frente. Nunca o vi tão feliz nem tão simpático. “Esse cara é um construtor, um empresário. Nem precisa fazer uma avaliação. Basta dizer a metragem. Apartamentos, sabe. E dinheiro vivo...”

“Você nem desconfia?”

“Do quê?”

“Será que você é mesmo tão incrivelmente burro?”

A famosa questão. Mas Claude também mudou de atitude. Soa perigoso.

“Que é que há?”

“Escapou à sua atenção.”

“Sem dúvida.”

“Hoje, algumas horas atrás.”

“O que foi?”

“Perdi meu marido...”

“Não!”

“O homem que um dia eu amei e que me amou, que moldou minha vida, que deu sentido a ela...” Um aperto nos tendões de sua garganta impede que fale mais.

Mas Claude está a toda. “Minha querida ratinha, isso é terrível. Perdeu, não foi? Onde será que você o deixou? Onde o viu pela última vez? Deve ter posto em algum lugar...”

“Pare!”

“Perdido! Deixe eu pensar. Já sei! Acabei de lembrar. Você esqueceu ele lá na M1, na beira da estrada, caído na grama com o bucho cheio de veneno. Como é que a gente foi esquecer uma coisa dessas!”

Ele poderia ter continuado, porém Trudy gira o braço e o golpeia no rosto. Não um tapinha feminino. Mas um soco de punho fechado que abala os suportes da minha cabeça.

“Você está cheio de ódio”, ela diz com uma calma surpreendente. “Porque sempre teve ciúme.”

“Bem, bem”, diz Claude, a voz só ligeiramente mais pesada. “A verdade nua e crua.”

“Você odiava seu irmão porque nunca poderia ser o homem que ele era.”

“Enquanto você o amou até o final.” Claude retomou o tom de assombro fingido. “O que foi mesmo aquela coisa tão inteligente que alguém me disse, foi na noite passada ou na anterior? ‘Quero ele morto e tem que ser amanhã.’ Nada da mulher carinhosa do meu irmão, que moldou a vida dela.”

“Você me embebedou. É o que você mais faz.”

“E na manhã seguinte quem foi que, propondo um brinde ao amor, incentivou o homem que tinha moldado a sua vida a erguer a taça de veneno? Com certeza não a amorosa mulher do meu irmão. Ah, não, não a minha querida ratinha.”

Entendo minha mãe, conheço seu coração. Ela está lidando com os fatos como os vê. O crime, no passado uma sequência de planos e sua execução, visto agora parece um objeto, inamovível, acusador, uma estátua fria de pedra numa clareira da floresta. Uma meia-noite gélida no auge do inverno, a lua no quarto minguante e Trudy fugindo por uma trilha coberta de geada. Volta-se a fim de olhar lá atrás a figura distante, semiobscurecida por galhos nus e fiapos de nevoeiro, e vê que o crime, o objeto de seus pensamentos, não é de modo algum um crime. É um erro. Sempre foi. Ela suspeitou disso o tempo todo. Quanto mais se afasta, mais claro se torna. Ela simplesmente estava errada, não é má, não é uma criminosa. O crime deve estar em outro ponto da floresta, pertencer a outra pessoa. Não há dúvida sobre os fatos que conduzem à culpa essencial de Claude. Seu tom sarcástico não é capaz de protegê-lo. Na verdade, o condena.

No entanto. No entanto. No entanto ela o quer loucamente. Quando ele a chama de ratinha, um fiapo de excitação, uma contração fria se instala em seu períneo, um anzol gelado que a puxa para baixo até um estreito ressalto e a faz lembrar dos abismos em que antes se extasiou, as paredes da morte a que já sobreviveu tantas vezes. Sua ratinha! Que humilhação. Na palma da mão dele. Animal de estimação. Impotente. Amedrontada. Desprezível. Descartável. Ah, ser a ratinha dele! Quando sabe que é uma insensatez. Tão difícil resistir. Ela pode lutar contra isso?

Ela é uma mulher ou uma ratinha?

 


                                              CONTINUA