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ENCLAUSURADO / Ian McEvan
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”
CONTINUA
7.
Certos artistas, escritores ou pintores, florescem em espaços confinados como os bebês em gestação. Seus temas estreitos podem desconcertar ou desapontar algumas pessoas. Rituais de fazer a corte entre os membros da pequena nobreza do século XVIII, a vida sob os velames de um barco, coelhos falantes, lebres esculpidas, retratos de gente obesa, de cachorros, de cavalos, de aristocratas, nus reclinados, milhões de cenas da natividade, crucificações, subidas ao céu, tigelas com frutas, flores em vasos. E pão e queijo holandeses com ou sem uma faca ao lado. Alguns escritores de prosa cuidam apenas de seus egos. Também no campo científico há quem dedique a vida a um caramujo albanês ou a um vírus. Darwin consagrou oito anos às cracas. E, mais velho e mais sábio, às minhocas. Milhares de pesquisadores passaram a vida correndo atrás do bóson de Higgs, uma coisinha de nada. Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?
Assim, por que não fazer poesia sobre corujas?
Conheço-os pelas passadas. Descendo a escada para a cozinha, na frente vem Claude, depois meu pai, seguido pela amiga recém-contratada, de salto alto, talvez botinha, um calçado não ideal para caminhar em regiões de bosques. Por associação noturna, visto-a com uma jaqueta de couro e calça jeans preta e bem justa, faço-a jovem, pálida, bonita, uma mulher confiante. Como uma antena de rádio bem sintonizada, minha placenta está recebendo sinais de que minha mãe a detesta imediatamente. Pensamentos pouco razoáveis estão mexendo com a pulsação de Trudy, uma nova e ameaçadora batida de tambores, como se vinda de uma distante aldeia na floresta, traz mensagens de posse, raiva, ciúme. Pode haver alguma confusão adiante.
Em respeito a meu pai, sinto-me obrigado a defender nossa visitante: seu tema não é tão limitado, as corujas são mais diversificadas que os bósons ou as cracas, com duzentas espécies e uma vasta ressonância folclórica. A maioria ligada a maus agouros. Diferentemente de Trudy, com suas certezas viscerais, sou propenso à dúvida. Ou meu pai, que não é um simplório nem um santo, veio apresentar sua amante, pôr minha mãe em seu lugar (que fica no passado dele) e mostrar indiferença à infâmia do irmão, ou é um bobalhão total, ou santo demais, fazendo-se acompanhar por um de seus autores para obter proteção social, na esperança de ficar na presença de Trudy pelo máximo de tempo que ela tolerará. Ou algo mais além dessas duas hipóteses, alguma coisa demasiado obscura para ser vislumbrada. O mais simples, pelo menos por agora, é seguir minha mãe e pressupor que essa amiga é amante de meu pai.
Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última. Depois de um arrastar generalizado de cadeiras, o oferecimento de vinho e a retirada da rolha, um comentário de Claude sobre o calor é respondido com um assentimento chocho e monossilábico de meu pai. Uma troca descontínua de palavras entre os irmãos projeta a mentira de que nossos visitantes estavam apenas de passagem. Trudy permanece calada, até mesmo quando a poeta é apresentada como Elodia. Ninguém comenta a elegante geometria social de um casal e seus amantes ao redor de uma mesa, saudando-se ao erguerem suas taças, um tableau vivant da frágil vida moderna.
Meu pai não parece perturbado por ver o irmão em sua cozinha, abrindo a garrafa de vinho, fazendo o papel de anfitrião. Isso significa que John Cairncross nunca foi o enganado, o corno que tudo desconhecia. Meu subestimado pai bebe mansamente e pergunta a Trudy como ela está se sentindo. Não muito cansada, ele espera. O que pode ter sido ou não uma leve alfinetada, uma alusão sexual. Aquele tom choroso dele desapareceu. Substituído pela indiferença ou pela ironia. Só o desejo satisfeito poderia tê-lo libertado. Trudy e Claude devem estar curiosos para saber por que a vítima deles se encontra lá, o que ela deseja, porém não lhes ocorre indagar.
Em vez disso, Claude pergunta a Elodia se ela mora perto dali. Não, não mora. Mora em Devon, num estúdio dentro de uma fazenda, perto de um rio, com isso informando Trudy de que, em Londres, ela passará as noites debaixo dos lençóis de John em Shoreditch. Está fincando um marco. Gosto do tom de sua voz, semelhante, eu diria, ao de um oboé ligeiramente rachado, com um grasnido de pato nas vogais. E lá para o fim de suas frases ela emite um som gutural, quase de gargarejo ou rosnado. Trata-se de algo que se espalha pelo mundo ocidental e vem sendo muito discutido no rádio; de causa desconhecida, é visto como um toque de sofisticação, sendo mais comum entre mulheres jovens e com bom nível educacional. Um enigma agradável. Com uma voz daquelas ela podia enfrentar minha mãe em condições de igualdade.
Nada no comportamento de meu pai sugere que, nessa mesma tarde, seu irmão lhe ofereceu cinco mil libras em dinheiro vivo. Nenhuma gratidão, o desprezo fraternal de sempre. Isso deve estimular o antigo ódio de Claude. E em mim, de modo mais hipotético, um ressentimento em potencial. Apesar de ver meu pai como um tolo abandonado pela mulher amada, sempre admiti que, caso as coisas se tornassem intoleráveis com Claude e eu não conseguisse reunir os dois, poderia viver com ele, pelo menos por um tempo. Até poder andar. Mas não creio que essa poeta me receberia — jeans preto e justo com casaco de couro não são uma indumentária maternal. Isso é parte da atração que ela exerce. Na minha estreita maneira de ver, meu pai estaria melhor sozinho. Uma beleza pálida e a voz confiante de um pato não são meus aliados. Mas talvez não haja nada entre eles, e eu gosto dela.
Claude acabou de dizer: “Um estúdio? Numa fazenda? Que maravilha”. Elodia está descrevendo com seu rosnar urbano um chalé na beira de um rio escuro que faz espuma ao correr entre grandes pedras redondas de granito, uma precária pontezinha para pedestres, um bosque de faias e bétulas, uma clareira enfeitada com anêmonas e celidôneas, campainhas e euforbiáceas.
“Perfeito para uma poeta que canta a natureza”, diz Claude.
Isso é tão verdadeiro e banal que deixa Elodia sem reação. Ele continua a pressionar. “Isso tudo fica a que distância de Londres?”
O “tudo” se refere aos inúteis rio, pedras, árvores e flores. Desalentada, ela mal consegue juntar as palavras. “Uns trezentos e vinte quilômetros.”
Ela adivinha que ele vai perguntar sobre a estação ferroviária mais próxima e qual a duração da viagem, informação que em breve ele esquecerá. Mas ele pergunta, ela responde e nós três ouvimos, nem estupefatos nem entediados. Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito. Os amantes, se Elodia for uma, as duas partes estranhas ao casal constituem a carga dupla de explosivos que vai implodir aquele lar. E me lançar para o alto, rumo ao inferno, para o meu décimo terceiro andar.
No tom suave de quem busca salvar a situação, John Cairncross menciona que gosta do vinho, um estímulo para que Claude encha de novo as taças. Enquanto faz isso, um véu de silêncio cai sobre todos nós. Visualizo uma corda bem esticada de piano aguardando a repentina queda do martelo de feltro. Trudy está prestes a falar. Sei pelo percurso sincopado das batidas de seu coração segundos antes da primeira palavra.
“Essas corujas. São reais ou, sei lá, representam alguma coisa?”
“Ah, não”, diz Elodia às pressas. “São reais. Escrevo o que vejo. Mas o leitor, você sabe, carrega seus símbolos, suas associações. Não posso impedir esse processo. É assim que a poesia funciona.”
“Sempre penso nas corujas”, diz Claude, “como sábias.”
A poeta faz uma pausa, farejando o ar atrás do cheiro de sarcasmo. Ela está começando a entendê-lo e diz sem se comprometer: “Pois é. Não há nada que eu possa fazer”.
“As corujas são cruéis”, diz Trudy.
Elodia: “Assim como os tordos. Como a natureza”.
Trudy: “Aparentemente não são comestíveis”.
Elodia: “E a coruja que está chocando é venenosa”.
Trudy: “É, a que choca é capaz de matar”.
Elodia: “Acho que não. Quem come apenas fica mal”.
Trudy: “Mas ela enfia as garras na cara da gente”.
Elodia: “Isso nunca acontece. Elas são muito tímidas”.
Trudy: “Não quando provocadas”.
A conversa é amena, o tom neutro. Conversa fiada ou uma troca de ameaças e insultos — me falta experiência social para saber. Se estou bêbado, Trudy também deve estar, mas nada no comportamento dela sugere isso. O ódio por Elodia, agora vista como rival, pode ser um elixir de sobriedade.
John Cairncross parece contente em entregar sua mulher a Claude Cairncross. Isso enfurece minha mãe, convicta de que o abandono e a transferência devem ser decisões dela. Pode negar Elodia a meu pai. Pode lhe negar a própria vida. Mas devo estar enganado. Meu pai recitando na biblioteca, parecendo valorizar cada segundo na presença de minha mãe, permitindo que ela o ponha na rua. (Vá embora!) Não confio em meu julgamento. Nada parece no lugar certo.
Mas não há tempo para pensar agora. Ele se põe de pé, bem acima de todos nós, taça de vinho na mão, quase sem se balançar, pronto para fazer um discurso. Silêncio geral.
“Trudy, Claude, Elodia, talvez eu seja breve, talvez não. Que importa? Quero dizer o seguinte. Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação. Por isso, indo contra o vento do esquecimento, quero acender minha pequena vela da verdade e ver até onde chega sua luz. Quase dez anos atrás, na costa da Dalmácia, num hotel vagabundo de onde não se via o Adriático, num quarto que era um oitavo desta cozinha, numa cama com uns noventa centímetros de largura, Trudy e eu descobrimos o amor, o êxtase e a confiança mútua, a alegria e a paz sem limites de espaço e tempo, mais além das palavras. Demos as costas ao mundo para inventar e construir nosso próprio mundo. Excitamo-nos um ao outro com fingidas violências e também nos paparicamos e acariciamos, nos demos apelidos, criamos uma linguagem toda nossa. Não havia vergonha entre nós. Demos e recebemos, nos permitimos tudo. Fomos heroicos. Acreditamos estar num cume que ninguém, não na vida real, não na poesia, jamais tinha alcançado. Nosso amor era tão belo e grandioso que nos parecia um princípio universal. Era um sistema de ética, um modo tão fundamental de nos relacionar com os outros que o mundo, sabe-se lá como, havia deixado de notar. Quando nos deitávamos na cama estreita, nos olhando no fundo dos olhos e conversando, pela primeira vez fomos seres plenos. Ela pegou minhas mãos, beijou e, pela primeira vez na vida, não tive vergonha delas. Nossas famílias, que descrevemos em pormenores um para o outro, por fim fizeram sentido para nós. Amamos nossos familiares ardentemente, apesar das dificuldades do passado. O mesmo com nossos melhores e mais importantes amigos. Éramos capazes de perdoar todas as pessoas que conhecíamos. Nosso amor era pelo bem do mundo. Trudy e eu nunca tínhamos falado ou ouvido com tanta atenção. Nossas relações sexuais eram um prolongamento das conversas, nossas conversas um prolongamento das relações sexuais.
“Quando aquela semana terminou e voltamos, nos instalando aqui na minha casa, o amor continuou por meses e depois anos. Parecia que nunca nada iria interrompê-lo. Por isso, antes de prosseguir, ergo um brinde a esse amor. Que ele nunca seja negado, esquecido, distorcido ou rejeitado como uma ilusão. Ao nosso amor. Ele aconteceu. Ele foi verdadeiro.”
Ouço um arrastar de pés e um murmúrio relutante de concordância; mais perto, ouço minha mãe engolir em seco antes de fingir que está bebendo por causa do brinde. Acho que ela não gostou do “minha casa”.
“Agora”, meu pai continua, baixando a voz, como se entrasse num velório, “esse amor chegou ao fim. Nunca se desfez em mera rotina nem se transformou em proteção contra a velhice. Morreu rápido, tragicamente, como está fadado a ocorrer com os grandes amores. A cortina desce. Está terminado, e fico feliz. Trudy está feliz. Todos que nos conhecem estão felizes e aliviados. Confiávamos um no outro, agora não mais. Nos amávamos, agora eu a detesto tanto quanto ela me detesta. Trudy, minha querida, mal consigo olhar para você. Houve momentos em que poderia tê-la estrangulado. Sonhei, sonhos felizes, em que via meus dedos apertando suas carótidas. Sei que você sente o mesmo a meu respeito. Mas isso não é motivo de pena. Pelo contrário, vamos nos alegrar. Esses são apenas os sentimentos sombrios de que precisamos nos libertar para renascermos numa nova vida e num amor novo. Elodia e eu encontramos esse amor e estamos unidos por ele pelo resto de nossa vida.”
“Espere”, diz Elodia. Acho que ela teme o gosto de meu pai pela indiscrição.
Mas ele não admite ser interrompido. “Trudy e Claude, estou feliz por vocês. Encontraram-se no momento perfeito. Ninguém negará isso, vocês realmente se merecem.”
Isso é uma maldição, embora meu pai soe impenetravelmente sincero. Estar unida a um homem tão insípido, porém com tamanho vigor sexual quanto Claude, é um destino complexo. Seu irmão sabe disso. Mas silêncio. Ele ainda está falando.
“Há acertos a serem feitos. Haverá atritos e tensão. Mas o esquema geral é simples, o que é uma bênção para todos nós. Claude, você tem sua grande e bela casa em Primrose Hill, e você, Trudy, pode se mudar para lá. Vou trazer algumas coisas de volta para cá amanhã. Depois que você se for e os decoradores tiverem acabado o serviço, Elodia virá morar comigo aqui. Sugiro que não nos vejamos por um ano ou coisa parecida, e depois decidimos o que fazer. O divórcio deve ser simples. O importante é nos lembrarmos o tempo todo de sermos racionais e educados, lembrarmos de como tivemos a sorte de haver encontrado o amor outra vez. Está bem? Bom. Não, não, não se levante. Sabemos como sair. Trudy, se você estiver aqui, a vejo amanhã. Não vou me demorar — tenho de seguir logo para St. Albans. Aliás, achei minha chave.”
Ouve-se o ruído de uma cadeira quando Elodia se põe de pé. “Espera, posso dizer uma coisa agora?”
Meu pai é afável e firme: “Não é nem um pouquinho adequado”.
“Mas...”
“Vamos. Hora de ir. Obrigado pelo vinho.”
Um limpar de garganta, depois os passos deles se afastam pela cozinha e ao subir a escada.
Minha mãe e seu amante ficam sentados em silêncio enquanto os ouvimos sair. A porta da frente no andar de cima é fechada com um baque definitivo. Um ponto final. Trudy e Claude estão perplexos, eu estou agitadíssimo. O que eu fui na peroração de meu pai? Um morto. De cabeça para baixo num túmulo dentro da barriga de sua odiada ex-mulher. Nem uma só menção, nem mesmo num comentário lateral, nem mesmo ignorado como uma irrelevância. Um ano “ou coisa parecida” deve transcorrer antes que meu salvador me veja. Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo a seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.
Tente o seguinte. Ele se mudou para Shoreditch a fim de testar o relacionamento com Elodia. Deixou vaga a casa no Terrace para que Claude pudesse se instalar e oferecer a John um bom motivo para expulsar Trudy. As visitas ansiosas, a poesia apaixonada, até a chave perdida foram estratagemas, infundindo nela maior segurança em Claude, fazendo-os se aproximarem mais.
Claude está servindo mais vinho. Nessas circunstâncias, é um alívio vê-lo recorrer com precisão a seu pensamento mais fátuo.
“Olha só.”
Trudy não fala por trinta segundos. Quando o faz, as palavras são pouco nítidas, mas sua determinação é clara.
“Quero ele morto. E tem que ser amanhã.”
8.
Fora dessas paredes quentes e pulsantes, uma história gélida desliza rumo à sua tétrica conclusão. As nuvens do meio do verão são pesadas, não se vê a lua no ar parado. Mas minha mãe e meu tio estão às voltas com uma tempestuosa conversa hibernal. A rolha é retirada de mais uma garrafa e, cedo demais, de outra. Eu estou num tremendo porre, meus sentidos embaçam as palavras, porém nelas ouço a forma da minha ruína, figuras indistintas numa tela ensanguentada, numa luta sem esperança com o destino deles. As vozes sobem e descem de tom. Quando não se acusam ou brigam, conspiram. O que é dito paira no ar como a camada de poluição em Beijing.
Vai acabar mal, e a casa também sente o fracasso. No auge do verão, a ventania de fevereiro verga e quebra os sincelos que pendem dos beirais, varre os tijolos quase soltos do coruchéu, arranca as telhas — aquelas lousas em branco. A friagem penetra pela massa apodrecida dos vidros não lavados, sobe pelos ralos da cozinha. Estou tiritando aqui. Mas não vai acabar, o mal será duradouro, até que um desenlace ruim pareça uma bênção. Nada será esquecido, nada correrá para os esgotos. A imundície se esconde em dobras invisíveis que os encanadores não conseguem alcançar, está suspensa nos armários junto com os casacos de inverno de Trudy. Esse fedor intenso demais alimenta os tímidos camundongos ocultos atrás dos rodapés, transformando-os em ratos. Ouvimos o ruído que fazem ao roer e suas imprecações, mas ninguém se surpreende. De vez em quando, minha mãe e eu nos retiramos a fim de que ela possa acocorar-se para urinar copiosamente enquanto geme. Em contato com meu crânio, sinto sua bexiga se encolher e fico aliviado. De volta à mesa, para mais maquinações e longas arengas. Era meu tio imprecando, não os ratos. A roedura era de minha mãe comendo nozes salgadas. Incessantemente, ela come por mim.
Aqui, sonho com meus direitos: segurança, paz sem estar sujeito à força da gravidade, nenhum trabalho a fazer, nenhum crime ou culpa. Penso no que deveria ter desfrutado durante o confinamento. Duas noções conflitantes me perseguem. Tomei conhecimento delas num podcast que minha mãe deixou ligado enquanto falava ao telefone. Estávamos num sofá na biblioteca de meu pai, as janelas abertas de par em par, em outro meio-dia quente e úmido. O tédio, disse um tal Monsieur Barthes, não está longe da beatitude; as pessoas veem o tédio da perspectiva do prazer. Isso mesmo. A condição do feto moderno. Pense bem: nada a fazer senão existir e crescer, em que o crescimento não representa um ato consciente. A alegria da existência pura, o tédio dos dias iguais. A beatitude prolongada é um tédio existencial. Este confinamento não devia ser uma prisão. Aqui possuo o privilégio e o luxo da solidão. Falo como um inocente, porém concebo um orgasmo prolongado até a eternidade — que tal esse tédio no reino do sublime?
Esse era meu patrimônio até que minha mãe desejou meu pai morto. Agora vivo dentro de uma história e me inquieto com seu desfecho. Onde está o tédio ou a beatitude disso?
Meu tio se levanta da mesa da cozinha, cambaleia na direção da parede para apagar as luzes e revelar a alvorada. Se fosse meu pai, teria declamado uma poesia do alvorecer. Mas agora só existe uma preocupação prática — é hora de ir para a cama. É um alívio que estejam bêbados demais para fazer sexo. Trudy se põe de pé, balançamos juntos. Se eu pudesse virar de cabeça para cima por um minuto, ficaria menos enjoado. Como sinto saudades de meus dias espaçosos de dar cambalhotas no oceano!
Com um pé no primeiro degrau, ela para a fim de avaliar a subida à sua frente. A escada se levanta, íngreme, e se afasta como se rumasse para a lua. Sinto que ela agarra o corrimão por minha causa. Ainda a amo, mas se ela cair para trás eu morro. Agora estamos subindo. Na maior parte do tempo Claude segue à nossa frente. Devíamos estar presos por uma corda. Agarre-se com mais força, mãe! É um trabalho árduo e ninguém fala. Depois de muitos minutos, de muitos suspiros e gemidos, atingimos o segundo andar, e os últimos quatro metros embora planos também sejam difíceis.
Ela se senta no seu lado da cama para tirar um pé da sandália, tomba de lado com ele ainda na mão, e cai no sono. Claude a sacode para acordá-la. Juntos vão tateando ao banheiro, remexem as gavetas entupidas em busca de dois gramas de paracetamol para cada um, a fim de evitar a ressaca.
Claude observa: “Amanhã vai ser um dia longo”.
Ele quer dizer hoje. Meu pai deve chegar às dez, agora são quase seis. Por fim estamos todos deitados. Minha mãe reclama que o mundo, o seu mundo, gira quando ela fecha os olhos. Pensei que Claude fosse mais estoico, feito, como ele diria, de outro estofo. Não era. Minutos depois, corre para o cômodo ao lado, cai de joelhos e abraça o vaso sanitário.
“Levante o assento”, Trudy grita.
Silêncio, até que a coisa vem em pequenas porções, produzidas com esforço. Mas ele fazia barulho. Um longo urro subitamente interrompido, como se um fã de futebol tivesse levado uma facada em meio à cantoria da torcida.
Lá pelas sete estavam dormindo. Eu não. Meus pensamentos giram com o mundo de minha mãe. Minha rejeição por meu pai, seu possível destino, minha responsabilidade no caso, e depois meu próprio destino, minha incapacidade de alertar ou agir. E meus companheiros de cama. Incapacitados demais para tentar? Ou pior, fazer a coisa com incompetência, sendo apanhados e presos. Daí a imagem de prisão que tem me perseguido. Começar a vida numa cela, sem conhecer a beatitude, sendo o tédio um privilégio pelo qual cumpre lutar. E se eles tivessem êxito — então seria um vale no Paquistão. Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca...
Dormi além da hora. Fui acordado por um berro e movimentos bruscos, desordenados. Minha mãe na Parede da Morte. Mas não. Ou não nesse lugar. É ela descendo a escada rápido demais, a mão descuidada mal tocando no corrimão. É assim que tudo poderia terminar, uma vareta solta ou uma dobra do tapete puído, a queda de cabeça, depois minha melancolia particular perdida na escuridão eterna. Só posso me agarrar à esperança. O berro foi de meu tio. Ele chama de novo.
“Apaguei por causa da bebida. Temos vinte minutos. Prepare o café. Eu faço o resto.”
Os planos confusos dele sobre Shoreditch foram abandonados devido à ânsia de velocidade de minha mãe. Afinal, John Cairncross não é o idiota que ela imaginava. Vai enxotá-la, e logo. Precisa agir hoje. Não há tempo para cuidar das tranças. Ela ofereceu hospitalidade à amante do marido — rejeitada antes de poder rejeitar, como dizem nos programas vespertinos de aconselhamento sentimental. (Os adolescentes telefonam com problemas que deixariam atônitos um Platão ou um Kant.) A raiva de Trudy é oceânica — vasta e profunda, é seu meio ambiente, sua personalidade. Sei através de seu sangue alterado que passa por mim, no desconforto granular onde as células são perturbadas e comprimidas, as plaquetas despedaçadas. Meu próprio coração está lutando com o sangue raivoso de minha mãe.
Estamos sãos e salvos no térreo em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua. Esses seres sonolentos e invertebrados parecem estar de bem com o mundo, adorando a riqueza da vida em toda sua putrefação. Enquanto nós somos uma forma inferior, medrosa e em permanente discórdia. Estamos muito nervosos, indo rápido demais.
A mão de Trudy que fica para trás agarra o pilar do corrimão e fazemos uma curva veloz. Dez passos e nos encontramos diante da escada para a cozinha. Nenhum corrimão para nos conduzir lá para baixo. Caiu da parede, ouvi dizer, numa explosão de pó e pelos de cavalo misturados ao reboco, antes da minha época — se é que esta é a minha época. Só restam buracos irregulares. Os degraus são de madeira crua de pinho, com manchas gordurosas e escorregadias, palimpsestos de coisas derramadas e esquecidas, carne e banha pisadas, manteiga derretida que escorreu das torradas que meu pai costumava levar para a biblioteca sem um prato embaixo. Mais uma vez ela segue às pressas, e isso pode ser fatal, a queda de cabeça. Tal pensamento tinha acabado de iluminar meus terrores, quando sinto um pé escorregando para trás, uma guinada para a frente, um impulso de voar — imediatamente contrabalançados pelo retesamento apavorado dos músculos inferiores das costas dela, enquanto atrás de meu ombro ouço o som angustiante de tendões se esticando e testando sua ancoragem nos ossos.
“Minhas costas”, Trudy rosna. “A porra das minhas costas.”
Mas valeu a dor, pois ela recupera o equilíbrio e desce os degraus que faltam com cuidado. Claude, ocupado na pia da cozinha, faz uma pausa para emitir um som de solidariedade e continua com suas tarefas. Como ele diria, o tempo não espera por ninguém.
Ela se aproxima dele. “Minha cabeça”, sussurra.
“E a minha.” Então ele lhe mostra. “Acho que é a predileta dele. Bananas, abacaxi, maçã, menta e germe de trigo.”
“Aurora tropical?”
“Positivo. E aqui está o troço. Suficiente para derrubar dez bois.”
Ele derrama os dois líquidos no liquidificador e liga o aparelho.
Quando o barulho cessa, ela diz: “Ponha na geladeira. Vou fazer o café. Esconda esses copos de papel. Não toque neles sem luva”.
Estamos diante da máquina de café. Ela encontrou os filtros, pega o pó com uma colher, coloca a água. Trabalhando bem.
“Lave algumas canecas”, ela comanda. “E deixe na mesa. Deixe as coisas prontas no carro. A luva de John está em algum lugar no depósito de ferramentas. Você precisa tirar a poeira dela. E há um saco plástico por lá.”
“Está bem, está bem.” Já de pé muito antes dela, Claude parece irritado por Trudy assumir o controle. Me esforço para acompanhar a troca de palavras entre os dois.
“Meu troço e o extrato do banco estão em cima da mesa.”
“Eu sei.”
“Não esqueça o recibo.”
“Não vou esquecer.”
“Amasse um pouco o papel.”
“Amassei.”
“Com a sua luva. Não com a dele.”
“Sim!”
“Você estava de chapéu na Judd Street?”
“Claro.”
“Ponha num lugar onde ele possa ver.”
“Já pus.”
Mas ele estava junto à pia, lavando canecas com crostas de sujeira, fazendo o que lhe tinha sido ordenado. Ela não se deixa influenciar pelo tom de voz dele e acrescenta: “Devíamos dar um jeito nesta cozinha”.
Ele resmunga. Ideia insensata. A boa esposa Trudy deseja dar as boas-vindas ao marido com uma cozinha arrumada.
Mas certamente nada disso vai funcionar. Elodia sabe que meu pai está sendo esperado aqui. Talvez meia dúzia de amigos também saiba. Londres, de norte a leste, vai apontar o dedo por cima do cadáver. Trata-se de uma bela folie à deux. Minha mãe, que nunca teve um emprego, poderia se transformar numa assassina? Uma profissão dura, não apenas em termos de planejamento e execução, mas depois, quando a carreira de fato começasse. Pense bem, eu quero lhe dizer, antes mesmo do aspecto ético, sobre as inconveniências: detenção ou culpa, ou ambas as coisas; expediente longo, incluindo fins de semana e noites pelo resto da vida. Nada de remuneração, de benefícios extras, nada de pensão — só remorsos. Ela está cometendo um erro.
Mas os amantes estão fechados, como só os amantes podem estar. A atividade na cozinha os mantém imperturbáveis. Limpam da mesa os detritos da noite anterior, varrem ou empurram para o lado restos de comida, tomando depois mais analgésicos com um gole de café. É todo o café da manhã que terei. Concordam em que não há mais nada para fazer nas imediações da pia. Minha mãe resmunga instruções ou diretrizes. Claude fala pouco. Toda vez a interrompe. Talvez esteja repensando a decisão.
“Mais animado, está bem? Analisamos cuidadosamente tudo que ele disse ontem à noite e decidimos...”
“Certo.”
Depois de alguns minutos de silêncio: “Não vá oferecendo logo. Precisamos...”.
“Não vou fazer isso.”
E de novo: “Dois copos vazios, para mostrar que já bebemos também. E a embalagem da Paraíso das Vitaminas...”.
“Feito. Atrás de você.”
Depois dessa palavra, fomos surpreendidos pela voz de meu pai do alto da escada da cozinha. Óbvio, ele tem sua chave. Está na casa.
Ele fala aqui para baixo: “Estou tirando as coisas do carro. Daqui a pouco nos vemos”.
Seu tom de voz é rude, competente. Um amor do outro mundo o trouxe para este.
Claude sussurra: “E se ele trancar?”.
Estou próximo ao coração de minha mãe, conheço seus ritmos e suas alterações repentinas. E agora! Ele acelera por causa da voz de meu pai, e há um som adicional, uma perturbação nos ventrículos, como o chocalhar de maracas distantes ou de cascalho sacudido de leve numa lata. Daqui de baixo eu diria que é uma válvula semilunar cujas extremidades estão se fechando com muita força e ficando grudadas. Ou poderiam ser os dentes dela.
Mas para o mundo minha mãe parece serena. Ela continua dona e soberana de sua voz, que é regular e não condescende em sussurros.
“Ele é um poeta. Nunca tranca o carro. Quando eu lhe der o sinal, leve as coisas para lá.”
9.
Meu querido pai,
Antes de você morrer, gostaria de lhe dizer uma coisa. Não temos muito tempo. Bem menos do que você imagina, por isso me desculpe eu ir direto ao assunto. Preciso recorrer à sua memória. Houve uma manhã em sua biblioteca, um domingo em que caiu uma chuva incomum no verão e o ar ficou livre de poeira. As janelas estavam abertas, ouvimos um tamborilar nas folhas. Você e minha mãe quase pareciam um casal feliz. Você recitou um poema, bom demais para ser seu, como acho que seria o primeiro a admitir. Curto, denso, amargo até o limite da resignação, difícil de entender. Do tipo que mexe com a gente, que machuca a gente antes mesmo que se saiba bem o que foi dito. Era dirigido a um leitor despreocupado, indiferente, a um amante perdido, acredito que a uma pessoa real. Em catorze versos, falava de uma afeição sem esperança, de uma angústia inconsolável, de um desejo não realizado e não reconhecido. Evocava um rival, poderoso em matéria de talento ou posição social, ou ambas as coisas, e se curvava numa postura de autoanulação. O tempo traria sua vingança, mas ninguém se importaria ou saberia a menos que tivesse lido aqueles versos.
Penso na pessoa a quem o poema se dirigia como no mundo que estou prestes a conhecer. Já o amo demais. Não sei o que ele fará de mim, se vai cuidar de mim ou até mesmo notar minha presença. Visto daqui ele parece pouco bondoso, despreocupado com a vida, com as vidas. As notícias são brutais, irreais, um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Ouço com minha mãe, atento e tristonho. Jovens escravizadas, abençoadas religiosamente e depois estupradas. Tonéis usados como bombas nas cidades, crianças usadas como bombas em mercados de rua. Ouvimos falar de um caminhão trancado à beira de uma estrada na Áustria, onde setenta e um imigrantes foram abandonados até entrar em pânico, sufocar e apodrecer. Só os corajosos poderiam transportar sua imaginação até os instantes finais daqueles seres. Vivemos novos tempos. Talvez sejam antigos. Mas aquele poema também me faz pensar em você e em suas palavras de ontem à noite, e em como não quer ou não pode retribuir meu amor. Daqui onde estou, você, minha mãe e o mundo são uma coisa só. Hipérbole, eu sei. O mundo também está cheio de maravilhas, razão pela qual ando tolamente apaixonado por ele. E amo e admiro vocês dois. O que estou dizendo é que tenho medo da rejeição.
Por isso, recite outra vez para mim aquele poema com seu último sopro de vida, que eu o repetirei para você. Que seja a última coisa que ouvirá. Saberá então o que quero dizer. Ou tome um caminho mais agradável, viva em vez de morrer, aceite seu filho, pegue-me nos braços, exija que eu seja só seu. Em troca, lhe darei um conselho. Não desça a escada. Grite um até-logo despreocupado, entre no carro e vá embora. Ou, se precisar descer, recuse a vitamina de frutas, fique apenas o tempo necessário para se despedir. Explico depois. Até então, permaneço seu filho obediente...
Estamos sentados à mesa da cozinha, acompanhando em silêncio os passos intermitentes de meu pai no andar de cima trazendo as caixas com livros e as deixando na sala. Os assassinos consideram um estorvo qualquer conversa à toa antes do ato. Boca seca, pulso fraco, pensamentos vertiginosos. Até Claude perdeu a fala. Ele e Trudy bebem mais café puro. Depois de cada gole, pousam as canecas de volta sem fazer barulho. Não estão usando pires. Há um relógio que eu não tinha notado antes, tiquetaqueando em iambos contemplativos. Na rua, uma caminhonete de entrega com som de música pop se aproxima e se afasta com um ligeiro efeito Doppler, a banda sem graça subindo e descendo um microtom, mas se mantendo afinada. Há ali uma mensagem para mim, embora eu não a entenda. Os analgésicos estão fazendo efeito, porém o benefício é apenas a clareza, quando a insensibilidade me seria mais útil. Eles repassaram o plano duas vezes e está tudo certo. Os copos, a poção, a “coisa”, algum negócio do banco, o chapéu, a luva, o recibo, o saco plástico. Estou confuso. Deveria ter escutado na noite anterior. Não sei se o plano está indo bem ou prestes a fracassar.
“Eu poderia subir e ajudá-lo”, diz Claude por fim. “Você sabe, Deus ajuda a quem...”
“Está bem, está bem. Espera.” Minha mãe não suporta ouvir o resto. Ela e eu temos muita coisa em comum.
Ouvimos a porta da frente se fechar e, segundos depois, aquele mesmo sapato — com sola de couro à moda antiga — soando na escada, como havia soado na noite anterior, quando ele desceu com a amante e selou seu destino. Ele assobia desafinado enquanto se aproxima. Mais para Schoenberg que para Schubert, um simulacro de descontração — e não o sentimento verdadeiro. Portanto nervoso, apesar do discurso despótico. Não é nada fácil expulsar da casa que você adora o seu irmão e a mulher que você odeia e que carrega um filho seu. Ele está mais perto agora. Meu ouvido está grudado de novo à parede viscosa. Não há entonação, pausa ou palavra mastigada que eu queira perder.
Minha família informal dispensa os cumprimentos.
“Eu esperava ver sua mala já perto da porta.” Diz isso num tom espirituoso e, como sempre, ignora o irmão.
“Nenhuma chance”, diz minha mãe com suavidade. “Sente-se e tome um café.”
Ele se senta. Som de líquido sendo servido, o tilintar de uma colherzinha.
Depois meu pai: “Está vindo aí um pessoal para remover a sujeira inacreditável do vestíbulo”.
“Aquilo não é sujeira. É uma afirmação.”
“De quê?”
“Protesto.”
“Ah, é?”
“Contra o seu descaso.”
“Ora, ora!”
“Comigo. E com o nosso bebê.”
Essa era para pôr na conta da nobre causa do realismo, do plausível. Uma recepção untuosa poderia fazê-lo levantar a guarda. E chamar a atenção dele para seus deveres paternos — bravo!
“Eles vão chegar ao meio-dia. A turma da dedetização também. Vão fumigar a casa.”
“Não enquanto estivermos aqui, não mesmo.”
“Problema seu. Vão começar ao meio-dia.”
“Vão ter que esperar um ou dois meses.”
“Paguei em dobro para que não se importassem com você. E eles têm uma chave.”
“Ah”, diz Trudy, com ar de quem estava realmente entristecida. “Pena que você tenha gasto tanto dinheiro. Além do mais, dinheiro de poeta.”
Claude entra em ação, cedo demais para Trudy. “Fiz essa deliciosa...”
“Meu querido, todo mundo precisa de mais café.”
O homem que arrasa minha mãe entre os lençóis obedece como um cachorrinho. Sexo, começo a entender, é um reino nas montanhas, secreto e inviolado. No vale, aqui embaixo, só conhecemos rumores dele.
Enquanto Claude se curva sobre a máquina na outra extremidade da cozinha, minha mãe diz com voz agradável para o marido: “Já que estamos falando disso, soube que seu irmão foi muito generoso com você. Cinco mil libras! Que cara de sorte! Você lhe agradeceu?”.
“Ele vai receber de volta, se é o que você quer dizer.”
“Assim como o último.”
“Ele vai receber esse também.”
“Odeio pensar que você está gastando tudo isso com os fumigadores.”
Meu pai ri com genuíno prazer, “Trudy! Quase consigo lembrar por que amei você. Aliás, você está linda”.
“Um pouco descuidada”, ela diz. “Mas obrigada.” Ela baixa a voz teatralmente, como se desejasse excluir Claude. “Ontem, depois que você saiu, festejamos um bocado. A noite inteira.”
“Comemorando seu despejo.”
“Quem sabe.”
Nos inclinamos para a frente, eu e ela, meus pés primeiro, e minha impressão é de que ela pôs a mão na dele. Agora meu pai está mais próximo da doce desordem das tranças dela, de seu vasto olhar verde, da pele rosada, perfeita e perfumada com a fragrância que ele lhe comprou há muito tempo no duty free de Dubrovnik. Como ela pensa à frente!
“Bebemos uns dois copos e conversamos. E chegamos à conclusão de que você tem razão. Hora de cada um seguir seu caminho. A casa do Claude é bonita e St. John’s Wood é um lixo comparado com Primrose Hill. E estou muito feliz por sua nova amiga. Trenodia.”
“Elodia. Ela é adorável. Tivemos uma briga homérica quando voltamos para casa ontem à noite.”
“Mas vocês pareciam tão felizes juntos!” Noto que o tom de voz de minha mãe se eleva.
“Ela pôs na cabeça que ainda estou apaixonado por você.”
Isso também exerce um efeito sobre Trudy. “Mas você mesmo disse. Nos detestamos.”
“Verdade. Ela acha que eu reclamo demais.”
“John! Quer que eu telefone para ela? Que diga quanto odeio você?”
O riso dele soa duvidoso. “Seria o caminho da perdição!”
Sou lembrado de minha missão: o sagrado e imaginado dever da criança de pais separados consiste em uni-los. Perdição. Palavra de poeta. Condenado e desgraçado. Sou um idiota em deixar que minhas esperanças subam um ou dois pontos, como na bolsa de valores depois de uma derrocada e antes da próxima. Meus pais estão apenas brincando, excitando as partes íntimas um do outro. Elodia se enganou. O que existe entre o casal é apenas uma camada protetora de ironia.
Claude chega com uma bandeja, um toque pesado e irritadiço em seu oferecimento.
“Mais café?”
“Meu Deus, não”, diz meu pai no tom simples e desdenhoso que reserva para o irmão.
“Também temos um delicioso...”
“Querido, quero outra caneca. Das grandes. Seu maninho”, minha mãe diz para meu tio, “está brigado com a Trenodia.”
“Trenodia”, meu pai define para ela com um cuidado exagerado, “é uma canção em memória de alguém morto.”
“Como ‘Candle in the Wind’, do Elton John”, diz Claude, voltando à vida.
“Faça o favor!”
“De qualquer modo”, diz Trudy, dando alguns passos atrás na conversa. “Esta é a casa do casal. Vou me mudar quando estiver pronta, e não será nesta semana.”
“Olha aqui. Você sabe que a história do fumigador era só brincadeira. Mas não pode negar. A casa está uma pocilga.”
“Se você me pressionar demais, John, posso decidir ficar. E nos vemos no tribunal.”
“Entendido. Mas você não vai se importar se limparmos a sujeira do vestíbulo.”
“Me importo um pouco.” E, depois de alguns segundos de reflexão, ela concorda com um aceno de cabeça.
Ouço Claude pegar o saco plástico. Sua alegria não convenceria nem a criança mais obtusa. “Me desculpem. Alguém tem que fazer o trabalho sujo.”